Você está na página 1de 86

Profº. Dr.

Alfredo Boulos Júnior1


1
História das guerras
Demétrio Magnoli (Org.)
Editora Contexto
O excerto a seguir é do historiador Marco Mondaini. Ele pertence ao
livro História das guerras, organizado pelo sociólogo Demétrio
Magnoli.

A “dupla revolução” e o nascimento da


contemporaneidade

O mundo contemporâneo é resultado direto de longo período de transição


compreendido entre os séculos XIV/XV e XVIII/XIX. No decorrer dessa
larga fase histórica, a sociedade feudal é substituída de forma
progressiva pela sociedade capitalista. Então, três espécies de transformações pré-capitalistas começam a
gestar muito lentamente nova estrutura social, a saber: a) a acumulação de capital; b) a liberação de mão-de-
obra; c) os progressos da técnica aplicada à produção.
Em outras palavras, de maneira lenta, somas crescentes de capitais começavam a se concentrar nas mãos de
um conjunto de indivíduos que viria a construir o futuro empresariado capitalista, ao mesmo tempo que grandes
contingentes de camponeses eram forçados a migrar rumo às cidades na expectativa de conseguirem sobreviver
vendendo a única riqueza que lhes restara – sua força de trabalho –, e que eram dados os primeiros passos na
direção do desenvolvimento científico-tecnológico voltado para o aumento da produção de mercadorias.
Localizadas nos marcos de um mundo ainda pré-capitalista, essas três transformações sofreriam um impulso
monumental a partir da década de 1780. Nela, uma “dupla revolução” começa a fazer nascer de maneira
irreversível uma nova sociedade – a sociedade urbana, industrial e capitalista.
Com a Revolução Industrial (inglesa) e a Revolução Democrático-Burguesa (francesa) – os dois pólos da “dupla
revolução” –, o tempo histórico sofreu impressionante aceleração, fazendo com que o arrastado ritmo da
medievalidade fosse despedaçado, como que se o mundo estivesse sendo virado de ponta-cabeça.
Com a Revolução Francesa, o Antigo Regime é atingindo em cheio, abrindo espaço para o sepultamento das
estruturas feudais pelas forças do capital em formação, alinhadas momentaneamente aos reclamos antifeudais
mais amplos oriundos das camadas mais empobrecidas da sociedade. Nas suas jornadas revolucionárias, os [...]
franceses que pertenciam ao Terceiro Estado (o povo), questionaram de forma radical a iniquidade contida no
domínio exercido [...] por indivíduos pertencentes ao clero e à nobreza.
O resultado das lutas iniciadas em 1789 não poderia ser mais subversivo. A noção mofada de soberania real é
substituída pela renovada ideia de soberania popular. A velha ordem política assentada na realização dos
desígnios divinos (o monarca como “eleito de Deus na Terra”) sai de cena, entrando no seu lugar um
ordenamento fundado na capacidade racional do homem de intervir na história de maneira autônoma.
MONDAINI, Marco. Guerras napoleônicas. In: MAGNOLI, Demétrio (Org.). Histórias das guerras. São Paulo:
Contexto, 2006. p. 190-191.

Habilidade da BNCC
7º ano - (EF07HI17) Discutir as razões da passagem do mercantilismo para o capitalismo.

2
2
História do Brasil para
ocupados

Luciano Figueiredo (Org.)


Editora Casa da Palavra
O trecho a seguir é da historiadora Sandra Jatahy Pesavento. Ele faz
parte da obra História do Brasil para ocupados, organizada pelo
historiador Luciano Figueiredo, que apresenta importantes artigos para a
compreensão do Brasil do passado e do presente.

A Farroupilha e a identidade gaúcha

“Como aurora precursora


Do farol da divindade
Foi o 20 de setembro
O precursor da liberdade”
Hino do Rio Grande do Sul
Que acontecimento foi este, que os versos iniciais do hino rio-grandense evocam de forma tão heroica? Uma
guerra contra um império. Uma revolução que proclamou a república no sul do país. Trabalhada e retrabalhada
pela memória local, a Revolução Farroupilha forjou, acima de tudo, a identidade gaúcha. Segundo os livros, foi
o acontecimento que trouxe o Sul, efetivamente, para a História do país. Foram dez anos de conflito – de 1835
a 1845 –, mas suas origens remontam às primeiras décadas do século XIX, quando se agravaram os
desentendimentos entre o poder gaúcho e a Corte. [...]
O conflito [...] se encerrou em 28 de fevereiro de 1845, com a assinatura da Paz de Ponche Verde, na localidade
de Dom Pedrito. Foi o que se chamou de “paz honrosa”. Os farrapos viram atendidas [...] uma série de antigas
reinvindicações, como a faculdade de escolher o presidente de província que quisessem. A dívida contraída
com capitalistas da praça, mesmo de Montevidéu, pelo governo republicano seria paga pelo Império e os oficiais
do exército farroupilha passariam para o exército imperial com os mesmos postos que ocupavam. Concedia-se
também liberdade aos escravos que combateram na revolução.
Finda a Revolução Farroupilha, iniciava-se, no Rio Grande do Sul, o cultivo da memória daquele acontecimento.
A longa duração da guerra contra o Império mostrava a bravura local. A paz honrosa reconhecia o valor dos
gaúchos, pois a tropa farroupilha não fora vencida no campo de batalha. Além disso, ao proclamarem a
república sem se separar do Brasil, os gaúchos mostravam que eram brasileiros por vontade própria. Forjava-
se, assim, a identidade regional.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Farrapos com a faca na bota. In: FIGUEIREDO, Luciano (Org.). História do Brasil
para ocupados. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013. p. 329-333.

Habilidade da BNCC

8º ano (EF08HI16) Identificar, comparar e analisar a diversidade política, social e regional nas rebeliões e nos
movimentos contestatórios ao poder centralizado.
3
3

História contemporânea: da Revolução


Francesa à Primeira Guerra Mundial

Luís Edmundo Moraes


Editora Contexto
O trecho a seguir pertence ao livro História contemporânea: da Revolução
Francesa à Primeira Guerra Mundial, de autoria do historiador Luís Edmundo
Moraes, professor-associado de História Contemporânea da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

A primeira e segunda Revolução Industrial

O setor industrial que melhor exprimiu o impacto do comércio colonial foi o têxtil, particularmente a
indústria do algodão, que fincara raízes na Inglaterra não antes de finais do século XVII, com a tentativa de
substituição dos tecidos de algodão baratos importados da Índia. [...] As transformações produzidas no setor têxtil
implicaram um aumento significativo da produtividade e dos ganhos: nas últimas décadas do século, os lucros
chegavam a surpreendentes 450% do valor investido. Isso fez desse setor um polo de atração crescente para
capitais privados em busca de investimento lucrativo, apostando tanto na ampliação das fábricas já estabelecidas
como na constituição de novas unidades de produção. [...] As transformações que foram geradas na indústria do
algodão atingiram, inicialmente, ramos industriais diretamente relacionados aos têxteis: a indústria química, a
fabricação de máquinas e a mineração do carvão e do ferro foram empurrados para a modernização. Era o setor
têxtil que ditada o ritmo do desenvolvimento da fatia industrial da economia até a década de 1830. [...] o aumento
dos investimentos incentivados pela expectativa de ganhos fez com que a produção crescesse em um ritmo maior
do que o ritmo de crescimento do mercado consumidor, tanto interno quanto externo. [...] O resultado foi o
barateamento progressivos dos produtos: entre 1780 e 1840, o preço dos têxteis sofreu uma redução de 95%,
impactando de forma decisiva na queda da taxa de lucro. [...] Sem ser atrativo o suficiente para absorver o
reinvestimento, o setor têxtil deixa de expandir e entre em “crise” entre os anos 1830 e 1840. Com isso, esgota-se
aquela que foi a primeira fase da Revolução Industrial. Entre os anos 1840 e 1850, os capitais gerados por meio dos
têxteis foram redirecionados para ramos de produção que, naquele momento, eram mais atrativos: a indústria
mecânica e a siderurgia, que abasteciam a crescente demanda por máquinas. A procura cada vez maior por ferro e
carvão deu um enorme impulso à mineração e aos transportes, que vivem sua própria revolução, com a ampliação
do uso da máquina a vapor para a navegação e nas ferrovias. Foram as ferrovias que, de fato, se mostraram
altamente sedutoras, tanto pelos lucros que o investimento prometia quanto pela aura que as cercava: a estrada de
ferro se tornou a expressão de uma Europa que se fazia moderna e civilizada.
MORAES, Luís Edmundo. História contemporânea: da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial. São Paulo:
Contexto, 2017. p. 58-59.

Habilidade da BNCC
8º ano (EF08HI03) Analisar os impactos da Revolução Industrial na produção e circulação de povos, produtos e
culturas.
4
4
História da América Latina

Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino


Editora Contexto
O excerto a seguir pertence ao livro História da América Latina,
escrito pelas historiadoras Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino. A
obra apresenta relevantes estudos sobre o continente latino-americano.

A participação das mulheres nas lutas de


Independência

A participação das mulheres foi significativa e se deu em diversos níveis: como acompanhantes dos exércitos,
como soldados, como mensageiros ou como animadoras da causa da independência. Tomemos alguns poucos
exemplos. Nos campos de luta, as mulheres, às vezes com filhos, acompanhavam os soldados – maridos, amantes
ou irmãos. Como não havia abastecimento regular das tropas, cozinhavam, lavavam, costuravam, em troca de algum
dinheiro. Essas mulheres aguentavam as duras caminhadas e as agruras das batalhas sem qualquer
reconhecimento positivo. Ao contrário, em geral, carregavam a pecha de “mulheres fáceis” que se vendiam aos
homens por qualquer preço. Também participaram de batalhas como soldados. Uma delas foi Juana Azurduy de
Padilla que nasceu em Chuquisaca (hoje Sucre), em 1780. Junto com o marido, homem de posses, dono de
fazendas, liderou um grupo de guerrilheiros, participando de 23 ações armadas, algumas sob seu comando. Ganhou
fama por sua coragem e habilidade, chegando a obter a patente de tenente-coronel. Depois da morte do marido,
Juana, que perdeu todos os seus bens, continuou participando da luta guerrilheira, ainda que com dificuldades
crescentes. A seu lado, nos combates, havia um grupo de mulheres, chamadas “las amazonas”. Mulheres de famílias
abastadas, demonstrando sua adesão à causa da Independência, abriram seus salões para tertúlias em que se
discutiam ideias e se propunham estratégias em favor do movimento. Entre as mensageiras, um exemplo
extraordinário foi o de Policarpa Salvarrieta, conhecida como Pola, nascida em Guadas, na atual Colômbia, em 1795,
numa família de regular fortuna ligada à agricultura e ao comércio. Pola trabalhava como costureira em casas de
famílias defensoras dos realistas e, com tal colhia informações para serem enviadas às tropas guerrilheiras, das
quais fazia parte seu noivo, Alejo Sabarían. Ao ser preso, foi encontrada com ele uma lista de nomes de realistas e
de patriotas que Pola lhe havia entregue. Assim, ela foi capturada, julgada e condenada à morte por um Conselho
de Guerra. No dia 14 de novembro de 1817, Policarpa Salavarieta e Alejo Sabarían e outros oito homens foram
fuzilados na Praça Maior de Santa Fé de Bogotá. Sua morte causou grande comoção, provocando fortes reações.
Imediatamente após seu fuzilamento, ela foi retratada, num célebre quadro, esperando pelo momento final. Poemas
e peças teatrais surgiram cantando sua lealdade à causa independentista e sua coragem diante do cadafalso.
PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. p. 38-39.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI11) Identificar e explicar os protagonismos e a atuação de diferentes grupos sociais e étnicos nas lutas de
independência no Brasil, na América espanhola e no Haiti.
5
5
História dos Estados Unidos: das
origens ao século XXI

Leandro Karnal, Sean Purdy, Luiz Estevam Fernandes e Marcus Vinícius de


Morais
Editora Contexto
O trecho a seguir, dos historiadores Luiz Estevam Fernandes e Marcus Vinícius
de Morais, faz parte do livro História dos Estados Unidos: das origens ao
século XXI, organizado pelo professor Leandro Karnal.

História dos Estados Unidos

Durante a Secessão, os escravos utilizaram a Guerra Civil do melhor jeito


que podiam para se tornar livres: cada vez que uma tropa do Norte invadia uma
região confederada, um enorme contingente de negros fugia das fazendas e, dessa maneira, colaborava para o
desmoronamento do sistema escravista.
Graças aos escravos e aos abolicionistas, um combate, que se iniciara em nome da recuperação da unidade territorial
do país, transformou-se numa luta pelo fim da escravidão. Lincoln, diante das pressões crescentes de diversos setores pela
abolição e da ausência de acordo sobre a escravidão nas novas terras do Oeste, percebeu que a emancipação total dos
escravos lhe traria popularidade, e que poderia acelerar o fim da guerra, além de angariar apoio aos europeus críticos do
regime de escravidão. Assim, no dia 1° de janeiro de 1863 foi proclamada a Lei de Emancipação dos escravos. Nas áreas
longe do alcance legal da União, os escravos tornavam-se livres na medida em que as tropas do Norte venciam. [...]
A lei federal que proibiu a escravidão em todo o território nacional seria promulgada apenas em 1865, como a Décima
Terceira Emenda da Constituição norte-americana.
Em novembro de 1863, logo após a sangrenta Batalha de Gettysburg, o presidente Lincoln, proferiu seu famoso
discurso em que dava ao conflito um caráter de luta pela democracia. Essa fala tornou-se um dos mais famosos documentos
da história dos EUA:
Há oitenta e sete anos, nossos antepassados implantaram sobre este continente uma nova nação, concebida em
liberdade, e dedicada à ideia de que todos os homens são iguais. Presentemente, estamos envolvidos numa grande guerra
civil testando assim o poder de resistência dessa nação, ou de que qualquer outra concebida sobre aquele princípio.
Encontramo-nos, agora, num grande campo de batalha dessa guerra. Viemos até aqui para dedicar uma porção de tal campo
como um lugar de repouso eterno para aqueles que aqui deram suas vidas a fim de que a nação pudesse viver. E é
conveniente e apropriado que nós prestemos juntos essa homenagem. [...]
É para nós, os que continuavam vivos, que temos diante de nós uma obra inacabada pela qual eles se bateram e tão
nobremente adiantaram, que melhor caberia tal dedicatória. Sim, é para nós que estamos aqui dedicados a grande tarefa
que se nos defronta – que isso se endereça mais do que a esses mortos honrados dos quais retiraremos a devoção ampliada
àquela causa pela qual eles esgotaram a última reserva de dedicação –, tarefa essa que aqui devemos assumir para que
esses mortos não tenham morrido em vão, e para que essa nação, sob a autoridade de Deus, deva renascer em liberdade,
e a fim de que o governo do povo, pelo povo e para o povo não pereça na terra.
FERNANDES, Luiz Estevam; MORAIS, Marcus Vinícius de. Os EUA no século XIX. In: KARNAL, Leandro et al
(Org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. p. 134-135.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI27) Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os
povos indígenas originários e as populações negras nas Américas.
6
6
Almanaque brasilidades: um
inventário do Brasil popular
Luiz Antonio Simas
Editora Bazar do Tempo
O excerto a seguir pertence à obra Almanaque brasilidades: um inventário do
Brasil popular, importante livro do historiador Luiz Antonio Simas.

Mães do samba
A participação feminina no ambiente das escolas de samba sempre foi
determinante e se impôs como uma espécie de reflexo da própria condição e
da experiência histórica das mulheres, sobretudo afrodescendentes, na sociedade brasileira.
Aparentemente, o protagonismo nas escolas de samba foi e é exercido pelos homens. Quem, todavia,
mergulhar no mundo do samba e ir além da superfície, verá que, como diziam os antigos, debaixo desse angu tem
caroço. As escolas de samba, em sua origem, se destacaram pelo caráter comunitário, definidor, inventor e
renovador de identidades de grupos vistos historicamente como subalternos por parcelas significativas das elites
brasileiras. O crítico musical Roberto M. Moura matou a charada no livro No princípio era a roda:
“Quando alguém se aproxima do samba, através da roda ou das escolas, dificilmente percebe seu
caráter doméstico. Num e noutro caso, verá uma predominância do elemento masculino, que toca e canta.
Mas se esse envolvimento evoluir, se a pessoa aprofundar essa aproximação, por certo descobrirá as
raízes caseiras que estão por trás daqueles sons. [...] É como se o samba tivesse duas faces: a masculina,
para o público externo, e a feminina, para os que são de casa.”
Indo além da citação, há que se considerar que, desde o início, as mulheres foram relevantes também do
ponto de vista da música e da coreografia. Foram elas, nos tempos primordiais em que o perfil comunitário prevalecia
e a visão empresarial nem sonhava se impor no ambiente das escolas, que sustentaram, sobretudo como pastoras
ou baianas, alguns elementos fundamentais para o desempenho de uma agremiação – como o canto coral, a
evolução e a harmonia. [...]
E são tantas as mulheres que merecem destaque que fica até difícil resumi-las a poucos nomes. Como não
citar Dagmar do Surdo, a primeira mulher a furar o cerco masculino e tocar na bateria de sua escola; Amélia Pires,
já na década de 1930, atuando como compositora na Unidos da Tijuca; Carmelita Brasil, fundadora, presidente e
compositora da Unidos da Ponte e primeira mulher a assinar um samba-enredo que cruzou uma avenida de desfile,
em 1958; Dona Ivone Lara, grande compositora e primeira a ter um samba de sua autoria cantado por uma grande
escola (Império Serrano, 1965); Carmem Silvana, a pioneira imperiana que puxou na avenida o mítico samba-enredo
Aquarela Brasileira (1964), do mestre Silas de Oliveira; e muitas outras que ainda hoje são líderes comunitárias e
figuras exponenciais da cultura brasileira. [...]
SIMAS, Luiz Antonio. Almanaque brasilidades: um inventário do Brasil popular. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo,
2018. p. 133-134.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do
Brasil.

7
7
História do Novo Mundo 2: as
mestiçagens

Carmen Bernand e Serge Gruzinski


Edusp
O trecho a seguir faz parte do livro História do Novo Mundo 2: as
mestiçagens, importante obra dos historiadores Carmen Bernand e
Serge Gruzinsk.

As mestiçagens
Essa primeira América, dominada pelas possessões espanholas, é o teatro de mestiçagens de uma
prodigiosa liberdade. O encontro dos europeus e das sociedades índias provocou primeiramente em toda a
extensão do continente americano transformações dos modos de vida. Espontâneos ou impostos pela força,
lentos ou precipitados, esses ajustamentos recíprocos nasceram dos choques que a Conquista, o pavor, a
incompreensão, o simples contato ou ainda a curiosidade multiplicaram. [...] A desordem que destrói os seres
e as tradições engendra por fim novas práticas e novas crenças, algumas das quais acabam por se estabilizar
antes de, por sua vez, se transformar. Ligadas às necessidades de adaptação e de sobrevivência, essas formas
de mestiçagem constituem a trama das culturas que apareceram no século XVI no continente americano. Esta
é uma diferença essencial com a história europeia, e é sem dúvida alguma a razão pela qual a vontade de
construir uma outra Europa no Novo Mundo não deu origem a um “caos de duplos”, mas antes, à América.
As mestiçagens americanas são processos irreversíveis [...], não há volta possível a um passado
indígena, anterior à irrupção dos europeus [...] Índios aprenderam a economizar, a endividar e se endividar, a
receber juros, a garantir, em suma, a manejar a abstração do dinheiro. Foi-lhes preciso plantar [...] açúcar,
tabaco, yerba mate, para um mercado exterior, em detrimento de suas culturas alimentares. Outros índios, em
número crescente, preferiram o trabalho assalariado às obrigações seculares do tributo e da mita.
Inversamente, os espanhóis do novo mundo se indianizam e até, por vezes, se africanizam à sua revelia.
Por mais que as autoridades se insurgissem contra essas mestiçagens [...] e reclamassem a chegada de
emigrantes ibéricos, as nutrizes, as escravas, os domésticos, os yanaconas, os mordomos, a arraia-miúda
exercem uma influência cotidiana sobre os costumes. Assim nasce uma linguagem que enriquece o castelhano
com termos náuatles, guaranis, quíchuas ou maias, cuja entonação é mais suave, mais cantante, mais pausada
que a de Castela. Assim aparecem gestos novos, que se tornam tão familiares que ninguém mais lhes presta
atenção. Das mestiçagens da vida cotidiana, uma das mais profundas é sempre a da alimentação, cadinho de
sabores e de odores incomparáveis, e critério irrefutável de toda identidade. Entre os criollos, a cozinha das
mulatas ou das domésticas índias desperta sensações que não lhes trazem mais as tradições culinárias
europeias. Mesmo quando o alimento é de origem europeia, como a carne de vaca, sua abundância e seu
preço módico lhe dão mais lugar no regime alimentar e modificam a maneira como é preparado. Do mesmo
modo que o milho, a mandioca e o chocolate, os entrecostos do Río de la Plata se tornam alimentos da “região”,
e portanto a marca de uma nova pertença.
BERNAND, Carmen; GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo 2: as mestiçagens. São Paulo: Edusp,
2006. p. 723-725.

Habilidades da BNCC
7º ano
(EF07HI09) Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações
ameríndias e identificar as formas de resistência.

8
8
Sete mitos da conquista espanhola

Matthew Restall
Editora Civilização Brasileira
O excerto a seguir pertence à obra Sete mitos da conquista
espanhola, do historiador inglês Matthew Restall, que desfaz alguns
mitos bastante difundidos sobre o tema. O trecho selecionado aumenta
nossa compreensão sobre um dos fatores decisivos da conquista da
América espanhola: as doenças.

Doenças do Velho Mundo no Mundo Novo

[...] Os conquistadores possuíam [...] grandes aliados, sem os quais a Conquista não teria ocorrido. Um
foram as enfermidades. As Américas ficaram isoladas do resto do mundo por dez mil anos. Em virtude
de maior volume populacional e da maior variedade de animais domésticos (dos quais se originaram
doenças como varíola, sarampo e gripe) do Velho Mundo, os europeus [...] desembarcaram no Novo
Mundo carregados com toda uma gama de germes mortais. Embora estes ainda provocassem mortes
no Velho Mundo, seus habitantes haviam desenvolvido níveis de imunidade relativamente altos em
comparação com os americanos nativos, que morriam num ritmo e em números assombrosos. No século
e meio que se seguiu à primeira viagem de Colombo, a população indígena da América sofrera uma
redução de 90%.
Os surtos epidêmicos exerceram um impacto imediato nas invasões dos Impérios Asteca e Inca. [...] A
capital asteca caiu não pela força, das armas hispânicas, mas sim devido a doenças e à praga. O cerco
à ilha sobre a qual se erguia a cidade interrompeu o fornecimento de víveres alimentícios – mas,
enquanto a fome se aproximava, os defensores acabaram sucumbindo à praga ou a doenças. Ao que
parece, a varíola foi a grande culpada. Ao percorrerem a cidade devastada, os espanhóis e seus aliados
nauas depararam-se com pilhas de cadáveres e moribundos amontoados, infestados de pústulas,
reveladoras. Como mais tarde diria o cronista franciscano Sahagún, “as ruas estavam tão apinhadas de
mortos e enfermos que nossos homens caminhavam por cima dos corpos”.
RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
p. 235-236.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI09) Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações
ameríndias e identificar as formas de resistência.

9
9
Estados Unidos: Estado
Nacional e Narrativa da Nação
(1776-1900)

Mary Anne Junqueira


Editora Edusp
O trecho a seguir faz parte do importante livro Estados Unidos: Estado
Nacional e Narrativa da Nação (1776-1900), da historiadora Mary Anne
Junqueira, professora da Universidade de São Paulo (USP).

Os pais da Nação

[...] No momento em que se constituía a identidade norte-americana,


procurava-se uma origem única para uma cultura diversificada. E como falar
do passado colonial, quando era exatamente com ele que queriam romper?
Assim, recuperou-se do passado colonial apenas o grupo de peregrinos
puritanos da Nova Inglaterra, e parte da nova nação foi vista como descendente direta desse grupo.
A história dos peregrinos [...]: no século XVII, os separatistas, um dos grupos religiosos mais radicais da
Inglaterra, rompeu com a Igreja anglicana. A bordo do navio Mayflower, atravessaram o Atlântico em direção ao
norte da colônia já estabelecida de Plymouth, onde depois seria a Nova Inglaterra. Receberam para isso carta
patente da Virginia Company of London. Assim como comerciantes e aventureiros, viam possibilidade de lucro na
região. As condições da região eram difíceis para os colonos. Alojaram-se ali, a despeito dos invernos inclementes.
Ao atravessar o oceano, os peregrinos se comparavam ao povo hebreu atravessando o mar Vermelho em
busca da Terra Prometida; ou seja, eram o povo eleito por Deus que transformaria aquelas terras do Novo Mundo,
onde poderiam exercer sua fé religiosa. A bordo da embarcação, os homens que comandavam a expedição fizeram
uma espécie de acordo, conhecido como Mayflower Compact (Pacto do Mayflower). Estabeleceram que, onde se
instalassem, as decisões que afetassem a todos seriam tomadas em conjunto, e os homens seriam sempre
consultados.
Contudo, afinal, por que os homens que construíam a nação no século XIX – políticos, jornalistas, poetas,
escritores – recuperaram os conhecidos pais peregrinos e deixaram de lado tantos outros grupos religiosos que
fizeram o mundo colonial inglês? A resposta não é simples, mas certamente, em parte, relaciona-se ao fato de os
peregrinos terem rompido com a monarquia inglesa e a Igreja anglicana ainda no início do século XVII. Exatamente
a mesma proposta dos homens que construíam agora a nova nação: romper com a metrópole e criar um novo
governo na América, garantindo transcendência ao novo projeto americano. [...]
Os pais fundadores eram vistos como herdeiros diretos dos peregrinos e, assim, estabeleceu-se uma espécie
de mito a América. Eles cumpriram a profecia: o universo que surgia após a Independência era novo, moralmente
sólido e com extraordinárias perspectivas pela frente. Como se os anos após a Independência fossem anos de um
recomeço, partindo-se do zero. Era uma ruptura histórica, pois o mundo que erguiam ali seria o oposto da Europa.
Um povo eleito por Deus mostraria para a humanidade como construir um país com base em princípios éticos e
moralmente virtuosos: essa seria sua missão providencial. Consolidava-se a ideia de excepcionalismo norte-
americano, isto é, uma nação com projeto único e esplendido. Tal qual um farol para o mundo, aqueles homens que
acreditavam que estavam criando não só um sistema inédito como também de alcance universal. Uma criação única,
10
modelo que iniciavam e que a humanidade, inevitavelmente, seguiria. Naquela perspectiva, era o único caminho
moral possível, e qualquer outro modelo seria interpretado como estando em direção equivocada.
JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado Nacional e Narrativa da Nação (1776-1900). São Paulo.
Edusp, 2018. p. 44-45.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI06) Aplicar os conceitos de Estado, nação, território, governo e país para o entendimento de conflitos e
tensões.

