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Princípios de Economia Política

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Princípios de Economia Política
JOÃO CÉSAR DAS NEVES

6.ª Edição
Tradutor

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À minha e nossa mãe,
a Imaculada Conceição,
rainha de Portugal há 350 anos

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Índice

Índice de extratextos 12
Introdução 13

1. A Ciência Económica 17
1.1. A Economia 18
I) validade das leis económicas 24
II) valor ético das leis económicas 25
III) a «mão invisível» 26
IV) a política económica 29
V) a complexidade do sistema económico 31
VI) as soluções do problema 33
1.2. O Mercado 39
I) incentivos de mercado 40
II) a curva da procura 42
III) a curva da oferta 43
IV) o equilíbrio 45
V) valor e custo 54

2. A Economia Agregada 63
2.1. Equilíbrio Geral 64
I) problemas de agregação 66

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Princípios de Economia Política

II) a lei de Say 70


III) a introdução da moeda 72
IV) a lei de Walras 74
V) a economia portuguesa 77
2.2. Os Dois Conflitos Básicos 81
I) eficiência 82
II) desenvolvimento 83
III) equidade 87
IV) estabilidade 88

3. A Política Económica 93
3.1. Orçamento 93
I) impostos 95
II) dívida pública 98
III) moeda 100
3.2. Moeda 104
I) a moeda e a economia 104
II) o negócio bancário 108
III) política monetária 111
IV) o sistema financeiro português 114

4. O Ciclo Económico 119


I) regularidades do ciclo 120
4.1. Inflação 123
I) o valor da moeda 124
II) a quantidade da moeda 125
III) custos da inflação 128
IV) medição da inflação 130
4.2. Desemprego 135
I) desemprego voluntário 137
II) desemprego friccional 139

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Índice

III) desemprego involuntário 141


IV) a curva de Phillips 147

5. Economia Mundial 151


5.1. Relações Externas 151
I) balança de pagamentos 152
II) evolução da balança portuguesa 158
III) ganhos do comércio 162
IV) a vantagem comparativa 166
V) o GATT e a WTO 168
VI) globalização 171
5.2. Mercado Cambial 173
I) regimes cambiais 176
II) SME e a especulação 183
III) a UEM 188

6. Desenvolvimento 197
6.1. Desenvolvimento Mundial 198
I) as fases da humanidade 198
II) a população e o produto 200
III) os indicadores sociais 208
6.2. Desenvolvimento Português 213

Bibliografia 217

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Princípios de Economia Política

Índice de extratextos

Nobel da diversidade 19
Adam Smith 27
Alfred Marshall 41
Não há almoços grátis 45
Bem-estar é a única finalidade 57
Os problemas e as empresas 60
Micro vs Macro 65
Joseph Schumpeter 84
Dinheiro grátis 94
David Ricardo 100
Medida do valor 106
Queimar moeda 129
«Salário justo?» 142
Remédio do desemprego? 144
Balança de pagamentos 155
Mercantilismo 156
A exportação é boa ou má? 165
Moeda forte ou fraca? 179
Pacto de Estabilidade 193
Desenvolvimento e felicidade 208
Flexibilidade da economia 214

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Introdução

Este pequeno livro nasceu da experiência repetida de conversa e debate


sobre os princípios fundamentais da Economia com múltiplos gestores
portugueses. Na verdade, ele resulta da leccionação do seminário «Noções
Básicas de Economia para Gestores», incluído no Programa Avançado de
Gestão para Executivos (PAGE) da Escola de Pós-Graduação em Ciências
Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa. Ao longo
de sucessivas edições desse seminário, e como resultado das reacções,
questões e contributos de muitos participantes, foi-se afinando um curso,
que agora se dá à estampa.
Os problemas económicos afectam toda a gente no seu dia-a-dia.
Perante eles, todos nós somos obrigados a reagir, de forma mais ou menos
consciente. Infelizmente, são poucos os que usam nessas questões o enorme
manancial de resultados, princípios e conselhos que a ciência económica
tem vindo a acumular ao longo de gerações. A razão porque isto se dá
permanece ainda misteriosa. As noções básicas de economia são tão ele-
mentares, lógicas e harmónicas que estão ao alcance de qualquer um, e a
sua utilidade é patente. No entanto, por razões desconhecidas, muita gente
prefere uma abordagem diferente aos seus problemas, com resultados fre-
quentemente desastrosos.
No caso dos gestores, a situação é ainda mais séria. Mergulhados nas
questões organizativas da empresa ou nos confrontos intensos do mer-

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Princípios de Economia Política

cado, a sua actividade muito teria a ganhar com um conhecimento mais


pormenorizado da ciência económica. No entanto, são ainda muitos os que
caem no erro de desprezar as «teorias» da Economia, em nome do conhe-
cimento directo da realidade que, alegadamente, possuem. As armadilhas
que resultam desse empirismo empenhado são muitas e subtis. E muitos são
os custos de se esquecer que a teoria económica, afinal, mais não é do que o
repositório das reflexões de muitos que, conhecendo a realidade, puseram o
seu poder e rigor intelectual ao serviço da sua compreensão. Desprezar esse
corpo racional feito de experiência e de perspicácia é, em si, sinal de falta
de capacidade de gestão.
Muitos outros gestores há, no entanto, que conscientes da importância
para a sua actividade do domínio das ideias fundamentais de Economia, se
queixam da falta de meios rápidos e práticos para aceder a esses conheci-
mentos. Esta queixa é, basicamente, injustificada, dada a enorme quanti-
dade de livros, cursos e outros instrumentos que procuram realizar esse
fim. O presente livro é apenas mais uma tentativa para comunicar, de forma
leve e singela, essas ideias.
Procurou-se uma linguagem coloquial e directa, resultante aliás do
estilo do seminário que gerou o texto. Os exemplos são tirados da vida con-
creta da economia portuguesa e mundial, tentando um quadro tão realista
quanto possível. Relativamente aos temas tratados, a análise foi centrada
nas questões agregadas e de política económica. Estes temas, desemprego,
inflação, Orçamento de Estado, mercados cambiais, encontram-se entre
os mais debatidos e influentes na vida da empresa e, ao mesmo tempo,
incluem em si uma discussão dos problemas directamente empresariais.
Afinal, a economia agregada mais não é do que a agregação do comporta-
mento das pessoas e das empresas. Deste modo, pode dizer-se que este livro
tenta uma abordagem a toda a realidade social, a partir do ponto de vista da
economia agregada.
O primeiro capítulo esboça alguns princípios epistemológicos gerais
e estabelece os princípios centrais da análise da ciência económica, como

