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RACISMO
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AGO SET 2020
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O egredo
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O “MITO UURBANO” DO BLOCO CENTRAL ● O FIM DOS DEBATES QUINZENAIS
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N º 59 · JUNHO 2020
Franca do Campo,
São Miguel
SUMÁRIO
O racismo nunca existiu
O
e José Pedro Monteiro 12
VISÃO H I S T Ó R I A 3
RACISMO // INTRODUÇÃO
Carolina
do Norte, 1950
Dois bebedouros
de água paralelos,
um para brancos
e o outro para
negros, atestam
e simbolizam
a discriminação
racial no quotidiano
do Sul dos Estados
Unidos da América
O RACISMO
NUNCA EXISTIU
ELLIOT ERWITT/MAGNUM/FOTOBANCO
O
racismo tornou-se um tema de debate político em Portugal. clássico. Além disso, a teoria das raças não
As frases «Portugal não é um país racista», «não temos nada me parecia suficientemente estudada nas
a ver com o que se passou há cem ou 500 anos», «é o antirra- suas origens e evolução. Tudo quanto li era
cismo que produz racismo» refletem a negação do problema surpreendentemente superficial. Os estudos
por parte de um setor da opinião pública e da classe política. mais aprofundados diziam respeito a autores
Nesta perspetiva, parafraseando Eduardo Lourenço, o racis- específicos ou a curtos períodos. Por fim, a
mo nunca existiu. Para um estrangeirado como eu, esta negação é noção de racismo não me parecia claramente
estranha: em Inglaterra, mesmo os tabloides, na maioria apoiantes definida e separada de etnocentrismo e de
de políticas de direita, condenam qualquer manifestação de racismo. rivalidade religiosa.
Os conservadores não se atreveriam a negar a existência de racismo. Decidi trabalhar na longa duração, basea-
Francisco Existe um relativo consenso em relação a valores básicos de dignida- do em fontes primárias impressas, crónicas,
de do ser humano, excetuando franjas de extrema-direita. Onde as diários, tratados, obras de História Natural,
Bethencourt
Professor catedrático opiniões divergem é naturalmente na forma de combater o racismo. mas também imagens, pinturas, esculturas,
do King’s College de Vamos passar a pente fino a validade dessas frases e tentar responder gravuras, arte funerária. Trabalhei com base
Londres, tem como a perguntas relacionadas: o passado colonial, que no caso português na hipótese da origem do racismo ocidental
principais áreas
se estende por quase 600 anos, conta no fenómeno racista? Podemos na expansão europeia, que começara com as
de investigação
as histórias do alijar esse passado como se não tivesse nada a ver com o presente? Cruzadas. Era difícil distinguir racismo de ri-
racismo, da expansão A norma antirracista tornou-se uma pedra-de-toque no desenvol- validade religiosa, pois a primeira coisa que os
portuguesa e vimento dos direitos humanos: como tem evoluído a posição de cruzados fizeram na Terra Santa foi liquidar a
europeia, das missões
no mundo católico
Portugal no contexto internacional? Finalmente, será que se sabe o estrutura eclesiástica da Igreja Cristã Ortodoxa,
e das identidades que é o racismo e quais as suas consequências? enquanto na Península Ibérica sucederam-se
e intercâmbios os casos de discriminação dos moçárabes, ou
culturais na Península seja, dos cristãos que tinham ficado submetidos
Ibérica. É autor do
livro Racismos, das 1. Racismo e teorias das raças ao domínio muçulmano, como aconteceu na
Cruzadas ao Século A teoria das raças, desenvolvida nos séculos XVIII e XIX nos meios conquista de Lisboa em 1147. Contudo, quan-
XX, da História das científicos, que definia os europeus como a raça superior, seguida do aderiam ao rito romano a discriminação
Inquisições em pelos asiáticos, africanos e ameríndios, foi considerada responsável cessava. A rivalidade com o islão assumia, por
Portugal, Espanha e
Itália e cocoordenador pela emergência dos preconceitos racistas. Este relativo consenso contraste, contornos de racialização, pois as
da monumental entre os historiadores da segunda metade do século XX, chocados numerosas etnias eram agregadas sob este-
História da Expansão com as consequências da II Guerra Mundial e do genocídio de ju- reótipos comuns de comportamento.
Portuguesa
deus, ciganos e eslavos às mãos dos nazis, esboroou-se na viragem A prova de racismo surgiu quando estudei
para o século XXI. George Fredrickson colocou o início do racismo na Península Ibérica a conversão forçada de
na Idade Média, enquanto Benjamin Isaac demonstrou a existência judeus (entre 1391 e 1497) e de muçulmanos
de preconceitos racistas na Antiguidade Clássica. Esta rutura para (entre 1501 e 1526): cristãos-novos e mouris-
mim fazia sentido: em História, na maior parte dos casos, as práti- cos, contrariamente à prática universalista de
cas precedem as ideias. Contudo, estas demonstrações não estavam integração de todos os fiéis pela Igreja Cristã
isentas de problemas. Fredrickson advogava o contraste entre racismo lançada por Paulo de Tarso, passaram a ser
religioso medieval e racismo científico moderno, o que me parecia discriminados. Os preconceitos relativos a
esquemático, pois preconceitos religiosos e de descendência étnica judeus e a muçulmanos foram transferidos
surgem muitas vezes misturados, enquanto Isaac, a meu ver, não para cristãos-novos e mouriscos, desafiando
tinha provado a existência de discriminação sistemática no mundo a ideia de rutura com o passado imposta pelo
rito do batismo.
Crânios Eram Este caso permitiu-me refletir melhor so-
medidos e a bre a noção de racismo, num vaivém entre
sua morfologia análise histórica e contribuições de psicologia
determinava
as cinco raças; social, sociologia e antropologia. Cheguei a
ilustração da esta formulação: racismo é o conjunto de
obra De generis preconceitos de descendência étnica combi-
humani varietate
nados com ação discriminatória. A noção é
nativa, de
Blumenbach suficientemente operatória para me permitir
(1795) utilizá-la em diferentes períodos históricos.
6 VISÃO H I S T Ó R I A
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VISÃO H I S T Ó R I A
7
RACISMO // INTRODUÇÃO
Para um Tornou-se claro que existiu racismo muito antes da teoria das raças,
estrangeirado claramente separado de etnocentrismo, pois a rivalidade com as
como eu, aldeias vizinhas não impede interação, casamento e integração indi-
a negação vidual ou familiar. Mas a própria teoria das raças exigia mais estudo e
decidi ler os autores mais significativos e colocá-los num quadro mais
da existência amplo. Ficou clara a diferença entre Carl Linnaeus, Georges Buffon,
de racismo Johann Blumenbach, Petrus Camper e Immanuel Kant, embora
em Portugal todos considerassem a hierarquia de raças com os brancos no topo,
é estranha: enquanto a noção de degenerescência a partir da criação divina era
em Inglaterra, posta em causa através da noção de progresso e aperfeiçoamento.
mesmo As primeiras décadas do século XIX registaram o conflito entre
os tabloides, na James Prichard e Alexander von Humboldt, de um lado, que ad-
maioria apoiantes vogavam a impossibilidade de estabelecer fronteiras entre raças e
de políticas duvidavam da pertinência desse tipo de classificações, e Georges
de direita, Cuvier, do outro, que considerava a hierarquia das raças estabelecida
condenam desde a criação, rígida e compartimentada, impossível de alterar. Foi
qualquer esta visão que se tornou dominante, desenvolvida por Louis Agassiz,
um suíço que se estabeleceu em Harvard. A teoria da seleção natural
manifestação desenvolvida por Charles Darwin condenou a visão criacionista e as
de racismo. hierarquias rígidas, mas trouxe consigo a ideia de sobrevivência do
Os conservadores mais forte, que acabou por reintroduziu a hierarquia das raças pela
não se atreveriam via da maior capacidade de adaptação.
a negar O estudo da teoria das raças permitiu-me adquirir uma noção mais
a existência clara da história da ciência e do seu desenvolvimento em relação
de racismo com a literatura de viagens, crucial para a definição da noção da Apesar desta visão estereotipada, a miscige-
raça branca como caucasiana, devido ao ideal de beleza no império nação foi promovida como fazendo parte de
persa veiculado por escritores como Jean Chardin. O alargamento do um passado de que os brasileiros se deveriam
estudo levou-me a recuar a teoria das raças em quase 200 anos, pois orgulhar. Tratou-se de uma rutura com a visão
a capa do atlas de Abraham Ortelius, publicado em 1570, continha anterior de supremacia branca, segundo a
uma personificação hierárquica dos continentes, que criara a matriz qual a constante emigração europeia acabaria
da teoria das raças para os séculos seguintes. por branquear a população, como mostrou
Por outro lado, compreendi melhor as razões políticas do triunfo Lilia Schwarcz. Gilberto Freyre estava in-
do racismo científico de Cuvier e Agassiz na maior parte do século fluenciado pelo seu mestre Franz Boas, com
XIX: dava a munição ideológica necessária aos estados esclavagistas quem estudou na Universidade de Columbia
do Sul dos Estados Unidos. Paralelamente, a revolução de 1848 na em Nova Iorque, e por José Vasconcelos, que
Europa, com os seus ideais igualitários, desencadeou novas obras publicara La Raza Cosmica em 1929, com
racistas, como a de Gobineau, que procurou justificar a desigualdade elogio da mistura racial na América Latina.
como uma realidade da natureza, baseada na hierarquia das raças, Em 1940, a publicação por Freyre de
enquanto a degenerescência global era atribuída aos processos de O Mundo Que o Português Criou, prefacia-
miscigenação, pedra-de-toque de todos os racismos. Por outro lado, a do por António Sérgio, reforça esse período
ideia de arianismo, como elemento branco superior difundido através
da Ásia Central, surgia como uma ponte entre os povos da Ásia e a
expansão britânica no mesmo período.
2. O lusotropicalismo
A ideia de um colonialismo português suave permeou a obra de
Gilberto Freyre, cujo livro Casa-Grande & Senzala, publicado em
1933, propunha a integração do elemento africano na história bra-
sileira, portador de afeto, bonomia, música e dança, mas também de
conhecimentos em agricultura e mineração, gastronomia e linguagem.
8 VISÃO H I S T Ó R I A
Escravatura Em
baixo, desenho de
um navio negreiro:
os portugueses
transportaram mais
de 5 milhões de
escravos de África
para as Américas.
Ao lado, escravos
acabados de libertar
a bordo de um navio
inglês, 1880
de abertura, ao mesmo tempo que lança as 70%, é a que recebe menos interesse por Gilberto Freyre, que se O estudo
sementes do lusotropicalismo, ou seja, de apaixona por Goa, onde a miscigenação é mínima. O relatório de
da teoria
uma visão moderada do colonialismo portu- Orlando Ribeiro do final dos anos de 1950, bem guardado na gaveta,
guês, contraposto ao racismo anglo-saxónico. tinha apontado para a reduzida difusão da língua portuguesa ao fim de
das raças
O passado histórico de coexistência entre quatro séculos e meio de domínio colonial. A atitude de Gilberto Freyre
permitiu-me
cristãos, muçulmanos e judeus na Península só pode ser entendida de um ponto de vista social: ele terá encontrado adquirir uma
Ibérica justificaria, na opinião de Freyre, essa em Goa semelhanças face ao sistema patriarcal da casa-grande no noção mais clara
atitude conducente à miscigenação. Brasil. Começaria ali a sua viragem à direita, que culminaria com o da história
A visão de Gilberto Freyre só começou a ser compromisso face à ditadura militar brasileira de 1964. da ciência
aceite pelo regime salazarista na sequência da O lusotropicalismo encontrou condições de desenvolvimento dado e do seu
II Guerra Mundial e do crescente movimento o projeto de perpetuação colonial do regime salazarista, como bem desenvolvimento
de independência das colónias. Como indicou apontou Cláudia Castelo. As bases de avaliação do colonialismo em relação com
Patrícia Ferraz de Matos, a ideologia da su- português por Freyre eram subjetivas: as técnicas de submissão a literatura
premacia branca manteve-se praticamente dos escravos eram comuns às dos países anglo-saxónicos, embora de viagens,
intacta até aos anos de 1940. A reciclagem existisse uma prática de emancipação extensa no caso do Brasil.
crucial para
de Gilberto Freyre representa uma adapta- A política de conversão forçada abriu caminho à criação de confra-
ção da ideologia colonial do regime à pressão rias de escravos e emancipados que desempenharam algum papel
a definição
externa: convinha argumentar que Portugal nessa prática. Controversa é a ideia de um passado favorável de
da noção da raça
sempre tinha sido um país multirracial, cujas coexistência entre cristãos, muçulmanos e judeus, quando Portugal branca como
colónias, designadas como províncias ultra- observara uma política medieval de segregação das comunidades caucasiana,
marinas, estariam no mesmo pé de Portugal judaicas, seguida em 1497 pela expulsão de muçulmanos e conversão devido ao ideal
continental. O realinhamento de Gilberto forçada de judeus. Os cristãos-novos, assim designados de forma de beleza no
Freyre ocorre em 1950, quando ele aceita um derrogatória, passaram a ser perseguidos pela Inquisição, estabele- império persa
convite do governo português para visitar as cida em 1536, sendo largamente discriminados no acesso a cargos veiculado por
colónias, o que ocorre nos dois anos seguintes. públicos, colégios, confrarias, ordens religiosas e ordens militares escritores como
Curiosamente, Cabo Verde, a colónia com desde meados do século XVI até à extinção da designação e da dis- Jean Chardin
maior taxa de miscigenação, então mais de criminação imposta por Pombal em 1773. A noção de democracia
VISÃO H I S T Ó R I A 9
RACISMO // INTRODUÇÃO
A Exposição no racial no Brasil foi demolida por Marvin Harris, Fernando Henrique Se as imagens são reveladoras, os dados es-
Porto de 1934 Cardoso e Octávio Ianni nos anos de 1950 e 1960, enquanto o livro tatísticos não o são menos, sobretudo porque
reproduziu de Charles Boxer sobre as relações raciais no império português, estamos perante dados recolhidos e publi-
os piores publicado em 1963, expôs a política de discriminação de africanos, cados pelo regime de Salazar. Nos recensea-
esteriótipos índios e asiáticos na longa duração. mentos de 1940 e 1950, toda a população de
Cabo Verde, Macau e colónias na Índia é dada
das exposições
como civilizada, na Guiné 99% dos africanos
coloniais 3. O passado colonial são definidos como não-civilizados, em São
europeias Do início do século XVI a meados do século XIX, portugueses trans- Tomé a percentagem de não-civilizados desce
dezenas de portaram mais de cinco milhões de escravos de África para as Améri- de 50% para 41%, em Angola de 99% para
aldeias de todas cas, a vasta maioria para o Brasil. Embora o tráfico tivesse começado 95% e em Moçambique mantém-se 99,9% de
as regiões do na África Ocidental, foi de Angola que a maioria dos escravos foi forma consistente (baixa para 97% na estima-
império com recolhida, emergindo Moçambique como uma região significativa tiva de 1959), em Timor é de 99% em 1950.
bailadeiras da de extração nas últimas décadas do século XVIII (dados de www. Estes dados são arrepiantes. O critério não
Índia, hindus slavevoyages.org). A abolição do tráfico de escravos e da escravatura pode ter sido a alfabetização, pois em 1950
domadores prolongou-se, no caso português, dos anos de 1810 a 1870, sem que 79% dos cabo-verdianos e 78% dos indianos
de serpentes, tenha havido um movimento antirracista significativo. A presença eram analfabetos; trata-se de um caso típico
feiticeiros de portuguesa em África foi relativamente diminuta, não ultrapassando de racismo ligado à cor da pele. Estas clas-
alguns milhares de pessoas até ao final do século XVIII. A miscige- sificações tornaram-se tão embaraçosas que
Angola, régulos,
nação ocorreu em todos esses lugares, devido ao reduzido número de desapareceram do recenseamento de 1960.
orquestra de mulheres emigradas, mas com expressões radicalmente diferentes: o A ideia que não temos nada a ver com o pas-
chopes de nível foi diminuto em Angola e Moçambique, com a exceção de Luanda sado é contestada com números: o trabalho
Moçambique, e do vale do Zambeze, onde elites crioulas se desenvolveram desde de Leonor Costa, Nuno Palma e Jaime Reis
bijagós nas suas o século XVII. A emigração portuguesa só se tornou significativa no sobre a reconstituição do Produto Nacional
pirogas num lago século XX, sobretudo nos anos de 1950 e, paradoxalmente, durante Bruto de 1500 a 1800 revelou que se excluís-
criado para o a Guerra Colonial. A ilha de São Tomé distinguiu-se como local de semos os laços económicos com o império
efeito plantação de açúcar, substituída por cacau no século XIX, economia teriam sido perdidos 20% dos rendimentos
alimentada por tráfico de escravos. Nas restantes colónias, a transição per capita. O benefício económico do império
de economias baseadas no tráfico de escravos para investimento em é, no caso português, o mais importante de
agricultura e indústria levou muitas dezenas de anos. todos os impérios europeus. Seria interessante
As acusações de trabalho forçado nas colónias portuguesas formu-
ladas por organizações internacionais sucederam-se nas primeiras
décadas do século XX. O estatuto do trabalho indígena, resultante de
uma série de diplomas de 1926, 1929 e 1954, reforçou as condições
de integração forçada no sistema de trabalho colonial; a legislação foi
abolida em 1961-1962, embora se mantivesse o pagamento diferido
de 50% do ordenado depois do regresso a casa do trabalhador rural.
Contudo, ainda se ouve dizer que tráfico de escravos, esclavagismo
e trabalho forçado não significam necessariamente racismo. Não?
A I Exposição Colonial, organizada no Porto em 1934, reproduziu
os piores estereótipos das exposições coloniais europeias, que apre-
sentaram indígenas num ambiente de zoo humano desde os anos de
1880. A Exposição do Porto reproduziu dezenas de aldeias de todas
as regiões do império com bailadeiras da Índia, hindus domadores
FOTOGRAFIA ALVÃO/CPF
10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
FOTOGRAFIA ALVÃO/CPF
estender este cálculo ao período entre 1800 e níveis de inteligência e de capacidade de trabalho) e racismo cultural Exposição Colonial
1974 para obter uma ideia mais precisa sobre (perceção de maior ou menor civilidade e adaptação), embora se do Porto, 1934
Durante três
o impacto global das colónias na economia verifique uma correlação entre opiniões racistas e idade, bem como
meses e meio,
portuguesa. Em todo o caso, esse impacto não (em menor grau) entre opiniões racistas e níveis mais baixos de o Palácio de Cristal
pode ser negligenciado. Não se trata de culpa, educação. O que está em questão é claramente a ausência de assi- acolheu milhares
pois as últimas gerações rejeitaram as práticas milação da norma antirracista, definida pela Declaração Universal de visitantes que iam
ver os indígenas
do passado colonial, mas de consciência e dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, e consagrada
responsabilidade face às consequências histó- pela legislação portuguesa pós-25 de Abril, mas raramente aplicada
ricas do colonialismo em diversos continentes. e deficientemente difundida. Temos um problema sério de falta de
implementação e educação nesta área tão importante.
Não existem inquéritos sobre a exclusão de minorias do acesso
4. O presente a emprego ou a residência, mas conhecem-se numerosas situações
O Estado colonial português foi claramen- de discriminação social. Essas são as consequências do racismo: o
te um estado racial que colocou as popu- bloqueio de perspetivas de carreira, a contenção de minorias em
lações indígenas no fundo da pirâmide espirais de pobreza, a precariedade de suportes educativos que per-
social dominada por uma ínfima minoria mitam superar inícios de vida em desvantagem face a outras camadas
branca. Contudo, poder-se-ia dizer que a da população. É aqui que os direitos humanos assumem toda a sua
independência das colónias e o estabeleci- função, como o direito ao trabalho, à educação, à dignidade de trata-
mento do regime democrático em Portugal mento que é devida a todos os seres humanos por igual, apenas para
teria implicado uma alteração substancial indicarmos os mais significativos no caso do racismo.
do sistema de valores, com a assimilação É por tudo isto que a ideia de que o racismo não existe, sendo
dos direitos humanos e a integração de um consequência da luta antirracista, é um triplo insulto: às realidades
fluxo de imigrantes dos novos países in- de discriminação vividas por minorias, à capacidade de resistência
dependentes. Infelizmente, a alteração de contra essa discriminação e à inteligência da população em geral.
valores não foi tão radical como seria de Trata-se de um projeto político destinado a submeter ao silêncio
esperar. A última sondagem sobre o racismo essas minorias e sabotar movimentos de solidariedade originários
na União Europeia, de 2018/19, mostra 62% das restantes camadas da população que veem mais longe do que
de opiniões racistas em Portugal, uma das os seus interesses imediatos, pois uma população livre e integrada
mais elevadas na Europa, partilhadas entre é mais produtiva e criativa, contribuindo para a felicidade coletiva,
racismo biológico (perceção de diferentes que deve ser, sempre, o objetivo de todos os países.
VISÃO H I S T Ó R I A 11
RACISMO // INTRODUÇÃO
A globalização
do (anti)racismo
As desumanides praticadas durante
a II Guerra Mundial explicam em parte
o reforço e a generalização de uma luta
por Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro
‘F
alácias do racismo expostas.» Era organizações internacionais oportunidades
este o título do terceiro número do de ouro para combater o racismo.
