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Seja racista e ganhe fama e empatia

As reações da sociedade ao caso Aranha e à nova série de Falabella, 'Sexo e as Nega', mostram o lado
mais perverso do racismo no Brasil
por Djamila Ribeiro — publicado 19/09/2014 14:36, última modificação 19/09/2014 16:05
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/aranha-faz-historia-a-torcida-do-gremio-nao-4942.html?
utm_content=bufferfc322&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer
Santos FC/Divulgação

Chamar alguém de macaco é animalizar um ser humano, retirar sua humanidade.


Costumo dizer que o Brasil é o país da piada pronta sem graça. Com os últimos acontecimentos
envolvendo as ofensas racistas que o goleiro Aranha sofreu e a minissérie Sexo e as Nega, essa
constatação só se reafirma.
Patrícia Moreira, a moça que ofendeu Aranha, ganha um enorme espaço na mídia que a quer transformar
em vítima. Quando neste País programas de TV e jornais deram espaço para alguém se defender e tentar
justificar seu crime? Quem ficou com pena e deu espaço para Angélica Aparecida Souza, que em 16 de
novembro de 2005 foi presa por roubar um pote de margarina? Quem fez moção de apoio a ela, quantas
apresentadoras a levaram aos seus programas? Angélica passou 128 dias na cadeia de Pinheiros, e por
quatro vezes teve o pedido de liberdade provisória negado. Foi condenada a quatro anos de prisão em
regime semiaberto. Por roubar um pote de margarina porque não aguentava mais ver seu filho, com então
dois anos, passar necessidade.
Cláudia Ferreira, a mulher morta e arrastada pela PM carioca, nas manchetes dos jornais virou a
“arrastada”, nem nome ou sobrenome davam a ela, ao contrário do que fazem com Patrícia. Quem criou
página de apoio nas redes sociais para a família de Cláudia? Quem ofereceu emprego ao viúvo ou se
ofereceu para ajudar os quatro filhos e os quatro sobrinhos que ela criava?
Percebe-se que, no Brasil, crimes contra a propriedade, no caso de Angélica, que roubou uma margarina,
são mais importantes e causam mais comoção do que crimes contra a humanidade, no caso do Aranha.
Chamar alguém de macaco é animalizar um ser humano, retirar sua humanidade. Cadê a empatia nesses
casos? Patrícia Moreira agora diz que quer torna-se um símbolo contra o racismo. Como uma mulher que
até agora não se desculpou por ter sido racista quer ser símbolo de uma luta tão cara?
Agora irá trabalhar na ONG CUFA (Central única de Favelas). Piada pronta sem graça. Várias militantes
negras com vivência do que é sentir racismo e com acúmulo teórico sobre a questão estão aí
desempregadas, e uma moça que não assume seu racismo recebe a vaga assim de mão beijada. Destaco
que sou contra o apedrejamento da casa dela assim como os xingamentos machistas proferidos contra ela.
Mas sou totalmente a favor de que ela pague pelo que fez.