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Introdução

base para todo o estudo que se segue. No capítulo 2 a discussão é já dos


temas agregados, mas ainda em termos gerais e metodológicos, definindo
os princípios fundamentais e resumindo os principais resultados. Os capí-
tulos seguintes tratam brevemente dos principais temas de economia agre-
gada, começando pela política económica (capítulo 3) e seguindo-se os
temas do ciclo económico (capítulo 4), das relações internacionais (capítulo
5) e do desenvolvimento (capítulo 6).
Deve dizer-se que na sua origem, hoje já longínqua, o seminário que
gerou este texto foi concebido como uma adaptação de trechos do livro:
Neves, J. César das (1992) Introdução à Economia, Editorial Verbo, Lisboa,
11.ª edição, 2017.
Na verdade, o seminário pretendia em 15 horas resumir as ideias bási-
cas do ensino de «Introdução à Economia», que ocupavam dois semestres
lectivos de ensino universitário. A evolução própria que o seminário sofreu
afastou-o dessa sua origem mas, mesmo hoje, muita da estrutura pedagó-
gica mantém traços de ligação óbvia com esse livro muito maior. Esta nota
tem de ser feita em nome da lisura editorial.
A principal lacuna que existe no presente volume é, sem dúvida, a
ausência das discussões, debates e interrogações que, ao longo das múlti-
plas edições do seminário, os gestores participantes realizaram. O diálogo
directo, sempre fomentado e proveitoso para todos, constituiu a melhor
parte desses encontros e, muitas vezes, substituiu com vantagem a leccio-
nação directa de alguns dos temas aqui descritos, por falta de tempo. Não
sendo possível captar esses elementos, ficam aqui apenas as reflexões que
os motivaram.

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A Ciência Económica

Este primeiro capítulo apresenta a estrutura básica da ciência, através


dos seus instrumentos mais essenciais, que serão úteis nos temas seguin-
tes. A ideia que preside a toda a análise é que toda a Economia consiste
na aplicação de algumas ideias, muito simples, aos problemas concretos.
Dado que a realidade é profundamente complexa, a aplicação das noções
básicas de Economia é difícil e exige muitos cuidados e cautelas. Mas a
dificuldade vem da realidade, não das noções que, em si, são elementares.
Em particular, este capítulo procurará estabelecer duas ideias.
A primeira é a noção de que toda a Economia parte de dois postulados
básicos: o princípio da Racionalidade e o princípio do Equilíbrio. Estes
dois princípios são as hipóteses que a Economia faz para compreender o
comportamento humano. A aceitação desses postulados determina um
raciocínio específico, que é a forma económica de olhar para a realidade.
A segunda é que a sociedade resolve os seus problemas pelo uso de três
instrumentos essenciais: a tradição, a autoridade e o mercado. No estudo do
mercado, deduzem-se a partir dos dois princípios algumas ideias simples
relativamente ao valor e ao custo.

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Princípios de Economia Política

1.1. A ECONOMIA

A Economia não é o estudo dos fenómenos económicos! E não os estuda


por uma razão muito simples: porque não há fenómenos económicos! Não
há problemas económicos, como não há problemas sociais ou químicos. Na
realidade, o que existe são fenómenos e problemas; a sua classificação é uma
abstracção que a ciência realiza.
Não há fenómenos eminentemente económicos. Os fenómenos não são
económicos, ou sociológicos, ou químicos. Os fenómenos são fenómenos!
A realidade é única e, na sua riqueza natural, contém múltiplos aspectos
particulares. Essa realidade e os seus múltiplos aspectos podem ser analisa-
dos de variados pontos de vista, económico, sociológico, químico, etc. Cada
ciência tem por objecto toda a realidade, mas tenta captar essa realidade a
partir de um prisma especial. Não é a natureza que classifica a realidade,
mas sim o estudo humano, organizado em ciência. Assim, qualquer pro-
blema real pode ser analisado do ponto de vista químico, físico, económico,
social, etc.
Não existe uma parte da realidade que é económica e que é o objectivo
da Economia. O que existe é uma forma económica de olhar para a reali-
dade, toda a realidade. A Economia não é o estudo da realidade económica,
é o estudo da realidade a partir de uma estrutura económica de análise.
Será que quando uma pessoa compra um jornal, isso é um fenómeno
económico? Por que razão não é possível ao sociólogo analisar o aspecto de
encontro de classes sociais diferentes entre o jornaleiro e o comprador?, ou
ao ecologista de se preocupar com o efeito desta compra sobre a poluição?,
e o que impede um químico de observar as reacções que se dão entre o suor
da mão do jornaleiro, a tinta do jornal e o metal da moeda?
Quer isto dizer que é possível fazer uma teoria económica de coisas
tão «pouco económicas», mas pertencentes à nossa vida corrente como a
da poesia, o namoro, a política ou os divertimentos? Claro que sim. Basta a
esses fenómenos aplicar a metodologia que é o prisma de análise da Econo-

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A Ciência Económica

NOBEL DA DIVERSIDADE – O Prémio Nobel da Economia foi ultimamente atribuído a


vários analistas que estenderam o uso da Economia a fenómenos que o senso comum
considera não económicos. Em 1991, o prémio foi concedido ao britânico Ronald
Coase (1910-2013), da Universidade de Chicago, que fundou a «Economia do Direi-
to» e a «Economia da Propriedade». No ano seguinte o prémio foi concedido a um
dos homens que mais estendeu o âmbito da análise económica, o americano Gary S.
Becker (1930-2014). Trabalhando também na Universidade de Chicago, Becker criou
uma análise económica de temas como o crime, a discriminação, a constituição da
família, a afectação do tempo, a educação e o capital humano. Em 1993, o Prémio
Nobel foi atribuído a dois autores que aplicaram a teoria económica para elucidar uma
das questões mais debatidas: a História. Robert W. Fogel (1926-2013), ainda de Chica-
go, e Douglass North (1920-), da Universidade de Washington, criaram a disciplina
chamada «Cliometrics», o estudo económico da evolução das instituições sociais.

mia, e obtém-se uma teoria económica desses fenómenos. E até existem


alguns autores que têm vindo a fazê-lo recentemente.
Uma questão diferente é saber se essa análise económica capta, através
do seu prisma particular de enfoque, os aspectos mais relevantes para o
estudo desse fenómeno. É provável que, se nos debruçarmos sobre um poe-
ma, o amor entre dois jovens ou as relações políticas, e o fizermos através
de um método económico (ou sociológico, ou químico), apenas captemos
aspectos secundários, dessa realidade.
No entanto, no esforço contínuo da humanidade para compreender
a realidade, a única certeza que temos é que todas as ciências, cada uma
olhando do seu prisma particular, não chegam para apreender a magna
complexidade da realidade. Por isso, o contributo da Economia, mesmo que
modesto, pode ser útil, por olhar a realidade de um ponto de vista diferente
do das outras ciências.
A metodologia económica parece mais indicada para estudar proble-
mas que têm certas características particulares, a que adiante, de forma
abusiva, chamaremos de «problemas económicos». Mas essa predisposição
para certo tipo de fenómenos, não impede a ciência de ser aplicada a outros
problemas, e não quer dizer que a análise não possa captar aspectos inespe-