Courier da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e Tratamento igual
a Cultura (UNESCO), de 1950. Anos Em 1919, durante a Conferência de Paz, a
antes, um grupo de individualidades proposta da delegação japonesa que apontava
propôs a publicação de uma declaração que para um «tratamento igual e justo», «tanto na
revelasse o carácter «não-científico» e «falso» lei como de facto», para todos os estrangeiros
da discriminação e do «ódio» raciais, alimen- que fossem membros da SDN, sem «distinção
tados por numerosas mistificações, algumas (...) em razão da sua raça ou nacionalidade»,
com uma longa genealogia. Os esforços asso- foi recusada. É certo que proposta não era
ciados ao internacionalismo do entreguerras, inspirada por grandes visões emancipatórias:
tantas vezes obscurecidos no presente, foram a dessegregação das comunidades afro-ame-
recuperados após o fim da Segunda Guerra ricanas, a supressão do racismo institucional
Mundial. O cortejo de desumanidades que o nos mundos coloniais ou o sufrágio universal
conflito gerara, para as quais mundividências não eram o objetivo, como, aliás, esclareceu políticas de contenção migratória ajuda a
racistas e práticas de racialização em muito Uchida Kosai sai, o ministro dos Negócios compreender o falhanço da proposição japo-
contribuíram, não foi esquecido. Estrangeiros japonês. Ainda assim a moção nesa. A delegação australiana, país onde se
As iniciativas de contestação da discrimi- suscitou reflexões importantes sobre o tra- proibia toda a imigração não-branca, opôs-se
nação que alguns protagonizaram no interior tamento do «outro», na mesma cidade em com vigor, convencendo britânicos e america-
do Instituto Internacional de Cooperação que, então, 57 participantes vindos de África, nos, incluindo o próprio presidente Woodrow
Intelectual (IICI) da Sociedade das Nações das Caraíbas e dos EUA se reuniam para o Wilson. A generalizada predisposição contra
(SDN) ou o manifesto saído do Congresso primeiro Congresso Pan-Africano. Foi neste os imigrantes asiáticos nos EUA, sobretu-
Internacional de Genética, realizado em evento que W.E.B. Du Bois (sociólogo e ati- do os provenientes do Japão, e também ela
Edimburgo, em 1939, foram retomadas com vista dos direitos civis americano) ditou que animada por industriosas políticas do medo,
renovado vigor nas décadas seguintes. Ainda «o problema do século XX» era «o problema contribuiu por certo para a decisão de Wilson.
que diversas, centradas sobretudo na recusa da linha de cor». Apesar de todas as vagas e vãs declarações
da «ciência ariana» – notoriamente incapa- A proposta surgiu também num momento públicas de muitos, as possibilidades aber-
zes de advogar orientações igualitárias no importante para os que queriam preservar os tas pela experimentação internacionalista do
tratamento do racismo – e, ao mesmo tem- «países dos homens brancos», como escreveu entreguerras deram uma réstia de alento aos
po, claramente condicionadas pelo clima de Lothrop Stoddard, historiador e autor de The que procuravam a mudança das dinâmicas
«apaziguamento» do nazismo, tais iniciativas Rising Tide of Color Against White World- nacionais e internacionais (e coloniais) de
marcaram uma importante viragem. Se é -Supremacy (1920). A publicação (1918) da discriminação racial. Os chamados tratados
verdade que não abandonaram a ideia da obra The Passing of the Great Race, de Madi- das minorias, no âmbito da SDN, foram um
determinação hereditária de indivíduos e son Grant, advogado eugenista, opositor da momento importante na revolta histórica
grupos, não hesitaram em denunciar o «ra- imigração e obcecado com as consequências dos direitos humanos, apesar das notórias
cismo científico». As vozes críticas multipli- da miscigenação, comungava das mesmas limitações, visando um módico de proteção
caram-se, vendo no internacionalismo e nas preocupações. Em parte, a globalização de dos grupos minoritários (incluindo raciais).
12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
São Francisco, 1945
A Carta da ONU, aprovada nesta
Conferência, seria o primeiro
instrumento internacional
a fazer referência ao desiderato
de direitos iguais, sem distinção
«de raça, sexo, língua
ou religião»
VISÃO H I S T Ó R I A 13
RACISMO // INTRODUÇÃO
14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
coloniais devia ser um direito inegociável.
As vagas de descolonização e associada re-
composição geopolítica acentuariam estas
Contra a ‘ignorância’
e o ‘preconceito’
Reminiscente da proposta japonesa de 1919,
a problemática dos direitos humanos e da
questão racial foi levantada pela China nas
vésperas dos encontros em Dumbarton Oaks
Reunidos na Indonésia (1944). A sua proposta para uma nova organi-
HOWARD SOCHUREK/GETTY IMAGES
VISÃO H I S T Ó R I A 15
RACISMO // INTRODUÇÃO
O ‘Correio’
da UNESCO
A ONU foi um dos polos
dinamizadores dos debates e das
políticas relativos à produção de
normas e instrumentos legais para
deslegitimar a discriminação racial
da agenda dos direitos humanos, com um e o racismo. À UNESCO coube Em 1951, uma outra declaração foi anuncia-
ponto de partida na Declaração Universal uma tarefa essencial: ao longo de da, Statement on the nature of race and race
décadas, patrocinou investigações
(DUDH), de 1948. A barragem sistemática differences, que corrigiu, em certa medida,
e estimulou debates científicos
de acusações à África do Sul, de 1946 em sobre o tema, reunindo figuras de a visão mais radical da anterior. A ideia da
diante e lideradas pela Índia, em resultado relevo, produziu declarações oficiais, «raça» como mero mito social desapare-
do tratamento de pessoas de origem indiana propondo intervenções políticas e ceu, mas o compromisso com a igualdade
legislativas, e promoveu iniciativas
no país, foi apenas um exemplo. A contínua persistiu, ainda que as vozes questionando
que visavam a popularização de
torrente peticionária que chamava a atenção um argumentário antirracista os seus reais efeitos continuassem ativas.
para as relações raciais nos EUA ou um pouco e contra o preconceito. A sua Em Bandung, em 1955, o presidente indo-
por toda a África e pela Ásia, entrelaçando-se publicação Correio (Courier) deu nésio Sukarno declarava que todos o que
frequentemente conta dessa
a lógica da Guerra Fria e com ambições de atividade.
participavam na conferência afro-asiática
independência, foi outro. Não por acaso, Jan estavam «unidos por uma detestação comum
Smuts, estadista sul-africano que participou do racialismo». Já Carlos Rómulo, diplomata
no esboço da Carta, declarava que a ONU filipino, sublinhou a centralidade de doutri-
estava a ser dominada pelos «povos de cor». nas de «inferioridade racial» no fenómeno
O racismo e a discriminação racial tor- colonial. A oposição ao racismo colonial era
naram-se um tópico recorrente no universo a «força motriz» do nacionalismo no Sul
da ONU. A Carta da UNESCO indicava o global e precisava de fortalecer a sua voz in-
papel da «ignorância» e do «preconceito» ternacionalmente. Em Accra, Gana, em 1958,
na disseminação de doutrinas de «desigual- em resultado dos esforços de Nkrumah e de
dade» de «raças». Em 1948, o Conselho Padmore, entre outros, a Conferência dos
Económico e Social (ECOSOC) das Nações Povos de África também colocou o problema
Unidas reforçou tal proclamação, defendendo racial no centro da ordem de trabalhos. No
a disseminação de «facto científicos» que as mesmo ano, a OIT adoptou a Convenção
contrariassem. Um ano depois, a UNESCO nº 111 sobre Discriminação em Matéria de
comprometeu-se a estudar e a difundir, com Emprego e Ocupação, que definiu, pela pri-
preocupações pedagógicas e visando o máxi- meira vez, o que significava precisamente
mo impacto, os materiais científicos mais re- «discriminação racial» (o que não aconteceu
levantes a este respeito. Como consequência, na Carta da ONU ou na DUDH).
é publicada a sua primeira declaração em 18 Encorajada pela Declaração sobre a Con-
de julho de 1950. Resultado de uma colabo- cessão da Independência aos Países e Povos
ração multidisciplinar na qual se destacavam, Coloniais (DCIPPC), de 1960, e pela des-
entre outros, Claude Lévi-Strauss (antropólo- colonização global, em aceleração, então, a
go), Morris Ginsberg (sociólogo) e Montagu Organização da Unidade Africana, criada
(principal relator), o documento recuperava em 1963, foi lesta em reforçar a colaboração
os esforços de Zollschan. Em UNESCO and mo» e a intensificação da «hostilidade face internacional tendo por fim eliminar formas
the Racial Problem (1950), o etnólogo Al- a grupos minoritários». Ao mesmo tempo, de discriminação racial em África (nomeada-
fred Métraux, coordenador da secção sobre a a UNESCO produzia e distribuía «panfle- mente nas colónias portuguesas e na África
questão racial no Departamento de Ciências tos populares», «curtos, claros e facilmente do Sul) e nos EUA. Também em 1963, a ONU
Sociais da UNESCO não tinha dúvidas a esse compreensíveis», como viria a suceder, por adotou uma Declaração sobre a Eliminação
respeito. A «anatomia do preconceito racial», exemplo, com panfletos sobre «Raça e biolo- de todas as Formas de Discriminação Ra-
que devia ser comparativa, era agora possível gia», «Raça e civilização» e «Mitos raciais». cial, que referia explicitamente que o fim do
com outros meios. E era também urgente: O que era impossível era escamotear que não colonialismo era condição necessária para a
«atitude mental eminentemente contagiosa», existia então um consenso científico sobre eliminação da discriminação racial.
o racismo continuava a grassar à escala global. o que seria a «raça», sendo que os debates Um ano depois, foi publicada a terceira de-
O comité de especialistas recomendava associados eram condicionados por conflitos claração da UNESCO. Em 1965, finalmente,
a intensificação dos estudos, da avaliação (geo)políticos, choques de personalidades e foi assinada a Convenção Internacional sobre
da influência do colonialismo na definição competição entre instituições. Eliminação de Todas as Formas de Discri-
de relações interraciais à análise de «ati- A declaração UNESCO, revista três vezes minação Racial que, apesar do seu caráter
tudes de não-brancos face a brancos» e à por Montagu em razão de inúmeras críticas, inovador, constituindo inequivocamente
relação entre o «crescimento do nacionalis- iniciou uma série de documentos similares. um momento importante na longa história
16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O papel do Conselho
Mundial das Igrejas
Envolvido diretamente em inicitivas
antirracistas, o Conselho Mundial das Igrejas
iniciou em 1969 o Program to Combat Racism,
que teve a África do Sul e Moçambique como
dois dos alvos preferenciais (envolvendo o
financiamento de movimentos de libertação).
O escritor e ativista James Baldwin foi um dos
convidados para a assembleia da organização
em Uppsala (Suécia), em 1968, com uma
comunicação intitulada White Racism or World
Community, convocando a igreja e a religião a
participar de modo mais ativo no antirracismo,
para mudar a sociedade sul-africana, para
dificultar assassínios como o de Martin Luther
King e para contrariar os bombardeamentos
americanos no sudeste da Ásia.
VISÃO H I S T Ó R I A 17
E TUDO
O VENTO TROUXE
De velas enfunadas, os navios negreiros levaram para a América
do Norte mais de meio milhão de escravos africanos. Os efeitos dessa
tragédia continuam a fazer-se sentir no ambiente social dos Estados
Unidos, com reflexos em todo o mundo
‘C
onheço bem essa atitude das pes- com a exportação para as fábricas de fiação
soas do Norte!… Têm tanto horror inglesas, viram a abolição como uma catás-
aos negros como às serpentes ou trofe e tentaram fazer estender as leis antia-
aos sapos, mas quando acham que bolicionistas aos territórios do Oeste, ainda
eles são maltratados indignam- por organizar. O ponto de vista do Norte era,
-se. Se pudessem, mandavam-nos evidentemente, oposto, e assim, sempre que
embora de volta para a África, para longe da o Congresso tinha de se pronunciar sobre a
vista, e sobretudo para longe do olfato; e a admissão de novos estados na União, estalava
seguir enviavam-lhes missionários a título um conflito entre os dois blocos de interesses.
de compensação...» Assim fala uma das per- A questão refletia-se na representatividade
sonagens do famoso romance A Cabana do no Senado e na Câmara dos Representantes.
Pai Tomás, publicado nos Estados Unidos da Um certo equilíbrio fora estabelecido em
GETTY IMAGES
América em 1852 e que preparou psicologica- 1820, através de um acordo conhecido por
mente o terreno para a abolição da escravatu- Compromisso do Missouri, segundo o qual o
ra. A sua autora, Harriet Beecher-Stowe, foi Lincoln e Sojourner Truth O Presidente paralelo 36o30’ de latitude norte formava uma
recebida pelo presidente Abraham Lincoln, e a abolicionista, numa alegoria linha de demarcação nos territórios do Oeste,
que lhe disse, rindo: «Ah, cá está então a sendo permitida a escravatura a sul dessa
frágil senhora que fez rebentar a guerra...» intensa atividade industrial se fora desenvol- linha e proibida a norte. Mas este equilíbrio
Referia-se ao grande conflito armado que, vendo. Se, por exemplo, em 1789 (a data do não poderia ser muito duradouro, já que o
entre 1861 e 1865, dividiu o país segundo uma início da Revolução Francesa e quatro anos Norte se povoava de emigrantes europeus a
fronteira de ódio traçada entre partidários e depois do reconhecimento da independência um ritmo muito mais acelerado do que o Sul
inimigos da escravatura. A cisão continua dos EUA pela Inglaterra) eram muito escas- e, graças a esse crescimento populacional e
a fazer sentir efeitos mais de século e meio sos os negros com estatuto de cidadania e ao desenvolvimento industrial, rapidamente
depois. O choque assenta num ódio «racial» com direito de voto, o certo é que legislação ia conquistando uma posição preponderante
entre brancos e negros e reflete-se em quase abolicionista foi sendo aprovada a partir de na União. Além disso, o abolicionismo en-
todos os comportamentos do quotidiano. 1805, e em 1808 uma lei do Congresso proi- controu no Norte partidários militantemente
Os primeiros escravos provenientes de Áfri- biu a importação de África de novas levas ativos, sobretudo nos meios puritanos, e as
ca com destino à América do Norte foram de escravos. campanhas pela abolição da escravatura em
vendidos em Jamestown, na Virgínia, em Ora, se os estados industrializados do Norte todo os espaço nacional tornaram-se uma
1619, após terem sido capturados por piratas necessitavam de mão-de-obra livre e consu- constante. O já referido romance A Cabana
ingleses a um navio negreiro português. Ao midora, já o mesmo não se passava nos do do Pai Tomás, que descreve os sofrimentos
longo de mais de 200 anos, o número de Sul, cuja
a economia assentava nas plantações dos esc
escravos
avos negros,
eg os, inscreve-se
sc eve se nessa
essa luta.
uta.
trabalhadores forçados, não remunerados de algodão.
ão. Os plantadores, que enriqueciam Os políticos do Norte tentavam, contudo,
e normalmente maltratados foi crescendo,
até atingir mais de 600 mil, sobretudo para
responder às necessidades de mão-de-obra
das plantações de tabaco da Virgínia e de
algodão do Sul profundo. Durante muito
tempo a escravatura foi considerada legal Soldados negros
nas 13 colónias britânicas que dariam origem da União
Cartaz apelando
aos EUA, e era nela que assentava metade da
para o alistamento
economia nacional. e um combatente
não identificado,
Norte e Sul entre 1863 e 1865
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA
20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Campo de batata-doce Nem só nas plantações de algodão trabalhavam os escravos (foto obtida em 1862 em Charleston, Carolina do Sul)
evitar uma rutura com o Sul que pusesse presidência do Congresso sulista elegeram Guerra da Secessão (como é chamada na
em causa a União, e em 1854 o Congresso Jefferson Davis e para capital escolheram a Europa) de 1861-1865 é considerada, sob
aprovou outro compromisso, nos termos do cidade de Richmond, na Virgínia, a escassos vários aspetos, o primeiro conflito militar
qual competiria a cada novo estado decidir 120 quilómetros de Washington. moderno. Na imaginação de muitos, os sol-
se aceitava ou proibia a escravatura. dados federais perfilam-se nos seus uniformes
Num clima em que as paixões estavam ao A voz dos canhões azuis, enquanto os sulistas ostentam fardas
rubro e se multiplicavam os episódios violentos, Mas estaria o governo dos EUA (ou o Norte) cinzentas; na verdade, eram múltiplas as in-
nesse mesmo ano de 1854 o Partido Democrá- disposto a reconhecer a nova entidade políti- dumentárias, incluindo até trajos civis. Os
tico, fundado em 1828, dividiu-se e surgiu uma ca? Não. Assim que tomou posse, em março nortistas, ou «federais», dispunham de uma
nova formação política, o Partido Republicano. de 1861, Lincoln declarou a União perpétua grande superioridade numérica, pois o Norte
Sem proporem a abolição total da escravatura, e a secessão do Sul nula. «Compatriotas des- contava 20 milhões de habitantes, contra 10
os republicanos exigiam que esta fosse banida contentes», disse, dirigindo-se aos sulistas, «a milhões do Sul, um terço dos quais escravos
dos novos territórios do Oeste, fosse qual fosse grave decisão da guerra civil está nas vossas (as populações importadas de África iam-se
a sua latitude. E em 1860 o novo partido, apro- mãos e não nas minhas.» Os secessionistas multiplicando já em território americano).
veitando as divisões no seio dos democráticos, iniciaram, de facto, as hostilidades, atacando, Além disso, a superioridade industrial e fi-
conseguiu fazer eleger para a Casa Branca o em abril, o forte Sumter e desencadeando a nanceira do Norte era esmagadora. Mas os
seu candidato, Abraham Lincoln. Este advo- guerra – a que chamaram, não «guerra civil», sulistas, ou confederados, habituados à vida
gado e self-made man, nascido numa cabana mas «guerra entre os estados» (designação nos campos, mostraram possuir maiores apti-
de troncos de madeira no Kentucky, dera nas ainda hoje usada no Sul). dões militares do que os nortistas, de origem
vistas dois anos antes, quando corria para o Pelos meios mecânicos envolvidos, sobre- sobretudo urbana; deu-se ainda o caso de os
Senado e proferiu um discurso em que afirmou, tudo a utilização dos caminhos-de-ferro, a melhores oficiais serem confederados.
baseando-se numa passagem do Evangelho Depois de uma primeira fase assente no
de Mateus: «Todo o reino dividido contra si recurso a voluntários, tanto o Norte como
mesmo é devastado; e toda cidade, ou casa,
dividida contra si mesma não subsistirá.»
Em 1861, os estados o Sul procederam à mobilização geral. Os
federais conseguiram reunir 2,7 milhões de
A eleição de Lincoln para a Presidência esclavagistas do Sul combatentes, mantendo permanentemente
dos EUA teve como consequência imediata
a secessão dos estados do Sul, que forma-
separaram-se dos EUA em campanha, a partir de 1863, cerca de 900
mil soldados, contra 470 mil confederados.
ram uma nova união, designada Estados e proclamaram os Apesar do velho preconceito quanto ao recru-
Confederados da América. A Carolina foi o
primeiro estado a retirar-se, em dezembro
Estados Confederados tamento de negros, já existente no tempo das
13 colónias inglesas da América do Norte que
de 1860, logo seguida por dez outros. Para a da América tinham dado origem aos EUA, mais de 200
VISÃO H I S T Ó R I A 21
RACISMO // EUA
Iniciação no Ku
Klux Klan Numa
foto da década
de 1920 veem-se
os candidatos
a membros da
organização racista,
ajoelhados junto
dos veteranos,
encapuzados.
