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RACISMO
PERIODICIDADE BIMESTRAL
N.º 60 · AGOSTO 2020
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Os primórdios da segregação nos EUA • O apartheid na África do Sul


• A Alemanha nazi • Portugal e a discriminação racial
SAUDE JÚNIOR
Portugal
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Nº 1430 . 30/7 A 5/8/2020 . CONT. E ILHAS: €3,70 . SEMANAL

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AGO/SET 2020 | NÚMERO 13

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EXERCÍCIO

O GÉNIO
É DA ESCRITA
PREVENÇÃO
COMPORTAMENTO
CO
PPORQUE
ORQUE É Q QUE
UE VOUCHERS
V Imagens loucas
ES REVISTA
AGO SET 2020

O PLANO CONTRA
CO A CRISE ● AS VISITAS “IMPORTANTES” A RUTTE E A ORBÁN ENXAQUECA
EN
NXAQUEC
ECA GÉMEOS

ÉMEOS PRISÃO DE VENTRE
V MERGULHOS CANCRO
NÃO
N ÃO TTEMOS
EMOS ESTA que põem a cabeça DA INFÂNCIA
INFÂ MISTERIOSA AO CIDADÃO DO MUNDO
VVALE ENTRADAS
A APOSTA NA ECONOMIA
E VERDE ● O CONVITE À ESQUERDA PARA NOVA GERINGONÇA Evitar
E vitar cri
crises
criseess Oss ssegredos
O egredo
os Conselhos para Atitudes que Como lidar
O “MITO UURBANO” DO BLOCO CENTRAL ● O FIM DOS DEBATES QUINZENAIS
nas
nas fé
férias
ér as
érias dos
d os irmãos
irmão
os combater previnem com o medo TTODOS
ODOS A M MESMA
ESSMA a andar à roda A VID
VIDA CHEIA E A OBRA MAGISTRAL DE UM ESCRITOR MAIOR
EEM 3 PARQUES
iiguais
guaiss e tratar lesões
A RELAÇÃO COM MARCELO ● A SUCESSÃO NO PS CCOR
OR DDEE PEL
PPELE?
LE? DA LÍNGUA PORTUGUESA

VISÃO VISÃO
à SAÚDE
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à JÚNIOR
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pelo rigor informativo, com o melhor da ciência para os mais pequenos. conhecer a fundo a vida
o distanciamento crítico e da investigação. Repleta de passatempos, e obra de grandes
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N º 59 · JUNHO 2020

TURISMO LIFESTYLE AV E N T U R A MERCADO C U LT U R A


O arranque em Portugal • Os passeios de D. Carlos
Paris, de Sud Expresso • O desprezo do Estado Novo pela ferrovia
Para Paris
Ilhéu de Vila O fecho de linhas • Os percursos míticos
N.º

Franca do Campo,
São Miguel

VISÃO SURF VISÃO AÇORES VISÃO HISTÓRIA


Uma edição da VISÃO Uma edição especial Em cada edição,
sobre o desporto Açores. Um mergulho um assunto histórico,
sensação em Portugal, nas nove ilhas, para ler abordado por especialistas.
feita em parceria com e partir à descoberta. Afinal, é impossível
especialistas do setor. compreendermos
o presente sem
conhecermos o passado.

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BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA
Segregação CArolina do Norte, EUA, 1938

SUMÁRIO
O racismo nunca existiu

Uma chaga histórica


por Francisco Bethencourt 4
A globalização do (anti)racismo
por Miguel Bandeira Jeónimo

O
e José Pedro Monteiro 12

racismo está nas bocas do o pretenso e ultrapassado «racismo EUA


mundo inteiro desde que, científico» até exemplos da imple- E tudo o vento trouxe 18
no passado dia 25 de maio, mentação, em determinados momen- 'Mãe' Rosa Parks 26
o cidadão afro-americano tos da história de alguns países, de O sonho de Martin Luther King
George Floyd foi friamen- políticas segregacionistas e de exter- por Lilian Thuram 30
te assassinado pelo polícia mínio. Dada a enorme abrangência Figuras e momentos marcantes 37
branco Derek Chauvin em Minnea- do tema ( já abordado nos números da
polis, EUA. Imagens da longa cena do VISÃO História sobre a escravatura, ÁFRICA DO SUL
homicídio, captadas por transeuntes, a construção dos Estados Unidos da Um filme a preto e branco 40
deram rapidamente a volta ao plane- América e o império português em O regime do ‘apartheid’ 46
ta e desencadearam por toda a parte África), centrou-se o olhar na luta Mandela, o ‘agitador dos ramos’ 50
ondas de manifestações. Em Portugal, contra a discriminação racial. Como
dois casos trágicos trouxeram também habitualmente, contamos com a cola- AUSTRÁLIA
o assunto para as primeiras páginas. boração de especialistas no tema abor- O genocídio dos aborígenes 54
Estátuas de algum modo relacio- dado, indo o destaque para Francisco NAZISMO
nadas com o tráfico negreiro foram Bethencourt, professor catedrático O mito da 'pureza' racial 58
derrubadas por populares e nunca, no King's College de Londres, numa
Ciganos, o extermínio da 'nação invisível' 66
nos últimos anos, se refletira tanto edição que conta também com a cola-
sobre aquela que, afinal, sempre foi boração de Miguel Bandeira Jerónimo PORTUGAL E COLÓNIAS
uma das grandes chagas da História e José Pedro Monteiro, investigadores Discriminação racial à portuguesa
da Humanidade. Este número é de- do Centro de Estudos Sociais da Uni- por Miguel Bandeira Jerónimo
dicado exatamente ao racismo, desde versidade de Coimbra. e José Pedro Monteiro 68
Domingos Arouca, uma história
de resistência 76
Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação
As letras da negritude 80
Foto da capa: Barbecue anual numa plantação de Alabama, entre 1930 e 1941.
Biblioteca do Congresso dos EUA 'Josephine Baker - fora!' 82

VISÃO H I S T Ó R I A 3
RACISMO // INTRODUÇÃO

Carolina
do Norte, 1950
Dois bebedouros
de água paralelos,
um para brancos
e o outro para
negros, atestam
e simbolizam
a discriminação
racial no quotidiano
do Sul dos Estados
Unidos da América

O RACISMO
NUNCA EXISTIU
ELLIOT ERWITT/MAGNUM/FOTOBANCO

Esta ideia, consequência da luta antirracista, é um triplo insulto: às realidades


da discriminação vivida por minorias, à capacidade de resistência contra essa
discriminação e à inteligência da população em geral
por Francisco Bethencourt
4 VISÃO H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A 5
RACISMO // INTRODUÇÃO Teoria das raças Baseando-se na análise de
crânios, Johann Blumenbach definiu,
no final do século XIX, os tipos caucasiano
(ao centro), americano, mongol, etíope e malaio;
a teoria, hoje abandonada, foi largamemente
aceite até há cerca de 20 anos

O
racismo tornou-se um tema de debate político em Portugal. clássico. Além disso, a teoria das raças não
As frases «Portugal não é um país racista», «não temos nada me parecia suficientemente estudada nas
a ver com o que se passou há cem ou 500 anos», «é o antirra- suas origens e evolução. Tudo quanto li era
cismo que produz racismo» refletem a negação do problema surpreendentemente superficial. Os estudos
por parte de um setor da opinião pública e da classe política. mais aprofundados diziam respeito a autores
Nesta perspetiva, parafraseando Eduardo Lourenço, o racis- específicos ou a curtos períodos. Por fim, a
mo nunca existiu. Para um estrangeirado como eu, esta negação é noção de racismo não me parecia claramente
estranha: em Inglaterra, mesmo os tabloides, na maioria apoiantes definida e separada de etnocentrismo e de
de políticas de direita, condenam qualquer manifestação de racismo. rivalidade religiosa.
Os conservadores não se atreveriam a negar a existência de racismo. Decidi trabalhar na longa duração, basea-
Francisco Existe um relativo consenso em relação a valores básicos de dignida- do em fontes primárias impressas, crónicas,
de do ser humano, excetuando franjas de extrema-direita. Onde as diários, tratados, obras de História Natural,
Bethencourt
Professor catedrático opiniões divergem é naturalmente na forma de combater o racismo. mas também imagens, pinturas, esculturas,
do King’s College de Vamos passar a pente fino a validade dessas frases e tentar responder gravuras, arte funerária. Trabalhei com base
Londres, tem como a perguntas relacionadas: o passado colonial, que no caso português na hipótese da origem do racismo ocidental
principais áreas
se estende por quase 600 anos, conta no fenómeno racista? Podemos na expansão europeia, que começara com as
de investigação
as histórias do alijar esse passado como se não tivesse nada a ver com o presente? Cruzadas. Era difícil distinguir racismo de ri-
racismo, da expansão A norma antirracista tornou-se uma pedra-de-toque no desenvol- validade religiosa, pois a primeira coisa que os
portuguesa e vimento dos direitos humanos: como tem evoluído a posição de cruzados fizeram na Terra Santa foi liquidar a
europeia, das missões
no mundo católico
Portugal no contexto internacional? Finalmente, será que se sabe o estrutura eclesiástica da Igreja Cristã Ortodoxa,
e das identidades que é o racismo e quais as suas consequências? enquanto na Península Ibérica sucederam-se
e intercâmbios os casos de discriminação dos moçárabes, ou
culturais na Península seja, dos cristãos que tinham ficado submetidos
Ibérica. É autor do
livro Racismos, das 1. Racismo e teorias das raças ao domínio muçulmano, como aconteceu na
Cruzadas ao Século A teoria das raças, desenvolvida nos séculos XVIII e XIX nos meios conquista de Lisboa em 1147. Contudo, quan-
XX, da História das científicos, que definia os europeus como a raça superior, seguida do aderiam ao rito romano a discriminação
Inquisições em pelos asiáticos, africanos e ameríndios, foi considerada responsável cessava. A rivalidade com o islão assumia, por
Portugal, Espanha e
Itália e cocoordenador pela emergência dos preconceitos racistas. Este relativo consenso contraste, contornos de racialização, pois as
da monumental entre os historiadores da segunda metade do século XX, chocados numerosas etnias eram agregadas sob este-
História da Expansão com as consequências da II Guerra Mundial e do genocídio de ju- reótipos comuns de comportamento.
Portuguesa
deus, ciganos e eslavos às mãos dos nazis, esboroou-se na viragem A prova de racismo surgiu quando estudei
para o século XXI. George Fredrickson colocou o início do racismo na Península Ibérica a conversão forçada de
na Idade Média, enquanto Benjamin Isaac demonstrou a existência judeus (entre 1391 e 1497) e de muçulmanos
de preconceitos racistas na Antiguidade Clássica. Esta rutura para (entre 1501 e 1526): cristãos-novos e mouris-
mim fazia sentido: em História, na maior parte dos casos, as práti- cos, contrariamente à prática universalista de
cas precedem as ideias. Contudo, estas demonstrações não estavam integração de todos os fiéis pela Igreja Cristã
isentas de problemas. Fredrickson advogava o contraste entre racismo lançada por Paulo de Tarso, passaram a ser
religioso medieval e racismo científico moderno, o que me parecia discriminados. Os preconceitos relativos a
esquemático, pois preconceitos religiosos e de descendência étnica judeus e a muçulmanos foram transferidos
surgem muitas vezes misturados, enquanto Isaac, a meu ver, não para cristãos-novos e mouriscos, desafiando
tinha provado a existência de discriminação sistemática no mundo a ideia de rutura com o passado imposta pelo
rito do batismo.
Crânios Eram Este caso permitiu-me refletir melhor so-
medidos e a bre a noção de racismo, num vaivém entre
sua morfologia análise histórica e contribuições de psicologia
determinava
as cinco raças; social, sociologia e antropologia. Cheguei a
ilustração da esta formulação: racismo é o conjunto de
obra De generis preconceitos de descendência étnica combi-
humani varietate
nados com ação discriminatória. A noção é
nativa, de
Blumenbach suficientemente operatória para me permitir
(1795) utilizá-la em diferentes períodos históricos.

6 VISÃO H I S T Ó R I A
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VISÃO H I S T Ó R I A
7
RACISMO // INTRODUÇÃO

Para um Tornou-se claro que existiu racismo muito antes da teoria das raças,
estrangeirado claramente separado de etnocentrismo, pois a rivalidade com as
como eu, aldeias vizinhas não impede interação, casamento e integração indi-
a negação vidual ou familiar. Mas a própria teoria das raças exigia mais estudo e
decidi ler os autores mais significativos e colocá-los num quadro mais
da existência amplo. Ficou clara a diferença entre Carl Linnaeus, Georges Buffon,
de racismo Johann Blumenbach, Petrus Camper e Immanuel Kant, embora
em Portugal todos considerassem a hierarquia de raças com os brancos no topo,
é estranha: enquanto a noção de degenerescência a partir da criação divina era
em Inglaterra, posta em causa através da noção de progresso e aperfeiçoamento.
mesmo As primeiras décadas do século XIX registaram o conflito entre
os tabloides, na James Prichard e Alexander von Humboldt, de um lado, que ad-
maioria apoiantes vogavam a impossibilidade de estabelecer fronteiras entre raças e
de políticas duvidavam da pertinência desse tipo de classificações, e Georges
de direita, Cuvier, do outro, que considerava a hierarquia das raças estabelecida
condenam desde a criação, rígida e compartimentada, impossível de alterar. Foi
qualquer esta visão que se tornou dominante, desenvolvida por Louis Agassiz,
um suíço que se estabeleceu em Harvard. A teoria da seleção natural
manifestação desenvolvida por Charles Darwin condenou a visão criacionista e as
de racismo. hierarquias rígidas, mas trouxe consigo a ideia de sobrevivência do
Os conservadores mais forte, que acabou por reintroduziu a hierarquia das raças pela
não se atreveriam via da maior capacidade de adaptação.
a negar O estudo da teoria das raças permitiu-me adquirir uma noção mais
a existência clara da história da ciência e do seu desenvolvimento em relação
de racismo com a literatura de viagens, crucial para a definição da noção da Apesar desta visão estereotipada, a miscige-
raça branca como caucasiana, devido ao ideal de beleza no império nação foi promovida como fazendo parte de
persa veiculado por escritores como Jean Chardin. O alargamento do um passado de que os brasileiros se deveriam
estudo levou-me a recuar a teoria das raças em quase 200 anos, pois orgulhar. Tratou-se de uma rutura com a visão
a capa do atlas de Abraham Ortelius, publicado em 1570, continha anterior de supremacia branca, segundo a
uma personificação hierárquica dos continentes, que criara a matriz qual a constante emigração europeia acabaria
da teoria das raças para os séculos seguintes. por branquear a população, como mostrou
Por outro lado, compreendi melhor as razões políticas do triunfo Lilia Schwarcz. Gilberto Freyre estava in-
do racismo científico de Cuvier e Agassiz na maior parte do século fluenciado pelo seu mestre Franz Boas, com
XIX: dava a munição ideológica necessária aos estados esclavagistas quem estudou na Universidade de Columbia
do Sul dos Estados Unidos. Paralelamente, a revolução de 1848 na em Nova Iorque, e por José Vasconcelos, que
Europa, com os seus ideais igualitários, desencadeou novas obras publicara La Raza Cosmica em 1929, com
racistas, como a de Gobineau, que procurou justificar a desigualdade elogio da mistura racial na América Latina.
como uma realidade da natureza, baseada na hierarquia das raças, Em 1940, a publicação por Freyre de
enquanto a degenerescência global era atribuída aos processos de O Mundo Que o Português Criou, prefacia-
miscigenação, pedra-de-toque de todos os racismos. Por outro lado, a do por António Sérgio, reforça esse período
ideia de arianismo, como elemento branco superior difundido através
da Ásia Central, surgia como uma ponte entre os povos da Ásia e a
expansão britânica no mesmo período.

2. O lusotropicalismo
A ideia de um colonialismo português suave permeou a obra de
Gilberto Freyre, cujo livro Casa-Grande & Senzala, publicado em
1933, propunha a integração do elemento africano na história bra-
sileira, portador de afeto, bonomia, música e dança, mas também de
conhecimentos em agricultura e mineração, gastronomia e linguagem.

8 VISÃO H I S T Ó R I A
Escravatura Em
baixo, desenho de
um navio negreiro:
os portugueses
transportaram mais
de 5 milhões de
escravos de África
para as Américas.
Ao lado, escravos
acabados de libertar
a bordo de um navio
inglês, 1880

de abertura, ao mesmo tempo que lança as 70%, é a que recebe menos interesse por Gilberto Freyre, que se O estudo
sementes do lusotropicalismo, ou seja, de apaixona por Goa, onde a miscigenação é mínima. O relatório de
da teoria
uma visão moderada do colonialismo portu- Orlando Ribeiro do final dos anos de 1950, bem guardado na gaveta,
guês, contraposto ao racismo anglo-saxónico. tinha apontado para a reduzida difusão da língua portuguesa ao fim de
das raças
O passado histórico de coexistência entre quatro séculos e meio de domínio colonial. A atitude de Gilberto Freyre
permitiu-me
cristãos, muçulmanos e judeus na Península só pode ser entendida de um ponto de vista social: ele terá encontrado adquirir uma
Ibérica justificaria, na opinião de Freyre, essa em Goa semelhanças face ao sistema patriarcal da casa-grande no noção mais clara
atitude conducente à miscigenação. Brasil. Começaria ali a sua viragem à direita, que culminaria com o da história
A visão de Gilberto Freyre só começou a ser compromisso face à ditadura militar brasileira de 1964. da ciência
aceite pelo regime salazarista na sequência da O lusotropicalismo encontrou condições de desenvolvimento dado e do seu
II Guerra Mundial e do crescente movimento o projeto de perpetuação colonial do regime salazarista, como bem desenvolvimento
de independência das colónias. Como indicou apontou Cláudia Castelo. As bases de avaliação do colonialismo em relação com
Patrícia Ferraz de Matos, a ideologia da su- português por Freyre eram subjetivas: as técnicas de submissão a literatura
premacia branca manteve-se praticamente dos escravos eram comuns às dos países anglo-saxónicos, embora de viagens,
intacta até aos anos de 1940. A reciclagem existisse uma prática de emancipação extensa no caso do Brasil.
crucial para
de Gilberto Freyre representa uma adapta- A política de conversão forçada abriu caminho à criação de confra-
ção da ideologia colonial do regime à pressão rias de escravos e emancipados que desempenharam algum papel
a definição
externa: convinha argumentar que Portugal nessa prática. Controversa é a ideia de um passado favorável de
da noção da raça
sempre tinha sido um país multirracial, cujas coexistência entre cristãos, muçulmanos e judeus, quando Portugal branca como
colónias, designadas como províncias ultra- observara uma política medieval de segregação das comunidades caucasiana,
marinas, estariam no mesmo pé de Portugal judaicas, seguida em 1497 pela expulsão de muçulmanos e conversão devido ao ideal
continental. O realinhamento de Gilberto forçada de judeus. Os cristãos-novos, assim designados de forma de beleza no
Freyre ocorre em 1950, quando ele aceita um derrogatória, passaram a ser perseguidos pela Inquisição, estabele- império persa
convite do governo português para visitar as cida em 1536, sendo largamente discriminados no acesso a cargos veiculado por
colónias, o que ocorre nos dois anos seguintes. públicos, colégios, confrarias, ordens religiosas e ordens militares escritores como
Curiosamente, Cabo Verde, a colónia com desde meados do século XVI até à extinção da designação e da dis- Jean Chardin
maior taxa de miscigenação, então mais de criminação imposta por Pombal em 1773. A noção de democracia

VISÃO H I S T Ó R I A 9
RACISMO // INTRODUÇÃO

A Exposição no racial no Brasil foi demolida por Marvin Harris, Fernando Henrique Se as imagens são reveladoras, os dados es-
Porto de 1934 Cardoso e Octávio Ianni nos anos de 1950 e 1960, enquanto o livro tatísticos não o são menos, sobretudo porque
reproduziu de Charles Boxer sobre as relações raciais no império português, estamos perante dados recolhidos e publi-
os piores publicado em 1963, expôs a política de discriminação de africanos, cados pelo regime de Salazar. Nos recensea-
esteriótipos índios e asiáticos na longa duração. mentos de 1940 e 1950, toda a população de
Cabo Verde, Macau e colónias na Índia é dada
das exposições
como civilizada, na Guiné 99% dos africanos
coloniais 3. O passado colonial são definidos como não-civilizados, em São
europeias Do início do século XVI a meados do século XIX, portugueses trans- Tomé a percentagem de não-civilizados desce
dezenas de portaram mais de cinco milhões de escravos de África para as Améri- de 50% para 41%, em Angola de 99% para
aldeias de todas cas, a vasta maioria para o Brasil. Embora o tráfico tivesse começado 95% e em Moçambique mantém-se 99,9% de
as regiões do na África Ocidental, foi de Angola que a maioria dos escravos foi forma consistente (baixa para 97% na estima-
império com recolhida, emergindo Moçambique como uma região significativa tiva de 1959), em Timor é de 99% em 1950.
bailadeiras da de extração nas últimas décadas do século XVIII (dados de www. Estes dados são arrepiantes. O critério não
Índia, hindus slavevoyages.org). A abolição do tráfico de escravos e da escravatura pode ter sido a alfabetização, pois em 1950
domadores prolongou-se, no caso português, dos anos de 1810 a 1870, sem que 79% dos cabo-verdianos e 78% dos indianos
de serpentes, tenha havido um movimento antirracista significativo. A presença eram analfabetos; trata-se de um caso típico
feiticeiros de portuguesa em África foi relativamente diminuta, não ultrapassando de racismo ligado à cor da pele. Estas clas-
alguns milhares de pessoas até ao final do século XVIII. A miscige- sificações tornaram-se tão embaraçosas que
Angola, régulos,
nação ocorreu em todos esses lugares, devido ao reduzido número de desapareceram do recenseamento de 1960.
orquestra de mulheres emigradas, mas com expressões radicalmente diferentes: o A ideia que não temos nada a ver com o pas-
chopes de nível foi diminuto em Angola e Moçambique, com a exceção de Luanda sado é contestada com números: o trabalho
Moçambique, e do vale do Zambeze, onde elites crioulas se desenvolveram desde de Leonor Costa, Nuno Palma e Jaime Reis
bijagós nas suas o século XVII. A emigração portuguesa só se tornou significativa no sobre a reconstituição do Produto Nacional
pirogas num lago século XX, sobretudo nos anos de 1950 e, paradoxalmente, durante Bruto de 1500 a 1800 revelou que se excluís-
criado para o a Guerra Colonial. A ilha de São Tomé distinguiu-se como local de semos os laços económicos com o império
efeito plantação de açúcar, substituída por cacau no século XIX, economia teriam sido perdidos 20% dos rendimentos
alimentada por tráfico de escravos. Nas restantes colónias, a transição per capita. O benefício económico do império
de economias baseadas no tráfico de escravos para investimento em é, no caso português, o mais importante de
agricultura e indústria levou muitas dezenas de anos. todos os impérios europeus. Seria interessante
As acusações de trabalho forçado nas colónias portuguesas formu-
ladas por organizações internacionais sucederam-se nas primeiras
décadas do século XX. O estatuto do trabalho indígena, resultante de
uma série de diplomas de 1926, 1929 e 1954, reforçou as condições
de integração forçada no sistema de trabalho colonial; a legislação foi
abolida em 1961-1962, embora se mantivesse o pagamento diferido
de 50% do ordenado depois do regresso a casa do trabalhador rural.
Contudo, ainda se ouve dizer que tráfico de escravos, esclavagismo
e trabalho forçado não significam necessariamente racismo. Não?
A I Exposição Colonial, organizada no Porto em 1934, reproduziu
os piores estereótipos das exposições coloniais europeias, que apre-
sentaram indígenas num ambiente de zoo humano desde os anos de
1880. A Exposição do Porto reproduziu dezenas de aldeias de todas
as regiões do império com bailadeiras da Índia, hindus domadores
FOTOGRAFIA ALVÃO/CPF

de serpentes, feiticeiros de Angola, régulos, orquestra de chopes de


Moçambique, bijagós nas suas pirogas num lago criado para o efeito.
A Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa, seguiu o mesmo
modelo de exposição de indígenas no seu suposto habitat natural,
ou seja, com reconstituição de aldeias no Jardim Colonial de Belém.
Rosinha A guineense era a principal
A degradação das populações coloniais neste contexto expositivo «atração» do «zoo humano» instalado
tem vindo a ser analisada nas últimas décadas em diversos países. há 84 anos no Porto

10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
FOTOGRAFIA ALVÃO/CPF

estender este cálculo ao período entre 1800 e níveis de inteligência e de capacidade de trabalho) e racismo cultural Exposição Colonial
1974 para obter uma ideia mais precisa sobre (perceção de maior ou menor civilidade e adaptação), embora se do Porto, 1934
Durante três
o impacto global das colónias na economia verifique uma correlação entre opiniões racistas e idade, bem como
meses e meio,
portuguesa. Em todo o caso, esse impacto não (em menor grau) entre opiniões racistas e níveis mais baixos de o Palácio de Cristal
pode ser negligenciado. Não se trata de culpa, educação. O que está em questão é claramente a ausência de assi- acolheu milhares
pois as últimas gerações rejeitaram as práticas milação da norma antirracista, definida pela Declaração Universal de visitantes que iam
ver os indígenas
do passado colonial, mas de consciência e dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, e consagrada
responsabilidade face às consequências histó- pela legislação portuguesa pós-25 de Abril, mas raramente aplicada
ricas do colonialismo em diversos continentes. e deficientemente difundida. Temos um problema sério de falta de
implementação e educação nesta área tão importante.
Não existem inquéritos sobre a exclusão de minorias do acesso
4. O presente a emprego ou a residência, mas conhecem-se numerosas situações
O Estado colonial português foi claramen- de discriminação social. Essas são as consequências do racismo: o
te um estado racial que colocou as popu- bloqueio de perspetivas de carreira, a contenção de minorias em
lações indígenas no fundo da pirâmide espirais de pobreza, a precariedade de suportes educativos que per-
social dominada por uma ínfima minoria mitam superar inícios de vida em desvantagem face a outras camadas
branca. Contudo, poder-se-ia dizer que a da população. É aqui que os direitos humanos assumem toda a sua
independência das colónias e o estabeleci- função, como o direito ao trabalho, à educação, à dignidade de trata-
mento do regime democrático em Portugal mento que é devida a todos os seres humanos por igual, apenas para
teria implicado uma alteração substancial indicarmos os mais significativos no caso do racismo.
do sistema de valores, com a assimilação É por tudo isto que a ideia de que o racismo não existe, sendo
dos direitos humanos e a integração de um consequência da luta antirracista, é um triplo insulto: às realidades
fluxo de imigrantes dos novos países in- de discriminação vividas por minorias, à capacidade de resistência
dependentes. Infelizmente, a alteração de contra essa discriminação e à inteligência da população em geral.
valores não foi tão radical como seria de Trata-se de um projeto político destinado a submeter ao silêncio
esperar. A última sondagem sobre o racismo essas minorias e sabotar movimentos de solidariedade originários
na União Europeia, de 2018/19, mostra 62% das restantes camadas da população que veem mais longe do que
de opiniões racistas em Portugal, uma das os seus interesses imediatos, pois uma população livre e integrada
mais elevadas na Europa, partilhadas entre é mais produtiva e criativa, contribuindo para a felicidade coletiva,
racismo biológico (perceção de diferentes que deve ser, sempre, o objetivo de todos os países.

VISÃO H I S T Ó R I A 11
RACISMO // INTRODUÇÃO

A globalização
do (anti)racismo
As desumanides praticadas durante
a II Guerra Mundial explicam em parte
o reforço e a generalização de uma luta
por Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro

‘F
alácias do racismo expostas.» Era organizações internacionais oportunidades
este o título do terceiro número do de ouro para combater o racismo.
Courier da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e Tratamento igual
a Cultura (UNESCO), de 1950. Anos Em 1919, durante a Conferência de Paz, a
antes, um grupo de individualidades proposta da delegação japonesa que apontava
propôs a publicação de uma declaração que para um «tratamento igual e justo», «tanto na
revelasse o carácter «não-científico» e «falso» lei como de facto», para todos os estrangeiros
da discriminação e do «ódio» raciais, alimen- que fossem membros da SDN, sem «distinção
tados por numerosas mistificações, algumas (...) em razão da sua raça ou nacionalidade»,
com uma longa genealogia. Os esforços asso- foi recusada. É certo que proposta não era
ciados ao internacionalismo do entreguerras, inspirada por grandes visões emancipatórias:
tantas vezes obscurecidos no presente, foram a dessegregação das comunidades afro-ame-
recuperados após o fim da Segunda Guerra ricanas, a supressão do racismo institucional
Mundial. O cortejo de desumanidades que o nos mundos coloniais ou o sufrágio universal
conflito gerara, para as quais mundividências não eram o objetivo, como, aliás, esclareceu políticas de contenção migratória ajuda a
racistas e práticas de racialização em muito Uchida Kosai sai, o ministro dos Negócios compreender o falhanço da proposição japo-
contribuíram, não foi esquecido. Estrangeiros japonês. Ainda assim a moção nesa. A delegação australiana, país onde se
As iniciativas de contestação da discrimi- suscitou reflexões importantes sobre o tra- proibia toda a imigração não-branca, opôs-se
nação que alguns protagonizaram no interior tamento do «outro», na mesma cidade em com vigor, convencendo britânicos e america-
do Instituto Internacional de Cooperação que, então, 57 participantes vindos de África, nos, incluindo o próprio presidente Woodrow
Intelectual (IICI) da Sociedade das Nações das Caraíbas e dos EUA se reuniam para o Wilson. A generalizada predisposição contra
(SDN) ou o manifesto saído do Congresso primeiro Congresso Pan-Africano. Foi neste os imigrantes asiáticos nos EUA, sobretu-
Internacional de Genética, realizado em evento que W.E.B. Du Bois (sociólogo e ati- do os provenientes do Japão, e também ela
Edimburgo, em 1939, foram retomadas com vista dos direitos civis americano) ditou que animada por industriosas políticas do medo,
renovado vigor nas décadas seguintes. Ainda «o problema do século XX» era «o problema contribuiu por certo para a decisão de Wilson.
que diversas, centradas sobretudo na recusa da linha de cor». Apesar de todas as vagas e vãs declarações
da «ciência ariana» – notoriamente incapa- A proposta surgiu também num momento públicas de muitos, as possibilidades aber-
zes de advogar orientações igualitárias no importante para os que queriam preservar os tas pela experimentação internacionalista do
tratamento do racismo – e, ao mesmo tem- «países dos homens brancos», como escreveu entreguerras deram uma réstia de alento aos
po, claramente condicionadas pelo clima de Lothrop Stoddard, historiador e autor de The que procuravam a mudança das dinâmicas
«apaziguamento» do nazismo, tais iniciativas Rising Tide of Color Against White World- nacionais e internacionais (e coloniais) de
marcaram uma importante viragem. Se é -Supremacy (1920). A publicação (1918) da discriminação racial. Os chamados tratados
verdade que não abandonaram a ideia da obra The Passing of the Great Race, de Madi- das minorias, no âmbito da SDN, foram um
determinação hereditária de indivíduos e son Grant, advogado eugenista, opositor da momento importante na revolta histórica
grupos, não hesitaram em denunciar o «ra- imigração e obcecado com as consequências dos direitos humanos, apesar das notórias
cismo científico». As vozes críticas multipli- da miscigenação, comungava das mesmas limitações, visando um módico de proteção
caram-se, vendo no internacionalismo e nas preocupações. Em parte, a globalização de dos grupos minoritários (incluindo raciais).

