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Na dia 25 de março deste ano, Vinicius José Paixão de Oliveira Junior, conhecido
internacionalmente apenas como Vini Jr., deu uma forte declaração sobre sua luta antirracista
durante sua carreira, na entrevista coletiva no pré-jogo do amistoso contra a Espanha, pela
seleção brasileira. O atacante vem sofrendo insultos racistas desde que veio atuar no futebol
europeu, em 2018 - justamente pelo Real Madrid, time espanhol, num país que já tem um
histórico de acontecimentos deste viés. Na coletiva, o jogador é questionado sobre a
importância da resistência e o combate contra estes pensamentos retrógrados, e se emociona
durante a fala, o qual cita que se fosse só por ele, já teria desistido do futebol.
O “caso Vini Jr.”, como normalmente é chamado, não é apenas um caso, mas sim
inúmeros ataques direcionados a um indivíduo unicamente pela sua cor de pele. É inegável
que isso não acabará tão cedo, e não só em países europeus, mas sim no mundo inteiro.
Temos como exemplo a própria competição Libertadores e Sul Americana, que vem tendo
cada vez mais ataques racistas e xenofóbicos entre os times do continente - e realmente não é
pouca coisa, ou “casos isolados”, semelhante ao de Vini Jr. Só até a metade de 2023,
ocorreram 9 episódios envolvendo times brasileiros, e mais de 18 no total, sendo a maior parte
vinda de torcedores da arquibancada - correspondendo a um crescimento de 50% em relação
ao ano de 2022, que ocorreram 12 denúncias, como afirma o Globo Esporte. Contudo,
suponhamos que com o aumento de denúncias, haveria um aumento de casos julgados, certo?
Errado, destes 18 casos de 2023, apenas 5 foram julgados com multas de até R$500 mil reais,
o que demonstra ainda mais a negligência de tratar destes fatos por parte das federações
organizadoras - a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), e a União das
Associações Europeias de Futebol (UEFA). Não basta apenas colocar frases de
conscientização no lugar de placas de anúncios, ou aumentar o valor das multas, e esperar que
magicamente que todos se respeitem igualmente; isso é uma atitude obviamente ignorante,
pois esses indivíduos com comportamentos pífios muitas vezes saem impunes, e, escondidos
ao meio da arquibancada dos estádios, continuam proferindo palavras como “mono”,
“macaco”, “preto”, ou jogando cascas de bananas em jogadores ou pessoas que apenas
querem assistir um jogo do esporte.
Isso não apenas se restringe ao futebol internacional, temos excessivos atos de
violência no Brasil. O cenário nacional não está livre disto, e as brigas nos estádios, brigas
fora deles, e entre torcidas organizadas, infelizmente, continuam sendo comuns até o ano de
2024 - tivemos o caso mais alarmante dos últimos anos, uma tentativa de homicídios contra o
ônibus do Fortaleza, após o jogo contra o Sport de Recife, na madrugada do dia 22 de
fevereiro, às 2:21 da manhã. O ataque foi feito por torcedores da torcida organizada do time
Pernambucano, utilizando de bombas e pedras para ferir os jogadores do time adversário; dos
seis atletas que foram alvejados, os mais graves foram o goleiro João Ricardo, com seis
pontos na cabeça, e o lateral-esquerdo Escobar, com trauma cranioencefálico. Até o momento,
o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), condenou o Sport com oito jogos sem
participação da torcida, como mandante em jogos organizados pela Confederação Brasileira
de Futebol (CBF), e uma multa de R$80 mil reais - mas, os verdadeiros criminosos que
atacaram a delegação do Fortaleza ainda não foram condenados, o qual apenas prejudicam os
verdadeiros torcedores que não apoiam este tipo de movimento. Isso é apenas um exemplo
entre vários que aconteceram no Brasil; houve também brigas na final do campeonato
Cearense, entre Fortaleza e o Ceará, e entre torcedores do Avaí e do Brusque, pela semifinal
do Catarinense.