11
10
História do Brasil
contemporâneo: da morte de
Vargas aos dias atuais

Carlos Fico
Editora Contexto
O excerto a seguir pertence à obra História do Brasil contemporâneo:
da morte de Vargas aos dias atuais. A autoria é de Carlos Fico, historiador
e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Música e ditadura

Durante os anos 1960, fizeram muito sucesso os festivais da canção,


concursos transmitidos por emissoras de TV que se tornaram verdadeiras “guerras” de torcidas favoráveis a
um ou outro artista. As vaias eram frequentes. Para os artistas, participar daqueles festivais exigia sangue-frio.
[...]
Na época, o mercado fonográfico brasileiro vivia momento de grande prosperidade. O sucesso da Bossa
Nova, da Jovem Guarda, da Música Popular Brasileira (MPB) e do Tropicalismo estimulava a venda de discos.
Compositores e intérpretes tinham contratos com as gravadoras que os obrigavam a lançar ao menos um disco
por ano. Os festivais da canção estimularam a popularização dos artistas. As disputas entre as diversas
tendências não eram todo artificial, pois havia diferenças ideológicas reais entre elas.
A Bossa Nova havia rompido com o padrão dos velhos sambas-canções cantados com grandiloquência,
chamando a atenção para a delicadeza melódica desde que João Gilberto lançou seu famoso disco “Chega de
saudade” em 1958. A tendência tornou-se sucesso reconhecido inclusive internacionalmente. Como uma
espécie de cópia da versão açucarada dos Beatles, havia a Jovem Guarda, voltada para o público adolescente.
Artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil propunham combinações mais ousadas, mesclando influências
internacionais com ritmos nacionais tradicionais por meio do Tropicalismo. Nos festivais, também eram
frequentes as “canções de protesto”, que, tentando driblar a censura, procuravam criticar o regime militar.
No Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo em 1968, o compositor Geraldo Vandré
concorreu com sua canção “Pra não dizer que não falei de flores”, típica música de protesto que enaltecia a
resistência ao regime militar. Quando foi anunciado o resultado, com Vandré em segundo lugar, irrompeu
estrepitosa vaia. Os vencedores, Chico Buarque e Tom Jobim, mal conseguiram ouvir a interpretação de sua
música “Sabiá”, pela dupla Cynara e Cybele.
O ministro do Exército, Lyra Tavares, pediu ao intelectualizado coronel Octávio Costa que escrevesse uma
resposta a Vandré no Jornal do Brasil. A resposta de Costa agradou aos militares e ele prosseguiu escrevendo
crônicas para o jornal. Foi essa atividade que o notabilizou, razão pela qual o coronel seria convidado, no futuro,
a fazer a propaganda política do regime na Aerp.
FICO, Carlos. História do Brasil contemporâneo: da morte de Vargas aos dias atuais. São Paulo: Contexto,
2016. p. 79.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI20) Discutir os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira
durante a ditadura civil-militar.
12
11

Nísia Floresta: uma mulher à


frente do seu tempo

Constância Lima Duarte


Editora Mercado Cultural
O trecho a seguir faz parte do livro Nísia Floresta: uma mulher à
frente do seu tempo. A obra foi escrita por Constância Lima Duarte
– doutora em Literatura brasileira pela Universidade de São Paulo
(USP).

Nísia Floresta: uma mulher à frente de seu


tempo

Na história da mulher brasileira, o nome de Nísia Floresta se impõe e ocupa as primeiras páginas,
tanto pela coragem revelada em seus escritos, como pelo ineditismo e ousadia de suas ideias. No tempo
em que a grande maioria das mulheres vivia recolhida em suas casas sem nenhum direito, e o ditado
popular dizia que “o melhor livro é a almofada e o bastidor”, ela dirigia colégios para moças, colaborava
em jornais e escrevia livros e mais livros defendendo os direitos das mulheres, dos índios e dos
escravizados.
Nascida em 1810, em Papari, Rio Grande do Norte, Nísia Floresta publicou seu primeiro livro,
Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, em 1832, quando tinha apenas 22 anos. Abordou também,
em seus textos, temas como a opressão aos índios, iniciada com a colonização portuguesa, a escravidão
e a imagem distorcida e preconceituosa que o Brasil possuía em outros países, tendo escrito aquele que
é considerado o primeiro artigo em defesa dos aspectos positivos do “gigante do porvir”, como ela definia
a nação de extensão continental e com vocação para se tornar uma das maiores potências do planeta.
O preço por tal pioneirismo foi alto: seu nome foi envolvido pelo esquecimento e durante algumas
décadas não se ouviu falar dela. O pouco que se ouvia estava marcado pelo preconceito ou impregnado
da surpresa dos que se deparavam com uma história de vida como a sua e a novidade de suas reflexões.
Viver à frente de seu tempo custou-lhe o não-reconhecimento de seu talento e, por isso, até hoje não é
citada na história da literatura brasileira, como escritora romântica, nem na história da educação feminina,
como educadora.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: uma mulher à frente do seu tempo. Brasília: Mercado
Cultural, 2006. p. 6-7.

Habilidades da BNCC
9º ano
(EF09HI08) Identificar as transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no
Brasil durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao
tema.
(EF09HI09) Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos
sociais.
13
12
O povo Mapuche segue em luta

Elaine Tavares
http://www.iela.ufsc.br/noticia/o-povo-mapuche-segue-em-luta
O trecho a seguir é parte do artigo O povo Mapuche segue em luta, escrito pela jornalista Elaine
Tavares e disponível no site do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA), da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).

O povo Mapuche segue em luta


Pouca gente sabe, mas existe um povo que nunca foi conquistado pelos espanhóis aqui na América
Latina. Com a chegada dos brancos europeus, civilizações complexas foram dizimadas, estados foram
destruídos, nacionalidades extintas. Mas, o povo que habitava as margens dos rios Biobío e Toltén, no
que é hoje o sul do Chile, nunca se deixou vencer, nem mesmo pelos incas que, antes da dominação
espanhola, também chegaram a conformar o império do Tawantinsuyo.
Ao longo de 300 anos de invasão europeia, este povo guerreiro enfrentou com valentia e audácia a fúria
dos espanhóis até ser reconhecido como um estado autônomo dentro do imenso território conquistado.
São os Mapuche, palavra que designa “gente da terra”, na língua mapudungun. Nestes séculos todos
em que reinaram Espanha e Portugal aqui por estas terras, os mapuche resistiram altivamente a qualquer
investida, chegando a usar, com sucesso, táticas de espionagem bastante eficazes. Além disso,
incorporaram as novidades das forças produtivas inimigas para fortalecer a sua defesa.
[...] Nunca vencidos, os mapuche enfrentam com a mesma dignidade ancestral, os novos desafios que
se apresentam. [...]
TAVARES, Elaine. O povo Mapuche segue em luta. IELA. 15 jan. 2015. Disponível
em:http://www.iela.ufsc.br/noticia/o-povo-mapuche-segue-em-luta. Acesso em: 17 jul. 2019.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI09) Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações
ameríndias e identificar as formas de resistência.

14
13

Egiptomania: o Egito no Brasil

Margaret Bakos (Org.)


Editora Paris Editorial
O excerto a seguir foi escrito pelas historiadoras Margaret Bakos e Márcia
Raquel Brito e pertencem ao importante livro Egiptomania: o Egito no Brasil,
organizado por Margaret Bakos.

Obeliscos brasileiros

Existem centenas, talvez milhares, de obeliscos espalhados pelas cidades brasileiras. Porém, parte do
significado original desse tipo de construção, tão característica do antigo Egito, se perdeu ao longo dos séculos.
Mais do que simples objetos decorativos, os gigantescos blocos monolíticos – isto é, esculpidos em uma só
peça de granito – possuíam um forte sentido mitológico para os construtores egípcios: representavam o primeiro
raio de sol que desceu pela terra, ligando o mundo dos homens ao universo celeste.
Tekhen era o nome dado pelos antigos egípcios a tais monumentos e significava, textualmente, “raio de
sol”. Foram os gregos que lhes deram o nome de obeliscos que, em sua língua significava “agulha” ou “pino”.
Na origem, o obelisco era um monumento de pedra afilado, em forma de agulha e com o topo entalhado no
formato de pirâmide. [...].
Hoje, assim como as pirâmides, os obeliscos resistem ao tempo e servem de formidáveis testemunhas da
perícia e da proeza da civilização egípcia, que os modelava em pedra bruta e, depois, numa engenhosa
operação, os transportava até o local de destino. A maior parte deles possui dezenas de metros de altura e
pesa centenas de toneladas, sendo surpreendente que tenham sido esculpidos, erguidos e fincados no solo
numa época em que não havia ferramentas sofisticadas ou guindastes poderosos como os objetos como os de
hoje em dia. Talvez isso explique a posterior apropriação simbólica dos obeliscos, vistos historicamente como
emblemas inequívocos de poder.
Com efeito, desde muito cedo os obeliscos se tornaram populares entre outras culturas fora do Egito. [...].
No Brasil, eles são as referências arquitetônicas egípcias mais presentes entre nós, ainda que não haja
nenhuma informação sobre a existência de obeliscos egípcios autênticos no país: todos os monólitos aqui
existentes são cópias ou recriações de seus modelos originais. Assentados geralmente em centros urbanos,
são encontrados na maioria das vezes isoladamente, e não aos pares, como era comum ocorrer no antigo
Egito. Em uma busca preliminar, conseguimos catalogar cerca de uma centena de obeliscos em território
brasileiro. O número real tende a ser muito maior e com certeza será conhecido com o prosseguimento de
nossos estudos e pesquisas na área da egiptologia.
BAKOS, Margaret; BRITO, Márcia Raquel. Obeliscos brasileiros. In: BAKOS, Margaret (Org.). Egiptomania: o
Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004. p. 73.

Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI07) Identificar aspectos e formas de registro das sociedades antigas na África, no Oriente Médio e
nas Américas, distinguindo alguns significados presentes na cultura material e na tradição oral dessas
sociedades.

15
14

Dicionário da escravidão e
liberdade: 50 textos críticos

Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Org.)


Editora Companhia das Letras
O trecho a seguir, escrito por Roquinaldo Ferreira, pertence à
obra Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos,
organizada por Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes. O volume é constituído
por 50 textos assinados por especialistas no assunto, como os
estadunidenses Robert W. Slenes, Herbert S. Klein, Stuart B. Schwartz; e
os brasileiros Luiz Felipe de Alencastro, Martha Abreu, Marcos J. M. de
Carvalho e Hebe Mattos.

Os efeitos do tráfico atlântico na África

Na África, o tráfico atlântico produziu efeitos múltiplos e deletérios. No curto prazo, gerou
centralização política, sobretudo em reinos africanos que dominaram o fornecimento de cativos para
mercadores europeus na costa africana, assim como inevitável fragmentação política. À medida que
poderes locais se fortaleciam, novos grupos se insurgiam contra as lideranças centrais. Ao estimular
guerras e a expansão territorial entre reinos rivais, o tráfico gerou um quadro de instabilidade sistêmica
nas sociedades africanas. Ao expor os africanos a redes de comércio responsáveis pela introdução de
armas, têxteis e álcool, alimentou a escravização por débito. Através de guerras, sequestros ou métodos
judiciais, produziu escravização crônica e difusa.
Nesse quadro, mudanças importantes se operaram no direito costumeiro africano, alterando a
noção do que constituía transgressão e/ou crimes passíveis de escravização, que se ampliou de forma
a satisfazer a necessidade de produzir mais e mais cativos para o Atlântico. Antes punidos com penas
de multa ou prisão, crimes como roubo e adultério lastrearam a escravização de um número incalculável
de africanos. Igualmente importante foi o desvirtuamento de múltiplas formas de dependência social
tipicamente praticadas nas sociedades africanas. Em geral reversíveis, ou então porta de entrada para
a integração social, acabaram se tornando veículos para produção de cativos para o tráfico. Esses
processos eram, sobretudo, alimentados pelo débito estrutural gerado pelo consumo de mercadorias
importadas através do Atlântico.
As regiões da África mais afetadas pelo tráfico de escravos foram a África Ocidental, conhecida
nas fontes portuguesas como Costa da Mina, que se estendia entre Gana e Nigéria, e a África Central,
que se estende do Gabão até o sul de Angola. No total, essas duas regiões responderam por quase 80%
das vítimas do tráfico atlântico. [...]
Na Costa da Mina, a presença portuguesa foi hegemônica até meados do século XVII, quando a
tomada do castelo de Elmina por forças holandesas marcou o início de um intenso processo de
internacionalização do comércio atlântico. Em duas décadas, várias nações europeias (ingleses,
dinamarqueses, prussianos, holandeses e suecos) se implantaram ao longo da costa, construindo uma
séria de fortes e fortalezas para gerir o comércio costeiro de cativos. [...]

16
FERREIRA, Roquinaldo. África durante o comércio negreiro. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES,
Flávio dos Santos (Org.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018. p. 53-54.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI16) Analisar os mecanismos e as dinâmicas de comércio de escravizados em suas diferentes
fases, identificando os agentes responsáveis pelo tráfico e as regiões e zonas africanas de procedência
dos escravizados.

17
15

História da América Latina

Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino


Editora Contexto
O excerto a seguir faz do livro História da América Latina, escrito
pelas historiadoras Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino.

Os protagonistas da independência na América


[...] Os exércitos rebeldes contaram com comandantes estrategistas
para vencer a guerra. Mas, para que as forças insurgentes se pusessem
em marcha, era preciso que pessoas abastadas patrocinassem sua organização. Nesse sentido, os ricos
comerciantes da cidade de Buenos Aires financiaram a formação dos primeiros batalhões e, na Venezuela, foram
os plantadores de cacau os responsáveis por parte importante de tal financiamento.
Porém, não há exército sem soldados que, por sua vez, deviam estar convencidos de que a causa da
independência era a mais justa e necessária para destruir a ordem colonial. Desse modo, “pessoas comuns” dos
mais diversos segmentos sociais e étnicos foram indispensáveis para engrossar as fileiras insurgentes, mas suas
histórias acabaram esquecidas ou pouco valorizadas. Assim, é importante mostrar tal participação.
As novas ideias que estimularam a independência foram divulgadas por um grupo considerável
de letrados provenientes das diversas partes da América. Nos muitos escritos desse período – panfletos, memórias,
discursos, jornais – defendiam a independência, demonstrando sólido conhecimento das ideias liberais.
Fundamentaram-se nelas para armar suas plataformas de ação e sua justificativa da ruptura com a metrópole.
[...]
Do mesmo modo que os homens ilustrados contribuíram para a independência, [...] negros [...] marcaram sua
presença. [...] eles foram os protagonistas centrais nas lutas pela independência do Haiti. Mas também lutaram nas
guerras na América do Sul. A eles, em geral, era concedida a alforria, caso se alistassem do lado dos insurgentes.
Há muitos exemplos a serem indicados. No Rio da Prata, eles integraram vários batalhões e sofreram pesadas
baixas. O mais conhecido foi o “Batalhão Negro de Buenos Aires”, integrante do exército de San Martín, que
atravessou os Andes. De um total de 5 mil homens que partiram em direção ao Chile, 1 500 eram negros. [...]
Indígenas e mestiços igualmente participaram das lutas pela independência. No México, os exércitos liderados
pelos padres Miguel Hidalgo e José María Morelos contaram com número expressivo de
camponeses indígenas e mestiços [...]. do mesmo modo, eles aderiram à rebelião de Cusco de 1814, liderada
pelos irmãos Ângulo, que se espraiou desde o sul do Peru até a atual Bolívia. Um exemplo sempre lembrado é o do
cacique indígena Mateo Pumacahua, de 75 anos, cujas forças se integraram aos insurgentes. Ele foi preso,
condenado à morte e executado em frente de suas tropas.
PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. p. 33-36.

Habilidade da BNCC
8º ano (EF08HI11) Identificar e explicar os protagonismos e a atuação de diferentes grupos sociais e étnicos nas
lutas de independência no Brasil, na América espanhola e no Haiti.

18
16

Renascimentos: um ou muitos?

Jack Goody
Editora Unesp
O excerto a seguir pertence ao livro Renascimentos: um ou muitos?,
do célebre historiador e antropólogo britânico Jack Goody. Nessa
obra, o autor não nega a originalidade e a força do Renascimento
italiano, mas amplia o debate sobre o tema em duas direções:

• Evidenciando as contribuições árabes, hindus e chinesas para


o movimento renascentista italiano.
• Iluminando a ocorrência de outros renascimentos havidos no mundo árabe, hindu e chinês.

Renascimentos: um ou muitos?
Iniciando com as “primeiras luzes” (primi lumi) do século XIV, o Renascimento italiano é visto com
frequência como o momento decisivo no desenvolvimento da “modernidade”, em relação não apenas às artes
e às ciências, mas também, do ponto de vista do desenvolvimento econômico, em relação ao advento do
capitalismo. Não há dúvida de que esse foi um momento importante na história mundial. Mas quão singular
ele foi em geral? Existe aqui tanto um problema histórico específico quanto um problema sociológico geral.
Todas as sociedades estagnadas requerem algum tipo de renascimento para voltarem a se mover, e isso
pode implicar um olhar retrospectivo sobre épocas anteriores (a Antiguidade, no caso da Europa) ou outro
tipo de florescência.
Esse é o meu polêmico pano de fundo. Não vejo o Renascimento italiano como a chave para a
modernidade e para o capitalismo. [...] Em minha opinião, as origens da modernidade e do capitalismo são
mais amplas e encontram-se não apenas no conhecimento árabe, mas também nos influentes empréstimos
da Índia e da China. O que chamamos de capitalismo tem suas raízes numa cultura letrada eurasiana mais
ampla, que se desenvolveu rapidamente desde a Idade do Bronze, com troca de produtos e informações. O
conhecimento da leitura e da escrita foi importante porque permitiu o crescimento tanto do conhecimento
quanto da economia, que depois proporcionaria a troca de produtos. Ao contrário da comunicação puramente
oral, o conhecimento da leitura e da escrita tornou a linguagem visível, transformou-a em objeto material, que
podia ser repassado entre culturas e existia da mesma forma no correr do tempo. Consequentemente, todas
as culturas escritas poderiam às vezes olhar para trás e reviver o conhecimento passado, como foi o caso
dos humanistas europeus, e possivelmente levar a uma florescência cultural, isto é, a uma nítida explosão de
progresso. [...]
GOODY, Jack. Renascimentos: um ou muitos? São Paulo: Unesp, 2011. p. 11-12.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI04) Identificar as principais características dos Humanismos e dos Renascimentos e analisar seus
significados.

19
17

História Antiga

Norberto Luiz Guarinello


Editora Contexto
O trecho a seguir faz parte do importante livro História Antiga. A autoria é
de Norberto Luiz Guarinello, historiador e professor da Universidade de
São Paulo (USP).

Somos nós europeus?

[...] Embora seja uma disciplina consolidada em muitas universidades


no mundo, não há definição explícita do que seja a História Antiga. Afinal, é a História de quê? O termo “Antiga”,
por si só, é apenas um adjetivo. Nada nos revela, explicitamente, sobre qual é o conteúdo dessa História. Na
prática, tanto no ensino como na pesquisa, a História Antiga se limita a estudar os primórdios do Ocidente, após
uma pré-história vaga e geral. É chamada de Antiga, pois se coloca no início de uma sequência: a História
Medieval, a Moderna, a Contemporânea.
Não é a História Antiga do mundo, portanto, mas a História de um recorte bem específico do passado: o
das origens do Ocidente. Ao assumirmos e ensinarmos que esta é a nossa História Antiga, fazemos um trabalho
de memória e, como vimos, de produção de identidade. Assumimos, de modo quase natural e inconsciente,
que somos parte da história do Ocidente. Outros conteúdos, que podem ser até mais antigos, nos são
apresentados como a História de outros povos.
Sem nos darmos conta, para o bem e para o mal, a História Antiga nos ocidentaliza. Coloca-nos numa
linha do tempo, nos posiciona na História mundial como herdeiros do Oriente Próximo, da Grécia e de Roma.
Por ela, viramos sucessores da História Medieval, e a História do Brasil se torna um ramo da História europeia
nos tempos modernos, quando nosso território foi colonizado pelos portugueses a partir do século XVI.
O efeito dessa forma de reconstruir a História [...] Não é uma visão falsa em si mesma: falamos uma língua
latina, nossa cultura escrita deve muito aos clássicos gregos e latinos, nossas leis e nossa democracia inspiram-
se também em textos desse mundo “antigo” e o cristianismo, que nasceu no Império Romano, é nossa religião
dominante.
O problema central, para os historiadores, é [...] Basta-nos, hoje, uma História centrada na civilização
europeia? Somos nós europeus? Podemos entender a globalização apenas a partir de uma perspectiva
ocidental? E, afinal, o que é o Ocidente? Quem faz parte dele? Qual sua definição primordial: o cristianismo, a
democracia, o capitalismo? São questões prementes do mundo contemporâneo e que abalaram as antigas
convicções dos pesquisadores da História Antiga.
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2014. p. 12-14.
Habilidade da BNCC
6º ano (EF06HI09) Discutir o conceito de Antiguidade Clássica, seu alcance e limite na tradição ocidental, assim
como os impactos sobre outras sociedades e culturas.

20
18

1789-1808: o império luso-


brasileiro e os brasis

Luiz Carlos Villalta


Editora Companhia das Letras
A transferência da corte portuguesa para o Brasil era um projeto antigo de
políticos e intelectuais portugueses. Dentre eles, D. Rodrigo Coutinho, um dos
mais importantes e influentes ministros do príncipe D. João.
O trecho a seguir, que fala mais sobre o assunto, pertence à obra 1789-1808:
o império luso-brasileiro e os brasis, do historiador Luiz Carlos Villalta.

Transferência da Corte: um projeto antigo


Dentre as propostas de D. Rodrigo de Souza Coutinho estava a transferência da capital do império
para o Brasil. Tal ideia fora aventada anteriormente, em diversos momentos críticos da história portuguesa. Em
1580, quando a Espanha invadiu Portugal, o prior do Crato, pretendente ao trono português, foi aconselhado a
viajar para o Brasil, estabelecendo em seu território um grande império. Após a Restauração Portuguesa, num
contexto de extremas dificuldades, D. João IV apresentou a proposta de uma aliança entre Portugal e França
e de divisão do império português, separando do Reino o Brasil e os Açores. No reinado de D. João IV, em
1738, D. Luís da Cunha, após contrastar a estreiteza do território lusitano com a pujança das riquezas do Brasil,
aconselhou a transferência de el-rei para a colônia, onde tomaria o título de imperador do Ocidente. Em 1762,
ao que parece, o marquês de Pombal, temendo uma invasão do reino por tropas francesas e espanholas,
mandou preparar uma esquadra para trazer o rei D. José I para o Brasil. Em 1801, quando as potências
europeias fracassavam em debelar a França napoleônica e a diplomacia francesa fazia pressões sobre Portugal
que implicavam a perda de sua soberania, o marquês de Alorna aconselhou o príncipe regente a ameaçar
transferir-se para o Brasil, dispondo-se a “ir ser imperador naquele vasto território adonde pode[ria] facilmente
conquistar as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo todas as potências da Europa”.
A estratégia de transferência da Corte para o Brasil – enfim retomada por D. Rodrigo de Souza Coutinho
[...] e contando com o apoio da Inglaterra – partia da avaliação de [...] que no Brasil o príncipe regente poderia
“criar um poderoso império”. Permanecer em Portugal implicaria o risco de ser aprisionado pelos franceses e
de ser forçado a abdicar da Coroa, abolindo-se a monarquia e dilacerando-se o império colonial português.
VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o império luso-brasileiro e os brasis. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 32-33. (Virando séculos).

Habilidades da BNCC
7º ano
(EF07HI13) Caracterizar a ação dos europeus e suas lógicas mercantis visando ao domínio no mundo
atlântico.
8º ano
(EF08HI12) Caracterizar a organização política e social no Brasil desde a chegada da Corte portuguesa, em
1808, até 1822 e seus desdobramentos para a história política brasileira.

21
19
Dicionário da escravidão e
liberdade: 50 textos críticos
Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Org.)
Editora Companhia das Letras
O trecho a seguir é parte do verbete “cidades escravistas” e foi escrito
pelo historiador Marcus J. M. de Carvalho, professor titular da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para o Dicionário da
escravidão e liberdade: 50 textos críticos, organizada por Lilia M.
Schwarcz e Flávio Gomes.