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Princípios de Economia Política

rados e interessantes em campos que pareciam ser-lhe estranhos. Todos


os assuntos correntes da vida do homem podem (e devem) ser objecto da
Economia.
E qual é esta forma especial de analisar a realidade? Como é que a Teoria
Económica enfrenta os grandes obstáculos que se lhe apresentam e estuda
este sujeito humano tão variável, multifacetado e imprevisível? O método
utilizado baseia-se na aplicação sistemática de dois postulados de base,
muito simples e gerais. Toda a ciência se contrói a partir de postulados. Os
da Economia são dois.
Estes dois princípios, que chamamos o postulado da racionalidade e o
postulado do equilíbrio, constituem o essencial da abordagem económica e
são os elementos caracterizadores da Economia em relação às outras ciên-
cias. Como veremos repetidamente ao longo do nosso percurso, é a partir
destes princípios que todos os resultados económicos são obtidos, e a sua
riqueza é tal que uma enorme quantidade de ideias, com enorme interesse
prático e relevância concreta, resultam destas ideias muito simples.
A ciência económica, no seu esforço de compreensão da realidade
parte do princípio de que:

– os agentes são racionais e


– os sistemas equilibram

O postulado da racionalidade significa que cada pessoa, nas suas de-


cisões, procura escolher aquilo que lhe parece melhor. Esta hipótese é de
tal modo evidente que nós, quando falamos em «escolher», implicamos
automaticamente a racionalidade. «Escolher», no sentido corrente, sig-
nifica seleccionar o que consideramos melhor, dadas as circunstâncias. A
racionalidade, por outras palavras, significa a recusa natural do erro e do
desperdício.
Uma escolha é irracional se uma pessoa, deliberada e conscientemente,
entre duas alternativas disponíveis, selecciona aquela que sabe ser a que

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A Ciência Económica

considera pior. No fundo, a racionalidade é a própria natureza da escolha.


Escolher significa seleccionar a melhor alternativa. A condição que uma
escolha tem de cumprir para ser racional é tão fraca que se pode dizer que a
grande maioria das decisões humanas, se bem analisadas, são mesmo racio-
nais. É certamente impossível encontrar alguém que, sistematicamente,
decide escolher o que sabe ser contra os seus próprios desejos. Na verdade,
definida pela generalidade que se viu acima, é mesmo difícil encontrar uma
decisão totalmente irracional.
O segundo princípio, o postulado do equilíbrio, não se aplica como o
primeiro às decisões de um agente económico, seja ele uma pessoa ou insti-
tuição. Este princípio é o que rege a interacção entre várias decisões racio-
nais feitas por agentes diferentes.
O postulado do equilíbrio apenas exige que, quando confrontadas, as
decisões de vários agentes se combinem entre si da melhor maneira possí-
vel. No fundo, este postulado resulta do anterior. Na verdade, se os agentes
são racionais, eles vão aproveitar as oportunidades abertas pelas decisões
dos outros. Desta forma, as várias decisões individuais vão interagir de
forma a encontrar a situação mais equilibrada.
Existem muitas situações em que sistemas de decisões de vários agentes
entram num processo de interacção que leva a um equilíbrio. O equilíbrio
de funções, tarefas, cargos e responsabilidades dentro de uma organização,
uma empresa, um clube, uma comunidade ou qualquer outra instituição
é, muitas vezes, um exemplo de um equilíbrio de decisões de pessoas dife-
rentes. A actuação de uma equipa desportiva durante um jogo é também um
exemplo de equilíbrio de decisões independentes. Pode não ser a situação
ideal, mas a verdade é que, havendo interacção entre os agentes, cada um
acaba por encontrar um arranjo «equilibrado», que se combina num todo
harmónico.
Talvez a forma mais fácil de ilustrar o verdadeiro significado destes
axiomas, tão frequentemente confundidos e mal compreendidos, seja fazer
uma teoria económica completa, do princípio até ao fim. Partindo dos dois

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Princípios de Economia Política

postulados e desenvolvendo um raciocínio científico, procura-se uma teo-


ria explicativa de um fenómeno, que, visto ser deduzida dos dois postulados
económicos, é uma teoria económica. Este exemplo (que se procurou que
não fosse «económico» no sentido corrente para ilustrar também a vasti-
dão de aplicabilidade da teoria) servirá também depois para desenvolver
algumas características da ciência.

A História do Autocarro
O problema que será abordado é o de um autocarro, completamente cheio,
que chega ao término da carreira. Precisa de largar todos os passageiros
e, para isso, abre as duas portas que possui. Como podemos descrever o
comportamento do sistema? A compreensão do comportamento deste sis-
tema (o autocarro cheio de pessoas) é uma tarefa científica semelhante à
tarefa do economista que pretende entender o comportamento do sistema
económico. Não é um problema económico nem deixa de o ser. Mas é um
problema susceptível de tratamento económico.
Uma das hipóteses de abordagem possível ao problema consiste em
impor que os agentes que se encontram no autocarro são racionais. Trata-se
da aplicação do postulado da racionalidade. Neste caso, a racionalidade sig-
nifica que cada passageiro, no caso geral, vai procurar sair por aquela porta
que lhe está mais perto ou, em termos económicos, vai tentar minimizar o
espaço percorrido, o esforço e o tempo dispendido para obter o seu fim: sair
do autocarro. «Sair pela porta que está mais perto» é a regra de conduta
que cada um vai aplicar.

