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AUTISMO e FAMÍLIA:

Uma pequena grande história de amor

Maria Stela de Figueiredo Avelar


Como uma mãe conseguiu conviver com seu filho; superando a
situação dolorosa que se impôs ao descobrir seu autismo e substituir,
gradativamente, esse sofrimento por uma compreensão aprofundada
que lhe revelou possuir não um enfermo, mas um precioso tesouro?
Neste livro, Maria Stela realiza um mergulho profundo no universo do
autismo e do autista, a partir de mais de duas décadas de convívio com
seu filho, partilhando com o leitor suas ricas experiências — umas
amargas, outras desagradáveis, mas também as motas alegres e bem-
humoradas.
Síndrome que tem despertado cada vez mais a atenção de
estudiosos das mais diversas áreas — neurologistas, psicólogos,
terapeutas ocupacionais, professores, pedagogos e psicanalistas — o
autismo é aqui encarado de uma maneira totalmente inovadora, a qual
revela; os curiosos e inusitados meandros por ele apresentados e as
inúmeras possibilidades de uma familiaridade enriquecedora para todos
que convivem com portadores dessa síndrome.
AUTISMO e FAMÍLIA
Coordenação Geral Ir. Elvira Milani
Coordenação Editorial Ir. Jacinta Turolo Garcia
Coordenação Executiva Luzia Bianchi
Comitê Editorial Acadêmico Ir. Elvira Milani — Presidente
Glória Maria Palma Ir. Jacinta Turolo Garcia
José Jobson de Andrade Arruda
Marcos Virmond
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Saúde sociedade

AUTISMO e FAMÍLIA: uma pequena grande história de amor


Maria Stela de Figueiredo Avelar
Ilustrações de Henrique Cassab Sasajima
EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
Rua Irmã Arminda, 10-50 CEP 17011-160 — Bauru — SP
Fone (14) 3235-7111 — Fax (14) 3235-7219
e-mail: edusc@edusc.com.br
A948a Avelar, Maria Stela de Figueiredo.
Autismo e família: Uma pequena grande história
de amor / Maria Stela de Figueiredo Avelar; ilustrações
de Henrique Cassab Sasajima. — Bauru, SP: EDUSC,
2001.
146p. : il.; 21cm. — (Coleção Saúde & Sociedade)
ISBN 85-7460-114-4
Não inclui bibliografia.
1. Autismo em crianças. 2. Crianças autistas. 3.
Autismo. I. Titulo. II. Série
CDD. 618.928982
Copyright(c) EDUSC, 2001
e-mail da autora: carlosvalero@ig.com.br
Sumário

Capa
Ficha
Agradecimentos
Epígrafe
Apresentação
Preâmbulo
Introdução
O início de tudo
A gravidez ou outro início
A chegada
Uma nova vida
Tudo de novo?
O início de um aprendizado
Um teste
Mudando de cidade
Adaptação
Outro tratamento
Tentando ser "normal"
Um pouco do que aprendemos
A realidade
Um vislumbre
Nova tentativa
Começaram as aulas!
Interferências externas
A nova escola
Outras interferências externas
Seguindo em frente
Mais problemas?
Coisas da vida
Mais experiências
A última etapa
As coisas mais simples são as mais bonitas
Final feliz
Pós-escrito
Agradecimentos

Várias pessoas colaboraram, direta ou indiretamente, para que este


livro fosse escrito. Quando comecei a escrever, pensei em citar seus
nomes por ordem de "importância", mas rapidamente percebi que esse
procedimento levaria ao esquecimento de alguns. Por isso, prefiro
agradecer a todos que mantiveram e mantêm alguma relação comigo,
não importa qual. Entre elas, aquelas que aparentemente atrapalharam
(hoje sei que inconscientemente) algo que eu desejava executar, pois
ofereceram novas oportunidades de me aperfeiçoar.
Apesar de tudo isso, estaria sendo injusta se não registrasse aqui um
agradecimento especial a cinco pessoas que foram decisivas para minha
formação e minha vida: meu pai, minha mãe, meu marido e meus dois
filhos, A vocês, minha eterna gratidão!
Conheça o que está em teu olhar,
e o que está oculto de ti te será revelado;
porque nada é oculto que não seja manifesto.
Se a carne foi feita por causa do espírito, isto é maravilhoso.
Mas se o espírito foi feito por causa do corpo,
isto é a maravilha das maravilhas.
Eu, porém, estou maravilhado diante do seguinte:
como é que tamanha riqueza foi habitar em tanta pobreza?
(Evangelho de São Tomé)
Apresentação

Recebi há pouco uma cópia do livro de Stela, ainda não revisada, em


forma de apostila.
Iniciei sua leitura imediatamente e li o livro num só fôlego, de uma só
vez.
Durante a leitura, pareceu-me ver Stela falando e relatando ora as
pequenas vitórias do dia-a-dia, ora os pequenos dissabores.
Saí de mim mesmo, de meu universo recheado de doenças, exames,
leitos de hospitais, e mergulhei na profundidade de outro ser.
Só então me dei conta de que não estávamos falando de uma
doença, e sim de alguém, de outra pessoa como as demais, com
sonhos, ilusões, alegrias, tristezas...
E, pela primeira vez em tantos anos, fiquei a pensar que os autistas
também sonham, pensam, imaginam... e que nós, em nossa "suprema
sabedoria", ousamos acreditar que eles, por terem um mundo
completamente diferente do nosso, não têm direito às mesmas coisas
que nós. E, voando nesse devaneio, fiquei imaginando se eles não têm
um mundo melhor do que este em que vivemos, tão cheio de
contradições.
Se Stela tivesse escrito este livro apenas para nos levar a questionar
o porquê de nossas vidas, teria cumprido seu papel de forma magnífica.
Mas não foi essa a razão. Sua narrativa é mais simples: é o relato de
uma mãe sobre seu filho.
Só uma mãe consegue enxergar além do mundo material. E Stela,
embora sabendo que seu filho é portador de um distúrbio psiquiátrico,
não vive em torno da doença, e sim em torno da pessoa.
O livro trata de uma peregrinação, um caminho de vida, palmilhado
entre folhas, pedras e, às vezes, espinhos venenosos. Vemos uma mãe
que procura respostas e, quando as já existentes não a satisfazem, ela
abre um novo caminho onde antes não havia caminho algum.
Ela ousa contestar formas e atitudes assumidas por tradicionais
escolas médicas e pedagógicas estabelecidas.
E o melhor de tudo isso é que ela nos ensina uma nova forma de
tratar o autista, com uma profunda e importante dose de amor — um
amor que se estende além da nossa compreensão, porém sem jamais
perder o senso da realidade.
Creio que Stela nos abre um novo caminho que, por ser
extremamente simples, será bastante contestado.
O livro de Stela é um encontro profundo e modificador. O encontro de
uma mãe consigo mesma, com seu filho e com as questões mais antigas
e intrigantes do universo:
De onde viemos?
Quem somos?
Para onde vamos?
Por que vivemos?
No íntimo, Stela encontrou a resposta para todas estas perguntas. E
se você, leitor (a), tiver paciência, também as encontrará nas entrelinhas
deste livro.