12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
São Francisco, 1945
A Carta da ONU, aprovada nesta
Conferência, seria o primeiro
instrumento internacional
a fazer referência ao desiderato
de direitos iguais, sem distinção
«de raça, sexo, língua
ou religião»

último aspeto, uma referência declarada aos


linchamentos) tinha de ser notada. Em 1921,
Du Bois escreveu para a SDN clamando por
uma posição forte sobre a «absoluta igualdade
das raças». Em 1923, Marcus Garvey (ativista
político jamaicano, residente nos EUA) fez o
mesmo, expandindo os horizontes geográficos
na sua Petição da Raça Negra, incluindo a
África, a América do Sul, a Ásia e a Europa.
Os esforços peticionários para denunciar a
discriminação racial foram igualmente visíveis
no sistema de mandatos que redistribuiu os
espólios coloniais da guerra. As oportunidades
abertas pelos tratados das minorias foram
exploradas por outras agendas, embaraçan-
GETTY IMAGES do alguns funcionários e representantes dos
estados-membros.
Associações como a Women’s International
League for Peace and Freedom (WILPF; 1915),
a League Against Imperialism (LAI; 1927) ou
A existência de mecanismos peticionários de os americanos negros trabalharam, lutaram e a League of Coloured Peoples (LCP; 1931) in-
denúncia de abusos fez que centenas de teste- morreram» falhar em estender a «completa teragiram regularmente com a SDN por causa
munhos chegassem a Genebra. Um deles veio democracia para as minorias americanas ne- da questão racial. Com motivações e orienta-
do National Colored World Democracy Con- gras»? A contínua «humilhação intolerável e a ções diferentes, mas por vezes coincidentes,
gress, cuja «delegação de peticionários sobre a permanente degradação de estatuto» tinham reunindo redes (quase) globais de políticos,
raça», que dizia falar em nome de 14 milhões de ser confrontadas. O facto de a «Magna cientistas, advogados ou ativistas, introduzi-
de afro-americanos, advogava a inserção de Carta de uma nova ordem das coisas» não ram a discriminação racial nos debates sobre
cláusulas de igualdade racial no Pacto da SDN. incluir uma obrigação de «proteção da exclu- as virtudes, e limites, do internacionalismo.
Como se lia na petição, de 1919, «por que códi- são, das segregações públicas, da ausência de Em setembro de 1927, a WILPF organizou
go moral das nações podem aqueles por quem direitos políticos, da corda e das achas» (este uma das suas importantes escolas de verão, na
Suíça, sobre «alguns aspetos das relações en-
tre as raças branca e de cor». Personalidades
GETTY IMAGES

como John Harris (da Anti-Slavery Society),


Jawaharlal Nehru (futuro presidente da Ín-

«O problema dia), José Vasconcelos (intelectual e político


mexicano) ou Roger Baldwin (ativista dos di-
do século XX» reitos humanos) juntaram-se a representan-

é «o problema da linha tes da SDN e da Organização Internacional


do Trabalho (OIT) para discutir as expressões
de cor», defendeu globais da desigualdade e discriminação ra-

o sociólogo W.E.B. ciais, na educação, no trabalho e na política.


Advogou-se o direito à autodeterminação e a
Du Bois em 1919 regulação internacional. As conclusões desta

VISÃO H I S T Ó R I A 13
RACISMO // INTRODUÇÃO

e de outras iniciativas foram enviadas para


as cúpulas das organizações internacionais.
Bandung, 1955
Chegaram também a jornais influentes como As vagas de descolonização global,
com os seus correspondentes efeitos
o Journal de Genève. na composição das organizações
A LAI elegia a supressão da discriminação internacionais, e no seu processo de
racial como um objetivo fundamental, advo- tomada de decisão, foram decisivas
para a internacionalização do
gando também a autodeterminação colonial.
antirracismo no período posterior
Liderada pelo jamaicano Harold Moody, que a 1945. O mesmo sucedeu com
experimentava as vicissitudes do racismo a intensificação de coligações
quotidiano na sociedade inglesa, a LCP pro- internacionais e transnacionais
e com a multiplicação de redes
punha-se lutar pelo fim da segregação racial.
de solidariedade anticolonial,
Os sucessos políticos destes grupos não de- do «Sul global» ao «Norte global»,
vem ser exagerados. Mas também não po- do «Primeiro» ao «Terceiro»
dem ser ignorados, num contexto de evidente mundo. A conferência de Bandung
(Indonésia), em 1955, foi um dos
predominância de mundividências racistas. momentos-chave da articulação entre
Um dos casos mais interessantes da história reivindicações emancipatórias contra
da internacionalização do antirracismo teve o colonialismo, a denúncia do racismo
um protagonista pouco conhecido: Ignaz e a exigência de integração equitativa
na esfera internacional.
Zollschan, antropólogo austríaco, fervoroso
combatente do racismo e do antissemitismo.
Nos anos 20, procurou criar um centro de Contudo, Zollschan (e muitos outros) não giado da UNESCO. Então, aos debates en-
investigação dedicado ao tema, nos EUA, esmoreceu. Em 1937, foi criado um Comité tre geneticistas e antropólogos juntaram-se
dialogando para tal com o antropólogo Franz Internationale pour l’Action Internationale sociólogos e psicólogos sociais, que, com as
Boas. Em 1933, empenhou-se na tentativa pour Combattre les Doctrines du Racisme, suas «experiências», questionaram o caráter
de realização de um inquérito internacional, presidido por Paul Rivet, com a participação científico da «raça», expondo as suas conse-
tendo obtido apoios de peso na sociedade de Boas e de Zollschan. Os objetivos imediatos quências sociais e políticas. Exemplo disso,
checoslovaca, como os do presidente Thomas eram a organização de um congresso interna- os estudos sobre motins nos EUA ou sobre o
Masaryk e do ministro dos Negócios Estran- cional, projetado para 1939 ou 1940, e de um compromisso dos afro-americanos na guerra.
geiros Eduard Benes. Seguiu-se um périplo inquérito internacional. A escalada para guerra Os estudos sobre o antissemitismo, em parte
europeu: de Viena, onde fundou a Society for não o permitiu. Mas as sementes frutificaram. promovidos pela comunidade de cientistas
Sociology and Anthropology of Jews, ao Vati- exilados, confrontando preconceitos nas so-
cano, onde conheceu o secretário de Estado Desfundamentação científica ciedades de acolhimento, incluindo figuras
cardeal Pacelli (futuro Pio XII). Em França, No início dos anos 40, duas obras fundamen- como Theodor W. Adorno, reforçaram as
convenceu Edouard Herriot, antigo primeiro- tais contribuíram para a desfundamenta- críticas. A discriminação racial era perigo-
-ministro e então presidente do IICI, dos seus ção científica do racismo: Race: Science and samente antidemocrática.
propósitos. Em Inglaterra, o seu interlocutor Politics (1940), de Ruth Benedict, e Man’s Apoiada pela Carnegie Corporation, a in-
preferencial foi Charles Seligman, etnólogo, Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race vestigação sobre as relações raciais nos EUA
mentor de Evans-Pritchard e Bronislaw Mali- (1942), de Ashley Montagu. Ligados a Boas, (liderada pelo economista sueco Gunnar Myr-
nowski. Com Seligman, Zollschan foi um dos ambos os antropólogos tiveram um impacto dal) confirmou-o, estabelecendo a natureza
que contribuíram para a criação do Race and além das fronteiras académicas dos EUA. eminentemente social, não biológica, da
Culture Committee, que procurou desferir um Montagu tornou-se um interlocutor privile- «raça». Recrutando investigadores afro-a-
ataque científico ao racismo, nomeadamente mericanos, e incluindo figuras como Ralph
ao mito do arianismo, reunindo altas figu- Bunche, académico e diplomata americano,
ras da academia britânica. Apesar de vários Myrdal coordenou as quase 1500 páginas de
percalços, Zollschan conseguiu ainda auxílio A inserção de cláusulas An American Dilemma: The Negro Problem
da SDN para a realização de um inquérito
sobre a questão da «raça». Em finais de 1934,
de igualdade racial and Modern Democracy (1944). Este tor-
nou-se uma referência internacional, com
as condições pareciam estar reunidas, mas, no Pacto da Sociedade 25 edições, iluminando as reverberações do
um ano depois, por circunstâncias várias, o
projeto soçobrou. O «apaziguamento» vingou
das Nações foi pedida preconceito e da discriminação raciais na
justiça, na economia, na saúde e educação e
de novo. através de uma petição na política. O resultado era duplo: acentuada

14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
coloniais devia ser um direito inegociável.
As vagas de descolonização e associada re-
composição geopolítica acentuariam estas

HOWARD SOCHUREK/GETTY IMAGES


tendências.

Contra a ‘ignorância’
e o ‘preconceito’
Reminiscente da proposta japonesa de 1919,
a problemática dos direitos humanos e da
questão racial foi levantada pela China nas
vésperas dos encontros em Dumbarton Oaks
Reunidos na Indonésia (1944). A sua proposta para uma nova organi-
HOWARD SOCHUREK/GETTY IMAGES

Ao lado, Gamal Abdul Nasser,


presidente do Egito, falando
zação de cariz «universal» tinha por essencial
com Jawaharlal Nehru, o «princípio de igualdade de todos os estados
primeiro-ministro da Índia. e todas as raças». Foi recusada. Meses de-
Em cima, placas com pois, na Conferência de São Francisco (1945),
os nomes dos países participantes
na conferência de Bandung momento fundador da ONU, passos mais
seguros foram dados na internacionalização
do antirracismo, acompanhando declarações
exaradas no México, aquando da Conferência
opressão e desdobrada desigualdade, com ram vários os que denunciaram a contradição Interamericana sobre Problemas da Guerra
consequências profundas à escala individual entre a denúncia dos horrores nazis e a passi- e da Paz (no mesmo ano). Apesar dos obs-
e grupal. Uma «patologia social» a enfrentar. vidade face à discriminação racial colonial. A táculos – colocados tanto às propostas de
Myrdal e a sua equipa foram criticados por Charter of Coloured People, da LCP de Moody maior igualdade racial como à afirmação de
não reconhecerem dinâmicas de resistência (1944), antecipou algumas das reivindicações um regime dos direitos humanos –, as vozes
a tais condicionalismos e por promoverem do quinto Congresso Pan-Africano, realizado não-governamentais e oficiais censurando a
uma visão excessivamente assimilacionista. em Manchester (1945): os «mesmos direitos discriminação racial aumentaram, da Índia e
Questionável também era a sua orientação económicos, educacionais, legais e políticos» da França ao Uruguai, passando pelo Iraque
psicologizante, centrada em motivações, na deviam ser reconhecidos, a «discriminação e pelas Filipinas. A China insistiu. Apesar
formação de personalidade e em manifes- no emprego» e em «espaços públicos» devia das limitações, a Carta das Nações Unidas
tações comportamentais. Mas, ao mesmo ser «punida». A autodeterminação dos povos tornou-se o primeiro instrumento interna-
tempo, sublinhava a pluralidade, interligada, cional a enunciar o desiderato de direitos
de problemas sociais associados ao racismo, iguais, sem distinção «de raça, sexo, língua
iluminando as suas múltiplas ressonâncias e ou religião» e ao direito à autodeterminação,
a sua longa história. Crente em projetos de implicando a reavaliação de quadros legais e
engenharia social, apostando na planificação e políticas nacionais, da imigração ao direito
no poder quase inesgotável da ciência, Myrdal de voto e de associação.
defendeu uma série de políticas fundamentais, A desilusão quanto ao seu alcance não tar-
de emprego e de acesso à educação, por exem- dou a medrar, em razão da persistência de
plo, para fazer frente ao racismo. An American IGNAZ ZOLLSCHAN ASHLEY MONTAGU «cláusulas coloniais» (a possibilidade legal
Dilemma tornou-se assim uma referência na (1877-1948) (1905–1999) de não aplicação de convenções e normas
O antropólogo Autor do livro
interrogação do fenómeno do racismo e na austríaco de referência internacionais às colónias) e da prerrogativa
formulação de políticas para lhe fazer frente. tentou promover, no combate ao inviolável da soberania. Mas era um novo
Este período foi também importante para no interior racismo Man’s passo, alimentando novas e velhas ambições
da Sociedade Most Dangerous
o reforço de vozes críticas ao sul, que ques- reformistas, dificultando velhas e novas or-
das Nações, Myth: The
tionavam a solução colonial e projetavam a um inquérito Fallacy of Race, todoxias. No que dizia respeito aos mundos
emancipação à escala global. De Du Bois e internacional de 1942, este coloniais, o artigo 73, sobre os «territórios
Moody a George Padmore (jornalista e ativis- sobre o racismo, antropólogo foi não-autónomos», criou embaraços a países
esforço que viria a relator da primeira
ta de Trinidad e Tobago), Kwame Nkrumah como a Bélgica e Portugal, por exemplo. Nos
ser retomado declaração da
(primeiro presidente do Gana) e Amy Jacques após a II Guerra UNESCO sobre anos seguintes, a ONU assumiu-se como o
Garvey (jornalista e ativista jamaicana), fo- Mundial. «raça», em 1950. campo de forças do antirracismo global e

VISÃO H I S T Ó R I A 15
RACISMO // INTRODUÇÃO
O ‘Correio’
da UNESCO
A ONU foi um dos polos
dinamizadores dos debates e das
políticas relativos à produção de
normas e instrumentos legais para
deslegitimar a discriminação racial
da agenda dos direitos humanos, com um e o racismo. À UNESCO coube Em 1951, uma outra declaração foi anuncia-
ponto de partida na Declaração Universal uma tarefa essencial: ao longo de da, Statement on the nature of race and race
décadas, patrocinou investigações
(DUDH), de 1948. A barragem sistemática differences, que corrigiu, em certa medida,
e estimulou debates científicos
de acusações à África do Sul, de 1946 em sobre o tema, reunindo figuras de a visão mais radical da anterior. A ideia da
diante e lideradas pela Índia, em resultado relevo, produziu declarações oficiais, «raça» como mero mito social desapare-
do tratamento de pessoas de origem indiana propondo intervenções políticas e ceu, mas o compromisso com a igualdade
legislativas, e promoveu iniciativas
no país, foi apenas um exemplo. A contínua persistiu, ainda que as vozes questionando
que visavam a popularização de
torrente peticionária que chamava a atenção um argumentário antirracista os seus reais efeitos continuassem ativas.
para as relações raciais nos EUA ou um pouco e contra o preconceito. A sua Em Bandung, em 1955, o presidente indo-
por toda a África e pela Ásia, entrelaçando-se publicação Correio (Courier) deu nésio Sukarno declarava que todos o que
frequentemente conta dessa
a lógica da Guerra Fria e com ambições de atividade.
participavam na conferência afro-asiática
independência, foi outro. Não por acaso, Jan estavam «unidos por uma detestação comum
Smuts, estadista sul-africano que participou do racialismo». Já Carlos Rómulo, diplomata
no esboço da Carta, declarava que a ONU filipino, sublinhou a centralidade de doutri-
estava a ser dominada pelos «povos de cor». nas de «inferioridade racial» no fenómeno
O racismo e a discriminação racial tor- colonial. A oposição ao racismo colonial era
naram-se um tópico recorrente no universo a «força motriz» do nacionalismo no Sul
da ONU. A Carta da UNESCO indicava o global e precisava de fortalecer a sua voz in-
papel da «ignorância» e do «preconceito» ternacionalmente. Em Accra, Gana, em 1958,
na disseminação de doutrinas de «desigual- em resultado dos esforços de Nkrumah e de
dade» de «raças». Em 1948, o Conselho Padmore, entre outros, a Conferência dos
Económico e Social (ECOSOC) das Nações Povos de África também colocou o problema
Unidas reforçou tal proclamação, defendendo racial no centro da ordem de trabalhos. No
a disseminação de «facto científicos» que as mesmo ano, a OIT adoptou a Convenção
contrariassem. Um ano depois, a UNESCO nº 111 sobre Discriminação em Matéria de
comprometeu-se a estudar e a difundir, com Emprego e Ocupação, que definiu, pela pri-
preocupações pedagógicas e visando o máxi- meira vez, o que significava precisamente
mo impacto, os materiais científicos mais re- «discriminação racial» (o que não aconteceu
levantes a este respeito. Como consequência, na Carta da ONU ou na DUDH).
é publicada a sua primeira declaração em 18 Encorajada pela Declaração sobre a Con-
de julho de 1950. Resultado de uma colabo- cessão da Independência aos Países e Povos
ração multidisciplinar na qual se destacavam, Coloniais (DCIPPC), de 1960, e pela des-
entre outros, Claude Lévi-Strauss (antropólo- colonização global, em aceleração, então, a
go), Morris Ginsberg (sociólogo) e Montagu Organização da Unidade Africana, criada
(principal relator), o documento recuperava em 1963, foi lesta em reforçar a colaboração
os esforços de Zollschan. Em UNESCO and mo» e a intensificação da «hostilidade face internacional tendo por fim eliminar formas
the Racial Problem (1950), o etnólogo Al- a grupos minoritários». Ao mesmo tempo, de discriminação racial em África (nomeada-
fred Métraux, coordenador da secção sobre a a UNESCO produzia e distribuía «panfle- mente nas colónias portuguesas e na África
questão racial no Departamento de Ciências tos populares», «curtos, claros e facilmente do Sul) e nos EUA. Também em 1963, a ONU
Sociais da UNESCO não tinha dúvidas a esse compreensíveis», como viria a suceder, por adotou uma Declaração sobre a Eliminação
respeito. A «anatomia do preconceito racial», exemplo, com panfletos sobre «Raça e biolo- de todas as Formas de Discriminação Ra-
que devia ser comparativa, era agora possível gia», «Raça e civilização» e «Mitos raciais». cial, que referia explicitamente que o fim do
com outros meios. E era também urgente: O que era impossível era escamotear que não colonialismo era condição necessária para a
«atitude mental eminentemente contagiosa», existia então um consenso científico sobre eliminação da discriminação racial.
o racismo continuava a grassar à escala global. o que seria a «raça», sendo que os debates Um ano depois, foi publicada a terceira de-
O comité de especialistas recomendava associados eram condicionados por conflitos claração da UNESCO. Em 1965, finalmente,
a intensificação dos estudos, da avaliação (geo)políticos, choques de personalidades e foi assinada a Convenção Internacional sobre
da influência do colonialismo na definição competição entre instituições. Eliminação de Todas as Formas de Discri-
de relações interraciais à análise de «ati- A declaração UNESCO, revista três vezes minação Racial que, apesar do seu caráter
tudes de não-brancos face a brancos» e à por Montagu em razão de inúmeras críticas, inovador, constituindo inequivocamente
relação entre o «crescimento do nacionalis- iniciou uma série de documentos similares. um momento importante na longa história

16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O papel do Conselho
Mundial das Igrejas
Envolvido diretamente em inicitivas
antirracistas, o Conselho Mundial das Igrejas
iniciou em 1969 o Program to Combat Racism,
que teve a África do Sul e Moçambique como
dois dos alvos preferenciais (envolvendo o
financiamento de movimentos de libertação).
O escritor e ativista James Baldwin foi um dos
convidados para a assembleia da organização
em Uppsala (Suécia), em 1968, com uma
comunicação intitulada White Racism or World
Community, convocando a igreja e a religião a
participar de modo mais ativo no antirracismo,
para mudar a sociedade sul-africana, para
dificultar assassínios como o de Martin Luther
King e para contrariar os bombardeamentos
americanos no sudeste da Ásia.

global do racismo, contudo, não deixou de ser


notada. As suas múltiplas e maleáveis faces
eram, e são, evidentes.
Como é possível observar quotidianamente,
décadas de esforços internacionais e transna-
cionais visando expor a falta de fundamenta-
ção científica do racismo e a multiplicidade
de modalidades de discriminação racial, não
GETTY IMAGES

obstante os seus importantes triunfos, não lo-


graram erradicá-lo. É, aliás, hoje, notório como
em debates públicos se assiste à recuperação
James Baldwin O escritor foi um dos convidados da conferência do Conselho Mundial de «técnicas» comprovadamente desacredi-
das Igrejas, em 196
tadas como a frenologia ou a antropometria,
sobretudo em meios informais de comunica-
de confrontação do racismo, não acarretou (um «crime contra a humanidade») e esta- ção. Com um longo lastro histórico, que não
o impacto que muitos esperavam. O papel beleceu a incompatibilidade absoluta entre pode ser resumido à segunda metade do século
do seu Comité sobre a Eliminação da Dis- o respeito pelos direitos humanos e qualquer XX, as dinâmicas de internacionalização e
criminação Racial foi sempre condicionado forma de preconceito racial. Nos anos que se globalização do antirracismo foram marcadas
(geo)politicamente, sobretudo pelo conflito seguiram, a luta contra o regime sul-africano por contextos geopolíticos conflituais, das ri-
bipolar. Em 1967, um quarto painel multi- assumir-se-ia como epítome da luta antirra- validades europeias do entreguerras à disputa
disciplinar de especialistas da UNESCO foi cista, vernacularizando as suas linguagens e ideológica e geopolítica da Guerra Fria, pela
imbuído de averiguar os aspetos éticos, filosó- popularizando os seus ícones. A persistência persistência de mundividências racialistas e de
ficos e sociais da questão racial, enriquecendo práticas institucionais de racialização e, ainda,
a interrogação das fontes do antagonismo pela sacralização do princípio da não-ingerên-
racial. Um ano depois, o World Council of cia. Mas o reconhecimento retrospetivo de
Churches (protestante) juntou-se à causa, Décadas de esforços que as conquistas ficaram aquém do desejado
criando o Programme to Combat Racism (ver
caixa). Em 1978, a Declaração sobre Raça e
internacionais, apesar não pode obliterar o papel ativo que inúmeros
indivíduos, grupos e organizações tiveram na
Preconceito Racial da UNESCO reafirmou de importantes tentativa de elevar o problema do racismo, do
a ausência de qualquer fundamento cientí-
fico para doutrinas e hierarquias étnicas ou
triunfos, não lograram preconceito e da discriminação racial, a desafio
maior da vida colectiva dos povos. Saibamos
raciais, singularizou o exemplo do apartheid erradicar o racismo honrar a sua memória.

VISÃO H I S T Ó R I A 17
E TUDO
O VENTO TROUXE
De velas enfunadas, os navios negreiros levaram para a América
do Norte mais de meio milhão de escravos africanos. Os efeitos dessa
tragédia continuam a fazer-se sentir no ambiente social dos Estados
Unidos, com reflexos em todo o mundo

por Luís Almeida Martins


BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA
Linchamento
em Minneapolis
No dia 28 de abril
de 1882, um afro-
-americano chamado
Frank McManus foi
enforcado por uma
multidão de brancos
por suspeita de ter
violado pouco antes
uma jovem. Cerca de
3500 pessoas foram
assassinadas desta
forma nos EUA entre as
décadas de 1870 e 1960
RACISMO // EUA

‘C
onheço bem essa atitude das pes- com a exportação para as fábricas de fiação
soas do Norte!… Têm tanto horror inglesas, viram a abolição como uma catás-
aos negros como às serpentes ou trofe e tentaram fazer estender as leis antia-
aos sapos, mas quando acham que bolicionistas aos territórios do Oeste, ainda
eles são maltratados indignam- por organizar. O ponto de vista do Norte era,
-se. Se pudessem, mandavam-nos evidentemente, oposto, e assim, sempre que
embora de volta para a África, para longe da o Congresso tinha de se pronunciar sobre a
vista, e sobretudo para longe do olfato; e a admissão de novos estados na União, estalava
seguir enviavam-lhes missionários a título um conflito entre os dois blocos de interesses.
de compensação...» Assim fala uma das per- A questão refletia-se na representatividade
sonagens do famoso romance A Cabana do no Senado e na Câmara dos Representantes.
Pai Tomás, publicado nos Estados Unidos da Um certo equilíbrio fora estabelecido em
GETTY IMAGES

América em 1852 e que preparou psicologica- 1820, através de um acordo conhecido por
mente o terreno para a abolição da escravatu- Compromisso do Missouri, segundo o qual o
ra. A sua autora, Harriet Beecher-Stowe, foi Lincoln e Sojourner Truth O Presidente paralelo 36o30’ de latitude norte formava uma
recebida pelo presidente Abraham Lincoln, e a abolicionista, numa alegoria linha de demarcação nos territórios do Oeste,
que lhe disse, rindo: «Ah, cá está então a sendo permitida a escravatura a sul dessa
frágil senhora que fez rebentar a guerra...» intensa atividade industrial se fora desenvol- linha e proibida a norte. Mas este equilíbrio
Referia-se ao grande conflito armado que, vendo. Se, por exemplo, em 1789 (a data do não poderia ser muito duradouro, já que o
entre 1861 e 1865, dividiu o país segundo uma início da Revolução Francesa e quatro anos Norte se povoava de emigrantes europeus a
fronteira de ódio traçada entre partidários e depois do reconhecimento da independência um ritmo muito mais acelerado do que o Sul
inimigos da escravatura. A cisão continua dos EUA pela Inglaterra) eram muito escas- e, graças a esse crescimento populacional e
a fazer sentir efeitos mais de século e meio sos os negros com estatuto de cidadania e ao desenvolvimento industrial, rapidamente
depois. O choque assenta num ódio «racial» com direito de voto, o certo é que legislação ia conquistando uma posição preponderante
entre brancos e negros e reflete-se em quase abolicionista foi sendo aprovada a partir de na União. Além disso, o abolicionismo en-
todos os comportamentos do quotidiano. 1805, e em 1808 uma lei do Congresso proi- controu no Norte partidários militantemente
Os primeiros escravos provenientes de Áfri- biu a importação de África de novas levas ativos, sobretudo nos meios puritanos, e as
ca com destino à América do Norte foram de escravos. campanhas pela abolição da escravatura em
vendidos em Jamestown, na Virgínia, em Ora, se os estados industrializados do Norte todo os espaço nacional tornaram-se uma
1619, após terem sido capturados por piratas necessitavam de mão-de-obra livre e consu- constante. O já referido romance A Cabana
ingleses a um navio negreiro português. Ao midora, já o mesmo não se passava nos do do Pai Tomás, que descreve os sofrimentos
longo de mais de 200 anos, o número de Sul, cuja
a economia assentava nas plantações dos esc
escravos
avos negros,
eg os, inscreve-se
sc eve se nessa
essa luta.
uta.
trabalhadores forçados, não remunerados de algodão.
ão. Os plantadores, que enriqueciam Os políticos do Norte tentavam, contudo,
e normalmente maltratados foi crescendo,
até atingir mais de 600 mil, sobretudo para
responder às necessidades de mão-de-obra
das plantações de tabaco da Virgínia e de
algodão do Sul profundo. Durante muito
tempo a escravatura foi considerada legal Soldados negros
nas 13 colónias britânicas que dariam origem da União
Cartaz apelando
aos EUA, e era nela que assentava metade da
para o alistamento
economia nacional. e um combatente
não identificado,
Norte e Sul entre 1863 e 1865
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA

O crescimento do novo país viu-se a certa al-


tura interrompido pelo antagonismo entre os
estados do Norte e os do Sul, com estruturas
económicas e sociais diferentes. O principal
ponto de atrito foi exatamente a escravatura.
A população de origem africana estava então
fracamente representada no Norte, onde uma

20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY IMAGES

Campo de batata-doce Nem só nas plantações de algodão trabalhavam os escravos (foto obtida em 1862 em Charleston, Carolina do Sul)

evitar uma rutura com o Sul que pusesse presidência do Congresso sulista elegeram Guerra da Secessão (como é chamada na
em causa a União, e em 1854 o Congresso Jefferson Davis e para capital escolheram a Europa) de 1861-1865 é considerada, sob
aprovou outro compromisso, nos termos do cidade de Richmond, na Virgínia, a escassos vários aspetos, o primeiro conflito militar
qual competiria a cada novo estado decidir 120 quilómetros de Washington. moderno. Na imaginação de muitos, os sol-
se aceitava ou proibia a escravatura. dados federais perfilam-se nos seus uniformes
Num clima em que as paixões estavam ao A voz dos canhões azuis, enquanto os sulistas ostentam fardas
rubro e se multiplicavam os episódios violentos, Mas estaria o governo dos EUA (ou o Norte) cinzentas; na verdade, eram múltiplas as in-
nesse mesmo ano de 1854 o Partido Democrá- disposto a reconhecer a nova entidade políti- dumentárias, incluindo até trajos civis. Os
tico, fundado em 1828, dividiu-se e surgiu uma ca? Não. Assim que tomou posse, em março nortistas, ou «federais», dispunham de uma
nova formação política, o Partido Republicano. de 1861, Lincoln declarou a União perpétua grande superioridade numérica, pois o Norte
Sem proporem a abolição total da escravatura, e a secessão do Sul nula. «Compatriotas des- contava 20 milhões de habitantes, contra 10
os republicanos exigiam que esta fosse banida contentes», disse, dirigindo-se aos sulistas, «a milhões do Sul, um terço dos quais escravos
dos novos territórios do Oeste, fosse qual fosse grave decisão da guerra civil está nas vossas (as populações importadas de África iam-se
a sua latitude. E em 1860 o novo partido, apro- mãos e não nas minhas.» Os secessionistas multiplicando já em território americano).
veitando as divisões no seio dos democráticos, iniciaram, de facto, as hostilidades, atacando, Além disso, a superioridade industrial e fi-
conseguiu fazer eleger para a Casa Branca o em abril, o forte Sumter e desencadeando a nanceira do Norte era esmagadora. Mas os
seu candidato, Abraham Lincoln. Este advo- guerra – a que chamaram, não «guerra civil», sulistas, ou confederados, habituados à vida
gado e self-made man, nascido numa cabana mas «guerra entre os estados» (designação nos campos, mostraram possuir maiores apti-
de troncos de madeira no Kentucky, dera nas ainda hoje usada no Sul). dões militares do que os nortistas, de origem
vistas dois anos antes, quando corria para o Pelos meios mecânicos envolvidos, sobre- sobretudo urbana; deu-se ainda o caso de os
Senado e proferiu um discurso em que afirmou, tudo a utilização dos caminhos-de-ferro, a melhores oficiais serem confederados.
baseando-se numa passagem do Evangelho Depois de uma primeira fase assente no
de Mateus: «Todo o reino dividido contra si recurso a voluntários, tanto o Norte como
mesmo é devastado; e toda cidade, ou casa,
dividida contra si mesma não subsistirá.»
Em 1861, os estados o Sul procederam à mobilização geral. Os
federais conseguiram reunir 2,7 milhões de
A eleição de Lincoln para a Presidência esclavagistas do Sul combatentes, mantendo permanentemente
dos EUA teve como consequência imediata
a secessão dos estados do Sul, que forma-
separaram-se dos EUA em campanha, a partir de 1863, cerca de 900
mil soldados, contra 470 mil confederados.
ram uma nova união, designada Estados e proclamaram os Apesar do velho preconceito quanto ao recru-
Confederados da América. A Carolina foi o
primeiro estado a retirar-se, em dezembro
Estados Confederados tamento de negros, já existente no tempo das
13 colónias inglesas da América do Norte que
de 1860, logo seguida por dez outros. Para a da América tinham dado origem aos EUA, mais de 200

VISÃO H I S T Ó R I A 21
RACISMO // EUA

Iniciação no Ku
Klux Klan Numa
foto da década
de 1920 veem-se
os candidatos
a membros da
organização racista,
ajoelhados junto
dos veteranos,
encapuzados.

BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA


mil afro-americanos combateram pela União, a cinco dias Lincoln era assassinado, num aos escravos libertos a igualdade política e
dos quais cerca de 7 mil tinham patentes de teatro, por um sulista fanático. cívica, ou seja, a cidadania. É certo que novas
oficial. Do lado dos sulistas, foram utilizados A primeira consequência da guerra – que emendas à Constituição consagraram essa
negros exclusivamente em tarefas auxiliares. fez meio milhão de mortos – foi o triunfo do igualdade, mas não conseguiam resolver um
As operações da guerra estenderam-se ao abolicionismo: uma emenda à Constituição problema que era mais de natureza social
oeste do rio Mississípi (Arkansas, Texas) e abolia a escravatura na totalidade dos EUA. do que política. Os afro-americanos eram
ao próprio Sul profundo, mas decorreram Ficava também garantido o princípio da per- teoricamente livres, mas não possuíam meios
principalmente no Leste. Durante dois anos, petuidade da União, em nome do qual os fe- de existência nem instrução. Mais de dois
os sulistas, comandados por oficiais de valor derais tinham combatido e que constituíra séculos de escravatura tinham-nos tornado
como Robert E. Lee, resistiram aos ataques até, possivelmente, a sua principal motivação dependentes como crianças, e o preconceito
nortistas, mas quando marchavam sobre durante a guerra; com efeito, se a União se racial da população branca dificultava o mais
Washington, em julho de 1863, foram tra- desfizesse, era provável que novas entidades pequeno ato da sua vida quotidiana.
vados da batalha de Gettysburg. Já então os políticas surgissem no Centro-Oeste e no li- É certo que, no imediato, os brancos dos
federais tinham conseguido conquistar uma toral do Pacífico, significando isso que hoje estados da ex-Confederação não ousaram
posição vantajosa na região do Mississípi, não existiriam EUA e que a história do mundo recusar oficialmente os direitos políticos dos
onde o general (e futuro Presidente) Ulys- posterior à década de 1860 teria sido diferente. negros, contentando-se em impedi-los de
ses Grant fizera cair nas mãos da União a aceder aos locais de voto ou em anular em
fortaleza confederada de Vicksburg. O golpe Escravatura encapotada bloco os seus boletins a pretexto de supostas
de misericórdia foi desferido por Sherman, Mas a reintegração dos estados do Sul na irregularidades. A partir de 1890, contudo,
que avançou sobre a Geórgia e as Carolinas, União – a chamada Reconstrução – deparou deixaram de esconder o jogo, no que con-
cortando a Confederação ao meio. Lee assi- com sérias dificuldades, uma das quais de taram com o apoio do Supremo Tribunal.
nou a rendição em 9 de abril de 1865 e daí ordem racista. Os sulistas pretendiam negar Foi então que introduziram na legislação

1865 1866

A 13ª É fundado o A Lei dos Direitos Cívicos, a par das São estabelecidos os primeiros «códigos negros»
emenda da Ku Klux Klan, 14ª e 15ª emendas da Constituição (black codes) no Mississípi e na Carolina do Sul. No
Constituição movimento (de 1868 e 1870), concede a cidadania Mississípi, os negros são obrigados a ter, em janeiro, um
abole a que defende a a todos os indivíduos nascidos ou contrato de trabalho escrito para o ano que começava.
escravatura supremacia naturalizados nos EUA e garante Se se despedissem, tinham de devolver os salários
branca direitos e voto iguais a todos anteriores e ficavam sujeitos a prisão. Na Carolina do
Sul, é estabelecido que os negros só podem trabalhar

22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CANADÁ
(WASHIN
GTON)
Território NEW HAMPSHIRE
d (MONTANA) VERMONT MAINE
(DAKOTA

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DO NORTE) MASSACHUSETTS

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OREGON Território do Dako RHODE

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do Utah Território ILLINOIS DELAWARE

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do Colorado MISSOURI MARYLAND

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(COLORADO) KANSAS
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DISTRITO

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KENTUCKY
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DA COLUMBIA
CAROLINA (WASHINGTON DC)
TENNESSEE DO NORTE
Território do Novo México Território ARKANSAS Memphis
Índio CAROLINA
(ARIZONA) (NOVO MÉXICO) (OKLAHOMA) Little Rock Birmingham DO SUL

PI
ALABAMA

SSÍP
GEÓRGIA

SI
MIS
Selma Montgomery

LUISI
PRESENÇA DE ESCRAVOS

ANA
MAIOR E TEXAS
MENOR DENSIDADE

FLO
O SUL
Nova Orleães

RIDA
O NORTE MÉXICO
TERRITÓRIOS EM ORGANIZAÇÃO
INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO

cláusulas que, sem violarem a letra das emen- pretextos faziam vir ao de cima o ódio racial tes, a economia baseava-se na plantação onde
das constitucionais, retiravam na prática o por parte dos brancos, multiplicando-se os trabalhavam escravos. A supressão da escra-
direito de voto aos afro-americanos; entre linchamentos, alguns levados a cabo com uma vatura implicou que a plantação se dividisse
essas cláusulas estavam requisitos como saber chocante e refinada crueldade (havia pessoas em propriedades de menores dimensões, que
ler e escrever, interpretar corretamente um queimadas ou esfoladas vivas). foram vendidas ou arrendadas a pequenos
artigo da Constituição e possuir certa fortuna. Calcula-se que 3500 negros terão sido as- agricultores, brancos ou negros. O plantador
Despojados dos direitos políticos, os antigos sassinados desta forma às mãos de bandos branco preferia ter empregados negros, por-
escravos foram-no também de grande parte organizados de supremacistas brancos entre que estes, desprovidos de recursos materiais,
dos direitos cívicos. Por exemplo, não podiam as décadas de 1870 e 1960, sobretudo nos es- eram obrigados a endividar-se junto do pa-
fazer parte de um júri, eram relegados para tados sulistas de Mississípi, Florida, Arkansas trão, que a troco de lhes fornecer os escassos
compartimentos específicos nos comboios e e Luisiana. Os linchamentos eram o desfecho bens essenciais à existência os tinha na mão
tinham de frequentar escolas, igrejas, restau- «normal» de julgamentos sumários em que quase gratuitamente durante longos anos,
rantes e teatros próprios. Mesmo os cemité- os «réus» eram acusados de insignificâncias, numa dependência que frequentemente se
rios eram separados. Os casamentos mistos e na assistência viam-se famílias inteiras que estendia aos descendentes. Como se vê, este
eram inviáveis. Só algumas profissões lhes rejubilavam com o «espetáculo». regime em quase nada diferia da anterior
foram franqueadas, entre elas as de porteiro Por esse tempo, as estruturas económicas escravatura.
de hotel, empregado de mesa ou funcionário e sociais do Sul já não eram as mesmas dos As transformações políticas também foram
das carruagens-cama. Os mais insignificantes tempos anteriores à Guerra da Secessão. An- grandes, se não ainda maiores do que as so-

1876 1896 1899

na agricultura a não ser que A partir deste ano, são aprovadas leis O Supremo Tribunal Um trabalhador agrícola da
paguem um imposto anual. Nos (conhecidas como leis Jim Crow) de considera que ter Geórgia, Sam Hose, é linchado
dois estados, ficam sujeitos segregação racial em escolas, transportes «equipamentos pela população, que o acusa de ter
a trabalhos forçados nos públicos, restaurantes, teatros, hotéis, separados mas iguais» matado o patrão na sequência de
campos se forem acusados de cemitérios (e, até, bebedouros!), nos estados para brancos e negros um pedido de aumento de salário.
vandalismo. Os outros estados sulistas. O casamento e as relações sexuais não viola a 14ª emenda Entre 1882 e 1968 registam-se 4741
sulistas seguem-lhe as pisadas inter-raciais são proibidos da Constituição linchamentos de negros nos EUA

VISÃO H I S T Ó R I A 23
RACISMO // EUA

ciais. Andrew Johnson, o vice de Lincoln que


assumiu a Presidência após o seu assassinato,
não soube impor-se e deixou as portas do Sul
escancaradas a políticos republicanos, cha-
mados «radicais» por não terem escrúpulos,
que cometeram brutalidades e violências.
Os estados derrotados na guerra mostravam
repugnância em conceder direitos políticos

BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA


aos afro-americanos. Para os obrigar a fa-
zê-lo, o Congresso aprovou uma emenda à
Constituição que proibia que fosse retirado o
direito de voto a qualquer cidadão americano
(e os ex-escravos, lembre-se, tinham passado
a sê-lo). O Sul recusou-se, porém, a ratificar
essa emenda, que, à falta de maioria suficien-
te (a Constituição exigia o acordo de ¾ dos Índios Sioux em 1891 Também conhecidos por Lakotas, resistiram de armas
estados), não pôde ser aplicada. Para anular na mão às espoliações
a resistência, o Norte enviou então para o Sul

Biblioteca do Congresso dos EUA


um exército de ocupação, com a missão de As penas dos índios
impor governos estaduais que não incluíssem
Não se sabe quantos habitantes teria o que lhe deu razão ao reconhecer o seu
na sua composição antigos partidários da território dos atuais Estados Unidos quando direito às terras dos antepassados, mas a
escravatura. Foram assim eleitas assembleias os europeus começaram a colonizá-lo. Administração fez ouvidos de mercador à
locais maioritariamente compostas por ne- O número de índios (designação assente no decisão judicial. Ameaçadas pelos Sioux,
gros, a maior parte dos quais analfabetos conhecido equívoco de Cristóvão Colombo, estabelecidos há milénios na zona, as
que julgou ter chegado à Índia quando pisou tribos deslocadas tentaram atravessar de
(por exemplo, na Carolina do Sul, de 122 o Novo Mundo) varia assim, segundo as novo o Mississípi, mas os soldados federais
deputados apenas 22 sabiam ler e escrever). estimativas, entre um milhão e 18 milhões. esmagaram-nas.
Aventureiros brancos provenientes do Norte Hoje são perto de 3 milhões, a roçar 1% A expansão dos EUA para o oeste
caíram então como um enxame sobre o Sul, da população dos EUA. Pelo meio ficaram processou-se, aliás, à custa dos nativos dos
quatro séculos de intolerância e guerras territórios, que resistiram durante décadas
dispostos a aproveitar em proveito próprio entre o «homem branco» e o «homem mas acabaram por ter de se vergar à lei
a falta de preparação das autoridades locais; vermelho», cujo desfecho foi a aniquilação do mais forte após as Guerras Índias, que
ficaram conhecidos com o nome de carpetbag- da cultura autóctone da América do Norte. duraram até 1890. Encarados antes de
O conceito de confinamento dos nativos 1871 como nações estrangeiras, os povos
gers, porque transportavam os seus pertences
a um determinado território, ou «reserva ameríndios eram obrigados a assinar
nas malas de viagem que então se usavam, índia», foi criado pelos colonos britânicos tratados com o governo dos EUA; após essa
feitas de tecido de tapete; alguns acumularam da Virgínia em meados do século XVII. Em data passaram a ser considerados nações
rapidamente consideráveis fortunas. 1830, o Congresso dos EUA aprovou o domésticas dependentes sem soberania
Removal Act, uma lei que forçava os índios absoluta. Só em 1924 a cidadania americana
Dispostos a tomarem de novo o poder, os
do Leste (ou o que deles restava após foi conferida aos «verdadeiros» americanos.
supremacistas brancos deram então corpo a sangrentas lutas) a fixarem-se a oeste do Recentemente, em 2009, foi apresentado
movimentos de intimidação dos negros, o mais rio Mississípi. No atual estado de Oklahoma um pedido de dsculpa aos nativos «pelas
conhecido dos quais é a sociedade secreta Ku foi então criado o chamado Território Índio, violências, maus-tratos e negligência» de
para onde foram empurradas à força esses que foram alvo. Cerca de 70% dos índios
Klux Klan, cujos membros, encapuzados, não povos, numa deslocação conhecida por vivem agora nas cidades, onde são alvo de
recuavam perante o homicídio. E quando as Caminho das Lágrimas (Trail of Tears). racismo e discriminação e sofrem flagelos
tropas federais evacuaram o Sul, entre 1874 A tribo dos Creeks não partiu sem antes ter como o desemprego, a marginalidade e a
e 1876, a velha classe dominante tinha recu- recorrido para o Supremo Tribunal Federal, dependência de drogas.
perado o poder na maior parte dos estados.
A «questão negra» estava, pois, por resolver. soldados verificaram que na Europa o pre- guerra à Alemanha, as fábricas do norte sen-
conceito racial não era tão grande como nos tiram a necessidade de mais mão-de-obra
‘American way of life’ EUA. De regresso a casa, custou-lhes ainda e recrutaram trabalhadores negros do Sul,
Durante a I Guerra Mundial, afro-americanos mais a suportar a sua situação humilhante. que assim foram estabelecer-se em grande
foram incorporados nas forças armadas e O conflito mundial introduziu entretanto número em metrópoles setentrionais como
enviados para os campos de batalha euro- um fator novo na economia e na socieda- Chicago, Nova Iorque ou Filadélfia, êxodo
peus. Foi com alguma surpresa que esses de norte-americanas: com a declaração de esse que prosseguiu mesmo depois do fim

24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
'Barbecue' no Alabama Negros de um lado e brancos do outro, numa imagem dos anos 30 do século XX

das hostilidades. O novo quadro, que pare- american way of life – que no entanto excluía imaginária «raça americana». O critério em
cia promissor de uma melhor distribuição a população não-branca da possibilidade de que se apoiavam os legisladores era o da
populacional, colocou no entanto problemas acalentar esse sonho. facilidade de assimilação: a imigração era
sérios, visto que os trabalhadores brancos do Esta América ciumenta da sua própria tanto mais dificultada quanto o candidato a
Norte, que até então se tinham mostrado felicidade fechou-se sobre si mesma e so- cidadão se afastasse – pelo físico, pela língua,
favoráveis à plena integração na sociedade bre a sua pretensa «pureza étnica». Foram pela religião, pelo estilo de vida – do «tipo
dos descendentes dos escravos por nunca os anos do isolacionismo, posição que, sob americano». Uma lei de 1924 fixava a quota
terem tido contacto direto com essa fatia da muitos aspetos, se cruza com o racismo. Ao anual de imigrantes de cada país em 2% do
população, começaram a ver os seus postos mesmo tempo que a produção nacional era total de residentes dessa mesma origem nos
de trabalho ameaçados por ela. protegida da concorrência estrangeira por EUA em 1890. Como nesse tempo o povoa-
Nos «loucos» mas prósperos anos 1920, a elevadas tarifas alfandegárias, eram intro- mento era sobretudo de raiz anglo-saxónica,
elevação do nível de vida tornou-se a princi- duzidas restrições à imigração destinadas a alemã e escandinava, a imigração mediter-
pal razão de ser das existências individuais. Os defender a pretensa «pureza étnica» de uma rânica e eslava foi travada. Aos asiáticos foi
EUA, onde vivia 6% da população mundial, liminarmente proibido fixarem-se no país.
consumiam 75% do petróleo e da borracha,
65% da seda e 25% do açúcar produzidos no
Cerca de 1920, Este desejo de defender a pretensa «pure-
za americana», aliado ao triunfo do espírito
mundo. A ocupação dos tempos livres tornou- os EUA isolacionistas puritano, desencadeou uma perseguição das
-se a principal preocupação de uma sociedade
que procurava novas emoções no cinema de
fecharam-se na alegada minorias étnicas. O Ku Klux Klan renasceu e
retomou a caça aos negros e os linchamentos.
Hollywood com o seu star system, na música 'pureza étnica' O movimento pelos direitos cívicos, iniciado
de jazz (contraditoriamente, de origem negra)
e em desportos de massas como o basebol, o
de uma pretensa na década de 1950, introduziria alterações no
quadro, mas a onda racista de ódio prossegue
boxe ou o futebol americano. Nascia o mito do 'raça americana' até aos dias de hoje.

VISÃO H I S T Ó R I A 25
RACISMO // EUA

Boicote Após a prisão


de Rosa Parks,
os afro-americanos
fizeram boicote
aos transportes públicos
da cidade, Montgomery,
durante meses

conformismo que, desde cedo, lhe moldou


a personalidade. «Gritei, cheia de raiva, que
preferia ser executada a deixar que passassem
por cima de mim. Se quisessem, até poderiam
preparar já a corda.»
O cenário de enforcamento, subentendido

GREY VILLET/GETTY IMAGES


nas palavras da ativista, remete para uma lon-
ga tradição de linchamento nos EUA, prática
que consistia na execução extrajudicial de
penas de morte por grupos de «justiceiros
brancos». Entre 1882 e 1968 ocorreram 4743
linchamentos, 3446 dos quais de negros, se-
gundo os dados da Associação Nacional para

‘Mãe’ Rosa Parks


o Progresso das Pessoas de Cor (NAAPC na
sigla original). Precocemente familiarizada
com essa realidade, prevalecente nos estados
do Sul, como o seu Alabama natal, Rosa Parks
Presa e julgada por recusar ceder o lugar a um passageiro escolheu pagar o preço de viver em liberdade.
branco num autocarro, Rosa Parks projetou Martin Por isso, já depois de ouvir a lição da avó
Luther King para a liderança do Movimento pelos – recebida após contar que ameaçara bater
Direitos Cívicos num miúdo branco que se metera com ela na
rua –, a ativista não hesitou em travar uma

A
por Paula Cardoso
investida sexual. «Pensei na minha pobre avó,
sentença de morte causou choque, relações raciais», recebida da própria avó, que nos tempos da escravatura não podia
revolta e indignação, à passagem Rosa Parks descobriu uma herança carregada fazer mais do que ser usada e abusada pelo
dos primeiros 10 anos de vida. de silêncios de opressão. «Senti-me comple- senhor», desabafou Parks, num dos cerca de
«Miúda, é melhor que aprendas tamente sozinha, sem um único amigo. De 7500 manuscritos que deram origem ao atrás
que um homem branco é um ho- repente, a pessoa que me era mais querida referido livro.
mem branco, que aprendas como tornou-se uma inimiga, alinhada com a hostil Os relatos na primeira pessoa integram uma
falar e como não falar com ele. Também é raça branca contra mim.» coleção do filantropo Howard G. Buffett, que,
bom que deixes de ser tão temperamental. A experiência, partilhada no livro Rosa em 2014, pagou 4,5 milhões de dólares pelo
Senão, serás executada antes de cresceres.» Parks: In Her Own Words (Rosa Parks: Pe- espólio da aclamada «Mãe do Movimento pelos
Na sua «primeira e mais dura lição sobre las suas próprias palavras), expressa o in- Direitos Cívicos». «Não sei quem é que começou

1948 1954 1955 1957

O presidente O Supremo Rosa Parks Nove estudantes negros,


Truman emite uma Tribunal revoga recusa-se a dar conhecidos como os «9 de
ordem executiva no a sua decisão de o seu lugar a um Little Rock», são proibidos
sentido de terminar 1896 e declara homem branco de entrar no Liceu de Little
com a segregação a segregação num autocarro em Rock, Arkansas. O presidente
nas forças armadas ilegal nas escolas Montgomery, estado Eisenhower manda tropas
públicas. Mas de Alabama federais para escoltar
muitas escolas não os estudantes, mas eles
acatam a ordem continuam a ser molestados

26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY IMAGES
Preso nº 7053 Rosa Parks fotografada na altura em que se recusou a dar o seu lugar no autocarro a um homem branco, 1955

1960 1961

Oppresidente Inspirados no protesto não Ruby Bridges, uma Um grupo de ativistas brancos e negros
Eisenhower torna
Eis violento de Gandhi, quatro menina de 6 anos, inicia os «Freedom Rides»: viaja de
lei o Ato dos Direitos estudantes da Carolina do é a primeira criança camioneta pelo Sul para chamar
Civis: suprimir
Civ Sul recusam-se a deixar o negra a integrar a atenção para a segregação nos
o direito
d de voto balcão «só para brancos» uma escola pública terminais rodoviários e usa as casas de
de outra pessoa de uma cafetaria sem em Nova Orleães banho e os balcões de cafés «só para
(co
(como era feito serem servidos. O «Sit-in de brancos». A iniciativa é recebida com
com os negros) é
co Greensboro» inspira outros violência por comunidades brancas
co
considerado crime sit-ins, noutros estados

VISÃO H I S T Ó R I A 27
RACISMO // EUA

a chamar-me assim, mas aprecio que as pessoas


sintam isso a meu respeito», declarou a ativista

HOWARD SOCHUREK/GETTY IMAGES


em 1997. «Aceito o título de bom grado.»

‘Cansada de desistir’
Dedicada à luta contra a segregação racial, em
defesa da igualdade de direitos, Rosa assumiu
uma posição ativa na NAAPC desde a década
de 1940, tendo, a partir de 1943, secretariado
a estrutura do Alabama. Resiliência
Os sit-ins foram uma
Apesar do contínuo envolvimento nas das formas pacíficas
questões que afetavam a comunidade negra, de protesto. Ao lado,
nomeadamente para investigação e acompa- dois estudantes negros
nhamento de casos de violência sexual – como sentados no balcão
reservado a brancos
a brutal violação de Recy Taylor –, o reconhe- numa cafetaria,
cimento do papel central que desempenhou Carolina do Norte. Em
no Movimento pelos Direitos Cívicos começa cima, participar nestas
e acaba no episódio que protagonizou a 1 de ações exigia treino:
havia que saber não
dezembro de 1955. responder
Nesse dia, contrariando as Leis Jim Crow a provocações

GETTY IMAGES
– que mantinham os estados do Sul dos EUA
sob um impiedoso regime de segregação
racial –, a então costureira recusou ceder o
lugar a um passageiro branco, durante uma
viagem de autocarro. «Não estava fisicamen- públicos tinham autoridade para exigir que -americanos, até aí responsáveis por cerca
te cansada, ou pelo menos não mais do que os passageiros negros cedessem o lugar aos de 80% da ocupação.
o habitual ao fim de um dia de trabalho. passageiros brancos, Rosa Parks foi detida «A comunidade negra, até aqui adormecida
Também não era idosa, embora algumas com o número 7053 e, graças à pronta in- e passiva, demonstrou dessa forma que estava
pessoas tenham criado essa imagem de mim. tervenção do NAAPC, libertada algumas bem desperta. Nas horas de ponta, os passeios
Tinha 42 anos, e simplesmente estava can- horas mais tarde. Julgada a 5 de dezembro, a foram invadidos por operários e trabalhadores
sada de desistir.» costureira foi condenada a pagar dez dólares domésticos que, ordeiramente, regressavam
A memória do acontecimento lê-se na de multa, mais quatro de taxa. dos locais de trabalho, por vezes situados a
autobiografia Rosa Parks: My Story (Rosa mais de 15 quilómetros de distância das suas
Parks: A minha história), publicada em O ‘milagre’ de Montgomery casas», destacou Martin Luther King, em The
1992. O livro revisita os momentos-chave Nesse mesmo dia, sob a liderança de um ainda Autobiography of Martin Luther King, Jr (A
do histórico protesto, vivido na cidade de desconhecido Martin Luther King, inaugu- Autobiografia de Martin Luther King, Jr).
Montgomery, no estado do Alabama. Presa rava-se o chamado Boicote de Montgomery, O «milagre» de Montgomery, conforme o
por violar as regras segregacionistas, segun- protesto que, durante 381 dias, deixaria os famoso reverendo apregoou, beneficiou da cria-
do as quais os motoristas dos autocarros autocarros da cidade sem passageiros afro- ção de uma rede colaborativa, em que os táxis

1963 1963 1964 1965

O governador George Marcha de O presidente O líder negro


C. Wallace coloca-se à porta Washington, em Johnson assina Malcolm X é
da Universidade de Alabama que participam a Lei dos Direitos assassinado
para barrar a entrada a dois cerca de 250 mil Civis, que proíbe
estudantes negros que se pessoas e Martin qualquer tipo de
vão matricular. O presidente Luther King faz discriminação
Kennedy manda a Guarda o seu célebre
Nacional para o campus da discurso «eu tenho
universidade um sonho…»

28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Cidade de
Oklahoma, 1939
Até os sítios para
beber água eram
diferenciados para
brancos e negros

RUSSELL LEE/BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA.

detidos por afro-americanos passaram a estar do voto dos negros, integrando desde 1940 a a partir dos 21 anos», precisou a ativista, em
ao serviço da comunidade, ao mesmo valor da Liga dos Eleitores dessa Associação. declarações ao Eyes on the Prize.
tarifa dos transportes públicos. Por outro lado, Os entraves à votação negra saltavam à vista
o apoio ao protesto, vindo de outros estados, Pelo direito de voto em 1955, o ano em que Parks recusou ceder
permitiu distribuir calçado por quem, de tanto «Na altura era praticamente impossível um o seu lugar: só havia 31 eleitores afro-ameri-
andar a pé, começou a precisar de reforços. negro conseguir recensear-se para votar», lem- canos recenseados no Alabama.
No caso de Rosa Parks, os ajustes na mobili- brou a «Mãe do Movimento pelos Direitos A segregação começou a perder força de lei,
dade duraram cerca de cinco semanas, porque Cívicos» em entrevista ao projeto documental primeiro com a decisão de 1954 do Supremo
foi despedida no início de 1956. Igual desfe- Eyes on the Prize. A dificuldade no acesso às Tribunal americano, que determinou o fim
cho conheceu o marido, o barbeiro Raymond urnas – ultrapassada em 1965, com a aprovação da hierarquia racial nas escolas. Seguiu-se,
Parks, numa convergência de represálias que da Lei dos Direitos de Voto, pelo Presidente em Montgomery, como efeito do boicote, a
precipitou a mudança da família para Detroit. Lyndon B. Johnson – assentava na obrigato- eliminação da separação entre brancos e negros
Casados desde 1932, sem filhos, e ambos mem- riedade de realização de um teste de literacia, e nos transportes públicos, celebrada a 20 de de-
bros da NAACP de Alabama, Rosa e Raymond do pagamento de uma taxa. «Custava um dólar zembro de 1956. Quase uma década depois, em
tornaram-se especialmente ativos em defesa e meio, mas tinha de ser pago com retroativos, 1964, a Lei dos Direitos Cívicos foi aprovada,
seguida da Lei dos Direitos de Voto, de 1965.
Já em 2005, quarenta anos após esse marco
1968 legal, o movimento despedia-se da mãe Rosa,
saudando os seus ensinamentos. «A vida deve
ser vivida ao máximo para que a morte seja
Marcha entre Selma e Por ordem do Martin O presidente
Montgomery, Alabama, presidente Luther King é Johnson assina apenas mais um capítulo», escreveu Parks
protestando contra a supressão Johnson, é assassinado a Lei dos Direitos num artigo de 1988, publicado na revista Life.
do votos dos negros. Os impedido o uso de na varanda Civis, que estabelece No mesmo texto, a ativista partilhou a sua
GETTY IMAGES

manifestantes são brutalmente exames de literacia de um hotel igualdade de


fé na imortalidade, pela humanidade. «As
atacados pela polícia local. Dias como necessários em Memphis, oportunidades na
depois, líderes do movimento dos para votar Tennesse venda, arrendamento memórias dos nossos trabalhos e dos nossos
direitos cívicos organizam duas e financiamento da feitos continuarão nos outros», assinalou.
marchas no mesmo percurso habitação Como quem distribui sentenças de vida.