Vaias a Aranha são a vitória do racismo na Arena do Grêmio


Postado por José Antonio Lima em 19/09/2014

Aranha durante a entrevista pós-jogo. O goleiro tem brios e não se acovarda diante da pressão (Foto: Reprodução)
O racismo brasileiro, que contesta a existência do preconceito e nega ao negro até mesmo o direito de se
sentir ofendido, obteve uma vitória expressiva na Arena do Grêmio, na noite desta quinta-feira 18 em
Porto Alegre. Três semanas depois de Aranha ser chamado de “macaco” e “preto fedido”, o goleiro do
Santos foi xingado de “viado” e “branca de neve”, vaiado durante o aquecimento e também a cada vez
que encostava na bola durante nova partida entre os dois clubes, desta vez pelo Campeonato Brasileiro.
Foi uma clara demonstração por parte de muitos torcedores gremistas da “indignação” provocada pelo
simples fato, vejamos só o tamanho do buraco,  de ter denunciado o ato de racismo do qual foi vítima em
28 de agosto.
Como de costume, houve uma tentativa cínica de negar que as vaias a Aranha fossem uma crítica ao
goleiro e, consequentemente, apoio ao ato de racismo anterior. Durante o jogo, vicejava nas redes sociais
o argumento de “vaia ser normal no futebol”. Após a partida, essatese foi encampada por dois repórteres
ligados às Organizações Globo, um do SporTV e outro da RBS.
SporTV: Aranha, mas você não acha normal as vaias (sic), o que aconteceu de anormal além das vaias?
Aranha: Eu não ligo com vaia, com manifestação de torcedor, desde que seja do esporte. E a gente, sem
ser hipócrita… Porque às vezes também a gente fala as coisas, todo mundo começa a achar o que quer.
Todo mundo sabe que a vaia hoje foi diferente.
SporTV e RBS: Diferente por quê?
Aranha (olhando para a repórter da RBS): Você sabe por quê? Por que foi diferente?
RBS: É a pergunta que a gente quer saber.
Aranha: Por tudo o que aconteceu no outro jogo, ou não foi? Ou você concorda com o que aconteceu?
Você concorda?
RBS: Eu não tenho que concordar com nada.
Aranha: Ah, você não tem… (que concordar ou discordar)? Por quê? Então você não tá nem aí, é isso?
A conversa é perturbadora e chocante em dois níveis. Em primeiro lugar, pelo fato de os jornalistas
partirem do princípio de as vaias não terem relação com o episódio de racismo, uma conclusão que
desconsidera todo o contexto e, portanto, configura uma clamorosa e patética mentira. Em segundo lugar,
pela busca cega da “isenção” por parte da repórter da RBS diante do claro ato racista do jogo anterior,
postura resultante, por óbvio, das regras da emissora e cujo resultado é a dissociação entre o jornalismo e
sua causa primária, a defesa da verdade.

Por trás das vaias a Aranha e das perguntas feitas ao goleiro após o jogo está também a construção de
uma falsa verdade, a de que o goleiro não foi vítima de um ato racista, mas culpado por fazer torcedores
gremistas “perderem a cabeça” ao fazer cera durante o jogo entre Grêmio e Santos pela Copa do Brasil.
Defenderam essa tese, para ficar em dois exemplos,diretores do Grêmio, e Eduardo Bueno, também da
SporTV. O último a fazê-lo foi Luiz Felipe Scolari, o artífice do 7 a 1, que comparou as denúncias de
Aranha a uma esparrela.
O caso envolvendo o goleiro do Santos e a torcida do Grêmio é mais um na lista da moralidade
alternativa que vigora no futebol, mas é também emblemático como ferramenta de análise da sociedade
brasileira. Quem acusa Aranha, e quem silencia diante da pressão sofrida pelo goleiro, de uma forma ou
de outra fortalece a reação à busca pela igualdade, contribuindo de forma perversa para a tentativa de
“colocar o negro em seu devido lugar”, invisível e subalterno, onde não incomode com suas reclamações
insolentes sobre o “suposto” racismo. É uma postura simplesmente abjeta, que ignora décadas de luta e,
como disse o próprio Aranha, a dor de muitas pessoas cujo sofrimento está na base das leis contra o
racismo.
 

Scolari durante o jogo diante do Santos. Antes da partida ele ajudou a construir a “verdade” segundo a qual o goleiro é o
culpado (Foto: Divulgação / Grêmio)

Crônica / Matheus Pichonelli


Aranha faz História. A torcida do Grêmio, não
Torcedores referendam as ofensas racistas ao vaiar a luta não do atleta, mas do homem. Um homem que
se nega a fazer do episódio uma atração de circo
por Matheus Pichonelli — publicado 19/09/2014 13:22, última modificação 19/09/2014 20:20
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Reprodução/Sportv

Torcedor vaia o goleiro Aranha durante o reencontro do Grêmio com o Santos em Porto Alegre
Mário Lúcio Duarte Costa. Guardem este nome. Já vou chegar a ele. Antes, quero dizer que acompanhei,
pela tevê, o fim da partida entre Grêmio e Santos, em Porto Alegre, pelo Campeonato Brasileiro. O
empate sem gols revela o que foi o duelo, insosso, de resultado nem bom nem mau para nenhuma das
equipes. Pelos relatos, descubro que o goleiro Aranha foi o melhor em campo, com ao menos duas boas
defesas que garantiram o ponto fora de casa. A crônica esportiva termina aqui. A História, com H
maiúsculo, não.