Cidades escravistas

No passado, a escravidão urbana era interpretada como uma extensão, quase um apêndice, da
escravidão rural. Estudos recentes mostram, porém, que a urbanização brasileira é indissociável da
escravidão e do trabalho compulsório em geral. Nossas maiores cidades atlânticas africanizaram-se
muito cedo, pois foi nelas que desembarcou a imensa maioria dos navios negreiros até a proibição do
comércio atlântico de escravos, em 1831. Foi ao Recife (o porto de Olinda) e a Salvador que chegaram
as primeiras levas de cativos para a América portuguesa, ainda no século XVI. Com a descoberta das
minas, na década de 1690, a vinda da corte (em 1808) e a ascensão do café, o Rio de Janeiro tornou-se
o maior porto do tráfico atlântico e a maior cidade escravista das Américas. As cidades foram, assim, o
principal nexo com a África e tinham no comércio de gente escravizada seu negócio mais rentável.
A presença escrava é clara nos censos, apesar da subcontagem dos cativos, pois os proprietários
evitavam revelar suas posses, temendo ser taxados. Na época da independência, dos 112 mil habitantes
do Rio de Janeiro, praticamente metade, 55 mil, era de cativos. Em 1849, a população livre havia
triplicado, chegando a 144 mil pessoas, mas o número de cativos dobrara. Eram mais de 110 mil, mesmo
levando-se em conta que, depois que o tráfico tornou-se ilegal, em 1831, a subcontagem agravou-se;
ninguém queria revelar a posse de africanos contrabandeados. Dos 65 500 habitantes de Salvador em
1842, 27 500, ou seja, 42%, eram cativos. Mesmo um decadente Recife, por volta de 1828, possuía 7
935 cativos em seus bairros centrais: 31% dos 25 678 habitantes da sua parte mais urbanizada. Até
Porto Alegre, quase à margem do tráfico atlântico de escravos, mas enriquecida com o charque, em 1856
contava com o mesmo percentual de cativos do Recife de 1828: 30%. No auge do ouro, nos anos 1720,
entre metade e dois terços da população de Vila Rica era cativa. [...]
CARVALHO, Marcus J. M. de. Cidades escravistas. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio
dos Santos (Org.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2018. p. 156-157.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI19) Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na
seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas.

22
20

O diário de Myriam

Myriam Rawick
Editora DarkSide Books
Os trechos a seguir pertencem à obra O Diário de Myriam.
Nesse livro, Myriam Rick, uma garota síria de 13 anos, narra
o seu dia a dia em um país que vive em guerra civil há vários
anos.

O Diário de Myriam

Alepo, 9 de dezembro de 2015


Hoje de manhã estava fazendo muito frio. Estamos sem
eletricidade há mais de cinquenta dias, mas a água voltou. Fazia várias semanas que ela estava sendo
racionada. Papai está com saudades da televisão. Ele escuta seu radinho de pilha. Não tem combustível
para o aquecedor nem para colocar nos geradores.
Alepo, 16 de março de 2016 Alepo é uma cidade fantasma. Não tem mais ninguém. Às vezes,
há senhoras de preto que correm do lado de fora, ou pessoas armadas. Mas só isso. Quando a gente
abre as janelas, não tem um barulho de vida sequer. Não existem flores, não existem cores e até os
pássaros já nos deixaram.
Alepo, 7 de maio de 2016 [...] Fazemos tudo o que podemos para nos manter firmes e esquecer
a Alepo que perdemos, mas cada dia fica mais difícil.
Alepo, 4 de outubro de 2016
Ontem os mísseis passaram bem alto, por cima do edifício. Mamãe não aguenta mais o barulho. Quando
passam por cima, ela grita: “Não-não-não-não-não-não-não!”. Eu coloco as mãos nos ouvidos e tremo.
Mamãe tem sempre a impressão de que o míssil vai entrar pela janela. Ela diz que o coração dela chega
a parar. [...]
RAWICK, Myriam. O diário de Myriam. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2018. p. 217-219, 224.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI35) Analisar os aspectos relacionados ao fenômeno do terrorismo na contemporaneidade,
incluindo os movimentos migratórios e os choques entre diferentes grupos e culturas.

23
21
Uma história do negro no
Brasil

Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho


Centro de Estudos Afro-Orientais e Fundação Cultural
Palmares
O excerto a seguir faz parte da importante obra Uma história
do negro no Brasil, dos historiadores Wlamyra R. de
Albuquerque e Walter Fraga Filho.

O centenário da Abolição e a mobilização


negra

[...] O centenário da Abolição em 1988 foi um momento em que a questão racial ficou mais
evidente. Graças à mobilização negra o centenário foi marcado pela intensificação do debate sobre
identidade racial e pelo protesto contra a marginalização dos negros na sociedade brasileira.
A militância negra da década de 1980 passou a questionar, com vigor, a versão oficial da
Abolição que exaltava muito mais a bondade e a caridade da princesa Isabel do que a luta dos escravos
para conquistar a liberdade. Ao mesmo tempo, não parecia fazer sentido comemorar a Abolição se a
maioria da população negra continuava relegada a péssimas condições de vida. Com o objetivo de
resgatar o espírito de luta e enaltecer a resistência, as organizações negras passaram a rejeitar o 13 de
Maio.
Entretanto, a data continuou importante para irmandades religiosas, cultos afro-brasileiros e
comunidades quilombolas, dentre outros grupos. A celebração continuava (e continua em muitos lugares)
importante, sobretudo para as gerações mais velhas. Para estes o 13 de Maio é o momento de celebrar
a efetiva participação dos negros no desmonte da escravidão.
Quando em 1985 o governo federal anunciou que pretendia organizar uma série de palestras,
exposições de arte, shows e outros eventos para celebrar o centenário da Abolição, as entidades do
movimento negro incitaram um debate que envolveu intelectuais, líderes religiosos, carnavalescos,
políticos e jornalistas em torno dos propósitos daquela celebração. Militantes negros de todo o Brasil se
posicionaram contra qualquer tipo de evento pelo 13 de Maio. Sob pressão, a prefeitura de Salvador e o
governo do estado da Bahia desistiram das atividades já planejadas para o centenário. Para marcar o
protesto, as entidades negras organizaram em Salvador, no dia 12 de maio, uma passeata chamada de
“Cem Anos Sem Abolição”, e nessa ocasião um retrato da princesa Isabel foi queimado.
Um evento do mesmo tipo foi organizado no Rio de Janeiro. Aqui as autoridades puseram 750
policiais nas ruas para evitar que a passeata passasse em frente a um monumento em homenagem a
Duque de Caxias. No confronto com a polícia dois líderes sindicais foram presos e representantes de
entidades negras foram impedidos de se pronunciar durante a manifestação. Esse episódio teve grande
repercussão na imprensa e contribuiu para um questionamento mais radical sobre o mito da democracia
racial brasileira.

24
Depois do centenário da Abolição, diversos grupos do movimento negro passaram a incorporar
o 13 de Maio ao calendário das discussões sobre racismo no Brasil. Já o 20 de Novembro, data da morte
de Zumbi de Palmares, foi instituído como Dia Nacional da Consciência Negra. O uso enfático do termo
negro, em detrimento das palavras mestiço ou mulato, nos muitos eventos relativos àquele centenário
foi um indicativo do redimensionamento da questão racial no Brasil. A exaltação da beleza negra, do
heroísmo de Zumbi e das lutas do povo negro demonstrava o empenho da militância em transformar o
ano de 1988 num marco no processo de valorização da negritude e de combate ao racismo.
A principal estratégia das organizações negras durante as manifestações públicas, atividades
acadêmicas e solenidades do centenário foi enaltecer a cultura negra, definida como a continuidade de
tradições africanas e símbolo da resistência, além de denunciar a desigualdade social e econômica. Toda
essa movimentação negra na década de 1980 teve repercussão política. Desde 1988 a Constituição
Federal prevê que a prática de racismo é crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão.
Isso quer dizer que o agressor não pode ser solto com o pagamento de fiança e pode ser preso mesmo
quando já se tiver passado muito tempo do crime. Com isso, foi revogada a Lei 1.390/51, conhecida
como Lei Afonso Arinos, que punia mais brandamente atitudes racistas.
Em 1989 foi promulgada a Lei 7.716/89, conhecida como Lei Caó por ter sido proposta pelo
deputado negro Carlos Alberto de Oliveira, conhecido como Caó. Esta é a única lei que define práticas
de crime de racismo no Brasil, das quais os negros são as maiores vítimas. A Lei Caó torna evidente o
quanto é importante a presença de negros em cargos públicos. O aumento significativo da presença na
vida política brasileira de negros identificados com a causa antirracista foi outra decorrência importante
da ação conscientizadora dos movimentos negros. Entre esses políticos que assumiram cargos nos
poderes legislativos e executivos não se pode deixar de lembrar os nomes do senador Abdias do
Nascimento, da senadora e governadora do Rio de Janeiro Benedita da Silva, dos deputados federais
Luiz Alberto, Paulo Paim, Francisca Trindade e outros, apenas para falar de alguns com projeção
nacional.
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil. Salvador:
Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 295-297.

Habilidades da BNCC
9º ano
(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política
e social do Brasil.
(EF09HI23) Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-
los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de
preconceito, como o racismo.

25
22

Os índios e o Brasil:
passado, presente e futuro

Mércio Pereira Gomes


Editora Contexto
O trecho a seguir faz parte do livro Os índios e o Brasil: passado,
presente e futuro. A obra foi escrita por Mércio Pereira Gomes,
antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).

A nova Constituição Federal de 1988

A Assembleia Constituinte convocada para elaborar a nova


Constituição abriu-se para a contribuição e participação de índios, do
movimento indígena, de antropólogos individualmente (inclusive eu
mesmo), das ONGS laicas e religiosas e da Associação Brasileira de
Antropologia. Por essa participação e pelo clima favorável aos direitos
de minorias em geral. O resultado foi extremamente positivo para os povos indígenas, garantindo-lhes
seus direitos com mais clareza. A Constituição Federal de 1988, além de vários antigos concernentes
aos índios como cidadãos e como uma das minorias da nação, produziu um artigo fundamental que
trata de seus direitos específicos e um seguinte sobre a obrigação do Ministério Público Federal de lhes
assistir juridicamente em especial.

• Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
o § 1° São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas por suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessidades
a sua reprodução física e cultura, segundo seus usos, costumes e tradições.
o § 2° As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e os
lagos nelas existentes.
o § 3° O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-
lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
o § 4° As terras de que trata este artigo dão inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
[...]
• Art. 232 Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o ministério Público em todos os atos
do processo.

26
• O artigo 231 é aclamado por todos pela inovação constitucional de considerar as terras
indígenas como advindas de um direito “originário”, o que quer dizer que antecede à chegada
dos portugueses, como se fosse uma reafirmação, um eco daquela famosa expressão
presente em algumas cartas régias, conforme já mencionado, em que os índios são chamados
de “primários senhores de suas terras”. Assim, por exemplo, a alegação de direito de
propriedade privada sobre alguma terra considerada indígena no presente ou no passado seria
de natureza secundária. Tal conceituação favoreceu a antropólogos e ao Ministério Público a
defender direitos dos índios sobre as terras que lhes haviam sido usurpadas no passado,
independentemente de hoje pertencerem a terceiros.
GOMES, Mércio Pereira. Os índios e o Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Contexto, 2017.
p. 110-111.

Habilidades da BNCC
9º ano
(EF09HI23) Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-
los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de
preconceito, como o racismo.
(EF09HI26) Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros,
indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à
construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas.

27
23

Uma história da cultura


afro-brasileira
Walter Fraga e Wlamyra R. de Albuquerque
Editora Moderna
O excerto a seguir pertence à obra Uma história da cultura
afro-brasileira, escrita pelos historiadores Walter Fraga e
Wlamyra R. de. Albuquerque.

Abolição e a luta pela cidadania


Passada a festa, os ex-escravos procuraram distanciar-se
do passado de escravidão negando-se a se comportar como os
antigos cativos. Em diversos engenhos do Nordeste, negaram-se
a receber a ração diária e a trabalhar sem remuneração. Muitos
ex-escravos permaneceram nas localidades em que haviam
nascido. Estima-se que mais de 60% deles viviam nas fazendas cafeeiras e canavieiras do Centro-Sul do Brasil.
Mas decidir ficar não significou concordar em se submeter às mesmas condições de trabalho do regime anterior.
Muitas vezes, os ex-escravos tentaram negociar as condições para sua permanência nas fazendas. No entanto,
negociar com os libertos parece ter sido uma situação para a qual seus ex-senhores de mostraram indispostos.
Grande parte dessa indisposição para negociar estava relacionada aos desejos dos ex-escravos de terem
acesso à terra e de não serem mais tratados como cativos. Na região açucareira do Recôncavo, os libertos
reivindicaram a diminuição das horas de trabalho e dos dias que deveriam dedicar à grande lavoura de cana.
Exigiram também o direito de continuar a ocupar as antigas roças e dispor livremente do produto de suas
plantações. Nos dias imediatos ao 13 de maio, ocuparam terras devolutas de engenhos abandonados e iniciaram
o cultivo de mandioca e a criação de animais. Isso mostra sua percepção de que a condição de liberdade só seria
possível se pudessem garantir a própria subsistência e definir quando, como e onde deveriam trabalhar.
Para os ex-escravos e para as demais camadas da população negra, a abolição não representou apenas
o fim do cativeiro, mas deveria ter como consequência também a liberdade religiosa de circular livremente sem
ser importunado pela polícia, o acesso à terra, à educação e aos mesmos direitos de cidadania que gozava a
população branca. Foi por isso que em uma correspondência endereçada a Rui Barbosa, libertos da região de
Vassouras, no Rio de Janeiro, reivindicaram para seus filhos acesso à educação. Para eles, uma das formas de
inclusão dos negros na sociedade de homens livres seria por meio da “instrução pública”, como se dizia então.
Não sabemos se a carta teve resposta, mas é sabido que nenhum plano educacional foi elaborado para inclusão
social dos filhos dos ex-escravos. [...]
FRAGA, Walter; ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Uma história da cultura afro-brasileira. São Paulo:
Moderna, 2009. p. 79-81.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI03) Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os
seus resultados.

28
24

Grécia e Roma
Pedro Paulo Funari
Editora Contexto
O trecho a seguir faz parte da importante obra Grécia e Roma, de Pedro Paulo
Funari – professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Democracia Ateniense, cidadania e escravidão


Democracia – algo tão valioso para nós – é um conceito surgido na Grécia
antiga. Por cerca de um século, a partir de meados do século V a.C., Atenas viveu
esta experiência única em sua época. Democracia, em grego, quer dizer “poder do povo”, à diferença de “poder de
um”, a monarquia, ou o “poder de poucos”, a oligarquia ou aristocracia.
A democracia ateniense era direta: todos os cidadãos podiam participar da assembleia do povo (Eclésia), que
tomava as decisões relativas aos assuntos políticos, em praça pública. Entretanto, é bom deixar bem claro que o
regime democrático ateniense tinha os seus limites. Em Atenas, eram considerados cidadãos apenas os homens
adultos (com mais de 18 anos de idade) nascidos de pai e mãe atenienses. Apenas pessoas com esses atributos
podiam participar do governo democrático ateniense, o regime político do “povo soberano”. Os cidadãos tinham três
direitos essenciais: liberdade individual, igualdade com relação aos outros cidadãos perante a lei e direito a falar na
assembleia. [...]
A Eclésia reunia-se ordinariamente dez vezes por ano, mas para cada uma destas havia mais três encontros
extraordinários. As sessões começavam ao raiar do sol e terminavam ao final do dia. Qualquer cidadão ateniense
tinha o direito de pedir a palavra e ser ouvido. As proporções da Eclésia eram enviadas ao conselho (Bulé), onde
eram comentadas e emendadas, retornando então para serem aprovadas na assembleia. A votação que concluía
cada assunto dava-se levantando-se o braço. [...]
O povo definido como o conjunto dos cidadãos, era considerado soberano e suas decisões só estariam
submetidas às leis resultantes de suas próprias deliberações. [...] As leis, uma vez aprovadas, deveriam aplicar-se
a todos; os que haviam votado contra ainda podiam deixar a cidade, mas ficando, deveriam obedecer à decisão
tomada pela maioria. [...]
Na democracia ateniense, como foi dito, apenas tinham direitos integrais os cidadãos. Calcula-se que, em 431
a.C., havia 310 mil habitantes na Ática, região que compreendia tanto a parte urbana como rural da cidade de Atenas,
172 mil cidadãos com suas famílias, 28.500 estrangeiros com suas famílias e 110 mil escravos. Os escravos, os
estrangeiros e mesmo as mulheres e crianças atenienses não tinham qualquer direito político e para eles a
democracia vigente não trazia qualquer vantagem.
Os estrangeiros, além dos impostos, eram obrigados a pagar uma taxa especial e ainda prestavam o serviço
militar. Estavam autorizados a atuar em diversas profissões e acabavam exercendo a maior parte das atividades
econômicas, artesanais e comerciais, que os cidadãos tendiam a desprezar. Vários estrangeiros se destacavam
como artistas e intelectuais. Eram responsáveis por boa parte do desenvolvimento e da prosperidade de Atenas.
Entretanto, além de não terem direitos políticos eram proibidos de desposar mulheres atenienses, sendo, portanto,
tratados como pessoas “de segunda classe” até a morte.
FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2009. p. 35-39. (Repensando a História).

Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI12) Associar o conceito de cidadania a dinâmicas de inclusão e exclusão na Grécia e Roma antigas.
29
25

Nova História das mulheres

Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro (Org.)>br> Editora


Contexto
O excerto a seguir pertence à obra Nova História das mulheres no
Brasil, e foi escrito pela historiadora Joana Maria Pedro – professora
titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Feminismo de Segunda Onda

Você considera que as mulheres são profissionalmente tão


capazes quanto os homens? Revolta-se quando alguém é discriminada, sofre violência ou é desqualificada
por se mulher? Acha que as mulheres, assim como os homens, têm direito ao prazer sexual? Se respondeu
sim a essas questões, então você se identifica com uma importante bandeira do feminismo: a igualdade de
direitos para homens e mulheres. Mas você se autodenomina feminista?

A onda que atingiu o Brasil


Durante muito tempo, no Brasil, as pessoas separaram feminista de feminina, como se fossem coisas
opostas. Até o final dos anos 1980, por exemplo, poucas pessoas aceitavam o rótulo de feminista, porque, no
senso comum, o feminismo era associado à luta de mulheres masculinizadas, feias, [...] mal-amadas,
ressentidas e anti-homens. Se as mulheres que eram a favor da emancipação feminina não queriam ser vistas
assim, o que dizer dos homens que, por apoiarem-nas, estavam sujeitos a todo tipo de gozação machista?
Definir-se como feminista no Brasil era um grande risco.
Apesar dos preconceitos existentes, a partir dos anos 1960, o país viu surgir o feminismo de “Segunda
Onda”: um movimento com objetivos um tanto distintos dos que haviam movido as militantes no passado.
Junto com o combate às depreciações que tinham como alvos ativistas e simpatizantes, o novo feminismo
apresentou reivindicações para além das relativas aos direitos políticos, econômicos e educacionais.
[...] No Brasil, a questão do trabalho e os problemas da mulher trabalhadora tiveram inicialmente
prioridade sobre tantas outras pautas feministas da “Segunda Onda”. Porém, em pouco tempo, as demais
reivindicações ganhariam força, com destaque para os assuntos ligados a sexualidade e corpo e à violência
contra a mulher, por exemplo.
[...] No Brasil, como em outros países, o feminismo de “Segunda Onda” adotou, em seus primeiros
tempos, uma metodologia revolucionária de divulgação de suas ideias: os grupos de consciência, também
chamados de grupos de reflexão. Esses grupos eram constituídos apenas por mulheres – elas diziam que a
presença de homens as inibia – que se reuniam nas casas umas das outras, ou em lugares públicos, como
cafés, escritórios, bares e bibliotecas, para discutir problemas específicos das mulheres e se contrapor ao
machismo vigente. [...]
Em seus debates, as participantes dos grupos de reflexão/consciência adotavam uma metodologia
chamada “linha da vida” que as levava a falar sobre suas vivências pessoais. Conversavam sobre como viam
o próprio corpo e o dos homens, contavam sobre a experiência da menstruação ou do aborto, narravam
situações em que percebiam terem sido discriminadas por ser mulher na família ou no trabalho, comentavam

30
a relação com o pai, com o marido, com outros homens, diziam o que pensavam a respeito do desejo sexual
e do prazer.
Essas mulheres consideravam que a vida privada era fruto da sociedade. Abraçaram, então, o slogan
feminista difundido internacionalmente: “O pessoal é político”. Além disso, questionavam os preconceitos
machistas e procuraram divulgar para além do círculo restrito dos grupos a ideia do “orgulho de ser mulher”,
entendendo que isso é que definia a “condição feminina”, e não a biologia como acreditava o senso comum.
PEDRO, Joana Maria. O feminismo de “segunda onda”. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria
(Org.). Nova História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. p. 238-245.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI08) Identificar as transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no Brasil
durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao tema.

31
26

O Grande Mar: uma história


humana do Mediterrâneo

David Abulafia
Editora Objetiva
O excerto a seguir faz parte do livro O Grande Mar: uma história
humana do Mediterrâneo, do historiador David Abulafia.

História do Mediterrâneo

“História do Mediterrâneo” pode significar muitas coisas. Este livro é uma história do Mar
Mediterrâneo, mais do que uma história das terras em torno dele; mais particularmente, é uma história
das pessoas que atravessaram o mar e viveram perto de suas praias, em portos e ilhas. Meu tema é o
processo pelo qual o Mediterrâneo tornou-se, em graus variáveis, integrado numa única zona comercial,
cultural e até, (sob os romanos) política, e como esses períodos de integração terminaram às vezes em
uma violenta desintegração, devido tanto a guerras como pandemias. Identifiquei cinco períodos
distintos: um Primeiro Mediterrâneo, que mergulhou no caos após 1200 a.C., ou seja, mais ou menos na
época em que se acredita que aconteceu a queda de Troia; um Segundo Mediterrâneo, que sobreviveu
até cerca de 500 d.C., um Terceiro Mediterrâneo, que emergiu lentamente e depois vivenciou uma grande
crise na época da Peste Negra (1347); um Quarto Mediterrâneo, que teve de lidar com a competição
cada vez maior do Atlântico e a dominação de potências atlânticas, terminando mais ou menos na época
em que o canal de Suez foi aberto, em 1869; finalmente, um Quinto Mediterrâneo, que se tornou um
corredor para o oceano Índico e encontrou uma surpreendente nova identidade na segunda metade do
século XX.
Meu “Mediterrâneo” é decididamente a própria superfície do mar, seus litorais e ilhas, em particular
as cidades portuárias que forneceram os principais pontos de partida e de chegada para os que o
atravessaram. [...] A região interior — os eventos que ali aconteceram, os produtos originários de lá ou
que passaram por lá — não pode, é claro, ser ignorada, mas este livro se concentra naqueles que
molharam os pés na água salgada e, melhor ainda, empreenderam jornadas através dela, participando
de forma direta, em alguns casos, do comércio intercultural, do movimento de ideias religiosas e de outros
tipos ou, de forma não menos significativa, de conflitos navais pelo domínio das rotas oceânicas. [...]
Minha intenção foi descrever as pessoas, processos e eventos que transformaram todo ou grande
parte do Mediterrâneo, mais do que escrever uma série de micro-histórias de suas margens. Por mais
interessante que isso pudesse ser [...].
O Mediterrâneo tal como o conhecemos hoje foi moldado por fenícios, gregos e etruscos na
antiguidade, por genoveses, venezianos e catalães na Idade Média, por armadas holandesas, inglesas
e russas nos séculos anteriores a 1800; de fato há alguma força no argumento de que após 1500, e
certamente após 1850, o Mediterrâneo se tornou cada vez menos importantes nos negócios e no
comércio mundiais mais amplos. Na maioria dos capítulos, concentrei-me em um ou dois lugares que
acredito que expliquem melhor os acontecimentos mais gerais no Mediterrâneo – Troia, Corinto,
Alexandria, Amalfi, Salônica e assim por diante –, mas a ênfase é sempre em suas ligações através do
mar Mediterrâneo e, quando possível em alguns dos povos que efetuaram ou vivenciaram essas
32
interações. Um resultado dessa abordagem é que falo menos sobre peixes e pescadores do que alguns
leitores poderiam esperar. A maioria dos peixes passa a vida sob a superfície da água e os pescadores
tendem a deixar um porto, apanhar sua presa (em geral a alguma distância do porto de origem) e voltar
para a base. De um modo geral, eles não têm um destino do outro lado do mar onde farão contato com
outros povos e culturas.
ABULAFIA, David. O Grande Mar: uma história humana do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. p. 17-
19.

Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI15) Descrever as dinâmicas de circulação de pessoas, produtos e culturas no Mediterrâneo e
seu significado.

33
27

Úrsula e outras obras


Maria Firmina dos Reis
Edições Câmara
O texto a seguir é parte da apresentação que o professor Danglei de
Castro Pereira, professor de Literatura Brasileira na Universidade de
Brasília (UnB), escreveu para o livro Úrsula e outras obras, da
escritora Maria Firmina dos Reis.

Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1822, em São Luís


(MA), e faleceu em 11 de novembro de 1917, na cidade de Guimarães (MA). Negra e bastarda, como ela
mesma se definiu, foi professora de primeiras letras na comarca de São José de Guimarães (MA) e
procurou a liberdade nas palavras ao produzir obra de forte combate ao período escravista brasileiro.
O foco no tema da espoliação dos menos favorecidos e a construção de uma linguagem detalhista e
imagética contribuem para a exposição de uma sociedade fragmentada e repleta de preconceitos. Por
meio da descrição de detalhes das senzalas e da problematização dos espaços de convivência entre
negros e brancos no século XIX, a autora cria um amplo painel da formação da sociedade brasileira.
Esse marcante tom descritivo aponta tanto o questionamento reflexivo com relação ao período
escravocrata, quanto a inquietação face à rigidez da pressão social direcionada à mulher no século XIX.
É o caso do tema da marginalidade da mulher branca que, ironicamente, protagoniza o romance Úrsula.
[...]
Com a análise da obra de Firmina, é possível verificar sua contribuição para a problematização irônica
das relações e das peripécias da protagonista branca de Úrsula na interface com a trajetória da
escravidão metaforizada no percurso temático de A escrava – conto que [...] sintetiza essas tensões
identitárias. É na fusão dessas trajetórias por vezes contraditórias do branco e do negro que o leitor de
Maria Firmina dos Reis encontra a amplitude de seu trabalho. Naturalmente, ela não foi a única voz a
tratar da escravidão, do sexismo e do racismo como temas literários no país: o mesmo fizeram, entre
tantos outros, Machado de Assis, Castro Alves e, na transição para o século XX, Cruz e Souza e Lima
Barreto. Foi, no entanto, uma voz feminina de resistência, e, por isso, a leitura de sua obra contribui para
que os leitores encontrem fontes de tensão social na literatura nacional em meados do século XIX.
[...] Os inúmeros personagens que povoam a ficção de Maria Firmina dos Reis explicitam a relação
complexa entre brancos e negros na construção etnográfica da sociedade brasileira. Ao focalizar o negro
e suas relações étnicas e sociais, a narrativa supera o tom de resignação e apatia e assume uma
ambientação sutil e irônica à cultura do outro. A escritora ressalta, assim, o papel fundamental que o
sentimento de pertencimento à cultura do negro [...] teve para o lento desenvolvimento da identidade
cultural do Brasil escravocrata.
A ideia de que esse pertencimento ao universo afrodescendente não impede a fusão étnica à
cultura do outro confere a Firmina local de destaque na historiografia literária nacional. Esse percurso,
retomado e ampliado pela voz condoreira de Castro Alves e de Junqueira Freire ou pela contestação

34
irônica de Sousândrade e Machado de Assis, faz de Maria Firmina dos Reis uma das mais relevantes
vozes da expressão feminina nos primórdios do século XIX na literatura brasileira.
Esse aspecto já seria suficiente para recolocar em circulação a obra dessa grande autora e
justificar a publicação deste livro; mas é sobretudo pela relevância estética de sua linguagem que os
leitores [...] precisam conhecer seu trabalho. Trata-se, sem dúvida, de uma das mais importantes
escritoras brasileiras de todos os tempos, se não pela complexidade de sua linguagem – como em Adélia
Prado, Cora Coralina, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Francisca Júlia, Julia Lopes de Almeida, entre
tantos nomes –, pela força de sua literatura, que convida sempre à reflexão face a temas polêmicos como
a escravidão, o sexismo e o espaço da mulher em uma sociedade paternalista e escravocrata.
É preciso ter em mente, ainda, que a existência de uma autora como Firmina – mulher, negra e
educada – parece ser uma contradição à representação feminina na literatura produzida no país de
meados do século XIX. O desafio é pensar como uma escritora tão emblemática continua à margem da
tradição literária, mesmo tendo continuamente oferecido “provas de seu talento” ao confrontar, em pleno
século XIX, os limites do etnocentrismo escravocrata e ao problematizar o lugar da mulher e do negro
em sociedade sexista que ainda mantém reflexos vivos no Brasil atual. Nesse sentido, esta publicação é
um importante passo para celebrar essa autora injustiçada pela falta de receptividade do público do qual
foi contemporânea e, ao mesmo tempo, tornar suas publicações acessíveis aos jovens leitores.
PEREIRA, Danglei de Castro. Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito. In: REIS, Maria Firmina
dos. Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 7-10.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política
e social do Brasil.

35
28
História mundial: jornadas
do passado ao presente

Candice Goucher e Linda Walton


Editora Penso
Trecho do livro História Mundial: jornadas do passado ao
presente. Ele foi escrito por Candice Goucher, professora de
História na Washington State University, e por Linda Walton,
professora de História na Portland State University.

O mundo pacífico

A primeira conexão documentada entre as Américas e as ilhas do


Pacífico foi estabelecida por uma expedição espanhola liderada
pelo aventureiro português Fernão de Magalhães. A frota de Magalhães saiu da Espanha no outono de
1519, passou o inverno na Patagônia, na ponta sul da América do Sul, e então cruzou para o Pacífico
pelo que hoje é conhecido como Estreito de Magalhães. Depois de cem dias no mar, a frota de Magalhães
alcançou um grupo de ilhas que reclamaram, sob os termos do Tratado de Tordesilhas, de 1494, que
dividia o mundo entre a Espanha e Portugal. A Espanha finalmente assegurou sua reivindicação das
ilhas em 1542, renomeando-as para “ilhas filipinas” (as Filipinas). A ocupação espanhola das Filipinas foi
confirmada em 1571, quando uma terceira expedição tomou o controle de Manila, um importante centro
comercial que se tornou o principal entreposto espanhol na Ásia.
Na segunda metade do século XVI, seguidos da conquista espanhola das Filipinas, padrões complicados
de comércio, tanto legítimos quanto de contrabando, criaram uma rota paralela entre o assentamento
espanhol de Acapulco no México e Manila, a partir de onde ela alcançava a China, principalmente por
meio do entreposto português de Macau. Em 1560, as “peças de oito” espanhóis tornaram-se a moeda
do mundo comercial em expansão, e os galeões espanhóis carregados de mercadorias, incluindo prata,
tornaram-se o objeto da pirataria, tanto a privada quanto a patrocinada pelos inimigos e rivais espanhóis
da Europa. Em 1573, o primeiro galeão partiu de Manila em direção ao leste, pelo Pacífico, carregando
seda chinesa, cetim, porcelanas e especiarias para Acapulco, a partir de onde ele voltou para Manila
carregado de prata das minas hispano-americanas. Potosí, a mais de 4 500 m de altura nos Andes, a
dois meses e meio de jornada de distância de Lima, foi o local da mina de prata mas rica da história
mundial [...]. Encontrada em 1545, a montanha de prata de Potosí custeou o Império Espanhol até mais
ou menos a metade do século XVII.
Ao fim do século XVI, a quantidade de metais fluindo de Acapulco para Manila ultrapassou a soma que
estava envolvida nos carregamentos do Atlântico. Entre 1570 e 1780, um número estimado entre 4 e 5
mil toneladas de prata fluíram para o leste da Ásia ao longo da rota Acapulco-Manila. Conforme os metais
hispano-americanos fluíam para o oeste e leste, tanto asiáticos quanto europeus enriqueceram. Esse
comércio durou até a primeira metade do século XIX, quando o poder espanhol nas Américas chegou ao
fim.
Ao fim do século XVI, os holandeses adquiriram o conhecimento de navegação necessário para entrar
na competição comercial mundial.

36
GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto
Alegre: Penso, 2011. p. 186.

Habilidades da BNCC
6º ano
(EF07HI06) Comparar as navegações no Atlântico e no Pacífico entre os séculos XIV e XVI.
7º ano
(EF07HI02) Identificar conexões e interações entre as sociedades do Novo Mundo, da Europa, da
África e da Ásia no contexto das navegações e indicar a complexidade e as interações que ocorrem
nos Oceanos Atlântico, Índico e Pacífico.

37
29
As egípcias: retratos de
mulheres do Egito faraônico

Christian Jacq
Editora Bertrand Brasil
O excerto a seguir foi escrito por Christian Jacq, historiador francês
especializado no Egito antigo, e faz parte da obra As egípcias: retratos de
mulheres do Egito faraônico.

Os papéis da mulher no Egito antigo

Constatação essencial: houve egípcias que exerceram as mais altas


funções de Estado, o que não acontece na maior parte das democracias modernas. Como veremos, o papel político
e social das mulheres foi determinante ao longo de toda a história do Egito. Graças a um notável sistema jurídico, a
mulher e o homem eram iguais por direito e de fato, a esse estatuto legal – que só foi posto em causa no reinado dos
Ptolomeus, soberanos gregos – acrescentava-se uma verdadeira autonomia, posto que a egípcia não estava
submetida a nenhuma tutela.
Essa igualdade entre o homem e a mulher não se impôs apenas como um valor fundamental da sociedade
faraônica, mas perdurou enquanto o país se manteve independente. É inegável que as egípcias se beneficiariam de
condições de vida muito superiores às que milhões de mulheres conhecem hoje; em certos campos, como a da
espiritualidade, as cidadãs dos países ditos desenvolvidos não obtiveram os mesmos privilégios institucionais que as
egípcias. De fato, atualmente é impossível imaginar uma papisa, uma grande rabina ou uma reitora de uma mesquita,
ao passo que muitas egípcias ocuparam o topo de certas hierarquias sacerdotais.
O que impressiona o observador que começa a interessar-se pela arte egípcia é o imenso respeito pela mulher.
Bela, serena, luminosa, ela contribuiu da maneira mais ativa para a construção diária de uma civilização que cultivou
a beleza, nomeadamente a feminina. [...] Quem poderia resistir à soberana atração das grandes damas do tempo das
pirâmides, à graça das elegantes da Tebas do Novo Império, ao seu sorriso divino e ao amor pela vida que elas
encarnam?
[...] Iremos encontrar rainhas, desconhecidas, mulheres de poder, trabalhadoras sacerdotisas, servas, esposas,
mães; nenhuma delas poderia chamar-se “Senhora Fulano de Tal”, o que suporia o aniquilamento do seu nome
próprio, do seu sobrenome, e um total ofuscamento em função do marido. A mulher egípcia afirmou o seu nome e a
sua personalidade, sem, no entanto, entrar em competição com o homem, porque pôde exprimir plenamente a sua
capacidade de ser consciente e responsável.
O Egito faraônico, a que só temos acesso a partir de 1822, data da decifração da linguagem hieroglífica por
Champollion, continua a surpreender-nos; o estudo da condição feminina faz parte precisamente das áreas em que
os avanços da sociedade egípcia são particularmente notáveis. Partir ao encontro das egípcias é uma aventura
fascinante, recheada de surpresas; da mulher de um Faraó a uma chefe dos médicos, de uma mulher de negócios a
uma “cantora do deus”, tantos rostos que traçaram caminhos de uma riqueza e de um esplendor ainda sem igual.
JACQ, Christian. As egípcias: retratos de mulheres do Egito faraônico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p.
20-21.
Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI19) Descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas sociedades
medievais.
38
30

História da Guerra Fria


John Lewis Gaddis
Editora Nova Fronteira
O excerto a seguir foi escrito por John Lewis Gaddis, professor da
Universidade de Yale, e compõe o livro História da Guerra Fria.

A volta do medo

A vitória na Segunda Guerra Mundial [...] não gerou qualquer sensação de segurança nos
vencedores. Em fins de 1950, nem os Estados Unidos, nem a Inglaterra e tampouco a União Soviética
podiam considerar que as vidas e os recursos dispendidos para derrotar a Alemanha e o Japão os tinham
tornado mais seguros: os membros da Grande Aliança eram agora adversários na Guerra Fria. Os
interesses afinal eram incompatíveis; as ideologias se conservavam no mínimo tão polarizadas quanto
antes da guerra; temores de um ataque-surpresa continuavam a inquietar os militares de Washington,
Londres e Moscou. Uma competição pelo destino da Europa no pós-guerra agora se estendera à Ásia.
A ditadura de Stalin permanecia tão cruel – e dependente dos expurgos – quanto sempre fora, mas, com
o surgimento do macarthismo nos Estados Unidos e diante de provas irrefutáveis de que houvera
espionagem dos dois lados do Atlântico, não estava mais claro se as democracias ocidentais poderiam
preservar a tolerância com as dissidências e o respeito pelas liberdades civis que as distinguiam dos
ditadores, fossem das variedades fascista e comunista.
“A verdade é que em cada um de nós, bem no fundo, em algum lugar, existe uma pequena dose de
totalitário”, disse Kennan aos estagiários do Nacional War Colige em 1947. “É a luz estimulante da
confiança e da segurança que mantém este gênio do mal submerso [...]. Se desaparecerem a confiança
e a segurança, não pensem que ele não estará́ esperando para substituí-las”. Esse alerta partido do
criador da estratégia da contenção – de que o inimigo a ser contido poderia facilmente estar entre os
beneficiários da liberdade quanto entre seus inimigos – demonstrou o quanto difundiria o medo numa
ordem internacional de pós-guerra na qual se depositavam tantas esperanças. Isso ajuda a explicar por
que o livro 1984 de Orwell se tornou sucesso literário instantâneo quando foi publicado em 1949.
[...]
[Ainda segundo Kennan] Elas retrocedem para além das fronteiras da civilização ocidental, para os
conceitos de guerra em certa época familiares às hordas asiáticas. Realmente não podem se ajustar a
um propósito político voltado para a modelagem e não para a destruição da vida do adversário. Não
conseguem levar em consideração a responsabilidade final do homem pelo seu semelhante e até mesmo
pelos erros e equívocos uns dos outros. Implicam na admissão de que o homem não pode ser, mas é
seu próprio e mais terrível inimigo.
GADDIS, John Lewis. História da Guerra Fria. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 44-45.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI28) Identificar e analisar aspectos da Guerra Fria, seus principais conflitos e as tensões
geopolíticas no interior dos blocos liderados por soviéticos e estadunidenses.

39
31

Ação afirmativa: história e


debates no Brasil

Sabrina Moehlecke
http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf
O trecho a seguir, sobre políticas de ação afirmativa, é parte do artigo Ação afirmativa: história e debates no
Brasil, da socióloga Sabrina Moehlecke.

Políticas de ação afirmativa


A redemocratização no Brasil é ainda um processo recente e permeado por diversas lacunas não resolvidas.
Uma delas refere-se à permanência de condições adscritas, isto é, características não mutáveis inerentes a um
indivíduo, como cor e sexo, a influir na definição das oportunidades de ingresso no mercado de trabalho,
progressão na carreira, desempenho educacional, acesso ao ensino superior, participação na vida política.
Dados sobre discriminação e desigualdades nessas diferentes áreas têm sido sistematicamente divulgados nos
últimos anos, nacional e internacionalmente, e a questão não é mais novidade. Contudo, no campo prático, são
várias as controvérsias acerca de quais seriam as melhores soluções, já que essa situação tem-se mostrado
inalterada por décadas.
Uma das propostas que surgiram como resposta ao problema foram as políticas de ação afirmativa, também
designadas política de cotas, reserva de vagas, ação compensatória, que veiculam tema e experiência
relativamente novos no debate e agenda pública brasileira. Entendemos que, antes de assumir uma posição
favorável ou contrária a essas políticas, seria importante conhecer e entender melhor o que são, sua história e a
direção assumida por algumas das polêmicas que têm suscitado. [...]

A origem da expressão
[...] A expressão tem origem nos Estados Unidos, local que ainda hoje se constitui como importante referência
no assunto. Nos anos [19]60, os norte-americanos viviam um momento de reivindicações democráticas internas,
expressas principalmente no movimento pelos direitos civis, cuja bandeira central era a extensão da igualdade
de oportunidades a todos. No período, começam a ser eliminadas as leis segregacionistas vigentes no país, e o
movimento negro surge como uma das principais forças atuantes, com lideranças de projeção nacional, apoiado
por liberais e progressistas brancos, unidos numa ampla defesa de direitos. É nesse contexto que se desenvolve
a ideia de uma ação afirmativa, exigindo que o Estado, para além de garantir leis antissegregacionistas, viesse
também a assumir uma postura ativa para a melhoria das condições da população negra. [...]
Mas a ação afirmativa não ficou restrita aos Estados Unidos. Experiências semelhantes ocorreram em vários
países da Europa Ocidental, na Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina, Cuba, dentre
outros. [...]

Algumas das questões em debate


[...] A adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil caracterizaria a garantia de um direito ou o estabelecimento
de um privilégio? Aqueles que as percebem como um privilégio, atribuem-lhes um caráter inconstitucional.
40
Significariam uma discriminação ao avesso, pois favoreceriam um grupo em detrimento de outro e estariam em
oposição à ideia de mérito individual, o que também contribuiria para a inferiorização do grupo supostamente
beneficiado, pois este seria visto como incapaz de vencer por si mesmo. Para os que as entendem como um
direito, elas estariam de acordo com os preceitos constitucionais, à medida que procuram corrigir uma situação
real de discriminação. Não constituiriam uma discriminação porque seu objetivo é justamente atingir uma
igualdade de fato e não fictícia. Elas não seriam contrárias à ideia de mérito individual, pois teriam como meta
fazer com que este possa efetivamente existir. Seria, nesse caso, a sociedade brasileira a incapaz, e não o
indivíduo [...].
MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 198-
2010, nov. 2002. Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf. Acesso em: 25 jul. 2019.

Habilidades da BNCC
8º ano
(EF08HI20) Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão
no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas.
9º ano
(EF09HI36) Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século
XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência.

41
32

Arqueologia da Amazônia

Eduardo Góes Neves


Editora Jorge Zahar
O excerto a seguir, do historiador e arqueólogo Eduardo Góes Neves,
aborda o processo de domesticação de plantas na região da Amazônia.

A transição para a agricultura e o início da


produção cerâmica
Uma das maiores contribuições dos índios das Américas para a humanidade foi a domesticação de uma série de
plantas que atualmente são consumidas de diferentes modos por todo o planeta. A lista é grande e será aqui parcialmente
mencionada, em ordem alfabética: abacate, abacaxi, abóbora, amendoim, batata, caju, feijão, mamão, mandioca, maracujá,
milho, pimenta-vermelha, pupunha, tabaco e tomate, entre outros, foram domesticados em diferentes partes do continente
americano muito antes da chegada dos europeus. Como quase tudo em arqueologia, há um grande debate sobre a
antiguidade do início desse processo, mas é provável que os colonizadores iniciais – que tinham seu modo de vida organizado
em torno de caça, pesca e coleta – já praticassem algum tipo de manejo de plantas, conforme dados obtidos, por exemplo,
na Amazônia equatoriana. A domesticação de plantas deve ser entendida como um processo a partir do qual algumas
espécies selvagens são manipuladas com o objetivo de destacar algumas de suas características. [...] Assim, por exemplo,
o processo de domesticação da mandioca envolveu a manipulação de espécies selvagens com o objetivo de desenvolver
variedades com raízes mais grossas e longas, já que esta é a parte da planta que é consumida.
Do mesmo modo, a domesticação da pupunha – uma espécie de palmeira cujos frutos, do tamanho de uma ameixa,
são amplamente consumidos na Amazônia e em outros países da América do Sul e Central – envolveu um processo de
seleção que privilegiou, ao longo do tempo, as variedades com frutos maiores. O processo de seleção intencional que leva
à domesticação de uma planta é bastante longo, com duração de muitas décadas ou mesmo séculos. Nesse sentido, a
agricultura não foi “inventada” por alguns poucos indivíduos. Ao contrário, resulta de processos longos e cumulativos no
decorrer dos quais a seleção intencional de características morfológicas acaba por levar ao surgimento de novas espécies,
aparentadas às espécies selvagens das quais se originaram. É óbvio que hoje isso mudou. Basta, por exemplo, ver as
fortunas investidas por grandes laboratórios internacionais no desenvolvimento de espécies transgênicas.
[...] A mandioca [...] foi domesticada na Amazônia e atualmente é consumida em larga escala pela América Latina,
Caribe, África e Ásia. Ela é tão dependente dos seres humanos para se reproduzir que muitas variedades já perderam a
capacidade de lançar sementes no solo. Nesses casos, é necessário que talos do galho sejam quebrados e plantados pelos
agricultores. Por outro lado, é correto afirmar que muitas populações do mundo em desenvolvimento provavelmente teriam
dificuldades nutricionais ainda piores sem o cultivo de mandioca. Esse exemplo é ilustrativo e impressionante, já que os
índios – provavelmente as índias – do passado desenvolveram uma tecnologia sofisticada, baseada no uso de vários
instrumentos, como o ralador, o tipiti e o cumatá, que transforma uma planta extremamente venenosa em vários produtos
importantes, como o beiju, a farinha, a tapioca e o caxiri.
NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 31-34.

Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI05) Descrever modificações da natureza e da paisagem realizadas por diferentes tipos de sociedade,
com destaque para os povos indígenas originários e povos africanos, e discutir a natureza e a lógica das
transformações ocorridas.

42
33
Italianos: história e memória
de uma comunidade

Anna Rosa Campagnano Bigazzi


Editora Companhia Editora Nacional
Trecho do livro Italianos: história e memória de uma comunidade, da
pesquisadora Anna Rosa Campagnano Bigazzi. A obra aborda a formação das
comunidades italianas no Brasil e como elas contribuíram para a construção de
um país multiétnico.

Brasil, país multiétnico


Multiétnico é um termo que define a presença simultânea em um mesmo espaço físico de diferentes grupos
étnicos distintos por seus patrimônios culturais. Mas nem sempre o Estado republicano e a sociedade brasileira
aceitaram positivamente a presença de culturas étnicas minoritárias no território nacional. A trajetória de muitos
grupos imigrantes deve, portanto, ser interpretada também sob o prisma da intolerância, da indiferença às diferenças
culturais [...]. O fato de o emigrante ser tratado como um “eterno estrangeiro” implica, na maioria das vezes, exclusão
social e auto-enclaustramento.
A integração dos imigrantes italianos na comunidade de destino exigiu, por partes deles, a adoção de modelos
de comportamento que, adaptados, contribuíram para reduzir progressivamente a heterogeneidade cultural. Ao
governo republicano não interessava, de fato, que os imigrantes preservassem seus valores de origem, razão pela
qual foram estabelecidas, com frequência, leis de incentivo à nacionalização dos grupos estrangeiros. No entanto,
o processo de assimilação se fez de maneira lenta e com dificuldades, entre as quais o uso corrente da língua
portuguesa.
Recém-chegados, os imigrantes italianos procuravam aprender algumas palavras em português para
conseguir sobreviver, mas raramente procuravam os brasileiros para se comunicar, fator que dificultava sua
integração social. Demorava muitos anos para que o imigrante se adaptasse ao novo ambiente social, aprendendo
a conviver com os usos e costumes do país hospedeiro. Apesar de sentir saudade de sua pátria, os italianos
procuravam deixar sua condição de imigrantes para se tornar cidadãos brasileiros. Mesmo assim, os italianos foram
alvo da xenofobia, postura que incitava a desconfiança e os conflitos sociais. Inúmeros são os casos de
discriminação e intolerância para com os italianos imigrantes.
[...]
As novas gerações favorecem a integração dos italianos na sociedade acolhedora, transmitindo a seus pais
e parentes os conhecimentos linguísticos e culturais adquiridos nas escolas brasileiras. Mesmo assim, procuraram
preservar elementos de sua identidade de origem, ainda que o Estado brasileiro tenha procurado, entre os anos de
1938-1945, diluir os traços das nacionalidades estrangeiras através de um intenso programa pró-assimilação. Basta
lembrar o conjunto de leis nacionalistas promulgadas durante o Estado Novo [1937-1945] com o objetivo de reprimir
as culturas estrangeiras interpretadas como “fatores de erosão da cultura brasileira”.
BIGAZZI, Anna Rosa Campagnano. Italianos: história e memória de uma comunidade. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2006. p. 96-98.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI02) Caracterizar e compreender os ciclos da história republicana, identificando particularidades da história
local e regional até 1954.
43
34

História do Brasil império

Miriam Dolhnikoff
Editora Contexto
O livro História do Brasil Império, de Miriam Dolhnikoff, aborda os
momentos decisivos da História do Brasil no período imperial. No
trecho a seguir, a professora da Universidade de São Paulo (USP)
comenta as relações dos cafeicultores paulistas com o movimento
republicano.

Cafeicultores paulistas e República


Apesar de estarem à frente da atividade mais rentável do país, a exportação
de café, e de terem sido capazes de responder aos obstáculos que se apresentavam para sua contínua expansão, os
cafeicultores paulistas no início da década de 1870, em sua maioria, articularam-se ao movimento republicano. Fundaram,
em 1873, o Partido Republicano Paulista e participaram ativamente da mobilização em defesa da República. Como explicar
que justamente o grupo econômico que controlava a atividade mais rentável, que, sob a monarquia, conseguiria manter a
cafeicultura em constante expansão e adotar medidas para enfrentar os problemas que se apresentavam, se tornou um
adversário do regime monárquico?
Duas são as explicações e ambas de conteúdo político. Em primeiro lugar, os cafeicultores paulistas ressentiam-se do fato
de que não contaram com o auxílio do governo central para superar os obstáculos à sua expansão. No caso da imigração, o
fracasso das experiências iniciais demonstrou que ela só seria bem-sucedida com financiamento público. Sem conseguir
aprovar no orçamento nacional recursos para a imigração, só conseguiram viabilizá-la com o financiamento feito pelo governo
provincial, cujas rendas provinham na sua maior parte de impostos pagos pelos próprios cafeicultores. Foram eles também
que tiveram de financiar a construção de uma rede ferroviária que ligasse suas fazendas a Jundiaí. Começou a se disseminar
entre os cafeicultores o ressentimento de que, apesar dos impostos que pagavam para o governo central, tiveram que resolver
sozinhos, com seus próprios recursos, os problemas para garantir a continuidade da expansão cafeeira.
Em segundo lugar, os cafeicultores paulistas consideravam injusto um sistema que privilegiava outras províncias, em
detrimento daquela que era responsável pela produção da maior parcela de riqueza do país. São Paulo se tornava uma
potência econômica, mas não tinha influência política correspondente. Os cafeicultores consideravam que havia uma menor
representatividade de São Paulo no sistema político em relação a outras províncias, com menor importância econômica. Nos
ministérios, havia presença maior de ministros de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, da mesma forma no Conselho do
Estado. Essas três províncias e Minas Gerais tinham bancadas maiores na Câmara e no Senado. Dessa maneira, os paulistas
entendiam que sustentavam o país com sua cafeicultura sem ter, em contrapartida, maior influência nas decisões políticas.
[...] A solução para seus problemas viria com a República. Sua principal bandeira era a federação. Em uma República com
alto grau de autonomia das unidades federativas haveria pouca interferência do governo central, de modo que poderiam
atingir seus objetivos sem precisar apelar para a separação.
O federalismo tornou-se, assim, a principal bandeira dos republicanos paulistas. Não estavam interessados em outros temas
associados às reivindicações republicanas, como a ampliação da cidadania e da proteção dos direitos civis. Ao contrário
desejavam uma República capaz de manter a sociedade profundamente hierarquizada da qual se beneficiavam.
DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2017. p. 159-161.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI01) Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da
emergência da República no Brasil.