VISÃO H I S T Ó R I A 29
RACISMO // EUA

Um sonho que
mudou o mundo
A figura e a obra de Martin Luther King vistas por uma estrela
do futebol, autor de um livro onde elege as suas «estrelas negras»
por Lilian Thuran
Lilian

O
Thuram
Antigo jogador pai de Martin Luther King era pastor, o tio paterno era pastor, King não era o pastor calmo e pacifista que
de futebol o único irmão era pastor, o avô e o avô do avô eram pastores… imediatamente imaginamos, disposto a ofe-
francês, nascido Todos eram indivíduos sensíveis ao sofrimento e às in- recer a face esquerda depois de ter oferecido
em Guadalupe,
Lilian Thuram
justiças. a direita.
criou em 2008 O combate de Martin Luther King Jr. em defesa da liber- A sua estratégia era uma não-violência
a Fundação dade resultou de uma forte educação humanista. «provocadora», um «confronto conciliató-
Thuram – Martin Luther King Jr. foi rodeado por bondosas fadas-madrinha rio». King procurava a eficácia através da
Educação contra
o Racismo. Tem logo à nascença. Os pais eram muito unidos e tinham meios finan- penitência. A sua inteligência estava no fac-
hoje uma grande ceiros suficientes para lhe permitir frequentar a universidade. Em to de se inspirar em Gandhi, que, em 1920,
intervenção 1948, terminou a licenciatura em Sociologia, que lhe proporcionou afirmara: «Se a única escolha possível for
pública por todo uma sólida cultura filosófica. Uma das obras determinantes para a sua entre a cobardia e a violência, aconselho a
o mundo, a favor
da igualdade, formação intelectual foi Desobediência Civil, o ensaio escrito por David violência. […] Preferia que a Índia pegasse
e foi doutorado Henry Thoreau. O livro descreve a técnica da resistência passiva e fala em armas para defender a sua honra a vê-la
honoris sobre o dever de rejeitar toda e qualquer colaboração com um regime tornar-se ou continuar a ser uma testemunha
causa pelas
perverso. Numa conferência realizada em 1950, Martin descobriu o impotente da sua própria desonra, por cobar-
universidades
de Sterling pensamento de Gandhi e concluiu que o método de não-violência dia. Creio, no entanto, que a não-violência
(Escócia) e preconizado por Mahatma poderia revelar-se extremamente eficaz, se é infinitamente superior à violência.» Uma
Estocolmo aplicado ao combate contra a segregação. Em 1953, tornou-se pastor superioridade que advém do entendimento
(Suécia).
da igreja batista da Dexter Avenue, em Montgomery, no Alabama. da sua força política, longe dos «sentimentos
Escreveu o
livro As Minhas Nesse mesmo ano, casou -se com Coretta Scott, um elemento muito nobres» ou da recusa do combate, da arte
Estrelas Negras, ativo na luta contra a opressão da comunidade negra. que consiste em virar a violência do outro
publicado em O dia 1 de dezembro de 1955, aquele em que Rosa Parks se recusou contra si mesmo e em expor perante todos essa
Portugal pela
Tinta da China
a obedecer à ordem de um motorista de autocarro para que cedesse mesma violência bruta. Martin Luther King
em 2013, do o lugar a um branco, constituiu uma revelação para Martin Luther compreendeu a argumentação e, a partir desse
qual este texto King. Em Montgomery e em toda a comunidade negra, este episódio momento, empenhou-se em expor a violência
foi retirado culminou numa vitória contra a segregação nos transportes públicos. dos brancos do Sul, em particular do Ku Klux
Martin Luther King tomou consciência dos efeitos que uma ação deste Klan e dos seus cúmplices no seio das forças
tipo poderia ter, combinando os ideais da não-violência defendidos policiais da região, para a divulgar nos meios
por Gandhi com a necessidade moral da resistência passiva preconi- de comunicação social. Martin Luther King foi
zada por Thoreau. um verdadeiro líder político e não um mero
«A força da não-violência prevaleceu», escreveu o pastor. Todavia, e inócuo candidato eleitoral.
é ainda longo o caminho a percorrer até se sair da «noite lúgubre e Em 1957, foi nomeado presidente da SCLC
sinistra da desumanidade do homem pelo homem»… (Southern Christian Leadership Conference,
Nem romantismo nem ingenuidade animavam os heróis da resistên- ou Conferência dos Dirigentes Cristãos do
cia negra desta época. Todos estudavam as técnicas políticas, jurídicas Sul), que organizou a luta das igrejas afro-
e mediáticas que poderiam servir os seus direitos. Da mesma forma -americanas pela causa dos direitos civis. Será
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que a mulher que se recusara a ceder o lugar no autocarro não era necessário relembrar que só partilhando os
uma negra infeliz e exausta no final de um dia de trabalho, mas uma mesmos direitos e deveres poderemos viver
militante determinada e aguerrida, também o pastor Martin Luther juntos em sociedade? Se assim não for, surgirá

30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Luther King em oração
Atrás, ao centro da
foto tirada em Selma,
Alabama, vê-se Ralph
Abernathy; seriam
detidos dias depois

VISÃO H I S T Ó R I A 31
RACISMO // EUA

Luther King
descobriu
o pensamento de
Gandhi e concluiu
que a não-violência
poderia ser eficaz

Segregação racial No sul dos EUA havia cafés (o da foto de cima em Atlanta, em1962), carruagens de comboio, hotéis
e cinemas específicos para negros

o fantasma da guerra civil. Foi o que demons- A miséria terrível e as injustiças sociais que estrada, etc. Entre 1961 e 1962, porém, King
traram as diferentes ações organizadas por assolavam o país não lhe escaparam. Numa nunca deixou de falar, de agir e, como seria
Martin Luther King, que acicataram um ódio visita a uma escola, o diretor apresentou-o de esperar, de passar algum tempo na cadeia.
cada vez mais forte nos que pretendiam man- nos seguintes termos: «Jovens, gostaria de Em 1963, a SCLC e o Alabama Christian
ter as desigualdades e o medo para melhor vos apresentar um ‘colega intocável’ vindo Movement for Human Rights lançaram uma
poderem reinar. dos Estados Unidos da América!» Que lições grande campanha de contestação, em Birmin-
A 20 de setembro de 1958, Luther King poderá um norte-americano dar à Índia em gham, o pior local para um negro em todos os
foi apunhalado no bairro de Harlem durante matéria de segregação? Estados Unidos da América. As autoridades
uma sessão de autógrafos do seu livro Stride Em 1960, os sit-in, ou ocupações, torna- de Birmingham pareciam nunca ter ouvido
Toward Freedom (Caminhada para a Liber- ram-se uma prática generalizada nas lojas e falar de Abraham Lincoln, Thomas Jeffer-
dade). O corte foi tão próximo da aorta que, nos restaurantes dos estados do Sul. A técnica son, da Declaração dos Direitos do Homem,
se ele «tivesse espirrado durante as horas de consistia em permanecer sentado em grupo do veredicto emitido em 1954 pelo Supremo
espera, tê-la-ia perfurado e morrido afogado num local onde os negros estivessem proi- Tribunal de Justiça declarando ilegal todo
no próprio sangue», escreveu o The New York bidos de entrar. Apesar de pacíficas, estas o tipo de segregação em estabelecimentos
Times. A agressão não o demoveu do seu pro- ações organizadas por Martin Luther King escolares… Ali, negava-se a História, assim
pósito, pois os objetivos que tinha em mente não ficaram sem resposta. O FBI seguia-o de como os direitos civis. George Wallace, go-
sobrepunham-se a qualquer preocupação com perto e ordenou a sua detenção por diversas vernador do Estado, regia-se por um único
a sua própria vida. vezes, acusando-o de apresentar declarações lema: «Segregação hoje, segregação amanhã,
Em 1959, deslocou-se à Índia, onde se de impostos falsas, de participar em mani- segregação sempre!» Duas meninas negras
reuniu com o primeiro-ministro, Nehru. festações, de cometer infracções ao código da foram mortas no interior de uma igreja, e os

32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
DANNY LYON/MAGNUM PHOTOS/
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA

GETTY IMAGES
Marcha sobre Washington Martin Luther King acena aos apoiantes perto do memorial de Lincoln, na capital federal, em 28 de agosto de 1963,
quando proferiu o célebre discurso I have a dream («Eu tenho um sonho»)

atentados racistas nunca esclarecidos eram dades judiciais declarassem o fim da segregação 350 podiam recensear-se. Por fim, a correção
de tal maneira numerosos que a cidade era nos parques da cidade, «Bull» reagiu fechan- do famoso teste de «alfabetização», concebido
conhecida entre os negros pela designação do-os… e colocando uma bomba na residência para prejudicar os eleitores negros, era tudo
«Bombingham»! do pastor! No que diz respeito ao emprego, os menos isenta.
A descrição de Martin Luther King era as- postos de trabalho oferecidos aos negros eram As igrejas, espaços sagrados da vida em
sustadora. Segundo ele, os direitos humanos sempre irrisórios, sem nenhuma possibilidade comunidade, estavam abrangidas da mesma
eram violados há tanto tempo que o medo e de promoção e com salários muito inferiores aos forma pela legislação «Jim Crow», pois, como
a opressão tornavam o «ambiente social tão auferidos pelos brancos… Graças a uma curiosa escreveu Martin Luther King, «embora se
denso como o fumo libertado pelas chaminés disposição das leis democráticas, os direitos civis proclamassem cristãos, os nossos concidadãos
das fábricas». (e as leis «Jim Crow» também) permitiam que brancos praticavam a segregação na casa do
O xerife, Eugene Connor, conhecido pela um terço dos negros constituísse apenas uma Senhor com o mesmo zelo com que a aplica-
alcunha de «Bull» («Touro») era agente da oitava parte do corpo eleitoral. Além das intimi- vam nas salas de cinema». Basta pensar que
polícia durante o dia e membro do Ku Klux dações e das ameaças diante das assembleias de se uma criança negra entrasse numa igreja
Klan à noite. Os direitos civis e a vida social voto, Martin Luther King referiu-se igualmente «branca» para rezar podia ser violentamente
estavam subordinados às leis segregacionistas, à «lentidão deliberada com que se procede às escorraçada e espancada.
conhecida como legislação «Jim Crow», que formalidades de recenseamento» e à «redução A questão primordial continuava a ser como
abrangiam hospitais, cinemas, lojas, urinóis do número de dias e horas de funcionamento levar a opinião pública branca, em particular a
públicos, fontanários, cemitérios, transportes, dos centros de recenseamento». «maioria silenciosa» branca, mais preocupada
jardins e parques públicos… Quando o corajoso Numa cidade como Selma, por exemplo, com a ordem do que com a justiça, a interes-
pastor Shuttlesworth conseguiu que as autori- em 15 mil possíveis eleitores negros, menos de sar-se pela segregação a que estava sujeita a

VISÃO H I S T Ó R I A 33
RACISMO // EUA

minoria negra, num país em que os brancos


detinham o poder económico, cultural, polí-
tico e repressivo. Para Luther King:
«O grande obstáculo que se levanta aos
negros que lutam pela sua liberdade não é
o membro do conselho de cidadãos brancos
ou do Ku Klux Klan, mas o branco moderado
[…], que prefere uma paz negativa, resultante
da ausência de tensões, à paz positiva, saída
DON CRAVENS/GETTY IMAGES

de uma vitória da justiça; que, paternalista


como é, considera possível estabelecer um
calendário para a libertação de outro homem;
que cultiva o mito do ‘tempo-que-trabalha-a-
-nosso-favor’ e não se cansa de recomendar
aos negros que aguardem por ‘um momento
mais oportuno’».
Em Birmingham, as operações tiveram
início em abril de 1963 com um boicote aos
estabelecimentos comerciais. Perante a capa-
cidade de adaptação revelada pelos gerentes
das lojas, avançou-se com o «projeto C», ou
seja, um conjunto de ocupações de lojas, res-
taurantes, bibliotecas e igrejas reservadas aos
brancos. O objetivo era «criar uma situação
capaz de provocar uma série de crises e de
abrir, inevitavelmente, a porta a negociações».
Como seria de prever, Martin Luther King
GETTY IMAGES

foi preso a 12 de abril de 1963. Foi nessa oca-


sião que escreveu a Letter From a Birmingham
Jail (Carta de Uma Prisão de Birmingham), de
A voz da rua No topo: Face à hostilidade de brancos, a polícia
que apresentamos o seguinte excerto: escolta crianças e mães após a fim da segregação nas escolas.
«Aguardamos, há mais de 340 anos, pe- Em cima: Um ativista remove um dístico segregacionista em
los direitos que nos foram concedidos pela Dallas, Texas, em 1956. À direita: Um jovem branco
Constituição e pelo nosso Criador. As nações do Tennessee exibe, em 1956, um cartaz onde proclama
que não quer ir à escola com negros
da Ásia e de África avançam a passos largos
para a independência política, enquanto
nós, movendo-nos ao ritmo de uma carroça na gaiola asfixiante da pobreza, no seio de durante o dia e perseguidos à noite pelo
puxada por cavalos, ainda procuramos con- uma sociedade de abundância; se tivessem facto de serem negros e tivessem de viver na
quistar o direito de beber uma chávena de sentido a língua presa e a voz embargada ao expectativa, sem saber muito bem o que vos
café ao balcão de um restaurante. Para os que tentarem explicar à vossa filha de 6 anos por irá acontecer no momento seguinte, ator-
nunca sentiram o aguilhão da segregação que razão não pode ir ao parque de diversões mentados por medos que vêm de dentro e
racial talvez seja fácil dizer «Esperem!». que acaba de ser anunciado na televisão e pelo ressentimento do mundo exterior; se
Todavia, se tivessem visto uma turba per- visto os olhos dela encherem-se de lágrimas tivessem lutado sem descanso contra a sen-
versa linchar, a bel-prazer, os vossos pais e ao lhe dizerem que esse parque está fechado sação devastadora de que não são ninguém,
as vossas mães e afogarem os vossos irmãos para as crianças de cor e visto as nuvens então compreenderiam porque é que para
e irmãs por simples capricho; se tivessem ameaçadoras da inferioridade começarem nós é tão difícil esperar.
visto agentes da polícia dominados pelo ódio a formar-se no seu pequeno céu mental e Chega um momento em que o cálice da
amaldiçoar, brutalizar e até matar os vossos visto a sua personalidade começar a alte- resistência transborda e em que os homens já
irmãos e irmãs negros com total impunida- rar-se, alimentando, inconscientemente, não estão dispostos a permitir que os atirem
de; se tivessem visto a grande maioria dos um sentimento de amargura em relação aos para o abismo do desespero…»
vossos 20 milhões de irmãos negros sufocar brancos, […]; se tivessem sido humilhados UMA SEMANA MAIS TARDE, quando

34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
é ser tratado com dureza». Quando Kenneth
B. Clark lhe perguntou se as crianças também
recebiam uma formação semelhante, Martin
Luther King respondeu: «Sim, as crianças
também. Aliás, nenhuma delas participa
numa marcha ou em qualquer manifestação
sem antes ter realizado esta formação.»
Martin Luther King não escapou aos
ataques de boas almas que o acusaram de

CHARLES SHAW/GETTY IMAGES


«instrumentalizar» as crianças. Respondeu,
dizendo que elas estavam na primeira linha
da segregação há cem anos e nunca ouvira
ninguém preocupar-se com a sua sorte!
Estas almas caridosas estariam até dis-
postas a desculpar o agressor, o treinador
'Um homem, um voto' Ativistas pelos direitos cívicos exibem o cartaz dos cães, alegando que fora provocado por
com estas palavras em Montgomery, Alabama, em março de 1965 crianças pacíficas!
As imagens foram profundamente embara-
saiu da prisão graças à intervenção de John árvore. A partir do dia seguinte, os jornais çosas para Washington. Martin Luther King
Fitzgerald Kennedy, Presidente dos EUA, e nacionais e as estações de rádio, entretanto conseguiu abalar a opinião pública e de todo o
ao seu irmão Robert, procurador-geral, Mar- alertados, regressaram a Birmingham. Lei- mundo chegaram reações aos acontecimentos.
tin Luther King encontrou um movimento tores de todo o país confrontaram-se, nos A União Soviética aproveitou para denunciar
estrangulado, cujas ações tinham deixado seus jornais diários, com imagens de violência os atentados aos direitos humanos em terras
de atrair as atenções dos jornais. Decidiu, inéditas: mulheres jovens e indefesas atiradas do tio Sam. A cidade de Birmingham, por seu
então, apelar à juventude, essa eterna reserva ao chão e agredidas com matracas, um jovem lado, estava à beira do colapso, pois todos os
da resistência e, no dia 2 de maio de 1963, projetado para cima de um automóvel pela estabelecimentos comerciais do centro da
realizou-se uma gigantesca manifestação na força do jacto de água de uma mangueira cidade estavam encerrados. A Casa Branca
qual participaram estudantes de vários níveis de combate a incêndios e, principalmente, viu-se forçada a enviar Bruce Marshall, ad-
de ensino que desfilaram cantando o hino fotografias de crianças «que caminham na junto do procurador-geral para os direitos
Freedom (Liberdade). O mais jovem tinha direção de cães-polícia sem açaime». As civis, e o adjunto do vice-presidente, Joseph
7 anos e o mais velho, 18. imagens causaram um choque profundo no F. Dolan, encarregando-os de propor uma
De 2 a 7 de maio de 1963, a «Cruzada das cidadão comum norte-americano, ou seja, a trégua e de conduzir as negociações.
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Crianças» ou «dos Inocentes» não fraque- maioria silenciosa. Finalmente, a 21 de maio de 1963, o presi-
jou. Mais de mil jovens foram detidos no Na célebre entrevista que concedeu a Ken- dente da câmara demitiu-se, o chefe da polícia
primeiro dia. Por falta de carros celulares, neth B. Clark, emitida em maio-junho de foi exonerado e, em junho, todos os cartazes
as autoridades policiais viram-se forçadas a 1963, Martin Luther King revelou que as ma- segregacionistas foram retirados, permitindo-
fretar autocarros escolares para transportar nifestações não-violentas eram objeto de uma -se aos negros o acesso a todos os locais e es-
os detidos para a cadeia. No dia seguinte, o preparação especial e que os participantes paços públicos. Por seu lado, a administração
número de crianças presas subiu para dois recebiam «formação na qual aprendem o que Kennedy, que não tinha como prioridade a
mil, mas nem assim pararam de chegar mais! legislação sobre os direitos civis, decidiu apre-
Algumas apresentavam-se, espontaneamente, sentar com carácter de urgência máxima uma
nas esquadras de polícia, a cantar e a pedir vigorosa proposta de lei sobre esses direitos
para serem detidas.
Furioso, «Bull» Connor ordenou uma carga
Mesmo sem dar que deviam ser respeitados por todos.
A reputação de Martin Luther King saiu
policial com pastores-alemães, especialmente prioridade ao combate consideravelmente reforçada e o aconteci-
treinados para morderem o estômago das
vítimas, sobre as crianças que desfilavam
à segregação, mento foi assinalado com a realização de uma
marcha sobre Washington, destinada a unir o
pacificamente e forçou os manifestantes a a Administração conjunto de forças dispersas. A 28 de agosto
dispersarem com a ajuda de mangueiras para
combater incêndios, cujo jacto de água tinha
Kennedy colaborou de 1963, duzentas e cinquenta mil pessoas de
todas as cores e religiões juntaram-se dian-
força suficiente para arrancar a casca de uma com a luta te do monumento dedicado à memória de

VISÃO H I S T Ó R I A 35
RACISMO // EUA

Lincoln. Estava prevista uma intervenção


de Martin Luther King, que preparara um
texto na noite de 27, cuja versão final estava
praticamente concluída.
Todavia, ao iniciar o discurso, King recor-
dou-se das palavras que proferira dois meses
antes, numa reunião no Michigan, «Eu tenho
um sonho»… Imediatamente, pôs de lado o
papel que estava a ler e declarou: «…e, no
entanto, ainda tenho um sonho. É um sonho

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profundamente enraizado no sonho ameri-
cano. Tenho um sonho de que, um dia, esta
nação se erguerá e viverá em toda a plenitude
Assassínio de Luther King Na varanda de um hotel de Memphis, Alabama, junto do corpo
a verdadeira realidade da sua crença: ‘Consi- tombado do líder, Ralph Abernathy, Jesse Jackson e outros ativistas apontam para o local
deramos estas verdades como evidentes por de onde proveio o disparo, no dia 4 de abril de 1968
si mesmas, que todos os homens são criados
como iguais.’ filosofia de não-violência coincidiu com a do a qualquer momento. Mas seria esse um
Tenho um sonho de que, um dia, nas ru- «Marcha contra o Medo», realizada a 6 de motivo suficientemente forte para o levar a
bras colinas da Geórgia, os filhos dos antigos junho de 1966: «Enquanto caminhávamos desistir?
escravos e os filhos dos antigos proprietários ao longo daquela estrada sinuosa, debaixo de No dia 4 de abril de 1968, quando esta-
de escravos poderão sentar-se à mesa da fra- um calor abrasador, conversávamos bastante va na varanda de um quarto de hotel, em
ternidade. e eram abordadas muitas questões. Memphis, ouviu-se um disparo. Um único.
Tenho um sonho de que, um dia, o estado ‘Já não sou a favor deste tipo de ações não- Martin Luther King, o homem que queria
do Mississípi, sufocado pelo fogo da injustiça -violentas’, disse um dos ativistas mais jovens. transformar a desunião da sua nação numa
e da opressão, se transformará num oásis de ‘Se um destes sacanas do Mississípi me tocar, «bela sinfonia de fraternidade» foi abatido.
liberdade e justiça. dou cabo dele’, gritou outro. Alguns dias mais tarde, duzentos mil norte-
Tenho um sonho de que os meus quatro Uma vez, durante a tarde, parámos para -americanos de todas as cores e confissões
filhos viverão, um dia, numa nação onde não cantar We Shall Overcome. As vozes eleva- religiosas acompanharam, ao longo das ruas
serão julgados pela cor da sua pele, mas pela ram-se com o fervor habitual […]. No entan- de Atlanta, a mula que puxava a carreta sobre
natureza do seu carácter. to, quando chegámos à estrofe que fala dos a qual seguia o seu féretro.
Tenho um sonho, hoje!» negros e brancos juntos, as vozes de alguns Restam-nos, hoje, a integridade e a coragem
participantes na marcha calaram-se. Mais tar- pouco vulgares de um homem que nunca
A 10 DE DEZEMBRO DE 1964, aos 35 de, perguntei-lhes porque se tinham recusado transigiu em relação ao seu ideal, um ideal
anos, Martin Luther King foi galardoado com a cantar aquele verso e a sua resposta foi: ‘Os que descrevia aos seus interlocutores da se-
o Prémio Nobel da Paz. Através dele, pres- tempos mudaram. Não voltaremos a cantar guinte maneira:
tava-se, assim, uma magnífica homenagem essas palavras. Na verdade, toda a canção «No que diz respeito a certas tomadas de
aos milhares de indivíduos anónimos, atores devia ser alterada. Já não é Nós venceremos posição, a cobardia pergunta: ‘Será perigoso?’
do movimento em defesa dos direitos civis. que é preciso dizer, mas Vamos esmagá-los.’ O oportunismo pergunta: ‘Será político?’
Este «sonho» e a marcha triunfante que Juntando-se à discussão, a vaidade ques-
o acompanhou exacerbarão, ainda mais, o O ÓDIO ATRAI O ÓDIO. Martin Luther tiona: ‘Será popular?’
ódio dos brancos segregacionistas contra ele. King não tinha dúvidas quanto a isso e, em A consciência, porém, pergunta: ‘Será jus-
Todavia, também farão crescer a impaciên- abril de 1968, escassas horas antes da sua to?’»
cia de uma juventude negra revoltada que, morte, escreveu:
progressivamente, foi alargando a sua ação a «Não sei o que vai acontecer agora. Temos
Texto retirado do
movimentos como o dos Muçulmanos Negros, dias difíceis pela frente. Todavia, pouco impor- livro As Minhas
de Elijah Muhammad, em que se destacava ta o que possa suceder-me, pois subi ao cimo Estrelas Negras –
de Lucy a Barack
a figura de Malcolm X e que preconizavam a da montanha. Já não estou preocupado. Como Obama (Tinta da
autodefesa. Em 1966, surgirá o Poder Negro, toda a gente, gostaria de viver muito tempo. China, 2013)
lançado por Stokely Carmichael, e, por fim, A longevidade tem o seu preço, mas isso é
o partido dos Panteras Negras. Para Martin algo que agora não me preocupa.»
Luther King, o momento de declínio da sua Luther King sabia que podia ser assassina-

36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Um longo caminho
Figuras e momentos marcantes
da luta pelos direitos cívicos
por Paula Cardoso

GETTY IMAGES
Punhos ao alto,
joelhos ao chão
PÉS DESCALÇOS, colar de missangas ao
pescoço, medalhas de ouro e de bronze ao
peito e, no centro das atenções, dois pu-
nhos enluvados apontados ao céu. A foto que
imortalizou o protesto dos atletas Tommie
Smith e John Carlos no Jogos Olímpicos
GETTY IMAGES

de 1968 atesta que o momento, igualmente


vivido pelo australiano Peter Norman, foi
preparado ao pormenor.
«Tínhamos de ser vistos, já que não con-
Malcolm X, o voto ou a bala seguíamos ser ouvidos», disse Smith numa
das muitas entrevistas sobre a icónica subida
‘T ODOS OS QUE LANÇAREM MÃO DA ESPADA, à espada morrerão.» ao pódio, no final da prova dos 200 metros.
A leitura deste passo do Evangelho de S. Mateus repetiu-se, entre vozes críticas, Além do olhar imediato das 50 mil pessoas
no adeus a Malcolm X. Assassinado a 21 de fevereiro de 1965, aos 39 anos, em que assistiram à corrida, na Cidade do Mé-
Nova Iorque, o antigo rosto da Nação do Islão recebeu na morte a mesma hosti- xico, os atletas americanos conquistaram
lidade que despertara em vida. Contestado pelo radicalismo dos seus discursos, visibilidade histórica. Integrantes do Projeto
marcados por incitamentos à violência, o ativista extremou a luta do Movimento Olímpico para os Direitos Humanos, Smith
pelos Direitos Cívicos. Em clivagem com Martin Luther King, insistia, contudo, em e Carlos, agora septuagenários, decidiram
declarar que estavam «no mesmo barco». «Ele diz-te que eu sou a favor da separação usar o pódio para alertar contra as injustiças
e que tu és a favor da integração, apenas para lutarmos um contra o outro. Mas tu sofridas pelos negros. Embora o ato tenha
e eu somos a favor da liberdade. Por isso, digo que é o voto ou a bala. É a liberdade sido ruidosamente contestado pelo público,
ou a morte», pregava o líder muçulmano no início de 1964. os punhos olímpicos foram vistos em todo
Meses depois de proferir essa mensagem de força, e já depois de romper com o mundo.
Elijah Muhammad, até aí seu mestre espiritual, Malcolm partiu em peregrinação Mais de 50 anos depois, a saudação do
a Meca, de onde regressou com um novo nome – El-Hajj Malik El-Shabazz – e movimento Black Power veio juntar-se ao
uma nova consciência ativista. «A verdadeira irmandade que vi fez-me reconhe- ajoelhar de protesto iniciado em 2016 pelo
cer que a raiva pode cegar», admitiu, abandonando o discurso de ódio. Fundou futebolista Colin Kaepernick. O novo gesto
então a Organização para a Unidade Afro-Americana e reformulou o foco da critica o sistema judicial americano, acusado
sua intervenção: em vez do homem branco, o racismo tornou-se o alvo a abater. de encobrir a brutalidade policial associada à
Mas não por muito tempo: foi atingido por mais de dez tiros meses antes da perda de vidas de cidadãos afro-americanos.
aprovação da lei que dessegregou as urnas. Na história de Malcolm X (nascido Vidas que importam, repetem os partidários
Malcolm Little), marcada por tragédias familiares e por uma sentença de dez do movimento Black Lives Matter. Com os
anos de cadeia, as balas vencerem os votos. punhos bem alto ou os joelhos no chão.

VISÃO H I S T Ó R I A 37
RACISMO // EUA

O profeta do Poder Negro


‘QUEREMOS LIBERDADE.» A reivindicação, presente desde o primeiro
momento nas fileiras do Movimento pelos Direitos Cívicos, expandiu-se, pela
voz de Stokely Carmichael, para uma nova exigência: «We want Black Power»
(«Queremos Poder Negro»).
As palavras de ordem, entoadas por Carmichael em junho de 1966, ouviram-se
na reta final da Marcha Contra o Medo, iniciada de forma solitária por James Me-
redith no estado do Tennessee e concluída coletivamente no estado do Mississípi.
Foi aí, num comício que terá juntado mais de mil pessoas, que o líder do Co-
mité Coordenador Estudantil Não-Violento (SNCC, na sigla americana) colocou
o slogan Black Power na agenda do ativismo negro. Antes, a expressão já tinha
sido impressa no título de um livro de Richard Wright, publicado em 1954, mas
foi com o discurso de Carmichael que se popularizou.
Na altura com 24 anos, o responsável do SNCC tornou-se tão icónico que a
imprensa o apelidou de «Profeta do Poder Negro». A sua ascensão não sobreviveu,
contudo, ao assassinato de Martin Luther King, com quem estava a organizar
uma marcha contra a pobreza, definitivamente adiada.
Eclipsado, numa altura em que o SNCC estava a ser «engolido» por grupos
mais sonoros, como o Partido Black Panther, Carmichael deixou os EUA. Fixado
em África, algures na década de 1970, o outrora «profeta» adotou a identidade
Kwame Ture, com a qual morreu em 1998, na Guiné-Conacri. Tinha 57 anos.
Três décadas antes, numa altura em que os média o apontavam como con-
tinuador do legado de Malcom X, Carmichael explicou, em Black Power: The A pequena soldada
Politics of Liberation (Poder Negro: A Política da Libertação), o significado da
sua mensagem de marca. GRITARAM-LHE INSULTOS diariamen-
Na obra, de 1968, o ativista e coautor apresenta o slogan como um repto à te. Arremessaram-lhe objetos. Ameaçaram
população negra «para se unir, para assumir a sua herança, para construir um envenená-la. Chegaram até a confrontá-la
sentido de comunidade. Um apelo para definir os seus próprios objetivos, para com um minicaixão onde repousava uma bo-
liderar as suas próprias organizações». neca negra. Durante um ano letivo, iniciado
a 14 de novembro de 1960 e cumprido sob
escolta policial, o ódio atormentou o quoti-
diano de Ruby Bridges.
Primeira criança negra a frequentar a Es-
cola William Frantz, de Nova Orleães, Ruby
resistiu à contestação branca desde o primeiro
dia de aulas, imortalizado numa pintura de
Norman Rockwell. A obra, de 1964, captura
um episódio emblemático do fim da segre-
gação racial nas escolas americanas, decre-
tado pela Justiça em 1954, mas recusado no
dia-a-dia pela população branca.
Não fosse a presença de Barbara Henry no
quadro docente e, provavelmente, o primeiro
ano de aulas de Ruby teria sido hipotecado.
Rejeitada por pais, colegas e professores, a
menina encontrou na relação com a profes-
sora, originária de Boston, o único sinal de
acolhimento. Aluna única, porque todas as
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famílias descartaram o contacto dos filhos


com ela, Ruby almoçava muitas vezes sozi-
nha. Noutras ocasiões, a professora fazia-lhe

38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A ‘missão divina’ de James Meredith
UMA VIAGEM DE COMBOIO mudou o destino de James Meredith. Natural
do segregacionista Mississípi, ele chocou de frente com o racismo quando regres-
sava de uma viagem a Chicago com um dos nove irmãos: o então adolescente de
15 anos foi obrigado a ceder o lugar sentado à passagem por Memphis. Naquele
momento, Meredith, hoje com 87 anos, jurou que iria dedicar a vida a lutar por
direitos iguais para os afro-americanos.
O primeiro grande teste surgiu com a candidatura à então 100% branca Uni-
versidade do Mississípi, apresentada em 1961, já depois de nove anos ao serviço
da Força Aérea. Após ter sido admitido, viu a instituição dar o dito por não dito e
ignorar a decisão do Supremo Tribunal, que em 1954 declarara inconstitucional
a segregação racial na Educação.
Fiel ao juramento adolescente, o ativista contestou a discriminação nos tribu-
nais e, em 1962, tornou-se mesmo o primeiro negro a frequentar a Universidade
do Mississípi. À entrada, carregava um velho legado de resistência, antecedido
de dez dias de tumultos com a intervenção de 500 polícias e 16 mil militares.
O episódio garantiu a entrada do ativista na História do Movimento pelos
Direitos Cívicos, ainda que o seu capítulo esteja recheado de controvérsias.
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A começar na organização da denominada Marcha contra o Medo, que iniciou


a solo em 1966, para encorajar a população negra do Sul a votar. Meredith foi
ferido a tiro por um racista branco, mas deixou clara a intenção de se emancipar
do movimento para seguir a sua própria «missão divina», como disse depois.
O afastamento do coletivo tornou-se ainda mais notório quando aceitou tra-
balhar com o senador republicano Jesse Helms, conhecido pela férrea oposição
companhia às refeições, e também nas brin- às reivindicações do Movimento pelos Direitos Cívicos.
cadeiras do recreio. A contradição – e traição aos princípios do movimento que jurou defender – foi
O ambiente, declaradamente hostil, come- desvalorizada pelo próprio Meredith. Citado pelo Washington
çou a ter impacto na saúde da criança, que Post, o ativista justificou a ligação a Helms como mais
passou a ser acompanhada por um psicólogo. uma etapa de uma «campanha para a vida». Rumo à
Porém, aos olhos de quem a acompanha- «conquista de uma cidadania de primeira classe para
va diariamente, as provações, extensivas os negros».
à família – os pais foram despedidos e os
avós despejados –, passavam despercebidas.
«Nunca chorou», relatou mais tarde o ex-
-agente Charles Burks, um dos elementos
da escolta de Ruby, realçando a sua cora-
gem: «Limitava-se a caminhar, como uma
pequena soldada.» O testemunho de Burks
ganhou projeção entre galerias do Museu das
Crianças de Indianápolis.
A história de Ruby, hoje com 65 anos, está
também exposta em livros, documentários e
num filme da Disney. Para que as dores não
se repitam, Ruby Bridges criou uma fundação
homónima, que se propõe manter «o coração
puro» dos mais novos.
«As nossas crianças não sabem nada sobre
ódio ou racismo. Mas rapidamente começam
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a aprender – e apenas por nós. Nós mantemos


o racismo vivo», alerta a ativista, empenhada
em educar para a aceitação e a igualdade.