1865 1866
A 13ª É fundado o A Lei dos Direitos Cívicos, a par das São estabelecidos os primeiros «códigos negros»
emenda da Ku Klux Klan, 14ª e 15ª emendas da Constituição (black codes) no Mississípi e na Carolina do Sul. No
Constituição movimento (de 1868 e 1870), concede a cidadania Mississípi, os negros são obrigados a ter, em janeiro, um
abole a que defende a a todos os indivíduos nascidos ou contrato de trabalho escrito para o ano que começava.
escravatura supremacia naturalizados nos EUA e garante Se se despedissem, tinham de devolver os salários
branca direitos e voto iguais a todos anteriores e ficavam sujeitos a prisão. Na Carolina do
Sul, é estabelecido que os negros só podem trabalhar
22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CANADÁ
(WASHIN
GTON)
Território NEW HAMPSHIRE
d (MONTANA) VERMONT MAINE
(DAKOTA
eW
DO NORTE) MASSACHUSETTS
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MINESOTA
OREGON Território do Dako RHODE
ngton
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WISCONSIN ISLAND
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(IDAHO) (WYOMING)
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do Utah Território ILLINOIS DELAWARE
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do Colorado MISSOURI MARYLAND
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(COLORADO) KANSAS
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DISTRITO
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KENTUCKY
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DA COLUMBIA
CAROLINA (WASHINGTON DC)
TENNESSEE DO NORTE
Território do Novo México Território ARKANSAS Memphis
Índio CAROLINA
(ARIZONA) (NOVO MÉXICO) (OKLAHOMA) Little Rock Birmingham DO SUL
PI
ALABAMA
SSÍP
GEÓRGIA
SI
MIS
Selma Montgomery
LUISI
PRESENÇA DE ESCRAVOS
ANA
MAIOR E TEXAS
MENOR DENSIDADE
FLO
O SUL
Nova Orleães
RIDA
O NORTE MÉXICO
TERRITÓRIOS EM ORGANIZAÇÃO
INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO
cláusulas que, sem violarem a letra das emen- pretextos faziam vir ao de cima o ódio racial tes, a economia baseava-se na plantação onde
das constitucionais, retiravam na prática o por parte dos brancos, multiplicando-se os trabalhavam escravos. A supressão da escra-
direito de voto aos afro-americanos; entre linchamentos, alguns levados a cabo com uma vatura implicou que a plantação se dividisse
essas cláusulas estavam requisitos como saber chocante e refinada crueldade (havia pessoas em propriedades de menores dimensões, que
ler e escrever, interpretar corretamente um queimadas ou esfoladas vivas). foram vendidas ou arrendadas a pequenos
artigo da Constituição e possuir certa fortuna. Calcula-se que 3500 negros terão sido as- agricultores, brancos ou negros. O plantador
Despojados dos direitos políticos, os antigos sassinados desta forma às mãos de bandos branco preferia ter empregados negros, por-
escravos foram-no também de grande parte organizados de supremacistas brancos entre que estes, desprovidos de recursos materiais,
dos direitos cívicos. Por exemplo, não podiam as décadas de 1870 e 1960, sobretudo nos es- eram obrigados a endividar-se junto do pa-
fazer parte de um júri, eram relegados para tados sulistas de Mississípi, Florida, Arkansas trão, que a troco de lhes fornecer os escassos
compartimentos específicos nos comboios e e Luisiana. Os linchamentos eram o desfecho bens essenciais à existência os tinha na mão
tinham de frequentar escolas, igrejas, restau- «normal» de julgamentos sumários em que quase gratuitamente durante longos anos,
rantes e teatros próprios. Mesmo os cemité- os «réus» eram acusados de insignificâncias, numa dependência que frequentemente se
rios eram separados. Os casamentos mistos e na assistência viam-se famílias inteiras que estendia aos descendentes. Como se vê, este
eram inviáveis. Só algumas profissões lhes rejubilavam com o «espetáculo». regime em quase nada diferia da anterior
foram franqueadas, entre elas as de porteiro Por esse tempo, as estruturas económicas escravatura.
de hotel, empregado de mesa ou funcionário e sociais do Sul já não eram as mesmas dos As transformações políticas também foram
das carruagens-cama. Os mais insignificantes tempos anteriores à Guerra da Secessão. An- grandes, se não ainda maiores do que as so-
na agricultura a não ser que A partir deste ano, são aprovadas leis O Supremo Tribunal Um trabalhador agrícola da
paguem um imposto anual. Nos (conhecidas como leis Jim Crow) de considera que ter Geórgia, Sam Hose, é linchado
dois estados, ficam sujeitos segregação racial em escolas, transportes «equipamentos pela população, que o acusa de ter
a trabalhos forçados nos públicos, restaurantes, teatros, hotéis, separados mas iguais» matado o patrão na sequência de
campos se forem acusados de cemitérios (e, até, bebedouros!), nos estados para brancos e negros um pedido de aumento de salário.
vandalismo. Os outros estados sulistas. O casamento e as relações sexuais não viola a 14ª emenda Entre 1882 e 1968 registam-se 4741
sulistas seguem-lhe as pisadas inter-raciais são proibidos da Constituição linchamentos de negros nos EUA
VISÃO H I S T Ó R I A 23
RACISMO // EUA
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
'Barbecue' no Alabama Negros de um lado e brancos do outro, numa imagem dos anos 30 do século XX
das hostilidades. O novo quadro, que pare- american way of life – que no entanto excluía imaginária «raça americana». O critério em
cia promissor de uma melhor distribuição a população não-branca da possibilidade de que se apoiavam os legisladores era o da
populacional, colocou no entanto problemas acalentar esse sonho. facilidade de assimilação: a imigração era
sérios, visto que os trabalhadores brancos do Esta América ciumenta da sua própria tanto mais dificultada quanto o candidato a
Norte, que até então se tinham mostrado felicidade fechou-se sobre si mesma e so- cidadão se afastasse – pelo físico, pela língua,
favoráveis à plena integração na sociedade bre a sua pretensa «pureza étnica». Foram pela religião, pelo estilo de vida – do «tipo
dos descendentes dos escravos por nunca os anos do isolacionismo, posição que, sob americano». Uma lei de 1924 fixava a quota
terem tido contacto direto com essa fatia da muitos aspetos, se cruza com o racismo. Ao anual de imigrantes de cada país em 2% do
população, começaram a ver os seus postos mesmo tempo que a produção nacional era total de residentes dessa mesma origem nos
de trabalho ameaçados por ela. protegida da concorrência estrangeira por EUA em 1890. Como nesse tempo o povoa-
Nos «loucos» mas prósperos anos 1920, a elevadas tarifas alfandegárias, eram intro- mento era sobretudo de raiz anglo-saxónica,
elevação do nível de vida tornou-se a princi- duzidas restrições à imigração destinadas a alemã e escandinava, a imigração mediter-
pal razão de ser das existências individuais. Os defender a pretensa «pureza étnica» de uma rânica e eslava foi travada. Aos asiáticos foi
EUA, onde vivia 6% da população mundial, liminarmente proibido fixarem-se no país.
consumiam 75% do petróleo e da borracha,
65% da seda e 25% do açúcar produzidos no
Cerca de 1920, Este desejo de defender a pretensa «pure-
za americana», aliado ao triunfo do espírito
mundo. A ocupação dos tempos livres tornou- os EUA isolacionistas puritano, desencadeou uma perseguição das
-se a principal preocupação de uma sociedade
que procurava novas emoções no cinema de
fecharam-se na alegada minorias étnicas. O Ku Klux Klan renasceu e
retomou a caça aos negros e os linchamentos.
Hollywood com o seu star system, na música 'pureza étnica' O movimento pelos direitos cívicos, iniciado
de jazz (contraditoriamente, de origem negra)
e em desportos de massas como o basebol, o
de uma pretensa na década de 1950, introduziria alterações no
quadro, mas a onda racista de ódio prossegue
boxe ou o futebol americano. Nascia o mito do 'raça americana' até aos dias de hoje.
VISÃO H I S T Ó R I A 25
RACISMO // EUA
A
por Paula Cardoso
investida sexual. «Pensei na minha pobre avó,
sentença de morte causou choque, relações raciais», recebida da própria avó, que nos tempos da escravatura não podia
revolta e indignação, à passagem Rosa Parks descobriu uma herança carregada fazer mais do que ser usada e abusada pelo
dos primeiros 10 anos de vida. de silêncios de opressão. «Senti-me comple- senhor», desabafou Parks, num dos cerca de
«Miúda, é melhor que aprendas tamente sozinha, sem um único amigo. De 7500 manuscritos que deram origem ao atrás
que um homem branco é um ho- repente, a pessoa que me era mais querida referido livro.
mem branco, que aprendas como tornou-se uma inimiga, alinhada com a hostil Os relatos na primeira pessoa integram uma
falar e como não falar com ele. Também é raça branca contra mim.» coleção do filantropo Howard G. Buffett, que,
bom que deixes de ser tão temperamental. A experiência, partilhada no livro Rosa em 2014, pagou 4,5 milhões de dólares pelo
Senão, serás executada antes de cresceres.» Parks: In Her Own Words (Rosa Parks: Pe- espólio da aclamada «Mãe do Movimento pelos
Na sua «primeira e mais dura lição sobre las suas próprias palavras), expressa o in- Direitos Cívicos». «Não sei quem é que começou
26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY IMAGES
Preso nº 7053 Rosa Parks fotografada na altura em que se recusou a dar o seu lugar no autocarro a um homem branco, 1955
1960 1961
Oppresidente Inspirados no protesto não Ruby Bridges, uma Um grupo de ativistas brancos e negros
Eisenhower torna
Eis violento de Gandhi, quatro menina de 6 anos, inicia os «Freedom Rides»: viaja de
lei o Ato dos Direitos estudantes da Carolina do é a primeira criança camioneta pelo Sul para chamar
Civis: suprimir
Civ Sul recusam-se a deixar o negra a integrar a atenção para a segregação nos
o direito
d de voto balcão «só para brancos» uma escola pública terminais rodoviários e usa as casas de
de outra pessoa de uma cafetaria sem em Nova Orleães banho e os balcões de cafés «só para
(co
(como era feito serem servidos. O «Sit-in de brancos». A iniciativa é recebida com
com os negros) é
co Greensboro» inspira outros violência por comunidades brancas
co
considerado crime sit-ins, noutros estados
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RACISMO // EUA
‘Cansada de desistir’
Dedicada à luta contra a segregação racial, em
defesa da igualdade de direitos, Rosa assumiu
uma posição ativa na NAAPC desde a década
de 1940, tendo, a partir de 1943, secretariado
a estrutura do Alabama. Resiliência
Os sit-ins foram uma
Apesar do contínuo envolvimento nas das formas pacíficas
questões que afetavam a comunidade negra, de protesto. Ao lado,
nomeadamente para investigação e acompa- dois estudantes negros
nhamento de casos de violência sexual – como sentados no balcão
reservado a brancos
a brutal violação de Recy Taylor –, o reconhe- numa cafetaria,
cimento do papel central que desempenhou Carolina do Norte. Em
no Movimento pelos Direitos Cívicos começa cima, participar nestas
e acaba no episódio que protagonizou a 1 de ações exigia treino:
havia que saber não
dezembro de 1955. responder
Nesse dia, contrariando as Leis Jim Crow a provocações
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– que mantinham os estados do Sul dos EUA
sob um impiedoso regime de segregação
racial –, a então costureira recusou ceder o
lugar a um passageiro branco, durante uma
viagem de autocarro. «Não estava fisicamen- públicos tinham autoridade para exigir que -americanos, até aí responsáveis por cerca
te cansada, ou pelo menos não mais do que os passageiros negros cedessem o lugar aos de 80% da ocupação.
o habitual ao fim de um dia de trabalho. passageiros brancos, Rosa Parks foi detida «A comunidade negra, até aqui adormecida
Também não era idosa, embora algumas com o número 7053 e, graças à pronta in- e passiva, demonstrou dessa forma que estava
pessoas tenham criado essa imagem de mim. tervenção do NAAPC, libertada algumas bem desperta. Nas horas de ponta, os passeios
Tinha 42 anos, e simplesmente estava can- horas mais tarde. Julgada a 5 de dezembro, a foram invadidos por operários e trabalhadores
sada de desistir.» costureira foi condenada a pagar dez dólares domésticos que, ordeiramente, regressavam
A memória do acontecimento lê-se na de multa, mais quatro de taxa. dos locais de trabalho, por vezes situados a
autobiografia Rosa Parks: My Story (Rosa mais de 15 quilómetros de distância das suas
Parks: A minha história), publicada em O ‘milagre’ de Montgomery casas», destacou Martin Luther King, em The
1992. O livro revisita os momentos-chave Nesse mesmo dia, sob a liderança de um ainda Autobiography of Martin Luther King, Jr (A
do histórico protesto, vivido na cidade de desconhecido Martin Luther King, inaugu- Autobiografia de Martin Luther King, Jr).
Montgomery, no estado do Alabama. Presa rava-se o chamado Boicote de Montgomery, O «milagre» de Montgomery, conforme o
por violar as regras segregacionistas, segun- protesto que, durante 381 dias, deixaria os famoso reverendo apregoou, beneficiou da cria-
do as quais os motoristas dos autocarros autocarros da cidade sem passageiros afro- ção de uma rede colaborativa, em que os táxis
28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Cidade de
Oklahoma, 1939
Até os sítios para
beber água eram
diferenciados para
brancos e negros
detidos por afro-americanos passaram a estar do voto dos negros, integrando desde 1940 a a partir dos 21 anos», precisou a ativista, em
ao serviço da comunidade, ao mesmo valor da Liga dos Eleitores dessa Associação. declarações ao Eyes on the Prize.
tarifa dos transportes públicos. Por outro lado, Os entraves à votação negra saltavam à vista
o apoio ao protesto, vindo de outros estados, Pelo direito de voto em 1955, o ano em que Parks recusou ceder
permitiu distribuir calçado por quem, de tanto «Na altura era praticamente impossível um o seu lugar: só havia 31 eleitores afro-ameri-
andar a pé, começou a precisar de reforços. negro conseguir recensear-se para votar», lem- canos recenseados no Alabama.
No caso de Rosa Parks, os ajustes na mobili- brou a «Mãe do Movimento pelos Direitos A segregação começou a perder força de lei,
dade duraram cerca de cinco semanas, porque Cívicos» em entrevista ao projeto documental primeiro com a decisão de 1954 do Supremo
foi despedida no início de 1956. Igual desfe- Eyes on the Prize. A dificuldade no acesso às Tribunal americano, que determinou o fim
cho conheceu o marido, o barbeiro Raymond urnas – ultrapassada em 1965, com a aprovação da hierarquia racial nas escolas. Seguiu-se,
Parks, numa convergência de represálias que da Lei dos Direitos de Voto, pelo Presidente em Montgomery, como efeito do boicote, a
precipitou a mudança da família para Detroit. Lyndon B. Johnson – assentava na obrigato- eliminação da separação entre brancos e negros
Casados desde 1932, sem filhos, e ambos mem- riedade de realização de um teste de literacia, e nos transportes públicos, celebrada a 20 de de-
bros da NAACP de Alabama, Rosa e Raymond do pagamento de uma taxa. «Custava um dólar zembro de 1956. Quase uma década depois, em
tornaram-se especialmente ativos em defesa e meio, mas tinha de ser pago com retroativos, 1964, a Lei dos Direitos Cívicos foi aprovada,
seguida da Lei dos Direitos de Voto, de 1965.
Já em 2005, quarenta anos após esse marco
1968 legal, o movimento despedia-se da mãe Rosa,
saudando os seus ensinamentos. «A vida deve
ser vivida ao máximo para que a morte seja
Marcha entre Selma e Por ordem do Martin O presidente
Montgomery, Alabama, presidente Luther King é Johnson assina apenas mais um capítulo», escreveu Parks
protestando contra a supressão Johnson, é assassinado a Lei dos Direitos num artigo de 1988, publicado na revista Life.
do votos dos negros. Os impedido o uso de na varanda Civis, que estabelece No mesmo texto, a ativista partilhou a sua
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VISÃO H I S T Ó R I A 29
RACISMO // EUA
Um sonho que
mudou o mundo
A figura e a obra de Martin Luther King vistas por uma estrela
do futebol, autor de um livro onde elege as suas «estrelas negras»
por Lilian Thuran
Lilian
O
Thuram
Antigo jogador pai de Martin Luther King era pastor, o tio paterno era pastor, King não era o pastor calmo e pacifista que
de futebol o único irmão era pastor, o avô e o avô do avô eram pastores… imediatamente imaginamos, disposto a ofe-
francês, nascido Todos eram indivíduos sensíveis ao sofrimento e às in- recer a face esquerda depois de ter oferecido
em Guadalupe,
Lilian Thuram
justiças. a direita.
criou em 2008 O combate de Martin Luther King Jr. em defesa da liber- A sua estratégia era uma não-violência
a Fundação dade resultou de uma forte educação humanista. «provocadora», um «confronto conciliató-
Thuram – Martin Luther King Jr. foi rodeado por bondosas fadas-madrinha rio». King procurava a eficácia através da
Educação contra
o Racismo. Tem logo à nascença. Os pais eram muito unidos e tinham meios finan- penitência. A sua inteligência estava no fac-
hoje uma grande ceiros suficientes para lhe permitir frequentar a universidade. Em to de se inspirar em Gandhi, que, em 1920,
intervenção 1948, terminou a licenciatura em Sociologia, que lhe proporcionou afirmara: «Se a única escolha possível for
pública por todo uma sólida cultura filosófica. Uma das obras determinantes para a sua entre a cobardia e a violência, aconselho a
o mundo, a favor
da igualdade, formação intelectual foi Desobediência Civil, o ensaio escrito por David violência. […] Preferia que a Índia pegasse
e foi doutorado Henry Thoreau. O livro descreve a técnica da resistência passiva e fala em armas para defender a sua honra a vê-la
honoris sobre o dever de rejeitar toda e qualquer colaboração com um regime tornar-se ou continuar a ser uma testemunha
causa pelas
perverso. Numa conferência realizada em 1950, Martin descobriu o impotente da sua própria desonra, por cobar-
universidades
de Sterling pensamento de Gandhi e concluiu que o método de não-violência dia. Creio, no entanto, que a não-violência
(Escócia) e preconizado por Mahatma poderia revelar-se extremamente eficaz, se é infinitamente superior à violência.» Uma
Estocolmo aplicado ao combate contra a segregação. Em 1953, tornou-se pastor superioridade que advém do entendimento
(Suécia).
da igreja batista da Dexter Avenue, em Montgomery, no Alabama. da sua força política, longe dos «sentimentos
Escreveu o
livro As Minhas Nesse mesmo ano, casou -se com Coretta Scott, um elemento muito nobres» ou da recusa do combate, da arte
Estrelas Negras, ativo na luta contra a opressão da comunidade negra. que consiste em virar a violência do outro
publicado em O dia 1 de dezembro de 1955, aquele em que Rosa Parks se recusou contra si mesmo e em expor perante todos essa
Portugal pela
Tinta da China
a obedecer à ordem de um motorista de autocarro para que cedesse mesma violência bruta. Martin Luther King
em 2013, do o lugar a um branco, constituiu uma revelação para Martin Luther compreendeu a argumentação e, a partir desse
qual este texto King. Em Montgomery e em toda a comunidade negra, este episódio momento, empenhou-se em expor a violência
foi retirado culminou numa vitória contra a segregação nos transportes públicos. dos brancos do Sul, em particular do Ku Klux
Martin Luther King tomou consciência dos efeitos que uma ação deste Klan e dos seus cúmplices no seio das forças
tipo poderia ter, combinando os ideais da não-violência defendidos policiais da região, para a divulgar nos meios
por Gandhi com a necessidade moral da resistência passiva preconi- de comunicação social. Martin Luther King foi
zada por Thoreau. um verdadeiro líder político e não um mero
«A força da não-violência prevaleceu», escreveu o pastor. Todavia, e inócuo candidato eleitoral.
é ainda longo o caminho a percorrer até se sair da «noite lúgubre e Em 1957, foi nomeado presidente da SCLC
sinistra da desumanidade do homem pelo homem»… (Southern Christian Leadership Conference,
Nem romantismo nem ingenuidade animavam os heróis da resistên- ou Conferência dos Dirigentes Cristãos do
cia negra desta época. Todos estudavam as técnicas políticas, jurídicas Sul), que organizou a luta das igrejas afro-
e mediáticas que poderiam servir os seus direitos. Da mesma forma -americanas pela causa dos direitos civis. Será
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que a mulher que se recusara a ceder o lugar no autocarro não era necessário relembrar que só partilhando os
uma negra infeliz e exausta no final de um dia de trabalho, mas uma mesmos direitos e deveres poderemos viver
militante determinada e aguerrida, também o pastor Martin Luther juntos em sociedade? Se assim não for, surgirá
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Luther King em oração
Atrás, ao centro da
foto tirada em Selma,
Alabama, vê-se Ralph
Abernathy; seriam
detidos dias depois
VISÃO H I S T Ó R I A 31
RACISMO // EUA
Luther King
descobriu
o pensamento de
Gandhi e concluiu
que a não-violência
poderia ser eficaz
Segregação racial No sul dos EUA havia cafés (o da foto de cima em Atlanta, em1962), carruagens de comboio, hotéis
e cinemas específicos para negros
o fantasma da guerra civil. Foi o que demons- A miséria terrível e as injustiças sociais que estrada, etc. Entre 1961 e 1962, porém, King
traram as diferentes ações organizadas por assolavam o país não lhe escaparam. Numa nunca deixou de falar, de agir e, como seria
Martin Luther King, que acicataram um ódio visita a uma escola, o diretor apresentou-o de esperar, de passar algum tempo na cadeia.
cada vez mais forte nos que pretendiam man- nos seguintes termos: «Jovens, gostaria de Em 1963, a SCLC e o Alabama Christian
ter as desigualdades e o medo para melhor vos apresentar um ‘colega intocável’ vindo Movement for Human Rights lançaram uma
poderem reinar. dos Estados Unidos da América!» Que lições grande campanha de contestação, em Birmin-
A 20 de setembro de 1958, Luther King poderá um norte-americano dar à Índia em gham, o pior local para um negro em todos os
foi apunhalado no bairro de Harlem durante matéria de segregação? Estados Unidos da América. As autoridades
uma sessão de autógrafos do seu livro Stride Em 1960, os sit-in, ou ocupações, torna- de Birmingham pareciam nunca ter ouvido
Toward Freedom (Caminhada para a Liber- ram-se uma prática generalizada nas lojas e falar de Abraham Lincoln, Thomas Jeffer-
dade). O corte foi tão próximo da aorta que, nos restaurantes dos estados do Sul. A técnica son, da Declaração dos Direitos do Homem,
se ele «tivesse espirrado durante as horas de consistia em permanecer sentado em grupo do veredicto emitido em 1954 pelo Supremo
espera, tê-la-ia perfurado e morrido afogado num local onde os negros estivessem proi- Tribunal de Justiça declarando ilegal todo
no próprio sangue», escreveu o The New York bidos de entrar. Apesar de pacíficas, estas o tipo de segregação em estabelecimentos
Times. A agressão não o demoveu do seu pro- ações organizadas por Martin Luther King escolares… Ali, negava-se a História, assim
pósito, pois os objetivos que tinha em mente não ficaram sem resposta. O FBI seguia-o de como os direitos civis. George Wallace, go-
sobrepunham-se a qualquer preocupação com perto e ordenou a sua detenção por diversas vernador do Estado, regia-se por um único
a sua própria vida. vezes, acusando-o de apresentar declarações lema: «Segregação hoje, segregação amanhã,
Em 1959, deslocou-se à Índia, onde se de impostos falsas, de participar em mani- segregação sempre!» Duas meninas negras
reuniu com o primeiro-ministro, Nehru. festações, de cometer infracções ao código da foram mortas no interior de uma igreja, e os
32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
DANNY LYON/MAGNUM PHOTOS/
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA
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Marcha sobre Washington Martin Luther King acena aos apoiantes perto do memorial de Lincoln, na capital federal, em 28 de agosto de 1963,
quando proferiu o célebre discurso I have a dream («Eu tenho um sonho»)
atentados racistas nunca esclarecidos eram dades judiciais declarassem o fim da segregação 350 podiam recensear-se. Por fim, a correção
de tal maneira numerosos que a cidade era nos parques da cidade, «Bull» reagiu fechan- do famoso teste de «alfabetização», concebido
conhecida entre os negros pela designação do-os… e colocando uma bomba na residência para prejudicar os eleitores negros, era tudo
«Bombingham»! do pastor! No que diz respeito ao emprego, os menos isenta.