Bauru, julho de 2001


Dr. Álvaro Bertucci
Neuropediatra
Preâmbulo

As experiências relatadas neste livro podem ser muito úteis para


você, que neste momento está lendo isto. O que você vai ler poderá
ajudá-lo a ver com outros olhos as coisas que nos acontecem na vida e
fortalecê-lo quando quaisquer problemas, aos quais todos nós estamos
sujeitos, o atingirem. Na verdade, hoje eu compreendo que estes são
apenas testes para nós, nesta vida.
Tenho certeza de que este livro será útil para vários tipos de pessoas:
primeiro, para aquelas que, nas mais diversas situações, sempre
encontram algum motivo para reclamar. Elas sempre encontram algum
defeito nos contextos que estão vivendo, e vêem dificuldade em tudo.
Essas pessoas se esqueceram do que qualquer criança sabe (como elas
também souberam um dia): as coisas que julgamos ruins têm um
propósito muito bom que nós, por estarmos preocupados com um monte
de bobagens, desconhecemos.
Tudo que nos acontece na vida são incidentes — testes com um
alcance e significado tão grandes que nossa ignorância não nos permite
perceber. E podemos aprender e nos enriquecer com esses "pequenos
incidentes". Se eles acontecem conosco, é apenas porque nos foram
dadas chance e condições de encará-los ou, no mínimo, porque eram
necessários para nosso crescimento interior e nossa compreensão.
Também espero que estes relatos sejam úteis para aqueles que
trabalham em entidades que cuidam de pessoas especiais, ajudando-os
a perceber quão maravilhosas elas são e quão importante para elas é
esse atendimento por tais entidades. Outra certeza que tenho, formada
ao longo de mais de duas décadas de informações e experiências, é que
nós temos muito mais a aprender com essas pessoas especiais do que
propriamente ensinar-lhes sobre algo. Um carinho e um sorriso sinceros
valem muito mais do que vários anos de especialização acadêmica.
Finalmente, este livro pode ser útil para pais que têm filhos
"diferentes". Diferentes em todos os sentidos. Certamente ele poderá
ajudá-los a compreender por que essas crianças nasceram nas famílias
em que nasceram, do jeito que elas são, com os "defeitos" que
aparentam ter.
Hoje me sinto uma pessoa privilegiada e feliz com as pessoas com
quem convivo. Mas ainda sinto pena de quem me diz: "Que cruz que
você carrega!"
Os nomes de pessoas e lugares que cito neste livro são fictícios, mas
os relatos narrados são baseados em fatos recais.
Introdução

Sentada numa almofada, no amplo escritório de casa, palco de


lembranças, repleto de livros, tapetes e quadros, ouço uma fita de Rita
Lee. Espero Erik, meu marido, chegar do trabalho, procurando usufruir
um dos raros momentos de sossego e solidão que ainda posso
conseguir ao longo dos dias que passam. Meu pensamento se volta para
a música que toca, a voz doce-ácida da roqueira, e me lembro de
quando Jonas, ainda bebê, ficava quietinho, sorrindo, ao ouvir essas
músicas. Não tenho saudades dessa época, pois nós ainda não o
compreendíamos. Só há algum tempo começamos a compreender (e
cada vez mais intensamente) o porquê de sua vinda e o quanto ele nos
transformou no passar dos últimos vinte anos. Quantas coisas bonitas
fizemos! Que bom que ele veio!
O início de tudo

Lembro-me de quando conheci o Erik, na faculdade. Eu era uma


garota estudiosa do terceiro ano do curso de Ciências Sociais e adorava,
além de estudar, curtir a vida, viajar e papear com os amigos. O Erik, já
no quarto ano, era, a meu ver, sério demais e só queria estudar e
estudar. Eu nutria uma certa admiração pelo jeito dele, só isso... Numa
exposição de quadros de um pintor brasileiro que houve na faculdade,
após algumas doses de uísque, vi Erik discutir com o pintor a respeito de
seus quadros, afirmando com segurança que eles eram meras cópias de
um pintor que eu desconhecia. Quando ia sair com meus amigos para
um bar, um deles propôs convidarmos o Erik para ir conosco, e todos
concordaram com a idéia. Saímos para esticar um pouco a noite num
bar da moda na cidade. Erik e eu acabamos nos sentando lado a lado e,
a partir de um dado momento, em meio às muitas conversas que se
faziam em torno de nós, começamos a nos beijar intensamente. A partir
desse dia, passamos a nos relacionar com uma certa freqüência, porém
parecia-me que não era mm relacionamento sério, pois ele tinha uma
namorada e eu, outros planos.
Quando terminei a faculdade ganhamos, minha irmã e eu, uma bolsa
de estudos para fazer um curso de aperfeiçoamento no Rio. Era um
curso bastante interessante sobre a realidade brasileira e me dediquei
muito a ele, curtindo pouco o Rio. Nesse período em que passei nessa
cidade, perdi contato com Erik, e ele nem ficou sabendo que eu estava
morando lá. Quase seis meses depois de minha partida, um certo dia,
talvez por saudade, quem sabe, ele deve ter sentido vontade de falar
comigo e resolveu telefonar para a minha casa (eu morava comi meus
pais na época de faculdade). Com grande espanto, ficou sabendo pela
minha mãe que eu estava morando no Rio. Ela lhe passou meu
endereço e, uma semana depois, recebi uma carta com uma fita gravada
por ele, que me deixaram muito emocionada. Uma das músicas que ele
gravara era Mamãe d'água, de Walter Franco, que me tocou de uma
maneira muito especial. Comecei a ouvir a fita duas ou três vezes por
dia. Estaria apaixonada? Não sabia.
Ele ume escreveu outra carta, dizendo que iria fazer um passeio até
o Rio e, quando por fim foi me visitar, eu estava namorando uma pessoa,
o André, mas aquela visita causou-me uma alegria e uma emoção muito
fortes. Naquele dia, de tardezinha, eu, André, Erik e alguns amigos
fomos a um pequeno bar à beira-mar para conversarmos, trocarmos
idéias... Eu, sentada entre Erik e André, tive uma reação imediata e
impensada de pegar na mão de Erik e soltar da mão de André, que ficou
muito confuso com meu gesto. A partir disso, não demorando muito,
terminei meu namoro com André e tudo começou a ficar mais claro para
mim e para Erik, e começamos, enfim, a namorar de verdade.
Permaneci no Rio por dois anos, e durante esse tempo eu e Erik nos
víamos quase que semanalmente: uma semana ele ia ao Rio e outra ia
eu a São Paulo (onde ele estava morando e trabalhando). Nosso amor
foi crescendo tanto, que parecia não caber mais dentro da gente.
Começamos a sentir uma necessidade muito forte de ter um filho que
expressasse tanto amor. Como o Erik não se adaptava à vida do Rio
(que considerava culturalmente pouco intensa), acabei me mudando
para São Paulo, mas não sem antes procurar garantir um emprego com
o qual eu pudesse me manter nessa cidade.
Moramos juntos por um ano, num pequeno apartamento da Rua
Dona Veridiana. Eu trabalhava na LBA e ele, na Prefeitura. Ganhávamos
bem e vivíamos intensamente. Mas a vontade, necessidade mesmo, de
gerar alguém desse amor aumentou ainda mais. Logo após uma das
vezes em que fizemos amor, sentimo-nos invadidos por uma sensação
muito forte e incompreensível e uma certeza: havíamos concebido um
filho. Para evitar problemas em meu emprego e dar um lar "normal" para
nosso filho, resolvemos, enfim, nos casar.
Casamo-nos e passamos nossa lua-de-mel na fazenda de meus pais,
em Minas Gerais. Quando voltamos a São Paulo, Erik demitiu-se de seu
emprego na Prefeitura e foi trabalhar na LBA, na mesma sala em que eu
trabalhava. Esta foi uma época muito feliz para nós. Os colegas de
trabalho gostavam muito de nós e nós também deles.
Jonas nasceu exatamente nove meses depois de nosso casamento.
A gravidez ou outro início