VISÃO H I S T Ó R I A 39
UM FILME
A PRETO E BRANCO
Como a colónia holandesa do cabo da Boa Esperança desenvolveu
ideologias e práticas racistas, entrou em choque com a Inglaterra
e semeou um dos regime políticos mais aberrantes de sempre
por Luís Almeida Martins

40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A
41
CHRIS HELLIER/GETTY IMAGES
RACISMO // ÁFRICA DO SUL

T
udo começou com a viagem do nave-
gador português Bartolomeu Dias.
No início de 1488, a sua pequena
frota dobrou o cabo das Tormentas,
entrou no oceano Índico e abaste-
ceu-se num ponto da costa. Agora,
que as estátuas têm dado que falar, é opor-
tuno lembrar que Dias tem um imponente
memorial na Cidade do Cabo. O nome de
Tormentas foi mudado para Boa Esperança
pelo rei português D. João II, porque estava
aberto o caminho para a Índia, alcançada
nove anos depois pela armada de Vasco da
Gama. Esta passou o dia 25 de dezembro de
1497 junto de uma costa que batizou de Natal,
nome que se mantém exatamente assim, em
português.
Como é bem sabido, em 1580 a crise di-
nástica provocada pelo desaparecimento de
D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir sem
deixar descendência colocou Portugal sob a
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alçada da Espanha, que estava empenhada


numa luta de morte contra a Inglaterra e os
Países Baixos. Estes últimos acharam que os
melhores pontos para atacar a monarquia
dual ibérica eram aqueles onde essa Coroa Diamantes e ódio Classificação caram à agricultura, roubaram os pastos aos
de pedras preciosas encontradas na mina
obtinha os principais lucros. Assim sendo, hotentotes, que arregimentaram à força para
de Kimberley, em 1872 (em cima)
enviaram a Lisboa espiões incumbidos de e chicoteamento de um africano desenvolver trabalho braçal nos campos. Mais
obter informações acerca da rota para a Índia por um boer (ao lado da anterior) escravos chegaram entretanto de Moçambi-
via cabo da Boa Esperança. Em resultado des- que, de Madagáscar e da Malásia, com a sina
sa iniciativa, conseguiram, a partir de 1595, de serem mal alimentados e açoitados pelos
enviar regularmente armadas para o Índico. «proprietários».
Se os portugueses tinham o seu principal Na viragem dos séculos XVIII para o XIX
porto de escala na ilha de Moçambique, os proveniente da atual Indonésia, mas logo entraram em cena os ingleses, que em 1806 se
neerlandeses procuraram um equivalente a seguir foram escravizados africanos. Em apoderaram do controlo da colónia e baniram
no próprio cabo da Boa Esperança, onde 1657, havia dez escravos numa população legalmente a escravatura. Graças à influência
haveriam de fundar uma feitoria em 1652. de centena e meia de pessoas. O número au- da London Missionary Society, melhoraram
Pouco depois despacharam para lá colonos mentou muito no ano seguinte, quando 250 as condições de vida dos «povos de cor»,
incumbidos de cultivar produtos frescos para dos 500 angolanos embarcados num navio conceito que englobava bantus, hotentotes,
abastecer as armadas. A designação bóeres, português capturado pelos holandeses foram bosquímanos, malaios, malgaches e mestiços.
aplicada a esses povoadores, significa, exata- levados para a colónia; pouco depois, mais Os ingleses proibiram também o uso nos tri-
mente, «camponeses». Em 1688, duas cente- duas centenas chegaram da Guiné, também bunais da língua africânder, um derivado do
nas de protestantes franceses (huguenotes) num navio luso. neerlandês falado pelos bóeres. Sentindo-se
fixaram-se também no Cabo, na sequência da Um dos mitos em que se fundaria três lesados, estes pediram aos britânicos quase
revogação do édito de Nantes, que durante séculos depois o regime sul-africano de «se- 3 milhões de libras de indemnização, quantia
quase um século permitira a liberdade de paração racial» (apartheid) seria o de que os que receberam parcialmente.
culto em França. europeus terão sido os primeiros povoadores Uns 10 a 12 mil bóeres resolveram então
do país. Se o povoamento por autóctones era emigrar massivamente para nordeste, nos
Bóeres, ingleses e zulus rarefeito na região do Cabo, já o mesmo não seus pesados carroções cobertos de lona e
O primeiro escravo de que há notícia na coló- pode ser dito das zonas vizinhas. Quando os puxados por uma dezena de juntas de bois.
nia do Cabo foi um tal Abraham van Batavia, bóeres receberam lotes de terras e se dedi- De noite dispunham os carros em círculo e

42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
não só era muito mais ponderosa militar e
diplomaticamente, como ainda, por instiga-
ção de Rhodes, cobriu as zonas em disputa
de uma rede de comerciantes e outros agen-
tes. Em 1890, o governo de Lorde Salisbury
endereçou a Portugal o famoso ultimato que
forçou o nosso país a reconhecer a posse pelo
Reino Unido da Niassalândia (hoje Malaui)
e da Maxonalândia (partes da Zâmbia e do
Zimbabué atuais).
Recorrendo aos serviços de uma com-
panhia majestática, a British South Africa
Company, Rhodes estendeu seguidamente o
domínio britânico para sul. Foi após a vitória
sobre o povo dos matabeles, em 1893, que o
conjunto dos territórios situados entre Angola
e Moçambique foi batizado pelos ingleses de
Rodésia, em referência a Rhodes. E em 1895,
quando Joseph Chamberlain sobraçou a pasta
das Colónias, Rodhes instalou um protetora-
do na Bechuanalândia, atual Bostsuana. Esta

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anexação fez crescer a tensão com os bóeres,
que sentiram ameaçada a independência do
Transvaal e de Orange.

defendiam-se a tiro dos ataques dos leões – a rainha Victoria recebeu-o e fez-lhe uma ‘Uitlanders’ e ‘afrikaaners’
e dos povos locais. No termo dessa Grande pergunta de circunstância: «A que se dedica Mas os conflitos entre os britânicos e os bóeres
Jornada (Groot Trek), fundaram o Estado neste momento?» Rodhes respondeu: «Faço vinham já de trás. Uma primeira guerra an-
Livre de Orange, a norte do rio deste nome, todos os possíveis para dilatar os domínios glo-boer tivera lugar em 1881, na sequência da
e a República do Transvaal, entre o Vaal e de Vossa Majestade.» Rodhes sonhava com recusa dos delegados do Transvaal em aceitar
o Limpopo. Estes estados independentes, uma África Sul-Oriental integralmente bri- uma federação com os ingleses. Uma pequena
governados por brancos de língua africânder, tânica e com uma linha férrea que ligasse o força britânica foi derrotada e o governo de
reduziam nativos à escravatura. Cabo ao Cairo. Londres, na altura chefiado por Gladstone e
Entre 1877 e 1879, os ingleses do Cabo lan- Para o conseguir seria, porém, necessário pouco inclinado a guerras coloniais, resolveu
çaram-se à conquista do reino Zulu, uma impedir Portugal de unir por terra as pos- reconhecer a independência do Transvaal,
monarquia africana de características milita- sessões de Angola e Moçambique – o célebre embora uma cláusula garantisse o controlo
res que combateu rijamente mas acabou por «Mapa
Mapa Cor-de-Rosa».
Cor de Rosa . O governo luso enviou
e britânico da política exterior do estado boer.
ter de se vergar perante as vagas de reforços expedições científicas a esses território
territórios (Ca- Em 1883 ascendeu à presidência do Transvaal
enviadas por Londres. pelo, Ivens, Serpa Pinto, etc.) e fez publicar
publi os Paul Kruger, que se tornaria uma das bêtes noi-
resultados das viagens, mas a Grã-Bre
Grã-Bretanha res da política colonial e externa de Londres.
Rhodes e Portugal
A norte das repúblicas bóeres, a penetração
britânica fora obra de Cecil Rhodes. Filho de
um clérigo, Rhodes partira em jovem para a
África do Sul para se curar de uma doença Os zulus combateram
pulmonar e fizera fortuna na exploração dos
recém-descobertos diamantes de Kimberley,
rijamente, mas acabaram
fundando a companhia De Beers. Em 1890 por ter de se vergar
tornou-se primeiro-ministro da Colónia do
Cabo e sugeriu a criação de uma «federação
às sucessivas vagas
imperial» com as repúblicas bóeres. Um dia, de reforços britânicos
VISÃO H I S T Ó R I A 43
RACISMO // ÁFRICA DO SUL

Mas o que veio a alterar por completo


o relativo entendimento anglo-boer foi a
descoberta no Witwatersrand, em 1886, da
mais importante mina do ouro do mundo.
Seguiu-se, como é natural, uma intensa cor-
rente de emigração para a zona, sobretudo de
britânicos. Estes uitlanders («estrangeiros»
em africânder) depressa ultrapassaram em
número os próprios bóeres, o que, se por um
lado ameaçava a sua hegemonia, por outro fez
crescer a coleta de impostos, o que permitiu
ao governo de Kruger comprar armas. Mas
os boeres continuavam a excluir os uitlanders
da vida política.
Para Rhodes, esta situação era inadmissível
– tanto mais que possuía interesses nas minas
do Rand. Garantido o apoio dos uitlanders,
preparou secretamente uma operação contra
o Transvaal, cuja direção entregou a um ho-
mem da sua confiança, chamado Jameson.
Nesta iniciativa, conhecida por «raide de Ja-
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meson», uma força britânica devia invadir o


Transvaal em coordenação com um golpe de
estado desencadeado no interior da república
bóer, mas esse golpe não eclodiu e a força
foi rechaçada nos primeiros dias de 1896. o Transvaal ao porto de Lourenço Marques. A Guerra dos Bóeres
O Kaiser alemão Guilherme II dirigiu então Em seguida, a Inglaterra dirigiu a Kruger A Guerra dos Bóeres de 1899-1902 ficou so-
a Kruger um telegrama de felicitações por um ultimato intimando-o a conceder direi- bretudo na memória coletiva por ter prin-
ter conseguido restabelecer a ordem «sem tos políticos aos uitlanders. Foi então que o cipiado com uma sucessão de reveses britâ-
pedir a ajuda de potências amigas», deixan- Transvaal surpreendeu o mundo declarando nicos. Obrigado a empenhar-se a fundo, o
do subentendido que a principal «potência guerra à grande potência mundial da altura. Reino Unido colocou então em pé de guerra
amiga» dos bóeres era a Alemanha imperial. David desafiava Golias. um exército de 450 mil homens, mobilizado
O governo do Reino Unido protestou contra por todo o império. Só desta forma conse-
a ingerência germânica, mas Chamberlain guiu fazer a balança pender para o seu lado,
achou conveniente afastar temporariamen- conquistando Ladysmith em fevereiro de
te Rhodes da chefia do governo do Cabo e 1900 e Mafeking, Joanesburgo e Pretória
chegou a censurá-lo publicamente por ter em maio e junho.
tido a iniciativa de lançar o falhado «raide Apesar dos avanços ingleses, os bóeres,
de Jameson». Certa noite encontraram-se excelentes cavaleiros e a atiradores, conse-
num jantar e Rodhes comentou: «Ouvi dizer guiram, porém, resistir ainda durante qua-
que não gosta de mim.» Ao que o governante se dois anos. Combatiam em trajos civis e
retorquiu: «Não me lembro de ter dado a as suas imagens de marca eram os grandes
alguém o mínimo sinal que sustente o que chapéus de feltro e as fartas barbas. Todos os
diz, mas, já que fala disso, porque haveria indivíduos do sexo masculino eram mobiliza-
de gostar?» Os direitos dos dos, alinhando nas trincheiras adolescentes
Através de negociações com Portugal, a
Inglaterra conseguiu entretanto fazer estacar
imigrantes indianos e sexagenários. Do outro lado, os britânicos
continuaram a exibir os seus capacetes colo-
a importação de armas pelo Transvaal. Porque foram defendidos niais brancos, mas substuíram os tradicionais
as espingardas e as munições, compradas na
Holanda, na Alemanha a em França chega-
pelo jovem advogado fardamentos vermelhos pelo discreto caqui,
que permitia aos combatentes confundirem-
vam pela linha férrea que desde 1895 ligava Mohandas Gandhi -se com o terreno.

44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Guerra Anglo-Boer
de 1899-1902
Soldados britânicos
(à esquerda)
e três gerações
de combatentes bóeres
(ao lado)

interesses, essa maioria fundou, em 1912, o


Congresso Nacional Africano (ANC), o par-
tido político cujo expoente máximo viria a
ser, um dia, Nelson Mandela. Do lado dos
bóeres, enquanto alguns colaboravam com
a Grã-Bretanha, outros fundavam, em 1914,
o Partido Nacional e defendiam a criação
de uma república independente. Mais de
três quartos dos negros foram, entretanto,
concentrados nas zonas mais pobres do ter-
ritório, em estados dependentes designados

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bantustões, e eram tratados como seres in-
feriores. Os direitos dos imigrantes indianos
foram defendidos por um deles – o advogado
Mohandas Gandhi, que depois se celebrizaria
A dada altura os bóeres aumentaram a Kruger acabaria por ser forçado a render-se por outros motivos
frequência dos raides lançados atrás das li- à Inglaterra. O tratado de paz de Vereeniging, Em 1922, uma revolta dos trabalhadores
nhas inglesas, enveredando pela guerra de assinado em maio de 1902, foi, mesmo assim, afrikaaners do Witwatersrand foi duramente
guerrilha. Foram eles que criaram o conceito generoso para com os bóeres, que se declara- reprimida, o que deu azo a que os nacio-
de unidades de comandos e que se lembraram ram súbditos de Eduardo VII mas puderam nalistas brancos vencessem as eleições de
de colocar sacos de terra nos parapeitos das conservar o uso oficial do africânder e obti- 1924. Em 1931, a União Sul-Africana tor-
trincheiras. veram uma indemnização para reconstruir nou-se independente do Reino Unido, com
Para inverter a sorte das armas, um novo as herdades danificadas pela guerra. a promulgação do Estatuto de Westminster.
comandante britânico, Lorde Kitchener, deci- Por essa altura, antropólogos e linguistas
diu criar campos de concentração destinados União Sul-Africana brancos locais forjaram um conceito social
a internar a população civil, impedindo-a Esforçando-se por reconciliar bóeres e uitlan- e político que daria origem à ideologia do
de colaborar com as ações de guerrilha e de ders, a Inglaterra criou, em 1903, uma união apartheid: rejeitando a ideia de uma socie-
comandos. Estes recintos eram delimitados aduaneira dos territórios da atual África do dade sul-africana única, propunham separar
por arame farpado, um material que fez assim Sul. A união política veio a seguir: uma con- geográfica, politicamente e economicamente
a sua entrada na história militar. Durante a II venção nacional reuniu-se em 1908 e dela os negros e os brancos a pretexto de manter e
Guerra Mundial, a propaganda da Alemanha saiu um projeto de constituição que selava a reforçar as identidades e combater os efeitos
nazi não se cansaria de atribuir aos ingleses a federação do Cabo, do Natal, do Transvaal e aculturadores da urbanização nas estruturas
invenção dos campos de concentração. de Orange e na União Sul-Africana. O par- tradicionais.
Contando com uma mediação das potên- lamento de Londres aprovou. Curiosamente, O Partido Nacional chegou ao poder em
cias, Kruger fez uma digressão por algumas seria um boer, o general Botha, o primeiro 1948 e reforçou a segregação. Sob a lide-
capitais europeias, mas não conseguiu ob- chefe do governo do novo domínio de Sua rança do pastor protestante Daniel Malan,
ter qualquer acordo diplomático. Em 1901 e Majestade. começava o regime do apartheid, assente no
1902, uns 350 refugiados bóeres viveram nas Mas quem habitava ali? Britishers e ódio entre a minoria supremacista branca e
Caldas da Rainha e a população portuguesa afrikaaners, mas sobretudo a população au- a maioria negra humilhada. A África do Sul
em geral, ainda traumatizada pelo ultimato tóctone, cinco vezes mais numerosa do que teria durante 46 anos, até 1994, um dos regi-
inglês, apoiava a sua causa. a de origem europeia. Para defender os seus mes políticos mais aberrantes do mundo.

VISÃO H I S T Ó R I A 45
RACISMO // ÁFRICA DO SUL

HULTON DEUTSCH/GETTY IMAGES


O regime
do ‘apartheid’
Durante 46 anos, entre 1948 e 1994,
as várias comunidades sul-africanas tiveram
Malan, pouca ou nenhuma ênfase dava
«desenvolvimentos separados» ao fator raça, tendo antes por principais
por António Mateus vetores o estabelecimento de um Estado

P
independente sobre o qual os afrikaners
ara compreender o que se tornaria de trabalho simultaneamente produtiva e tivessem total controlo e o fim da sujeição
um sistema repudiado à escala global, consumidora. aos britânicos. Em termos sucintos, o mo-
como «crime contra a humanidade», É neste contexto que germina o sistema delo preconizado pelos nacionalistas visava
é incontornável remeter-nos não só de apartheid. Em 1939, oito anos após a pôr fim ao estatuto de cidadãos de segunda
às circunstâncias da era em que ger- independência do país, ressentidos com a imposto aos afrikaners e à consequente
minou como às de quem o concebeu, opressão pelos britânicos, parte dos afrika- marginalização destes dos centros de deci-
promoveu, defendeu e só após quatro déca- ners, liderados por Daniel Malan, rejeitaram são económica e política.
das de atrocidades e pressões internacionais o apoio a Londres na II Guerra Mundial No programa eleitoral de 1948, em que
aceitou desmantelar. levando o Partido Nacional a abandonar surge pela primeira vez afirmado o objetivo
A herança colonial britânica na África a coligação com o Partido da África do Sul de criação de um sistema de apartheid, este
do Sul deixava atrás de si um sistema de (pró-Reino Unido). visa criar espaços de poder aos afrikaners,
exploração capitalista desvalorizador da A vitória eleitoral do Partido Nacional, em erradicar a pobreza em que muitos deles
identidade cultural, tradições e sentido de 1948, decorreria da evidência de o modelo viviam desde o fim das guerras anglo-bóe-
unidade das diferentes nações indígenas e de Milner esbarrar no facto de grupos étni- res e desmantelar os efeitos da hegemonia
dos afrikaners. O modelo aplicado e legado cos e culturais distintos não percorrerem em britânica que mais preocupavam os na-
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por Alfred Milner, que fora governador da simultâneo e de forma pacífica as diferentes cionalistas. Nomeadamente o domínio do
colónia do Cabo e alto-comissário para a fases de transformação uniformizadora, de- inglês sobre o africânder, o incentivo à imi-
África Austral, visava um único estado-mo- correntes de urbanização, industrialização, gração britânica para contrariar a maioria
derno, desenhado para servir o capitalismo burocratização, democratização, mediati- afrikaner entre a comunidade branca, mas
das minas e assente numa uniformização zação, educação em massa e secularização. também as escolas missionárias dedicadas
acelerada dos modos de vida das diferen- Na sua génese, o sistema de apartheid, a formar a juventude negra nos princípios
tes culturas, a fim de garantir uma força preconizado pelo líder nacionalista Daniel de capitalismo anglo-saxónico.

46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Massacre de Sharpeville
Em 21 de março de 1960,
69 manifestantes foram atingidos
mortalmente por polícias.
Na página ao lado, área para brancos
numa praia da Cidade do Cabo

Este registo, formalizado em documento emi-


tido pelo Office for Race Classification, era
determinante para os direitos sociais e políti-
cos, oportunidades educativas. estatuto eco-
nómico e acessibilidades de cada indivíduo.
O segundo pilar envolveu a proibição da
interação social transracial, como casamentos
entre pessoas de raças diferentes (Mixed Mar-
riages Act) e o uso separado de infraestruturas
e serviços públicos (Separate Amenities Act),
aqui entre brancos (identificados como «eu-
ropeus») e todos os outros («não-europeus»).
Tratava-se de medidas de inspiração calvi-
nista de uma classe média preocupada com
a perda de identidade da cultura afrikaner

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e os padrões de «moralidade» em voga nos
subúrbios pobres de cidades culturalmente
mistas; afinal, os mais desfavorecidos precisa-
vam de ser não só resgatados do capitalismo
Pilares de um sistema Como «compensação» por esta coleta fis- anglo-saxónico, mas também da incapacida-
É na concretização destes objetivos que se cal extra, o Estado facilitava a exploração de de se autopoliciarem.
começam a erguer os primeiros pilares do dos trabalhadores não-brancos, em suporte Decorrente desta preocupação, e como
que se tornaria o sistema de segregação racial de lucros, mantendo-se assim inalterado o terceiro pilar, foram criadas escolas de edu-
legislada mais notório e condenado à escala capitalismo racial promovido por Milner no cação cristã, para incutir nos jovens afrika-
global. O primeiro deles foi a definição legal relançamento da economia após as guerras ners sentido de afirmação, disciplina, ética
de grupos populacionais, visando a respetiva anglo-bóeres. puritana de trabalho e, ao mesmo tempo,
separação territorial, de forma a que cada um O primeiro desses pilares foi formalizado criadas oportunidades de emprego para os
pudesse manter o respectivo modus vivendi, dois anos após a vitória nacionalista, com respetivos pais, tudo sob enquadramento
tradições e valores, sem a interferência ou a promulgação da chamada Lei de Registo calvinista pela Igreja Reformista Holandesa.
submissão aos de uma qualquer maioria. Populacional (Population Registation Act), ao O quarto pilar foi um ordenamento urbano
Num segundo eixo, a introdução de um abrigo da qual todos os residentes na África territorial, altamente planeado e apoiado
programa de ação afirmativa em benefício do Sul eram «catalogados» e divididos em em legislação própria (Group Areas Act),
de afrikaners, financiado através de impostos três grandes grupos: brancos, negros e mes- alicerçado, no seu arranque, na demolição de
extraordinários sobre empresas e negócios de tiços (os indianos foram mais tarde classifi- subúrbios pobres e de construções ilegais, ao
domínio ango-saxónico, que se opunham ao cados num grupo adicional por serem vistos mesmo tempo que se apertava o controlo da
intervencionismo estatal dos nacionalistas. como não tendo «direito histórico ao país»). imigração, antes estimulada pelos britânicos
para angariação de mão-de-obra barata.
Cada grupo racial deveria residir em áreas
Centenas de milhares prédeterminadas do território nacional, dis-

de não brancos foram tando entre si, no seu perímetro externo, pelo
menos 12 quilómetros e serem idealmente
deslocados para townships separados por um «cordão de saneamento»,

como Orlando, no Soweto, sob a forma de barreira física (curso de água,


escarpas ou outro elemento dificultador de
arrabalde de Joanesburgo mobilidade).

VISÃO H I S T Ó R I A 47
RACISMO // ÁFRICA DO SUL

Vidas contrastantes Um passe de porte obrigatório


pelos negros; o bairro de lata de Sophiatown em 1954
(demolido no ano seguinte, com transferência dos
habitantes para townships); e um passeio de mulheres
e crianças de brancas pelo parque, Joanesburgo, 1960

Sendo que todas as localidades «de ci- separadas entre si), onde foi atribuído a Escalada da repressão
mento» passaram a ser «áreas brancas», a cada família um pequeno talhão de terra A subida do pacifista zulu Albert Luthuli
permanência de cidadãos de outras raças e materiais necessários à construção de (Prémio Nobel da Paz de 1961) à presidência
dependia de ali terem emprego formal ou habitação básica. do Congresso Nacional Africano (ANC),
habitação em dependência do emprega- A deslocação forçada de centenas de milha- em 1952, marcou a postura inicial de re-
dor, formalmente registada como tal em res de não-bancos tanto para as townships, sistência passiva deste movimento, a que
passe de porte diário obrigatório. Todos os primeiro, como depois para bantustões («es- respondeu o então ministro dos Assuntos
outros, incluindo os residentes em bairros tados» com grau relativo de autodetermina- Nativos, Hendrik Verwoerd (estratega e
demolidos, foram removidos à força para as ção, criados em zonas pobres do território propagandista do Partido Nacional e fu-
chamadas townships (localidades-satélites nacional), a par da exclusão daqueles dos turo primeiro-ministro) com medidas de
das cidades «brancas» para alojamento centros de decisão política nacional, provocou repressão de crescente dureza e imposição
de pessoas de outras raças, também estas uma escalada de resistência dos afetados. da supremacia afrikaner.

Leis restritivas
¶ O apartheid, implemen- de brancos, que eram as comerciais nos bantustões de negros foram presos, de cada vez. Não existia
tado em 1948, quando o melhores do ponto de vista ou nos chamados muitos deles sem direito a recurso.
Partido Nacional chegou ao urbano, industrial e agrícola. «municípios negros», julgamento e privados de
poder, era regulado por um que eram guetos raciais contactos com advogados, ¶ Os negros maiores de
conjunto 317 leis restritivas, ¶ A exceção a esta última que serviam de reservas parentes ou amigos, e 16 anos tinham de levar
que limitavam os direitos disposição eram os de mão-de-obra para os outros milhares perderam a sempre consigo o passe,
com fundamento na «raça». jardineiros e as empregadas empregadores brancos. vida em protestos políticos, documento parecido com
domésticas, mas os maridos muitos dos quais abatidos a um passaporte mas mais
¶ Os direitos civis ficavam destas podiam ser presos se ¶ Várias leis proibiam os tiro por polícias ou militares. grosso, onde figuravam a
restritos a menos de fossem apanhados no local. negros de ter atividade foto, as impressões digitais,
5 milhões de brancos política e de exercer os ¶ As leis permitiam os pormenores pessoais
e eram negados a mais ¶ A Lei sobre Bantustões seus direitos democráticos ao governo deter relativos ao emprego, a
de 25 milhões de negros. relegava os negros para (podiam exercer o voto de indefinidamente um autorização para estar em
zonas marginais na forma limitada e regional cidadão sem julgamento determinada zona do país, a
¶ A Lei de Zonas para periferia da África do Sul nos bantustões, ou e exilar ou banir os qualificação para trabalhar
Grupos determinava onde industrializada, o que os «territórios pátrios»). «dissidentes». O exílio ou procurar trabalho no
deviam viver as pessoas, privava eficazmente da (banishment) consistia no local, e as informações
consoante a «raça» a que cidadania e permitia ao ¶ Os negros que infligissem desterro num local remoto dos empregadores acerca
pertenciam. governo branco alhear-se as normas legais incorriam do país e o banimento do desempenho e da
do seu desenvolvimento em prisão, tendo morrido (banning) a proibição conduta do detentor do
¶ Os negros não podiam económico e social. centenas na cadeia, de de viajar, escrever, falar passe.
possuir propriedades, nem morte violenta. em público ser citado na
alugá-las sem autorização ¶ Os negros só podiam imprensa ou conversar ¶ Esquecer-se do passe,
estatal, em zonas exclusivas possuir empresas ¶ Dezenas de milhares com mais de uma pessoa perdê-lo ou deixá-lo ser

48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ERNEST COLE/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO.PT

Com a mesma linha de pensamento mas trabalho) e, ainda, do ensino do africânder África do Sul, cruzando-se com as ramifica-
posição oposta no espectro racial, um grupo e da aprendizagem de disciplinas nucleares ções da Guerra Fria no continente africano.
de radicais liderados por Robert Sobukwe através desta língua, como mais um gesto de O massacre de Sharpeville marcaria tam-
divergiu do ANC (defensor do multirracia- afirmação da cultura afrikaner. Ao protesto, bém a ascensão de Nelson Mandela, a figura
lismo) para fundar, em 1959, o Congresso formado de início, na sua larga maioria, por de primeira linha da resistência ao apartheid,
Pan-Africano (PAC), promotor do naciona- jovens, aderiram milhares de residentes na- como principal promotor do recurso à luta
lismo negro e da exclusão de todas as outras quela localidade, que cercaram a esquadra. armada, após ter sido ele próprio preso, por
etnias e nacionalidades. Foi o PAC que lançou, No rescaldo, 69 manifestantes tinham morri- diversas vezes, durante ações de protesto
a 21 de março de 1960, uma marcha sobre a do, muitos deles atingidos a tiro pelas costas. pacíficas.
esquadra da township de Sharpeville, contra Estavam marcadas as linhas da imposição
* António Mateus foi correspondente da agência
a obrigatoriedade do porte de passes (iden- do apartheid e da respetiva resistência, cujo Lusa na África do Sul e é autor de dois livro sobre
tificativos da raça, local de residência e de braço-de-ferro extravasaria as fronteiras da Nelson Mandela

roubado implicava prisão, ¶ As praias, piscinas e biblio- outros para negros; os ¶ O parlamento sul-africano ¶ Os partidos de oposição
pena em que por estes tecas públicas eram sujeitas comboios para negros só era composto por três capazes de desafiar
motivos incorriam cerca de a segregação, sendo as me- tinham carruagens de 3ª câmaras. A Assembleia efetivamente o Partido
250 mil negros por ano. lhores para brancos e raras classe. tinha 178 deputados Nacional (como o ANC e
as destinadas a negros. brancos, 166 dos quais o Congresso PanAfricano)
¶ O casamento entre «raças» ¶ Os bancos dos jardins eleitos pelos eleitores eram proibidos por lei.
diferentes era considerado ¶ Havia uns transportes públicos apresentavam o brancos e os restantes
um delito, tal como o sexo públicos para brancos e aviso «Só para europeus». nomeados. ¶ A unitária Frente Democráti-
ou a tentativa de sexo A Câmara dos ca Unida, que pretendia fazer
interrracial. Representantes era oposição dentro do quadro
composta por 85 membros legal, era constantemente
¶ O ensino era separado con- mestiços, eleitos por este perseguida, e os seus dirigen-
soante as «raças» e só 14% grupo étnico. Finalmente, a tes frequentemente detidos.
dos negros atingiam o nível Câmara dos Delegados era
secundário; a certa altura integrada por 45 membros ¶Para encobrir o facto
foram criadas universidades indianos, eleitos por esta de mais de 25 milhões de
GREY VILLET/GETTY IMAGES

exclusivas para os poucos ne- etnia. negros não terem direito de


gros que aspiravam a estudos voto, o governo classificou-os
superiores. ¶ O Colégio Eleitoral que como pertencentes a tribos
designava o Presidente da e decretou que as principais
¶ Na década de 1980 havia República era composto por destas fossem consideradas
um médico por cada 630 88 parlamentares «nações», com «territórios
brancos e um por cada 91 mil – 50 brancos, 25 mestiços nacionas» nos bantustões.
negros. Banco de jardim Só os brancos aqui se podiam sentar e 13 indianos. LAM

VISÃO H I S T Ó R I A 49
RACISMO // ÁFRICA DO SUL

Tempo de bonança
O Madiba (termo que designa
um homem idoso e respeitado,
recorrentemente aplicado
a Nelson Mandela) em 1994,
quando Presidente da África
do Sul, numa manifestação
pacífica para assinalar
o 34º aniversário do massacre
de Sharpeville

50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mandela, o ‘agitador
pôr-do-Sol se erguia para falar, resumindo o
que fora dito e procurar um consenso. Uma
postura ao mesmo tempo firme e sensível

dos ramos’
que Mandela encontra em Sisulu e na mulher
deste, Albertina, quando o acolhem em sua
casa e o exortam a prosseguir os estudos de
Direito. Sisulu, já então figura emergente no
O paladino da luta anti-apartheid renasceu como Congresso Nacional Africano (ANC), mobi-
liza-o para uma causa com a qual Mandela se
homem durante os anos de encarceramento
identifica de imediato. O mentor apresenta-o
na prisão de Robben Island a uma sua sobrinha, Evelyn Mase, com quem
por António Mateus o protegido celebra o seu primeiro de três

A
casamentos.
vida de Rolihlahla Mandela confun- teve a sua primeira experiência de segregação Estava-se em 1944, Mandela tem 26 anos
de-se com a história da implemen- racial, sete anos antes ainda da aplicação do e desempenha papel central na fundação da
tação, resistência e erradicação do apartheid no país. Negros e brancos usavam liga da juventude do ANC. A partir dali, seria
sistema de apartheid que vigorou chávenas de chá distintas. Sendo ele e outro pai, de dois em dois anos (por quatro vezes) de
na África do Sul desde os seus 30 escrivão, Gaur Radebe, os únicos funcioná- filhos com Evelyn; primeiro de Thembekile, a
anos de idade até, a dois meses de rios não brancos, houve que comprar nova 23 de fevereiro de 1945, e é por isso atribuída
completar os 76, ter sido eleito o primeiro chávena «para empregado negro». Criado à família uma casa em Orlando Oeste (bairro
Presidente não branco do país do ouro. numa bolha rural remota, Mandela nunca fora abarcado em 1963 pelo Soweto, megalocali-
Rolihlahla, «O que Agita os Ramos» na sua até ali exposto – de forma para ele perceptí- dade «negra» satélite de Joanesburgo). Aos
língua materna xhosa, seria rebatizado como vel – à discriminação racial. Ou dela tomado 33, três anos após o início da implementação
Nelson pela professora primária, Mdingane, consciência. do apartheid e de lhe nascer a primeira filha,
quando o menino negro, invulgarmente alto Mandela guardaria para o resto da vida a Makaziwe (que morreria aos nove meses), dois
para os seus 7 anos, entrou sala da escola figura de Jongintaba como exemplo de líder após a interdição do Partido Comunista e um
metodista de Wesley, no Transkey, com umas determinado em manter a unidade do seu de ser novamente pai, agora de Makgatho, é
calças do pai, cintadas com uma corda e apa- povo. Todos os tembos lhe eram fiéis, inde- eleito presidente da liga da juventude do ANC.
radas pela mãe ao nível dos joelhos. pendentemente do nível académico e eco- E esta, junto com o Congresso Indiano, orga-
Mandela tinha 23 anos quando chegou a nómico, não por concordarem sempre com nizam uma greve nacional contra todo o tipo
Joanesburgo em fuga de um casamento ar- ele, mas por ele escutar e respeitar sempre as de formas legisladas de discriminação racial.
ranjado por Jongintaba, regente dos tembos suas opiniões. Foi com ele que o irreverente Aos protestos, o Partido Nacional, no poder
(tribo de origem do futuro líder anti-apar- Mandela descobriu a arte de liderar escutando desde 1948, reage promulgando novas leis
theid), que o perfilhou após a morte de seu pai os outros, tornando-os parte da decisão final. que consolidam o sistema de apartheid e, ao
biológico, o régulo Gadla. Estava-se em 1941. Quando entendia, Jonjintaba convocava os ré- mesmo tempo, reforçam o poder discricio-
É ali que conhece Walter Sisulu, primeira gulos e todo o povo para o debate de questões nário de repressão dos opositores ao regime.
figura de uma agência imobiliária especiali- comuns. Todos podiam expor a sua opinião e É preso pela primeira vez em 1952, durante
zada em propriedades para negros. Na dé- sugestões sem serem interrompidos. Ninguém a «Campanha contra as Leis Injustas» e, com
cada de 40 ainda havia áreas na periferia de estava acima de crítica, nem o próprio regente, Sisulu e outros, é condenado (em pena sus-
Joanesburgo em que estes podiam comprar que a todos escutava sem intimidar. Só ao pensa) a nove meses de trabalhos forçados.
propriedades, como era o caso de Alexandra e No ano seguinte (1953) funda com Oliver
Sophiatown. E a empatia entre ambos é ime- Tambo, em Joanesburgo, o primeiro escritório
diata. Sabendo que Mandela estudara Direito de advogados negros na África do Sul. Começa
antes de migrar para Joanesburgo, disse-lhe
que costumava trabalhar na agência com um
Na cadeia é obrigado a revelar-se exímio na defesa em tribunal de
clientes desfavorecidos ou vítimas do esvazia-
a usar calções
WALTER DHLADHLA/GETTY IMAGES

advogado branco progressista, chamado Lazar mento de direitos dos não-brancos.