44
35
O debate contemporâneo sobre a diversidade e a
diferença nas políticas e pesquisas em educação

Tatiane Consentino Rodrigues e Anete


Abramowiczhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022013000100002
O trecho a seguir foi escrito por Tatiane C. Rodrigues e Anete Abramowicz e pertence ao artigo O debate
contemporâneo sobre a diversidade e a diferença nas políticas e pesquisas em educação.

Da homogeneidade à diversidade: apropriações da produção brasileira


Na década de 1990, podemos dizer, de maneira geral, que o debate brasileiro em torno da educação sobre
cultura centrou-se principalmente nos temas relativos ao currículo, apesar de a temática estar presente na
didática, na formação de professores, nas análises sobre e do cotidiano escolar etc. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), em um primeiro momento, ao trazerem a pluralidade cultural como tema transversal, criaram
um território, um lugar para a contenção dos temas postos na educação. O fracasso escolar, as dificuldades de
aprendizagem, as reivindicações sociais por reparação e reconhecimento ficaram circunscritas na cultura e no
debate do currículo escolar.
A década de 1990 é considerada uma referência nessa passagem, pois foi marcada por um contexto
reivindicatório em que diferentes movimentos sociais denunciaram as práticas discriminatórias presentes na
educação e exigiram mudanças, ao mesmo tempo em que erodiram o mito da democracia racial.
Nessa década, sobrepuseram-se uma visão culturalista explicativa do fracasso escolar e certo reconhecimento
das diferentes culturas. Identifica-se nela também a influência de um enredo discursivo no contexto mundial, que
se integra de modo sistemático às reflexões dos estudiosos da educação. Uma educação voltada para a
incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico tem emergido em debates e discussões nacionais
e internacionais, buscando questionar pressupostos teóricos e implicações pedagógicas e curriculares de uma
educação voltada à valorização da identidade múltipla no âmbito da educação formal.
[...]
A partir da década de 1990, a confluência dos fatores mencionados anteriormente fomenta a produção sobre tais
temáticas (educação, cultura, multiculturalismo, interculturalismo etc). De forma geral, após as análises
realizadas dos artigos publicados em 23 periódicos durante os anos de 1990 a 2007 e dos 44 trabalhos
apresentados nos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação, pode-se afirmar
que o debate no Brasil encontra-se entre os multiculturalistas e interculturalistas [...]. Com base na análise dos
trabalhos selecionados, é possível elencar alguns pontos comuns, ou pontos de partida, utilizados por um número
expressivo de pesquisadores em referência ao processo ou à passagem de uma educação homogênea para
uma educação que considera a diversidade.

A ascensão da diversidade na política educacional brasileira


A partir da década de 1990, a referência à diversidade passou a ser cada vez mais presente no contexto político
brasileiro, motivada pela pressão internacional de cumprimento dos acordos internacionais de combate às
desigualdades raciais, de gênero e outras, bem como por um contexto interno de intensas reivindicações.
O período de 1995-2002 corresponde à gestão de Fernando Henrique Cardoso e caracteriza-se pela
consolidação das discussões sobre políticas focais, de combate à discriminação, ao preconceito e ao racismo na

45
esfera pública. No entanto, [...] o país carece de uma estratégia articulada e orgânica de enfrentamento da
questão. As ações até então desenvolvidas são caracterizadas como fragmentadas, desordenadas e com baixa
resolutividade.
[...] No plano executivo federal, criou-se, ainda em 2003, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
(SPM) e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), reunindo sob seu
domínio um conjunto de ações voltadas para a população afrodescendente, com destaque para a atuação junto
a comunidades quilombolas, no campo da saúde da população negra e também na área do ensino de história e
cultura afro-brasileira nas escolas. No mesmo ano, em 9 de janeiro, foi sancionada a Lei nº 10.639, que altera a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e introduz a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-
brasileira na educação básica.
No que diz respeito à educação, em sintonia com as metas e indicações no plano de governo por um tratamento
específico a determinados grupos em situação de discriminação no país, especialmente no que diz respeito ao
acesso e à permanência na educação, criou-se em 2004, na estrutura do Ministério da Educação, a Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD).
A SECAD foi construída com a perspectiva de contribuir para essa mudança na política pública: conseguir
compatibilizar o conteúdo universal da educação com o conteúdo particularista e diferencialista de ações
afirmativas para grupos, regiões e recortes específicos; dar conta, portanto, de colocar no centro da política
pública em educação o valor das diferenças e da diversidade, com seus conteúdos étnico-racial, geracional, de
pessoas com deficiência, de gênero, de orientação sexual, regional, religioso, cultural e ambiental.
[...]
A criação da SECAD provocou uma alteração institucional no tratamento da diversidade; tal alteração, porém, foi
restrita, já que os programas de grande impacto no que diz respeito à dimensão de atendimento e orçamento
permaneceram indiferentes, com exceção do Programa Universidade para Todos [PROUNI], que inseriu o recorte
étnico-racial na oferta de bolsas para o ensino superior.
Ainda que a criação da SECAD tenha contribuído para a institucionalização de temáticas que até então não eram
abordadas na formulação de políticas de educação, notou-se que as compreensões de diversidade ainda são
múltiplas e alternam-se de acordo com as Secretarias envolvidas nas formulações dos programas. Em
consonância com a avaliação de Moehlecke (2009), a SECAD, diante dos objetivos que lhe foram atribuídos e
das pessoas escolhidas para dirigir cada uma de suas coordenações, com fortes vínculos com os movimentos
sociais das áreas com as quais trabalham, foi a Secretaria que explicitou mais claramente o entendimento da
diversidade a partir de uma visão crítica das políticas de diferença. A SESU, por trabalhar especificamente com
o ensino superior, reforçou em seus programas a ideia de diversidade como política de inclusão e/ou ação
afirmativa. Já a SEB [Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação], que tem como atribuição
formular políticas para toda a educação básica, trabalha em seus documentos e programas principalmente com
a ideia de inclusão social e de diferença como valorização e tolerância à diversidade cultural.
O MEC [Ministério da Educação] não tem uma posição única e coesa acerca da ideia de diversidade que possa
orientar o conjunto de suas ações. A ideia de diversidade tem servido como um grande conceito guarda-chuva
para o governo nos vários processos de negociação com os grupos de pressão.
Assim como nas discussões teóricas que realizamos sobre diversidade, a multiplicidade de apropriações da
diversidade expressa as disputas internas e externas ao governo pela definição de projetos educacionais. Essa
disputa tornou-se evidente quando incluímos na análise a destinação orçamentária [...] para tais programas e
ações; nos anos de 2005 e 2006, o orçamento para essas políticas foi de menos de 1% em relação ao orçamento
total do MEC.
No ano de 2005, o orçamento da diversidade representava 0,7% do total do orçamento do MEC. Já em 2006,
essa participação passou para 0,75%. Tal evolução representa um aumento de 7% na participação do orçamento
da diversidade em relação ao orçamento do MEC. Porém, a porcentagem de participação apresentada enseja
uma reflexão noutro sentido. Uma participação de apenas 0,75% sinaliza um valor insignificante em termos
46
orçamentários. As temáticas que pretendem ser contempladas no amplo espectro que se denominou diversidade
têm uma participação ínfima em relação ao total do orçamento do MEC: menos de 1%. Isso significa que as
questões relativas à diversidade permanecem sem financiamento efetivo para reverter qualquer lógica. Estão
contidas apenas em um âmbito discursivo e abstrato de cultura/diversidade/diferença.
Por fim, cabe uma análise da dotação orçamentária no ano inicial e no ano final do primeiro Governo Lula. Vale
a pena ressaltar que o primeiro ano ainda representa reflexo do Governo FHC, pois a Lei Orçamentária Anual
(LOA) foi feita no Governo anterior. Os dados a seguir demonstram qual foi a variação de 2003 a 2006, em termos
reais, do orçamento total do MEC e do orçamento da diversidade.
Participação do orçamento da diversidade em relação ao orçamento do MEC
2003 0,27%
2006 0,75%
Enquanto o orçamento do MEC apresentou uma queda de 2,7% em termos reais, o orçamento da diversidade
cresceu 268,7%. Isso demonstra uma mudança de intenção no tratamento da questão da diversidade de um
governo para o outro, algo que se esperava em relação ao governo Lula, o qual foi construído com relações
estreitas com os movimentos sociais que reivindicavam incremento das políticas públicas voltadas para a questão
da diversidade.
Apesar de uma variedade sem precedentes de programas dirigidos ao enfrentamento dos problemas decorrentes
do racismo e direcionados para a diversidade, em termos gerais, pode-se afirmar que faltaram coordenação
interministerial, coerência e comunicação entre os programas, e que as responsabilidades acabaram
encapsuladas na SECAD, na SEPPIR e na SPM. A defesa da diversidade e a luta pela igualdade racial passaram
a fazer parte da retórica do governo, mas ainda não foram, efetivamente, elevadas ao status de política de Estado.
Análise semelhante é apresentada por Almeida (2011) no que diz respeito à política nacional de direitos humanos.
Segundo o autor, ocorreu um esvaziamento do tema na esfera pública, associado ao predomínio de uma visão
economicista de gestão.
Uma das principais apostas era quanto à inserção das 500 ações previstas no II Plano Nacional de Direitos
Humanos em metas definidas no orçamento federal. Mas o que as análises de acompanhamento demonstraram
é que, na revisão do Plano Plurianual 2004-2007, sem consulta aos atores civis, o governo revisou sua política
geral, suprimindo 30 programas dos 87 voltados para a proteção dos direitos humanos. Dos 57 programas
mantidos, 17 tiveram menos de 10% da execução dos recursos previstos.
Por fim, é necessário ressaltar que os avanços e as mudanças empreendidas no período analisado não podem
ser desconsiderados, especialmente porque se trata de uma política em movimento e porque a análise de um
processo que estamos vivenciando impossibilita uma leitura e uma avaliação com distanciamento.
Um dos principais pontos positivos no processo que denominamos ascensão da diversidade foi a abertura à
possibilidade de participação de grupos que até então não participavam da cena pública, bem como a pressão
que tais grupos exercem em prol de outros estilos, critérios e políticas na construção de outro Estado.
RODRIGUES, Tatiane Consentino; ABRAMOWICZ, Anete. O debate contemporâneo sobre a diversidade e a
diferença nas políticas e pesquisas em educação. Educação e Pesquisa., São Paulo, v. 39, n. 1, jan./mar.
2013. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022013000100002.
Acesso em: 25 jul. 2019.

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI36) Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século
XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência.

47
36

Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e


poder no mundo romano
Norberto Luiz Guarinello
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010
O historiador Norberto Luiz Guarinello, professor da Universidade de São Paulo (USP), comenta as formas de trabalho na
Roma Antiga, especialmente a escravidão, no artigo Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano.

Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano


O Império Romano conheceu diferentes formas de trabalho compulsório, dentre elas uma que denominamos de 'escravidão'.
Ou seja, ao contrário do mundo moderno, a escravidão antiga sempre conviveu com outras formas de dominação de pessoas
e de exploração de trabalho dependente. No mundo antigo havia todo um espectro de situações de dependência entre a
escravidão e a liberdade. A escravidão representava apenas uma das pontas desse espectro. De qualquer modo, em alguns
períodos e lugares, foi a forma dominante por vários séculos, em particular na Itália romana entre os séculos II a.C. e II d.C.
[...]
Nas sociedades que costumamos agrupar sob o nome [...] 'mundo antigo', seja nos grandes Impérios fluviais do Médio Oriente,
seja nas cidades-Estado que depois se alastraram pelas margens do Mediterrâneo, nunca se constituiu um mercado abundante
de mão-de-obra livre disponível para trabalhar para outrem. Daí advém que a carga de trabalho que excedia as capacidades
de um grupo doméstico fosse sempre realizada mediante o uso de trabalhadores dependentes, ou seja, como dissemos, de
trabalhadores submetidos a algum tipo de coação para trabalhar para outrem.
[...]
Sociedades diferentes estruturam trajetórias distintas para seus escravos e, no mundo romano, essas trajetórias eram bastante
amplas, ao menos potencialmente. Um escravo, ao nascer ou ser adquirido, entrava na casa de seu senhor, onde adquiria um
nome e uma função. Podia ser destinado a trabalhar nas minas, talvez o pior dos destinos, ou podia ser mandado para uma
propriedade rural, onde trabalharia muitas vezes acorrentado, distante e esquecido por seu senhor, num ambiente
essencialmente masculino e organizado militarmente.
Já os escravos urbanos tinham trajetórias mais abertas. Podiam ser treinados em ofícios específicos e, muitas vezes,
estabelecer-se independentemente, pagando uma taxa a seu dono. Podiam trabalhar na residência de seu senhor, ganhar sua
confiança e passar, por exemplo, a administrar seus negócios, a gerir suas propriedades agrícolas, a comerciar em seu nome.
Como ponto final da trajetória, podiam obter sua alforria, tornarem-se libertos e, até mesmo, cidadãos romanos, ainda que
carregando a mancha da escravidão, da qual só seus filhos se libertariam plenamente.
[...]
Além disso, como vimos, na ponta final de sua trajetória o escravo podia se tornar cidadão, mas não se tornava, por
consequência, livre por nascimento. Passava a fazer parte de uma ampla categoria, a dos libertos. Estes, a despeito de se
tornarem homens livres e mesmo quando adquiriam o estatuto de cidadão, permaneciam ligados a seus antigos senhores por
obrigações que iam da prestação de serviços banais, como acompanhar seu ex-senhor ao centro da cidade, até o pagamento
de taxas. De modo geral, pressupunha-se que mantivessem um respeito obsequioso frente a seus antigos senhores, seus
'patronos'. "Pai e patrono devem ser sempre respeitados e sagrados aos olhos de um liberto ou de um filho", afirmava o jurista
Ulpiano no início do século III de nossa era (Digesto, 37, 15).
GUARINELLO, Norberto Luiz. Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 26, n. 52, 2006. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
01882006000200010. Acesso em: 25 jul. 2019.

Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI16) Caracterizar e comparar as dinâmicas de abastecimento e as formas de organização do trabalho e da vida social
em diferentes sociedades e períodos, com destaque para as relações entre senhores e servos.

48
37

História da África

José Rivair Macedo


Editora Contexto
Na obra História da África, o historiador José Rivair Macedo aborda
importantes formações políticas africanas. No trecho destacado, o
professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
comenta aspectos do Antigo Mali.

O Antigo Mali

O antigo Mali foi criado por diversos povos aparentados que viviam na
região situada entre o rio Senegal e o rio Níger. Os mais importantes
deles eram conhecidos como os mandingas (ou malinquês, ou
manden). É provável que eles tenham conhecido o islã no século XI. A partir de 1150, começam a surgir notícias
muito vagas sobre alguns de seus governantes que realizaram a peregrinação a Meca, como ocorreu com
Djigui Bilali (1175-1200), Mussa Keita e Naré Famaghan (1218-1230). O filho desse último, Sundjata Keita
(1230-1255), estendeu a influência do Mali às unidades políticas menores da vizinhança, lançando as bases de
um Estado unificado que se manteria hegemônico até a metade do século XV.
A hegemonia do Mali se estendia por toda a África Ocidental e se devia a diversos fatores:

• do ponto de vista militar, controlava um poderoso exército composto de arqueiros, lanceiros e cavaleiros;
• do ponto de vista econômico, controlava as áreas de extração do ouro, que lhe garantiu posição de destaque na circulação
das caravanas transaarianas;
• do ponto de vista político, criou e manteve uma estrutura administrativa eficiente, com representantes nas áreas sob
domínio mandinga, chamados farba, e jurisconsultos e homens da lei, chamados cadi.

Integrado por diversos povos além dos mandingas, como os soninkês, fulas, dogons, sossos e bozos, o Mali
evoluiu para uma condição que o aproximava de um império, na medida em que exercia sua hegemonia,
impondo-se militarmente, e extraía tributos dos povos vencidos. Era constituído de núcleos distintos de tribos,
chefaturas e pequenos reinos locais. Havia duas categorias de províncias: as aliadas, cujos chefes
conservavam seus títulos (caso de Gana e Nima) e as conquistadas, em que, aos lados dos chefes tradicionais,
era destacado um representante direto do mansa.
O controle era, direta ou indiretamente, estabelecido por um poder central, representado na figura do
governante, designado pelo termo mansa. Este era tido como o líder supremo, o executor das decisões
coletivas e o aplicador da justiça. Residia na cidade de Niani, situada ao norte da atual República da Guiné.
O mansa era o representante máximo dos costumes ancestrais da comunidade, e mesmo que em sua corte
alguns tivessem adotado a crença muçulmana, a população continuava a praticar seus ritos e cultos
tradicionais, politeístas. Havia na corte espaço para os eruditos das mesquitas, conhecedores do Corão e da
lei corânica, e espaço para os djeli, ou griôs, os conhecedores e transmissores dos costumes seculares próprios
das populações locais.
O apogeu da Dinastia Keita ocorreu durante o século XVI, no governo de Kankan Mussa (1307-1332). Ele
consolidou as bases administrativas nos domínios já existentes e ampliou a área de influência do “império”,
49
com o apoio de tropas disciplinadas de ocupação. Seguidor do Corão, mansa Mussa cumpriu a obrigação da
peregrinação a Meca em 1324-1325, transformando o evento numa estratégia de afirmação de poder ao
divulgar no exterior a importância de seu Estado. Percebera o isolamento do Mali, sua posição marginal frente
ao mundo islâmico, e procurou dar-lhe maior visibilidade e ampliar sua rede de contatos comerciais e culturais.
No retorno da peregrinação, mansa Mussa trouxe sábios, poetas e conhecedores da lei muçulmana para
ensinar nas madrassas, isto é, as escolas corânicas, sobretudo nas cidades de Tombuctu e Djenné. Mandou
erguer edifícios religiosos e palácios, inaugurando o estilo de arquitetura sudanesa que se mantém até a
atualidade. As construções, feitas com argila, têm portas e aberturas decoradas com motivos de inspiração
muçulmana, com arabescos deslumbrantes. Um dos mais belos templos construídos neste estilo, a Grande
Mesqutsa de Djenne, foi classificado pela Unesco como patrimônio histórico da humanidade. [...]
MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2015. p. 55-57.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI03) Identificar aspectos e processos específicos das sociedades africanas e americanas antes da
chegada dos europeus, com destaque para as formas de organização social e o desenvolvimento de saberes
e técnicas.

50
38
Os índios na História do Brasil no século XIX: da
invisibilidade ao protagonismo
Maria Regina Celestino de Almeidahttps://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/download/39/29

No artigo Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo, a historiadora


Maria Regina Celestino de Almeida expõe como a historiografia recente passou a identificar o protagonismo de
um grupo social que antes não era visto como sujeito histórico. No trecho destacado, ela aborda as tentativas
de criação de uma representação única para povos tão diversos.

Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao


protagonismo
Embora menos estudada, a presença e a atuação indígena na história do século XIX vem se tornando
cada vez mais visível em pesquisas sobre diferentes temas. Dentre eles, ressalto a política indigenista do
Império; as disputas por terras nas antigas aldeias coloniais; os discursos de desaparecimento dos índios; as
guerras ofensivas contra os povos considerados selvagens, com destaque para os botocudos e os kaingangs;
o indianismo brasileiro e as construções de imagens dos índios na literatura, nas artes e nos discursos de
políticos, intelectuais e viajantes; o lugar dos índios na historiografia do século XIX [...].
A enorme diversidade de populações indígenas no território brasileiro dificultava não só a aplicação de
uma política de caráter geral, como também a construção de uma única imagem de índio condizente com os
ideais da nova nação. Do ponto de vista político, pregava-se o assimilacionismo, com procedimentos diversos,
como já vinha ocorrendo desde o período pombalino. Do ponto de vista ideológico, discutia-se a possibilidade
de tornar o índio símbolo nacional. O desafio era grande e as divergências, muitas. Afinal, os índios ocupavam
terras, ameaçavam colonos, recusavam-se ao trabalho e lutavam para conservar suas aldeias. Como
transformá-los em símbolo nacional se eram considerados inferiores e ameaças ao desenvolvimento e
progresso econômico [...]? Certamente, esses índios não serviam para simbolizar a nação, nem tampouco para
compor o projeto de construção da memória e história coletivas do novo Estado. Foi a imagem idealizada do
índio que permitiu, no plano ideológico, transformá-lo em símbolo nacional. Essa imagem pouco teria a ver com
os reais habitantes dos sertões e das aldeias do Império. Discursos e obras políticas, literárias, históricas,
científicas e artísticas desse período caracterizaram-se pela idealização dos índios do passado, enquanto
ignoravam ou demonizavam os grupos ou indivíduos indígenas ainda muito presentes no território brasileiro.
Estes últimos, bastante vivos e atuantes no século XIX, eram presença constante nos artigos das revistas do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), nos Relatórios dos Presidentes de Província, na
correspondência entre autoridades diversas e nas discussões da Assembleia Legislativa e das Câmaras
Municipais. Essa documentação não deixa dúvidas sobre a atuação desses povos ao longo do século XIX,
atuação essa que, como em períodos anteriores, influenciava os rumos das políticas para eles traçadas.
Discutia-se essencialmente se os índios deviam ser integrados de forma pacífica ou violenta. As concepções
políticas e ideológicas sobre os índios se associavam e eram fundamentalmente influenciadas pelas realidades
econômico-sociais do novo Estado. Como destacou David Treece, as representações romantizadas do índio
que apareceram de diferentes formas na literatura, na música e na pintura não estavam descoladas da realidade
política e social do período. Eram, sem dúvida, construções idealizadas, porém estavam ancoradas nos
contextos históricos em que foram elaboradas. Os intelectuais e artistas por elas responsáveis não viviam,
absolutamente, alheios às discussões políticas e sociais sobre os índios. Na maioria das vezes, envolviam-se
nelas diretamente pelas funções políticas exercidas e quando não o faziam, suas obras, de um modo geral,
influenciavam e eram influenciadas pelas realidades que vivenciavam. Os intelectuais responsáveis pela
construção das imagens sobre os índios, bem como os viajantes, cujas descrições contribuíam para reforçá-

51
las, comungavam, grosso modo, com as ideias de assimilar os índios e transformá-los em eficientes cidadãos
do novo Império. Seus discursos e representações eram coerentes com a política indigenista do século XIX. [...]
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo.
Revista História Hoje, v. 1, n. 2, p. 24, 27-29, 2012. Disponível em:https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/download/39/29. Acesso
em: 25 jul. 2019.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI27) Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos
negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas.

52
39
Sambaqui: arqueologia
do litoral brasileiro
Madu Gaspar
Editora Jorge Zahar
O livro Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro, de Maria Dulce Barcellos
Gaspar de Oliveira, é um excelente trabalho sobre estes vestígios
arqueológicos que explicam tanto do passado destas terras que vieram a ser
o Brasil. A autora, também conhecida como Madu Gaspar, é professora do
Departamento de Antropologia do Museu Nacional, vinculado à Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trecho destacado, uma discussão
sobre nomadismo ou sedentarismo dos povos sambaquieiros.

Os sambaquieiros: nômades ou sedentários?


O estudo do ambiente encontrado no entorno dos sítios fornece informações sobre estratégias de sobrevivência
que nem sempre ficam registradas nos sambaquis. Os sambaqueiros não contavam com sofisticados meios de
armazenamento de alimentos ou de circulação de mercadoria. Para garantir o abastecimento do grupo, estabeleciam
seus assentamentos em locais estratégicos onde pudessem obter alimentos todos os dias e durante o ano inteiro.
Pesquisa realizada na Região dos Lagos, Rio de Janeiro, indicou que os locais prediletos de implantação dos
sítios são áreas de interseção ambiental. Próximos de enseada, canal, rio, laguna, manguezal e floresta, dos
sambaquis era possível alcançar rapidamente os diferentes ambientes. Se o mar estivesse bravo ou se o peixe não
encostasse, o alimento poderia ser conseguido nas lagunas ou no mangue. As matas garantiam uma eventual caça
e uma série de frutos e sementes. A ocupação de pontos estratégicos permitia o acesso a diferentes ambientes e,
assim, o estabelecimento de uma população sedentária.
Pesquisadores que achavam, que os sambaquieiros eram nômades apoiavam-se na ideia de que a base de
sua dieta alimentar era o molusco e que a coleta intensiva terminava por exaurir esses recursos. Como consequência
o grupo era obrigado a deslocar-se à procura de novos locais de coleta. Já se demonstrou que parte significativa da
dieta apoiava-se na pesca e só com a industrialização da atividade pesqueira é que esse recurso começa a se tornar
escasso. [...]
Complementa esse raciocínio o fato de que nem todas as análises de restos faunísticos constataram a presença
de indícios de exaustão de bancos de moluscos e, a julgar pelas aldeias de pescadores contemporâneos que ainda
ocupam as mesmas regiões e por sua já referida produtividade, não há motivos para supor que o ambiente
apresentasse restrições tão severas que tornassem o nomadismo uma estratégia de sobrevivência. [...]
[...]
A posição central dos sambaquis em relação aos recursos, a inexistência de hiatos na estratigrafia dos sítios e
as particularidades do ambiente litorâneo indicam tratar-se de um grupo sedentário e que se mantinha por longos
períodos em seu território.
GASPAR, Madu. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 42-44.

Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI05) Descrever modificações da natureza e da paisagem realizadas por diferentes tipos de sociedade, com
destaque para os povos indígenas originários e povos africanos, e discutir a natureza e a lógica das transformações
ocorridas.

53
40
Dicionário do Brasil
Imperial (1822-1889)
Ronaldo Vainfas (Org.)
Editora Objetiva
A legislação que permitia fazer guerra aos indígenas e aprisioná-los
vinha dos tempos coloniais. E foi com base nela que o rei D. João
moveu guerra contra os botocudos no Vale do Rio Doce (atual
Espírito Santo) e nos campos de Guarapuava (atual Paraná). Além
disso, o próprio D. João autorizou guerras contra os “bugres” de São
Paulo e de Minas Gerais, além da escravização dos vencidos. Essa
legislação durou de 1808 a 1831 quando foi revogada pelo padre
Diogo Antônio Feijó. O excerto a seguir, que pertence à
obra Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889), organizada pelo
historiador Ronaldo Vainfas, apresenta as políticas do Império
brasileiro voltadas à população indígena.

Excluído na vida real e idealizado na literatura


Projeto pioneiro foi o de José Bonifácio, apresentado à Assembleia de 1823: “Apontamentos para a civilização
dos Índios bravos do Império do Brasil”. Advogava uma política sistemática de aldeamento, preconizava a
sujeição dos índios às leis do Estado e sua inserção no mercado de trabalho, e insistia na necessidade de tratá-
los com brandura.
Mas o projeto constitucional de 1823 limitou-se a declarar a competência administrativa das províncias na
catequese, enquanto a Carta de 1824 sequer mencionou a existência de índios no Brasil. Somente em 1845 viria
à luz o Regulamento das Missões, único documento indigenista imperial, que prolongava o sistema de
aldeamento, entendendo-o como transição para a “completa assimilação dos índios”. Instituiu a figura do diretor-
geral dos índios, um para cada província, mantendo a do diretor de aldeia previsto pela legislação pombalina de
1755-58 e introduzindo o missionário responsável pela “catequese e civilização” dos nativos. Aboliu a
possibilidade de “repartir” os índios sazonalmente entre os moradores – uma forma evidente de exploração da
mão de obra indígena em áreas de fronteira – e delimitou minimamente o direito indígena à terra, para transformá-
lo em “lavrador”, prevendo expropriações caso a terra não fosse cultivada. [...]
A política imperial em relação às populações indígenas contrastava com o lugar que se atribuiria
progressivamente ao índio na cultura nacional. No concurso promovido pelo IHGB [Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro], na década de 1840, sobre “Como se deve escrever a história brasileira a fusão das três grandes
raças, encarnadas no português, no índio e no africano. Von Martius dedicou-se muito à contribuição dos
portugueses, quase nada à dos africanos, e razoavelmente à contribuição indígena. Por outro lado, no campo da
literatura e das artes, o indígena foi cada vez mais alçado à categoria de símbolo romântico da nacionalidade
[...]. A contrastar com esta imagem idealizada do índio – via de regra os tupis, cuja população havia praticamente
desaparecido no século XIX – erigiu-se a imagem do botocudo selvagem, alusiva, no caso, ao índio real que
continuava explorado, por vezes trucidado e raramente contemplado pelas políticas públicas do Império.
VAINFAS, Ronaldo. Indigenismo. In: ______ (Org.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002. p. 370-371.
Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI21) Identificar e analisar as políticas oficiais com relação ao indígena durante o Império.

54
41

A Revolução Francesa
explicada à minha neta
Michel Vovelle
Editora Unesp
O trecho a seguir pertence à obra A Revolução Francesa explicada
à minha neta, escrita pelo historiador francês Michel Vovelle.

Revolução Francesa e violência

A Queda da Bastilha no dia 14 de julho de 1789 é tão importante


quanto o Juramento do Jogo da Péla, talvez até mais: [...] a entrada
em cena do povo parisiense constitui o acontecimento mais
importante, e vai caracterizar a Revolução que se inicia – é preciso
que se diga – com a marca da violência, ainda que esta já estivesse
presente antes.
- As coisas não poderiam ter sido feitas de maneira diferente? É muito
triste, e talvez injusto, todas essas mortes quando se queria construir
um mundo mais justo.
- Você toca bem no cerne do problema. Era possível evitar a violência
ou ela era necessária? A tomada da Bastilha nos dá alguns elementos
de resposta: sem essa mobilização, a situação ficaria bloqueada. Fica claro que é a recusa do rei,
apoiado pelo partido da corte e pela oposição daqueles que serão conhecidos como os aristocratas,
que tornou o caminho das reformas impossível. O rei sente-se solidário aos privilegiados; ele diz: “Não
quero me separar do ´meu clero´ e da ´minha nobreza´”.
Por causa disso, durante quatro anos ele vai usar de artimanhas, fingindo aceitar a nova situação,
enquanto a força do movimento revolucionário afirma-se de maneira destemida, endurece, e a
escalada começa.
Não gostamos de sangue, e temos razão de não gostar. Nossos antepassados também não gostavam:
muitos ficaram horrorizados com o derramamento de sangue; por exemplo, quando foram
assassinados, naqueles dias, o intendente da região de Paris (para simplificar, uma espécie de
prefeito), Bertier de Sauvigny, e seu sogro. Babeuf, um jovem pobre que se tornaria mais tarde uma
pessoa conhecida, escreve nessa ocasião a sua mulher: “Como essa alegria toda me incomodava... Os
senhores tornaram-nos tão cruéis quanto eles...”.
VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa explicada à minha neta. São Paulo: Unesp, 2007. p. 32-
38.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI04) Identificar e relacionar os processos da Revolução Francesa e seus desdobramentos na
Europa e no mundo.

55
42
A Idade Média: nascimento
do ocidente

Hilário Franco Júnior


Editora Brasiliense
O trecho a seguir pertence à obra A Idade Média, nascimento do
Ocidente, escrita pelo historiador Hilário Franco Júnior.

Senhorio e feudo

Não se deve [...] confundir senhorio e feudo, ainda que frequentemente


tenham estado juntos. O primeiro era a base econômica do segundo,
este a manifestação político-militar daquele. O senhorio era um território
que dava a seu detentor poderes econômicos (senhorio fundiário) ou
jurídico-fiscais (senhorio banal), muitas vezes ambos ao mesmo tempo.
O feudo era uma cessão de direitos, geralmente mas não
necessariamente sobre um senhorio. Havia regiões feudalizadas sem ser
senhorializadas. De fato, “das rendas do senhorio vive toda a sociedade
feudal, do não livre ao senhor feudal. O que este retira em serviços e em
dinheiro de seu vassalo, ele próprio senhor rural, não se concebia sem o
suporte da terra, a qual é, frequentemente, a uma só vez senhorio rural
e feudo” [...].
[...]
De forma geral, que rendimentos o senhor extraía de seus camponeses? No senhorio fundiário,
principalmente a corveia, trabalho gratuito, geralmente três dias por semana, fosse para o cultivo da reserva,
fosse para serviços de construção, manutenção, transporte etc. Havia também [...] o censo e a mão-morta, e
ainda, em certos tipos de tenência camponesa, um percentual da produção. No senhorio banal, as chamadas
banalidades: taxas pelo uso do moinho, do lagar e do forno, monopólios do senhor; albergagem ou requisição
de alojamento; taxa pelo uso dos bosques, anteriormente direito camponês; multas e taxas judiciárias
diversas; talha, surgida em fins do século XI, pela qual o senhor em troca de proteção militar cobrava quando
e quanto necessitasse, arbitrariedade abolida na segunda metade do século XII, com a regulamentação de
sua periodicidade e montante.
É importante, como Georges Duby chamou a atenção, não darmos um sentido modernizante a tais
prestações, que muito pouco tinham a ver com “impostos”. Elas faziam parte, isso sim, de uma mentalidade
que colocava muito da atividade econômica no plano mágico, do “tirar, oferecer e consagrar” [...]. Ou seja, os
senhores apareciam “em primeiro lugar como dispensadores de fecundidade, o que legitimava suas
exigências e fazia convergir para sua casa todo um sistema de oferendas ritualizadas”.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 37-
39.
Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI16) Caracterizar e comparar as dinâmicas de abastecimento e as formas de organização do
trabalho e da vida social em diferentes sociedades e períodos, com destaque para as relações entre
senhores e servos.

56
43

A mulher na Idade
Média
José Rivair Macedo
Editora Contexto
O trecho a seguir foi escrito por José Rivair Macedo e pertence à obra A
mulher na Idade Média.

Uma poetisa atuante: Cristina de Pisan


A mais célebre poetisa medieval viveu dois séculos depois das [trovadoras]. Era
italiana de origem, mas francesa por adoção. Nasceu em 1364 na cidade de
Veneza. O pai, Thomaz Pisan, era astrônomo famoso e como tal foi convidado a
participar da corte refinada de Carlos V, o rei sábio. Nessa corte, Cristina viveu
boa parte da infância. Nas bibliotecas do rei colheu os primeiros frutos do saber. Aos quinze anos, como era
costumeiro então, o pai destinou-lhe um marido, um cavaleiro da corte chamado Estêvão Castel, notário e secretário
do rei.
O casamento durou dez anos. Três filhos nasceram. [...] Uma reviravolta no destino de Cristina aconteceu no dia 7
de novembro de 1389. Estêvão morreu, atacado por violenta febre, comum naquela época de inúmeros surtos de
epidemias. Como muitas mulheres ela ficou só, viúva aos vinte e cinco anos, com três crianças para criar e educar,
com a casa para manter e dívidas para quitar. Pouco depois, para agravar ainda mais sua situação o pai faleceu.
Ela perdeu até mesmo a proteção real que gozava até então. Teve início uma fase difícil.
Obrigava a tomar a dianteira no governo da família, foi, como tantas outras viúvas, vítima de injustiças. Nem mesmo
certos direitos devidos ao marido lhe foram pagos. Foi obrigada, em 1390, a mover um processo contra o tribunal
de contas do reino. Treze anos depois teve ganho de causa. Mas precisou esperar até 1411 para receber a soma
devida. Morto subitamente, o marido não teve tempo para informá-la dos seus negócios. Despreparada, a jovem
viúva tornou-se presa fácil para vigaristas de toda espécie. Era assediada, de um lado, por credores vorazes. De
outro, topava com a resistência dos devedores relapsos. Para sobreviver teve de transformar seu saber em
profissão. Educada, culta, conhecedora do mundo das letras, fez das palavras seu ganha-pão, da poesia o seu
sustento.
Tornou-se brilhante poetisa. Compôs inúmeras baladas na mais pura tradição da lírica cortês, formando uma obra
poética que a igualou aos principais poetas do tempo. Abordou todos os temas que o amor pode inspirar. Deu
preferência, contudo, às sensações provocadas pela ausência do amado: a inquietude, o desespero, o amargor.
Muito da sua existência ela transferiu para os versos:
Tenho a impressão que há cem anos
meu amigo me deixou
Faz quinze dias que partiu:
me parece que fez cem anos.
Assim, o tempo me aborrece
Porque, desde que ele se foi
me parece que faz cem anos.
MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1990. p. 82-83.

Habilidade da BNCC
6ª ano
(EF06HI19) Descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas sociedades medievais.
57
44
Renascimentos: um ou muitos?

Jack Goody
Editora Unesp
O trecho a seguir pertence ao livro Renascimentos: um ou muitos?, escrito por
Jack Goody – antropólogo britânico e professor da Universidade de Cambridge.

As renascenças foram apenas europeias?

O Renascimento italiano foi o único? Historicamente, para a Europa, é claro


que foi. Mas sociologicamente? Há duas importantes características num
renascimento ou renascimentos: um olhar para o passado e uma florescência. Da
perspectiva transcultural, esses fenômenos não são necessariamente coincidentes.
[...]
Do ponto de vista histórico, o Renascimento italiano foi o único.
Sociologicamente, no entanto, devemos vê-lo não apenas como uma experiência
europeia, mas como a experiência de uma classe maior de eventos que ocorre em todas as culturas letradas e
envolve tanto um olhar retrospectivo quanto um salto para frente, nem sempre combinados em um único evento.
Períodos de florescência não foram raros nas sociedades letradas (e são conhecidos com frequência como “eras
douradas”), mas a velocidade da mudança cultural é afetada, é claro, pelo modo de comunicação; o ir em frente
nem sempre – mas com frequência – envolve um olhar retrospectivo. Mesmo na Europa, o Renascimento italiano
não foi o primeiro desses períodos. Se o humanista europeu afirma ter “reformado o mundo” olhando para a
literatura clássica que havia sido desprezada, o que isso nos diz a respeito do Renascimento ou do mundo? O
Renascimento não foi único ou humanista no sentido de uma revivificação da literatura antiga.
Isso aconteceu em outros lugares e em função do letramento. [...]
Usar o termo “Renascimento” ou “renascença” no Ocidente implica conceber a história europeia como um
processo cultural mais ou menos contínuo desde os tempos antigos, antecedido de um período de eclipse, uma
espécie de depressão histórica, durante o qual a cultura perdeu o seu rumo natural, mas do qual se recuperou
após uma transição (para o “capitalismo”), fluindo mais uma vez por onde se esperava, com mais sabedoria e
vigor renovado. As consequências dessa visão – e não saberíamos enfatizar o suficiente como essa interpretação
poderosa está entranhada no próprio uso do “Renascimento” capitalizado – são várias. Em primeiro lugar, ela
assegura o monopólio europeu sobre as realizações da Antiguidade. [...] Embora a Europa necessitasse reviver
o conhecimento antigo (porque desapareceu em grande parte ou permaneceu oculto durante a Idade Média),
este sobreviveu em traduções árabes fora do continente. Mas a Europa reivindicava a herança da Antiguidade
grega e romana, que, por essa maneira de ver, ela havia emprestado aos outros, digamos, para mantê-la segura
durante a Idade Média. Às vezes essa crença é abraçada sem rodeios, ou apenas permanece implícita na
terminologia que usamos, mas, de todo modo, desconsidera o fato de que, no que se refere à Antiguidade grega,
o norte da Europa como o conhecemos hoje mal existia – seu mundo era sobretudo mediterrâneo e estendia-se
até o Oriente Médio e a Pérsia. Mas, além de herdeira de seus triunfos e candidata a sua revitalização, a
historiografia europeia criou o mundo antigo como seu ancestral único e dominante. [...]
Renascimentos de culturas remontam a tempos muitos antigos que a história registrada. [...]
58
Em tempos mais recentes, encontramos outras renascenças ou florescências nas sociedades letradas da
Eurásia. Não examinamos em detalhes as histórias do Japão ou da Pérsia, ambas sociedades letradas, apesar
de as termos mencionado, mas na China, na Índia e no Islã ocorreram períodos de florescência similares e o
termo Renascimento foi usado algumas vezes.
GOODY, Jack. Renascimentos: um ou muitos? São Paulo: Unesp, 2011. p. 283-288.

Habilidades da BNCC
7º ano
(EF07HI01) Explicar o significado de “modernidade” e suas lógicas de inclusão e exclusão, com base em uma concepção
europeia.
(EF07HI04) Identificar as principais características dos Humanismos e dos Renascimentos e analisar seus significados.

59
45

História da África

José Rivair Macedo


Editora Contexto
O trecho a seguir faz parte do livro História da África. A obra foi
escrita pelo acadêmico José Rivair Macedo, doutor em História
Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de História
da África na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O processo de sedentarização e as primeiras civilizações africanas

[...] Com a adoção da agricultura e da pecuária, a natureza passa a


ser transformada, com o cultivo de determinados alimentos e a
criação contínua de certos animais que poderiam servir de fonte de
alimento, de energia e de transporte. Os grupos tendem a se fixar
em determinados territórios, a viver em aldeias, segundo uma
estrutura social bem mais ampla e complexa, e com aparecimento
de grupos não vinculados diretamente ao trabalho, entre os quais os guerreiros e os sacerdotes.
Tais inovações técnicas, econômicas e sociais abririam caminho para as transformações subsequentes,
ligadas à descoberta da fabricação da cerâmica e da metalurgia.
[...]
Entre 12.000 e 8.000 a.C., a superfície do que depois viria a ser o Saara era povoada por comunidades
neolíticas que se estendiam até os vales do rio Níger e do Nilo. Nos sítios arqueológicos desses locais
foram encontrados artefatos de pedra polida, indícios de criação de animais bovinos, equinos e caprinos,
e de cultivo agrícola.
[...]
Tudo leva a crer que por volta de 7.000 a.C. já se plantasse o sorgo e um tipo de milho cuja denominação
científica é pennisetum.
A metalurgia do cobre já era conhecida em 3.300 a.C. onde posteriormente floresceu a cidade de Takada,
ao sul da Tunísia. Todavia, os artefatos de metal se difundiram no decurso do primeiro milênio a.C.
através das comunidades do Níger e do Nilo, sendo identificados desde o Egito, Meroé e Cartago por
volta do século VI a.C., e na Nigéria no século IV a.C. A fabricação do ferro remonta ao quarto e terceiro
milênio, e a descoberta de antigos fornos comprovam a existência da produção do ferro em data muito
recuada.
Tais domínios técnicos explicam o florescimento das primeiras civilizações africanas. Evidências
materiais nesse sentido foram encontradas em escavações arqueológicas no ano de 1942 feitas no
Planalto de Jos, na atual República da Nigéria. As cabeças e bustos em terracota revelam estilo
sofisticado e domínio técnico excepcional, antecipando em vários séculos o brilhantismo da estatuária
iorubá de Ifé e do Benin nos séculos XIII e XVI-XVII.

60
Essas criações da civilização de Mok são os testemunhos mais recuados da autonomia e originalidade
das civilizações da África negra, que, como se vê, são o resultado de um legado milenar das
comunidades neolíticas.
Muito antes, no decorrer do quarto milênio a.C., devido ao processo de desertificação do Saara, o
empobrecimento da vegetação forçou grupos humanos e animais a procurar subsistência em locais que
oferecessem melhores condições de subsistência.
Por volta de 3.500, a região de Tichitt-Walata atraía comunidades neolíticas devido às suas fontes de
água. Foi então que o Nilo ganhou o prodigioso valor econômico que conserva até hoje, atraindo as
populações que dariam origem ao Egito, a mais antiga e a mais importante civilização africana. [...]
MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2015. p. 18-20.

Habilidade da BNCC
(EF07HI03) Identificar aspectos e processos específicos das sociedades africanas e americanas antes
da chegada dos europeus, com destaque para as formas de organização social e o desenvolvimento de
saberes e técnicas.

61
46

História medieval

Marcelo Cândido da Silva


Editora Contexto
O trecho a seguir pertence à obra História Medieval, escrita por Marcelo Cândido
da Silva – professor titular da Universidade de São Paulo (USP).

Igreja e sociedade
A principal característica do período medieval é a identificação da Igreja com o
conjunto da sociedade. Isso ocorreu antes mesmo que ela se afirmasse como
instituição hierárquica centralizada (a chamada monarquia papal, que se
constituiu a partir do final do século XI) e foi o resultado da cristianização das
populações da bacia do Mediterrâneo e, em seguida, da Germânia, da Gália, das
ilhas Britânicas e da Escandinávia. Por meio de suas normas, seus dogmas e
seus ritos, a Igreja forjou alguns dos principais traços das sociedades europeias
a partir do século IV. É ocaso da divisão do espaço em paróquias e em dioceses,
da organização do tempo ritmado pelas festas litúrgicas, da crença no poder das
relíquias e nos milagres dos santos, dos ritos que marcavam as diversas etapas
da vida e da morte de um indivíduo (batismo, casamento, extrema-unção) ou, ainda, dos ritos e das cerimônias que
ajudavam a assegurar a legitimidade das autoridades políticas (juramentos sobre relíquias, unções e sagrações reais),
para citar apenas alguns exemplos.
Um dos melhores indícios da abrangência da Igreja no período medieval é o fato de que a exclusão de seu interior
equivalia, para aqueles que a sofriam, a uma exclusão da vida social. Isso ocorria através da excomunhão ou de sua
forma mais extrema, utilizada contra os heréticos e contra aqueles que cometiam faltas graves: o anátema, uma
expulsão acompanhada de maldição. [...] Se a excomunhão era uma forma de exclusão, o batismo marcava a inclusão
– voluntária ou involuntária – dos indivíduos à sociedade cristã, criando relações de parentesco artificiais entre os
batizados e seus padrinhos e, também, entre os batizados e a comunidade, ou seja, a própria Igreja. O batismo era,
grosso modo, a condição para que os indivíduos pudessem desfrutar de direitos, tais como a vida em comunidade, a
participação em cerimônias públicas, o acesso a funções administrativas etc. [...]

A Igreja medieval
O termo “ecclesia” (Igreja) aparece em vários textos no Ocidente, a partir do século IX, para designar a comunidade de
todos os cristãos. Isso mostra a emergência, à época carolíngia, da ideia de que o conjunto de adeptos da fé cristã,
quer vivessem na Irlanda, na Itália, na península ibérica ou na Germânia, constituíam um mesmo grupo, a Cristandade.
Os cristãos do Oriente também faziam parte dessa comunidade, muito embora as diferenças doutrinais e políticas,
acirradas com o iconoclasmo (a condenação, por parte da Igreja do Oriente, da adoração de imagens) e as cruzadas,
tenham provocado uma cisão definitiva entre a Cristandade Ocidental e a Cristandade Oriental. Ambas se
desenvolveram de modo distinto ao longo do período medieval, a começar pelo fato de que o chefe da Igreja do Oriente,
o patriarca de Constantinopla, jamais reivindicou uma supremacia espiritual e temporal sobre a Cristandade, ao contrário
do bispo de Roma. [...]
SILVA, Marcelo Cândido da. História medieval. São Paulo: Contexto, 2019. p. 81-84.

Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI18) Analisar o papel da religião cristã na cultura e nos modos de organização social no período medieval.
62
47

Ensino de História

Kátia Maria Abud, André Chaves de Melo Silva e Ronaldo Cardoso Alves
Editora Cengage Learning
O excerto a seguir pertence à importante obra Ensino de História, dos
pesquisadores Kátia Maria Abud, André Chaves de Melo Silva e Ronaldo
Cardoso Alves.

Documentos escritos e o ensino de História

• 1. Contextualização histórica: o documento é fruto de uma época, de um lugar. Cabe ao professor


apresentar e discutir com seus alunos as bases políticas, socioeconômicas e culturais do período e
sociedade estudados. Com esse propósito, algumas questões devem ser “feitas ao documento”, referentes
a:
o Autoria (quem escreveu?);
o Datação (quando foi escrito?);
o Localização geográfica (onde foi escrito?);
o Destinatário (a quem se destinava?).

• 2. Objetivo: os alunos poderão discutir a intencionalidade, a finalidade do documento:


o É possível determinar a qual grupo socioeconômico e/ou político o autor pertence?
o Trata-se de documento de cunho pessoal ou institucional (de órgãos governamentais, empresas privadas,
veículos de imprensa, entre outros)?
o a quais pessoas ou grupos sociais e/ou políticos o documento se refere?

• 3. Aspectos materiais: os materiais utilizados para a complicação de um documento remetem a uma


época. Assim, algumas questões possibilitam que os alunos levantem hipóteses a respeito do período da
escrita. Essas questões podem se referir, por exemplo, a:
o Produção do documento; foi feito manualmente (à caneta, a lápis etc.) ou utilizou algum tipo de máquina
(computador, máquina de escrever);
o Tipo de suporte da escrita (papel, pergaminho, papiro etc.);
o Medidas (tamanho do documento: largura x comprimento).

• 4. Descrição do documento: essa etapa tem como objetivo extrair informações do texto que poderão
indicar com qual finalidade foi compilado. Assim, várias questões devem ser feitas em relação ao
documento:
o Qual é o assunto central?
o Quais frases ou palavras sintetizam sua intenção?
o Quais necessidades ou possibilidades de solução de um problema são apresentadas ao leitor?
o Ocorre defesa ou crítica a alguém (pessoa, grupo social, instituição)?

63
o Com quais argumentos? Quais as razões utilizadas para construir essa opção? Em que está embasada tal
argumentação?
[...]

• 5. Interpretação: após a execução das etapas anteriores, os alunos perceberão que nem sempre é possível
extrair todos os dados do documento para que esse possa ser interpretado na sua totalidade. Dessa forma,
hipóteses podem ser levantadas e discutida em sala de aula. Cruzamento de informações entre diferentes
fontes de um mesmo período pesquisado pode auxiliar um aluno ou todo o grupo a chegar a uma
interpretação mais consistente. É importante levar em consideração que o documento não foi criado com a
intenção de deixar o material de pesquisa para os historiadores, mas para satisfazer as necessidades da
época. Outro fator relevante é que usamos “lentes diferentes” para realizar a interpretação – condicionantes
políticos, sociais, econômicos e culturais influenciam nos parâmetros que norteiam nossa análise (nem o
documento nem o historiador são neutros, o que se aplica também ao professor e a seus alunos).

ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo Cardoso. Ensino de História. São
Paulo: Cengage Learning, 2013. p. 16-19.