Aranha acabava de voltar ao palco onde, semanas atrás, fora hostilizado por ofensas racistas vindas de
parte da arquibancada gremista. De lá saíram gritos e imitações de macaco. Eram uma referência à sua cor
de pele, negra. O goleiro pediu a interrupção da partida, vencida pelo Santos por 2 a 0. Deixou o campo
atordoado. "Dói", dizia ele à beira do campo.

Por não aceitar a ofensa, relatada aos árbitros da partida, Aranha criou constrangimento às autoridades
esportivas. Elas se viram obrigadas a eliminar o Grêmio da Copa do Brasil devido ao comportamento de
sua torcida.

Antes do reencontro de quinta-feira 18, no mesmo palco, um país inteiro passou a debater um tema ainda
entranhado nas relações sociais. Tão entranhado que se naturalizou, a ponto de, muitas vezes, nem sequer
incomodar.

Aranha se incomodou. E não fez questão de esconder.

Como preço, é provável que tenha passado alguns dos piores dias de sua vida. Depois daquele jogo, uma
das torcedoras, flagrada aos gritos de "macaco" na arquibancada, passou a sofrer ameaças nas redes
sociais. Foi demitida e teve a casa incendiada por um maluco. Ela não teve tempo de se arrepender ou
calcular a dimensão de seu ato: o justiçamento de sempre, um erro em qualquer lado da história, tirava
dela o direito de ser julgada por uma lei já existente. Cassara, com mandado próprio, o direito à vida da
torcedora.

De repente, Aranha era o pivô de tanto ódio. Não fosse seu "melindre", a torcedora estaria a salvo, o
Grêmio seguiria na Copa do Brasil e o racismo voltaria ao rol de temas "menores" de um país que, nas
palavras de muita gente autorizada, tem problemas mais sérios para resolver. Entre os defensores da tese
está o técnico do Grêmio, Luiz Felipe Scolari, que até ontem dirigia a seleção brasileira. Ele tratou a
reação de Aranha como uma "esparrela", um estardalhaço promovido por quem tentava se vitimar para
prejudicar alguém - no caso, os gremistas. Pelé, maior jogador de todos os tempos, também condenou o
goleiro com argumentos do arco da velha: se ele, o Atleta do Século, tivesse de parar uma partida toda
vez que era chamado de "macaco" não haveria mais futebol. Segundo ele, quanto mais se fala em
racismo, mas ele se aguça.

Pelé, em seu tempo, não parou o jogo, o racismo voltou para debaixo do tapete, e a fatura segue nas
costas de Aranha e seus contemporâneos, que hoje tentam interromper uma partida que deveria ter sido
parada há muito tempo.

Não bastasse tanta ofensa - à sua cor, ao seu caráter e à sua inteligência - Aranha voltou a campo ontem
como vilão. Desta vez, não ouviu xingamentos racistas das arquibancadas, mas vaias. Muitas. Cada uma
delas era o triunfo do direito de ofender sobre o direito de se sentir ofendido. Ou de reagir à ofensa. As
vaias eram o referendo aos gritos de "macaco" do último duelo. Eram o recado de que tanto faz o que
existe debaixo da epiderme: o que vale é ganhar o jogo. É se dar bem. É levar vantagem. E qualquer
reação a isso é apenas “esparrela”.

As vaias foram o trunfo do país de Pelé e Felipão. Um país que joga às costas da vítima o peso de ser
ofendido. Um país que valida, pela ignorância, o cientificismo torto de séculos passados que colocavam o
negro no meio do caminho entre os símios e o homem branco. Este cientificismo baseou a ideia de
supremacia racial e influenciou algumas das maiores atrocidades da História. Por isso ela ofende. Por isso
chamar um branco alto de “girafa” não tem o mesmo peso que chamar um negro de “macaco”: apenas um
deles fora escravizado pela História.

A manifestação de ontem da torcida gremista era a manifestação da derrota: a derrota de Aranha, a


derrota de um país inteiro que apenas finge que deixou de açoitar seus antigos escravos. Apesar disso, ele
jogou. Foi o melhor da partida, segundo a crônica esportiva. A mesma crônica que, ao fim do duelo,
cercou o jogador para arremessa-lo ao centro do picadeiro com uma única pergunta: “como se sente?”