Dentre os casos de racismo que mais repercutiram recentemente, temos os insultos
racistas contra o pai do jogador promissor Endrick, em um jogo da seleção brasileira pré-
olímpica, e contra o jogador Robert Renan do Internacional, após perder um pênalti no
Gauchão.Todavia, ainda existem mais acontecimentos e casos que passam despercebidos ou
que não ganham atenção da mídia; não só dentro do gramado, mas também nas redes sociais.
Mesmo após 136 anos depois da abolição da escravatura, a sociedade ainda continua
com tantos pensamentos retrógrados e desprezíveis. Como afirma Daniel da Conceição -
doutor em Educação, colunista na revista Ludopédio, e professor do ensino médio,
entrevistado pela Madagascar, quando perguntado sobre qual o motivo de ainda haver racismo
e xenofobia atualmente - estamos vivendo um “processo civilizador”, que é o reconhecimento
da identidade de novas culturas, costumes, ideias, pluralidade… Em outras palavras, a
sensibilização. Para comparação, experimente assistir programas de TV aberta dos 80, 90; a
quantidade de piadas racistas, homofóbicas, misóginas, e xenofóbicas era extremamente
maior, pelo fato de ser aceito como algo comum. O ponto é que hoje há muito mais meios
para as pessoas se expressarem, além de ser divulgado com muito mais frequência - naqueles
tempos, não se tinha uma sensibilidade ou conhecimento de um ato que hoje é constituído
como crime. No entanto, por que, mesmo com este processo civilizatório, os marcos de
séculos atrás continuam? O segredo está no ressurgimento de grupos de extrema direita, que
trazem de volta pautas enraizadas como o ódio contra a população negra, acreditadas que
estavam já superadas pelo processo civilizador. Isso está intrinsecamente ligado não só ao
futebol, mas nos esportes em geral, pelo fato de ele ser um reflexo, uma dramatização sobre a
sociedade e seus costumes - pois ele não é uma entidade à parte, ele faz parte da estrutura da
comunidade.
A marca do racismo sempre se estrutura no bode expiatório; culpar alguém descarrega
a frustração e a infelicidade do indivíduo. Isto é coerente para se analisar no futebol, pois,
como é um esporte, a questão da derrota, má atuação por parte do atleta, ou simplesmente
rivalidade entre torcidas, dão motivos para as pessoas vociferarem ofensas e injúrias raciais,
as quais são consequências de preconceitos idealizados no sujeito, ou atos de expurgo para
evitar que determinada situação aconteça novamente. A justificativa para justificar o
injustificável normalmente são questões da vida pessoal e profissional do atleta, apontando
falhas emocionais, técnicas ou físicas.
O desafio dessa discussão, no entanto, é quando jogadores renomados, bem-sucedidos
profissionalmente e pessoalmente são xingados e bestializados por torcedores; entre eles,
temos internacionalmente Romero Lukaku, Mario Balotelli, e, hodiernamente, Vinicius Jr.,
principal alvo na Espanha. Quanto mais talento e sucesso Vini alcança, mais incomodados tais
indivíduos ficam, especialmente por ter vindo de um lugar mais pobre e estar concentrado na
sua carreira; portanto, a figura do bode expiatório não se encaixa neste cenário. Todo o ódio,
rancor e raiva direcionado a ele é nada mais nada menos que admiração, porém, uma
admiração repleta de inveja. E certamente isso não é exclusivo dele; qualquer jogador, ou
jogadora, não classificada no padrão europeu idealizado há séculos, irá sofrer do mesmo,
proporcionalmente a quanto ele conquistou.