Um mês depois daquela relação fantástica que tivéramos, fui ao


médico para confirmar a gravidez. Não deu outra: eu ia dar à luz um
bebê. Você consegue imaginar a alegria que sentimos? A partir daí,
todos os planos que fazíamos eram em função desse ser que íamos
colocar no mundo: leituras, músicas, mobiliário, além, claro, da
preparação do enxoval. Pensamos até numa casa nova! Achando que
nosso filho não seria feliz vivendo num apartamento, mudamo-nos para
um sobradinho, com jardim na frente, quintal e edícula nos fundos, numa
vilazinha sossegada da Vila Mariana, a apenas duas quadras de uma
estação do metrô. Era tão simpático o lugar e tão agradável nossa casa
que nem parecia que morávamos no meio de uma cidade tão grande e
cuja hostilidade ainda não sentíamos, mas sim numa pequena e
acolhedora cidadezinha do interior, como tantas que existem...
Tudo isso possibilitou que eu tivesse uma gravidez tranqüila e feliz,
claro. Dois meses antes do Jonas nascer, seu quarto já estava todo
arrumado, com brinquedos nas prateleiras, um móbile feito pelo Erik e
graciosamente pendurado no teto do quarto, brinquedos enfeitando o
berço e um guarda-roupa abarrotado com roupinhas cada uma mais
linda que a outra. Até a mala de ir para a maternidade já estava pronta e
aguardando o momento especial de recebermos nosso filho.
Eu, que sempre tivera um lado emocional muito intenso, fiquei muito
mais emotiva durante a gravidez. Sentia-me a pessoa mais importante
do mundo, e ai de quem não me desse a atenção que eu julgava
merecer!...
Certo dia, quando estava no sétimo mês de gravidez, voltando do
trabalho, desci de um ônibus circular perto daí estação São Bento, e
comecei a caminhar para tomar o metrô. Durante o trajeto, vi na calçada
uma cena que me marcou profundamente: uma mãe xingava e batia em
seu filho, que não tinha mais do que seis anos, não sabia andar, e era
visivelmente uma criança excepcional. O menino chorava muito, mas a
mãe só gritava com ele e o agredia, ameaçando abandoná-lo. Chorei
muito ao ver aquela cena, e durante meu choro aflorou, do meu íntimo,
um pensamento, uma frase: "Meu Deus, se tiver que nascer mais uma
criança assim, que ela venha para mim, pois eu e o Erik a trataremos
com todo o carinho do mundo". Durante o resto daquele dia, a imagem
daquela criança e ai intensidade daquela cena não abandonaram minha
mente. Com certeza, aquele foi um dos dias mais tristes da minha vida.
Afora esse incidente, minha gravidez transcorreu muito bem. Erik e
eu nos amávamos muito e tínhamos uma alegre expectativa para o tão
esperado nascimento de nosso filho.
A chegada

Finalmente, numa manhã de sábado, acordei com uma enxurrada de


água morna saindo de mim... A bolsa se rompera. Acordei Erik dizendo:
— Erik, o neném está chegando!
Ele deu um salto da cama e disse:
-Vamos!!!, num misto de grande alegria e preocupação.
— Calma, quero tomar um banho e me arrumar!
Queria estar bem bonita para a chegada dele.
Como não sentia nenhuma dor, arrumei-me calmamente, chamei
minha mãe, que estava conosco há uns quinze dias esperando o
nascimento, e fomos, os quatro, felizes para a maternidade. Ali, o
médico me examinou e disse que ainda não havia nenhuma dilatação,
aplicando-me em seguida um "soro" para que ela por fim se iniciasse.
Pouco depois, começaram as famosas dores que pareciam me tirar o
fôlego e a razão. Finalmente, às quatro horas da tarde, fui levada para a
sala de parto e Jonas nasceu. Eu estava exausta, mas me lembro de
que fiquei muito feliz quando o médico disse:
— É um menino!
Estiquei os braços para pegá-lo, mas, em vez de me entregarem o
bebê, levaram-no para outro aposento. Com grande preocupação e
espanto perguntei:
— Mas ele não chorou por quê?
— Calma, disse o médico, você vai ouvir daqui a pouco...
Realmente! Poucos instantes depois ouvi um choro tão forte, que
cheguei a pensar ser o de uma criança maior. Só aí me trouxeram meu
filho, todo embrulhado.
Tive um certo temor em tocá-lo e, ao fazê-lo, o senti um tanto molinho
e vi em sua pele um tom arroxeado. Até hoje não sei se isso foi só uma
impressão. Comuniquei ao médico minha preocupação e ele disse que
não havia motivos para me preocupar, pois o bebê estava muito bem.
Tranqüilizei-me, então.
Quando voltei ao quarto, meu marido e minha mãe estavam felizes,
me aguardando. Já tinham visto o bebê e acharam-no lindo! Jonas
realmente já nasceu bonito.
O nome já estava escolhido e a carinha dele confirmou: É Jonas
mesmo.
Uma nova vida

