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(Rosário bate na porta da casa)

Rosário – (nervosa) Abre aí, Marta!


Marta – (abrindo a porta) Entra Rosário! Viu assombração?
Rosário – O que eu vi foi pior.
Marta – Conta!
Rosário – Cadê Luzia?
Marta – No mundo.
Rosário - Jesus misericórdia!
Marta – Qual é o aperreio, minha irmã?
Rosário – O impossível se deu.
Marta – Tá me deixando nervosa, Rosário!
Rosário – Fique não que não tem mais razão.
Marta – Me diga o acontecido!
(Pausa. Rosário meio desorientada)
Marta – Fala, Rosário, que eu não tô esperando coisa boa, não!
Rosário - Todo domingo eu vou na igreja com a comadre Joana. Pois hoje
ela foi indo na frente porque eu dormi pouco, tava com um aperto no peito,
o calor tava demais... me dê um copo dágua!
(Marta pega água)
Marta – Tome! (ela toma o copo todo)
Rosário – Eu tava indo pra igreja...
B – Domingo é o dia que Deus descansa.
Rosário – Pois eu tava indo sozinha pra igreja... e encontrei José... com a
camisa toda molhada... tava bebo... tava doido...
(Rosário nervosa esfrega o rosto, silêncio)
Marta – Conte Rosário!
Rosário- Ele me disse que tinha ido beber com os meninos no campo mais
lá, afastado. Que voltou antes, sozinho pela estrada... e que nessa volta
vinha vindo esse moço pela estrada, andando, no sentido contrário do dele.
E eles se encontraram.
B – O destino traçou aí seu riscado e a estrada de barro ardia debaixo dos
pés dos homens.
Rosário – E o moço disse:
B – Amigo, me dá uma informação.
Rosário – Diga, moço.
B – Tu sabe me dizer onde é que eu encontro Luzia?
Rosário – Que Luzia é essa, moço, que tu tá procurando?
B – Uma Luzia que ficou de esperar um Antônio.
Rosário – (pausa) Eu conheço uma Luzia, mas ela não é de Antônio
nenhum, não.
B – Luzia... Uma morena.
Rosário – Aqui as moça é tudo morena.
B – Ela disse que me esperava. Eu disse que voltava.
Rosário – Qual é o seu nome, moço?
B – Meu nome é Antônio.
Rosário – O nome do moço era Antônio, Marta!
Marta- Meu Jesus misericórdia que conversa é essa Rosário?!
B– E é nessa hora que um cabra acredita que, às vezes, é o demônio que
toma as rédeas do acaso.
Marta – E aí, Rosário? Conta o que José fez!
(Silêncio)
Marta – Fala, Rosário!
Rosário – Aí ele disse que sim. Que sabia de Luzia.
B – Disse que ia levar Antônio até a casa de Luzia. Os braços de Luzia, o
lugar de Antônio.
Rosário – Ela mora é longe, mas tem um atalho, pelo meio do mato... você
tem medo de cobra?
B – Eu não tenho medo de nada, não.
Rosário – Pois devia era de ter.
B – E se embrenharam no meio do mato.
Marta – Termina, Rosário. (pausa) pelo amor de Deus...
Rosário – Não tem mais Antônio nenhum, Marta.
Marta – O quê foi que José fez Rosário?
Rosário – Ele disse que libertou Luzia de Antônio. Que agora só tinha ele.
Marta – Me diga o que foi que ele fez!
B – Mas Rosário não conseguiu dizer a Marta o que José lhe disse. Que
quando chegaram em mata fechada ele enfiou uma peixeira na barriga de
Antônio. E que Antônio era muito forte pra morrer de um golpe só e que
ele enfiou a peixeira mais vezes e muito mais vezes mesmo depois que
Antônio já tava morto. E nem disse também que enquanto o outro sangrava
ele ficou repetindo que não tinha Teresa de Antônio que só tinha Luzia de
José e que ficou dizendo o próprio nome, José, pra que o outro soubesse a
quem Luzia pertencia. E nem contou que o sangue de Antônio despertou
nele uma sede estranha e que depois ele bebeu tanta água que pensou que