64
48

Histórias da gente brasileira:


volume 2: Império
Mary Del Priore
Editora LeYa
O trecho a seguir pertence à obra Histórias da gente brasileira.
Volume 2: Império, da historiadora Mary del Priore.

Minas Gerais e a produção para o mercado


interno no século XIX

Em Minas Gerais, foi a vez do rio Paraibuna regar fazendas e plantações


de pequeno e médio portes, ocupadas com lavouras de subsistência e gente que fugia da crise da
mineração. E foi no século XIX que surgiram as fazendas de café. O cônsul inglês Richard Burton
testemunhou que a “praga das grandes plantações não pesava tanto sobre a terra”. Porém, alargando-
se o vale, cresciam as grandes propriedades, rio acima. Em Juiz de Fora, ou povoado de Santo Antônio
de Paraibuna – seu antigo nome –, destacavam-se palacetes e chalés, além da “frescura e pureza do
ar”.
Na região de Barcelona, o solo era considerado frio para o plantio de cana e café. Mas o arroz e o milho
se davam bem. A partir daí, ranchos se multiplicavam, oferecendo terrenos para secar grãos. Legumes
e tabaco também prosperavam. O barulho monótono de monjolos ou moinhos d’água enchiam os ouvidos
de quem passasse, proclamando o atraso da agricultura. A lavoura mineira correspondia, então, a 46,8%
dos produtos consumidos pelo mercado interno.
De Barbacena a Bom Jesus de Matosinhos, elevadas planícies convidavam à criação de gado e ao
plantio de cereais. Frutas? Inúmeras: peras, maçãs, ameixas, castanhas, pêssegos. A uva dava duas
vindimas: pobre, em julho, e abundante, em dezembro. Da colheita, fazia-se bom vinagre e até um
“Borgonha de qualidade inferior”. Ao norte do município de São João del Rei crescia a azeitona-da-áfrica
– cujas amêndoas oleosas, depois de processadas eram usadas na culinária –, bem como a baunilha
selvagem, capaz de perfumar os ares por muitos dias.
Pela estrada que ligava a capital da província do Rio de Janeiro à de Minas Gerais, também escoavam
varas de porcos e boiadas. Só porcos, toucinho e carne salgada correspondiam a 27,7% das exportações
da província, em meados do século XIX. A saborosa carne dos porcos, roliços e engordados com inhame
e cará, descia ao litoral, em lombo de burro. Homens cobertos por chapéus de abas estreitas [...]
conduziam os animais do Rio das Mortes para os mercados da corte.
Do oeste da província, na região do Rio Grande, vinham as grandes manadas de bois. Ali, excelentes
pastagens convidam à multiplicação dos rebanhos. Criadores locais chegavam a possuir 5 mil cabeças.
De quase 10 mil fazendas estudadas pelo historiador João Fragoso, 22,5% eram de pecuária. Aos
cuidados de escravos, o gado merecia atenções especiais. As pastagens eram mantidas verdinhas
graças às queimadas. Na época da seca, com um bambu em chamas e caminhando a favor do vento,
bastava um homem para pôr fogo no pasto. Esse era dividido por pastagens: das vacas leiteiras, dos
bezerros, das novilhas e dos touros. Junto com a do Rio Grande, a comarca de São João del Rei era a
maior produtora de queijo da região. Ali, também, se fabricava carne-seca e de sol.

65
Mas não só. Além do porco e dos produtos derivados do leite, na região havia muitos carneiros. Eles
cresciam livremente: nem tinham cães pastores a protegê-los. Ao longo do rio, restos de velhos garimpos
lembravam tempos passados. O médico e botânico inglês, George Gardner, que percorreu a região no
final dos anos de 1830, considerava a província de Minas Gerais não só das maiores, como das mais
ricas do Brasil em recursos naturais.
DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira. Volume 2: Império. São Paulo: LeYa, 2016. p. 67-
68.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI12) Caracterizar a organização política e social no Brasil desde a chegada da Corte
portuguesa, em 1808, até 1822 e seus desdobramentos para a história política brasileira.

66
49
Cinco visões sobre os 130 anos da abolição

Beatriz Maia
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/05/14/cinco-visoes-sobre-os-130-anos-da-abolicao
O trecho a seguir pertence à publicação do Jornal da Unicamp e foi escrito pela jornalista Beatriz Maia em
entrevista com alguns historiadores a respeito dos 130 anos da abolição da escravidão no Brasil.
Sancionada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea – oficialmente Lei Imperial 3.353 –, aboliu
a escravidão depois de mais de três séculos de trabalho forçado no Brasil. Em maio de 2018, marco dos 130
anos da assinatura do documento, o Jornal da Unicamp entrevistou [...] historiadores que realizaram suas
pesquisas de doutorado junto ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) da Universidade.
[...]

Protagonismo negro
Para a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da Universidade de Brasília (UnB), o 13 de maio
tem desencadeado intensas disputas de narrativas ao longo do tempo. Se, por um lado, o fim da legalidade da
escravidão é um marco importante, por outro, a fragilidade crônica da cidadania para pessoas negras, já bem
antes da abolição, faz com que as reflexões em torno da data não possam ser feitas em tom de simples
comemorações. “O preconceito de cor, [...] o racismo, têm figurado como elemento estruturante da sociabilidade
brasileira e da formação de suas instituições”, defende.
A historiadora argumenta que o Brasil é um país em que a experiência de nacionalidade foi encaminhada
mediante esforços sucessivos de subalternização e da negação das possibilidades de acesso aos direitos de
mulheres e homens negros. Se por muito tempo se tentou negar as heranças nefastas do passado escravista
de nossa sociedade, vivemos um momento da afirmação na produção acadêmica do protagonismo negro na
luta pela liberdade, em contraponto à versão hegemonizada do 13 de maio como concessão imperial. “Uma
conquista importante tem sido alcançada mediante os resultados de pesquisas que estabelecem diálogos com
o passado em outros termos. Entre essas novas possibilidades, destacam-se os estudos sobre liberdade e pós-
abolição”, afirma.
Ana Flávia retoma a participação importante de abolicionistas negros nas discussões do final do século XIX,
que formularam projetos para o fim da escravidão e se posicionaram sobre as possibilidades de universalização
da cidadania para todos os brasileiros. Figuras como Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José
do Patrocínio, Vicente de Souza, André Rebouças, entre tantos outros, refletiram a respeito das experiências
da racialização e do racismo, e questionaram a viabilidade e a legitimidade de projetos de nação formulados
pelas elites nacionais. “Essas informações são bastante relevantes no atual cenário, sobretudo para que
possamos questionar a ideia de invisibilidade e ausência de homens e mulheres negras nas lutas políticas e
institucionalizadas pelo fim da escravidão e outras agendas da cidadania no Brasil. O fato de projetos
conservadores terem prevalecido sobre outros não pode ser entendido como a inexistência de outras
possibilidades e dos sujeitos que a elas se dedicaram”, completa.
[...]

A capilaridade do racismo
Professora do departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Joseli Maria Nunes
Mendonça defende que a data deva ser sempre comemorada. “O fato de a escravidão não ser mais uma
instituição legalmente aceita em nossa sociedade não é pouca coisa”, afirma. Para ela, ainda que a abolição
67
tenha resultado de muitas lutas travadas também pela própria população escravizada, o processo não se
encerrou com a sanção da lei.
A professora destaca o combate às situações de trabalho análogas à escravidão, ainda bastante frequentes no
país, e ao racismo que, em sua visão, passou a ser o principal instrumento de segregação da população negra,
quando a escravidão deixa de ser a condição pela qual a discriminação se efetiva.
Para a historiadora, as pesquisas historiográficas já mostraram que a liberdade conquistada pelos negros e
negras significou a possibilidade de realizar escolhas básicas para o cidadão: qual trabalho realizar, reivindicar
contrapartidas justas pelo trabalho, recompor famílias separadas pelas transações de venda na escravidão,
frequentar escolas, se organizar por meio de associações, se expressar em locais públicos, dentre outras. No
entanto, as expectativas por autonomia e por direitos foram duramente confrontadas por uma parte da
sociedade, que se beneficiava da ausência de políticas públicas e das medidas repressivas contra a população
negra.
Joseli refuta o argumento das “heranças da escravidão”, e atribui o racismo dos tempos atuais
fundamentalmente às políticas instauradas após a abolição. Para ela, isso se constata facilmente na força da
oposição que as políticas afirmativas de reparação étnico-raciais recebem dos grupos que se pretendem
hegemônicos. “Esse processo histórico instituiu o racismo como uma praga que tem em nossa sociedade uma
capilaridade inimaginável. Ele é resultado de injustiças reiteradas caprichosa e perniciosamente nesses 130
anos que nos distanciam da abolição”, arremata.
MAIA, Beatriz. Cinco visões sobre os 130 anos da abolição. Jornal da Unicamp, 14 maio 2018. Disponível
em: . Acesso em: 25 jul. 2019.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI20) Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da
escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas.

68
50

Uma história do negro no Brasil

Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho


Editora Centro de Estudos Afro-Orientais e Editora Fundação
Cultural Palmares
O excerto a seguir pertence à obra Uma história do negro
no Brasil e foi escrito pelos historiadores Wlamyra R. de
Albuquerque e Walter Fraga Filho.

O movimento negro no Brasil


contemporâneo

[...] Foi também na década de 1970 que os militantes negros passaram a conceber uma melhor
articulação de suas ações numa entidade nacional. Com tal fim, surgiu a 7 de julho de 1978 o Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial. Naquele dia, um ato público reuniu centenas de pessoas
em frente ao Teatro Municipal de São Paulo para denunciar a discriminação sofrida por quatro atletas
negros nas dependências do Clube Regatas Tietê, e a tortura e assassinato numa delegacia de outro
jovem negro, Robson Silveira da Luz. A manifestação popular teve grande impacto nos rumos da política
negra. [...]
A formação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que depois passou a se
intitular apenas Movimento Negro Unificado (MNU), contestava a ideia de que se vivia uma democracia
racial brasileira [...].
A militância negra brasileira foi fortemente influenciada pela trajetória das organizações negras norte-
americanas em defesa dos direitos civis e especialmente do movimento Black Power.
Um destaque deve ser dado ao movimento de mulheres negras, que surgiu da percepção de que existem
especificidades na forma como mulheres e homens sofrem a discriminação racial. Lélia Gonzalez, uma
das mais importantes ativistas negras nas décadas de 1970 e 80, foi uma das primeiras a chamar a
atenção para a importância da organização das mulheres negras. Em 1988, foi criado em São Paulo o
Geledés, uma organização política que tem como propósito o combate ao racismo e a valorização das
mulheres negras. [...]
A mobilização das comunidades remanescentes de quilombos é uma das principais novidades do
movimento negro contemporâneo. E aqui o sentido de quilombo engloba não apenas as comunidades
formadas originalmente por escravos fugitivos, mas também as que surgiram da ocupação das terras de
antigas fazendas escravistas, de terras devolutas e das doações de terras feitas a ex-escravos. A grande
vitória do movimento foi inserir na Constituição Federal o Artigo 68 das Disposições Transitórias, que diz:
“aos remanescentes das comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
Assim, os negros vêm se mobilizando em várias frentes nas últimas décadas. Pressionados por essa
mobilização, alguns partidos políticos (de esquerda, e mais tarde mesmo os de direita), segmentos da
Igreja Católica e sindicatos começaram a rever suas convicções sobre o tema racial. [...]

69
Enfim, o esforço dos grupos do movimento negro em todo país promoveu mudanças importantes na
mentalidade dos brasileiros, sobretudo dos negros. Uma das grandes conquistas do movimento negro
foi conscientizar uma grande parte da sociedade brasileira em relação à questão racial e convencer o
governo a abandonar sua passividade conivente diante das desigualdades raciais.
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA FILHO, Water. Uma história do negro no Brasil. Salvador:
Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 287-294.

Habilidades da BNCC
9º ano
(EF09HI03) Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e
avaliar os seus resultados.
(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política
e social do Brasil.

70
51
O tempo da Nova República: da
transição democrática à crise
política de 2016: Quinta República
(1985-2016)

Jorge ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (Org.)


Editora Civilização Brasileira
O texto a seguir foi escrito por Américo Freire, professor associado do Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação
Getúlio Vargas – RJ (CPDOC-FGV-RJ), e por Alessandra Carvalho, professora
do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAP-UFRJ) e do programa de pós-
graduação em ensino de História da UFRJ.

A campanha eleitoral de 1989

Segundo os autores do texto, o contexto no qual a campanha presidencial se desenrolou possuía


especificidades:
[...] A primeira delas se referiu à dimensão e às características do eleitorado brasileiro. Em 1989, os eleitores
atingiram a cifra de 82 milhões de pessoas, que correspondiam a 90% da população adulta do país;
comparados aos cerca de 15 milhões que possuíam o direito de voto em 1960, data da última eleição
presidencial, os números de 1989 expressavam de maneira inequívoca o processo de inclusão na participação
política. Esses eleitores, majoritariamente, viviam nos centros urbanos, eram jovens e de baixa renda. Suas
primeiras experiências com votos e partidos se deram, sobretudo, sob o sistema bipartidário existente entre
1965 e 1979; ou seja, nunca tinham ido às urnas escolher presidente. De acordo com pesquisas realizadas à
época, poucos se identificavam com os partidos existentes em 1989, o que pode ser resultado das profundas
mudanças que alteraram continuamente o sistema partidário nos dez anos anteriores ao pleito [...].
Um segundo aspecto desse contexto remetia à crise econômica e política experimentada pela sociedade
brasileira em fins da década de 1980. A inflação alcançava altos patamares, mesmo após três planos
econômicos implementados pelo governo Sarney, que sofreu enorme desgaste. Ao mesmo tempo, denúncias
constantes de corrupção praticada por membros do governo somadas às críticas à ineficiência dos serviços
públicos estatais resultaram em grande insatisfação social e acentuaram uma visão negativa acerca da ação
dos políticos, dos partidos e das próprias instituições representativas [...]. Portanto, no cerne dos projetos e
das campanhas dos candidatos em 1989 deveriam estar propostas de solução para a crise econômica e de
reformas do Estado que o capacitassem a atender as demandas da população.
Por fim, conectando de maneira fundamental os dois aspectos acima descritos, estava a centralidade da mídia
e, principalmente, da televisão no desenrolar da campanha eleitoral. Alcançando, pela primeira vez em uma
disputa presidencial, amplas partes do território brasileiro – cerca de 94% das residências possuíam TV –, as
emissoras de rádio e televisão se transformaram em um espaço fundamental de informação e formação
políticas. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), entidade
privada especializada em pesquisas de opinião, mostrou que parte relevante dos eleitores em 1989 indicava

71
como suas principais fontes de informação sobre a política as conversas com os familiares, os programas de
televisão e o HPEG [...].
Em 1989, havia no Brasil cinco grandes redes nacionais de TV – Rede Globo, cuja audiência quase
monopolística girava em torno de 60% a 80%, Rede Bandeirantes, TVE, Rede Manchete e SBT. Todas se
engajaram intensamente nas eleições, dedicando um tempo considerável de seus programas jornalísticos à
disputa presidencial. Também promoveram seguidos debates com os candidatos, dos quais participaram os
dez mais bem colocados nas pesquisas de opinião – com exceção de Fernando Collor, que não aceitou
participar. No segundo turno, Globo, Bandeirantes, Manchete e SBT se uniram para organizar dois debates,
nos dias 3 e 14 de dezembro, com a presença de Fernando Collor e Lula.
Essa centralidade da TV e do rádio na campanha eleitoral impôs novas exigências para os candidatos e os
partidos. O Brasil tornara-se uma das “maiores democracias midiatizadas do mundo” [...], o que significava
que as chances de sucesso eleitoral de um político ligavam-se à sua capacidade de se adaptar e se destacar
na linguagem midiática. Nesse novo cenário, alguns políticos tradicionais, como UIysses Guimarães e
Aureliano Chaves, foram ultrapassados por indivíduos mais jovens e com menos recursos partidários, porém
com maior habilidade diante das câmeras. Por outro lado, era indispensável contratar equipes especializadas
na produção de programas audiovisuais que fossem capazes de fazer o candidato “falar” aos milhões de
eleitores urbanos, jovens e pobres profundamente insatisfeitos com o cenário econômico e político brasileiro.
FREIRE, Américo; CARVALHO, Alessandra. As eleições de 1989 e a democracia brasileira: atores, processos
e prognósticos. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O tempo da Nova
República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018. p. 132-134. (O Brasil Republicano, v. 5).

Habilidade da BNCC
9º ano
(EF09HI33) Analisar as transformações nas relações políticas locais e globais geradas pelo
desenvolvimento das tecnologias digitais de informação e comunicação.

72
52
Brasil, amor à primeira vista! Viagem
ambiental no Brasil do século XVI ao
XXI

Sandra Marcondes
Editora Peirópolis
O trecho a seguir pertence ao livro Brasil, amor à primeira vista! Viagem
ambiental no Brasil do século XVI ao XXI, escrito pela professora Sandra
Amaral Marcondes.

O Vale do Paraíba antes da plantação do café

Foi na região do Vale do Paraíba que o café encontrou seu habitat, por causa das terras virgens e clima
favorável para seu cultivo. Foi o local onde se reuniram as condições para a primeira grande expansão
comercial do café. Em 1830, a cultura do café era a principal atividade dessa região. Em 1859, a província do
Rio de Janeiro era responsável por 78,4% da produção brasileira, seguida por São Paulo, com 12,9%, e Minas,
com 7,8%. A partir de 1880, São Paulo tornou-se o maior produtos brasileiro de café.
O vale, cuja paisagem transformou-se por tantos cafezais, era coberto por extensas intricadas matas. As águas
do Rio Paraíba eram puras e a vegetação nas morrarias, espessas e selvagem. Até a penetração do café, a
região permaneceu intocada. A floresta, com todo o seu mistério, o colorido e beleza, fascinou os viajantes do
século XIX.
[...]

A ocupação das terras para a plantação do café


A ocupação das terras para a plantação do café no Brasil, infelizmente, seguir a forma “tradicional” do passado,
com significativas derrubadas das matas e posterior queima da madeira. [...]
O cultivo era feito com o emprego de técnicas bastante simples, do solo tudo o que se pudesse até a exaustão,
mesmo porque, após seu esgotamento por falta de cuidados, o cultivo era estendido por agricultura de
alimentos.
Os instrumentos básicos de trabalho da lavoura cafeeira eram a enxada e a foice. O emprego do arado pelos
fazendeiros do café somente iria generalizar-se por volta de1870 nas zonas novas de São Paulo. As tarefas na
lavoura desenvolviam-se da seguinte maneira: derrubava-se a mata, utilizava-se parte da madeira e tocava-se
fogo no resto.
Na opinião do vassourense Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, barão de Pati, em seu livro Memória, muitos
fazendeiros mandavam colocar fogo nas derrubadas “de sangue frio, como se estivessem praticando um ato
heroico”. O sacerdote britânico Walsh, viajando pelo Vale do Paraíba. E, 1829, elogiou o patriotismo dos:
“agricultores empreendedores do distrito de Vassouras que demonstravam [...] aquele espírito progressista, que
nos pareceu estar presente em toda parte do Brasil. As lombas dos morros eram limpas pelo fogo, e a cultura
de produtos alimentícios úteis substituía as árvores da floresta”.
[...]

73
As queimadas, feitas de forma descuidada, espalhavam-se pelas fazendas vizinhas. O agrônomo francês M.
R. Lesé, testemunha do final do século XIX, observou situações em que, para cada hectare que se pretendia
abrir para a lavoura, de cinco a dez eram destruídos pelo fogo descontrolado. A cidade do Rio de Janeiro “ficava
ocupada pelo ‘esfumaçado’, como então se denominava a expansão pelos ventos da fumaça das queimadas.
Em 1840, as plantações das matas cariocas entravam em declínio, pois os cafezais haviam sido plantados nas
“abas íngremes da serra de Tijuca” e a erosão se encarregava de fazer seus estragos e promover decadência.
Após aproximadamente quarenta e cinco anos, o futuro da lavoura fluminense era considerado sombrio por
causa das condições de seus solos escarpados. Não há dúvidas de que uma das causas do declínio da
cafeicultura fluminense (e também da espírito-santense), foi a erosão.
“As enxurradas tropicais despencados morro abaixo, pelas íngremes encostas dos cafezais, procuravam a linha
das covas dos cafeeiros, onde a terra apresentava depressões, deixando as raízes ‘expostas ao sol’. “Rodrigues
Cunha, em Arte da cultura, escreve: “observei um cafezal na encosta do morro depois de uma chuva abundante
e contínua, vereis um triste espetáculo”. [...].
A exuberante floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi sendo substituída pelos extensos plantios, de café. Tal
fato gerou um colapso no sistema de abastecimento de água potável, uma vez que os rios que abasteciam a
cidade, especialmente o Carioca e o Paineiras, perderam a cobertura vegetal que protegia suas nascentes. Por
orientação do Ministério da Agricultura, em 1865, alguns terrenos localizados ao redor das nascentes
começaram a ser desapropriados para que fossem reflorestados. Em 11 de dezembro de 1861, dom Pedro II
aprovou o documento “Instruções Provisórias”, pelo qual mandava efetuar o plantio e a conservação das
florestas da Tijuca e das Palmeiras.
MARCONDES, Sandra. Brasil, amor à primeira vista! Viagem ambiental no Brasil do século XVI ao XXI.
São Paulo: Peirópolis, 2005. p. 83-86.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI15) Identificar e analisar o equilíbrio das forças e os sujeitos envolvidos nas disputas políticas durante
o Primeiro e o Segundo Reinado.

74
53

Dicionário da escravidão e
liberdade: 50 textos críticos

Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Orgs.)


Editora Companhia das Letras
O trecho a seguir foi escrito pelo professor Robert W. Slenes e pertence à
obra Dicionário da escravidão e liberdade, organizada por Lilia Moritz
Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes.

Africanos Centrais

Aproximadamente 51% dos 10,5 milhões de africanos escravizados que chegaram vivos às Américas entre 1501
e o fim do tráfico em 1866 eram da África Central: 47% da parte ocidental dessa região e 4% da parte oriental. A
cifra correspondente para os 4,9 milhões desembarcados no Brasil é 76% respectivamente 70% e 6% das duas
sub-regiões. [...]
Os centro-africanos (mormente jovens adultos, bem mais homens do que mulheres) formaram 74% dos cativos
desembarcados nas Américas nas décadas iniciais do comércio atlântico (1501-1650). A cifra caiu a 43% de
1651 a 1725 e 45% de 1726 a 1825, aumentando para 72% entre 1826 e 1866. [...]
[...] Falavam, quase todos, línguas bantu. Eram descendentes de migrantes que saíram dos Camarões cerca de
5 mil atrás, espalhando-se ao sul e a leste, com o tempo absorvendo a maioria dos povos autóctones esparsos.
Além desse parentesco linguístico, a África Centro-Ocidental é reconhecida na bibliografia especializada como
uma área cultural una: uma região em que as diversidades culturais refletiam adaptações criativas às
contingências históricas, a partir dos mesmos princípios cosmológicos e visões do bem social.
A conclusão fica mais forte se olharmos apenas os povos mais duramente atingidos pelo comércio de escravos:
os do grupo linguístico que inclui kikongo (falado pelos kongo, nos dois lados do baixo rio Zaire) e os da família
de línguas da savana ocidental, área mais ou menos correspondente à atual Angola, que inclui kimbundu e
umbundu (falados pelos umbundu e ovimbundu, respectivamente nas hinterlândias de Luanda e Banguela). Os
dois grupos se originaram numa corrente de expansão migratória e de integração com autóctones que atravessou
a floresta tropical ao sul dos Camarões. Estima-se que tenham divergido de um a língua ancestral comum entre
2 mil e 3 mil anos atrás.
Soma-se a isso a confirmação de que a família de línguas a savana oriental, além da fronteira leste da Angola,
tem a mesma origem: não provém de expansões bantu mais antigas que entraram nessa savana vindas do
nordeste. Enfim, parte significativa dos cativos embarcados pela costa leste (sobretudo dos portos de
Moçambique) falam línguas – e tinham culturas – bem mais próximas historicamente às de outros grupos aqui
mencionados.
SLENES, Robert W. Africanos Centrais. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos
(Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p.
64-66.

Habilidade da BNCC
75
7º ano
(EF07HI16) Analisar os mecanismos e as dinâmicas de comércio de escravizados em suas diferentes fases,
identificando os agentes responsáveis pelo tráfico e as regiões e zonas africanas de procedência dos
escravizados.

76
54
Lilia
Moritz
Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos
críticos
Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Orgs.)
Editora Companhia das Letras
O excerto a seguir foi escrito pelo professor Luis Nicolau Parés e pertence à obra Dicionário da escravidão e liberdade,
organizada por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes.