Voltamos para casa no dia seguinte, muito orgulhosos com aquele


"pacotinho" nos braços. Mal sabíamos que a partir daí todos os nossos
planos e expectativas começariam a desmoronar, tendo de ser
substituídos por outros completamente diferentes. Também não
podíamos imaginar que iniciaríamos um grande aprendizado de vida e
que estávamos dando os primeiros passos no caminho da verdadeira
felicidade.
Até então, achávamos que éramos pessoas mais sensíveis e muito
mais bem informadas do que a maioria das outras. Na verdade, naquela
época éramos dois tolos completos que não percebiam a grandeza do
presente que haviam recebido. Demorou um pouco, mas acabamos
entendendo isso, e agora não cansamos de agradecer. O que ainda hoje
não compreendo é por que justamente nós fomos os escolhidos para
receber um presente tão grandioso... Mas vamos começar do início, ou
seja, percorrer todo o trajeto que fizemos antes da compreensão.
No primeiro mês, minha mãe ficou conosco para me auxiliar e dar
algumas dicas de como cuidar do bebê. Afinal, ela tinha tido quatro
filhas, das quais fui a terceira. Eu me sentia um tanto decepcionada, pois
esperava uma criança calma e Jonas chorava demais. No início, minha
mãe dizia que era assim mesmo, que provavelmente ele tinha cólicas,
mas que elas desapareceriam no terceiro mês. Eu esperava
pacientemente, apesar da inveja que sentia de minhas amigas que
tinham tido filhos que não choravam tanto como o meu. Dormia muito
mal, o que acabava me deixando um tanto anestesiada durante o dia.
Jonas mamava direto, e sempre cochilava durante as mamadas. Toda
vez que ia colocá-lo no berço, ele acordava. O pediatra dizia que poderia
ser fome, e me aconselhava a dar uma mamadeira engrossada na última
mamada. Não resolveu. Remédios para cólica, dei até demais, sem
resultado. Um dia minha mãe perguntou:
— Será que ele é nervoso?
Isso foi terrível para mim. Eu não queria um filho nervoso!
Quando minha mãe voltou, enfim, para sua casa, deixando-nos
sozinhos com o bebê, as coisas pioraram ainda mais. Trouxemos o
berço de Jonas para nosso quarto, e eu não conseguia fazer
absolutamente nada, além de procurar acalmá-lo dia e noite. Cheguei a
lamentar ter tido um filho. Jonas não se aninhava em meu colo, e passei
a achar que não sabia cuidar dele. Quando ele chorava, eu chorava
também, pois não sabia mais o que fazer. Cheguei a pensar que ele não
gostava de mim.
Para complicar um pouco mais esse quadro terrível, nos fins de
semana nossa casa se enchia de amigos, os quais eu, antes, adorava
receber, mas que passaram a me importunar, a me incomodar
profundamente. Eu queria continuar lhes dando atenção, trocar idéias,
mas não conseguia me desligar de Jonas nem por um segundo.
Acabava me isolando com ele sempre que chegava gente em casa.
Achava, não sei se corretamente, que aquele movimento todo em casa
não lhe fazia bem.
As visitas periódicas que fazia ao pediatra me acalmavam por algum
tempo. Cheguei mesmo a trocar duas vezes de pediatra, acreditando
que eles não sabiam como me ajudar ou como resolver os problemas
que Jonas nos causava com seu choro, seu desconforto. Todos sempre
procuravam me acalmar, dizendo que não havia nada de anormal com o
bebê. Seus reflexos eram perfeitos, e ele fazia tudo que era esperado
nas fases por que passava. Talvez fosse próprio de seu temperamento,
mas nada de mais sério. Até calmante foi receitado, mas não tinha
coragem de dá-lo a Jonas. Entretanto, numa situação de extremo
desespero com o seu choro ininterrupto, dei-lhe o calmante, mas o efeito
foi o oposto do esperado. Com todo este nervoso que passava, eu o
amamentei apenas até o terceiro mês, pois logo ele começou a preferir a
mamadeira. Isso foi mais uma frustração para mim, que pretendia
amamentar meu filho durante todo o seu primeiro ano de vida.
Quando, ao final de minha licença-maternidade, voltei ao trabalho,
tinha arrumado uma babá, com excelentes referências, para ficar com
ele. No início até gostei da situação, pois as seis horas que passava no
trabalho, por incrível que pareça, me descansavam. Quando eu e Erik
chegávamos do trabalho, Jonas pouco se manifestava. Raras vezes ele
manifestou alegria com nossa chegada. Parecia que não se interessava
por nada e, apesar de nossos esforços para animá-lo e brincar com ele,
parecia quase sempre triste. Às vezes ficava atento; a alguma vinheta da
TV, e se ligava bastante em músicas, principalmente eruditas, mas
também gostava de ouvir e ver Rita Lee na TV. Eram os raros momentos
que sentíamos uma maior atenção por parte dele. Quase não se
interessava por brinquedos, a não ser os sonoros.
Compramos um pianinho, que o levou a passar horas debruçado,
apertando o teclado, mas raramente sorria.
Uma vez minha irmã comentou:
— Ele parece uma criança tão triste!
Isso para mim foi a morte, mas ela tinha razão.
Saía com ele no carrinho pelas ruas da Vila Mariana, sempre
preocupada e com medo de que começasse a chorar. Mesmo assim,
procurava praças e lugares animados na esperança de que se divertisse
com a movimentação em torno dele. Mas nada o interessava. Por mais
uma vez cheguei a ter inveja de algumas mães que brigavam com os
filhos quando estes emburravam em frente de alguma vitrine, pedindo
um doce ou um brinquedo. Jonas não solicitava nada, parecia alheio a
tudo. Ele chamava a atenção de muitas pessoas pela sua beleza, e eu
ficava muito orgulhosa disso. Realmente eu nunca havia visto uma
criança tão bonita quanto ele...
Após mais ou menos um ano de seu nascimento, os vizinhos nos
alertaram de que ele chorava muito enquanto estávamos fora,
trabalhando. Preocupados, achamos melhor procurar uma escolinha
maternal para Jonas. Após algumas visitas, junto com ele, optamos por
uma que ficava nas proximidades de nossa casa, não apenas pela
comodidade, mas principalmente por nos parecer a que tinha mais
atrativos e também porque Jonas parecia ter manifestado um pequeno
interesse pelo lugar. A escola se chamava Passinho Inicial, e Jonas
passou a freqüentá-la durante meio período, numa turminha de dez
alunos de sua idade, com uma professora que nos cativou imensamente.
Ele chamou atenção pela desenvoltura com que andava pela escola,
e não fazia nenhuma birra ao se despedir da gente. Pareceu-nos que ele
gostava de lá. Diversas reuniões de pais e conversas informais com sua
professora nos convenceram de que ele estava muito bem.
Com relação ao sono, continuava dormindo pouquíssimo. Em
compensação, parecia ser bastante guloso, alimentando-se muito bem.
Enquanto eu preparava sua sopinha de legumes, ele já começava a
chorar, querendo devorá-la tão logo começava a sentir o aroma da
papinha. Comecei a prepará-la mais cedo, mas não adiantava, ele
também se antecipava. Acho até que queimei sua boquinha algumas
vezes, tal o desespero que ele manifestava em comer. Quando
preparava sua vitamina de frutas, logo que ele ouvia o som do
liqüidificador, já chegava correndo. Na gemada da manhã, Jonas já
ficava preparado ao ouvir o som da colher batendo no copo com gema
de ovo e açúcar.
Tudo de novo?

Jonas estava com um ano e dois meses quando fiquei grávida


novamente. Dessa vez, ao contrário de uma grande alegria, ficamos
muito preocupados. E agora, o que seria...? Bem, logo nos
conformamos, achando que em nove meses Jonas já estaria andando
bem, falando, estaria também mais independente...; quem sabe, até
dormindo melhor! Passado o susto inicial, começamos a curtir também
essa gravidez, que transcorreu muito bem. Costumávamos dizer:
— O Jonas veio porque nós quisemos, agora este está vindo porque
ele quer. Então, com certeza será mais tranqüilo.
Jonas já estava com um ano e três meses quando andou sozinho
pela primeira vez. Apesar de já andar segurando nas estantes e mesas
há um bom tempo, só se soltou, a nosso ver, quando se sentiu
totalmente seguro. Largou a estante onde estava apoiado e caminhou
tranqüilamente até o televisor, que estava ligado. Ele jamais caiu ao
caminhar, como ocorre normalmente com outras crianças. Tinha uma
segurança e uma agilidade física impressionantes. Mas, em relação à
fala e ao sono, não demonstrava nenhum progresso. Apenas balbuciava
repetidamente alguns sons, às vezes parava e recomeçava novamente,
mas não saía disso. O pediatra dizia que isso era normal, que ele era
apenas preguiçoso.
Nove meses se passaram e, numa madrugada de domingo, nasceu
Mateus. O parto foi totalmente diferente, muito mais tranqüilo. Assim que
Mateus nasceu, ele já me foi entregue. Ele olhou para mim como se
estivesse me reconhecendo. Ao contrário da primeira vez, a felicidade foi
imensa e não houve nenhuma preocupação.
Jonas foi com minha mãe me visitar na maternidade logo pela
manhã. Como ele (estava bonito! Que orgulho senti daqueles dois filhos!
Minha felicidade era imensa...
Chegamos a pensar em nos mudarmos para uma cidade pequena,
como Marília, onde meus pais tinham uma casa. Eu poderia me transferir
pela LBA e o Erik poderia dar aulas em alguma escola de lá.
Em casa, me senti um pouco culpada por ter que dividir a atenção
com os dois. Tinha pena do Jonas, e por isso ficava com ele todos os
momentos em que Mateus permitia. Erik me dava muita força e repartia
comigo essa delicada tarefa. Ele assumiu mais o Mateus e eu, o Jonas.
Conforme ia se desenvolvendo, Mateus nos chamava a atenção
pelos progressos que fazia, o que nos alertava em relação a Jonas. Por
que essa diferença tão grande? Eu nem gostava muito de falar desses
progressos, pois isso aumentava minha preocupação em relação a
Jonas. Um dia, comecei a ver um filme na TV que mostrava uma criança
autista. Fiquei apreensiva, pois notei muita semelhança com Jonas.
Minha reação imediata foi desligar a TV e não ver mais o filme. No dia
seguinte, minha irmã me ligou, comentando a respeito do mesmo filme e
dizendo que a criança era igual ao Jonas. Fiquei muito brava com ela.
O início de um aprendizado