A descrição de Martin Luther King era as- postos de trabalho oferecidos aos negros eram As igrejas, espaços sagrados da vida em
sustadora. Segundo ele, os direitos humanos sempre irrisórios, sem nenhuma possibilidade comunidade, estavam abrangidas da mesma
eram violados há tanto tempo que o medo e de promoção e com salários muito inferiores aos forma pela legislação «Jim Crow», pois, como
a opressão tornavam o «ambiente social tão auferidos pelos brancos… Graças a uma curiosa escreveu Martin Luther King, «embora se
denso como o fumo libertado pelas chaminés disposição das leis democráticas, os direitos civis proclamassem cristãos, os nossos concidadãos
das fábricas». (e as leis «Jim Crow» também) permitiam que brancos praticavam a segregação na casa do
O xerife, Eugene Connor, conhecido pela um terço dos negros constituísse apenas uma Senhor com o mesmo zelo com que a aplica-
alcunha de «Bull» («Touro») era agente da oitava parte do corpo eleitoral. Além das intimi- vam nas salas de cinema». Basta pensar que
polícia durante o dia e membro do Ku Klux dações e das ameaças diante das assembleias de se uma criança negra entrasse numa igreja
Klan à noite. Os direitos civis e a vida social voto, Martin Luther King referiu-se igualmente «branca» para rezar podia ser violentamente
estavam subordinados às leis segregacionistas, à «lentidão deliberada com que se procede às escorraçada e espancada.
conhecida como legislação «Jim Crow», que formalidades de recenseamento» e à «redução A questão primordial continuava a ser como
abrangiam hospitais, cinemas, lojas, urinóis do número de dias e horas de funcionamento levar a opinião pública branca, em particular a
públicos, fontanários, cemitérios, transportes, dos centros de recenseamento». «maioria silenciosa» branca, mais preocupada
jardins e parques públicos… Quando o corajoso Numa cidade como Selma, por exemplo, com a ordem do que com a justiça, a interes-
pastor Shuttlesworth conseguiu que as autori- em 15 mil possíveis eleitores negros, menos de sar-se pela segregação a que estava sujeita a
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RACISMO // EUA
34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
é ser tratado com dureza». Quando Kenneth
B. Clark lhe perguntou se as crianças também
recebiam uma formação semelhante, Martin
Luther King respondeu: «Sim, as crianças
também. Aliás, nenhuma delas participa
numa marcha ou em qualquer manifestação
sem antes ter realizado esta formação.»
Martin Luther King não escapou aos
ataques de boas almas que o acusaram de
Crianças» ou «dos Inocentes» não fraque- maioria silenciosa. Finalmente, a 21 de maio de 1963, o presi-
jou. Mais de mil jovens foram detidos no Na célebre entrevista que concedeu a Ken- dente da câmara demitiu-se, o chefe da polícia
primeiro dia. Por falta de carros celulares, neth B. Clark, emitida em maio-junho de foi exonerado e, em junho, todos os cartazes
as autoridades policiais viram-se forçadas a 1963, Martin Luther King revelou que as ma- segregacionistas foram retirados, permitindo-
fretar autocarros escolares para transportar nifestações não-violentas eram objeto de uma -se aos negros o acesso a todos os locais e es-
os detidos para a cadeia. No dia seguinte, o preparação especial e que os participantes paços públicos. Por seu lado, a administração
número de crianças presas subiu para dois recebiam «formação na qual aprendem o que Kennedy, que não tinha como prioridade a
mil, mas nem assim pararam de chegar mais! legislação sobre os direitos civis, decidiu apre-
Algumas apresentavam-se, espontaneamente, sentar com carácter de urgência máxima uma
nas esquadras de polícia, a cantar e a pedir vigorosa proposta de lei sobre esses direitos
para serem detidas.
Furioso, «Bull» Connor ordenou uma carga
Mesmo sem dar que deviam ser respeitados por todos.
A reputação de Martin Luther King saiu
policial com pastores-alemães, especialmente prioridade ao combate consideravelmente reforçada e o aconteci-
treinados para morderem o estômago das
vítimas, sobre as crianças que desfilavam
à segregação, mento foi assinalado com a realização de uma
marcha sobre Washington, destinada a unir o
pacificamente e forçou os manifestantes a a Administração conjunto de forças dispersas. A 28 de agosto
dispersarem com a ajuda de mangueiras para
combater incêndios, cujo jacto de água tinha
Kennedy colaborou de 1963, duzentas e cinquenta mil pessoas de
todas as cores e religiões juntaram-se dian-
força suficiente para arrancar a casca de uma com a luta te do monumento dedicado à memória de
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RACISMO // EUA
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profundamente enraizado no sonho ameri-
cano. Tenho um sonho de que, um dia, esta
nação se erguerá e viverá em toda a plenitude
Assassínio de Luther King Na varanda de um hotel de Memphis, Alabama, junto do corpo
a verdadeira realidade da sua crença: ‘Consi- tombado do líder, Ralph Abernathy, Jesse Jackson e outros ativistas apontam para o local
deramos estas verdades como evidentes por de onde proveio o disparo, no dia 4 de abril de 1968
si mesmas, que todos os homens são criados
como iguais.’ filosofia de não-violência coincidiu com a do a qualquer momento. Mas seria esse um
Tenho um sonho de que, um dia, nas ru- «Marcha contra o Medo», realizada a 6 de motivo suficientemente forte para o levar a
bras colinas da Geórgia, os filhos dos antigos junho de 1966: «Enquanto caminhávamos desistir?
escravos e os filhos dos antigos proprietários ao longo daquela estrada sinuosa, debaixo de No dia 4 de abril de 1968, quando esta-
de escravos poderão sentar-se à mesa da fra- um calor abrasador, conversávamos bastante va na varanda de um quarto de hotel, em
ternidade. e eram abordadas muitas questões. Memphis, ouviu-se um disparo. Um único.
Tenho um sonho de que, um dia, o estado ‘Já não sou a favor deste tipo de ações não- Martin Luther King, o homem que queria
do Mississípi, sufocado pelo fogo da injustiça -violentas’, disse um dos ativistas mais jovens. transformar a desunião da sua nação numa
e da opressão, se transformará num oásis de ‘Se um destes sacanas do Mississípi me tocar, «bela sinfonia de fraternidade» foi abatido.
liberdade e justiça. dou cabo dele’, gritou outro. Alguns dias mais tarde, duzentos mil norte-
Tenho um sonho de que os meus quatro Uma vez, durante a tarde, parámos para -americanos de todas as cores e confissões
filhos viverão, um dia, numa nação onde não cantar We Shall Overcome. As vozes eleva- religiosas acompanharam, ao longo das ruas
serão julgados pela cor da sua pele, mas pela ram-se com o fervor habitual […]. No entan- de Atlanta, a mula que puxava a carreta sobre
natureza do seu carácter. to, quando chegámos à estrofe que fala dos a qual seguia o seu féretro.
Tenho um sonho, hoje!» negros e brancos juntos, as vozes de alguns Restam-nos, hoje, a integridade e a coragem
participantes na marcha calaram-se. Mais tar- pouco vulgares de um homem que nunca
A 10 DE DEZEMBRO DE 1964, aos 35 de, perguntei-lhes porque se tinham recusado transigiu em relação ao seu ideal, um ideal
anos, Martin Luther King foi galardoado com a cantar aquele verso e a sua resposta foi: ‘Os que descrevia aos seus interlocutores da se-
o Prémio Nobel da Paz. Através dele, pres- tempos mudaram. Não voltaremos a cantar guinte maneira:
tava-se, assim, uma magnífica homenagem essas palavras. Na verdade, toda a canção «No que diz respeito a certas tomadas de
aos milhares de indivíduos anónimos, atores devia ser alterada. Já não é Nós venceremos posição, a cobardia pergunta: ‘Será perigoso?’
do movimento em defesa dos direitos civis. que é preciso dizer, mas Vamos esmagá-los.’ O oportunismo pergunta: ‘Será político?’
Este «sonho» e a marcha triunfante que Juntando-se à discussão, a vaidade ques-
o acompanhou exacerbarão, ainda mais, o O ÓDIO ATRAI O ÓDIO. Martin Luther tiona: ‘Será popular?’
ódio dos brancos segregacionistas contra ele. King não tinha dúvidas quanto a isso e, em A consciência, porém, pergunta: ‘Será jus-
Todavia, também farão crescer a impaciên- abril de 1968, escassas horas antes da sua to?’»
cia de uma juventude negra revoltada que, morte, escreveu:
progressivamente, foi alargando a sua ação a «Não sei o que vai acontecer agora. Temos
Texto retirado do
movimentos como o dos Muçulmanos Negros, dias difíceis pela frente. Todavia, pouco impor- livro As Minhas
de Elijah Muhammad, em que se destacava ta o que possa suceder-me, pois subi ao cimo Estrelas Negras –
de Lucy a Barack
a figura de Malcolm X e que preconizavam a da montanha. Já não estou preocupado. Como Obama (Tinta da
autodefesa. Em 1966, surgirá o Poder Negro, toda a gente, gostaria de viver muito tempo. China, 2013)
lançado por Stokely Carmichael, e, por fim, A longevidade tem o seu preço, mas isso é
o partido dos Panteras Negras. Para Martin algo que agora não me preocupa.»
Luther King, o momento de declínio da sua Luther King sabia que podia ser assassina-
36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Um longo caminho
Figuras e momentos marcantes
da luta pelos direitos cívicos
por Paula Cardoso
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Punhos ao alto,
joelhos ao chão
PÉS DESCALÇOS, colar de missangas ao
pescoço, medalhas de ouro e de bronze ao
peito e, no centro das atenções, dois pu-
nhos enluvados apontados ao céu. A foto que
imortalizou o protesto dos atletas Tommie
Smith e John Carlos no Jogos Olímpicos
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RACISMO // EUA
38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A ‘missão divina’ de James Meredith
UMA VIAGEM DE COMBOIO mudou o destino de James Meredith. Natural
do segregacionista Mississípi, ele chocou de frente com o racismo quando regres-
sava de uma viagem a Chicago com um dos nove irmãos: o então adolescente de
15 anos foi obrigado a ceder o lugar sentado à passagem por Memphis. Naquele
momento, Meredith, hoje com 87 anos, jurou que iria dedicar a vida a lutar por
direitos iguais para os afro-americanos.
O primeiro grande teste surgiu com a candidatura à então 100% branca Uni-
versidade do Mississípi, apresentada em 1961, já depois de nove anos ao serviço
da Força Aérea. Após ter sido admitido, viu a instituição dar o dito por não dito e
ignorar a decisão do Supremo Tribunal, que em 1954 declarara inconstitucional
a segregação racial na Educação.
Fiel ao juramento adolescente, o ativista contestou a discriminação nos tribu-
nais e, em 1962, tornou-se mesmo o primeiro negro a frequentar a Universidade
do Mississípi. À entrada, carregava um velho legado de resistência, antecedido
de dez dias de tumultos com a intervenção de 500 polícias e 16 mil militares.
O episódio garantiu a entrada do ativista na História do Movimento pelos
Direitos Cívicos, ainda que o seu capítulo esteja recheado de controvérsias.
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VISÃO H I S T Ó R I A 39
UM FILME
A PRETO E BRANCO
Como a colónia holandesa do cabo da Boa Esperança desenvolveu
ideologias e práticas racistas, entrou em choque com a Inglaterra
e semeou um dos regime políticos mais aberrantes de sempre
por Luís Almeida Martins
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VISÃO H I S T Ó R I A
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CHRIS HELLIER/GETTY IMAGES
RACISMO // ÁFRICA DO SUL
T
udo começou com a viagem do nave-
gador português Bartolomeu Dias.
No início de 1488, a sua pequena
frota dobrou o cabo das Tormentas,
entrou no oceano Índico e abaste-
ceu-se num ponto da costa. Agora,
que as estátuas têm dado que falar, é opor-
tuno lembrar que Dias tem um imponente
memorial na Cidade do Cabo. O nome de
Tormentas foi mudado para Boa Esperança
pelo rei português D. João II, porque estava
aberto o caminho para a Índia, alcançada
nove anos depois pela armada de Vasco da
Gama. Esta passou o dia 25 de dezembro de
1497 junto de uma costa que batizou de Natal,
nome que se mantém exatamente assim, em
português.
Como é bem sabido, em 1580 a crise di-
nástica provocada pelo desaparecimento de
D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir sem
deixar descendência colocou Portugal sob a
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42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
não só era muito mais ponderosa militar e
diplomaticamente, como ainda, por instiga-
ção de Rhodes, cobriu as zonas em disputa
de uma rede de comerciantes e outros agen-
tes. Em 1890, o governo de Lorde Salisbury
endereçou a Portugal o famoso ultimato que
forçou o nosso país a reconhecer a posse pelo
Reino Unido da Niassalândia (hoje Malaui)
e da Maxonalândia (partes da Zâmbia e do
Zimbabué atuais).
Recorrendo aos serviços de uma com-
panhia majestática, a British South Africa
Company, Rhodes estendeu seguidamente o
domínio britânico para sul. Foi após a vitória
sobre o povo dos matabeles, em 1893, que o
conjunto dos territórios situados entre Angola
e Moçambique foi batizado pelos ingleses de
Rodésia, em referência a Rhodes. E em 1895,
quando Joseph Chamberlain sobraçou a pasta
das Colónias, Rodhes instalou um protetora-
do na Bechuanalândia, atual Bostsuana. Esta
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anexação fez crescer a tensão com os bóeres,
que sentiram ameaçada a independência do
Transvaal e de Orange.
defendiam-se a tiro dos ataques dos leões – a rainha Victoria recebeu-o e fez-lhe uma ‘Uitlanders’ e ‘afrikaaners’
e dos povos locais. No termo dessa Grande pergunta de circunstância: «A que se dedica Mas os conflitos entre os britânicos e os bóeres
Jornada (Groot Trek), fundaram o Estado neste momento?» Rodhes respondeu: «Faço vinham já de trás. Uma primeira guerra an-
Livre de Orange, a norte do rio deste nome, todos os possíveis para dilatar os domínios glo-boer tivera lugar em 1881, na sequência da
e a República do Transvaal, entre o Vaal e de Vossa Majestade.» Rodhes sonhava com recusa dos delegados do Transvaal em aceitar
o Limpopo. Estes estados independentes, uma África Sul-Oriental integralmente bri- uma federação com os ingleses. Uma pequena
governados por brancos de língua africânder, tânica e com uma linha férrea que ligasse o força britânica foi derrotada e o governo de
reduziam nativos à escravatura. Cabo ao Cairo. Londres, na altura chefiado por Gladstone e
Entre 1877 e 1879, os ingleses do Cabo lan- Para o conseguir seria, porém, necessário pouco inclinado a guerras coloniais, resolveu
çaram-se à conquista do reino Zulu, uma impedir Portugal de unir por terra as pos- reconhecer a independência do Transvaal,
monarquia africana de características milita- sessões de Angola e Moçambique – o célebre embora uma cláusula garantisse o controlo
res que combateu rijamente mas acabou por «Mapa
Mapa Cor-de-Rosa».
Cor de Rosa . O governo luso enviou
e britânico da política exterior do estado boer.
ter de se vergar perante as vagas de reforços expedições científicas a esses território
territórios (Ca- Em 1883 ascendeu à presidência do Transvaal
enviadas por Londres. pelo, Ivens, Serpa Pinto, etc.) e fez publicar
publi os Paul Kruger, que se tornaria uma das bêtes noi-
resultados das viagens, mas a Grã-Bre
Grã-Bretanha res da política colonial e externa de Londres.
Rhodes e Portugal
A norte das repúblicas bóeres, a penetração
britânica fora obra de Cecil Rhodes. Filho de
um clérigo, Rhodes partira em jovem para a
África do Sul para se curar de uma doença Os zulus combateram
pulmonar e fizera fortuna na exploração dos
recém-descobertos diamantes de Kimberley,
rijamente, mas acabaram
fundando a companhia De Beers. Em 1890 por ter de se vergar
tornou-se primeiro-ministro da Colónia do
Cabo e sugeriu a criação de uma «federação
às sucessivas vagas
imperial» com as repúblicas bóeres. Um dia, de reforços britânicos
VISÃO H I S T Ó R I A 43
RACISMO // ÁFRICA DO SUL
44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Guerra Anglo-Boer
de 1899-1902
Soldados britânicos
(à esquerda)
e três gerações
de combatentes bóeres
(ao lado)
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bantustões, e eram tratados como seres in-
feriores. Os direitos dos imigrantes indianos
foram defendidos por um deles – o advogado
Mohandas Gandhi, que depois se celebrizaria
A dada altura os bóeres aumentaram a Kruger acabaria por ser forçado a render-se por outros motivos
frequência dos raides lançados atrás das li- à Inglaterra. O tratado de paz de Vereeniging, Em 1922, uma revolta dos trabalhadores
nhas inglesas, enveredando pela guerra de assinado em maio de 1902, foi, mesmo assim, afrikaaners do Witwatersrand foi duramente
guerrilha. Foram eles que criaram o conceito generoso para com os bóeres, que se declara- reprimida, o que deu azo a que os nacio-
de unidades de comandos e que se lembraram ram súbditos de Eduardo VII mas puderam nalistas brancos vencessem as eleições de
de colocar sacos de terra nos parapeitos das conservar o uso oficial do africânder e obti- 1924. Em 1931, a União Sul-Africana tor-
trincheiras. veram uma indemnização para reconstruir nou-se independente do Reino Unido, com
Para inverter a sorte das armas, um novo as herdades danificadas pela guerra. a promulgação do Estatuto de Westminster.
comandante britânico, Lorde Kitchener, deci- Por essa altura, antropólogos e linguistas
diu criar campos de concentração destinados União Sul-Africana brancos locais forjaram um conceito social
a internar a população civil, impedindo-a Esforçando-se por reconciliar bóeres e uitlan- e político que daria origem à ideologia do
de colaborar com as ações de guerrilha e de ders, a Inglaterra criou, em 1903, uma união apartheid: rejeitando a ideia de uma socie-
comandos. Estes recintos eram delimitados aduaneira dos territórios da atual África do dade sul-africana única, propunham separar
por arame farpado, um material que fez assim Sul. A união política veio a seguir: uma con- geográfica, politicamente e economicamente
a sua entrada na história militar. Durante a II venção nacional reuniu-se em 1908 e dela os negros e os brancos a pretexto de manter e
Guerra Mundial, a propaganda da Alemanha saiu um projeto de constituição que selava a reforçar as identidades e combater os efeitos
nazi não se cansaria de atribuir aos ingleses a federação do Cabo, do Natal, do Transvaal e aculturadores da urbanização nas estruturas
invenção dos campos de concentração. de Orange e na União Sul-Africana. O par- tradicionais.
Contando com uma mediação das potên- lamento de Londres aprovou. Curiosamente, O Partido Nacional chegou ao poder em
cias, Kruger fez uma digressão por algumas seria um boer, o general Botha, o primeiro 1948 e reforçou a segregação. Sob a lide-
capitais europeias, mas não conseguiu ob- chefe do governo do novo domínio de Sua rança do pastor protestante Daniel Malan,
ter qualquer acordo diplomático. Em 1901 e Majestade. começava o regime do apartheid, assente no
1902, uns 350 refugiados bóeres viveram nas Mas quem habitava ali? Britishers e ódio entre a minoria supremacista branca e
Caldas da Rainha e a população portuguesa afrikaaners, mas sobretudo a população au- a maioria negra humilhada. A África do Sul
em geral, ainda traumatizada pelo ultimato tóctone, cinco vezes mais numerosa do que teria durante 46 anos, até 1994, um dos regi-
inglês, apoiava a sua causa. a de origem europeia. Para defender os seus mes políticos mais aberrantes do mundo.