Sidelsky, pessoa interessada na educação dos
negros, a quem sondaria sobre a possibilidade
e sandálias e a dormir Encontro com Winnie
de o contratar como escrivão estagiário. no chão, gelado Mas enquanto se torna uma referência no

Segregação antes do ‘apartheid’


no inverno, apenas combate ao apartheid, Mandela revela-se um
homem irascível, egocêntrico e promíscuo,
Foi no escritório de Sidelsky que Mandela com uma manta traços que esgotam a paciência de Evelyn,

VISÃO H I S T Ó R I A 51
RACISMO // ÁFRICA DO SUL

convertida a Testemunha de Jeová desde o


falecimento da primeira filha, e acabam por

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levar à separação do casal. Mandela tem 39
anos, deslumbra-se com uma jovem negra que
vê numa paragem de autocarro. Chama-se
Nomzamo («A que tenta») Winifred Madiki-
zela (Winnie), tem 22 anos, é assistente social
e toma o coração do guerreiro anti-apartheid.
O homem elegante e eloquente convida-a
para almoçar.
O divórcio de Evelyn, até ali em suspenso,
por respeito à família Sisulu, é assim pre- De advogado a réu Aos 19 anos, pouco
antes de se matricular em Direito. Ao lado:
cipitado; a 18 de março de 1958 rompe em O carro celular que transportava os oito
definitivo com a enfermeira, mãe dos seus condenados do processo de 1964. Abaixo

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primeiros três filhos, e três meses depois (a desta: Inscrição pela libertação do líder
do ANC em Oxford, inglaterra, 1965
um de completar os 40 anos) casa-se com
Winnie – de quem teria duas filhas: Zenani
(1959) e Zinzi (1960).
Desta vez é na frente anti-apartheid que ficaram 69 mortos e mais de 180 feridos (mui- de estruturas securitárias, intra e extrafron-
surgem as divergências; a ala radical negra tos deles atingidos nas costas) por disparos teiras, de combate e repressão de ameaças
opõe-se ao multirracialismo advogado e pro- dos polícias. O PAC acusa «centenas de polí- potenciais e efetivas ao regime. Do outro,
movido pela liderança do ANC e os primeiros cias de terem disparado sem provocação ou Mandela convence o então presidente do
sinais de rotura ocorrem durante o julgamento ameaça direta sobre manifestantes pacíficos ANC a avalizar a luta armada e sai do país
(iniciado em 1956) de alegado envolvimento que entoavam canções tradicionais», quan- clandestinamente para receber treino de
comunista e desobediência civil onde são réus do, de facto, esquadras periféricas como a de guerrilha e angariar apoios para tal.
156 ativistas. Entre eles Mandela, que fora do Sharpeville não dispunham na altura de mais No regresso à África do Sul é preso e
tribunal é acusado pelos extremistas negros de dezena e meia de efetivos e era prática condenado (em outubro de 1962) a cinco
de envolvimento com ativistas brancos e in- corrente nas manifestações «africanistas» a anos de cadeia na ilha-prisão de Robben,
dianos em vez de se dedicar em exclusivo à ameaça de agressões físicas, em exigência da ao largo da Cidade do Cabo. Sentença cujo
causa «africanista». O jovem advogado, que expulsão de África dos não-negros. cumprimento seria interrompido para ser
até ali convergira aos poucos nessa postura, Fosse qual fosse o nível de provocação- novamente julgado, agora em processo onde
reage em rejeição de tal abordagem como ra- -ameaça e o rácio polícias-manifestantes, os acusados enfrentam a pena de morte.
cista de sinal contrário. E reafirma o princípio o massacre resultante fica para a história Antes de sair para o estrangeiro, Mandela
suprarracial do ANC, de elevação humana, como o mais grave atribuível ao regime de participara em reuniões preparatórias do
inclusividade e quebra do ciclo alternante de apartheid e o que provocou um endureci- lançamento do braço-armado do ANC, o
oprimido-opressor. mento de posições dos seus promotores e Umkhonto We Sizwe (A Lança da Nação),
A ala radical negra, antibranca, rompe com opositores, incluindo do até aí pacifista ANC. por ele liderado desde o seu arranque e que
o ANC e funda o Congresso Pan-Africanis- De um lado, Pretória declara o Estado de assinaria nas décadas seguintes uma série de
ta (PAC) liderado por Robert Sobukwe, que Emergência que abre caminho a uma série atentados à bomba, responsáveis por deze-
desafia a abordagem pacifista no combate nas de mortes (muitas delas de transeuntes
ao apartheid e lança, em separado daquele, civis) e a destruição de infraestruturas eco-
campanhas antipasse (o passe era um docu- nómicas e militares.
mento de porte obrigatório dos não-brancos, Uma rusga policial ao local de reuniões,
identificativo da respetiva «raça» e locais de numa quinta em Rivónia (periferia de Joa-
residência e de trabalho). Mandela e De Klerk nesburgo) surpreende alguns dos compa-
Num desses protestos autónomos do PAC,
uma multidão de milhares de manifestantes
seriam acusados nheiros de Mandela na posse de documenta-
ção que comprova o envolvimento do grupo
cerca, a 21 de março de 1960, a esquadra de de «traição» pelos no lançamento da luta armada. Do processo
Sharpeville, localidade satélite de Joanesbur-
go. A partir daí, o único facto convergente
extremos racistas resultante, oito dos réus são condenados a
prisão perpétua. Denis Goldberg, o único
entre as diferentes versões é que para trás dos respetivos «povos» branco, cumpre a sentença na cadeia de alta

52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Libertação
Com a sua
segunda mulher,
Winnie, logo após
a saída da prisão,
em 11 de fevereiro
de 1990

si a transformação que sonha para o mundo


antes de a esperar ou, muito menos, exigir aos
outros. Guarda os companheiros que fraque-
jam e exorta todos eles a estudar e obter qua-
lificações académicas por correspondência.
Usando a sua formação jurídica, oferece-se
para redigir em segredo apelos de punições
impostas a carcereiros.
O homem que sai finalmente da prisão, a 11
de fevereiro de 1990, a cinco meses de com-
pletar 72 anos, revela-se um ser humano pro-
fundamente transformado, tão determinado
GERARD JULIEN/GETTY IMAGES

em erradicar o apartheid como em conciliar


e construir pontes, sem as quais o país seria
reduzido a ruínas.
Até ser eleito o primeiro Presidente negro
da África do Sul, em 1994, percorreu um cami-
nho duro de negociações com o último Chefe
Com Frederik de Klerk Os dois antigos inimigos recebem o Prémio Nobel da Paz de 1993 de Estado branco sul-africano, Frederik de
Klerk, que o mandou libertar, com ambos a
segurança de Pretória. Os restantes sete na O homem novo serem acusados pelos extremos racistas, negro
ilha-prisão de Robben. Mas é ali que se transforma profundamente e branco, de terem traído os respetivos «povos».
O sistema prisional reflete, no limite, a como ser humano. Estuda a língua e a história Ao perguntar anos depois ao, como eles,
discriminação do sistema de apartheid. E os dos afrikaners e aprende como estes, décadas Prémio Nobel da Paz, Desmond Tutu, o que
detidos negros são aqueles em que é maior antes, tinham sido humilhados, discrimina- pensava de Mandela, seu amigo de longa data,
o esvaziamento de direitos e a subtração de dos e despojados pelos britânicos, como o ter sido na juventude adulta arrogante, into-
dignidade; Mandela é forçado a usar cal- fazem agora aos não-brancos. À prepotência lerante e egocêntrico, o arcebispo anglicano
ções e sandálias e a dormir no chão da cela e gestos de humilhação reage em dignidade respondeu-me com um sorriso: «Isso torna-o
(gelado no inverno), só com uma manta. firme, apenas mostrando sinais de dor e re- ainda mais especial! Redime-nos a todos! Faz-
Durante os primeiros anos de cadeia, ao volta quando, aos 50 anos, no intervalo de dez -nos acreditar que, se o escolhermos, podemos
contrário dos seus companheiros indianos meses, perde a mãe e o primeiro filho e lhe tornar-nos tão especiais como ele.» E justificou:
e mestiços, não tem direito a pão e apenas é recusado participar em ambos os funerais. «O que não conseguiria se já tivesse nascido
a uma ração ínfima de proteínas e açúcar. Mandela aprende que tem de começar em o homem em que se soube transformar.»

VISÃO H I S T Ó R I A 53
O GENOCÍDIO
DOS ABORÍGENES
Desde o início da ocupação britânica, os aborígenes da Austrália trilharam
um caminho de mais de 200 anos de matança, doença e terror. Hoje, continuam ativos
na luta pela sobrevivência de uma cultura milenar
por Francisco J.M. Garcia

S
ão muitos os eufemismos usados para primeiros confrontos armados. Os ataques a ma justa e coerente tem vindo a crescer com
evitar a palavra «genocídio» na his- aborígenes passaram a ser uma prática cor- iniciativas como a Uluru Statement From
tória australiana desde a ocupação rente e tenderam a tornar-se mais letais com the Heart, que procura conciliar a História
«branca». Verbos como «pacificar», o passar dos anos. Os colonos justificavam as nacional australiana com o processo de contar
«limpar», «purgar», «excluir» ou investidas acusando os povos locais de rouba- a verdade.
«exilar» conjugam-se para esconder rem gado e bens pessoais, de (re)ocuparem Mas uma questão mantém-se: estará a ra-
a realidade dos dois últimos séculos da história terras e, muitas vezes, de matarem brancos. zão para não se associar o caso aborígene a
do povo aborígene. A vantagem tecnológica da utilização de um genocídio centrada no medo do que está
Não há ainda um número oficial para a armas de fogo conferia aos atacantes brancos associado a este conceito, ou relacionar-se-á
contabilização de vítimas resultantes das um baixo, ou nulo, número de vítimas. com o ignorar de uma realidade atroz? À luz
atrocidades cometidas pelos colonos ingle- As forças britânicas estiveram ativamente do artigo 2 da Convenção Para a Prevenção
ses desde a sua chegada a Botany Bay, na ligadas aos massacres até aos finais da década e Repressão do Crime de Genocídio, de 9
atual cidade de Sydney, em 1788. De acordo de 20 do século passado, havendo registo da de dezembro de 1948, iniciativa das Nações
com um estudo conduzido pela universidade participação de civis nos massacres até 1926. Unidas, pode definir-se genocídio pelos atos:
australiana de Newcastle, a primeira matança Atualmente restam as mazelas emocionais «(…) cometidos com a intenção de destruir,
ocorreu em 1794. de um povo fortemente abatido pela ação no todo ou em parte, um grupo nacional,
Numa primeira fase, os massacres foram colonizadora ocidental na sua terra de ori- étnico, racial ou religioso (…)». Nesta ótica,
levados a cabo por soldados britânicos. À me- gem, passando a história deste negro período os ocupantes de origem europeia infringiram
dida que a presença europeia foi aumentando, de boca em boca. No entanto, o esforço em vários dos parâmetros previstos neste artigo,
passaram a ser conduzidos pela polícia, por reescrever a historiografia australiana de for- além dos que estão relacionados com vio-
grupos de civis e, em muitos casos, numa lência física e psicológica, nomeadamente o
onda conjunta de ódio, por membros dos dois de «transferência forçada de crianças de um
grupos. Mais tarde, os colonos europeus che- grupo para outro grupo».
garam a usar milícias especiais compostas A primeira matança Em muitas situações, como castigo do crime
por nativos para participar nas atrocidades
cometidas contra aborígenes.
de aborígenes de furto de gado, os europeus roubavam crian-
ças aborígenes e forçavam-nas a trabalhar nos
Embora, no momento de chegada à Austrá- ocorreu em 1794 campos, afastando-as e marginalizando-as da
lia, em 1788, as autoridades britânicas tives-
sem ordenado o estabelecimento de relações
e os ataques a tiro sua cultura e origens. Desta forma, entrava
também em curso um processo lento e de
pacíficas com os povos locais, os alicerces que foram recrudescendo longa duração de etnocídio, que privava as ge-
suportavam a dita «amizade» rapidamente
desabaram quando os colonos reclamaram as
até à década rações de aborígenes mais jovens de conhecer
e praticar os cultos religiosos, falar a língua
terras ocupadas por aborígenes e se deram os de 20 do século passado local e funcionar nas suas lógicas sociais.

54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Os 'verdadeiros'
australianos
Um adulto e uma criança
aborígenes, ambos com
bumerangues, a curiosa
arma tradicional dos
caçadores e guerreiros
nativos da ilha-continente

GETTY IMAGES
RACISMO // AUSTRÁLIA

Como em praticamente todas as economias


coloniais, também os aborígenes viviam num
verdadeiro clima de subjugação ao homem
branco em que mulheres eram violadas, os ho-
mens eram mortos e/ou torturados e em que
as atrocidades ocorriam de forma sistémica.
Tanto podia morrer uma pessoa, como duas,
como dezenas. O terror e a imprevisibilidade
eram elementos comuns e durante mais de
dois séculos o bem-estar e o destino da po-
pulação aborígene ficou à mercê da ocupação
europeia.

‘Terra Nullius’
GETTY IMAGES

Assim que chegaram às terras áridas da Aus-


trália e viram que eram ocupadas por um povo
seminómada que usava utensílios de pedra e
praticava uma economia de caça e recolha,
os colonos ingleses perceberam que tinham
uma grande vantagem sobre os aborígenes:
largo passo na restituição do estatuto e dos
direitos sobre a terra das populações nativas.
Charles Perkins,
a de construir uma máquina estatal capaz de Em 1803, os colonos brancos chegaram o ativista
subjugar e emanar poder para todos os cantos à ilha da Tasmânia, a sul da Austrália, e em Filho de pais «meio-sangue», Charles
do continente. 1806 já o mesmo cenário de matança ali se Perkins (à esquerda na foto) foi
Os aborígenes apresentavam um sistema re- repetia. Os nativos desenvolveram um gosto jogador de futebol, e nessa qualidade
apresentou ao parlamento da Austrália
ligioso complexo e uma rica expressão artística pelo gado europeu e os castigos que lhes eram
Meridional, com colegas de equipa
ligada às lendas e mitos populares. O incesto infligidos pelo seu roubo eram impiedosos, também descendentes de aborígenes,
era fortemente condenado, favorecendo-se um tanto física como mentalmente. uma petição que advogava os
sistema de união sanguínea entre indivíduos O cenário tendeu a piorar a partir de 1824, direitos de cidadania das populações
autóctones.
de diferentes famílias. O ritual de união tinha quando os colonos foram autorizados a disparar Em 1964 criou a Fundação para os
uma componente mágica. Mas a inexistência de sobre aborígenes, e agravou-se em 1828, através Assuntos Aborígenes, de que foi
uma organização política formal – que na ótica de uma lei marcial que permitia que soldados diretor, e em 1966 tornou-se um dos
ocidental requeria a existência de um Estado e e civis pudessem abrir fogo e prender qualquer primeiros aborígenes a concluir um
curso superior. Mais tarde pertenceu
respetivos órgãos de poder e um sistema judicial aborígene em solo ocupado por britânicos. à Tent Embassy, que defendia os
e executivo – deixou a sociedade aborígene Entre 1824 e 1908, a Austrália tornou-se direitos políticos dos aborígenes. Em
numa posição muito vulnerável. um território predominantemente «bran- 1984 tornou-se o primeiro aborígene a
A agravar, os britânicos invocaram a doutri- co», tendo sido registadas aproximadamente ocupar um cargo estatal: o de ministro
dos Assuntos Aborígenes.
na da Terra Nullius, a «Terra de Ninguém», 10 mil mortes violentas de aborígenes. Este
argumentando que o território da Austrália sangue manchou as mãos dos colonizadores
pertencia apenas à fauna e à flora. Esta teoria que mataram os nativos como se se tratasse
foi reforçada falaciosamente tendo por base de um desporto de caça.
o conceito de John Locke sobre o direito à
propriedade e o seu trabalho. O argumento Assimilação forçada
inglês focava-se na falta de práticas agrícolas Há ainda uma faceta do genocídio aborígene
dos aborígenes, ficando-lhes assim vedado que não deve ser esquecida: a assimilação
o direito a um território que ocupavam há forçada. Enquanto as matanças eram mais co-
milénios. É irónico verificar que o estatuto muns nos estados da Tasmânia, Queensland,
de Terra Nullius só terminou em 1992, após Austrália Ocidental e no Território do Norte,
a Justiça australiana ter decidido a favor de em Victoria e Nova Gales do Sul praticava-
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Eddie Mabo, um defensor e ativista dos di- -se a marginalização dos «meio-sangue», os
reitos dos aborígenes, no caso «Mabo versus indivíduos que resultavam da relação entre
Estado de Queensland», que representou um colonos e aborígenes.

56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Aborígenes
Um acampamento
de povos nativos da Nova
Gales do Sul fotografado
por volta de 1880 (página
oposta) e a primeira
manifestação pacífica
pelos direitos civis destes
povos, em 1938,
no Dia do Luto, jornada
que assinalou
os 150 anos da chegada
dos europeus (ao lado)

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Em 1886, a lei designada Aborigenes Pro- sarampo e as doenças venéreas começaram varíola remontam a abril de 1789, pouco após
tection Act pretendia na teoria proteger e a disseminar-se entre os aborígenes. a chegada dos primeiros colonos. O segundo
gerir melhor as relações com os aborígenes, O efeito foi devastador, particularmente da ocorreu entre 1829 e 1831 e a sua origem per-
mas na realidade levou a que o processo de varíola. O historiador Noel Butlin levantou a manece desconhecida. O terceiro (1865-69)
assimilação forçada arrancasse a todo o vapor. hipótese de ter havido algum planeamento na terá sido levado por pescadores malaios.
A lei previa que o apoio à integração chegaria introdução de doenças no contexto colonial Mas o debate permanece em aberto. De um
apenas aos «sangue puro» e aos «meio-san- australiano. Para alicerçar a sua teoria, evo- lado estão os que tendem a suavizar a história
gue» com mais de 34 anos. Isto significava cou os casos de propagação de doenças nas do colonialismo; do outro, os que recorrem
que os que se encontravam noutros grupos populações ameríndias da América do Norte a uma dose factual de realismo. É complexo
seriam expulsos das suas missões ou reservas, e do Sul. David Stannard, outro historiador, determinar em que grau as doenças fizeram
independentemente do estado civil ou grau contra-argumenta afirmando que a causa da parte do processo de genocídio aborígene e se
de parentesco com os colonos. propagação de doenças infeciosas pode estar foram usadas como arma pelos colonizadores.
A assimilação forçada implicava também mais relacionada com o facto de a medicina O genocídio aborígene não resultou de um
tirar as crianças aborígenes dos seus meios ocidental da época desconhecer que o contágio só fator, mas de um conjunto de elementos
familiares e entregá-las a uma família branca, se faz através de micróbios. negativos que recaíram sobre os povos nativos
ou serem levadas para as casas de assimilação Os primeiros registos de um grande surto de da Austrália ao longo de mais de 200 anos.
para receberem uma educação de acordo com
os padrões britânicos. Viagem pela Liberdade
No início do século XX a mentalidade co- Cartoon alusivo a uma
iniciativa de Charles
lonialista, aliada às teorias do darwinismo Perkins (ver caixa), levada
social, levaram a sociedade australiana a crer a cabo em 1965, que
que tinha uma missão civilizadora para com consistiu numa excursão
os aborígenes e com os cada vez mais nume- de autocarro destinada
a dar a conhecer a 30
rosos «meio-sangue». Acreditavam que caso estudantes universitários
não lhes dessem uma educação «branca», os as condições de saúde,
«meio-sangue» acabariam por enveredar por habitação e educação em
que viviam os aborígenes
uma vida de crime e prostituição.
da Nova Gales do Sul

Doenças do colonizador
Outro fator a ter em conta no genocídio abo-
rígene são as doenças. Foi através do contacto
com europeus que a varíola, a febre tifoide,
a tosse convulsa, a gripe, a pneumonia, o

VISÃO H I S T Ó R I A 57
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Arianos e judeus Hitler fotografado em 1934 com um filiado na Juventude Hitleriana, «fábrica» do futuro
«super-homem». Na página ao lado: Um elemento das SS executa judeus com tiros na nuca, à beira de uma
vala comum para onde tombam os corpos

O MITO NAZI
DA 'PUREZA RACIAL'
O regime hitleriano na Alemanha ficou para a história como o mais genocida
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de todos e um exemplo das consequências extremas a que o racismo pode conduzir


por Ricardo Silva

VISÃO H I S T Ó R I A 59
RACISMO // NAZISMO

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Humilhação Um homem é obrigado a exibir publicamente ao pescoço um cartaz onde se lê
«Sou judeu, mas não me queixo dos nazis»

O
jovem império alemão nascido em DAP), mais conhecido por Partido Nazi, e con-
1870 parecia destinado a liderar a tava com milhares de apoiantes incondicionais.
Europa, mas a Alemanha que se Confiante na eficácia da sua demagogia,
seguiu à derrota na I Guerra Mun- Hitler procurou emular os fascistas italianos,
dial era uma nação destroçada e um adotando uma atitude combativa. Primeiro
palco ideal para partidos populistas foi criada a Sturmabteilung, uma milícia pa-
e para agitadores como Hitler. Este usava ramilitar que seria utilizada para combater as
o talento oratório para inspirar uma cres- organizações marxistas e colocar em prática
cente legião de seguidores e uma ambição atos de violência antissemita; seguiu-se uma
implacável para derrotar adversários. A sua tentativa de replicar a Marcha sobre Roma
mensagem era simples: por um lado, im- que permitira a Mussolini assumir o governo
putava aos judeus a culpa pela derrota; por em Itália. A 8 de novembro de 1923, Hitler
outro, apresentava os arianos como a «raça» e os seus correligionários da Sturmabteilung
destinada a liderar os destinos do mundo. tentaram tomar a cidade de Munique, na ex-
A «raça» era o elemento fulcral da ideolo- pectativa de que a revolta alastrasse ao resto
gia nazi, e o ódio a fonte de energia que iria da Alemanha e conduzisse os nazis ao poder,
levar o seu partido ao poder total. O jovem Nos seus discursos, mas o «Putsch de Munique» falhou rotunda-
austríaco que falhara como pintor acabou por
se revelar exímio como revolucionário e um
Hitler imputava aos mente e acabou por conduzir Hitler à prisão.

demagogo inato. Em 1919 era o militante n judeus a culpa pela Um manual de ódio
.º 55 de um pequeno partido regional; dois
anos mais tarde liderava o Partido Nacional-
derrota da Alemanha Por ironia do destino, o tempo passado na
prisão de Landsberg foi um momento deci-
-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NS- na I Guerra Mundial sivo para a afirmação do nazismo. Terminada

60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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a época dos constantes manejos revolucio-
As Leis de Nuremberga
A caminho da morte
Judeus são enviados
nários, Hitler tinha agora a tranquilidade
para os campos de
necessária para dar forma escrita à ideologia extermínio, depois de
Após assumir o controlo total dos poderes executivo
que pregara nos seus discursos. Dedicou- e legislativo, o regime nazi moldou o poder judicial
esmagada pelas forças
à medida da sua visão de Estado Volkish. A 15 de
-se então a escrever o seu livro Mein Kampf nazis a revolta no gueto
setembro de 1935, o Reichstag aprovou duas leis
de Varsóvia, em 1943
(A minha luta) e não hesitou em assumir que passariam para a história como as Leis de
que o grande problema da Alemanha de en- Nuremberga e constituiriam o instrumento legal
utilizado para a perseguição dos judeus no III Reich.
tão era que «quase não há resistência contra
A primeira era a Lei de Cidadania do Reich, que definia
essa epidemia de judeus» que via infiltrados como condição para a cidadania possuir «sangue ou
no governo, na finança e na imprensa. Uma ascendência alemã» e utilizava a genealogia como
comunidade que acusava de se esconder atrás instrumento para determinar o «sangue» de cada
indivíduo. Quem tivesse três ou mais avós pertencentes
de uma religião para ocultar a sua verdadeira à comunidade judaica era classificado judeu, e como tal
natureza: «A sua existência começa pela úni- impossibilitado de ser cidadão de pleno direito. A lei tinha
ca e grande mentira de tentarem demonstrar efeitos retroativos e também se aplicava a negros e a
ao mundo que representam uma comunidade ciganos, o que fez de uma assentada centenas de milhares
de alemães serem destituídos da sua cidadania
religiosa, quando, na realidade, são uma raça e reclassificados «sujeitos do Estado».
– e que raça!» A segunda, intitulada Lei de Proteção do Sangue e da
Para Hitler, os judeus eram a raça que Honra, proibia o casamento entre judeus e não-judeus.
tinha envenenado a sociedade alemã com a A lei também incluía a proibição de judeus contratarem
empregadas alemãs com menos de 45 anos e criminalizava
decadência moral, os promotores da derrota as relações sexuais entre «cidadãos arianos» e «sujeitos»
na Grande Guerra e os responsáveis pela judeus, sob o argumento de serem Rassenschanden,
miséria da Grande Depressão. Via neles a «poluidoras da raça», e originarem Mischlinge, alemães de
raça mista cuja mera existência era abominada por Hitler.
doença que impedia o ressurgimento da

VISÃO H I S T Ó R I A 61
RACISMO // NAZISMO

Esquadrão da morte em ação Membros das SS executam judeus na Ucrânia, em 1942

nação, considerando ser «possível uma cura


desde que se corte decididamente o mal
pela raiz».
Mas o antissemitismo era apenas uma face
do racismo nazi. Hitler também promoveu vá-
rias teorias sobre uma suposta superioridade
racial ariana, indo ao ponto de afirmar que
«tudo o que temos hoje de civilização humana,
de produtos de arte, da ciência e da técnica,
é quase exclusivamente fruto da atividade
criadora dos arianos». Não terá sido por lapso
que omitiu o contributo dado por latinos para
o desenvolvimento da engenharia e do direito
durante o Império Romano, a filosofia legada
pelos gregos antigos, os avanços dos árabes
em áreas como a álgebra e a medicina, ou as
grandes invenções chinesas como a pólvora,
o papel e a bússola, sabendo perfeitamente
que durante todo este tempo os arianos vi-
viam confinados nas florestas da Germânia e
resignados a uma existência primitiva.
No Mein Kampf também é feita a glorifi-
cação de uma alegada pureza racial ariana
e criticada a miscigenação que conduziria
ao rebaixamento das restantes raças. Como
exemplo desta linha de pensamento, Hitler A saudação do 'Führer' Adolf Hitler numa foto de 1934

62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Racismo 'científico'
Antropólogos
da Universidade
de Kiel medem
as cabeças
de crianças,
procurando bases
para sustentar
a teoria de uma
pretensa «ciência
ariana»
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refere-se ao comportamento de portugue- Apesar de fundamental, a pertença à ale- histórico que mitificava: «Povos arianos –
ses e espanhóis, notando que «a América gada raça ariana não era a única condição muitas vezes em número verdadeiramente
do Norte, cuja população se compõe na sua necessária para uma plena cidadania. Seguin- ridículo – submetem povos estrangeiros e,
enorme maioria de elementos germânicos do uma visão misógina para o futuro Estado solicitados pelas condições de vida que o novo
só em pequena escala misturados com povos Volkisch, Hitler também considerava que «a meio lhes apresenta (fertilidade, natureza do
de cor, apresenta outra humanidade e outra jovem alemã é ‘sujeito do Estado’ e, em princí- clima, etc.) ou aproveitando a abundância de
civilização que as Américas Central e do Sul, pio, só depois do casamento se torna cidadã». mão-de-obra fornecida por homens de raça
onde os imigrados, principalmente de ori- Até porque «a missão do Estado Volkisch não inferior, desenvolvem então faculdades inte-
gem latina, se misturaram fortemente com é propriamente educar uma colónia de estetas lectuais e organizativas latentes. Em poucos
os autóctones. Este único exemplo permite pacifistas ou de degenerados físicos. A ima- milénios, ou até em alguns séculos, erguem
já reconhecer claramente o efeito produzido gem ideal da humanidade não tomou como civilizações.» Era esta a base do pensamento
pela mistura de raças». modelos o respeitável pequeno-burguês ou a que daria lugar ao Lebensraum, a teoria do
solteirona virtuosa, mas homens de energia espaço vital, assente na anexação de terri-
O Estado ‘Volkisch’ viril e mulheres capazes de porem no mundo tórios no Leste da Europa com o objetivo
Esta visão, com que Hitler idealiza o futuro homens verdadeiros». de criar colónias de arianos que deveriam
da Alemanha, acaba por servir de base às Leis Indo mais além na sua visão idílica do subjugar (e aniquilar) os povos eslavos que
de Nuremberga, o código legal que define a futuro, Hitler imaginou um novo mundo neles habitavam.
cidadania do Estado Étnico (Volkisch) rever- dominado pelos arianos, que para ele mais Após ser solto da prisão, Hitler percebeu
tendo por completo a política da República de não seria do que a repetição de um passado que o método revolucionário não o levaria ao
Weimar, onde «de uma penada transforma-se poder e optou por seguir a via democrática,
em ‘alemão’ um miserável escravo vindo da sendo eleito chanceler em 1933, adotando
Mongólia». Para Hitler, o exemplo chega dos
«Estados Unidos da América que, pelo menos
Hitler imaginava um o título de Führer («chefe», ou «guia») no
ano seguinte. Conquistado o poder, o novo
em parte, procuram de certo modo obedecer novo mundo dominado regime não perdeu tempo e lançou uma in-
aos conselhos da razão. Recusando o acesso de
imigrantes cuja saúde é precária e excluindo
por arianos, numa tensa campanha de propaganda que levou
milhões de alemães a apoiar o nazismo e a
repetição de um
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do direito à naturalização os representantes de sua visão racista da sociedade. Os resultados


certas raças», nomeadamente, os afro-ameri-
canos que viviam numa sociedade segregada
pretenso passado não se fizeram esperar e tiveram um surto de
violência na noite de 9 para 10 de novembro
onde as relações inter-raciais eram proibidas. histórico que mitificava de 1938, a Noite de Cristal, quando hordas