Africanos Ocidentais
Com a expressão genérica “africanos ocidentais” designam-se aqueles indivíduos originários da região África Ocidental,
cujo litoral se estende do rio Senegal (no atual Senegal) até o cabo Lopez, na linha do equador (no atual Gabão). Na longa
história do tráfico atlântico de escravos para o Brasil, que durou de 1550 a 1850, os cativos trazidos dessa extensa região
constituíram aproximadamente 25% do total desembarcado no país. Os três quartos restantes (75%) vieram da África
Centro-Ocidental (Congo-Angola) e da costa leste (Moçambique). Estudos históricos recentes estimam que chegaram ao
Brasil em torno de 1,2 milhão de africanos ocidentais, entre homens, mulheres e crianças. Contudo, o número real foi bem
maior, pois, além das viagens de navios negreiros não documentadas, houve muitos escravizados, sobretudo no período
do tráfico ilegal, no século XIX, que, para escapar ao controle das autoridades, foram declarados pelos traficantes como
procedentes da África Centro-Ocidental, embora sua real origem fosse acima do equador.
Os “africanos ocidentais” eram originários de sociedades política e culturalmente muito variadas, situadas com frequência
perto do litoral, mas algumas vezes localizadas em terras interioranas a centenas de quilômetros do mar. Trazidos em
caravanas através de longas rotas, esses cativos terminavam embarcados em diferentes locais. A primeira área que tive
incidência significativa no tráfico destinado ao Brasil foi a Alta Guiné, que do rio Senegal se estende até o cabo Monte (na
atual Libéria). A diversidade cultural dessa região é notória na sua riqueza linguística, destacando-se no litoral, a
heterogênea família das línguas do Atlântico Ocidental (wolof, serer, balanta, fula, temne etc.) e, no interior, a mais
homogênea família das línguas mandê (mandiga, soninke, bambara etc.). Além das ilhas de Cabo Verde, os principais
enclaves do tráfico português nessa zona foram os portos de Cacheu e Bissau (na atual Guiné-Bissau). Calcula-se que os
cativos da Alta Guiné perfizeram quase 10% do total dos “africanos ocidentais” transferidos para o Brasil, em particular para
o Maranhão.
No entanto, o lugar onde o tráfico lusitano mostrou-se mais intenso foi a Costa da Mina, conforme era chamado pelos
portugueses o litoral que se estende a leste do castelo de São Jorge da Mina (no atual Gana) até a faixa do rio Lagos (na
atual Nigéria). Trata-se de uma área linguisticamente mais homogênea que a Alta Guiné e nela se falam as línguas da
família kwa, a despeito de uma língua do extremo ocidental, como o akan, ser ininteligível para os falantes de uma língua
do extremo oriental, como o yorubá. Durante o período do tráfico, as nações europeias (Portugal. Inglaterra, Países Baixos,
França, Alemanha, Dinamarca) instalaram diversas feitorias e fortalezas, ao longo de mais diversos de seiscentos
quilômetros da Costa da Mina. O tráfico destinado ao Brasil se concentrou, porém, na Costa dos Escravos, como era
chamada a parte oriental da Costa da Mina, que ia do rio Volta até o rio Lagos. Nos séculos XVIII e XIX, as principais
potencias hegemônicas nessa região foram os reinos do Daomé (no atual Benim) e o reino de Oyó (na Nigéria). No seu
litoral, diversos portos, com variável fortuna política, estiveram envolvidos no tráfico, sendo os mais ativos, de oeste a leste:
Popo Pequeno, Popo Grande, Uidá, Jaquin, Epe, Porto Novo, Apa, Badagri e Lagos (Onim). Calcula-se que quase três
quartos (74%) dos “africanos ocidentais” desembarcados no Brasil provinham da Costa da Mina.
PARÉS, Luis Nicolau. Africanos Ocidentais. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Dicionário
da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia da Letras, 2018. p. 77-79.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI16) Analisar os mecanismos e as dinâmicas de comércio de escravizados em suas diferentes fases, identificando
os agentes responsáveis pelo tráfico e as regiões e zonas africanas de procedência dos escravizados.
77
55
Brasil, amor à primeira vista! Viagem ambiental no
Brasil do século XVI ao XXI
Sandra Marcondes
Editora Peirópolis
O excerto a seguir pertence à obra Brasil, amor à primeira vista! Viagem ambiental no Brasil do século
XVI ao XXI, escrita pela professora Sandra Marcondes.

Cana de açúcar e desmatamento

Gilberto Freyre, em seu livro Nordeste, escreve: “Sabe-se o que era a mata do Nordeste, antes da monocultura
da cana: um arvoredo ‘tanto e tamanho e tão basto e de tantas plumagens que não podia homem dar conta’.
[...] O canavial desvirginou todo esse mato grosso de modo mais cru pela queimada. A fogo é que foram se
abrindo no mato virgem os claros por onde se estendeu o canavial civilizador, mas ao mesmo tempo
devastador”. “A cultura da cana [...] valorizou o canavial e tornou desprezível a mata”.
Por mais incrível que possa parecer, já no ano de 1542 a vila de São Vicente do Brasil sentia os efeitos
devastadores dos desmatamentos: “Um maremoto submergiu boa parte da vila de São Vicente, engolindo
também algumas das praias que a cercavam. Embora fosse um desastre natural, a tragédia fora acentuada
pela imprevidência dos colonizadores: como eles haviam destruído os mangues e desmatado os morros
vizinhos para plantar cana, São Vicente perdera suas defesas naturais, sendo varrida pelas ondas.”.
De fato, poucos meses mais tarde o porto construído nessa mesma área teve de ser abandonado pelo forte
assoreamento, impedindo os navios de ancorarem nesse, ao que o padre José de Anchieta atribuiu, com muito
acerto, a devastação das matas das elevações próximas ao ancoradouro, o que fazia que as enxurradas de
morro abaixo arrastassem uma grande quantidade de terra.
Em outras palavras: a causa do agravamento desses dois problemas foi a mesma: “’As roças e a derrubada
dos matos, que antes vestiam o solo e o seguravam, permitiram que as enxurradas de verão levassem consigo
muita terra até entulhar o ancoradouro’, escreveu o historiador Francisco de Varnhagen. ‘Esse fenômeno se
repetiria em muitos dos outros de nossos rios e baías, à medida que suas vertentes foram sendo devastadas e
cultivadas’.”
Ao que parece, do século XVI ao XXI, o respeito às encostas e espaços de escoamento das águas não
melhorou muita coisa, como se constata pelas atuais grandes enchentes de São Paulo e Rio de Janeiro, por
exemplo.
MARCONDES, Sandra. Brasil, amor à primeira vista! Viagem ambiental no Brasil do século XVI ao XXI.
São Paulo: Editora Peirópolis, 2005. p. 44-45.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI10) Analisar, com base em documentos históricos, diferentes interpretações sobre as dinâmicas das
sociedades americanas no período colonial.
(EF07HI13) Caracterizar a ação dos europeus e suas lógicas mercantis visando ao domínio no mundo
atlântico.

78
56

A África explicada aos meus filhos


Alberto da Costa e Silva
Editora Agir
O trecho a seguir pertence ao livro A África explicada aos meus filhos,
escrito pelo historiador Alberto da Costa e Silva.

Arte escultórica iorubá e sua influência

[...] Máscaras ou imagens de corpo inteiro são representações ou receptáculos


dos antepassados, dos espíritos da natureza e de outros poderes que regem a
vida. Pertencem ao universo do sagrado. Ou, quando menos, têm motivação e
fins religiosos.
Todas?
Nem todas. Os escultores africanos faziam também peças para o puro prazer
estético. Como uma bela colher, a ter por cabo uma figura feminina. Além disso,
nos grandes reinos, podiam estar a serviço do Estado e do soberano e esculpir para a glória destes. Como,
porém, os reis eram seres sagrados, encarnações de deuses ou intermediários entre as divindades e os homens,
é difícil, muitas vezes, considerar uma escultura de corte como inteiramente despida de função religiosa.
No caso dos chamados bronzes de Benim, por exemplo, tudo indicaria estarmos diante de uma arte de corte,
destinada a celebrar o poder e a grandeza do soberano. As grandes placas que cobriam os pilares das varandas
do palácio do obá nos mostram, em alto-relevo e com uma profusão de pormenores, não só o rei em seu
esplendor, cercado por nobre e serviçais, mas também guerreiros em plena batalha ou cenas da vida diária,
como um caçador a espreitar um passarinho no alto de uma árvore. Boa parte da escultura do Benim, tanto em
ligas de cobre quanto em marfim – e estas são igualmente belas – destinava-se, porém, aos túmulos dos reis
mortos.
Sob o teto de palha que protegia esses túmulos, que eram verdadeiros santuários, viam-se as cabeças em metal
de obás e rainhas-mães a servirem de base para presas de elefante finamente trabalhadas, e, de corpo inteiro,
leopardos, galos, músicos, mercadores, cavaleiros e até mesmo soldados portugueses. Os artistas benimenses
queriam, sem dúvida, descrever o que viam, guardar para sempre, numa escultura em redondo ou numa placa
em relevo, um momento de glória ou a beleza de um instante. Mas o destino da maioria de suas peças eram os
altares nos quais se cultuavam os reis mortos.
[...]
Qual foi a reação dos europeus a essas esculturas?
De surpresa com a alta qualidade técnica da fundição das peças e do trabalho quase em renda da superfície do
metal. Mas poucos, pouquíssimos, foram, num primeiro momento, capazes de perceber a extraordinária beleza
de suas formas, pois era distinta daquela a que estavam acostumados. Já quando, poucos anos depois, eles
tomaram conhecimento da escultura de Ifé, a reação foi de assombro, misturada à descrença de que uma arte
que se assemelhava, em sua pureza de formas, à da antiga Grécia pudesse ter sido produzida por povos que
eram tidos por primitivos ou bárbaros.

79
O próprio Leo Frobenius, o arqueólogo alemão que primeiro revelou ao resto do mundo a arte de Ifé, chegou a
acreditar que estava diante do que sobrara da lendária Atlântida, ao encontrar, em 1910, no bosque sagrado
dedicado ao orixá do oceano, Olocum, várias terracotas e uma cabeça em bronze que pareciam ter saído das
mãos de gregos da Antiguidade.
Mas não foram as esculturas de feições puras e serenas de Ifé, nem as saídas das oficinas do Benin, tampouco
as estátuas em madeira de ancestrais feitas pelos hembas do Congo, que não se afastavam do que
consideramos realismo – isto é, da reprodução do que os olhos veem, ainda que a seguir certos padrões fixos e
beleza –, as que viriam a causar um impacto avassalador sobre a arte de nosso tempo. Foram outras. O que
deslumbrou alguns jovens artistas europeus, no início do século XX – rapazes como Derain, Picasso, Matisse,
Braque, Kirchner, Bracusi e Modigliani –, foram sobretudo as esculturas de ancestrais e as máscaras de danças
rituais daqueles povos africanos sem estados poderosos, de formas tão distantes e até contrárias ao que se fazia
na Europa. Esses jovens pintores e escultores deslumbraram-se com o que vinha da África e tomaram como
exemplo as suas lições.
Foi com admiração e humildade que eles se aproximaram daquelas máscaras de fatura delicadíssima feitas pelos
dans da Costa do Marfim e da Libéria, nas quais as feições se simplificam numa testa abaulada, num nariz fino
e ligeiramente arrebitado, num queixo pontudo e numa boca entreaberta, tendo, no lugar dos olhos, dois buracos
redondos, se a representação for de homem, e duas fendas estreitas, se de mulher.
Foi, porém, com espanto e entusiasmo que eles pararam diante de outras máscaras dans, nas quais a delicadeza
era substituída pela brutalidade das formas. Pois aqueles mesmos artistas dans faziam outros tipos de máscaras,
que nos aprecem ferozes e saídas de pesadelos. Numa delas por exemplo, o rosto alongado termina, sem queixo,
numa boca aberta enorme que, do mesmo modo que a testa abaulada, se projeta para a frente. O nariz quase
não se nota, de tão pequenino, e, em vez de olhos, temos dois cilindros grossos, ocos e salientes.
SILVA, Alberto da Costa e. A África explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2012. p. 73-76.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI03) Identificar aspectos e processos específicos das sociedades africanas e americanas antes da
chegada dos europeus, com destaque para as formas de organização social e o desenvolvimento de saberes e
técnicas.

80
57

História moderna

Paulo Miceli
Editora Contexto
O trecho a seguir pertence à obra História moderna, escrita pelo
historiador e professor Paulo Miceli.

Erasmo de Roterdã e o Elogio da loucura

[...] O Elogio da loucura – escrito em 1509 e publicado em 1511 –


conservou ao longo de praticamente 5 séculos grande valor cultural e
notável qualidade, especialmente pela defesa incondicional que
Erasmo faz da liberdade, como fundamento indispensável para a
educação das pessoas, jamais admitindo a sua subordinação a
qualquer instituição detentora de poder social. Em seu caso e à sua
época, foi contra o domínio que a Igreja mantinha durante séculos
sobre a educação e a cultura que ele dirigiu sua poderosa crítica, e já
que não era possível “escolher os próprios pais ou a pátria, cada um
pode moldar sua personagem pela educação”. [...]
Sem tentar estabelecer qualquer tipo de tipologia sobre a loucura, Erasmo considerava a infância e a juventude
como a melhor fase da existência, já que a vida mais agradável é a que se vive sem nenhuma espécie de
sabedoria. Na fase adulta, entretanto, segundo a própria loucura, os homens consideram ter atingido seu pleno
crescimento, e é aí que as experiências começam a torná-los sensatos. Entretanto, aí, a beleza da vida começa
a se apagar e, à medida que os homens se afastam da loucura, a vida os abandona cada vez mais. Quanto à
velhice, todos os mortais dependem do auxílio direto da loucura para suportá-la sem entregar-se a ela, que
transforma os velhos que estão à beira do túmulo, trazendo-os de volta à idade feliz da infância.
Mas, segundo o autor, sempre falando pela boca da loucura, a juventude e a velhice só diferem pelas rugas
que marcam o rosto da segunda, já que os cabelos escassos, a falta de dentes, o pouco cuidado com o corpo,
as bobagens que saem pela boca, a memória não educada; enfim, tudo aproxima inteiramente as duas idades.
Erasmo também aproximava a amizade da loucura, ao considerar que, quando fechamos os olhos para os
defeitos dos amigos, tornando-nos cegos ou coniventes com seus vícios que até apreciamos é algo muito
próximo da loucura. E o que pensar, então, do casamento, uma instituição prejudicial aos dois lados e que
deveria ser respeitada “enquanto é um purgatório” e “desfeita quando se tornasse um inferno”. Que homem,
pergunta Erasmo, exporia o pescoço ao jugo do matrimônio, se tivesse em mente suas desvantagens? Que
mulher aceitaria um homem se considerasse os perigosos trabalhos do parto e interminável fadiga de criar os
filhos?
Em síntese, como ensinou Erasmo, a pior de todas as loucuras é, sem dúvida, tentar ser sensato em um mundo
de doidos [...].
Alinhando-se ao pensamento de Erasmo, Foucault também considerou que só através da loucura o homem
pode libertar-se dos grilhões da razão, ou, como afirmou o autor quinhentista, “rir de tudo é coisa dos tontos,
81
mas não rir de nada é coisa dos estúpidos”, já que só podemos alcançar a perfeita sabedoria, onde habita a
felicidade, através da loucura.
Enfim, caro leitor, como escreveu Erasmo, “vejo que esperais uma conclusão. Mas sois realmente tolos se
acreditais que depois de me entregar a tal efusão de palavras, eu ainda me lembre do que disse. Adeus, então!
Aplaudi, bebei, vivei, ilustres iniciados da Loucura”.
MICELI, Paulo. História moderna. São Paulo: Contexto, 2013. p. 72-74.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI04) Identificar as principais características dos Humanismos e dos Renascimentos e analisar seus
significados.

82
58

O Brasil holandês (1630-1654)

Evaldo Cabral de Mello (Org.)


Editora Penguin Classics
O excerto a seguir pertence à obra O Brasil holandês (1630-1654),
organizada por Evaldo Cabral de Mello. Escrita em 1624, por viajantes,
governantes e estudiosos, é uma fonte importante para o estudo do domínio
holandês no Nordeste.

Motivos por que a Companhia das Índias Ocidentais


deve tentar tirar ao rei da Espanha a terra do Brasil

Embora a terra do Brasil seja maior do que toda a Alemanha, França, Inglaterra, Espanha, Escócia, Irlanda e
os dezessete Países Baixos juntos, [...] contudo há apenas dois lugares mais importantes do mesmo país, isto
é, a Bahia e Pernambuco. [...]
Estes dois lugares, isto é, a Bahia e Pernambuco (nos quais consiste este grande país, conforme já disse), não
dispõem de forças consideráveis ou fortalezas, de modo que, com a graça de Deus, os mesmos poderão ser e
serão ocupados [...] principalmente se a Companhia das Índias Ocidentais para aí enviar oficiais corajosos,
bons soldados, mestres ou engenheiros experimentados e adequados instrumentos de guerra [...].
O rei da Espanha, o clero e os negociantes particulares de Portugal têm naquele país grandes capitais
consistentes de terras, rendas, empréstimos sobre plantações, assim como mercadorias, que não se encontram
muito para o interior, porém perto das duas mencionadas cidades. Assim, elas podem ser atacadas, confiscadas
e conquistadas conjuntamente pela Companhia das Índias Ocidentais. [...].
Desta terra do Brasil, podem anualmente ser trazidas para cá e aqui vendidas ou distribuídas 60 mil caixas de
açúcar. [...] As mesmas 60 mil caixas de açúcar custam no Brasil, conforme a citada compra, aproximadamente
as 35 toneladas de ouro que a Companhia das Índias Ocidentais poderá pagar, em sua maior parte, com
mercadorias, lucrando com isso ao menos 30% e podendo ainda vender bem as suas mercadorias com 30%
de vantagem sobre os preços que Portugal costuma cobrar. Donde resulta que a Companhia terá ainda um
lucro anual de dez toneladas de ouro.
MOERBEECK, Jan Andries. Motivos por que a Companhia das Índias Ocidentais deve tentar tirar ao rei da
Espanha a terra do Brasil. In: MELLO, Evaldo Cabral de (Org.). O Brasil holandês (1630-1654). São Paulo:
Penguin Classics, 2010. p. 30-31.

Habilidade da BNCC
7º ano
(EF07HI13) Caracterizar a ação dos europeus e suas lógicas mercantis visando ao domínio no mundo
atlântico.

83
59

Diversidade humana

Cibele Veranihttp://www.dbbm.fiocruz.br/ghente/ciencia/diversidade/

Reflexões sobre diversidade étnico-racial e racismo


Os trechos a seguir refletem sobre a diversidade étnico-racial e o etnocentrismo, abordando o darwinismo, o
racismo e o branqueamento da população brasileira no fim do século XIX. O primeiro excerto foi escrito por
Cibele Verani, cientista social com mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional. O segundo, pertence
ao livro Brasil: uma biografia, das professoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling.

Diversidade humana

A humanidade sempre teve reações variadas pelas diferenças que percebiam entre si e os vários povos com
os quais tinham contato. Guerreiros; viajantes; comerciantes; e lendas relatavam a seus pares, desde a mais
remota antiguidade, as exoticidades dos demais. As reações eram e são variadas: desde o medo e a repulsa,
até a curiosidade e o apreço [...].
Aspectos culturais e físicos imediatamente perceptíveis da singularidade dos “outros”, como vestimentas;
ornamentos corporais; estatura; cor da pele, cabelos e olhos; e língua, ressaltavam a singularidade mais
aparente. Os “costumes” mais estranhos, porém, sobressaiam aos que tinham a oportunidade de passar um
certo tempo maior entre os “estrangeiros” e outras diferenças mais profundas entre os povos só poderiam ser
apreendidas por um olhar mais detalhado: historiadores como Heródoto são tidos, por alguns, como os
primeiros “antropólogos”, por se preocuparem com a organização das sociedades que descrevia, e não
somente com os acontecimentos históricos, buscando assim uma razão, uma causalidade para os eventos [...].
As explicações sobre a diversidade humana sempre ressaltaram com mais ênfase os aspectos negativos dos
“outros”, tendo como parâmetro as características positivas, físicas e culturais, dos povos sob cujo ponto de
vista se pensava a diferença. Chega-se até a negar a qualidade de “humano” aos demais povos. Alguns
exemplos: entre os povos indígenas brasileiros, a autodesignação, a rigor, enfatiza as qualidades de “seres
humanos”; “gente”; “povo de Deus” de cada povo. E para os demais restam termos, no mínimo, desagradáveis,
como “os agressivos selvagens”; “os comedores de carne de mamíferos ou de cobra” ou outra característica
repulsiva. Já nos primeiros séculos da colonização luso-espanhola, o estatuto de “seres com alma” chegou a
ser negado aos habitantes tradicionais das Américas, sendo objeto de discussões acirradas no âmbito da Igreja
Católica.
A esta atitude a antropologia chama de “etnocentrismo”, uma atitude generalizada entre as sociedades
humanas de valorizarem ao máximo como as melhores, as mais corretas, suas formas de viver; agir; sentir e
pensar coletivamente.
Outros exemplos demonstram atitudes mais positivas em relação à alteridade, como na Primeira Carta ao Rei
de Portugal, em que Caminha descreveu os “índios” como alegres e inocentes como crianças, sem notarem
que estavam expondo suas “vergonhas”. Rousseau, um crítico da sociedade europeia, cunhou a ideia do “bom
selvagem” e as cortes europeias deleitavam-se com a exoticidade animal e humana do “Novo Mundo”.

84
Segundo Maggie, foi a partir do século XVI, com a expansão colonial europeia, que caracteres como a cor da
pele e outros traços físicos dos povos encontrados por exploradores passou a ser um aspecto privilegiado no
imaginário europeu, como marcador das diferenças entre os povos. [...]
A noção de Raça, e sua associação de características biológicas; comportamentais e sociais foi, neste longo
período que se estendeu até o século XX, a expressão científica do racismo colonial luso-espanhol. Na cultura
luso-hispânica, este movimento teve desdobramentos importantes que incluíram, como no Brasil, a política de
incentivo aos movimentos migratórios – desde a importação escravagista da África até as tentativas de
“branqueamento” do povo brasileiro, no século XIX – e influenciaram os estudos raciais acadêmicos até meados
do século XX. [...]
Às classificações da diversidade humana, baseadas na morfologia física e no conceito de raça, sobrepunham-
se igualmente aspectos do comportamento e formas de pensar e sentir (aspectos sócio-culturais). O
evolucionismo darwinista inspirara, inicialmente, uma hierarquização da diversidade humana e das “raças” em
que a raça “branca” estaria no ápice da escala de evolução, devido à sua “superioridade” tecnológica e,
acreditava-se, moral (etnocentrismo evolucionista que, na antropologia social ou cultural, teve também grande
influência). [...]
Somente pouco antes da metade do século XX, quando autores como Franz Boas e Stocking levantaram as
influências das condições ambientais na constituição das diversidades humanas, o que Santos chama de
“segunda revolução darwinista” na Antropologia “Física” (biológica) se consolidou. O conceito de raça, nas
ciências antropológicas, foi substituído então pela categoria “população”, construída a partir de critérios
estatísticos e genéticos, cuja ênfase estava mais em seus aspectos dinâmicos, e na separação, por inspiração
da biologia experimental, estes critérios dos extrabiológicos (socioculturais).
O clima do pós-guerra europeu, em fins da década de 40 e na dos 50, trouxe reações radicalmente contrárias
aos fundamentos da eugenia levada ao extremo pela política nazista. Esta transição foi significativamente
marcada na Assembleia da Unesco de 1949. Nesta Assembleia, Boas e alguns antropólogos, como Lévi-
Strauss foram convidados a participar e exerceram influência no relatório final, contrária à ênfase na diversidade
racial como explicativa de fenômenos socioculturais e ambientais. [...]
VERANI, Cibele. Diversidade humana. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2019.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI27) Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os
povos indígenas originários e as populações negras nas Américas.

85
60

Brasil: uma biografia

Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling


Editora Companhia das Letras

O “day after”. Populações negras após a abolição

[...] O Brasil foi o único país latino-americano a participar do I Congresso


Internacional das Raças em julho de 1911, e enviou para Londres o então
diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda. Por
lá, o cientista apresentou um artigo intitulado “Sur les Métis au Brésil”, com
conclusões insofismáveis: “É lógico supor que na entrada do novo século
os mestiços terão desaparecido no Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós”.
O texto apostava, a partir de argumentos biológicos e sociais, num futuro branco e pacífico, com os negros e
mestiços desaparecendo para dar lugar a uma civilização ordenada e crescentemente branqueada. Porém, a
tese do cientista seria recebida de maneira pessimista no país, mas não pelos motivos que podemos imaginar.
Ao contrário, julgava-se que um século era tempo demais para o Brasil se tornasse definitivamente branco.
Também o antropólogo Roquette Pinto, presidente do I Congresso Brasileiro de Eugenia, ocorrido em 1929,
previa um país cada vez mais branco: em 2012 teríamos uma população composta de 80% de brancos e 20%
de mestiços; nenhum negro, nenhum índio. A entrada conjunta e maciça dessas escolas fez com que o debate
pós-abolição fosse colocado da questão jurídica do acesso à cidadania e igualdade, para argumentos retirados
da biologia. A ciência naturalizava a história, e transformava hierarquias sociais em dados imutáveis. E o
movimento era duplo: de um lado, destacava-se a inferioridade presente no componente negro e mestiço da
população; de outro, tentava-se escamotear o passado escravocrata e sua influência na situação atual do país.
Desenhava-se, assim, uma espécie de subcidadania, que mirava os habitantes dos sertões, mas também dos
“cortiços”, tão bem descritos por Aluísio Azevedo, que, em 1890, publicou O cortiço, romance em que
caracterizava tais aglomerados como verdadeiros barris de pólvora, não só por reunirem populações tão
distintas – portugueses, espanhóis, ex-escravos, negros e mulatos livres – como por carregarem as mazelas
dessa urbanização feita às pressas e às custas da expulsão de largos contingentes populacionais.
Os libertos conviviam, pois, com o preconceito do passado escravocrata, somado ao preconceito de raça. Não
por acaso o escritor Lima Barreto afirmou em seus diários que no Brasil “a capacidade mental dos negros é
discutida a priori, e a dos brancos, a posteriori”, e finalizou desabafando: “É triste não ser branco”.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Org.). Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015. p. 343-344.

Habilidade da BNCC
8º ano
(EF08HI27) Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os
povos indígenas originários e as populações negras nas Américas.
86

Você também pode gostar