VISÃO H I S T Ó R I A 45
RACISMO // ÁFRICA DO SUL
P
independente sobre o qual os afrikaners
ara compreender o que se tornaria de trabalho simultaneamente produtiva e tivessem total controlo e o fim da sujeição
um sistema repudiado à escala global, consumidora. aos britânicos. Em termos sucintos, o mo-
como «crime contra a humanidade», É neste contexto que germina o sistema delo preconizado pelos nacionalistas visava
é incontornável remeter-nos não só de apartheid. Em 1939, oito anos após a pôr fim ao estatuto de cidadãos de segunda
às circunstâncias da era em que ger- independência do país, ressentidos com a imposto aos afrikaners e à consequente
minou como às de quem o concebeu, opressão pelos britânicos, parte dos afrika- marginalização destes dos centros de deci-
promoveu, defendeu e só após quatro déca- ners, liderados por Daniel Malan, rejeitaram são económica e política.
das de atrocidades e pressões internacionais o apoio a Londres na II Guerra Mundial No programa eleitoral de 1948, em que
aceitou desmantelar. levando o Partido Nacional a abandonar surge pela primeira vez afirmado o objetivo
A herança colonial britânica na África a coligação com o Partido da África do Sul de criação de um sistema de apartheid, este
do Sul deixava atrás de si um sistema de (pró-Reino Unido). visa criar espaços de poder aos afrikaners,
exploração capitalista desvalorizador da A vitória eleitoral do Partido Nacional, em erradicar a pobreza em que muitos deles
identidade cultural, tradições e sentido de 1948, decorreria da evidência de o modelo viviam desde o fim das guerras anglo-bóe-
unidade das diferentes nações indígenas e de Milner esbarrar no facto de grupos étni- res e desmantelar os efeitos da hegemonia
dos afrikaners. O modelo aplicado e legado cos e culturais distintos não percorrerem em britânica que mais preocupavam os na-
GETTY IMAGES
por Alfred Milner, que fora governador da simultâneo e de forma pacífica as diferentes cionalistas. Nomeadamente o domínio do
colónia do Cabo e alto-comissário para a fases de transformação uniformizadora, de- inglês sobre o africânder, o incentivo à imi-
África Austral, visava um único estado-mo- correntes de urbanização, industrialização, gração britânica para contrariar a maioria
derno, desenhado para servir o capitalismo burocratização, democratização, mediati- afrikaner entre a comunidade branca, mas
das minas e assente numa uniformização zação, educação em massa e secularização. também as escolas missionárias dedicadas
acelerada dos modos de vida das diferen- Na sua génese, o sistema de apartheid, a formar a juventude negra nos princípios
tes culturas, a fim de garantir uma força preconizado pelo líder nacionalista Daniel de capitalismo anglo-saxónico.
46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Massacre de Sharpeville
Em 21 de março de 1960,
69 manifestantes foram atingidos
mortalmente por polícias.
Na página ao lado, área para brancos
numa praia da Cidade do Cabo
GETTY IMAGES
e os padrões de «moralidade» em voga nos
subúrbios pobres de cidades culturalmente
mistas; afinal, os mais desfavorecidos precisa-
vam de ser não só resgatados do capitalismo
Pilares de um sistema Como «compensação» por esta coleta fis- anglo-saxónico, mas também da incapacida-
É na concretização destes objetivos que se cal extra, o Estado facilitava a exploração de de se autopoliciarem.
começam a erguer os primeiros pilares do dos trabalhadores não-brancos, em suporte Decorrente desta preocupação, e como
que se tornaria o sistema de segregação racial de lucros, mantendo-se assim inalterado o terceiro pilar, foram criadas escolas de edu-
legislada mais notório e condenado à escala capitalismo racial promovido por Milner no cação cristã, para incutir nos jovens afrika-
global. O primeiro deles foi a definição legal relançamento da economia após as guerras ners sentido de afirmação, disciplina, ética
de grupos populacionais, visando a respetiva anglo-bóeres. puritana de trabalho e, ao mesmo tempo,
separação territorial, de forma a que cada um O primeiro desses pilares foi formalizado criadas oportunidades de emprego para os
pudesse manter o respectivo modus vivendi, dois anos após a vitória nacionalista, com respetivos pais, tudo sob enquadramento
tradições e valores, sem a interferência ou a promulgação da chamada Lei de Registo calvinista pela Igreja Reformista Holandesa.
submissão aos de uma qualquer maioria. Populacional (Population Registation Act), ao O quarto pilar foi um ordenamento urbano
Num segundo eixo, a introdução de um abrigo da qual todos os residentes na África territorial, altamente planeado e apoiado
programa de ação afirmativa em benefício do Sul eram «catalogados» e divididos em em legislação própria (Group Areas Act),
de afrikaners, financiado através de impostos três grandes grupos: brancos, negros e mes- alicerçado, no seu arranque, na demolição de
extraordinários sobre empresas e negócios de tiços (os indianos foram mais tarde classifi- subúrbios pobres e de construções ilegais, ao
domínio ango-saxónico, que se opunham ao cados num grupo adicional por serem vistos mesmo tempo que se apertava o controlo da
intervencionismo estatal dos nacionalistas. como não tendo «direito histórico ao país»). imigração, antes estimulada pelos britânicos
para angariação de mão-de-obra barata.
Cada grupo racial deveria residir em áreas
Centenas de milhares prédeterminadas do território nacional, dis-
de não brancos foram tando entre si, no seu perímetro externo, pelo
menos 12 quilómetros e serem idealmente
deslocados para townships separados por um «cordão de saneamento»,
VISÃO H I S T Ó R I A 47
RACISMO // ÁFRICA DO SUL
Sendo que todas as localidades «de ci- separadas entre si), onde foi atribuído a Escalada da repressão
mento» passaram a ser «áreas brancas», a cada família um pequeno talhão de terra A subida do pacifista zulu Albert Luthuli
permanência de cidadãos de outras raças e materiais necessários à construção de (Prémio Nobel da Paz de 1961) à presidência
dependia de ali terem emprego formal ou habitação básica. do Congresso Nacional Africano (ANC),
habitação em dependência do emprega- A deslocação forçada de centenas de milha- em 1952, marcou a postura inicial de re-
dor, formalmente registada como tal em res de não-bancos tanto para as townships, sistência passiva deste movimento, a que
passe de porte diário obrigatório. Todos os primeiro, como depois para bantustões («es- respondeu o então ministro dos Assuntos
outros, incluindo os residentes em bairros tados» com grau relativo de autodetermina- Nativos, Hendrik Verwoerd (estratega e
demolidos, foram removidos à força para as ção, criados em zonas pobres do território propagandista do Partido Nacional e fu-
chamadas townships (localidades-satélites nacional), a par da exclusão daqueles dos turo primeiro-ministro) com medidas de
das cidades «brancas» para alojamento centros de decisão política nacional, provocou repressão de crescente dureza e imposição
de pessoas de outras raças, também estas uma escalada de resistência dos afetados. da supremacia afrikaner.
Leis restritivas
¶ O apartheid, implemen- de brancos, que eram as comerciais nos bantustões de negros foram presos, de cada vez. Não existia
tado em 1948, quando o melhores do ponto de vista ou nos chamados muitos deles sem direito a recurso.
Partido Nacional chegou ao urbano, industrial e agrícola. «municípios negros», julgamento e privados de
poder, era regulado por um que eram guetos raciais contactos com advogados, ¶ Os negros maiores de
conjunto 317 leis restritivas, ¶ A exceção a esta última que serviam de reservas parentes ou amigos, e 16 anos tinham de levar
que limitavam os direitos disposição eram os de mão-de-obra para os outros milhares perderam a sempre consigo o passe,
com fundamento na «raça». jardineiros e as empregadas empregadores brancos. vida em protestos políticos, documento parecido com
domésticas, mas os maridos muitos dos quais abatidos a um passaporte mas mais
¶ Os direitos civis ficavam destas podiam ser presos se ¶ Várias leis proibiam os tiro por polícias ou militares. grosso, onde figuravam a
restritos a menos de fossem apanhados no local. negros de ter atividade foto, as impressões digitais,
5 milhões de brancos política e de exercer os ¶ As leis permitiam os pormenores pessoais
e eram negados a mais ¶ A Lei sobre Bantustões seus direitos democráticos ao governo deter relativos ao emprego, a
de 25 milhões de negros. relegava os negros para (podiam exercer o voto de indefinidamente um autorização para estar em
zonas marginais na forma limitada e regional cidadão sem julgamento determinada zona do país, a
¶ A Lei de Zonas para periferia da África do Sul nos bantustões, ou e exilar ou banir os qualificação para trabalhar
Grupos determinava onde industrializada, o que os «territórios pátrios»). «dissidentes». O exílio ou procurar trabalho no
deviam viver as pessoas, privava eficazmente da (banishment) consistia no local, e as informações
consoante a «raça» a que cidadania e permitia ao ¶ Os negros que infligissem desterro num local remoto dos empregadores acerca
pertenciam. governo branco alhear-se as normas legais incorriam do país e o banimento do desempenho e da
do seu desenvolvimento em prisão, tendo morrido (banning) a proibição conduta do detentor do
¶ Os negros não podiam económico e social. centenas na cadeia, de de viajar, escrever, falar passe.
possuir propriedades, nem morte violenta. em público ser citado na
alugá-las sem autorização ¶ Os negros só podiam imprensa ou conversar ¶ Esquecer-se do passe,
estatal, em zonas exclusivas possuir empresas ¶ Dezenas de milhares com mais de uma pessoa perdê-lo ou deixá-lo ser
48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ERNEST COLE/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO.PT
Com a mesma linha de pensamento mas trabalho) e, ainda, do ensino do africânder África do Sul, cruzando-se com as ramifica-
posição oposta no espectro racial, um grupo e da aprendizagem de disciplinas nucleares ções da Guerra Fria no continente africano.
de radicais liderados por Robert Sobukwe através desta língua, como mais um gesto de O massacre de Sharpeville marcaria tam-
divergiu do ANC (defensor do multirracia- afirmação da cultura afrikaner. Ao protesto, bém a ascensão de Nelson Mandela, a figura
lismo) para fundar, em 1959, o Congresso formado de início, na sua larga maioria, por de primeira linha da resistência ao apartheid,
Pan-Africano (PAC), promotor do naciona- jovens, aderiram milhares de residentes na- como principal promotor do recurso à luta
lismo negro e da exclusão de todas as outras quela localidade, que cercaram a esquadra. armada, após ter sido ele próprio preso, por
etnias e nacionalidades. Foi o PAC que lançou, No rescaldo, 69 manifestantes tinham morri- diversas vezes, durante ações de protesto
a 21 de março de 1960, uma marcha sobre a do, muitos deles atingidos a tiro pelas costas. pacíficas.
esquadra da township de Sharpeville, contra Estavam marcadas as linhas da imposição
* António Mateus foi correspondente da agência
a obrigatoriedade do porte de passes (iden- do apartheid e da respetiva resistência, cujo Lusa na África do Sul e é autor de dois livro sobre
tificativos da raça, local de residência e de braço-de-ferro extravasaria as fronteiras da Nelson Mandela
roubado implicava prisão, ¶ As praias, piscinas e biblio- outros para negros; os ¶ O parlamento sul-africano ¶ Os partidos de oposição
pena em que por estes tecas públicas eram sujeitas comboios para negros só era composto por três capazes de desafiar
motivos incorriam cerca de a segregação, sendo as me- tinham carruagens de 3ª câmaras. A Assembleia efetivamente o Partido
250 mil negros por ano. lhores para brancos e raras classe. tinha 178 deputados Nacional (como o ANC e
as destinadas a negros. brancos, 166 dos quais o Congresso PanAfricano)
¶ O casamento entre «raças» ¶ Os bancos dos jardins eleitos pelos eleitores eram proibidos por lei.
diferentes era considerado ¶ Havia uns transportes públicos apresentavam o brancos e os restantes
um delito, tal como o sexo públicos para brancos e aviso «Só para europeus». nomeados. ¶ A unitária Frente Democráti-
ou a tentativa de sexo A Câmara dos ca Unida, que pretendia fazer
interrracial. Representantes era oposição dentro do quadro
composta por 85 membros legal, era constantemente
¶ O ensino era separado con- mestiços, eleitos por este perseguida, e os seus dirigen-
soante as «raças» e só 14% grupo étnico. Finalmente, a tes frequentemente detidos.
dos negros atingiam o nível Câmara dos Delegados era
secundário; a certa altura integrada por 45 membros ¶Para encobrir o facto
foram criadas universidades indianos, eleitos por esta de mais de 25 milhões de
GREY VILLET/GETTY IMAGES
VISÃO H I S T Ó R I A 49
RACISMO // ÁFRICA DO SUL
Tempo de bonança
O Madiba (termo que designa
um homem idoso e respeitado,
recorrentemente aplicado
a Nelson Mandela) em 1994,
quando Presidente da África
do Sul, numa manifestação
pacífica para assinalar
o 34º aniversário do massacre
de Sharpeville
50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mandela, o ‘agitador
pôr-do-Sol se erguia para falar, resumindo o
que fora dito e procurar um consenso. Uma
postura ao mesmo tempo firme e sensível
dos ramos’
que Mandela encontra em Sisulu e na mulher
deste, Albertina, quando o acolhem em sua
casa e o exortam a prosseguir os estudos de
Direito. Sisulu, já então figura emergente no
O paladino da luta anti-apartheid renasceu como Congresso Nacional Africano (ANC), mobi-
liza-o para uma causa com a qual Mandela se
homem durante os anos de encarceramento
identifica de imediato. O mentor apresenta-o
na prisão de Robben Island a uma sua sobrinha, Evelyn Mase, com quem
por António Mateus o protegido celebra o seu primeiro de três
A
casamentos.
vida de Rolihlahla Mandela confun- teve a sua primeira experiência de segregação Estava-se em 1944, Mandela tem 26 anos
de-se com a história da implemen- racial, sete anos antes ainda da aplicação do e desempenha papel central na fundação da
tação, resistência e erradicação do apartheid no país. Negros e brancos usavam liga da juventude do ANC. A partir dali, seria
sistema de apartheid que vigorou chávenas de chá distintas. Sendo ele e outro pai, de dois em dois anos (por quatro vezes) de
na África do Sul desde os seus 30 escrivão, Gaur Radebe, os únicos funcioná- filhos com Evelyn; primeiro de Thembekile, a
anos de idade até, a dois meses de rios não brancos, houve que comprar nova 23 de fevereiro de 1945, e é por isso atribuída
completar os 76, ter sido eleito o primeiro chávena «para empregado negro». Criado à família uma casa em Orlando Oeste (bairro
Presidente não branco do país do ouro. numa bolha rural remota, Mandela nunca fora abarcado em 1963 pelo Soweto, megalocali-
Rolihlahla, «O que Agita os Ramos» na sua até ali exposto – de forma para ele perceptí- dade «negra» satélite de Joanesburgo). Aos
língua materna xhosa, seria rebatizado como vel – à discriminação racial. Ou dela tomado 33, três anos após o início da implementação
Nelson pela professora primária, Mdingane, consciência. do apartheid e de lhe nascer a primeira filha,
quando o menino negro, invulgarmente alto Mandela guardaria para o resto da vida a Makaziwe (que morreria aos nove meses), dois
para os seus 7 anos, entrou sala da escola figura de Jongintaba como exemplo de líder após a interdição do Partido Comunista e um
metodista de Wesley, no Transkey, com umas determinado em manter a unidade do seu de ser novamente pai, agora de Makgatho, é
calças do pai, cintadas com uma corda e apa- povo. Todos os tembos lhe eram fiéis, inde- eleito presidente da liga da juventude do ANC.
radas pela mãe ao nível dos joelhos. pendentemente do nível académico e eco- E esta, junto com o Congresso Indiano, orga-
Mandela tinha 23 anos quando chegou a nómico, não por concordarem sempre com nizam uma greve nacional contra todo o tipo
Joanesburgo em fuga de um casamento ar- ele, mas por ele escutar e respeitar sempre as de formas legisladas de discriminação racial.
ranjado por Jongintaba, regente dos tembos suas opiniões. Foi com ele que o irreverente Aos protestos, o Partido Nacional, no poder
(tribo de origem do futuro líder anti-apar- Mandela descobriu a arte de liderar escutando desde 1948, reage promulgando novas leis
theid), que o perfilhou após a morte de seu pai os outros, tornando-os parte da decisão final. que consolidam o sistema de apartheid e, ao
biológico, o régulo Gadla. Estava-se em 1941. Quando entendia, Jonjintaba convocava os ré- mesmo tempo, reforçam o poder discricio-
É ali que conhece Walter Sisulu, primeira gulos e todo o povo para o debate de questões nário de repressão dos opositores ao regime.
figura de uma agência imobiliária especiali- comuns. Todos podiam expor a sua opinião e É preso pela primeira vez em 1952, durante
zada em propriedades para negros. Na dé- sugestões sem serem interrompidos. Ninguém a «Campanha contra as Leis Injustas» e, com
cada de 40 ainda havia áreas na periferia de estava acima de crítica, nem o próprio regente, Sisulu e outros, é condenado (em pena sus-
Joanesburgo em que estes podiam comprar que a todos escutava sem intimidar. Só ao pensa) a nove meses de trabalhos forçados.
propriedades, como era o caso de Alexandra e No ano seguinte (1953) funda com Oliver
Sophiatown. E a empatia entre ambos é ime- Tambo, em Joanesburgo, o primeiro escritório
diata. Sabendo que Mandela estudara Direito de advogados negros na África do Sul. Começa
antes de migrar para Joanesburgo, disse-lhe
que costumava trabalhar na agência com um
Na cadeia é obrigado a revelar-se exímio na defesa em tribunal de
clientes desfavorecidos ou vítimas do esvazia-
a usar calções
WALTER DHLADHLA/GETTY IMAGES
VISÃO H I S T Ó R I A 51
RACISMO // ÁFRICA DO SUL
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levar à separação do casal. Mandela tem 39
anos, deslumbra-se com uma jovem negra que
vê numa paragem de autocarro. Chama-se
Nomzamo («A que tenta») Winifred Madiki-
zela (Winnie), tem 22 anos, é assistente social
e toma o coração do guerreiro anti-apartheid.
O homem elegante e eloquente convida-a
para almoçar.
O divórcio de Evelyn, até ali em suspenso,
por respeito à família Sisulu, é assim pre- De advogado a réu Aos 19 anos, pouco
antes de se matricular em Direito. Ao lado:
cipitado; a 18 de março de 1958 rompe em O carro celular que transportava os oito
definitivo com a enfermeira, mãe dos seus condenados do processo de 1964. Abaixo
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primeiros três filhos, e três meses depois (a desta: Inscrição pela libertação do líder
do ANC em Oxford, inglaterra, 1965
um de completar os 40 anos) casa-se com
Winnie – de quem teria duas filhas: Zenani
(1959) e Zinzi (1960).
Desta vez é na frente anti-apartheid que ficaram 69 mortos e mais de 180 feridos (mui- de estruturas securitárias, intra e extrafron-
surgem as divergências; a ala radical negra tos deles atingidos nas costas) por disparos teiras, de combate e repressão de ameaças
opõe-se ao multirracialismo advogado e pro- dos polícias. O PAC acusa «centenas de polí- potenciais e efetivas ao regime. Do outro,
movido pela liderança do ANC e os primeiros cias de terem disparado sem provocação ou Mandela convence o então presidente do
sinais de rotura ocorrem durante o julgamento ameaça direta sobre manifestantes pacíficos ANC a avalizar a luta armada e sai do país
(iniciado em 1956) de alegado envolvimento que entoavam canções tradicionais», quan- clandestinamente para receber treino de
comunista e desobediência civil onde são réus do, de facto, esquadras periféricas como a de guerrilha e angariar apoios para tal.