Acossado, Aranha tentava explicar que deixava o campo entristecido pela reação da torcida, que
referendava a ofensa do último duelo. Mas vaia era vaia, admitia, e contra ela não tinha o que fazer.

Um dos repórteres, em tom de deboche, chegou a questionar: “E qual a diferença?”.

“Você sabe a diferença”, respondeu Aranha.

“Não sei: me diga”, desafiou o sujeito do microfone, como se não soubesse.

“Você acha certo o que aconteceu?”, questionou o goleiro.


O repórter respondeu algo como “não tenho que achar nada”. E Aranha, mais uma vez, deixou o campo
balançando a cabeça em tom de incredulidade. Tinha toda razão para ver e não crer.

Já nos vestiários, um pouco mais calmo, ele voltou a ser questionado sobre o assunto. Os repórteres
queriam saber por que ele se negava a se encontrar com a torcedora que o ofendera e que estava sedenta
por um abraço e pelo seu perdão. O circo dava ao goleiro o papel de Meursault, o personagem de O
Estrangeiro, de Albert Camus, condenado não por um crime, mas por não ter chorado no enterro da mãe.
O circo queria ver o goleiro chorar. De preferência, abraçado com a agressora. Queria ver o circo pegar
fogo. Aranha, de novo, novamente, outra vez, respirou fundo. E respondeu algo como: “Ir lá, abraçar ela,
e toca uma música e tudo mais. Aquela cena toda e só depois dos comerciais… Isso pra mim não adianta.
Eu não quero".
Aranha talvez não soubesse, mas acabava de desmontar a “esparrela” armada para ele. Percebeu, muito
antes dos homens de seu tempo, o que era um circo. Um circo midiático. E o rejeitou. Como rejeitou a
ofensa que agora tantos querem minimizar como “melindre”.

Aranha parou o jogo, um jogo que segue perdendo, para mostrar simplesmente que atrás das cortinas de
um circo que não criou existe um homem. Este homem se chama Mário Lúcio Duarte Costa, seu nome de
batismo. Que é maior que a alcunha. Que é maior que o próprio esporte. Que não merece ouvir o que
ouviu. E que parece disposto a interromper o jogo quantas vezes forem necessárias. Até que o recado seja
entendido. Até que um dia a história mude. De vez. Mário Lúcio Duarte Costa acabava de fazer História.

Em tempo: Triste o país que precisa de herois. Mas, se não é um, Aranha é inegavelmente o rosto de uma
luta tão justa quanto necessária. Acho que já gastei minha cota de citações a Caetano Veloso em minhas
crônicas, mas é impossível assistir à trajetória do goleiro santista sem lembrar da música "O Heroi", do
álbum Cê, de Caetano:
não quero jogar bola pra esses ratos
já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos
quero ser negro 100%, americano,
sul-africano, tudo menos o santo
que a brisa do brasil briga e balança
e no entanto, durante a dança
depois do fim do medo e da esperança
depois de arrebanhar o marginal, a puta
o evangélico e o policial
vi que o meu desenho de mim
é tal e qual
o personagem pra quem eu cria que sempre
olharia
com desdém total
mas não é assim comigo.
é como em plena glória espiritual
que digo:
eu sou o homem cordial
que vim para instaurar a democracia racial
eu sou o homem cordial
que vim para afirmar a democracia racial

eu sou o herói
só deus e eu sabemos como dói
O elenco de 'Sexo e as Nega', da Rede Globo