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A Ciência Económica

No entanto, cada uma das pessoas racionais, quando decide sair do


autocarro, tem à sua volta muitas outras pessoas. Cada uma destas é tam-
bém racional, mas não decide pela cabeça da primeira. Cada uma das pes-
soas que está no autocarro guia-se pela sua decisão racional. Assim, para
conseguirem sair do autocarro, as várias pessoas têm de combinar as suas
acções, de forma a ordenarem o seu comportamento em conjunto. Assim,
o sistema que é o autocarro, composto por pessoas racionais, chegará a um
«equilíbrio», que a ciência económica supõe pelo postulado do equilíbrio.
Esse equilíbrio, naturalmente, será que a metade de trás do autocarro
sairá pela porta de trás e a metade da frente pela frente. Assim, se utilizar-
mos estes dois princípios, sabemos imediatamente como evolui a desocupa-
ção do autocarro: as pessoas na metade da frente do autocarro saem pela
porta da frente e as pessoas na metade de trás saem pela porta de trás. Esta
situação vê-se na figura seguinte:

A utilização dos princípios da racionalidade e do equilíbrio permitiu a


obtenção de uma teoria simples, plausível, do comportamento deste sistema.
Esta teoria não responde absolutamente à questão que se colocou. Apenas dá
uma possibilidade de resposta, a partir da ciência económica. Essa resposta
terá agora de ser testada, observando os autocarros e vendo como se despejam.
Deste modo, ao supor que este sistema (o autocarro cheio de pessoas
no término) obedece aos dois postulados básicos, consegue obter-se uma
teoria explicativa geral do comportamento de todos os sistemas semelhan-
tes. Se os agentes são racionais e a sua interacção está equilibrada, sabemos
imediatamente o que esperar do sistema.

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Princípios de Economia Política

Assim se viu como se constrói uma teoria económica. Mas este exem-
plo serve também para sublinhar alguns aspectos importantes da ciência
económica.

I) validade das leis económicas

Um primeiro ponto relaciona-se com a verificação empírica deste resul-


tado. Será que esta regra se aplica a todas as situações? Se está a chover ou
se temos um amigo na parte de trás do autocarro, por exemplo, o compor-
tamento racional leva a atitudes diferentes. O princípio básico da raciona-
lidade é geral, mas a regra particular que dele foi deduzida só se aplica a
certos casos, mesmo que seja à maioria, como no exemplo.
A razão da aceitação da hipótese de existência, na generalidade dos
casos, de um comportamento optimizador, reside na confiança existente de
que a maioria das pessoas, na falta de qualquer motivo válido em contrário,
tentará reduzir o desperdício de esforço. Claro que pode haver alguém que,
sem razão, queira sair pela porta mais longe, empurrando todos ou espe-
rando para ser o último. Mas este caso é claramente uma excepção, e a sua
existência não vai perturbar significativamente o nosso estudo do esvazia-
mento do autocarro.
Não é preciso que TODAS as pessoas em TODOS os autocarros obede-
çam estritamente a esta regra para que, com esta ideia, se consiga explicar
o esvaziamento normal dos autocarros no fim da carreira. Basta que a maior
parte das pessoas, a maior parte do tempo, se comportem assim.
Quando o preço da gasolina sobe, não é preciso que toda a gente desça
o consumo de gasolina, para que seja válida a lei de que quando o preço
sobe a quantidade procurada desce. Se uma pessoa comprou um carro nessa
altura, até vai consumir mais gasolina. Mas a lei é útil, porque quase todos
a vão seguir.
Um dos maiores economistas da História, de quem falaremos adiante,
Alfred Marshall, afirmou que:

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A Ciência Económica

«As leis da Economia devem ser comparadas com as leis das marés,
e não com com as leis simples e exactas da gravitação. Pois as acções
dos homens são tão variadas e incertas que a melhor afirmação de ten-
dências, que podemos fazer numa ciência da conduta humana, deve ser
inexacta e defeituosa», Marshall (1890), vol. , pág. 3.

II) valor ético das leis económicas

Um outro resultado importante, que se pode notar da aplicação destes


postulados ao nosso exemplo e que pode esclarecer algumas confusões fre-
quentes, tem a ver com a valorização moral das atitudes. Foi afirmado que
a racionalidade implicava que cada pessoa no autocarro queria sair o mais
rapidamente possível do autocarro. Mas isso não quer dizer que elas têm de
se mostrar egoístas, atropelando as crianças ou deixando de dar passagem
às senhoras de idade. Uma pessoa pode ser delicada e, ao mesmo tempo, ao
escolher a porta de saída do autocarro, procurar a que lhe está mais perto.
A utilização do princípio da racionalidade ou da maximização do bem-estar
não implica necessariamente comportamentos éticos.
Torna-se assim clara a verdadeira natureza dos axiomas e dos mecanis-
mos económicos que deles derivam. Da sua aplicação resulta apenas a tenta-
tiva de evitar o desperdício, e por isso eles são conceitos funcionais na sua
essência. As hipóteses, utilizadas na teoria, de que as empresas maximizam
o lucro e as pessoas maximizam a utilidade, por exemplo, caem neste caso.
Ao supor que maximiza o lucro, exige-se apenas que o empresário tente
usar da melhor maneira os recursos de que dispõe para prosseguir os seus
objectivos, que podem ser os mais altruísticos. E, tal como o passageiro ao
escolher a porta mais próxima, nada o obriga a necessariamente violar a lei,
a civilidade e a delicadeza nesse processo. A questão de saber se uma pessoa
será respeitosa ou não depende da atitude de cada um, e nada tem a ver com
o postulado da racionalidade.

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Princípios de Economia Política

III) a «mão invisível»

O nosso exemplo pode também ser usado para ilustrar uma outra ideia
que, além de importância teórica, tem também alto significado histó-
rico.
Repare-se que, embora cada um esteja dedicado apenas à resolução do
seu problema (o que, como vimos, nada tem a ver com egoísmo), consegue,
sem dar por isso, resolver o problema global da melhor maneira possível.
Não existe forma de esvaziar um autocarro com duas portas, naquela posi-
ção mais rápida, do que a que foi usada.
Este facto é surpreendente e tem muito mais consequências do que
parece. Numa sociedade, onde cada pessoa decide pela sua cabeça, o que
seria de esperar era o caos e a confusão permanente. E, no entanto, o que
vemos é uma ordenação quase natural. É verdade que observamos alguma
confusão na sociedade, mas isso seria de esperar. O que é surpreendente é
que haja tão pouca confusão. O que surpreende é a ordem.
O homem que, pela primeira vez, intuiu o potencial destas duas ideias
foi um professor de moral escocês, Adam Smith, que, por isso mesmo, se
tornou o «Pai da Economia». Ele observou que, do confronto de objectivos
diferentes e frequentemente antagónicos, saía a ordem social. Algumas das
observações de Smith tornaram-se célebres:
«Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou do padeiro
que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles
têm o seu próprio interesse», Smith (1776), vol. , pág. 95.
Smith expressou este resultado com a fórmula célebre de «teorema da
Mão Invisível». Ele afirmou:
«Cada indivíduo [...] não pretende, normalmente, promover o bem
público, nem sabe até que ponto o está a fazer. Ao preferir a indústria
interna em vez da externa só está a pensar na sua segurança; e, ao dirigir
essa indústria de modo que a sua produção adquira o máximo valor, só
está a pensar no seu próprio ganho, e neste, como em muitos outros casos,