156 ativistas. Entre eles Mandela, que fora do Sharpeville não dispunham na altura de mais No regresso à África do Sul é preso e
tribunal é acusado pelos extremistas negros de dezena e meia de efetivos e era prática condenado (em outubro de 1962) a cinco
de envolvimento com ativistas brancos e in- corrente nas manifestações «africanistas» a anos de cadeia na ilha-prisão de Robben,
dianos em vez de se dedicar em exclusivo à ameaça de agressões físicas, em exigência da ao largo da Cidade do Cabo. Sentença cujo
causa «africanista». O jovem advogado, que expulsão de África dos não-negros. cumprimento seria interrompido para ser
até ali convergira aos poucos nessa postura, Fosse qual fosse o nível de provocação- novamente julgado, agora em processo onde
reage em rejeição de tal abordagem como ra- -ameaça e o rácio polícias-manifestantes, os acusados enfrentam a pena de morte.
cista de sinal contrário. E reafirma o princípio o massacre resultante fica para a história Antes de sair para o estrangeiro, Mandela
suprarracial do ANC, de elevação humana, como o mais grave atribuível ao regime de participara em reuniões preparatórias do
inclusividade e quebra do ciclo alternante de apartheid e o que provocou um endureci- lançamento do braço-armado do ANC, o
oprimido-opressor. mento de posições dos seus promotores e Umkhonto We Sizwe (A Lança da Nação),
A ala radical negra, antibranca, rompe com opositores, incluindo do até aí pacifista ANC. por ele liderado desde o seu arranque e que
o ANC e funda o Congresso Pan-Africanis- De um lado, Pretória declara o Estado de assinaria nas décadas seguintes uma série de
ta (PAC) liderado por Robert Sobukwe, que Emergência que abre caminho a uma série atentados à bomba, responsáveis por deze-
desafia a abordagem pacifista no combate nas de mortes (muitas delas de transeuntes
ao apartheid e lança, em separado daquele, civis) e a destruição de infraestruturas eco-
campanhas antipasse (o passe era um docu- nómicas e militares.
mento de porte obrigatório dos não-brancos, Uma rusga policial ao local de reuniões,
identificativo da respetiva «raça» e locais de numa quinta em Rivónia (periferia de Joa-
residência e de trabalho). Mandela e De Klerk nesburgo) surpreende alguns dos compa-
Num desses protestos autónomos do PAC,
uma multidão de milhares de manifestantes
seriam acusados nheiros de Mandela na posse de documenta-
ção que comprova o envolvimento do grupo
cerca, a 21 de março de 1960, a esquadra de de «traição» pelos no lançamento da luta armada. Do processo
Sharpeville, localidade satélite de Joanesbur-
go. A partir daí, o único facto convergente
extremos racistas resultante, oito dos réus são condenados a
prisão perpétua. Denis Goldberg, o único
entre as diferentes versões é que para trás dos respetivos «povos» branco, cumpre a sentença na cadeia de alta
52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Libertação
Com a sua
segunda mulher,
Winnie, logo após
a saída da prisão,
em 11 de fevereiro
de 1990
VISÃO H I S T Ó R I A 53
O GENOCÍDIO
DOS ABORÍGENES
Desde o início da ocupação britânica, os aborígenes da Austrália trilharam
um caminho de mais de 200 anos de matança, doença e terror. Hoje, continuam ativos
na luta pela sobrevivência de uma cultura milenar
por Francisco J.M. Garcia
S
ão muitos os eufemismos usados para primeiros confrontos armados. Os ataques a ma justa e coerente tem vindo a crescer com
evitar a palavra «genocídio» na his- aborígenes passaram a ser uma prática cor- iniciativas como a Uluru Statement From
tória australiana desde a ocupação rente e tenderam a tornar-se mais letais com the Heart, que procura conciliar a História
«branca». Verbos como «pacificar», o passar dos anos. Os colonos justificavam as nacional australiana com o processo de contar
«limpar», «purgar», «excluir» ou investidas acusando os povos locais de rouba- a verdade.
«exilar» conjugam-se para esconder rem gado e bens pessoais, de (re)ocuparem Mas uma questão mantém-se: estará a ra-
a realidade dos dois últimos séculos da história terras e, muitas vezes, de matarem brancos. zão para não se associar o caso aborígene a
do povo aborígene. A vantagem tecnológica da utilização de um genocídio centrada no medo do que está
Não há ainda um número oficial para a armas de fogo conferia aos atacantes brancos associado a este conceito, ou relacionar-se-á
contabilização de vítimas resultantes das um baixo, ou nulo, número de vítimas. com o ignorar de uma realidade atroz? À luz
atrocidades cometidas pelos colonos ingle- As forças britânicas estiveram ativamente do artigo 2 da Convenção Para a Prevenção
ses desde a sua chegada a Botany Bay, na ligadas aos massacres até aos finais da década e Repressão do Crime de Genocídio, de 9
atual cidade de Sydney, em 1788. De acordo de 20 do século passado, havendo registo da de dezembro de 1948, iniciativa das Nações
com um estudo conduzido pela universidade participação de civis nos massacres até 1926. Unidas, pode definir-se genocídio pelos atos:
australiana de Newcastle, a primeira matança Atualmente restam as mazelas emocionais «(…) cometidos com a intenção de destruir,
ocorreu em 1794. de um povo fortemente abatido pela ação no todo ou em parte, um grupo nacional,
Numa primeira fase, os massacres foram colonizadora ocidental na sua terra de ori- étnico, racial ou religioso (…)». Nesta ótica,
levados a cabo por soldados britânicos. À me- gem, passando a história deste negro período os ocupantes de origem europeia infringiram
dida que a presença europeia foi aumentando, de boca em boca. No entanto, o esforço em vários dos parâmetros previstos neste artigo,
passaram a ser conduzidos pela polícia, por reescrever a historiografia australiana de for- além dos que estão relacionados com vio-
grupos de civis e, em muitos casos, numa lência física e psicológica, nomeadamente o
onda conjunta de ódio, por membros dos dois de «transferência forçada de crianças de um
grupos. Mais tarde, os colonos europeus che- grupo para outro grupo».
garam a usar milícias especiais compostas A primeira matança Em muitas situações, como castigo do crime
por nativos para participar nas atrocidades
cometidas contra aborígenes.
de aborígenes de furto de gado, os europeus roubavam crian-
ças aborígenes e forçavam-nas a trabalhar nos
Embora, no momento de chegada à Austrá- ocorreu em 1794 campos, afastando-as e marginalizando-as da
lia, em 1788, as autoridades britânicas tives-
sem ordenado o estabelecimento de relações
e os ataques a tiro sua cultura e origens. Desta forma, entrava
também em curso um processo lento e de
pacíficas com os povos locais, os alicerces que foram recrudescendo longa duração de etnocídio, que privava as ge-
suportavam a dita «amizade» rapidamente
desabaram quando os colonos reclamaram as
até à década rações de aborígenes mais jovens de conhecer
e praticar os cultos religiosos, falar a língua
terras ocupadas por aborígenes e se deram os de 20 do século passado local e funcionar nas suas lógicas sociais.
54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Os 'verdadeiros'
australianos
Um adulto e uma criança
aborígenes, ambos com
bumerangues, a curiosa
arma tradicional dos
caçadores e guerreiros
nativos da ilha-continente
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RACISMO // AUSTRÁLIA
‘Terra Nullius’
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Eddie Mabo, um defensor e ativista dos di- -se a marginalização dos «meio-sangue», os
reitos dos aborígenes, no caso «Mabo versus indivíduos que resultavam da relação entre
Estado de Queensland», que representou um colonos e aborígenes.
56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Aborígenes
Um acampamento
de povos nativos da Nova
Gales do Sul fotografado
por volta de 1880 (página
oposta) e a primeira
manifestação pacífica
pelos direitos civis destes
povos, em 1938,
no Dia do Luto, jornada
que assinalou
os 150 anos da chegada
dos europeus (ao lado)
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Em 1886, a lei designada Aborigenes Pro- sarampo e as doenças venéreas começaram varíola remontam a abril de 1789, pouco após
tection Act pretendia na teoria proteger e a disseminar-se entre os aborígenes. a chegada dos primeiros colonos. O segundo
gerir melhor as relações com os aborígenes, O efeito foi devastador, particularmente da ocorreu entre 1829 e 1831 e a sua origem per-
mas na realidade levou a que o processo de varíola. O historiador Noel Butlin levantou a manece desconhecida. O terceiro (1865-69)
assimilação forçada arrancasse a todo o vapor. hipótese de ter havido algum planeamento na terá sido levado por pescadores malaios.
A lei previa que o apoio à integração chegaria introdução de doenças no contexto colonial Mas o debate permanece em aberto. De um
apenas aos «sangue puro» e aos «meio-san- australiano. Para alicerçar a sua teoria, evo- lado estão os que tendem a suavizar a história
gue» com mais de 34 anos. Isto significava cou os casos de propagação de doenças nas do colonialismo; do outro, os que recorrem
que os que se encontravam noutros grupos populações ameríndias da América do Norte a uma dose factual de realismo. É complexo
seriam expulsos das suas missões ou reservas, e do Sul. David Stannard, outro historiador, determinar em que grau as doenças fizeram
independentemente do estado civil ou grau contra-argumenta afirmando que a causa da parte do processo de genocídio aborígene e se
de parentesco com os colonos. propagação de doenças infeciosas pode estar foram usadas como arma pelos colonizadores.
A assimilação forçada implicava também mais relacionada com o facto de a medicina O genocídio aborígene não resultou de um
tirar as crianças aborígenes dos seus meios ocidental da época desconhecer que o contágio só fator, mas de um conjunto de elementos
familiares e entregá-las a uma família branca, se faz através de micróbios. negativos que recaíram sobre os povos nativos
ou serem levadas para as casas de assimilação Os primeiros registos de um grande surto de da Austrália ao longo de mais de 200 anos.
para receberem uma educação de acordo com
os padrões britânicos. Viagem pela Liberdade
No início do século XX a mentalidade co- Cartoon alusivo a uma
iniciativa de Charles
lonialista, aliada às teorias do darwinismo Perkins (ver caixa), levada
social, levaram a sociedade australiana a crer a cabo em 1965, que
que tinha uma missão civilizadora para com consistiu numa excursão
os aborígenes e com os cada vez mais nume- de autocarro destinada
a dar a conhecer a 30
rosos «meio-sangue». Acreditavam que caso estudantes universitários
não lhes dessem uma educação «branca», os as condições de saúde,
«meio-sangue» acabariam por enveredar por habitação e educação em
que viviam os aborígenes
uma vida de crime e prostituição.
da Nova Gales do Sul
Doenças do colonizador
Outro fator a ter em conta no genocídio abo-
rígene são as doenças. Foi através do contacto
com europeus que a varíola, a febre tifoide,
a tosse convulsa, a gripe, a pneumonia, o
VISÃO H I S T Ó R I A 57
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Arianos e judeus Hitler fotografado em 1934 com um filiado na Juventude Hitleriana, «fábrica» do futuro
«super-homem». Na página ao lado: Um elemento das SS executa judeus com tiros na nuca, à beira de uma
vala comum para onde tombam os corpos
O MITO NAZI
DA 'PUREZA RACIAL'
O regime hitleriano na Alemanha ficou para a história como o mais genocida
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VISÃO H I S T Ó R I A 59
RACISMO // NAZISMO
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Humilhação Um homem é obrigado a exibir publicamente ao pescoço um cartaz onde se lê
«Sou judeu, mas não me queixo dos nazis»
O
jovem império alemão nascido em DAP), mais conhecido por Partido Nazi, e con-
1870 parecia destinado a liderar a tava com milhares de apoiantes incondicionais.
Europa, mas a Alemanha que se Confiante na eficácia da sua demagogia,
seguiu à derrota na I Guerra Mun- Hitler procurou emular os fascistas italianos,
dial era uma nação destroçada e um adotando uma atitude combativa. Primeiro
palco ideal para partidos populistas foi criada a Sturmabteilung, uma milícia pa-
e para agitadores como Hitler. Este usava ramilitar que seria utilizada para combater as
o talento oratório para inspirar uma cres- organizações marxistas e colocar em prática
cente legião de seguidores e uma ambição atos de violência antissemita; seguiu-se uma
implacável para derrotar adversários. A sua tentativa de replicar a Marcha sobre Roma
mensagem era simples: por um lado, im- que permitira a Mussolini assumir o governo
putava aos judeus a culpa pela derrota; por em Itália. A 8 de novembro de 1923, Hitler
outro, apresentava os arianos como a «raça» e os seus correligionários da Sturmabteilung
destinada a liderar os destinos do mundo. tentaram tomar a cidade de Munique, na ex-
A «raça» era o elemento fulcral da ideolo- pectativa de que a revolta alastrasse ao resto
gia nazi, e o ódio a fonte de energia que iria da Alemanha e conduzisse os nazis ao poder,
levar o seu partido ao poder total. O jovem Nos seus discursos, mas o «Putsch de Munique» falhou rotunda-
austríaco que falhara como pintor acabou por
se revelar exímio como revolucionário e um
Hitler imputava aos mente e acabou por conduzir Hitler à prisão.
demagogo inato. Em 1919 era o militante n judeus a culpa pela Um manual de ódio
.º 55 de um pequeno partido regional; dois
anos mais tarde liderava o Partido Nacional-
derrota da Alemanha Por ironia do destino, o tempo passado na
prisão de Landsberg foi um momento deci-
-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NS- na I Guerra Mundial sivo para a afirmação do nazismo. Terminada
60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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a época dos constantes manejos revolucio-
As Leis de Nuremberga
A caminho da morte
Judeus são enviados
nários, Hitler tinha agora a tranquilidade
para os campos de
necessária para dar forma escrita à ideologia extermínio, depois de
Após assumir o controlo total dos poderes executivo
que pregara nos seus discursos. Dedicou- e legislativo, o regime nazi moldou o poder judicial
esmagada pelas forças
à medida da sua visão de Estado Volkish. A 15 de
-se então a escrever o seu livro Mein Kampf nazis a revolta no gueto
setembro de 1935, o Reichstag aprovou duas leis
de Varsóvia, em 1943
(A minha luta) e não hesitou em assumir que passariam para a história como as Leis de
que o grande problema da Alemanha de en- Nuremberga e constituiriam o instrumento legal
utilizado para a perseguição dos judeus no III Reich.
tão era que «quase não há resistência contra
A primeira era a Lei de Cidadania do Reich, que definia
essa epidemia de judeus» que via infiltrados como condição para a cidadania possuir «sangue ou
no governo, na finança e na imprensa. Uma ascendência alemã» e utilizava a genealogia como
comunidade que acusava de se esconder atrás instrumento para determinar o «sangue» de cada
indivíduo. Quem tivesse três ou mais avós pertencentes
de uma religião para ocultar a sua verdadeira à comunidade judaica era classificado judeu, e como tal
natureza: «A sua existência começa pela úni- impossibilitado de ser cidadão de pleno direito. A lei tinha
ca e grande mentira de tentarem demonstrar efeitos retroativos e também se aplicava a negros e a
ao mundo que representam uma comunidade ciganos, o que fez de uma assentada centenas de milhares
de alemães serem destituídos da sua cidadania
religiosa, quando, na realidade, são uma raça e reclassificados «sujeitos do Estado».
– e que raça!» A segunda, intitulada Lei de Proteção do Sangue e da
Para Hitler, os judeus eram a raça que Honra, proibia o casamento entre judeus e não-judeus.
tinha envenenado a sociedade alemã com a A lei também incluía a proibição de judeus contratarem
empregadas alemãs com menos de 45 anos e criminalizava
decadência moral, os promotores da derrota as relações sexuais entre «cidadãos arianos» e «sujeitos»
na Grande Guerra e os responsáveis pela judeus, sob o argumento de serem Rassenschanden,
miséria da Grande Depressão. Via neles a «poluidoras da raça», e originarem Mischlinge, alemães de
raça mista cuja mera existência era abominada por Hitler.
doença que impedia o ressurgimento da
VISÃO H I S T Ó R I A 61
RACISMO // NAZISMO
62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Racismo 'científico'
Antropólogos
da Universidade
de Kiel medem
as cabeças
de crianças,
procurando bases
para sustentar
a teoria de uma
pretensa «ciência
ariana»
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refere-se ao comportamento de portugue- Apesar de fundamental, a pertença à ale- histórico que mitificava: «Povos arianos –
ses e espanhóis, notando que «a América gada raça ariana não era a única condição muitas vezes em número verdadeiramente
do Norte, cuja população se compõe na sua necessária para uma plena cidadania. Seguin- ridículo – submetem povos estrangeiros e,
enorme maioria de elementos germânicos do uma visão misógina para o futuro Estado solicitados pelas condições de vida que o novo
só em pequena escala misturados com povos Volkisch, Hitler também considerava que «a meio lhes apresenta (fertilidade, natureza do
de cor, apresenta outra humanidade e outra jovem alemã é ‘sujeito do Estado’ e, em princí- clima, etc.) ou aproveitando a abundância de
civilização que as Américas Central e do Sul, pio, só depois do casamento se torna cidadã». mão-de-obra fornecida por homens de raça
onde os imigrados, principalmente de ori- Até porque «a missão do Estado Volkisch não inferior, desenvolvem então faculdades inte-
gem latina, se misturaram fortemente com é propriamente educar uma colónia de estetas lectuais e organizativas latentes. Em poucos
os autóctones. Este único exemplo permite pacifistas ou de degenerados físicos. A ima- milénios, ou até em alguns séculos, erguem
já reconhecer claramente o efeito produzido gem ideal da humanidade não tomou como civilizações.» Era esta a base do pensamento
pela mistura de raças». modelos o respeitável pequeno-burguês ou a que daria lugar ao Lebensraum, a teoria do
solteirona virtuosa, mas homens de energia espaço vital, assente na anexação de terri-
O Estado ‘Volkisch’ viril e mulheres capazes de porem no mundo tórios no Leste da Europa com o objetivo
Esta visão, com que Hitler idealiza o futuro homens verdadeiros». de criar colónias de arianos que deveriam
da Alemanha, acaba por servir de base às Leis Indo mais além na sua visão idílica do subjugar (e aniquilar) os povos eslavos que
de Nuremberga, o código legal que define a futuro, Hitler imaginou um novo mundo neles habitavam.
cidadania do Estado Étnico (Volkisch) rever- dominado pelos arianos, que para ele mais Após ser solto da prisão, Hitler percebeu
tendo por completo a política da República de não seria do que a repetição de um passado que o método revolucionário não o levaria ao
Weimar, onde «de uma penada transforma-se poder e optou por seguir a via democrática,
em ‘alemão’ um miserável escravo vindo da sendo eleito chanceler em 1933, adotando
Mongólia». Para Hitler, o exemplo chega dos
«Estados Unidos da América que, pelo menos
Hitler imaginava um o título de Führer («chefe», ou «guia») no
ano seguinte. Conquistado o poder, o novo
em parte, procuram de certo modo obedecer novo mundo dominado regime não perdeu tempo e lançou uma in-
aos conselhos da razão. Recusando o acesso de
imigrantes cuja saúde é precária e excluindo
por arianos, numa tensa campanha de propaganda que levou
milhões de alemães a apoiar o nazismo e a
repetição de um
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VISÃO H I S T Ó R I A 63
RACISMO // NAZISMO
A Solução Final
Durante sete meses, os Einsatzgruppen
massacraram milhares de homens,
mulheres e crianças, mas apesar dos
«melhores esforços» dos homens das
SS e dos soldados da Wehrmacht, um
simples cálculo de aritmética mostrava
que o ritmo da matança era insuficiente
para exterminar as comunidades
judaicas de forma «eficiente».
A 20 de janeiro de 1942, 15 oficiais e
representantes das mais altas esferas do
regime nazi reuniram-se em Wannsee,
um subúrbio de Berlim, para debater
a «Solução Final para o Problema
Judaico» e selar o destino dos judeus
nos territórios controlados pelo III Reich.
Reinhard Heydrich propunha a inclusão
de 11 milhões de judeus no programa,
e nas minutas da conferência ficou
decidida a deportação dos judeus que
viviam na Europa ocidental para campos
de concentração na Alemanha, Polónia
e outros locais da Europa oriental, como
Auschwitz, Bergen-Belsen, Buchenwald
e Mauthausen, nomes que não tardariam
a ganhar uma fama mórbida.