Miguel Falabella cria uma série onde mulheres negras são tratadas como objetos sexuais e quer ganhar
prêmio de senhor do ano. Só o nome da série, Sexo e as Nega, já é problemático. Mulheres negras
historicamente são tratadas com desumanidade e, nossos corpos, como mera mercadorias. Quantas
apresentadoras negras há na TV? Quantas atrizes? Quantas jornalistas? Não precisa ser um grande
estudioso das questões raciais no Brasil para perceber o quanto as mulheres negras são invisíveis aos
olhos da mídia.
Em sua história no Brasil, a revista Playboy, por exemplo, teve somente sete mulheres negras em sua
capa. Não estou de forma alguma concordando com esse tipo de exploração do corpo feminino, estou
dizendo que, mesmo nesse mercado, a carne negra também é a mais barata. Aí, mais uma vez, nos
colocam nesses mesmos papéis estereotipados e temos que agradecer a boa vontade. Para piorar,
Falabella se compara a Spike Lee ao dizer que o cineasta também fala de sua realidade. Bom, Lee é negro
e fala com conhecimento de causa das dores que o afligem. O que Falabella, um homem branco e rico,
sabe da realidade das mulheres negras no Brasil? Piada pronta sem graça.
E dizer que as militantes que apontaram o racismo da série são capitãs do mato é se utilizar de seus
privilégios para nos calar. Ninguém atacou as atrizes da série e, sim, seu diretor que se acha benevolente
por empregar mulheres negras. Alguns senhores de escravos também se achavam bonzinhos por não
castigar seus escravos. Queremos outros referenciais, não podemos mais aceitar que a mídia nos reduza
somente a essas possibilidades.
Quem conhece minimamente um pouco da história do Brasil sabe que as mulheres negras são tratadas
como objetos sexuais desde o período colonial. Ideias racistas devem ser combatidas e não relativizadas e
entendidas como "meras opções pessoais de pensamento", ideologias, imaginários, arte, ponto de vista
diferente, divergência teórica, opinião. Ideias racistas devem ser reprimidas e não elogiadas e justificadas.
Não adianta dizer que HOJE tudo é racismo, mostrando uma explícita ignorância histórica. Este País foi
fundado no racismo, não tem nada de novo. A mídia brasileira nem de longe reflete a diversidade do seu
povo. E, para perceber isso, basta ligar a televisão ou folhear uma revista.
Algumas pessoas pensam que ser racista é somente matar, destratar com gravidade uma pessoa negra.
Racismo é um sistema de opressão que visa negar direitos a um grupo, que cria uma ideologia de
opressão a esse grupo. Portanto, fingir-se de bom moço e não ouvir o que as mulheres negras estão
dizendo para corroborar com o lugar que o racismo e o machismo criou para a mulher negra é ser racista.

Não vamos nos calar diante desses absurdos, de um País onde vítimas viram algozes. Onde diretor de
minissérie racista se faz de vítima e quer ganhar medalha por empregar negras. Não nos esqueçamos que
muitas famílias se julgam benevolentes por darem emprego a babás negras. Quem se compadece dos
milhares de negros que morrem todos os anos? Das crianças que crescem ouvindo insultos racistas? E o
pior é ouvir pessoas dizendo que todo mundo faz isso ou sempre fez como se o fato de isso não se tornar
público os ausentassem de culpa. Pois é, antigamente as pessoas morriam de tuberculose. A quem serve
esse discurso nostálgico? Antigamente era melhor para quem?
Não nos calaremos. Como diz Maya Angelou no poema Eu Me Levanto (Still I rise):
“Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas, ainda assim, como o ar, eu vou me levantar”.
E temos dito.

Só falta ao Brasil legalizar o racismo


Postado por José Antonio Lima em 12/09/2014

http://esportefino.cartacapital.com.br/patricia-moreira-racismo-aranha-gremio/
Aranha durante treino: do goleiro do Santos exige-se o perdão (Foto: Ivan Storti/Santos)
Um historiador que pretenda contar como a sociedade brasileira lidava com o racismo após mais de um
século da abolição terá no episódio envolvendo a torcida do Grêmio e o goleiro Aranha um alvo certeiro.
O caso é revelador do impressionante cinismo que toma conta do país quando é preciso tratar o fato
escancarado de que o racismo existe, é amplo e tem uma conexão direta com a escravidão, a condição
mais abjeta à qual um ser humano pode submeter outro e que vigorou por quase 400 anos nesta terra de
nosso senhor.
Vamos recapitular. Em 28 de agosto, Grêmio e Santos jogavam em Porto Alegre pela Copa do Brasil. No
fim da partida, torcedores do clube gaúcho passaram a hostilizar Aranha, o goleiro do Santos, com
algumas das mais acintosas ofensas racistas da recente história. Os torcedores foram filmados e Patricia
Moreira se destacou ao ser flagrada pela ESPN Brasil chamando Aranha de macaco repetidas vezes.
Desde então, os caminhos de Patricia e outros gremistas que, deixemos claro, cometeram um crime no
estádio, e o de Aranha, que foi vítima deste crime, foram diferentes. Patricia experimentou solidariedade e
compreensão. Aranha foi instado a ser generoso.