Quando Jonas completou dois anos, a indiferença que manifestou em


relação à festinha que preparamos e aos inúmeros brinquedos que
ganhou não nos deixou dúvidas.
Existia, realmente, algum probleminha com ele. Precisaríamos
investigar, mas sem nenhuma pressa. Houve uma noite em que ele
acordou aos berros. Tentei segurá-lo no colo, mas ele se recusava: me
puxava os cabelos, me empurrava... Então, colocamos ele no chão; ele
começou a correr e gritar sem parar e sem direção. Foi terrível. No dia
seguinte o levamos ao pediatra e colocamos nossas suspeitas quanto a
um possível autismo de Jonas. Já estávamos lendo há algum tempo a
respeito dessa síndrome. Jonas apresentava quase todas as
características relatadas. O pediatra concordou parcialmente conosco, e
nos indicou um especialista, dizendo que não poderia fazer mais nada
por ele. Apenas solicitou um EEG, cujo resultado não acusou nenhuma
anomalia.
A partir daí, começamos uma verdadeira maratona em médicos,
exames, leituras, conversas com profissionais, e tudo o que se podia
imaginar (inclusive benzedeiras e curandeiros). Mas mantínhamos uma
certa tranqüilidade, pois achávamos que um tratamento adequado o
tornaria uma criança totalmente igual a outras. A certeza, naquele
momento, de que Jonas não era uma criança "normal", e que a partir daí
deveríamos nos dedicar ainda mais a ele, acabou tendo conseqüências
para Mateus, que estava com quatro meses de idade. Primeiro foi o meu
leite que secou totalmente, e ele, que adorava mamar, teve que passar a
utilizar mamadeira. Ele teve muita dificuldade para se adaptar ao novo
leite, sofreu desidratação, início de bronquite, o que nos obrigou a levá-lo
a vários médicos. Felizmente ele continuava muito bem emocional e
intelectualmente, e logo superou essas pequenas moléstias.
Quando conseguimos realizar uma consulta do Jonas com o melhor
neuropediatra de que tínhamos referências, já havia se passado quase
um mês. Nossa grande esperança era que ele iria "curar" o Jonas.
Nessa consulta, primeiro passamos por uns três ou quatro assistentes,
que o examinaram detalhadamente, além de nos fazerem inúmeras
perguntas. Todos suspeitaram de autismo, mas disseram que o
diagnóstico não era definitivo. Finalmente, chegamos ao médico tão
esperado, mas ficamos imediatamente muito decepcionados com ele,
pois entrou na sala em que nós três estávamos, com uma caixinha de
música tocando e ficou, sem dizer absolutamente nada, olhando e
observando o Jonas, que continuou o que estava fazendo (derrubando
revistas), sem se virar uma única vez para o médico ou sua caixinha de
música. Evidentemente, num ambiente estranho, Jonas estava mais
estranho ainda.
Depois de algum tempo, o médico virou-se para nós e disse:
— Seu filho é surdo e provavelmente deficiente mental.
Retrucamos imediatamente, pois sabíamos que ele ouvia
perfeitamente e dissemos que ele gostava muito de ouvir músicas. O
médico disse que isso não era possível, pois ele não se ligara na
caixinha de música. Indignada, retruquei:
— É que ele só aprecia boas músicas, doutor.
Ignorando o que dizíamos, analisou os exames que havíamos feito e
solicitou um exame de audição completo, afirmando que só depois disso
poderia dizer algo.
Após o exame de audição (que, como esperávamos, não registrou
absolutamente nada de anormal, e apenas confirmou a incrível
preferência dele por determinados sons musicais), retornamos ao
neuropediatra. Depois de mais perguntas e observações, ele suspeitou
de autismo e nos aconselhou a trabalhar com Jonas com muitos
estímulos verbais, visuais e táteis. Indicou uma renomada psicóloga que
poderia trabalhar com ele e nos orientar melhor, e disse também que só
poderia fechar o diagnóstico após a avaliação dela.
Chegando em casa, liguei imediatamente para essa psicóloga, para
marcar uma consulta. Ela disse que só poderia me atender dentro de um
mês. Não resisti e caí num pranto compulsivo, sem conseguir dizer mais
nada. Não conseguia controlar tanta apreensão. Acho que ela ficou
penalizada com a minha situação, pois me pediu para ir vê-la no dia
seguinte, mas sem o Jonas. Fui, ela me atendeu muito bem e gostei
imensamente do seu jeito. Pelas perguntas e intervenções que fazia,
achei que estávamos com a pessoa certa para resolver o problema (para
nós, ainda era um problema) do Jonas.
Quinze dias depois, muito confiantes, Erik e eu levamos o Jonas para
a consulta. Mas quando entramos na sala de consultas, repleta de
estímulos visuais, Jonas não se ligou em nada. Ela tentou algumas
coisas, mas ele continuou alheio. Ela deixou escapar um comentário:
— Meu Deus, como ele é desligado!... — e pediu licença para sair da
sala por alguns instantes. Fiquei olhando para o Jonas e pensei:
— Ele não é assim tão desligado; preciso fazer algo rapidamente
para ele se ligar mais!
Havia algumas bolas grandes e coloridas na sala, e às vezes, em
casa, ele gostava de brincar com bolas, fazendo-as girar. Sentei-me no
chão, perto dele, peguei uma das bolas, comecei a girá-la e chamá-lo
por seu nome. Ele olhou para mim, sorriu e quis pegar a bola. Brincamos
um pouco: ele pegava a bola que eu rolava para ele, após fazê-la girar.
Após alguns instantes, a psicóloga entrou na sala e com grande
entusiasmo disse:
— É isso mesmo! Você é a melhor terapeuta para seu filho!
Em seguida, escreveu e nos passou uma lista com várias
orientações, acompanhada de uma lista de materiais que precisaríamos
(a maioria brinquedos, incluindo bolas de várias cores e tamanhos), e me
pediu para trabalhar isoladamente com ele, em casa, num quarto
exclusivo e preparado para isso, durante uma hora, em três períodos por
dia. Deveria seguir suas orientações e minha intuição de mãe,
observando atentamente em que ele se ligava mais. Voltaria a vê-la em
um mês. Depois soubemos que, em conversa com o neuropediatra que
a indicara, eles praticamente haviam fechado o diagnóstico de autismo.