Os resultados da conferência levaram
ao extermínio, entre 1942 e 1943, de
1,7 milhões de judeus, num holocausto
que continuaria a ceifar vidas até ao
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fim da guerra e que, em conjunto com
o Holocausto pelas Balas, sacrificou
cerca de 6 milhões de judeus, número
a que se somaram eslavos, ciganos,
Chegada de judeus húngaros a Auschwitz, em 1944 Entre 2 de maio e 9 de julho, homossexuais, militares soviéticos e
mais de 430 mil foram deportados civis polacos.
de paramilitares da Sturmabteilung pilharam deste combate é a destruição da Rússia, pelo da morte que seguiam na retaguarda dos
milhares de lojas de judeus e destruíram mais que deverá ser travado com uma severidade exércitos alemães para limpar os territórios
de 200 sinagogas. inédita.» de todos os elementos considerados um alvo
A política externa do III Reich também a abater pelo regime nazi: comunistas e co-
se pautava pela agressividade, com os nazis O Holocausto missários políticos, doentes mentais, ciganos
a subjugarem os territórios em redor (Áus- Para muitos judeus da Europa de Leste, e judeus, transformando a Europa Oriental
tria, Sudetas) sem oposição aparente, até a memória do Exército Alemão durante num «faroeste» onde a lei era ditada pelos
Hitler ir longe de mais e invadir a Polónia. a I Guerra Mundial era bastante positiva, homens das forças paramilitares nazis SS,
A II Guerra Mundial começou em setembro devido às várias ocasiões em que protegeu com o apoio de agentes da polícia política
de 1939, e dois anos depois a Wehrmacht as comunidades judaicas dos pogroms que Gestapo e até de soldados comuns.
iniciava a maior invasão da história, com se seguiram à queda do czar russo. Mieczyslaw Sekiewicz era um veterinário
milhões de soldados alemães a avançarem Muitos desconheciam o alcance do antisse- polaco detido numa prisão em Konin e foi
sobre a União Soviética com a firme cren- mitismo nazi e houve até judeus que pediram testemunha de uma das formas mais cruéis
ça na sua superioridade racial e o objetivo ajuda às forças alemãs recém-chegadas, como o de massacrar um povo. Forçado a servir como
de conquistar o desejado Lebensraum. Um avô do historiador ucraniano Faina Vinokurova, auxiliar dos nazis no extermínio da comuni-
sentimento bem sintetizado pelo general que não hesitou em pedir autorização às auto- dade judaica daquela cidade, anos mais tarde
Erich Hoepner na mensagem que enviou ridades nazis para reabrir a estalagem que lhe recordou o dia em que foi levado até uma
aos seus soldados: «A guerra contra a Rús- tinha sido confiscada pelo regime comunista. clareira da floresta onde já estavam abertas
sia é um capítulo importante na luta pela A resposta não se fez tardar: foi amarrado a duas grandes valas. Entre as árvores esta-
sobrevivência da nação alemã. É o antigo um cavalo e arrastado pela cidade perante o vam grupos de judeus (homens, mulheres e
combate do povo germânico contra o povo olhar atónito dos habitantes e como exemplo do crianças) e cerca de 30 polacos que tinham
eslavo, da defesa da cultura europeia con- trágico destino que aguardava os outros judeus. sido «requisitados» para o trabalho maca-
tra a inundação moscovito-asiática e para Foi o tempo em que reinavam os Einsa- bro que estava prestes a começar. Por todo o
repelir o bolchevismo judaico. O objetivo tzgruppen (grupos operativos), esquadrões perímetro encontravam-se soldados alemães
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ROGER-VIOLLET/GETTY IMAGES
Campo de trabalho forçado de Landsberg Um soldado das forças americanas de libertação olha, em maio de 1945,
para os prisioneiros judeus vitimados pelos nazis
prontos para impedir qualquer fuga, estando formou-se em hidróxido de cálcio. O solo da de ser a forma «mais eficaz» de praticar um
a operação a cargo de agentes da Gestapo que vala entrou em ebulição e as pessoas que lá genocídio. Membros superiores do governo
ordenaram aos judeus mais próximos da vala estavam irromperam em gritos de desespero nazi e líderes das SS, reunidos em janeiro de
para se despirem e saltarem para lá. O pânico e dor. O intenso calor que se produzia sob os 1942 na Conferência de Wannsee, resolveram
que se apoderou da multidão levou a cenas de seus pés aumentou ainda quando o poder então adotar a «industrialização» da morte
desespero: alguns beijavam as botas dos agen- corrosivo da cal começou a queimar a carne, nos campos de concentração.
tes e suplicavam pela vida, outros atiravam-se e aos gritos de dor dos que estavam a cozer Em paralelo com o massacre dos judeus,
sem esperar pela sua vez. Mães que saltavam vivos no interior da vala juntou-se um coro milhões de soldados e civis eslavos iam per-
com os filhos nos braços como quem mergulha de choro dos que esperavam pela sua vez, dendo a vida numa guerra sem quartel. Cen-
de pé, e os que ao resistir eram espancados continuando a matança até não restar mais tenas de milhares de prisioneiros soviéticos
e atirados de qualquer forma. Quando a vala nenhum judeu vivo. morriam também à sede e à fome nas longas
ficou cheia, Sekiewicz e os outros polacos fo- Entretanto, o Holocausto pelas Balas ia es- marchas da morte, enquanto os civis eram
ram postos a trabalhar, juntando a roupa em palhando a morte e o terror, mas estava longe alvo de requisições que deixavam os celei-
fardos, separando os relógios, joias e outros ros vazios. O desprezo pelos eslavos, meros
valores, tudo sob o olhar atento daqueles que Untermenschen, sub-humanos destinados
estavam prestes a morrer.
Por volta do meio-dia chegou um camião
Em paralelo a servir os novos amos germânicos, levou a
um dos cercos mais mortíferos da história da
com contentores de água, mangueiras e um com o massacre humanidade, quando cerca de um milhão de
pequeno motor. Numa vala com dois me-
tros de profundidade, a multidão pisava uma
de judeus, milhares pessoas perderam a vida em Leninegrado. Foi
um pesadelo que só terminou em 1945, com
camada de cal viva que fora previamente de prisioneiros russos a rendição incondicional do III Reich, que
espalhada pelo solo. Quando os alemães
começaram a regar a vala com a água do
perdiam a vida nas ficou para a história como o mais genocida
dos regimes e um exemplo das consequências
camião, a cal reagiu de forma violenta e trans- 'marchas da morte' extremas a que o racismo pode conduzir.
VISÃO H I S T Ó R I A 65
TEMA // CABEÇA
P
ovo de êxodos e diásporas, de forte milhão da América do Norte, e talvez 800 mil coloridas puxadas por cavalos, origina medidas
consciência identitária, o povo cigano no Brasil. Em Portugal, as estatísticas apontam discriminatórias, como as adotadas em França
tem uma história secular e atribulada. para cerca de 40 mil. em julho de 1912, com a imposição de uma
Num mosaico de grupos diversificados, caderneta antropométrica, uma espécie de
a sua designação difere consoante o Deportação e diáspora passaporte interior.
país e a época. Gitanos em Espanha, A diáspora deste povo inicia-se no século XI, A componente nómada torna-se pretexto
sintis (Zigeuner) nos países germânicos, sinte com a deportação do primeiro contingente do para criticar o modo de vida dos ciganos, os
em Itália, rom (ou rrom) nos Balcãs, gypsis em norte da Índia, por ordem do sultão Mahmud seus particularismos, o desafio às leis, o des-
Inglaterra (que deriva do termo «egípicos», ou- de Ghazni (971-1030), à qual se juntam outros dém pela educação pública, o desprezo pela
tra das suas identificações), gitanes em França povos ao longo dos tempos. propriedade. Na Suíça e na Suécia, já no século
(ou bohémiens, ou manouche). E ciganos em A sua história na Europa decorre desde XX, aplica-se legislação destinada a destruir
Portugal, como vão passar a ser referidos. 1416-1417, com os primeiros documentos a a cultura cigana; no primeiro destes países os
Na base da sua identidade está o romani, atestarem a sua passagem. Durante um largo filhos são retirados aos pais para «reeducação».
uma língua oral, sem escrita, adaptado ao idio- período as relações entre este povo e os euro- Esterilizações são praticadas sob pretexto «hu-
ma dominante no território onde assentam. peus «autóctones» serão de boa vizinhança. manitário», para limitar a sua reprodução.
Estimativas recentes referem-se a entre 8 Mas os estigmas que vinham sendo acumu- E na Alemanha, antes ainda da tomada do
e 12 milhões de ciganos na Europa, a maioria lados em anteriores gerações consolidam-se poder pelos nazis, a República de Weimar
no leste: 800 mil na ex-URSS; 2,1 milhões no século XIX, agravados pela tentativa de (1919-1933) já propagava diversos conceitos
na Roménia; 750 mil na Bulgária (8% da po- explicá-los de forma «científica». A repressão exclusivistas que prenunciavam o genocídio dos
pulação); 600 mil na Hungria; 500 mil na do nomadismo conjuga-se então com o sucesso ciganos. A partir de 1920, filósofos e médicos
Sérvia; 200 mil na República Checa; e ainda no meio científico das teorias eugenistas sobre lançam a noção da «destruição da vida que
numerosos núcleos na Grécia e na Turquia, a «proteção da raça», e a sua estigmatização não merece ser vivida». Os nazis nada mais
onde não estão recenseados. Em Espanha serão propaga-se de forma incontrolada. fizeram do que apropriar-se e desenvolver estas
pelo menos 700 mil, em França 300 mil, na O contínuo afluxo deste povo em direção teorias e pô-las em prática. Juntamente com os
Alemanha 130 mil, na Itália 120 mil. E um a ocidente, viajando em carroças e caravanas judeus, os ciganos encontram-se entre os que
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Presos e assassinados no decreto de 14 de dezembro de 1937 sobre (Zigeunernacht), tornou-se uma das principais
A ficha de identificação «Prevenção contra o comportamento asso- datas de celebração e evocação deste povo.
de uma prisioneira cigana,
cial», que permite a detenção e o início do No entanto, muitos ciganos, incluindo al-
Antonina Donga, no campo
de concentração de envio para os «campos de trabalho». guns fugitivos dos campos que conheciam as
Auschwitz-Birkenau, em 1942. Em 8 de agosto de 1938 o decreto sobre a florestas, vão participar na resistência armada
Em baixo, o campo de Lety, «Luta contra a praga cigana» elevava a te- em França, Jugoslávia, Polónia, URSS e mes-
destinado apenas a ciganos
a partir de 1942
mática a uma perspetiva racista e permitirá mo na Roménia – onde o regime ditatorial do
a posterior execução sistemática deste povo. marechal Ion Antonescu, que durou de 1940
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Assim, quando deflagra a II Guerra Mundial, a 1944, impôs a política nazi de extermínio
os ciganos vão conhecer a deportação, uma desta população.
mais sofreram com a perniciosa «ideologia nova fase da sua exclusão.
do sangue». Esta medida intensifica-se após o ataque da Pesadas consequências
Alemanha nazi à União Soviética, no momen- Mesmo que permaneça impossível contabili-
Genocídios to em que é tomada a decisão do extermínio zar o número total de vítimas do povo cigano
Porajmos (Devoração), Pharrajimos (Des- sistemático de judeus e ciganos. Foi aqui que durante a II Guerra Mundial e as perseguições
truição) ou Samudaripen (Morte total) são se iniciou o Samudaripen, cujas primeiras nazis, o linguista francês Marcel Courthiade
os nomes que várias correntes atribuem ao vítimas serão os ciganos da Áustria. admite que 600 mil ciganos (cerca de 25% da
genocídio cigano. A partir de 1939, Reinhard Heydrich encerra população total de ciganos na Europa de então)
Com a subida de Hitler ao poder, em 1933, a dezenas de milhares de ciganos alemães e aus- tenham, pura e simplesmente, sido mortos.
ideologia racista tornou-se parte intrínseca da tríacos em campos para posterior deportação Este número não engloba, é claro, os homens
cultura geral da elite educada. E apesar das di- em direção ao leste. E em dezembro de 1942, e mulheres que sobreviveram mas que ficaram
versas abordagens à «questão cigana», mesmo por iniciativa de Heinrich Himmler, é cons- viúvos, órfãos, sem irmãos, sem filhos, esterili-
sendo este povo indo-europeu, na base perma- truído em Auschwitz um campo especial para zados, paralisados, doentes ou traumatizados.
necia sempre a ideologia da «higiene racial» famílias ciganas. Igualmente deportados para Após a capitulação da Alemanha, em 8 de
e a pretensa «associabilidade» dos ciganos. Buchenwald (na Alemanha) ou Jasenovac (na maio de 1945, a História continuou a reservar
A estigmatização atinge o seu paroxismo em Croácia então aliada do III Reich), morrem novos desafios para o povo cigano. À semelhan-
outubro de 1935, com as Leis de Nuremberga às dezenas de milhares, também devido aos ça do início do século XX, e após a provação do
sobre «a salvaguarda do sangue e da honra surtos epidémicos. período nazi, os ciganos continuaram a sofrer
alemãs», que se destinam em primeiro lugar Ao contrário dos judeus, que pareciam acei- diversas formas de exclusão.
aos judeus. Nesta fase, os ciganos ainda são tar com aparente resignação o caminho para a Durante anos, guardaram esse sofrimento.
globalmente poupados pelos nazis. A exceção morte, os ciganos tentavam fugir, mesmo sem Desestruturada e privada de organismos re-
serão as populações nómadas, assimiladas a qualquer esperança. Em 16 de maio de 1944, presentativos, a comunidade cigana apenas
«sangues misturados» e remetidas para o revoltaram-se e fizeram recuar com pedaços conseguiu obter o reconhecimento deste dra-
estatuto dos «associais». Mas logo no ano de madeira os nazis que os conduziam para a ma no final do século XX, na sequência do
seguinte, em 1936, o jurista Hans Globke câmara de gás em Auschwitz-Birkenau. I Congresso Mundial Rom, que decorreu em
(1898-1973), um dos principais dignitários O levantamento foi breve e dois meses e meio 1971, em Londres.
do III Reich, afirma que «apenas os judeus e depois, em 2 de agosto de 1944, cerca de 3 mil Estátuas ou monumentos em diversos locais
os ciganos (zigeuner) têm um sangue estran- homens, mulheres, crianças são gaseados. recordam o genocídio. Mas em França foi preci-
geiro na Europa». Princípios que culminam Esta noite apocalíptica, A Noite dos Ciganos so esperar até 1969 para que a lei de 1912 fosse
alterada, enquanto na Alemanha o genocídio
contra os ciganos apenas seria reconhecido
oficialmente em 1982.
O século XXI pode implicar a desconstrução
de ideias sem fundamento e outros estereótipos
A 2 de agosto de 1944, injustos e destrutivos, e a sua substituição por
gaseados
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VISÃO H I S T Ó R I A 67
AS LEIS PORTUGUESAS
DA DISCRIMINAÇÃO
RACIAL
O chamado regime do indigenato configurava a arquitetura jurídica da desigualdade racial,
vigorando legal e sistematicamente entre 1926 e 1961
por Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro
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Minas de Quilungo,
Angola
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RACISMO //
Miguel
Bandeira
Jerónimo
Dia de pagamento na Roça Novo Destino, São Tomé O regulamento de 1899 legalizou o trabalho forçado
‘É
José
sem dúvida fácil especular com o facto de, ainda neste mo- importante: a afirmação excecionalista da
Pedro mento, fazermos apelos a medidas especiais para combater ausência de qualquer tipo de discriminação
Monteiro uma discriminação que não nos cansamos de repetir que racial no «mundo português» obrigou a negar
Investigadores
não existe. Isto leva-nos a ponderar que em situações se- a pujança das provas de práticas e processos
do Centro de
Estudos Sociais melhantes, e quando a intervenção do Estado se revela de discriminação racial. Condicionou ainda a
da Universidade absolutamente necessária para combater um outro surto imaginação social, por parte das autoridades,
de Coimbra de discriminação que porventura se manifeste, será preferível por de alterações legais e políticas que permiti-
e autores,
entre outros
forma mais discreta e de modo a evitar as especulações a que acima riam, pelo menos, atenuá-la.
trabalhos, nos referimos.» Em 1960, mais tarde batizado «Ano de
dos livros Os As especulações a que se referia este funcionário do Ministério África», tornaram-se independentes vários
Impérios do do Ultramar, em novembro de 1960, eram aquelas que se vinham Estados africanos, como a Nigéria, o Congo,
Internacional:
Perspectivas, fazendo sentir com cada vez maior frequência em instâncias como a o Senegal e a Mauritânia. Ao mesmo tempo,
Genealogias Organização das Nações Unidas (ONU), sobre as políticas e práticas a resistência portuguesa a qualquer reforma
e Processos e discriminatórias nas então «províncias ultramarinas» de África (nome social ou política tornou-se um tema recor-
História(s) do oficial das colónias após a revisão constitucional de 1951). Todas elas rente de contestação, de Luanda a Nova Ior-
Presente: Os
Mundos que o eram refutadas pelas autoridades, incluindo diplomáticas, portugue- que. Nesse ano, o Comité dos Seis da ONU
Passado nos sas. Neste caso, o que estava em causa era um diploma do Conselho rejeitou a tese sustentada por Portugal de que
Deixou Legislativo de Moçambique que estabelecia coimas a aplicar a pro- não possuía qualquer «território não-autóno-
prietários de hotéis, cafés, restaurantes e bares por recusa de admissão mo», argumento usado para recusar a entrega
«sem justificação». Apesar de o diploma não explicitar que se tratava àquela organização de informação sobre as
de recusas motivadas por preconceitos raciais, era evidente que era condições económicas, sociais e educacionais
a estas que se reportava, desde logo porque o preâmbulo invocava nas colónias. Já no ano seguinte, 1961, come-
princípios constitucionais. çaria em Angola aquilo a que hoje chamamos
Se é certo que uma fonte histórica singular é insuficiente para Guerra Colonial, mais tarde extensível à Guiné
qualquer tipo de generalização, esta abre, porém, alguma margem (1963) e a Moçambique (1964).
para interrogações. A promulgação de um diploma que visava punir A ideia generalizada de que a moderna ex-
a interdição do acesso de indivíduos africanos a espaços públicos periência colonial portuguesa se pautou por
só pode ser compreendida assumindo a existência dessa mesma uma particular propensão para a miscigena-
interdição. A fonte permite ainda apreciar outro aspeto, não menos ção e para a convivialidade inter-racial foi arti-
70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Numa plantação
de sisal,
Moçambique
O trabalho era o
elemento primeiro da
missão «civilizadora»
VISÃO H I S T Ó R I A 71
RACISMO // PORTUGAL E COLÓNIAS
O ‘dever moral’ de trabalhar Bairro indígena de Luanda e o interior de uma residência indígena Fotografias da Agência
Geral do Ultramar, provavelmente usadas para propaganda do regime
Apesar da centralidade da questão laboral, o
crescente fluxo de colonos oriundos da metró- Em 1926, surgia o Estatuto Político, Civil e «usos e costumes» tradicionais, o que incluía
pole, a intensificação da extração económica Criminal dos Indígenas de Angola e Moçam- questões como casamentos, propriedade ou
e os crescentes ímpetos de territorialização bique, da autoria de João Belo. Estendido à sucessões. Apresentada como uma medida
dos vários «Estados coloniais» geraram a Guiné em 1929, consumava a distinção entre que visava «proteger» as tradições locais e os
necessidade de uma mais clara codificação o «indígena» e o «cidadão». Estabelecia que «indígenas», na verdade criava um espaço de
das dinâmicas legais de inclusão e exclusão o primeiro, em matéria de direito privado, arbitrariedade considerável, visto que essas
coloniais. Uma nova «política da diferença». não se regia pela lei escrita, mas antes pelos tradições não se encontravam compiladas.
72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Caderneta do Indígena Obrigatórias
ANTT
VISÃO H I S T Ó R I A 73
RACISMO // PORTUGAL E COLÓNIAS
ANTT
um relatório sobre as condições laborais em para as populações que continuavam a reger-
Angola e Moçambique, um novo Código do -se pelos usos e costumes ditos «tradicionais»
Trabalho dos Indígenas (CTI), de 1928, seria (a maioria das populações autóctones) com
criado. Apesar de punir castigos corporais, não proporcionalidades representativas muito
abdicava do «dever moral» de trabalhar dos desiguais.
indígenas (a ser verificado o seu cumprimento Apesar das limitações do reformismo im-
através da caderneta), que continuava a ser a perial francês (e britânico), o pós-II Guerra
pedra angular de um sistema de discriminação Mundial testemunhou um incremento signifi-
racial institucionalizada. cativo do ativismo e de reivindicações de cariz
político e social de vários «sujeitos coloniais»,
Os sopros da continuidade de Dakar a Copperbelt, de Mombaça a Argel.
Em 1953, Joaquim da Silva Cunha, professor Henrique Galvão, que já causara polémica
na Faculdade de Direito que viria a ser mi- ao denunciar na Assembleia Nacional em
nistro do Ultramar, explicou em O Sistema 1947 as condições laborais nas colónias, sin-
Português de Política Indígena que o facto de o tetizou de forma arguta o que estava em cau- Tribunal privativo dos «indígenas»,
Estatuto dos Indígenas definir o seu campo de sa. As transformações políticas e sociais que Moçambique, 1935 Um sistema judicial
aplicação a todos os indivíduos de «raça negra ocorriam em diferentes impérios europeus com regras próprias
ou seus descendentes» não era «muito feliz». não tinham precedentes. Em contraste, no
Mas tanto Silva Cunha como Adriano Moreira império português, as mudanças legais eram
sustentavam que o critério predominante de mínimas. E, todavia, era essa letargia que
delimitação era «cultural», e não racial. Argu- explicava que a ebulição social que se vivia coloniais, como por exemplo Joaquim Hen-
mentavam que a referência à raça negra era além-fronteiras não se espalhasse às colónias riques, que em fevereiro de 1961 sinalizou o
desnecessária. Não porque imaginassem a pos- portuguesas. Ao abrir novas possibilidades de «trabalho compelido» como «a mais impor-
sibilidade da aplicação do estatuto a europeus, participação e reivindicação política e social, tante causa de emigração e o maior motivo
mas porque entendiam ser possível estabelecer os colonialismos britânico e francês tinham de descontentamento das populações indíge-
uma definição de «indígena» que não reme- colocado em causa as fundações do seu do- nas» em Angola. O indigenato caucionava as
tesse diretamente para uma caracterização mínio. Deste diagnóstico estavam, todavia, profundas desigualdades (e discriminação)
fenotípica. Era o «atraso» sociocultural que ausentes as múltiplas formas de resistência que regiam o quotidiano colonial. A estatura
legitimava a existência de um regime jurídico nos territórios portugueses. jurídica deliberadamente diminuída do «in-
especial. O diploma que aprovaria o Estatuto O que parece inegável é o facto de, face aos dígena», conjugada com a ausência de canais
dos Indígenas Portugueses das Províncias da esforços de diversos impérios para redefinir as de participação e expressão de reivindicações,
Guiné, de Angola e Moçambique (em 1954) suas relações coloniais, o império português constrangia as possibilidades de prevenção de
continuou a fazer referência à «raça negra», ter resistido a qualquer mudança política e abusos e de uma transformação significativa
ainda que o critério de assimilação já não fosse legal de monta. A partir de 1945, essa obs- das relações sociais e políticas.
formulado em termos raciais. tinação ficou registada nas múltiplas acusa- Esta era, de resto, uma conclusão parti-
A justificação de Silva Cunha e Adriano Mo- ções sobre a persistência e larga extensão do lhada pelo Subcomité para Angola da ONU,
reira procurava adaptar-se a um mundo muito trabalho forçado, produzidas por viajantes que considerava que o indigenato permeava
diferente do de entre-guerras. Um mundo anónimos, organizações internacionais ou «todas as fases da vida» social do território.
onde, por exemplo, o império francês, em 1946 pelos nascentes movimentos de libertação. A eficácia do desígnio de «assimilação» era
transformado em União Francesa, abolira o Realidade confirmada por vários inspetores questionada, pois os censos testemunhavam
seu regime de indigénat. A revogação, todavia, o desmesurado peso demográfico dos «indí-
estava longe de corresponder aos proclamados genas» nas colónias. O comité foi criado na
desígnios universalistas franceses: os antigos sequência de uma iniciativa do representante
súbditos passavam a ser cidadãos da União da Libéria que requerera ao Conselho de Se-
Francesa, mas não de França. Era-lhes dada O indigenato caucionava gurança a discussão da situação dos «direitos
também a «possibilidade» de manter o seu es-
tatuto privativo consuetudinário. A implicação
as profundas humanos» em Angola, após os incidentes de
4 de fevereiro em Luanda (ataques a prisões
mais visível desta «opção» era a constituição desigualdades (e e a esquadras de polícia levados a cabo por
de duplos colégios eleitorais, um para as po-
pulações que optavam pela lei escrita (todos os
discriminação) que regiam ativistas anticoloniais). Ao mesmo tempo,
na Organização Internacional do Trabalho, o
de origem europeia e alguns africanos), outro o quotidiano colonial representante do Gana depositava uma queixa
74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ANTT
Depois da
revolução de Abril
Marcos da legislação antirracista
depois do 25 de Abril de 1974
VISÃO H I S T Ó R I A 75
RACISMO // PORTUGAL
Uma história
de resistência
Domingos Arouca, o primeiro
advogado negro moçambicano,
desafiou o regime colonial
ao criticar o Estatuto do Indigenato,
considerando-o «racista,
discriminatório e segregacionista»
por Clara Teixeira
D.R.