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A Ciência Económica

ADAM SMITH (1723-1790)


Escocês de nascimento e professor de moral da Universidade
de Glasgow, Smith, particularmente preocupado com a
moral social, publicou em 1776 um livro, que pretendia usar
como manual nas suas aulas, mas que se tornou rapidamente
um sucesso de vendas.
O Ensaio sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das
Nações demonstrava, com múltiplos exemplos, como, natu-
ralmente, as relações económicas se ordenavam de forma
espontânea, formando um sistema harmónico. O interesse
por esta visão foi grande, não só nos salões elegantes, mas também nas universidades
e meios políticos, nascendo uma ciência para estudar esse sistema e fazendo de Smith
o «Pai» da jovem Economia. Já professor e filósofo de renome, com obras em outros
ramos do saber, a sua fama como economista levou à nomeação, dois anos depois da
publicação do «Ensaio», como comissário das Fronteiras da Escócia, onde passou os
seus últimos anos.

está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia
parte das suas intenções» (ibidem, , 757-8).
E patente o fascínio de Adam Smith por um sistema que, de forma
surpreendente, aparece ordenado naturalmente sem que ninguém directa-
mente se possa ocupar disso. Este fascínio fez nascer a Economia. Na verdade,
a «mão invisível», além de ser muito importante para os estudos económicos,
tem ainda o interesse de ser a motivação principal que deu origem à ciência
económica. O que os discípulos de Adam Smith procuram compreender é
como este fenómeno se verifica, e porquê. É esse o objectivo que deu origem
à ciência que Smith iniciou.
Tal como nos princípios citados atrás, esta ideia da «mão invisível»
refere-se apenas a preocupações com a eficiência na luta contra o princi-
pal inimigo da Economia, o desperdício. Também neste caso, o conceito
não apresenta qualquer conotação ética, e pode também ser ilustrado pelo
citado exemplo do autocarro.
Se na saída for respeitado o princípio da minimização do espaço
percorrido pelas pessoas, como impõe a hipótese do teorema, então

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Princípios de Economia Política

metade dos passageiros, a situada na parte dianteira do autocarro, tenderá


a usar a porta da frente e o resto a porta de trás. As duas portas estarão
completamente ocupadas durante todo o processo de saída, conseguindo-
-se assim esvaziar o autocarro no mínimo tempo. A «mão invisível» fun-
cionou.
Esta ideia é talvez o aspecto mais importante do estudo económico da
sociedade global: a sociedade funciona bem, sem que ninguém se preocupe
com isso. Ela constitui um dos principais elementos da harmonia do sistema
económico referida atrás, com semelhanças claras com a harmonia natural
que a Física, a Biologia e outras ciências encontram nos seus domínios. Uma
das motivações essenciais do estudo da Economia passou a ser o interesse
em compreender este sistema em que, de forma inesperada, surgia uma
ordem onde seria de suspeitar que reinaria o maior caos, se ninguém impu-
sesse a disciplina.
Em todo este raciocínio nunca foram invocados conceitos éticos ou
obtidos resultados valorizáveis subjectivamente. A solidariedade, noção
eminentemente moral, não teve de ser chamada para a solução do problema
global e por isso o é, aqui, independente das análises de eficiência. Não é
pois neste campo que se encontra o seu lugar na Economia e não se procure
portanto aqui a sua aceitação ou recusa pela Teoria Económica. Adiante
falar-se-á dela.
O carácter funcionalista desta noção é posto em destaque pelo facto
de nem sempre ela ser verdadeira. Na verdade, ainda no exemplo do auto-
carro, existe uma hipótese adicional que teve de ser introduzida para a sua
verificação: a colocação simétrica das portas.
Considere-se uma alteração no nosso exemplo do autocarro. O tipo de
veículo actualmente mais usado em Lisboa tem uma diferente colocação das

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A Ciência Económica

portas: uma à frente e outra ao meio do carro, o que altera o funcionamento


do sistema e a verificação do teorema.
No novo sistema, o mesmo princípio de minimização do espaço leva
agora a que pela porta da frente só saiam cerca de um quarto dos passagei-
ros, os colocados mais perto do condutor, pois os outros todos estão mais
próximos da porta central. Assim se impede que o autocarro seja despejado
no mínimo tempo. O sistema continua em equilíbrio, mas agora a «mão
invisível» não funcionou!
É interessante notar que, neste caso, a equivalência entre a solução de
minimização do espaço percorrido e a de minimização do tempo deixa de
existir, sendo para alguns mais rápido sair pela porta mais afastada, o que
fere a sensibilidade de qualquer economista que use os transportes públicos
lisboetas.
Note-se que o problema que impediu o funcionamento da «mão invisí-
vel» não foi a racionalidade das pessoas. As pessoas estão a comportar-se
correctamente, mas os incentivos que defrontam é que estão distorcidos. A
questão que impediu a verificação da «mão invisível» foi a própria estrutura
do problema (neste caso a colocação das portas), que corresponde à estrutura
da economia. Só em certas condições se dá a verificação da «mão invisível».

IV) a política económica

Que fazer nestes casos em que os agentes livres (que adiante identificare-
mos com o mercado), deixados a si próprios, não resolvem por si a questão
de forma satisfatória? Esta questão nasce necessariamente da constatação
da existência de situações fora da alçada da «mão invisível», quer no sis-
tema económico quer no nosso autocarro. O nosso exemplo pode também
ajudar a perceber esta questão.
Se cada um dos agentes se preocupa apenas com a sua situação, não é
neles que poderemos encontrar a resposta para um problema que é global.
Mas na maioria dos casos (de certeza nos que nos interessa) existe um, mas