fosse se afogar de dentro pra fora.
Marta – Ele voltou pra buscar ela? Pra ela ir com ele, foi?
Rosário – Agora não tem mais pra onde.
Marta – Essa menina tava a vida inteira esperando...
Rosário – Agora acabou.
Marta – Acabou foi nada. José tava era de brincadeira com a tua cara.
Rosário – E eu sou lá mulher pra José tirar brincadeira?
Marta – Ele não fez foi nada.
Rosário – José disse que foi Deus que colocou o outro no caminho dele...
Marta – Deus lá ia fazer isso...
Rosário – Deus fez.
Marta – Fez não. José tava era bêbado, doido, tava é inventando conversa.
Rosário – Tu não acredita não?
Marta – Acredito lá nada!
Rosário – Eu disse a mesma coisa a José:
B – Tu não acredita em mim não Rosário?
Rosário: Acredito lá nada!
B – Então vumbora mais eu vê o cabra! (Pausa)
Marta – Conversa...
B – Vumbora lá vê! Ta lá no mato, vumbora! (Pausa) Se não acredita que
eu fiz, se acha que eu não sou homem de fazer, vamos lá no mato comigo
que eu te mostro. Vamos lá vê a cara do homem que deixou tua irmã doida
vumbora, Rosário.
(Pausa. Marta desespera em silêncio. Se aproxima de um móvel e pega
uma espingarda, as mãos tremendo. Abraça Rosário. Olha pra ela)
Marta – Minha irmã, se José aparecer aqui de novo a morte vai tá esperando
ele.
(Rosário não reage)
Marta –Se ele trocar qualquer palavra com minha irmã, a morte encontra
ele. Eu juro!
(Pausa)
Rosário – Ele não vai voltar.
Marta – Aquele cão do inferno!
(Entra Luzia e topa com Marta)
Luzia – Vai sair pra caçar, irmã?
Marta – Sair o quê? Pergunta mais besta.
Luzia – Oxe, tá com a espingarda.
Marta – (dando-se conta) Tava limpando. E o vapor?
Luzia – Não veio.
(Rosário e Marta se olham)
Rosário – Ele não veio nesse, não. Talvez no próximo...
Marta – Talvez um dia.
Luzia – Ele vem. (cena 06: mudar 02)
M – E nem Marta e nem Rosário nunca contaram pra Luzia que esse dia
nunca haveria de chegar. Não contaram porque sabiam que a esperança e a
vida são duas coisas que se acabam juntas e que a vida de Luzia, naquele
momento, estava no estágio de ser só esperança.
C- Não contaram porque não queriam ser responsáveis por notícia tão
terrível, não queriam que houvesse no mundo essa notícia tão terrível e
talvez, se não fosse dada, a notícia deixasse de haver. E não contaram
porque no fundo, num canto da alma, havia a possibilidade de que José
tivesse mentido, que aquele pobre coitado morto no meio do mato não
fosse Antônio e o verdadeiro Antônio ainda estivesse, a cada dia, dando
mais um passo de volta pra Luzia. De volta pro céu desse azul impossível,
que pesa sobre todas as coisas, que torna tudo uma possibilidade.
B- Nunca mais tiveram notícia de José.
M - Depois de um tempo Rosário entrou pra Igreja e foi ser freira.
C - Depois de um tempo Marta pegou duas meninas pra criar e elas davam
tanto trabalho que ela não tinha mais hora no dia pra ficar infeliz
M- E Luzia...
C - Luzia espera na beira do cais há séculos, o tempo não é consolo e
cada apito do vapor, cada vela que surge no horizonte trazendo atrás de si
o possível barco, reacende no olhar da mulher a missão de esperar e vai
virando uma pedra fincada ao chão do cais.
Luzia- Amor, bicho sem medida, inimigo do tempo, me ensine a ter
paciência. Amor, trem sem rumo, siga esse caminho comigo, me leve na
tua mão, me cobre com teu manto, anda do meu lado, acende meu olhar,
explode no meio do mundo e queima tudo que não for teu. (cena 07:
finalizar)

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