Bem, uma nova e fascinante etapa se iniciava para nossa pequena


família. Minha primeira atitude foi pedir um afastamento de três meses
no trabalho (era o tempo máximo permitido, e eu achava que seria
suficiente para a total "normalização" do Jonas). Mateus, então com seis
meses, começou a freqüentar a mesma escola de Jonas, no berçário.
Iam em períodos diferentes, para que pudesse dar a atenção necessária
aos dois. Para suprir meu salário, Erik passou a trabalhar em período
integral, e eu comecei a trabalhar entusiasmada com Jonas, procurando
seguir as orientações da psicóloga.
Nos primeiros dias, achei muito difícil e quase impossível fazê-lo se
interessar por algo e mantermos a mínima comunicação. Ele continuava
sem olhar para mim, sem gostar que eu o tocasse e alheio a qualquer
tentativa minha. Mas eu não desistia. Às vezes, até eu me desligava,
pois aquela sensação de estar falando e "brincando" sozinha era muito
desagradável. Mas algo muito forte, em meu interior, me dizia que
deveria estar muito atenta e não pensar absolutamente mais em nada
quando estávamos juntos. Minha atenção deveria ser exclusivamente
para o momento presente, para o que estávamos fazendo e sem
expectativas. Esforcei-me para seguir essa intuição.
A primeira comunicação que mantive com Jonas foi quando me
escondi atrás da porta e o chamei. Após algumas tentativas, ele me
encontrou e exclamei:
-Achou!!!...
Ele sorriu e, pela primeira vez, deixou que eu o abraçasse. Isso foi
maravilhoso! Não via a hora do Erik chegar em casa para contar a ele o
grande acontecimento.
A partir daí, nossa comunicação foi melhorando a cada dia. A
agressão se transformou em carinho, ele passou a gostar de alguns
beijinhos, afagos, e até de colo.
Lembro-me de que um pouco depois dele começar a olhar para mim
(e não mais através de mim, como até então), durante o banho, ele tirou
da boca a chupeta (o objeto de que ele mais gostava) e a colocou na
minha boca. Foi seu primeiro gesto de interação. A imagem tão pura
daquele gesto tão delicado, tão simples, mas tão profundo, é algo que
sempre guardarei comigo!
Então ficou fácil e maravilhoso "trabalhar" com Jonas. Era agradável
e gratificante. Brincávamos de esconder debaixo de lençóis, dentro de
grandes caixas, no guarda-roupa... Brincávamos também com jogos de
encaixe (ele gostava muito de um de madeira com pequenos pinos
coloridos), jogávamos bola, escondia objetos para ele encontrar e eu
cantava muito para ele. Lembro-me (e isso acontece até hoje) de que ele
sempre ficava atento às melodias e, quando eu desafinava (o que não
era raro), olhava para mim com uma fisionomia marota, e às vezes
chegava a soltar uma gostosa gargalhada. Ele já estava bastante
carinhoso comigo. Com o Erik, um pouco menos. Mas ignorava seu
irmão.
Quando, depois de um mês, o levamos de volta à psicóloga, ao ver
os progressos de Jonas, ela ficou entusiasmada. Achou que era o
momento de começar a ensinar-lhe coisas mais práticas. Primeiro, tirar e
pôr as calças; depois, ensiná-lo a ir ao banheiro, alimentar-se sozinho e
coisas assim, mas sem deixar de lado as brincadeiras, além de ir
nomeando tudo, principalmente as partes de seu corpo, na hora do
banho, para ver se ele começava a falar. Segundo ela, o mais difícil —
ele olhar e sorrir, comunicando-se conosco — já havíamos conseguido.
Voltamos para casa com as novas orientações e bastante animados.
Voltaríamos a vê-la em um mês, mas poderíamos nos falar por telefone
sempre que fosse necessário.
Quanto a Mateus, ele nos surpreendia diariamente com novidades
que aprendia. Aliás, foi por intermédio dele que percebemos que Jonas
era uma criança especial.
Sentíamo-nos uma família bastante feliz. O bom humor jamais faltou
em nossa casa e o amor sempre existiu entre nós quatro, permeando
tudo que fazíamos. Havia uma certa preocupação em relação a Jonas,
mas procurávamos não nos abater e seguir em frente.
Certo dia, quando amamentava Mateus, Jonas chegou meio
enciumado e se apegou a uma bola murcha. Ele só ia para a escola com
aquela bola, e não gostava de largá-la por nada. Ela foi seu primeiro
brinquedo de estimação. Depois vieram outros, e até hoje ele tem um,
que, pelo tempo que passa com ele, parece lhe ser muito especial.
Bem, continuamos firmes no trabalho com Jonas, tendo quase
certeza de que, quando ele estivesse na idade de ir à escola, não teria
mais problemas e passaria a freqüentá-la naturalmente, apesar da
psicóloga ter nos alertado de que deveríamos trabalhar com ele durante
muitos anos, talvez mesmo durante toda a vida. Mas, para nós, isso não
excluía de forma alguma a possibilidade dele vir a levar uma vida
"normal".
Um teste

Um dia, quando fui buscar Jonas na escola, sua professora disse que
ele havia dormido durante toda a tarde. Achamos isso estranho, pois ele
jamais havia sequer cochilado nesse período do dia. Mas como ele
estava aparentemente bem, não nos preocupamos. Chegando em casa,
como sempre fazia, fui preparar sua vitamina de frutas, enquanto ele
brincava na sala, que ficava ao lado da cozinha. Quando liguei o
liqüidificador, olhei para a porta, esperando sua entrada (ele sempre
vinha correndo, tão logo ouvia o som do liqüidificador). Como ele não
aparecia, fui ver o que estava fazendo. Ao entrar na sala, fiquei atônita:
ele estava em pé, olhando para o alto, virando o olhar e todo o corpo,
como se estivesse acompanhando algo voando. Nessa volta que deu, foi
ao chão e permaneceu deitado, ainda parecendo tentar acompanhar
algo com o olhar. Como eu já havia lido que, às vezes, os autistas têm
visões, imaginei que talvez ele estivesse vendo realmente algo e
imaginei: "Seriam anjos?" Coloquei-o no sofá e fui buscar a vitamina de
que ele tanto gostava. Ele estava bastante sonolento e não quis a
mamadeira. Então corri para lhe dar o banho, antes que dormisse. Mas o
sono bateu-lhe muito forte, e ele começou a dormir na banheira. A
solução foi trocá-lo rapidamente e colocá-lo no berço. Embora aquele
seu comportamento me deixasse preocupada, achei interessante que ele
dormisse um pouco, pois geralmente ele quase não sentia sono.
Quando Erik chegou do trabalho, Jonas ainda dormia. Relatei
minuciosamente o que tinha ocorrido e ele suspeitou de "ataque". Eu
perguntei como era isso, mas ele respondeu:
— Não, não... não deve ser, deixa pra lá.
Quando fomos dormir, já tarde da noite, Jonas ainda dormia. Nós o
colocamos entre nós, na cama, para podermos acordar a qualquer sinal
que fizesse. Despertei no meio da noite, com ele movimentando a
cabecinha para trás e piscando os olhinhos. Acordei Erik:
— Erik, foi mais ou menos assim que ocorreu hoje à tarde.
— É ataque!, respondeu ele.
Levantamo-nos assustadíssimos, pensando no que faríamos.
Quando amanheceu, Jonas teve outro "ataque". Ligamos para o
neuropediatra e, pelo nosso relato, ele confirmou as suspeitas de Erik.
Receitou por telefone um anticonvulsivante, mas disse que só poderia
ver o menino dentro de uma semana. Desesperados, pedimos auxílio a
uma vizinha nossa, na vila, que era neuropediatra. Ela veio prontamente
à nossa casa e, após examiná-lo e ouvir atentamente nosso relato,
confirmou: ele estava tendo convulsões e precisaria começar a ser
medicado imediatamente, sugerindo o medicamento que havia sido
receitado. A partir desse dia, Jonas, que estava com dois anos e meio de
idade, começou a tomar anticonvulsivantes diariamente.
Achávamos (ou torcíamos?) que ele precisaria ser medicado durante
um período bem curto, e que depois os medicamentos seriam reduzidos
gradativamente, até se tornarem totalmente desnecessários. Mas
ocorreu exatamente o oposto: como as convulsões não cediam, as
doses dos remédios começaram a ser aumentadas e novos
medicamentos foram acrescentados. O neuropediatra solicitou novos
exames, mas estes não acusaram nenhuma anomalia. Creio que esse
foi o período mais doloroso de nossa vida: ora Erik consolava meu
pranto, ora era eu que tinha que consolá-lo; às vezes faltava força para
ambos, e cada um procurava um canto para chorar escondido, tentando
não preocupar ainda mais o outro. Felizmente existia Mateus, que nos
fortalecia muito com sua alegria e exigências naturais de bebê.
Sentíamos que tínhamos de estar bem para ele.
Em conversa com o neuropediatra e com a psicóloga, durante uma
consulta, perguntamos se havia alguma relação entre o autismo e as
convulsões de Jonas, e se estas não seriam uma forma dele voltar ao
seu mundo, do qual insistíamos em tirá-lo. Os dois profissionais
garantiram que não havia nenhuma relação entre as duas coisas; ele
simplesmente tinha dois problemas que, por serem distintos, deveriam
ser tratados de maneiras diferentes: um com medicamentos e outro com
terapia. "Meu Deus, quanta coisa para uma só criança. Não seria
demais?", pensei.
O trabalho que eu desenvolvia diariamente com Jonas foi
terrivelmente prejudicado. Ele retornou à apatia inicial e não raras vezes
agitava-se muito. Começou a auto-agredir-se com bastante freqüência,
ora gritava e chorava muito, ora ria e dava gargalhadas durante muito
tempo. Esse comportamento parecia não ter nenhum sentido. Seu sono,
que havia começado a se regularizar, acabou; por vezes ele passava
três dias sem dormir. Houve um período em que começou a bater
fortemente a cabeça no chão, enquanto gritava. Nossas tentativas para
contê-lo de nada adiantavam; aliás, elas o tornavam ainda mais agitado.
Então, seguindo orientação do neuropediatra, passamos a tentar ignorar
suas atitudes de auto-agressão: fingíamos não dar a mínima importância
e nem ver o que ele fazia nesses momentos. Meu Deus, como isso era
difícil! Muitas vezes, quando eu não suportava mais e ia acudi-lo, Erik
me continha; outras vezes acontecia o inverso. Não me lembro quando
começou a ocorrer, mas ele passou a procurar locais macios para bater
a cabeça (almofadas, estofados...), e finalmente acabou abandonando
esse hábito terrível.
Quando seu comportamento era mais "adequado", não poupávamos
elogios e festas, para que ele percebesse a forma "correta" de chamar
nossa atenção.
Mesmo com todas essas mudanças, continuei a trabalhar com ele
diariamente, seguindo orientações da psicóloga. Tentamos retomar a
comunicação com ele, recomeçando do zero, porém sempre que ele
apresentava sinais de comunicação, tinha nova convulsão e "regredia".
Reiniciamos várias vezes essas tentativas, mas qualquer "progresso" era
rapidamente destruído pelas crises. Isso parecia confirmar nossas
suspeitas de que as convulsões eram uma defesa utilizada por ele para
não sair de seu mundo, entretanto isso nunca foi confirmado por nenhum
dos inúmeros profissionais pelos quais Jonas passou até hoje.
Na época, procuramos vários outros especialistas, indo a eles cheios
de esperança, mas, afora a atenção que sempre davam ao "caso", nada
mudava. Cansados de constantemente ter de relatar a mesma história
para cada um deles, e responder às mesmas perguntas, escrevemos um
relatório com todas as informações que eles sempre queriam, tiramos
várias cópias, e levávamos uma delas toda vez que procurávamos um
novo médico.
Mudando de cidade

