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25 poemas sobre

infância para
celebrar os começos
da vida

4 anos atrás
Renata Penzani

Sobre a infância, a escritora Cecília


Meireles dizia que “tudo é mistério nesse
reino que o homem começa a
desconhecer desde que o começa a
abandonar”*. Embalado pelo poesia, o
portal Lunetas convida o leitor para um
olhar sensível sobre este período de
construção do ser humano. Reunimos
poemas sobre infância para pensarmos
juntos em toda a beleza que pode existir
no começo de uma vida. São textos que
falam sobre meninice, leveza, descoberta,
curiosidade e uma poesia inesperada que
brota de um olhar inaugural sobre o
mundo.

Para essa curadoria, visitamos o livro


“Retratos da infância na poesia brasileira”
(Editora Unicamp, 2017), da pesquisadora
Marcia Cristina Silva, que estudou como a
infância aparece na obra de autores
importantes para a história da literatura
brasileira, como Manuel Bandeira, Manoel
de Barros e Mário Quintana. A proposta do
seu trabalho é mostrar como o ideário de
infância romantizada foi desconstruída ao
longo do tempo e reinventada pelos
poetas modernos.

Visitamos também a terceira edição da


revista de poesia Gratuita (Edições Chão
da Feira), dedicada à infância, que reúne
poemas e textos em prosa escritos à
convite das editoras Júlia de Carvalho
Hansen e Maria Carolina Fenati. Eis o que
elas dizem no texto de apresentação da
publicação:

“Como a explosão duma


supernova ou a eclosão de uma
semente, toda a gente nasce
criança”

“Walter Benjamin escreveu: ‘Que as coisas


continuem como antes: eis a catástrofe.’ A
infância é promessa de começo,
testemunho do eterno retorno do novo e,
portanto, de adiamento da catástrofe.
Talvez seja por isto que todo poder
conservador busque domesticar a infância:
para manter um estado de coisas é
preciso, injustamente, conter o
indeterminado. Todavia, isto não é senão
um modo grotesco de fracassar. Sejam
quais forem as forças, a infância resiste:
condição e promessa do vivo, ela afirma a
persistência inegociável da mutação.”

“A infância não cessa de


começar: se com ela todo
mundo guarda intimidade, é
porque, de fato, se foi criança
um dia”

Acreditamos que a poesia pode ajudar na


tarefa de sensibilizar as pessoas sobre a
importância de cuidar para que a infância
seja em plenitude, com direitos
garantidos, segurança, respeito e afeto.
Nada melhor do que fazer isso por meio
das palavras, pois a literatura nos
humaniza e nos coloca em contato com o
outro. Não por acaso, o escritor Gabriel
García Márquez dizia que “a poesia é a
única prova concreta de existência do
homem”.

“As coisas que não têm nome


são mais pronunciadas por
crianças” – Manoel de Barros

Nesta lista, estão Drummond, Fernando


Pessoa, José Saramago e também
escritores contemporâneos, como Ana
Martins Marques, Angélica Freitas e Bruna
Beber, além de muitos outros autores e
autoras que eternizaram formas possíveis
de ser criança. Como toda forma de
poesia funciona para aumentar nossa lupa
sobre as coisas – para “transver o mundo”,
como diria Manoel de Barros -, os poemas
aqui reunidos não servem para definir a
infância, ao contrário: são para ampliá-la e
celebrá-la.

Vale anotar no caderno, imprimir,


compartilhar no grupo da família ou
guardar para ler depois, mas aproveite
para ler com sua criança. O gosto pela
literatura pode ser começar na infância –
e, neste caso, também por causa da
infância. Boa leitura!

1. “Infância” – Carlos Drummond


de Andrade

“Meu pai montava a cavalo, ia para o


campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que


aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se
esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo


olhando para mim:
– Psiu… Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro… que fundo!

Lá longe meu pai campeava


no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história


era mais bonita que a de Robinson
Crusoé.”

2. “Cantiga quase de roda” –


Thiago de Mello

“Na roda do mundo


lá vai o menino.
O mundo é tão grande
e os homens tão sós.
De pena, o menino
começa a cantar.
(Cantigas afastam
as coisas escuras.)
Mãos dadas aos homens,
lá vai o menino,
na roda da vida
rodando e cantando.
A seu lado, há muitos
que cantam também:
cantigas de escárnio
e de maldizer.
Mas como ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância
— então ele canta
cantigas de roda
e às vezes inventa
algumas — mas sempre
de amor ou
de amigo.
Cantigas que tornem
a vida mais doce
e mais brando o peso
das sombras que o tempo
derrama, derrama
na fronte dos homens.
Na roda do mundo
lá vai o menino,
rodando e cantando
seu canto de infância.
Pois sabe que os homens
embora se façam
de graves, de fortes,
no fundo carecem
de claras cantigas
— senão ficam ocos,
senão endoidecem.
E então ele segue
cantando de bosques,
de rosas e de anjos,
de anéis e cirandas,
de nuvens e pássaros,
de sanchas senhoras
cobertas de prata,
de barcas celestes
caídas no mar.
Na roda do mundo,
mãos dadas aos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
cantigas que façam
o mundo mais manso
cantigas que façam
a vida mais justa,
cantigas que façam
os homens mais crianças.”