P
elas cinco horas, o jovem enfermeiro so de Direito, as memórias também hão de Candidato Em campanha para as primeiras
Domingos Arouca desceu à povoação, contar como o recém-formado advogado, de eleições democráticas de Moçambique,
realizadas em 1994
como fazia sempre que queria con- 32 anos, terá trocado o sabão e o açúcar por
versar com os amigos, e no regresso papel e caneta para produzir a sua Análise
comprou dois quilos de açúcar e uma Social do Regime do Indigenato. As cerca de Reclamando uma «regra material de Di-
barra de sabão por quinze escudos. 30 páginas de crítica e denúncia da discrimi- reito Penal» que «incrimine e puna toda a
«Falando com o enfermeiro branco, o Ro- nação racial, exigindo a abolição do estatuto, forma de discriminação racial», o advogado
drigues, sobre as compras que eu fizera na seriam publicadas em 1961, numa edição de considera inadmissível que um negro, para
véspera, este fez-me notar que eu havia sido autor, com «profusa venda» em território «assistir a qualquer tipo de espetáculo, para
roubado, pois ele sempre pagara três escudos moçambicano, o que deu origem m a uma troca entrar num restaurante, num bar, para ad-
por cada quilo de açúcar e seis escudos pela de correspondência entre a PIDE/DGS
DE/DGS e o quirir um bom lugar no circo ou no futebol»,
barra de sabão. Passei-lhe o dinheiro para a Ministério do Ultramar. tenha de provar «por meio de mágico cartão
mão e pedi-lhe que mandasse o seu criado à que deixou de ser indígena». E continua:
loja do Alves comprar açúcar e sabão. Meia Racismo e discriminação
o «Porque é que tal princípio – laissez passer
hora depois, o criado voltava com os produtos. Sem rejeitar frontalmente a política
ítica colonial – muito justamente válido e aplicado na Me-
O criado era conhecido no estabelecimen- do Estado Novo – aparentemente, nte, só viria a trópole, deixa de o ser quando transplantado
to, pelo que pagou o preço que pagavam os fazê-lo após o regresso em 1963 3 a Lourenço para Moçambique? Apenas porque passa a
brancos, muito menos do que pagavam os Marques –, Domingos Arouca arrasa asa o Estatuto aplicar-se, depois, a indivíduos de diferente
pretos!» Ainda sem o saber, o momento selou do Indigenato, classificando-o comomo uma peça pigmentação?»
o seu destino como «homem político». «Ali jurídica «racista», «discriminatória»
ria» e «segre- Ao longo das três dezenas de páginas, Arou-
mesmo, com o sabão e o açúcar nas mãos, gacionista». Partindo de uma notícia de um ca desfia argumentos para «negar a própria
pagos ao preço dos brancos…», escreveu o jornal moçambicano, onde se relatalata como um utilidade prática do regime do indigenato»,
primeiro advogado negro de Moçambique na universitário negro fora barrado à entrada do que considera uma «humilhação» geradora
autobiografia As Cobras que, passados onze «luxuoso» cinema Manuel Rodrigues,igues, Arouca de «um nocivo preconceito social», assente
anos e meio sobre a sua morte, acaba de ser pergunta: «Será, acaso, espetáculo lo lícito e dig- na raça e na cor. Defendendo a «abolição» de
publicada naquele país. nificante perguntar pelo cartão [de
de identidade] tão «odioso sistema», rejeita «a identificação
Uma década depois de um bilhete de lotaria a todos os negros que pretendam am assistir a do negro com o indígena» e contra-ataca,
– clandestina, da antiga Rodésia –, premiado um filme, mesmo estudantes universitários,
niversitários, questionando se o estatuto será uma «fanta-
com 25 contos, lhe ter pago a passagem para quando varredores e porteiros entram sem sia» e «uma vestimenta jurídica» que «não
Portugal, para concluir o liceu e tirar o cur- qualquer oposição, só porque são o brancos?» interessa despir».
76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Fortaleza de
Peniche O jurista
cumpriu quase
metade da pena
numa das mais
temíveis prisões
portuguesas
Apesar de conceder que o estatuto «con- conhecidos. Quando Domingos Arouca foi o sonho de estudar e iniciar um percurso
tém, indiscutivelmente, preceitos cuja vi- aluno de Marcelo Caetano na Faculdade nada habitual na sua geração. Concluído o
gência é aconselhável e útil», afirma que a de Direito de Lisboa, este apresentou-o a curso de Direito, em outubro de 1960, fez
forma como está construído gera «manifesta Adriano Moreira para que fosse admitido o estágio em Lisboa e tornou-se conselhei-
segregação», por «apenas incidir sobre os no Centro de Estudos Políticos e Sociais do ro jurídico do Banco Nacional Ultramarino
negros ou seus descendentes, mesmo quando Ministério do Ultramar, com um horário que (BNU). Transferido para Lourenço Marques
os fundamentos que poderiam justificar a sua lhe permitisse assistir às aulas. em 1963, foi nomeado vogal do Tribunal Ad-
existência legal se encontram reunidos em ministrativo de Moçambique, mas apenas por
indivíduos não negros!» Numa not nota final, Nas masmorras da PIDE poucos meses. O «homem político» em que
deixa ainda um aviso: «Enquanto o regime Domingos António Mascarenhas Arouca se transformara, o nacionalista defensor da
do indigenato não é abolido, todas as feridas nasceu a 7 de julho de 1928 em Inhamba- independência de Moçambique, ditara já a
fecharão em falso.» ne, no sul de Moçambique, numa família de sua saída das funções de conselheiro jurídi-
Em outubro de 1961, meses após a publi- pequenos proprietários rurais. Aos 16 anos co do BNU, passando a exercer advocacia a
cação deste manifesto, o Estatuto dod Indi- inscreveu-se no curso de Enfermagem e exer- tempo inteiro na capital. Em março de 1965
genato foi abolido pelo então mini
ministro do ceu a profissão até aos 21, quando a inespe- seria eleito presidente do Centro Associativo
Ultramar, Adriano Moreira. Os doi dois eram rada «sorte grande» lhe permitiu concretizar dos Negros de Moçambique, um importante
ponto de encontro de nacionalistas na antiga
colónia portuguesa.
Desde a publicação da Análise que a PIDE
seguia os seus movimentos. A 29 de maio de
1965, Domingos Arouca é preso preventiva-
mente, sob a acusação de «subversão psico-
lógica» na chamada «Frente Sul» da Frelimo,
onde também militavam o pintor Malanga-
tana e o escritor José Craveirinha. O Centro
Associativo é encerrado e muitos dos seus
membros são detidos. Arouca é condenado a
quatro anos de «prisão maior», acrescidos de
Publicação A Análise Social, em edição de autor, uma «medida de segurança de internamento
e o habeas corpus entregue por Salgado Zenha prorrogável de seis meses a três anos». No
VISÃO H I S T Ó R I A 77
RACISMO // PORTUGAL
ICO
DIPLOMÁT
Vista geral de Lourenço Marques No regresso a Moçambique, Domingos Arouca dirige o Centro
Associativo dos Negros, ponto de encontro de nacionalistas, até ser detido por «subversão»
STÓRICO
notícia nas agências internacionais. Samora jurídica, publicada (e apreendida pela Cen-
ARQUIVO HI
T
Troca de
correspondência
c
Atenta, a PIDE pediu
A
iinstruções
ao Ministério
a
do Ultramar sobre
d
a «conveniência
ou inconveniência»
o
da circulação
d
do livro de Arouca
d
DO MNE O
ARQUIV
8 VISÃO H I S T Ó R I A
778
Casal Arouca
Maria Regina
e Domingos,
na homenagem
por ocasião
do 80º aniversário
do advogado
D.R.
D.R.
Rotura com a Frelimo ninista. Entendi que não devia colaborar
Através da leitura dos seus Discursos Políticos com um regime dessa ordem. Mas também
(ed. Ática), deparamo-nos com um Domingos calculei que seria perigoso, não colaborando,
Arouca defensor da «independência total e continuar lá», disse numa entrevista ao jor-
completa» de Moçambique, no rescaldo da nal Domingo, em 1992. «Os que não saíram
Revolução dos Cravos. Contudo, o advogado [do país] desapareceram», afirmou ainda.
“
entra quase imediatamente em rota de colisão Durante a estada em Lisboa, um engenho
com a Frelimo. Casado com uma mulher explodiu no carro da mulher, Maria Regina,
branca, apela à construção de um «Moçam- quando se encontrava estacionado à porta da
bique independente» por «pretos, brancos casa de família, no Restelo.
e mestiços». Diz-se um «verdadeiro demo-
crata» e rejeita o «marxismo-leninismo» do
«Indígena quer dizer (…) O regresso a Moçambique aconteceria
apenas em 1992, a convite do ex-presidente
partido de Samora Machel. Na capital, circu- um ser inferior, aquele Joaquim Chissano, já depois do acordo de
lam rumores de que terá mantido conversas
secretas com o português Jorge Jardim sobre
ser pertencente à classe paz assinado em Roma entre a Frelimo e a
Renamo. Em 1994 candidatou-se às primei-
o futuro de Moçambique e que estará a orga- de indivíduos que depois ras eleições presidenciais multipartidárias,
nizar um movimento alternativo à Frelimo.
Numa entrevista à revista Tempo, em ju-
do jantar têm legalmente obtendo menos de 1% dos votos.
Domingos Arouca exerceu advocacia até
nho de 1974, Arouca declara, com uma certa fixada a hora de recolher, praticamente à sua morte, aos 81 anos, ocor-
fleuma, que é «um homem do lar, um chefe
de família» apaixonado pela vida rural, e até
que no cinema, no circo, rida em Maputo a 3 de janeiro de 2009. Após
a saída de cena da política ativa, conquistou
anuncia o seu desejo de «plantar coqueiros» no futebol não pode ocupar o respeito dos moçambicanos, até mesmo
na terra natal. Não consta que o tenha feito.
Em vez disso, apresentou em 1976 um novo
qualquer lugar, ainda que daqueles que denegriram a sua imagem nos
anos a seguir à independência. Por ocasião de
partido, chamado Frente Unida de Moçam- queira e tenha dinheiro uma homenagem pelo seu 80º aniversário,
bique (FUMO), conotado com a social-de-
mocracia, ao mesmo tempo que tecia duras
para isso, porque para Ruy Baltazar, na altura presidente do Con-
selho Constitucional, fez questão de «repor
críticas à Frelimo e denunciava o «cortejo de ele há lugares próprios, a verdade histórica sobre o Dr. Domingos
fuzilamentos, prisões em massa e abolição de
todos os direitos humanos; tudo [feito] em
inevitavelmente Arouca», enaltecendo-o como um resistente
que desafiou o regime colonial e pagou cara
nome da revolução socialista». Para escapar os do último escalão. a ousadia, até no seu próprio país.
ao destino de alguns amigos, autoexilou-se em
Portugal, depois de ter recusado fazer parte
E isto quando lhe é Para saber mais
do governo de transição de Samora Machel. permitida a entrada» Carolina Barros Tavares Peixoto e Maria Paula
Meneses, Domingos Arouca: um percurso de militância
«Eu não sou marxista, muito menos le- in Análise Social do Regime do Indigenato, 1961 nacionalista em Moçambique, junho 2013
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TEMA // CABEÇA
GETTY IMAGES
de Harlem – que dinamizava leituras públicas,
publicações periódicas e criações literárias,
teatrais e musicais.
Paris, 1956 Aimé Césaire numa pausa do I Congresso de Escritores e Artistas Negros
Senghor e Césaire, entre outros autores,
trouxeram o tema da negritude para a lite-
As letras da negritude
ratura francófona e mundial e para a política
europeia e também das colónias europeias,
com crescente impacto a seguir à II Guer-
ra Mundial. Consideravam ser urgente dar
Um movimento literário inaugurado por dois poetas dignidade às culturas africanas e de origem
francófonos trouxe para a luz as culturas africanas, pondo africana, colocando em debate assuntos como
em causa a suposta superioridade cultural europeia a história da escravatura, os abusos do colo-
nialismo e o racismo. E pondo em causa a
por João Pacheco pretensa superioridade das culturas de origem
A
europeia perante culturas ditas primitivas,
inda faltavam uns anos até ser cap- Viver no mesmo prédio pode ter ajuda- como as africanas ou de origem africana.
turado e passar 18 meses detido pe- do, mas claro que não se pode dizer que o Por exemplo na peça de teatro E os cães
los alemães, quando combatia pelo movimento literário Negritude tenha nasci- deixaram de ladrar, Aimé Césaire pôs estas
exército francês durante a II Guerra do apenas graças a um encontro fortuito de palavras bélicas na boca da personagem do
Mundial. Antes da guerra, Léopold dois ou três intelectuais que tinham mais ou Rebelde, aqui na tradução do poeta portu-
era um senegalês de uma família com menos a mesma cor de pele e que falavam a guês Armando Silva Carvalho: «Enxertei uma
dinheiro, que vivia na capital francesa e tinha mesma língua do mesmo povo colonizador. árvore de lava e dor / num povo de vencidos.
nascido na colónia africana do Senegal, na Os fundadores do movimento eram muito / Raça de terra por terra e que agora começa
aldeia de Joal-la-Portugaise. Aimé, esse, era poucos, como contou Senghor já na qualidade a andar. / Tu Congo tu Mississípi deixai que
da Martinica, fazia parte de uma família com de Presidente do Senegal, quando, em janei- corra o ouro. / Deixai correr o sangue. / A raça
poucos meios e viera das Antilhas francesas ro de 1975, deu na Lisboa revolucionária do de terra, a raça de cinza avança / e sob os seus
para estudar em Paris. Léopold Sédar Senghor PREC a palestra Lusitanidade e Negritude, pés em marcha / explodem pedaços de salitre.»
e Aimé Césaire tinham a língua francesa em na Academia das Ciências, onde referiu de Nas décadas seguintes, e já num contexto de
comum e ficaram amigos quando viviam no passagem este movimento literário como um processos de independência de colónias euro-
mesmo prédio. Entre o círculo de amizades «pequeno número de estudantes negros que peias em África, muitos autores de expressão
de Senghor, já nessa altura havia também o lançaram a palavra, e sobretudo a ideia, de portuguesa estiveram desde cedo ligados ao
futuro presidente francês Georges Pompidou. Negritude em Paris, nos anos 30». Mas apesar movimento literário da Negritude.
80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Negritude em português como um marco de espantosa oportunida-
O primeiro «poeta da negritude de expressão de, pertinência e eficácia para a revelação e
portuguesa» terá sido Francisco José Tenreiro revalorização das culturas africanas e como
(1921-1966), segundo defende o escritor Ma- vetor implacavelmente acutilante contra o co-
nuel Ferreira no livro Literaturas Africanas de lonialismo, fundamentando-se na identidade
Expressão Portuguesa, de 1977: «Desaliena- cultural, cumprindo assim, inicialmente, um
do, liberto dos mitos da inferioridade social, papel histórico relevante.»
[Francisco José Tenreiro] identifica-se com Esta antologia organizada por Mário Pinto
a dor do homem negro e repõe-no no quadro de Andrade e Francisco José Tenreiro não
que lhe cabe da sabedoria universal: ‘Mãos, terá agradado às autoridades portuguesas da
mãos negras que em vós estou sentindo! / época – fosse pelo título, pelos poemas ou pela
Mãos pretas e sábias que nem inventaram introdução escrita por Mário Pinto de An-
a escrita nem a rosa-dos-ventos / mas que drade. Mas bastaria a nota final de Francisco
da terra, da árvore, da água e da música das José Tenreiro para fazer tocar os alarmes da
nuvens / beberam as palavras dos corás, dos polícia política portuguesa. Desde o final dos
quissanges e das timbila que é o mesmo / dizer No exílio Mário Pinto de Andrade na capital anos de 1940 e início da década seguinte aca-
palavras telegrafadas e recebidas de coração francesa, nos anos 50 baram por se encontrar em Lisboa, na Casa
em coração’. A sua voz é a voz real do homem dos Estudantes do Império, alguns jovens
africano, uma voz que vem das origens e ressoa africanos que viriam a desempenhar papéis
no tempo: ‘cantando: nós não nascemos num de toda a América. Vozes de toda a África.» fundamentais nas lutas pela independência
dia sem sol!’, e aí vamos com essa raça humi- Longe de ser unânime, a Negritude foi en- das colónias portuguesas em África, como
lhada percorrendo a ‘estrada da escravatura’, contrando opositores tanto entre partidários Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino
mas entretanto iluminada por ’um rio’ que do colonialismo como entre militantes das dos Santos ou Eduardo Mondlane. E na nota
‘vem correndo e cantando/ desde St. Louis independências e dos nacionalismos africa- final à antologia – ou, aliás, na nota final a este
e Mississípi’.» nos. Parte das críticas de vários autores afri- «caderno que não é uma antologia» – Ten-
No livro precursor Ilha de Nome Santo, de canos ao movimento poderão estar ligadas à reiro esclarece que foi difícil encontrar poetas
1942, Tenreiro exaltou «o homem negro de atividade política de Senghor – primeiro em de expressão portuguesa que exprimissem
todo o mundo», como escreve Mário Pinto França e depois no Senegal, onde foi presiden- a negritude. Fácil seria encontrar «’assimi-
de Andrade na introdução à antologia de 18 te durante 20 anos – e sobretudo aos escritos lados’ da arte poética: os pequenos Camões
páginas Poesia Negra de Expressão Portugue- ensaísticos que foi publicando sobre o tema de pele preta, os ínfimos Anteros idem, os
sa, que, em 1953, organizou com o próprio ao longo de décadas. Mas já em 1983 – no poetas safados de que todas as poesias estão
Francisco José Tenreiro: «Quando cantas prefácio à reedição fac-similada da pequena envenenadas».
nos cabarés / fazendo brilhar o marfim da antologia Poesia Negra de Expressão
tua boca / é a África que está chegando! // Portuguesa – Manuel Ferreira de-
Quando nas Olimpíadas / corres veloz / é a fendeu a importância histórica deste
África que está chegando! // Segue em frente movimento literário: «Nada impede
/ irmão! / Que a tua música / seja o ritmo de que tenhamos de reconhecer que o
uma conquista! / E que o teu ritmo / seja a movimento da Negritude se instituiu
cadência de uma vida nova!»
Nessa mesma antologia, o som dos blues
sobe do rio Mississípi no poema Mamã Ne-
gra (canto de esperança), do poeta angolano
Viriato da Cruz: «Vozes vindas dos canaviais
dos arrozais dos cafezais dos seringais dos
algodoais... / Vozes das plantações da Virgínia
/ dos campos das Carolinas / Alabama / Cuba
/ Brasil... / Vozes dos engenhos dos banguês
dos tongas dos eitos dos pampas das usinas
/ Vozes do Harlem District South / vozes das
Debaixo de olho Os poetas
sanzalas. / Vozes gemendo blues, subindo que exprimiam a negritude
do Mississípi, ecoando dos vagões. (...) Vozes em português não escaparam à censura
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RACISMO // PORTUGAL
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A MELHOR COMPANHIA PARA O VERÃO
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