Tais ações não são nenhum um pouco recentes, como apontado por uma entrevista que
o jogador Tinga, ex-Internacional e Cruzeiro, deu à equipe Charla Podcast. De acordo com o
atleta, desde quando começou no futebol, o racismo e ofensas eram comuns, ou seja, tal
pensamento de que aquilo era “normal” vinha desde criança. Ainda, o próprio faz um paralelo
com o caso de racismo que sofreu em 2014, em uma partida entre Cruzeiro e Real Garcilaso,
o qual toda vez que tocava na bola, torcedores do time peruano imitavam sons de macaco para
ele; no fim da partida, o atleta ficou confuso quando toda a imprensa veio até ele para
comentar das diversas ofensas, pois já tinha acontecido muitas vezes antes, sem repercussão
alguma. Consoante à Tinga, o jogador Felipe Melo, capitão do Fluminense, comenta sobre a
negligência das ações tomadas contra tais pessoas, em uma entrevista dada ao Globo Esporte:
“Tem câmera suficiente para pegar o cara e levar para a cadeia direto. O cara fez racismo com
o Vinicius Jr, o Felipe Melo, não importa, com qualquer um... Se for racista, tem que ser
preso. Quando começarem a fazer isso aí vão diminuir. Já falei para a Conmebol não mostrar
a cara do racista. O torcedor quer mídia. O cara imitou macaco, foi preso, ficou uma hora
preso, e imitou macaco de novo para a câmera porque ele sabe que não vai acontecer nada
com ele”.
Nesse sentido, vale citar que tais ações não acontecem só no âmbito profissional, isso
é impregnado desde a base dos jogadores, especialmente com o racismo recreativo. Segundo
Daniel, que trabalhou seu doutorado e mestrado com a juventude, este tipo de racismo
acontece dentro dos próprios grupos, ou seja, com brincadeiras do tipo “ele faz comigo, eu
também faço com ele”, ou adjetivos atribuídos a cor de pele. Tudo isso decorre de um
problema profundamente social, então precisa-se agir primeiro dentro de escolas, combatendo
o individualismo pleno, pois, como já dito, o esporte é um reflexo dos seres hoje chamados
homo sapiens.
Contudo, é inusitado como tantos pensamentos ultrapassados ainda existam, mesmo
havendo time com uma história de apoio a estas minorias, ou até ídolos que são de cor de pele
escura, considerados os melhores de todos os tempos, tal como Pelé ou Leônidas. Para Daniel,
isso pode ser explicado por meio de uma das dinâmicas da temática racial, que surge desde o
período da escravidão. Os negros que eram mais submissos, os que eram “bons moços” por
assim dizer, eram tratados com mais tranquilidade, e recebiam privilégios de seu senhores; já
os negros mais revoltosos e desobedientes eram mais castigados, atacados e violentados de
diversas formas. Simultâneamente, os negros hoje em dia que são acomodados, quietos,
fazem sua parte e sem aparecer, é ótimo para o grupo - agora vemos atletas tipo Vini Jr., um
dos melhores no mundo, que mesmo fazendo brincadeiras e suas festas, é uma pessoa
centrada, focada no esporte, ou seja, quando não está treinando com o grupo, está na
academia; basicamente é um profissional de excelência que traz resultados, e, juntamente com
estas conquistas, vem todos os ataques e xingamentos.
Nesse debate, há questionamentos de que Pelé não sofreu tanto com o preconceito, ou
até que não lutou pela causa enquanto jogava, o que é uma enorme equivocação. Naquela
época, o racismo era tão impregnado na sociedade que não havia maneira de ele se expressar,
como já dito por Daniel. Em contrapartida, sua influência era tão grande que o próprio não
precisava discutir ou falar sobre o assunto, sua presença já era o suficiente para ser uma marca
na sociedade - e destaque que estamos falando dos anos 60, início dos anos 70, quando existia
a lei de Jim Crow nos Estados Unidos (já sendo um país modelo para o mundo), o qual
separava ônibus, bebedouros e banheiros para os negros.
No fim, é fato de que o futebol e os esportes podem ser usados como ferramentas
políticas para controlar as massas ou criar narrativas, seja para uma ditadura, ou para apoiar a
democracia. Todavia, não é apenas isso; o processo de identificação de uma nação, a luta de
reconhecimento e igualdade por um povo, movimentos pela vontade da população,
movimentos contra o racismo, a união entre indivíduos, o reflexo e dramatização da sociedade
- tudo isso vai além de uma ferramenta - ele é um tipo de resistência que move o mundo, uma
cultura, uma arte, acima de apenas chutar uma bola ao gol.