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Princípios de Economia Política

só um agente que se preocupa com o problema global. A esse agente chama-


mos o Estado (que neste exemplo é substituído pela empresa de camiona-
gem). Se o mercado não resolve o problema, o Estado pode intervir, para
resolver a questão. Assim, quando o mercado não funciona bem, se a «mão
invisível» falha, apenas o Estado pode intervir para resolver o problema. É
isso a política económica.
No nosso exemplo, poderia ser colocado um funcionário na porta do
meio, impedindo que, por essa porta, saíssem pessoas que se encontram na
parte da frente do autocarro. Note-se que, uma vez feita esta intervenção,
aparecem imediatamente vários problemas típicos da política económica.
As pessoas que estão logo à frente da porta do meio têm muito a perder com
a intervenção que os obriga a sair pela porta da frente. Esses vão protestar
contra a medida e tentar subvertê-la ou corrompê-la. Por outro lado, as
pessoas que estão ao fundo do autocarro são os que ganham mais com a
medida, pois vão sair mais cedo. Esses apoiam a medida e farão «lobby» a
seu favor.
Mas, em termos gerais, é evidente neste caso que o custo da interven-
ção é tal que não vale a pena fazê-la. O custo de ter um funcionário à porta
do autocarro é de tal maneira elevado que não justifica o ganho de alguns
minutos na desocupação do autocarro. E aqui aparece outro dos princípios
fundamentais da Economia: como em todas as decisões económicas, só o
que der maior benefício líquido é que deve ser feito. Não basta identificar
uma «falha de mercado», uma situação em que a «mão invisível» não
funciona, para se justificar a intervenção do Estado. Pode acontecer que se
verifique aí também uma «falha do Estado», e seja melhor deixar as coisas
como estão. Esta constatação, que parece óbvia, reveste-se de contornos
dramáticos quando a aplicamos à Economia. Os sistemas económicos de
direcção central partiram da verificação, aliás óbvia, de que os sistemas de
economia livre de mercado funcionam mal, verdade que todos podemos
observar no nosso dia-a-dia. Mas eles deduziram desse facto a necessi-
dade de impor um sistema alternativo que ninguém sabia se iria funcionar

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A Ciência Económica

melhor. A falta de compreensão deste princípio básico da Economia custou


muitos sofrimentos a muitas gerações.

V) a complexidade do sistema económico

Através dos postulados de racionalidade e do equilíbrio, a sociedade con-


segue pôr a funcionar um sistema muito complexo e poderoso, que nos per-
mite o acesso a uma multiplicidade de bens que fazem a nova vida corrente
muito mais confortável. Este sistema, a que chamamos sistema económico
é essencial à nossa sociedade como a conhecemos. Mas, de tanto lidarmos
com ele, nem damos conta da sua importância e complexidade.
Smith, logo no início do seu livro, ilustrou esta realidade com a história
do casaco de lã do jornaleiro, o objecto mais pobre do habitante mais pobre
do seu tempo. Esta história, hoje célebre, demonstra bem o fascínio que
motivou Smith:

A História do Casaco
«... Por exemplo, o casaco de lã que cobre um jornaleiro, por mais gros-
seiro e tosco que possa parecer, é o produto do labor combinado de grande
número de trabalhadores. O pastor, o classificador da lã, o cardador, o
tintureiro, o fiandeiro, o tecelão, o pisoeiro, o curtidor, e muitos outros,
têm de reunir as diferentes artes para que seja possível obter-se mesmo
este produto comezinho. E quantos mercadores e carreteiros hão-de,
além disso, ter sido empregados no transporte dos materiais de uns des-
ses trabalhadores para os outros, que, muitas vezes, vivem em regiões
do país muito distantes! Quanto comércio e quanta navegação especial-
mente, quantos construtores navais, marinheiros, fabricantes de velas
e de cordas terão sido precisos para reunir as diferentes drogas usadas
pelo tintureiro, que muitas vezes provêm dos mais remotos cantos do
mundo! E que variedade de trabalho é ainda necessária para produzir
as ferramentas do mais ínfimo desses trabalhadores! Para já não falar

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Princípios de Economia Política

de máquinas tão complicadas como o navio do marinheiro, a prensa do


pisoeiro, ou mesmo o tear do tecelão, consideremos tão-somente a varie-
dade de trabalho requerida para originar essa máquina tão simples, a
tesoura com que o pastor tosquia os carneiros. O mineiro, o fabricante da
fornalha para fundir o minério, o lenhador, o carvoeiro que produziu o
carvão que a fundição utiliza, o fabricante de tijolos, o assentador de tijo-
los, os operários que trabalham com a fornalha, o operário da fundição, o
ferreiro, todos têm de juntar as suas artes para a produzir. Se examinás-
semos da mesma forma as diferentes partes que compõem o seu vestuário
e a mobília da sua casa, a camisa de linho que usa junto à pele, os sapatos
que lhe protegem os pés, a cama em que se deita, e as várias partes de
que se compõe, o fogão de cozinha em que prepara os seus alimentos, o
carvão que utiliza para esse fim, arrancado às entranhas da terra e tra-
zido até ele provavelmente depois de uma longa viagem por terra e por
mar, todos os outros utensílios da sua cozinha, tudo aquilo que utiliza
na sua mesa, as facas e os garfos, os pratos de barro ou de estanho, nos
quais serve e divide os seus alimentos, as várias mãos necessárias para
produzir o seu pão e a sua cerveja, a vidraça que deixa entrar o calor e
a luz e o protege do vento e da chuva, com todo o saber e a arte exigidos
pelo fabrico dessa bela e feliz invenção sem a qual dificilmente se poderia
proporcionar locais de habitação muito confortáveis nestas zonas frias
do mundo, e ainda todas as ferramentas a que os operários empregados
na produção de todos esses bens têm de recorrer; se examinarmos todas
essas coisas, dizia eu, e considerarmos a variedade de actividades incor-
poradas em cada uma delas, tornar-se-nos-á claro que, sem a ajuda e
cooperação de muitos milhares, as necessidades do cidadão mais ínfimo
de um país civilizado não poderiam ser satisfeitas, nem mesmo de acordo
com aquilo que nós muito falsamente imaginamos ser a forma simples e
fácil como elas são habitualmente satisfeitas. Na verdade, comparadas
ao mais extravagante luxo dos grandes, as suas necessidades parecem,
sem dúvida, extremamente simples e chãs; e, no entanto, talvez seja

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A Ciência Económica

verdade que a satisfação das necessidades de um príncipe europeu não


excede tanto a de um camponês industrioso e frugal, como a deste excede
a de muitos reis africanos, senhores absolutos da vida e da liberdade de
dez mil selvagens nus», Smith (1776), vol. , págs. 89-91.

Esta história mostra bem o poder e o significado das forças com que
estamos a lidar na ciência económica. Foi a compreensão do facto de que
esta realidade, tão complexa e intrincada na aparência, funcionava de
forma tão regular e coordenada, sem que ninguém dela cuidasse, que deu
origem ao estudo da Economia.
Smith sublinhava não só que a complexidade do sistema não impedia
uma eficiência nos resultados, como também levava a que as suas diferen-
ças internas, embora importantes, fossem muito pequenas em comparação
com as diferenças que o separavam dos outros sistemas (a distância de nível
de vida entre o príncipe e o jornaleiro é muito menor que a que separa o
jornaleiro do rei indígena, na expressão datada de Smith). A harmonia do
sistema económico moderno não residia só na eficiência do seu funciona-
mento, mas também na redução das diferenças entre as pessoas, embora
ainda grandes.
Esta maravilha fascinou Adam Smith, e justificou um estudo que ele
iniciou: a Teoria Económica.
Assim vimos o significado dos princípios da racionalidade e do equilí-
brio, que a ciência económica usa para analisar a realidade. Essa realidade é
bem complexa e fascinante, uma vez que as pessoas no dia-a-dia se combi-
nam, pela «mão invisível», para conseguirem formar o sistema económico,
que é tão importante à nossa vida.