Muitos foram rápidos em avisar ao mundo que o crime não era o de racismo, mas o de injúria racista. É
verdade, uma que esconde o fato de a injúria racista ser a face do racismo e estar, portanto, minimizada
no Código Penal, um absurdo que o movimento negro luta para corrigir. Outros tentaram justificar o ato
de Patricia e demais torcedores racistas. Alguns diretores do Grêmio cumpriram esse papel de forma
triste. Outro foi Eduardo Bueno, personagem deExtraordinários, excrescência da Copa do Mundo na
SporTV. Para o choque de seus parceiros Xico Sá e Hélio de la Peña, o historiador (que considera
o Nordeste uma bosta) afirmou queAranha, “um merda”, foi um “escroto” ao provocar a torcida. Não
espanta que trate-se de argumento idêntico ao de um dos torcedores racistas do Grêmio em depoimento à
polícia.
No programa Encontro com Fátima Bernardes, Patricia Moreira encontrou espaço para se explicar. Um
desavisado concluiria que o fato de a palavra macaco ter saído da boca da jovem não foi culpa dela, mas
de um “núcleo” da torcida do Grêmio que tentava desestabilizar a “inteligência emocional” de Aranha, e
do córtex frontal do cérebro de Patricia, que a impelia a agir por impulso. Nem a comunidade do
Facebook Patricia Moreira – Página de Apoio, que promete não deixar a torcedora só, pintaria um quadro
tão positivo. Enquanto isso, exigia-se a tal generosidade de Aranha. Após a colega enfatizar o pedido de
desculpas de Patricia, um comentarista na Globo do Rio Grande do Sul afirmou: “Ela pediu perdão, pediu
desculpas (…) Agora cabe ao Aranha. Acho que o Aranha poderia ter esse gesto [de perdoar]“. Como o
goleiro demorou a fazê-lo, configurou um absurdo, a julgar pelo pensamento, novamente, de Eduardo
Bueno.
A solidariedade a Patricia Moreira e as tentativas de justificar os insultos são fruto óbvio do racismo
entranhado na sociedade brasileira – chamar um negro de macaco não é um mero xingamento, mas
manifestar a crença de que o negro é menos que um humano. A ofensa está tão incrustada que muitas
pessoas nem mais conseguem reconhecer sua gravidade, e é tão comum que muitos se colocam no lugar
de Patricia e pensam que poderia ter ocorrido com elas. O xingamento racista, assim, é visto como um
arroubo irracional sem gravidade, e não como a face visível de um preconceito arraigado e naturalizado
por um país inteiro.

Da mesma forma, exigir que Aranha perdoe a ofensa é uma conexão com o passado horrendo do Brasil,
um no qual “eles”, os escravos, depois os libertos, depois a massa subempregada não podem ser
insolentes a ponto de não aceitarem as “nossas” desculpas quando somos magnânimos e reconhecemos
ter “perdido a cabeça”. É também uma forma maldosa de dizer que houve exagero e negar a ofensa. É
uma ação que ignora o impacto sentido pela vítima de preconceito. “Você sente vergonha da cor da sua
pele, você se sente errado, você se sente feio, você se sente menos. A pessoa vai se esforçar o resto da
vida para permanecer invisível (…) pra não ser agredida”, explicou Emicida em uma entrevista um tanto
didática para o site A Ponte.
Mais ainda, é uma visão de mundo que não compreende a posição inferior à qual os negros são
submetidos em comparação com os brancos no Brasil – escancarada em empregos piores,salários
menores e mortes em quantidade tragicamente desproporcional – e que insiste, com ignorância
perturbadora, na teses de instaurar uma meritocracia a partir de condições iniciais desiguais, negando a
própria existência do racismo.
A não ser que o Brasil esteja planejando aprovar a “Lei Patrícia Moreira” e institucionalizar a legalização
do preconceito com base no “não sou racista, tenho até amigos negros”, é preciso uma mudança de
rumos, de forma a não tolerar os intolerantes e não dar espaço para justificativas de um comportamento,
em todos os sentidos, condenável.

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