VISÃO H I S T Ó R I A 63
RACISMO // NAZISMO

A Solução Final
Durante sete meses, os Einsatzgruppen
massacraram milhares de homens,
mulheres e crianças, mas apesar dos
«melhores esforços» dos homens das
SS e dos soldados da Wehrmacht, um
simples cálculo de aritmética mostrava
que o ritmo da matança era insuficiente
para exterminar as comunidades
judaicas de forma «eficiente».
A 20 de janeiro de 1942, 15 oficiais e
representantes das mais altas esferas do
regime nazi reuniram-se em Wannsee,
um subúrbio de Berlim, para debater
a «Solução Final para o Problema
Judaico» e selar o destino dos judeus
nos territórios controlados pelo III Reich.
Reinhard Heydrich propunha a inclusão
de 11 milhões de judeus no programa,
e nas minutas da conferência ficou
decidida a deportação dos judeus que
viviam na Europa ocidental para campos
de concentração na Alemanha, Polónia
e outros locais da Europa oriental, como
Auschwitz, Bergen-Belsen, Buchenwald
e Mauthausen, nomes que não tardariam
a ganhar uma fama mórbida.
Os resultados da conferência levaram
ao extermínio, entre 1942 e 1943, de
1,7 milhões de judeus, num holocausto
que continuaria a ceifar vidas até ao

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fim da guerra e que, em conjunto com
o Holocausto pelas Balas, sacrificou
cerca de 6 milhões de judeus, número
a que se somaram eslavos, ciganos,
Chegada de judeus húngaros a Auschwitz, em 1944 Entre 2 de maio e 9 de julho, homossexuais, militares soviéticos e
mais de 430 mil foram deportados civis polacos.

de paramilitares da Sturmabteilung pilharam deste combate é a destruição da Rússia, pelo da morte que seguiam na retaguarda dos
milhares de lojas de judeus e destruíram mais que deverá ser travado com uma severidade exércitos alemães para limpar os territórios
de 200 sinagogas. inédita.» de todos os elementos considerados um alvo
A política externa do III Reich também a abater pelo regime nazi: comunistas e co-
se pautava pela agressividade, com os nazis O Holocausto missários políticos, doentes mentais, ciganos
a subjugarem os territórios em redor (Áus- Para muitos judeus da Europa de Leste, e judeus, transformando a Europa Oriental
tria, Sudetas) sem oposição aparente, até a memória do Exército Alemão durante num «faroeste» onde a lei era ditada pelos
Hitler ir longe de mais e invadir a Polónia. a I Guerra Mundial era bastante positiva, homens das forças paramilitares nazis SS,
A II Guerra Mundial começou em setembro devido às várias ocasiões em que protegeu com o apoio de agentes da polícia política
de 1939, e dois anos depois a Wehrmacht as comunidades judaicas dos pogroms que Gestapo e até de soldados comuns.
iniciava a maior invasão da história, com se seguiram à queda do czar russo. Mieczyslaw Sekiewicz era um veterinário
milhões de soldados alemães a avançarem Muitos desconheciam o alcance do antisse- polaco detido numa prisão em Konin e foi
sobre a União Soviética com a firme cren- mitismo nazi e houve até judeus que pediram testemunha de uma das formas mais cruéis
ça na sua superioridade racial e o objetivo ajuda às forças alemãs recém-chegadas, como o de massacrar um povo. Forçado a servir como
de conquistar o desejado Lebensraum. Um avô do historiador ucraniano Faina Vinokurova, auxiliar dos nazis no extermínio da comuni-
sentimento bem sintetizado pelo general que não hesitou em pedir autorização às auto- dade judaica daquela cidade, anos mais tarde
Erich Hoepner na mensagem que enviou ridades nazis para reabrir a estalagem que lhe recordou o dia em que foi levado até uma
aos seus soldados: «A guerra contra a Rús- tinha sido confiscada pelo regime comunista. clareira da floresta onde já estavam abertas
sia é um capítulo importante na luta pela A resposta não se fez tardar: foi amarrado a duas grandes valas. Entre as árvores esta-
sobrevivência da nação alemã. É o antigo um cavalo e arrastado pela cidade perante o vam grupos de judeus (homens, mulheres e
combate do povo germânico contra o povo olhar atónito dos habitantes e como exemplo do crianças) e cerca de 30 polacos que tinham
eslavo, da defesa da cultura europeia con- trágico destino que aguardava os outros judeus. sido «requisitados» para o trabalho maca-
tra a inundação moscovito-asiática e para Foi o tempo em que reinavam os Einsa- bro que estava prestes a começar. Por todo o
repelir o bolchevismo judaico. O objetivo tzgruppen (grupos operativos), esquadrões perímetro encontravam-se soldados alemães

64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ROGER-VIOLLET/GETTY IMAGES
Campo de trabalho forçado de Landsberg Um soldado das forças americanas de libertação olha, em maio de 1945,
para os prisioneiros judeus vitimados pelos nazis

prontos para impedir qualquer fuga, estando formou-se em hidróxido de cálcio. O solo da de ser a forma «mais eficaz» de praticar um
a operação a cargo de agentes da Gestapo que vala entrou em ebulição e as pessoas que lá genocídio. Membros superiores do governo
ordenaram aos judeus mais próximos da vala estavam irromperam em gritos de desespero nazi e líderes das SS, reunidos em janeiro de
para se despirem e saltarem para lá. O pânico e dor. O intenso calor que se produzia sob os 1942 na Conferência de Wannsee, resolveram
que se apoderou da multidão levou a cenas de seus pés aumentou ainda quando o poder então adotar a «industrialização» da morte
desespero: alguns beijavam as botas dos agen- corrosivo da cal começou a queimar a carne, nos campos de concentração.
tes e suplicavam pela vida, outros atiravam-se e aos gritos de dor dos que estavam a cozer Em paralelo com o massacre dos judeus,
sem esperar pela sua vez. Mães que saltavam vivos no interior da vala juntou-se um coro milhões de soldados e civis eslavos iam per-
com os filhos nos braços como quem mergulha de choro dos que esperavam pela sua vez, dendo a vida numa guerra sem quartel. Cen-
de pé, e os que ao resistir eram espancados continuando a matança até não restar mais tenas de milhares de prisioneiros soviéticos
e atirados de qualquer forma. Quando a vala nenhum judeu vivo. morriam também à sede e à fome nas longas
ficou cheia, Sekiewicz e os outros polacos fo- Entretanto, o Holocausto pelas Balas ia es- marchas da morte, enquanto os civis eram
ram postos a trabalhar, juntando a roupa em palhando a morte e o terror, mas estava longe alvo de requisições que deixavam os celei-
fardos, separando os relógios, joias e outros ros vazios. O desprezo pelos eslavos, meros
valores, tudo sob o olhar atento daqueles que Untermenschen, sub-humanos destinados
estavam prestes a morrer.
Por volta do meio-dia chegou um camião
Em paralelo a servir os novos amos germânicos, levou a
um dos cercos mais mortíferos da história da
com contentores de água, mangueiras e um com o massacre humanidade, quando cerca de um milhão de
pequeno motor. Numa vala com dois me-
tros de profundidade, a multidão pisava uma
de judeus, milhares pessoas perderam a vida em Leninegrado. Foi
um pesadelo que só terminou em 1945, com
camada de cal viva que fora previamente de prisioneiros russos a rendição incondicional do III Reich, que
espalhada pelo solo. Quando os alemães
começaram a regar a vala com a água do
perdiam a vida nas ficou para a história como o mais genocida
dos regimes e um exemplo das consequências
camião, a cal reagiu de forma violenta e trans- 'marchas da morte' extremas a que o racismo pode conduzir.

VISÃO H I S T Ó R I A 65
TEMA // CABEÇA

O extermínio da ‘nação invisível’


O extermínio do povo cigano durante a II Guerra Mundial foi o culminar de um longo
processo de estigmatização, com consequências que ainda prevalecem
por Pedro Caldeira Rodrigues

P
ovo de êxodos e diásporas, de forte milhão da América do Norte, e talvez 800 mil coloridas puxadas por cavalos, origina medidas
consciência identitária, o povo cigano no Brasil. Em Portugal, as estatísticas apontam discriminatórias, como as adotadas em França
tem uma história secular e atribulada. para cerca de 40 mil. em julho de 1912, com a imposição de uma
Num mosaico de grupos diversificados, caderneta antropométrica, uma espécie de
a sua designação difere consoante o Deportação e diáspora passaporte interior.
país e a época. Gitanos em Espanha, A diáspora deste povo inicia-se no século XI, A componente nómada torna-se pretexto
sintis (Zigeuner) nos países germânicos, sinte com a deportação do primeiro contingente do para criticar o modo de vida dos ciganos, os
em Itália, rom (ou rrom) nos Balcãs, gypsis em norte da Índia, por ordem do sultão Mahmud seus particularismos, o desafio às leis, o des-
Inglaterra (que deriva do termo «egípicos», ou- de Ghazni (971-1030), à qual se juntam outros dém pela educação pública, o desprezo pela
tra das suas identificações), gitanes em França povos ao longo dos tempos. propriedade. Na Suíça e na Suécia, já no século
(ou bohémiens, ou manouche). E ciganos em A sua história na Europa decorre desde XX, aplica-se legislação destinada a destruir
Portugal, como vão passar a ser referidos. 1416-1417, com os primeiros documentos a a cultura cigana; no primeiro destes países os
Na base da sua identidade está o romani, atestarem a sua passagem. Durante um largo filhos são retirados aos pais para «reeducação».
uma língua oral, sem escrita, adaptado ao idio- período as relações entre este povo e os euro- Esterilizações são praticadas sob pretexto «hu-
ma dominante no território onde assentam. peus «autóctones» serão de boa vizinhança. manitário», para limitar a sua reprodução.
Estimativas recentes referem-se a entre 8 Mas os estigmas que vinham sendo acumu- E na Alemanha, antes ainda da tomada do
e 12 milhões de ciganos na Europa, a maioria lados em anteriores gerações consolidam-se poder pelos nazis, a República de Weimar
no leste: 800 mil na ex-URSS; 2,1 milhões no século XIX, agravados pela tentativa de (1919-1933) já propagava diversos conceitos
na Roménia; 750 mil na Bulgária (8% da po- explicá-los de forma «científica». A repressão exclusivistas que prenunciavam o genocídio dos
pulação); 600 mil na Hungria; 500 mil na do nomadismo conjuga-se então com o sucesso ciganos. A partir de 1920, filósofos e médicos
Sérvia; 200 mil na República Checa; e ainda no meio científico das teorias eugenistas sobre lançam a noção da «destruição da vida que
numerosos núcleos na Grécia e na Turquia, a «proteção da raça», e a sua estigmatização não merece ser vivida». Os nazis nada mais
onde não estão recenseados. Em Espanha serão propaga-se de forma incontrolada. fizeram do que apropriar-se e desenvolver estas
pelo menos 700 mil, em França 300 mil, na O contínuo afluxo deste povo em direção teorias e pô-las em prática. Juntamente com os
Alemanha 130 mil, na Itália 120 mil. E um a ocidente, viajando em carroças e caravanas judeus, os ciganos encontram-se entre os que

66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Presos e assassinados no decreto de 14 de dezembro de 1937 sobre (Zigeunernacht), tornou-se uma das principais
A ficha de identificação «Prevenção contra o comportamento asso- datas de celebração e evocação deste povo.
de uma prisioneira cigana,
cial», que permite a detenção e o início do No entanto, muitos ciganos, incluindo al-
Antonina Donga, no campo
de concentração de envio para os «campos de trabalho». guns fugitivos dos campos que conheciam as
Auschwitz-Birkenau, em 1942. Em 8 de agosto de 1938 o decreto sobre a florestas, vão participar na resistência armada
Em baixo, o campo de Lety, «Luta contra a praga cigana» elevava a te- em França, Jugoslávia, Polónia, URSS e mes-
destinado apenas a ciganos
a partir de 1942
mática a uma perspetiva racista e permitirá mo na Roménia – onde o regime ditatorial do
a posterior execução sistemática deste povo. marechal Ion Antonescu, que durou de 1940
GALERIE BILDERWELT/GETTY IMAGES

Assim, quando deflagra a II Guerra Mundial, a 1944, impôs a política nazi de extermínio
os ciganos vão conhecer a deportação, uma desta população.
mais sofreram com a perniciosa «ideologia nova fase da sua exclusão.
do sangue». Esta medida intensifica-se após o ataque da Pesadas consequências
Alemanha nazi à União Soviética, no momen- Mesmo que permaneça impossível contabili-
Genocídios to em que é tomada a decisão do extermínio zar o número total de vítimas do povo cigano
Porajmos (Devoração), Pharrajimos (Des- sistemático de judeus e ciganos. Foi aqui que durante a II Guerra Mundial e as perseguições
truição) ou Samudaripen (Morte total) são se iniciou o Samudaripen, cujas primeiras nazis, o linguista francês Marcel Courthiade
os nomes que várias correntes atribuem ao vítimas serão os ciganos da Áustria. admite que 600 mil ciganos (cerca de 25% da
genocídio cigano. A partir de 1939, Reinhard Heydrich encerra população total de ciganos na Europa de então)
Com a subida de Hitler ao poder, em 1933, a dezenas de milhares de ciganos alemães e aus- tenham, pura e simplesmente, sido mortos.
ideologia racista tornou-se parte intrínseca da tríacos em campos para posterior deportação Este número não engloba, é claro, os homens
cultura geral da elite educada. E apesar das di- em direção ao leste. E em dezembro de 1942, e mulheres que sobreviveram mas que ficaram
versas abordagens à «questão cigana», mesmo por iniciativa de Heinrich Himmler, é cons- viúvos, órfãos, sem irmãos, sem filhos, esterili-
sendo este povo indo-europeu, na base perma- truído em Auschwitz um campo especial para zados, paralisados, doentes ou traumatizados.
necia sempre a ideologia da «higiene racial» famílias ciganas. Igualmente deportados para Após a capitulação da Alemanha, em 8 de
e a pretensa «associabilidade» dos ciganos. Buchenwald (na Alemanha) ou Jasenovac (na maio de 1945, a História continuou a reservar
A estigmatização atinge o seu paroxismo em Croácia então aliada do III Reich), morrem novos desafios para o povo cigano. À semelhan-
outubro de 1935, com as Leis de Nuremberga às dezenas de milhares, também devido aos ça do início do século XX, e após a provação do
sobre «a salvaguarda do sangue e da honra surtos epidémicos. período nazi, os ciganos continuaram a sofrer
alemãs», que se destinam em primeiro lugar Ao contrário dos judeus, que pareciam acei- diversas formas de exclusão.
aos judeus. Nesta fase, os ciganos ainda são tar com aparente resignação o caminho para a Durante anos, guardaram esse sofrimento.
globalmente poupados pelos nazis. A exceção morte, os ciganos tentavam fugir, mesmo sem Desestruturada e privada de organismos re-
serão as populações nómadas, assimiladas a qualquer esperança. Em 16 de maio de 1944, presentativos, a comunidade cigana apenas
«sangues misturados» e remetidas para o revoltaram-se e fizeram recuar com pedaços conseguiu obter o reconhecimento deste dra-
estatuto dos «associais». Mas logo no ano de madeira os nazis que os conduziam para a ma no final do século XX, na sequência do
seguinte, em 1936, o jurista Hans Globke câmara de gás em Auschwitz-Birkenau. I Congresso Mundial Rom, que decorreu em
(1898-1973), um dos principais dignitários O levantamento foi breve e dois meses e meio 1971, em Londres.
do III Reich, afirma que «apenas os judeus e depois, em 2 de agosto de 1944, cerca de 3 mil Estátuas ou monumentos em diversos locais
os ciganos (zigeuner) têm um sangue estran- homens, mulheres, crianças são gaseados. recordam o genocídio. Mas em França foi preci-
geiro na Europa». Princípios que culminam Esta noite apocalíptica, A Noite dos Ciganos so esperar até 1969 para que a lei de 1912 fosse
alterada, enquanto na Alemanha o genocídio
contra os ciganos apenas seria reconhecido
oficialmente em 1982.
O século XXI pode implicar a desconstrução
de ideias sem fundamento e outros estereótipos
A 2 de agosto de 1944, injustos e destrutivos, e a sua substituição por

3 mil homens, mulheres visões mais pragmáticas. Mas as ações policiais


em França, durante as presidências de Nico-
e crianças ciganos foram las Sarkozy (2007-2012) e François Hollande

gaseados
GETTY IMAGES

(2012-2017), com a expulsão de ciganos e re-


tirada de crianças de escolas, contrariam esta
em Auschwitz evolução.

VISÃO H I S T Ó R I A 67
AS LEIS PORTUGUESAS
DA DISCRIMINAÇÃO
RACIAL
O chamado regime do indigenato configurava a arquitetura jurídica da desigualdade racial,
vigorando legal e sistematicamente entre 1926 e 1961
por Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro

68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Minas de Quilungo,
Angola

ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO

VISÃO H I S T Ó R I A 69
RACISMO //

Miguel
Bandeira
Jerónimo

Dia de pagamento na Roça Novo Destino, São Tomé O regulamento de 1899 legalizou o trabalho forçado

‘É
José
sem dúvida fácil especular com o facto de, ainda neste mo- importante: a afirmação excecionalista da
Pedro mento, fazermos apelos a medidas especiais para combater ausência de qualquer tipo de discriminação
Monteiro uma discriminação que não nos cansamos de repetir que racial no «mundo português» obrigou a negar
Investigadores
não existe. Isto leva-nos a ponderar que em situações se- a pujança das provas de práticas e processos
do Centro de
Estudos Sociais melhantes, e quando a intervenção do Estado se revela de discriminação racial. Condicionou ainda a
da Universidade absolutamente necessária para combater um outro surto imaginação social, por parte das autoridades,
de Coimbra de discriminação que porventura se manifeste, será preferível por de alterações legais e políticas que permiti-
e autores,
entre outros
forma mais discreta e de modo a evitar as especulações a que acima riam, pelo menos, atenuá-la.
trabalhos, nos referimos.» Em 1960, mais tarde batizado «Ano de
dos livros Os As especulações a que se referia este funcionário do Ministério África», tornaram-se independentes vários
Impérios do do Ultramar, em novembro de 1960, eram aquelas que se vinham Estados africanos, como a Nigéria, o Congo,
Internacional:
Perspectivas, fazendo sentir com cada vez maior frequência em instâncias como a o Senegal e a Mauritânia. Ao mesmo tempo,
Genealogias Organização das Nações Unidas (ONU), sobre as políticas e práticas a resistência portuguesa a qualquer reforma
e Processos e discriminatórias nas então «províncias ultramarinas» de África (nome social ou política tornou-se um tema recor-
História(s) do oficial das colónias após a revisão constitucional de 1951). Todas elas rente de contestação, de Luanda a Nova Ior-
Presente: Os
Mundos que o eram refutadas pelas autoridades, incluindo diplomáticas, portugue- que. Nesse ano, o Comité dos Seis da ONU
Passado nos sas. Neste caso, o que estava em causa era um diploma do Conselho rejeitou a tese sustentada por Portugal de que
Deixou Legislativo de Moçambique que estabelecia coimas a aplicar a pro- não possuía qualquer «território não-autóno-
prietários de hotéis, cafés, restaurantes e bares por recusa de admissão mo», argumento usado para recusar a entrega
«sem justificação». Apesar de o diploma não explicitar que se tratava àquela organização de informação sobre as
de recusas motivadas por preconceitos raciais, era evidente que era condições económicas, sociais e educacionais
a estas que se reportava, desde logo porque o preâmbulo invocava nas colónias. Já no ano seguinte, 1961, come-
princípios constitucionais. çaria em Angola aquilo a que hoje chamamos
Se é certo que uma fonte histórica singular é insuficiente para Guerra Colonial, mais tarde extensível à Guiné
qualquer tipo de generalização, esta abre, porém, alguma margem (1963) e a Moçambique (1964).
para interrogações. A promulgação de um diploma que visava punir A ideia generalizada de que a moderna ex-
a interdição do acesso de indivíduos africanos a espaços públicos periência colonial portuguesa se pautou por
só pode ser compreendida assumindo a existência dessa mesma uma particular propensão para a miscigena-
interdição. A fonte permite ainda apreciar outro aspeto, não menos ção e para a convivialidade inter-racial foi arti-

70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Numa plantação
de sisal,
Moçambique
O trabalho era o
elemento primeiro da
missão «civilizadora»

culada de modo mais estruturado dades e transgressões, entre as


após o fim da II Guerra Mundial, populações «civilizadas» e as po-
com o descrédito gradual das pulações «indígenas». Ganhando

ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO


diversas teses do «racismo cien- um significado próprio para lá
tífico», nomeadamente através da sua aceção literal, o «novo»
da tese de Gilberto Freyre sobre indígena seria regido pelo asso-
o dito lusotropicalismo. Mas a ciado indigénat, criado em 1881.
longa gestação de autoconces- O código instituía um regime ju-
sões sobre a ausência de racismo rídico dual, um para os cidadãos
na sociedade portuguesa (impe- de pleno direito, outro vinculado
rial e pós-imperial) também se deu através a um regime de direito privado consuetudi-
de processos mais anódinos e burocráticos.
A ação mais ou menos direta do Estado, ou
1926 nário. Tratava-se de um regime em que os
usos e costumes supostamente «tradicionais»
simplesmente a ação por omissão (como neste «São considerados indígenas regulavam matérias como o casamento ou as
caso), a censura, a ausência de canais para os indivíduos de raça negra ou sucessões. Neste, os direitos políticos e civis
exprimir e dirimir divergências políticas e dela descendentes que, pela eram mitigados, ou mesmo suprimidos. E era
sociais, explicam em parte as dificuldades, sua ilustração e costumes, se nele que se incluía a esmagadora maioria da
presentes e passadas, em enfrentar o registo não distinguem do comum população argelina.
histórico da presença portuguesa no mundo daquela raça.» O «sistema» estender-se-ia depois à África
DGPC

no último século. Ocidental Francesa, com importantes exce-


A discriminação racial que vigorava nas ções como as chamadas três comunas do Se-
«províncias ultramarinas portuguesas» não «Não serão concedidos negal. Aspeto fundamental na legitimação da
pode ser aferida apenas por um olhar e uma aos indígenas direitos políticos «missão civilizadora» francesa, a possibilidade
razão legais. Mas a importância da legislação em relação a instituições de assimilação política e civil garantiria, em
que compunha um ordenamento político- de caráter europeu.» teoria, o acesso universal à cidadania. Mas en-
-jurídico inequivocamente organizado em Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas quanto esta não se concretizasse, o indigénat
linhas raciais é notória. O chamado «regime de Angola e Moçambique, 1926 oferecia uma fórmula expedita de lidar com
do indigenato» configurava a arquitetura ju- a administração quotidiana das populações
rídica da desigualdade racial, vigorando legal autóctones, dispensando muitas das garantias
e sistematicamente entre 1926 e 1961, ainda
que com importantes antecedentes. 1928 jurídicas do Estado metropolitano, com recur-
so ao papel intermediário das «autoridades
«O Governo da República tradicionais», frequentemente envolvendo
Sistema de ‘proteção’ não impõe nem permite ações punitivas e violentas.
e ‘civilização’ que se exija aos indígenas Já nos vários pontos do Império Britânico
A trajetória histórica do colonialismo por- das suas colónias qualquer na Ásia e em África, não se assistiu à for-
tuguês esteve desde sempre estreitamente espécie de trabalho mulação de um quadro jurídico englobante
articulada com processos e atores locali- obrigatório ou compelido como o do indigenato francês, mas ocorreram
zados nas mais diversas geografias, do Rio também dinâmicas similares de restrição de
para fins particulares, mas
de Janeiro a Paris, de Argel a Léopoldville. direitos às populações colonizadas e uma or-
A reorientação imperial europeia para África
não prescinde que eles ganização administrativa em torno de supos-
a partir da segunda metade do século XIX foi
cumpram o dever moral, tas «tradições» e «autoridades».
também um fenómeno transimperial. que necessariamente No caso português, a reorientação geopolí-
A primeira forma de organização de um lhes cabe, de procurarem tica para África, procurando recriar «Brasis»,
«sistema indígena» surgiria na sequência pelo trabalho os meios de iria gerar problemas e soluções semelhantes às
da ocupação da Argélia pela França. A ad- subsistência, contribuindo de franceses e britânicos. O estatuto jurídico
ministração de um número cada vez mais assim para o interesse geral da das populações nativas nos territórios então
significativo de autóctones, que decorria da humanidade.» dominados (muito limitadamente) pelo Es-
«territorialização» de um Estado colonial, Código do Trabalho dos Indígenas, 1928 tado português suscitou inquietações durante
obrigava a cristalizar um conjunto de regras a monarquia constitucional, acompanhando
que estabelecesse uma distinção, mais ou os debates sobre a condição dos escravos e das
menos clara e sempre passível de ambigui- múltiplas categorias legais que marcaram o

VISÃO H I S T Ó R I A 71
RACISMO // PORTUGAL E COLÓNIAS

atribulado processo abolicionista, de «liber-


tos» a «aprendizes» (categorias intermédias
entre o escravo e o homem livre). Todavia,
a codificação de um estatuto que se queria
global teria de esperar algumas décadas.
Seria no domínio do trabalho, entendido
como elemento primeiro da «missão civili-
zadora», que surgiria – em 1899 – a primeira
lei de natureza generalista: o Regulamento do
Trabalho dos Indígenas. Neste, procurava-se
fazer frente ao que era tido como a natural
«indolência» do «indígena» na ausência de
escravatura. O «mandato dual» das potências
colonizadoras europeias, de suposta prote-
ção e civilização das populações nativas e da
necessidade de entregar à «humanidade»
as riquezas que o continente oferecia (mas
que as suas populações não queriam ou não
ANTT

podiam aproveitar), legitimou o recurso a


modalidades coercivas de exação laboral.
O regulamento de 1899 legalizou, assim, o
trabalho forçado e os castigos corporais às
populações indígenas. O uso social do concei-
to de «indígena» antecedia a sua mais clara
definição legal.
O trabalho, coercivo se necessário, «sem
quimeras» ou veleidades humanitárias, era o
principal instrumento de «civilização», mais
do que a conversão religiosa ou a educação.
O recurso ao trabalho forçado, que neste pe-
ríodo se traduziu sobretudo nas migrações
de angolanos e moçambicanos (os chamados
«serviçais») para o arquipélago de São Tomé
e Príncipe, geraria denúncias internacionais
acerca de uma «escravatura moderna». Tais
denúncias explicam em parte a promulgação
de um novo diploma legal em 1914 que, toda-
via, não deixaria de assinalar o «dever moral e
legal» de trabalhar que impendia sobre todo o
indígena masculino válido (mas não sobre os
cidadãos metropolitanos ou coloniais).

O ‘dever moral’ de trabalhar Bairro indígena de Luanda e o interior de uma residência indígena Fotografias da Agência
Geral do Ultramar, provavelmente usadas para propaganda do regime
Apesar da centralidade da questão laboral, o
crescente fluxo de colonos oriundos da metró- Em 1926, surgia o Estatuto Político, Civil e «usos e costumes» tradicionais, o que incluía
pole, a intensificação da extração económica Criminal dos Indígenas de Angola e Moçam- questões como casamentos, propriedade ou
e os crescentes ímpetos de territorialização bique, da autoria de João Belo. Estendido à sucessões. Apresentada como uma medida
dos vários «Estados coloniais» geraram a Guiné em 1929, consumava a distinção entre que visava «proteger» as tradições locais e os
necessidade de uma mais clara codificação o «indígena» e o «cidadão». Estabelecia que «indígenas», na verdade criava um espaço de
das dinâmicas legais de inclusão e exclusão o primeiro, em matéria de direito privado, arbitrariedade considerável, visto que essas
coloniais. Uma nova «política da diferença». não se regia pela lei escrita, mas antes pelos tradições não se encontravam compiladas.