VI) as soluções do problema

Este sistema, com toda a sua complexidade, funciona continuamente. Em


cada dia, a cada pessoa, grupo, sociedade, o problema económico reno-

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Princípios de Economia Política

va-se em cada decisão tomada. Essas decisões individuais, como vimos,


inter-relacionam-se fortemente, criando um sistema económico extrema-
mente complexo. Nele, cada um tenta produzir o que melhor sabe fazer e
consumir o que mais gosta, atingindo o maior bem-estar.
Se este é o problema que se põe a cada sociedade, vamos agora ver as
várias formas como as sociedades e os agentes o resolvem. Podemos resu-
mir os métodos de solução do problema económico de uma sociedade em
três instrumentos essenciais: a tradição, a autoridade e o mercado.
Em todas as sociedades, uma enorme quantidade de decisões são tomadas
por tradição, por hábitos ou instituições. As práticas de negócio, os hábitos
de relação e organização, ou até coisas tão comuns, mas tão importantes, como
a hora a que se almoça, a ocupação dos tempos livres, o sítio onde se dorme.
O papel da tradição muda ao longo do tempo, mas ocupa sempre
um lugar central. Nas sociedades antigas, um grande número de regras e
costumes tradicionais regulava a maior parte das actividades económicas,
criando fortíssimas influências religiosas, sociais, culturais sobre todos os
aspectos do seu funcionamento. Desde a escolha da profissão, estabelecida
por castas ou pela família, até ao preço e acesso a boa parte dos bens e aos
métodos de comércio, pesos, medidas e moedas, quase tudo estava defi-
nido por tradições religiosas, culturais e regionais. Este método de solução
económica, que eliminava em muito a necessidade de novas decisões, dava
grande estabilidade ao sistema económico, mas reduzia muito a sua flexi-
bilidade e eficiência.
Mas hoje a influência da cultura na evolução da sociedade não é menor.
Vemos claramente esse facto nas diferenças que sistemas supostamente iguais
têm na sua evolução concreta. As economias americana, japonesa e euro-
peia são, alegadamente, manifestações da mesma estrutura social. No entanto,
as culturas locais criaram diferenças enormes dentro do mesmo sistema.
Outro método usado para resolver as questões económicas é o da auto-
ridade. O poder, do Estado, do faraó, do príncipe, do partido, do ayatolla,
regula de tal forma a actividade económica em certas sociedades que ela

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A Ciência Económica

pode resolver todo o problema. Os agentes do Estado, sejam os emissários


do duque local ou os funcionários do departamento central de planea-
mento, podem chegar a definir o que cada pessoa produz, o que pode ven-
der e o preço dessa venda.
Nos nossos dias, e mesmo fora das sociedades de direcção central, a
autoridade do Estado tem enorme influência sobre o sistema económico,
alterando e impondo decisões aos agentes económicos. Através de impos-
tos e subsídios, mas sobretudo dos efeitos económicos das leis, empresas
públicas e acordos internacionais, o Estado resolve muitos dos problemas
económicos dos nossos dias. A flexibilidade da autoridade é muito superior
à da tradição, mas continua a ser conhecida e obedecida por todos.
O terceiro sistema baseia-se na liberdade de decisão das partes
interessadas. É o mercado. O papel da liberdade de iniciativa e do sistema
de preços, lucros, prejuízos e incentivos é grande no mundo actual. Nele,
cada um tem liberdade, dentro dos costumes e das leis do país, de produzir
e consumir o que deseja. A inter-relação dos incentivos gera um sistema
que dá solução simples e eficiente à maior parte dos problemas económi-
cos. Mas a liberdade de decisão existiu sempre em todos os sistemas sociais,
em maior ou menor grau, em múltiplos campos da actividade humana, da
escolha da profissão à organização da sua vida pessoal. O mercado é extre-
mamente eficiente a realizar os desejos dos agentes, com o mínimo de des-
perdício. Mas, ao mesmo tempo, é o mais frágil dos três modos de decisão.
Estas são as três principais formas de organização do sistema econó-
mico. Como vimos, as sociedades modernas usam simultaneamente os
três métodos, constituindo, por isso, sociedades mistas. Mas a utilização
simultânea dos três instrumentos, mercado, Estado e regras sociais, nas
sociedades mistas, não apenas de hoje, verificou-se, por formas diferentes,
em todas as sociedades. Aliás, essa combinação é não só uma conveniência,
mas uma exigência. Nenhum dos três métodos referidos pode funcionar
correctamente sem a existência dos outros dois. Para ilustrar esta afirma-
ção, mais uma vez se lançará mão de um exemplo singelo.

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Princípios de Economia Política

Depois da história do autocarro, que vimos atrás, continuamos ainda


com um problema de transporte de passageiros, considerando uma viagem
de táxi.

A História do Táxi
A questão económica fundamental que se levanta a quem conhece os dois
postulados fundamentais da Economia e ande de táxi é a seguinte: dado que
o cliente do táxi é racional, por que razão, uma vez chegado ao seu destino,
deve pagar a corrida? Se ele já foi servido, porque deve pagar?
Esta questão aparece naturalmente após o que vimos. Dissemos que a
racionalidade nada tinha a ver com a moral. Se o cliente procurar apenas o
seu bem-estar e não levar em conta os escrúpulos morais, a conduta mais
racional poderá ser para muitos, uma vez no destino, sair sem pagar a cor-
rida. É claro que se o cliente é uma pessoa bem formada, por razões morais,
paga o que deve. Mas haverá razões estritamente económicas?
Há sim. Em primeiro lugar, o cliente sabe que, se não pagar, aquele
taxista não o tornará a servir, e dirá aos amigos que não sirvam um calo-
teiro. Ou seja, o mercado tem autodefesas, para se proteger deste tipo de
pessoas.
Mas é claro que estas defesas são frágeis. Se o táxi trabalhasse numa
pequena cidade em que todos se conhecem, estas defesas funcionariam.
Mas se o caso se passasse numa grande cidade, numa zona onde o cliente
seja desconhecido, e onde não espere voltar tão cedo, a situação era bem
diferente. Por que razão nesse caso um agente racional deve pagar a via-
gem?
A resposta, neste caso, seria certamente que o taxista poderia chamar a
polícia e forçar o cliente a pagar. O cliente, com medo dessa ameaça, paga-
ria. Este é uma realização do papel do Estado no mercado. As autodefesas
do mercado são fracas, e o Estado é chamado a intervir. A forma de solução
do problema continua a ser o mercado, mas para o mercado funcionar é
necessária a presença do Estado.