Nesse corre-corre diário, acabamos nem percebendo que minha


licença havia terminado e eu teria de voltar ao trabalho. Quando Mateus
nasceu, tínhamos, como já disse antes, planos de nos mudar para uma
cidade menor, onde não teríamos de pagar aluguel. Pensávamos numa
cidade como Marília, onde meus pais tinham uma bela casa que, nessa
época, estava alugada; um lugar onde passei minha adolescência e
juventude. Mas, com essa mudança radical que havia ocorrido em nossa
vida, pensei em parar imediatamente de trabalhar e me dedicar
exclusivamente aos nossos filhos. Como uma transferência para a
unidade da LBA de Marília, segundo nos disseram, parecia impossível,
eu e Erik decidimos que eu pediria demissão do trabalho. Não tinha
coragem de me afastar de Jonas por um segundo, receando que ele
tivesse uma convulsão e caísse. Esse foi um período bastante tenso,
mas confiávamos que nossas decisões seriam tomadas acertadamente.
A idéia de nos mudarmos para uma cidade menor era muito
convidativa, pois São Paulo havia se tornado uma cidade insuportável
para nós. Contudo, receávamos que no interior do Estado Jonas talvez
não viesse a ter uma assistência médica adequada, o que em muito
dificultava nossa decisão de mudança.
Certo dia, nessa procura incansável de um bom profissional que
"curasse" nosso filho, acabamos caindo no consultório de um psiquiatra
que nos ajudou muito.
Ele nos alertou de que éramos uma família de quatro pessoas e que,
por isso, devíamos pensar no que seria melhor para os quatro. Durante a
consulta, chorei muito, pois ele também nos disse que Jonas seria
sempre assim; poderia ter uma melhora de comportamento e outras
pequenas alterações em seu quadro, mas provavelmente jamais deixaria
de ser dependente. Nenhum profissional, dentre os vários que havíamos
contatado até então, havia dito isso de forma tão clara. Eu ainda
acreditava que o "problema" de Jonas perduraria apenas por um curto
período.
Tínhamos duas opções de cidade para onde nos mudarmos: Nova
Flórida, município onde ficava a fazenda de meus pais, e São Tomé do
Paraíso, uma pequenina cidade no interior de São Paulo, onde os pais
de Erik tinham uma loja e alguns imóveis, num dos quais poderíamos
morar — nossa pequena e amorosa família. Erik trabalharia na loja e
poderia também dar algumas aulas (algo de que gostava muito). Eu
trabalharia apenas em casa. Depois de pesarmos os prós e os contras
dos dois lugares, resolvemos nos mudar para São Tomé que, por ser
menor que Nova Flórida, certamente seria mais tranqüila para nós, já
fartos da cidade grande.
Quando retornamos ao psiquiatra e lhe comunicamos nossa decisão,
ele nos parabenizou e, juntos, planejamos como seria o tratamento de
Jonas após nossa mudança.
Inicialmente, retornaríamos a São Paulo a cada três meses, para
consulta com o neuropediatra, a psicóloga e com ele. Também
deveríamos contratar uma terapeuta ocupacional, que repartisse comigo
a responsabilidade de trabalhar com Jonas. Ela colaboraria de modo
mais profissional, deixando para mim o trabalho mais afetivo, de que ele
tanto necessitava. O psiquiatra chegou a nos indicar uma terapeuta
ocupacional que morava numa cidade de porte médio, próxima de São
Tomé. Em seguida, ele encaminhou Jonas para uma avaliação completa
na APAE, a ser feita antes de nossa mudança.
Comunicamos nossa decisão à psicóloga e ao neuropediatra que
atendiam Jonas, e ambos também concordaram que ela era a mais
acertada. Eles continuariam a acompanhar e orientar o tratamento de
Jonas por carta, telefone e, pessoalmente, a cada três meses.
A reavaliação da APAE indicou-nos que Jonas era portador de
autismo infantil, com crises convulsivas, e que, apesar da dificuldade de
uma avaliação mais completa e certeira, ele parecia não apresentar
deficiência mental. Foi recomendado, além do trabalho em casa, que ele
freqüentasse uma escola infantil "normal", para ter o convívio e os
estímulos adequados a crianças de sua idade. Foi descartada, na época,
a hipótese dele vir a cursar uma escola especial.
Adaptação