72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Caderneta do Indígena Obrigatórias
ANTT

em todas as colónias, entre 1928


e 1962, para os homens com mais
de 18 anos, «como documento
de identidade para prova de todos
os seus direitos e obrigações e registo
dos seus contratos de trabalho»

O estatuto sistematizava de forma mini-


malista o lugar político e civil do «indígena».
Mas o «regime do indigenato» só pode ser
totalmente apreendido quando incorporado
na miríade de leis imperiais e coloniais que
regulavam aspetos como a taxação, a posse e o
usufruto de terras ou as diferentes categorias
educativas. O «imposto indígena», por exem-
plo, era um imposto de capitação que visava,
entre outras coisas, «induzir» ao trabalho.
As «escolas indígenas», por outro lado, eram
substancialmente diferentes das frequentadas
por europeus, viradas para a aprendizagem
manual e de um «ofício».
O estatuto institucionalizou a discrimina-
ção racial. A sua imagem mais icónica foi
a obrigação de porte da caderneta indíge-
na. Tendo por critérios para a assimilação o
abandono da «ilustração» e «costumes» do
Além disso, a organização civil e política das mais elementares regras do Estado de direito «comum da sua raça», o estatuto, conjugado
populações «indígenas» cristalizava-se em (como a representação através de advogados). com a arbitrariedade da prática administra-
torno das autoridades tradicionais, em con- Estando as autoridades tradicionais sob o tiva, cristalizou as «políticas da diferença»
traste com a organização administrativa me- controlo mais ou menos apertado das autori- coloniais e imperiais. Com o império assolado
tropolitana ou a das populações europeias nas dades administrativas, o regime legalizava um por mais um escândalo internacional, prota-
colónias. Por exemplo, isto permitia dispensar espaço muito substancial de arbitrariedade, gonizado pelo sociólogo americano Edward
o recurso a processos judiciais escritos ou às com propensão para o uso da força. Ross, que entregara à Sociedade das Nações

VISÃO H I S T Ó R I A 73
RACISMO // PORTUGAL E COLÓNIAS

ANTT
um relatório sobre as condições laborais em para as populações que continuavam a reger-
Angola e Moçambique, um novo Código do -se pelos usos e costumes ditos «tradicionais»
Trabalho dos Indígenas (CTI), de 1928, seria (a maioria das populações autóctones) com
criado. Apesar de punir castigos corporais, não proporcionalidades representativas muito
abdicava do «dever moral» de trabalhar dos desiguais.
indígenas (a ser verificado o seu cumprimento Apesar das limitações do reformismo im-
através da caderneta), que continuava a ser a perial francês (e britânico), o pós-II Guerra
pedra angular de um sistema de discriminação Mundial testemunhou um incremento signifi-
racial institucionalizada. cativo do ativismo e de reivindicações de cariz
político e social de vários «sujeitos coloniais»,
Os sopros da continuidade de Dakar a Copperbelt, de Mombaça a Argel.
Em 1953, Joaquim da Silva Cunha, professor Henrique Galvão, que já causara polémica
na Faculdade de Direito que viria a ser mi- ao denunciar na Assembleia Nacional em
nistro do Ultramar, explicou em O Sistema 1947 as condições laborais nas colónias, sin-
Português de Política Indígena que o facto de o tetizou de forma arguta o que estava em cau- Tribunal privativo dos «indígenas»,
Estatuto dos Indígenas definir o seu campo de sa. As transformações políticas e sociais que Moçambique, 1935 Um sistema judicial
aplicação a todos os indivíduos de «raça negra ocorriam em diferentes impérios europeus com regras próprias
ou seus descendentes» não era «muito feliz». não tinham precedentes. Em contraste, no
Mas tanto Silva Cunha como Adriano Moreira império português, as mudanças legais eram
sustentavam que o critério predominante de mínimas. E, todavia, era essa letargia que
delimitação era «cultural», e não racial. Argu- explicava que a ebulição social que se vivia coloniais, como por exemplo Joaquim Hen-
mentavam que a referência à raça negra era além-fronteiras não se espalhasse às colónias riques, que em fevereiro de 1961 sinalizou o
desnecessária. Não porque imaginassem a pos- portuguesas. Ao abrir novas possibilidades de «trabalho compelido» como «a mais impor-
sibilidade da aplicação do estatuto a europeus, participação e reivindicação política e social, tante causa de emigração e o maior motivo
mas porque entendiam ser possível estabelecer os colonialismos britânico e francês tinham de descontentamento das populações indíge-
uma definição de «indígena» que não reme- colocado em causa as fundações do seu do- nas» em Angola. O indigenato caucionava as
tesse diretamente para uma caracterização mínio. Deste diagnóstico estavam, todavia, profundas desigualdades (e discriminação)
fenotípica. Era o «atraso» sociocultural que ausentes as múltiplas formas de resistência que regiam o quotidiano colonial. A estatura
legitimava a existência de um regime jurídico nos territórios portugueses. jurídica deliberadamente diminuída do «in-
especial. O diploma que aprovaria o Estatuto O que parece inegável é o facto de, face aos dígena», conjugada com a ausência de canais
dos Indígenas Portugueses das Províncias da esforços de diversos impérios para redefinir as de participação e expressão de reivindicações,
Guiné, de Angola e Moçambique (em 1954) suas relações coloniais, o império português constrangia as possibilidades de prevenção de
continuou a fazer referência à «raça negra», ter resistido a qualquer mudança política e abusos e de uma transformação significativa
ainda que o critério de assimilação já não fosse legal de monta. A partir de 1945, essa obs- das relações sociais e políticas.
formulado em termos raciais. tinação ficou registada nas múltiplas acusa- Esta era, de resto, uma conclusão parti-
A justificação de Silva Cunha e Adriano Mo- ções sobre a persistência e larga extensão do lhada pelo Subcomité para Angola da ONU,
reira procurava adaptar-se a um mundo muito trabalho forçado, produzidas por viajantes que considerava que o indigenato permeava
diferente do de entre-guerras. Um mundo anónimos, organizações internacionais ou «todas as fases da vida» social do território.
onde, por exemplo, o império francês, em 1946 pelos nascentes movimentos de libertação. A eficácia do desígnio de «assimilação» era
transformado em União Francesa, abolira o Realidade confirmada por vários inspetores questionada, pois os censos testemunhavam
seu regime de indigénat. A revogação, todavia, o desmesurado peso demográfico dos «indí-
estava longe de corresponder aos proclamados genas» nas colónias. O comité foi criado na
desígnios universalistas franceses: os antigos sequência de uma iniciativa do representante
súbditos passavam a ser cidadãos da União da Libéria que requerera ao Conselho de Se-
Francesa, mas não de França. Era-lhes dada O indigenato caucionava gurança a discussão da situação dos «direitos
também a «possibilidade» de manter o seu es-
tatuto privativo consuetudinário. A implicação
as profundas humanos» em Angola, após os incidentes de
4 de fevereiro em Luanda (ataques a prisões
mais visível desta «opção» era a constituição desigualdades (e e a esquadras de polícia levados a cabo por
de duplos colégios eleitorais, um para as po-
pulações que optavam pela lei escrita (todos os
discriminação) que regiam ativistas anticoloniais). Ao mesmo tempo,
na Organização Internacional do Trabalho, o
de origem europeia e alguns africanos), outro o quotidiano colonial representante do Gana depositava uma queixa

74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ANTT

Depois da
revolução de Abril
Marcos da legislação antirracista
depois do 25 de Abril de 1974

1974 A Lei dos Partidos Políticos


estipula que a organização interna
de cada partido deve satisfazer,
entre outras, a condição de «não
poder ser negada a admissão ou
fazer-se exclusão por motivo de raça
ou de sexo»

1976 A nova Constituição


portuguesa, no artigo 13º, consagra
o princípio de igualdade de todos
os cidadãos, independentemente
da sua ascendência, sexo, raça,
língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação económica ou
condição social. No artigo 46º, são
proibidas as organizações racistas
ou que partilhem ideologia fascista.
Polícia «indígena» com a mulher e o filho Moçambique, 1930 1982 O Código Penal português
tipifica crimes de índole racista ou
xenófoba. O crime de homicídio é
contra o Estado português por violação da posse coletiva da terra. Não menos importan- qualificado também se determinado
Convenção 105 (abolição do trabalho forçado). te, como recordava Afonso Mendes, destacado por ódio racial ou religioso.
As reformas que se concretizariam entre funcionário colonial em Angola, a revogação
1983 O Estatuto das IPSS determina
1961 e 1962 não podem ser compreendidas do indigenato não integrava no corpo eleito-
que os beneficiários das IPSS
sem se atender a estas dinâmicas. Nestes ral os antigos «indígenas»: ainda que a sua «devem ser respeitados na sua
dois anos, o indigenato seria revogado, assim contribuição fiscal, em média, cumprisse os dignidade e na intimidade da
como o CTI, estendendo-se o seu impacto requisitos legais, não era tipificada de forma vida privada, e não podem sofrer
à abolição legal da participação das auto- que autorizasse o seu recenseamento. discriminações fundadas em
critérios ideológicos, políticos,
ridades administrativas no recrutamento Por outro lado, a criação do Código do confessionais ou raciais»
laboral e ao fim das culturas obrigatórias. Trabalho Rural, substituindo o CTI, abolia
Estas reformas têm sido assacadas ao então legalmente todas as formas de trabalho for- 1990 O Código da Publicidade proíbe
a publicidade que, pela sua forma,
ministro do Ultramar, Adriano Moreira, e a çado e proibia a participação das autoridades
objeto ou fim, contenha qualquer
circunstâncias de política interna ou a ques- no recrutamento, mas abria espaço para a discriminação em relação à raça,
tões locais, nas «províncias ultramarinas». crescente intervenção de recrutadores priva- língua, território de origem, religião
Na verdade, resultaram de um conjunto dos. E aplicava-se não apenas a trabalhadores ou sexo.
complexo de causas interligadas, no qual «rurais», mas a qualquer profissão não espe- 1995 É criado o Alto Comissário para
dinâmicas, e pressões, internacionais de- cializada. E, seguramente, não se aplicava ao a Imigração e as Minorias Étnicas.
sempenharam um papel central. agricultor de origem europeia.
Essas reformas, contudo, não se traduzi- Se é possível antecipar que as reformas 1999 Definido por lei o conceito de
discriminação racial e elencadas
ram no eclipse da discriminação racial. Se a atenuaram as formas de discriminação ra- as práticas discriminatórias
abolição do indigenato outorgava em teoria cial de forma variada e contextual, elas não puníveis no âmbito da lei. Criada a
a igualdade jurídica plena, vários decretos permitem negar um aspeto inescapável da Comissão para a Igualdade e contra
previam a preservação de um estatuto legal experiência colonial portuguesa. Por muito a Discriminação Racial.
privativo consuetudinário. Este vigoraria nas que estejam bem vivas fórmulas que imagi- 2000 Diretivas do Conselho Europeu
então revigoradas regedorias (legalmente, em nam uma experiência ecuménica de convívio são transpostas para a ordem
1961, uniformizou-se a denominação de «re- multirracial, o colonialismo português nunca jurídica nacional, o que precipita uma
gedoria» para a unidade administrativa base descartou os mecanismos, legais ou não, es- rápida mutação legal no combate
ao racismo, nomeadamente com a
das antigas populações indígenas), pensadas à critos ou não, de produção de distinção numa «Diretiva Emprego», de 2003, e a
imagem das «reservas indígenas» caracterís- base fenotípica. Interrogar o seu lastro e as «Diretiva Raça», de 2004.
ticas do continente americano. Só aí vigoraria suas reverberações no presente é algo a que
Fonte: Discurso do Racismo em Portugal,
o direito costumeiro, bem como o princípio da não nos podemos furtar. Observatório da Imigração

VISÃO H I S T Ó R I A 75
RACISMO // PORTUGAL

Uma história
de resistência
Domingos Arouca, o primeiro
advogado negro moçambicano,
desafiou o regime colonial
ao criticar o Estatuto do Indigenato,
considerando-o «racista,
discriminatório e segregacionista»
por Clara Teixeira

D.R.
P
elas cinco horas, o jovem enfermeiro so de Direito, as memórias também hão de Candidato Em campanha para as primeiras
Domingos Arouca desceu à povoação, contar como o recém-formado advogado, de eleições democráticas de Moçambique,
realizadas em 1994
como fazia sempre que queria con- 32 anos, terá trocado o sabão e o açúcar por
versar com os amigos, e no regresso papel e caneta para produzir a sua Análise
comprou dois quilos de açúcar e uma Social do Regime do Indigenato. As cerca de Reclamando uma «regra material de Di-
barra de sabão por quinze escudos. 30 páginas de crítica e denúncia da discrimi- reito Penal» que «incrimine e puna toda a
«Falando com o enfermeiro branco, o Ro- nação racial, exigindo a abolição do estatuto, forma de discriminação racial», o advogado
drigues, sobre as compras que eu fizera na seriam publicadas em 1961, numa edição de considera inadmissível que um negro, para
véspera, este fez-me notar que eu havia sido autor, com «profusa venda» em território «assistir a qualquer tipo de espetáculo, para
roubado, pois ele sempre pagara três escudos moçambicano, o que deu origem m a uma troca entrar num restaurante, num bar, para ad-
por cada quilo de açúcar e seis escudos pela de correspondência entre a PIDE/DGS
DE/DGS e o quirir um bom lugar no circo ou no futebol»,
barra de sabão. Passei-lhe o dinheiro para a Ministério do Ultramar. tenha de provar «por meio de mágico cartão
mão e pedi-lhe que mandasse o seu criado à que deixou de ser indígena». E continua:
loja do Alves comprar açúcar e sabão. Meia Racismo e discriminação
o «Porque é que tal princípio – laissez passer
hora depois, o criado voltava com os produtos. Sem rejeitar frontalmente a política
ítica colonial – muito justamente válido e aplicado na Me-
O criado era conhecido no estabelecimen- do Estado Novo – aparentemente, nte, só viria a trópole, deixa de o ser quando transplantado
to, pelo que pagou o preço que pagavam os fazê-lo após o regresso em 1963 3 a Lourenço para Moçambique? Apenas porque passa a
brancos, muito menos do que pagavam os Marques –, Domingos Arouca arrasa asa o Estatuto aplicar-se, depois, a indivíduos de diferente
pretos!» Ainda sem o saber, o momento selou do Indigenato, classificando-o comomo uma peça pigmentação?»
o seu destino como «homem político». «Ali jurídica «racista», «discriminatória»
ria» e «segre- Ao longo das três dezenas de páginas, Arou-
mesmo, com o sabão e o açúcar nas mãos, gacionista». Partindo de uma notícia de um ca desfia argumentos para «negar a própria
pagos ao preço dos brancos…», escreveu o jornal moçambicano, onde se relatalata como um utilidade prática do regime do indigenato»,
primeiro advogado negro de Moçambique na universitário negro fora barrado à entrada do que considera uma «humilhação» geradora
autobiografia As Cobras que, passados onze «luxuoso» cinema Manuel Rodrigues,igues, Arouca de «um nocivo preconceito social», assente
anos e meio sobre a sua morte, acaba de ser pergunta: «Será, acaso, espetáculo lo lícito e dig- na raça e na cor. Defendendo a «abolição» de
publicada naquele país. nificante perguntar pelo cartão [de
de identidade] tão «odioso sistema», rejeita «a identificação
Uma década depois de um bilhete de lotaria a todos os negros que pretendam am assistir a do negro com o indígena» e contra-ataca,
– clandestina, da antiga Rodésia –, premiado um filme, mesmo estudantes universitários,
niversitários, questionando se o estatuto será uma «fanta-
com 25 contos, lhe ter pago a passagem para quando varredores e porteiros entram sem sia» e «uma vestimenta jurídica» que «não
Portugal, para concluir o liceu e tirar o cur- qualquer oposição, só porque são o brancos?» interessa despir».

76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Fortaleza de
Peniche O jurista
cumpriu quase
metade da pena
numa das mais
temíveis prisões
portuguesas

Apesar de conceder que o estatuto «con- conhecidos. Quando Domingos Arouca foi o sonho de estudar e iniciar um percurso
tém, indiscutivelmente, preceitos cuja vi- aluno de Marcelo Caetano na Faculdade nada habitual na sua geração. Concluído o
gência é aconselhável e útil», afirma que a de Direito de Lisboa, este apresentou-o a curso de Direito, em outubro de 1960, fez
forma como está construído gera «manifesta Adriano Moreira para que fosse admitido o estágio em Lisboa e tornou-se conselhei-
segregação», por «apenas incidir sobre os no Centro de Estudos Políticos e Sociais do ro jurídico do Banco Nacional Ultramarino
negros ou seus descendentes, mesmo quando Ministério do Ultramar, com um horário que (BNU). Transferido para Lourenço Marques
os fundamentos que poderiam justificar a sua lhe permitisse assistir às aulas. em 1963, foi nomeado vogal do Tribunal Ad-
existência legal se encontram reunidos em ministrativo de Moçambique, mas apenas por
indivíduos não negros!» Numa not nota final, Nas masmorras da PIDE poucos meses. O «homem político» em que
deixa ainda um aviso: «Enquanto o regime Domingos António Mascarenhas Arouca se transformara, o nacionalista defensor da
do indigenato não é abolido, todas as feridas nasceu a 7 de julho de 1928 em Inhamba- independência de Moçambique, ditara já a
fecharão em falso.» ne, no sul de Moçambique, numa família de sua saída das funções de conselheiro jurídi-
Em outubro de 1961, meses após a publi- pequenos proprietários rurais. Aos 16 anos co do BNU, passando a exercer advocacia a
cação deste manifesto, o Estatuto dod Indi- inscreveu-se no curso de Enfermagem e exer- tempo inteiro na capital. Em março de 1965
genato foi abolido pelo então mini
ministro do ceu a profissão até aos 21, quando a inespe- seria eleito presidente do Centro Associativo
Ultramar, Adriano Moreira. Os doi dois eram rada «sorte grande» lhe permitiu concretizar dos Negros de Moçambique, um importante
ponto de encontro de nacionalistas na antiga
colónia portuguesa.
Desde a publicação da Análise que a PIDE
seguia os seus movimentos. A 29 de maio de
1965, Domingos Arouca é preso preventiva-
mente, sob a acusação de «subversão psico-
lógica» na chamada «Frente Sul» da Frelimo,
onde também militavam o pintor Malanga-
tana e o escritor José Craveirinha. O Centro
Associativo é encerrado e muitos dos seus
membros são detidos. Arouca é condenado a
quatro anos de «prisão maior», acrescidos de
Publicação A Análise Social, em edição de autor, uma «medida de segurança de internamento
e o habeas corpus entregue por Salgado Zenha prorrogável de seis meses a três anos». No

VISÃO H I S T Ó R I A 77
RACISMO // PORTUGAL
ICO
DIPLOMÁT

Vista geral de Lourenço Marques No regresso a Moçambique, Domingos Arouca dirige o Centro
Associativo dos Negros, ponto de encontro de nacionalistas, até ser detido por «subversão»
STÓRICO

notícia nas agências internacionais. Samora jurídica, publicada (e apreendida pela Cen-
ARQUIVO HI

Machel, líder independentista da Frelimo e sura) na coleção Bezerro de Ouro, da edito-


primeiro Presidente de Moçambique, decla- ra Afrontamento (conhecida por publicar
ocumentos Uma cópia datilografada
Documentos
D rou à revista Afrique-Asie, em maio de 1972, processos contra presos políticos), Zenha
e assinada da Análise do regime que a longa detenção de Arouca resultava afirmava ainda que o seu cliente estava a
do indigenato, distribuída pelo autor da sua recusa em «participar no sistema co- ser «vítima de uma verdadeira discrimi-
antes da publicação lonialista». nação racial», assinalando que dois outros
O advogado oposicionista Francisco Sal- advogados brancos, detidos por motivos
gado Zenha entregou em 1972 um pedido políticos, já tinham sido soltos. Mas o pe-
de habeas corpus para a libertação imediata dido foi recusado.
total, viria a passar oito anos nos calabouços: do moçambicano, alegando que a sua pri- Finalmente libertado em 1973, aos 45 anos,
quatro na prisão da Machava, em Lourenço são era ilegal por «não ter sido extensiva a Domingos Arouca foi deportado para Mo-
Marques, e outros quatro no Forte de Peniche Moçambique, onde foi julgado, a abolição çambique, com residência fixa em Inhamba-
e na prisão de Caxias, na antiga Metrópole. das medidas de segurança». Se o tivesse ne. Vigiado pelo PIDE/DGS, foi, no entanto,
Fez greves de fome, pediu apoio à Ordem sido, o detido teria já cumprido o «tempo autorizado a exercer advocacia. Mas, para
dos Advogados e à Amnistia Internacional, fixado por decisão judicial para a duração o seu defensor, «só o 25 de Abril o libertou
recebeu manifestações de solidariedade e foi da pena», impondo-se a sua saída. Na peça completamente».

T
Troca de
correspondência
c
Atenta, a PIDE pediu
A
iinstruções
ao Ministério
a
do Ultramar sobre
d
a «conveniência
ou inconveniência»
o
da circulação
d
do livro de Arouca
d
DO MNE O
ARQUIV

8 VISÃO H I S T Ó R I A
778
Casal Arouca
Maria Regina
e Domingos,
na homenagem
por ocasião
do 80º aniversário
do advogado
D.R.

D.R.
Rotura com a Frelimo ninista. Entendi que não devia colaborar
Através da leitura dos seus Discursos Políticos com um regime dessa ordem. Mas também
(ed. Ática), deparamo-nos com um Domingos calculei que seria perigoso, não colaborando,
Arouca defensor da «independência total e continuar lá», disse numa entrevista ao jor-
completa» de Moçambique, no rescaldo da nal Domingo, em 1992. «Os que não saíram
Revolução dos Cravos. Contudo, o advogado [do país] desapareceram», afirmou ainda.


entra quase imediatamente em rota de colisão Durante a estada em Lisboa, um engenho
com a Frelimo. Casado com uma mulher explodiu no carro da mulher, Maria Regina,
branca, apela à construção de um «Moçam- quando se encontrava estacionado à porta da
bique independente» por «pretos, brancos casa de família, no Restelo.
e mestiços». Diz-se um «verdadeiro demo-
crata» e rejeita o «marxismo-leninismo» do
«Indígena quer dizer (…) O regresso a Moçambique aconteceria
apenas em 1992, a convite do ex-presidente
partido de Samora Machel. Na capital, circu- um ser inferior, aquele Joaquim Chissano, já depois do acordo de
lam rumores de que terá mantido conversas
secretas com o português Jorge Jardim sobre
ser pertencente à classe paz assinado em Roma entre a Frelimo e a
Renamo. Em 1994 candidatou-se às primei-
o futuro de Moçambique e que estará a orga- de indivíduos que depois ras eleições presidenciais multipartidárias,
nizar um movimento alternativo à Frelimo.
Numa entrevista à revista Tempo, em ju-
do jantar têm legalmente obtendo menos de 1% dos votos.
Domingos Arouca exerceu advocacia até
nho de 1974, Arouca declara, com uma certa fixada a hora de recolher, praticamente à sua morte, aos 81 anos, ocor-
fleuma, que é «um homem do lar, um chefe
de família» apaixonado pela vida rural, e até
que no cinema, no circo, rida em Maputo a 3 de janeiro de 2009. Após
a saída de cena da política ativa, conquistou
anuncia o seu desejo de «plantar coqueiros» no futebol não pode ocupar o respeito dos moçambicanos, até mesmo
na terra natal. Não consta que o tenha feito.
Em vez disso, apresentou em 1976 um novo
qualquer lugar, ainda que daqueles que denegriram a sua imagem nos
anos a seguir à independência. Por ocasião de
partido, chamado Frente Unida de Moçam- queira e tenha dinheiro uma homenagem pelo seu 80º aniversário,
bique (FUMO), conotado com a social-de-
mocracia, ao mesmo tempo que tecia duras
para isso, porque para Ruy Baltazar, na altura presidente do Con-
selho Constitucional, fez questão de «repor
críticas à Frelimo e denunciava o «cortejo de ele há lugares próprios, a verdade histórica sobre o Dr. Domingos
fuzilamentos, prisões em massa e abolição de
todos os direitos humanos; tudo [feito] em
inevitavelmente Arouca», enaltecendo-o como um resistente
que desafiou o regime colonial e pagou cara
nome da revolução socialista». Para escapar os do último escalão. a ousadia, até no seu próprio país.
ao destino de alguns amigos, autoexilou-se em
Portugal, depois de ter recusado fazer parte
E isto quando lhe é Para saber mais
do governo de transição de Samora Machel. permitida a entrada» Carolina Barros Tavares Peixoto e Maria Paula
Meneses, Domingos Arouca: um percurso de militância
«Eu não sou marxista, muito menos le- in Análise Social do Regime do Indigenato, 1961 nacionalista em Moçambique, junho 2013

VISÃO H I S T Ó R I A 79
TEMA // CABEÇA

de serem poucos, faziam parte de uma nova


elite africana que se iria espalhar pelo mundo
com o início da II Guerra Mundial.
A propósito, a palavra «negritude» acabou
por ser central para este movimento literário
depois de ter sido usada em 1939 por Aimé
Césaire, no poema Cahier d’un retour u pays
natal (Diário de um regresso ao país natal).
O poeta surrealista francês André Breton era
um dos admiradores de Aimé Césaire e elo-
giou muito o seu primeiro livro.

Depois da Harlem Renaissance


Autores como Senghor e Césaire alicerça-
ram-se de início na influência de poetas e
prosadores norte-americanos da chamada
Harlem Renaissance (1918-1937), um movi-
mento cultural negro norte-americano centra-
do simbolicamente no bairro nova-iorquino

GETTY IMAGES
de Harlem – que dinamizava leituras públicas,
publicações periódicas e criações literárias,
teatrais e musicais.
Paris, 1956 Aimé Césaire numa pausa do I Congresso de Escritores e Artistas Negros
Senghor e Césaire, entre outros autores,
trouxeram o tema da negritude para a lite-

As letras da negritude
ratura francófona e mundial e para a política
europeia e também das colónias europeias,
com crescente impacto a seguir à II Guer-
ra Mundial. Consideravam ser urgente dar
Um movimento literário inaugurado por dois poetas dignidade às culturas africanas e de origem
francófonos trouxe para a luz as culturas africanas, pondo africana, colocando em debate assuntos como
em causa a suposta superioridade cultural europeia a história da escravatura, os abusos do colo-
nialismo e o racismo. E pondo em causa a
por João Pacheco pretensa superioridade das culturas de origem

A
europeia perante culturas ditas primitivas,
inda faltavam uns anos até ser cap- Viver no mesmo prédio pode ter ajuda- como as africanas ou de origem africana.
turado e passar 18 meses detido pe- do, mas claro que não se pode dizer que o Por exemplo na peça de teatro E os cães
los alemães, quando combatia pelo movimento literário Negritude tenha nasci- deixaram de ladrar, Aimé Césaire pôs estas
exército francês durante a II Guerra do apenas graças a um encontro fortuito de palavras bélicas na boca da personagem do
Mundial. Antes da guerra, Léopold dois ou três intelectuais que tinham mais ou Rebelde, aqui na tradução do poeta portu-
era um senegalês de uma família com menos a mesma cor de pele e que falavam a guês Armando Silva Carvalho: «Enxertei uma
dinheiro, que vivia na capital francesa e tinha mesma língua do mesmo povo colonizador. árvore de lava e dor / num povo de vencidos.
nascido na colónia africana do Senegal, na Os fundadores do movimento eram muito / Raça de terra por terra e que agora começa
aldeia de Joal-la-Portugaise. Aimé, esse, era poucos, como contou Senghor já na qualidade a andar. / Tu Congo tu Mississípi deixai que
da Martinica, fazia parte de uma família com de Presidente do Senegal, quando, em janei- corra o ouro. / Deixai correr o sangue. / A raça
poucos meios e viera das Antilhas francesas ro de 1975, deu na Lisboa revolucionária do de terra, a raça de cinza avança / e sob os seus
para estudar em Paris. Léopold Sédar Senghor PREC a palestra Lusitanidade e Negritude, pés em marcha / explodem pedaços de salitre.»
e Aimé Césaire tinham a língua francesa em na Academia das Ciências, onde referiu de Nas décadas seguintes, e já num contexto de
comum e ficaram amigos quando viviam no passagem este movimento literário como um processos de independência de colónias euro-
mesmo prédio. Entre o círculo de amizades «pequeno número de estudantes negros que peias em África, muitos autores de expressão
de Senghor, já nessa altura havia também o lançaram a palavra, e sobretudo a ideia, de portuguesa estiveram desde cedo ligados ao
futuro presidente francês Georges Pompidou. Negritude em Paris, nos anos 30». Mas apesar movimento literário da Negritude.

80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Negritude em português como um marco de espantosa oportunida-
O primeiro «poeta da negritude de expressão de, pertinência e eficácia para a revelação e
portuguesa» terá sido Francisco José Tenreiro revalorização das culturas africanas e como
(1921-1966), segundo defende o escritor Ma- vetor implacavelmente acutilante contra o co-
nuel Ferreira no livro Literaturas Africanas de lonialismo, fundamentando-se na identidade
Expressão Portuguesa, de 1977: «Desaliena- cultural, cumprindo assim, inicialmente, um
do, liberto dos mitos da inferioridade social, papel histórico relevante.»
[Francisco José Tenreiro] identifica-se com Esta antologia organizada por Mário Pinto
a dor do homem negro e repõe-no no quadro de Andrade e Francisco José Tenreiro não
que lhe cabe da sabedoria universal: ‘Mãos, terá agradado às autoridades portuguesas da
mãos negras que em vós estou sentindo! / época – fosse pelo título, pelos poemas ou pela
Mãos pretas e sábias que nem inventaram introdução escrita por Mário Pinto de An-
a escrita nem a rosa-dos-ventos / mas que drade. Mas bastaria a nota final de Francisco
da terra, da árvore, da água e da música das José Tenreiro para fazer tocar os alarmes da
nuvens / beberam as palavras dos corás, dos polícia política portuguesa. Desde o final dos
quissanges e das timbila que é o mesmo / dizer No exílio Mário Pinto de Andrade na capital anos de 1940 e início da década seguinte aca-
palavras telegrafadas e recebidas de coração francesa, nos anos 50 baram por se encontrar em Lisboa, na Casa
em coração’. A sua voz é a voz real do homem dos Estudantes do Império, alguns jovens
africano, uma voz que vem das origens e ressoa africanos que viriam a desempenhar papéis
no tempo: ‘cantando: nós não nascemos num de toda a América. Vozes de toda a África.» fundamentais nas lutas pela independência
dia sem sol!’, e aí vamos com essa raça humi- Longe de ser unânime, a Negritude foi en- das colónias portuguesas em África, como
lhada percorrendo a ‘estrada da escravatura’, contrando opositores tanto entre partidários Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino
mas entretanto iluminada por ’um rio’ que do colonialismo como entre militantes das dos Santos ou Eduardo Mondlane. E na nota
‘vem correndo e cantando/ desde St. Louis independências e dos nacionalismos africa- final à antologia – ou, aliás, na nota final a este
e Mississípi’.» nos. Parte das críticas de vários autores afri- «caderno que não é uma antologia» – Ten-
No livro precursor Ilha de Nome Santo, de canos ao movimento poderão estar ligadas à reiro esclarece que foi difícil encontrar poetas
1942, Tenreiro exaltou «o homem negro de atividade política de Senghor – primeiro em de expressão portuguesa que exprimissem
todo o mundo», como escreve Mário Pinto França e depois no Senegal, onde foi presiden- a negritude. Fácil seria encontrar «’assimi-
de Andrade na introdução à antologia de 18 te durante 20 anos – e sobretudo aos escritos lados’ da arte poética: os pequenos Camões
páginas Poesia Negra de Expressão Portugue- ensaísticos que foi publicando sobre o tema de pele preta, os ínfimos Anteros idem, os
sa, que, em 1953, organizou com o próprio ao longo de décadas. Mas já em 1983 – no poetas safados de que todas as poesias estão
Francisco José Tenreiro: «Quando cantas prefácio à reedição fac-similada da pequena envenenadas».
nos cabarés / fazendo brilhar o marfim da antologia Poesia Negra de Expressão
tua boca / é a África que está chegando! // Portuguesa – Manuel Ferreira de-
Quando nas Olimpíadas / corres veloz / é a fendeu a importância histórica deste
África que está chegando! // Segue em frente movimento literário: «Nada impede
/ irmão! / Que a tua música / seja o ritmo de que tenhamos de reconhecer que o
uma conquista! / E que o teu ritmo / seja a movimento da Negritude se instituiu
cadência de uma vida nova!»
Nessa mesma antologia, o som dos blues
sobe do rio Mississípi no poema Mamã Ne-
gra (canto de esperança), do poeta angolano
Viriato da Cruz: «Vozes vindas dos canaviais
dos arrozais dos cafezais dos seringais dos
algodoais... / Vozes das plantações da Virgínia
/ dos campos das Carolinas / Alabama / Cuba
/ Brasil... / Vozes dos engenhos dos banguês
dos tongas dos eitos dos pampas das usinas
/ Vozes do Harlem District South / vozes das
Debaixo de olho Os poetas
sanzalas. / Vozes gemendo blues, subindo que exprimiam a negritude
do Mississípi, ecoando dos vagões. (...) Vozes em português não escaparam à censura

VISÃO H I S T Ó R I A 81
RACISMO // PORTUGAL

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