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A Ciência Económica

Mas se for à noite, num sítio ermo, onde não há polícia? Se o cliente
procurar apenas o seu bem-estar, a conduta mais racional será, uma vez
no destino, sair sem pagar a corrida? Sendo desconhecido do motorista e
não havendo presença de testemunhas, sem a possibilidade portanto de
vir a sofrer consequências futuras, e uma vez obtido o serviço contratado,
pagá-lo será racional?
Pode ainda haver uma razão racional para pagar. Isso passa-se no caso
em que o condutor possa exercer sevícias, de forma aliás algo justificada,
sobre o passageiro pouco cumpridor, de forma a obrigá-lo a pagar. Este
seria um custo directo do mau funcionamento do mercado. O taxista teria
de andar armado, para impor que lhe pagassem o que devem.
Mas nesse caso, e invertendo o problema, que impede o referido moto-
rista de, depois do pagamento, exercer ainda as referidas sevícias, para ser
pago de novo? Este último ponto põe finalmente em destaque a questão
central: trata-se de uma falha de mercado. Devido ao facto de a transacção
não se verificar num mesmo momento do tempo, mas desenrolar-se ao
longo de um período, o mercado funciona mal.
Em qualquer caso, a realização normal e correcta do contrato parece
não ter, neste caso, qualquer carácter racional. Seria de esperar que, neste
como em muitos outros tipos de transacções comuns (barbeiros, restauran-
tes, bancos, etc.) logicamente se multiplicassem os casos de rompimento do
contrato. Assim a própria racionalidade causaria a destruição do mercado,
impedindo-lhe o funcionamento normal, com as evidentes consequências
caóticas para a vida social.
No entanto, nas sociedades civilizadas estes casos são raros, o que faz
com que taxistas, barbeiros, restaurantes exerçam a sua actividade sem
perigo de serem constantemente confrontados com caloteiros racionais.
Embora se encontre por vezes agentes completamente «racionais» neste
sentido, existe corrente respeito pelas regras da civilidade, e por isso o
mercado e os outros mecanismos económicos funcionam normalmente.
Qual a razão? O motivo é, simplesmente, o papel da tradição no mercado.

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Princípios da economia - OUTUBRO 2018.indb 37 04/10/2018 16:16:47


Princípios de Economia Política

Em Portugal e na maioria dos países existe a tradição de pagar os táxis. E é


só por isso que há táxis, fazendo com que todos fiquem melhor.
Um caso que ilustra pela negativa o papel da tradição no mercado é a
questão dos cheques sem cobertura. Se a sociedade não tem, no seu funcio-
namento normal, regras de conduta que imponham que cada pessoa paga
o que deve, vão pulular os cheques sem cobertura, e isso terá como efeito
que o cheque deixe de ser aceite como meio normal de pagamento. Deste
modo, toda a sociedade fica pior, privada de um instrumento financeiro. As
sociedades mais avançadas são exactamente aquelas onde o respeito de cada
um pelos outros, o grau de civilização, é maior. Aí, o mercado pode avançar
para formas mais sofisticadas e podem ser fornecidos bens e serviços mais
delicados (por exemplo, os novos produtos financeiros como o leasing, as
máquinas automáticas de pagamento, os cartões de crédito, etc.), que nou-
tra estrutura falhariam completamente.
A lição fundamental destes exemplos é de que não pode existir um
mercado selvagem. O mercado, para a generalidade das transacções, exige
confiança, e esta só existe no meio de uma sociedade em que as regras
da civilidade são respeitadas por todos. Uma sociedade de selvagens sem
escrúpulos ou de ladrões absolutos, sem qualquer respeito pelas regras de
convivência, supondo que tal comunidade pudesse existir, teria as suas
relações económicas totalmente paralisadas por falta de uma plataforma
cultural mínima para funcionar, plataforma que só a civilização trás consigo
e que é indispensável à operação das leis económicas.
Adam Smith tinha esta ideia muito presente em toda a sua análise. O seu
estudo tinha-lhe trazido a consciência que o mercado e o Estado só funcio-
nam correctamente dentro de um forte e estável quadro cultural que evitasse
a anarquia e o despotismo. Daí que, segundo ele, o mercado só tenha flores-
cido completamente em certos meios civilizacionais avançados. O século de
Péricles, a era de Augusto, o apogeu de Veneza, a Liga Hanseática, a nossa
dinastia de Avis e o período após a Revolução Industrial têm em comum essa
estabilidade cultural que permite a confiança e favorece as trocas.

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A Ciência Económica

O mercado para funcionar precisa do Estado e de regras de conduta.


O exemplo, mais imediato dos cheques sem cobertura demonstra como a
falta de regras sociais e a deficiente imposição de leis estatais prejudicam
o funcionamento do mercado. A nossa sociedade resolve o seu problema
económico simultaneamente pela tradição (regras básicas de convivência
em sociedade), pelo Estado e pelo mercado. E esta simultaneidade não apa-
rece por acaso. É o resultado de necessidade imperiosa. Um sistema só com
um ou dois dos mecanismos dificilmente pode sequer funcionar.

1.2. O MERCADO

Depois de termos visto os princípios fundamentais da Economia (racionali-


dade e equilíbrio) e as formas como as sociedades enfrentam os problemas
económicos (tradição, autoridade e mercado), vamos agora olhar para a
forma como as decisões dos agentes se harmonizam no mercado.
O mercado é o mais difícil de entender dos métodos de solução dos
problemas económicos, visto que se baseia na livre relação dos interessa-
dos. Os vários intervenientes no mercado encontram um equilíbrio entre si,
que é a força mais importante de todo o motor económico. Neste capítulo,
não só vamos observar essas forças em funcionamento como vamos procu-
rar entender o que as motiva e lhes está por detrás.
Elementos essenciais para a compreensão deste mecanismo são os con-
ceitos de valor e de custo, centrais na análise económica. A Economia liga os
dois conceitos à ideia de «utilidade», o benefício que a pessoa tira dos bens.
O valor de cada coisa é a utilidade que ela dá, e o custo é a utilidade que se
sacrificou por ela. Neste capítulo aparece também o tratamento mais claro
do método económico de raciocínio: o princípio de «marginalismo». Como
veremos, o economista determina o valor e o custo de cada coisa olhando
sempre para a margem.

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Princípios da economia - OUTUBRO 2018.indb 39 04/10/2018 16:16:47

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