3. “Retrato do Poeta Quando


Jovem” – José Saramago

“Há na memória um rio onde navegam


Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado


No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,


À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto


Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.”

4. “Quando as crianças brincam”


– Fernando Pessoa

“Quando as crianças brincam


E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância


Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,


E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.”

5. “Uma didática da invenção” –


Manoel de Barros

“Para apalpar as intimidades do mundo é


preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre
com faca
b) O modo como as violetas preparam o
dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua
existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos
carrega mais ternura que um rio que flui
entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece
primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os
princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por


exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até
que
ele fique à disposição de ser uma begônia.
Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não
tenham
idioma.

III

Repetir repetir — até ficar diferente.


Repetir é um dom do estilo.

IV

No Tratado das Grandezas do Ínfimo


estava
escrito:

Poesia é quando a tarde está competente


para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira
lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

Formigas carregadeiras entram em casa de


bunda.

VI

As coisas que não têm nome são mais


pronunciadas
por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar
não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

VIII

Um girassol se apropriou de Deus: foi em


Van Gogh.

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso


partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica
até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

Não tem altura o silêncio das pedras.”

6. “As cem linguagens da criança”


– Loris Malaguzzi

“A criança é feita de cem.


A criança tem cem mãos cem
pensamentos
cem modos de pensar de jogar e de falar.
Cem sempre cem modos de escutar as
maravilhas de amar.
Cem alegrias para cantar e compreender.
Cem mundos para descobrir.
Cem mundos para inventar.
Cem mundos para sonhar.
A criança tem cem linguagens (e depois
cem cem cem) mas roubaram-lhe noventa
e nove.
A escola e a cultura lhe separam a cabeça
do corpo.
Dizem-lhe: de pensar sem as mãos
de fazer sem a cabeça
de escutar e de não falar
de compreender sem alegrias
de amar e de maravilhar-se só na Páscoa
e no Natal.
Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já
existe
e de cem roubaram-lhe noventa e nove.
Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho
a realidade e a fantasia
a ciência e a imaginação
o céu e a terra
a razão e o sonho
são coisas que não estão juntas.
Dizem-lhe enfim: que as cem não existem.
A criança diz: ao contrário, as cem
existem.”

7. “Canção da infância” – Peter


Handke

“Criança
Quando a criança era criança,
andava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
que o rio fosse uma torrente
e que essa poça fosse o mar.

Quando a criança era criança,

não sabia que era criança,


tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.

Quando a criança era criança,

não tinha opinião a respeito de nada,


não tinha nenhum costume,
sentava-se sempre de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia poses na hora da fotografia.

Quando a criança era uma criança

era a época destas perguntas:


Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo
começou, e onde é que o espaço termina?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas
um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
não é só a aparência de um mundo diante
de um mundo?
Existe de fato o Mal e as pessoas
que são realmente más?
Como pode ser que eu, que sou eu,
antes de ser eu mesmo não era eu,
e que algum dia, eu, que sou eu,
não serei mais quem eu sou?
Quando uma criança era uma criança,
Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de
arroz, e couve-flor cozida,
e comia tudo isto não somente porque
precisava comer.
Quando uma criança era uma criança,
Uma vez acordou numa cama estranha,
e agora faz isso de novo e de novo.
Muitas pessoas, então, pareciam lindas
e agora só algumas parecem, com alguma
sorte.
Visualizava uma clara imagem do Paraíso,
e agora no máximo consegue só imaginá-
lo,
não podia conceber o vazio absoluto,
que hoje estremece no seu pensamento.
Quando uma criança era uma criança,
brincava com entusiasmo,
e agora tem tanta excitação como tinha,
porém só quando pensa em trabalho.
Quando uma criança era uma criança,
Era suficiente comer uma maçã, uma
laranja, pão,
E agora é a mesma coisa.
Quando uma criança era criança,
amoras enchiam sua mão como somente
as amoras conseguem,
e também fazem agora,
Avelãs frescas machucavam sua língua,
parecido com o que fazem agora,
tinha, em cada cume de montanha,
a busca por uma montanha ainda mais
alta, e em cada cidade,
a busca por uma cidade ainda maior,
e ainda é assim,
alcançava cerejas nos galhos mais altos
das árvores
como, com algum orgulho, ainda consegue
fazer hoje,
tinha uma timidez na frente de estranhos,
como ainda tem.
Esperava a primeira neve,
Como ainda espera até agora.
Quando a criança era criança,
Arremessou um bastão como se fosse
uma lança contra uma árvore,
E ela ainda está lá, chacoalhando, até
hoje.”

8. “As falsas recordações” –


Mario Quintana

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