Erik pediu demissão do emprego e partimos, confiantes e cheios de


planos, para o nosso novo lar. Eu ainda não conhecia a casa que iríamos
morar, mas sabia que gostaria e que me adaptaria facilmente à nova
vida.
No início não foi muito fácil. As crianças pegaram uma gripe
fortíssima, e senti falta do pediatra para medicá-las. O único médico que
havia na cidade era ginecologista. Assim, comecei a aprender a fazer os
famosos "chás", que nossos avós tomavam. E não é que davam certo?
Bem, como dona de casa eu era uma negação.
Sempre tive uma empregada que fazia tudo, até as compras da casa.
Na nova cidade, o máximo que consegui foi uma menina que trabalhava
meio período e não cozinhava.
Nossa casa era uma bagunça, pois eu não conseguia cozinhar, dar
orientação à empregada e olhar os dois "bebês" (Jonas tinha dois anos e
meio e Mateus estava com 10 meses). A comida, além de não ficar lá
essas coisas, atrasava sempre. Depois do almoço, fazia Mateus dormir
para poder trabalhar com Jonas e, às vezes, dormíamos os três, já que
não havia quem cuidasse de um deles enquanto eu ficava com o outro.
Quase todas as noites, íamos dar uma volta no jardim para
espairecer um pouco. Havia uma banda que tocava na praça, nos fins de
semana, e Mateus ficava encantado com ela, acompanhando o ritmo
com o pezinho. Quando começou a andar, ele sempre arrumava um
pauzinho, punha-se à frente do maestro e regia a banda com muita
competência, segundo todos que comentavam conosco esse fato,
incluindo o maestro. Era muito divertido.
Como não havia escola infantil na cidade, comecei a procurar
crianças na vizinhança para virem à nossa casa brincar e fazer
companhia aos nossos filhos.
Claro que, com isso, só arrumei mais trabalho para mim, além de ter
de suportar o mau humor da empregada, pois a casa ficava ainda mais
bagunçada do que já era.
Quando chegou o verão, estávamos com Nice, uma empregada
encantadora que, além de ficar quase o dia todo em casa, cozinhava
muito bem. Achamos que as crianças precisavam de uma piscina para
se divertirem mais e se aliviarem do calor. Como havia uma piscina
pública municipal em São Tomé, não tive dúvidas: tirei carteirinha para
nós todos, incluindo Nice, nossa empregada.
Eu, ela e as crianças passamos a freqüentar a piscina todas as
tardes. Ela se ocupava de Mateus e eu, de Jonas. Eles adoravam a água
e se divertiam bastante.
Nunca me preocupei muito com os olhares estranhos de algumas
pessoas, ao verem o jeito "diferente" de Jonas. Algumas mães
chegavam a tirar seus filhos de perto dele, tentando protegê-los sabe-se
lá do quê. Eu me imaginava no lugar delas, e chegava a compreender
tais atitudes, pois elas ainda não tinham tido a chance de conhecer
crianças como Jonas. "É apenas uma questão de tempo", pensava
comigo. E, assim, fomos nos adaptando rapidamente ao modo de vida
dessa pequena cidade, onde até hoje moramos.
As "artes" que os dois faziam em casa eram de arrepiar os cabelos.
Jonas, além de aparentemente não ter medo de nada, tinha grande
desenvoltura para se locomover e ir atrás das coisas que queria. Não
poucas vezes, quando, exausta, deitava-me um pouco no sofá para
descansar, ao despertar (quase sempre com algum barulho estranho), lá
estavam os dois se divertindo muito em alguma "grande façanha". Numa
dessas vezes, estranhando o silêncio anormal que havia na casa, fui ver
onde estavam as crianças: Jonas, sentado na porta aberta do forninho,
"atacava" uma travessa de macarronada que iria ser esquentada para o
jantar, enquanto Mateus, em pé, apoiado na mesma porta, pegava os
fios de macarrão que Jonas deixava cair. Bem, lá se foi nosso jantar,
mas os dois estavam tão satisfeitos que Erik e eu acabamos achando
isso muito engraçado e providenciamos sanduíches numa barraca da
praça para o jantar. Os dois, por sua vez, após um banquete tão bom,
sequer quiseram a mamadeira da noite, que tanto apreciavam.
Em outra ocasião, quase morri de susto. Sentindo falta de Jonas em
casa, procurei-o inutilmente em todos os cantos. No quintal, havia um
tanque de areia, debaixo de uma árvore, do qual ele gostava muito.
Entretanto, esse tanque ficava próximo da laje de nossa garagem, que,
por causa de um declive no terreno, era bastante baixa. Fui procurar
Jonas na areia, mas vi que ele não estava ali. Então, olhando para cima,
eu o vi em pé, na cumeeira do telhado da casa vizinha, apoiado numa
antena de TV, todo contente. Havia subido na laje de nossa garagem e,
dali, galgara o telhado da outra casa. Esse telhado era muito íngreme,
mas me pus imediatamente a escalá-lo, indo na direção de Jonas. Até
hoje não sei como consegui chegar ao topo. Mas, quando estava a uns
dois metros dele, minhas pernas começaram a tremer e mal consegui
soltar a voz para pedir socorro. Por sorte, Nice apareceu, e enquanto
Jonas já começava a descer, correndo um alto risco de escorregar e cair,
ela escalou agilmente o telhado, chegando até ele, e o segurou.
Nesse momento, chorei feito criança. Nice sentou-se com ele na
areia, e começou a tremer tanto que fiquei preocupada com ela, que
felizmente logo ficou bem. Essas subidas no telhado aconteceram outras
duas vezes, antes de conseguirmos reformar o lugar, tornando-o mais
seguro, deixando-nos em paz.
Jonas também dava algumas "fugidas" às vezes. Apesar de ficarmos
sempre com o portão bem fechado, ele conseguiu (certamente por
prestar muita atenção em como o fechávamos) aprender a abri-lo. Meu
Deus! Que desespero a gente sentia quando percebia que ele havia
saído sozinho! Chegávamos na calçada e não sabíamos para que lado
ir. Felizmente não havia muito movimento de carros na rua, e
praticamente todos da cidade já o conheciam. Assim, eu saía numa
direção e Erik noutra, perguntando e procurando por ele. Quase sempre,
quando isso ocorria, o encontrávamos de mãos dadas com alguém que
já o estava trazendo de volta para casa. Geralmente ele entrava na
primeira porta que encontrava aberta e se instalava em alguma parte
desse lugar, com a maior naturalidade do mundo. Certa vez eu o
encontrei deitado no sofá da sala de espera de um dentista que tinha um
consultório perto de nossa casa. Outra vez, um senhor vinha trazendo
ele de volta, dizendo que ele tinha entrado em sua casa, sem pedir
licença, e fora até o fogão, abrindo o forninho para ver o que havia nele.
Felizmente a filha desse senhor conhecia Jonas e explicou ao pai quem
ele era. Mas tínhamos muito medo dele se encaminhar para a rodovia de
acesso à cidade, ou ir para o lado da estrada de ferro, e por isso sempre
saíamos primeiramente para procurá-lo nesses dois lugares perigosos.
Os maiores sustos, no entanto, tínhamos quando Jonas entrava em
convulsão acordado e em pé, caindo no chão e batendo a testa; ele
chegava a sangrar tanto que sempre nos parecia ter acontecido algo
muito mais grave do que realmente era. Quando isso ocorria, saíamos
correndo com ele até o hospital, e algumas vezes ele teve que levar
pontos nos ferimentos para estancar o sangue. Era terrível segurá-lo
enquanto o médico dava os pontos, pois ele ficava olhando para nós,
como que pedindo socorro, e a gente não podendo fazer nada, senão
segurá-lo enquanto os pontos eram dados. Às vezes não havia médico
em São Tomé, e então tínhamos de levá-lo até a cidade mais próxima.
Isso era ainda pior, pois os médicos que o atendiam, por não conhecê-lo,
vendo seu comportamento autístico, normalmente achavam que era
sintoma de alguma seqüela mais grave, decorrente do tombo que levara.
Muitas vezes nós também ficávamos em dúvida, e acabávamos
autorizando que fizessem um raio X do crânio. Nunca houve nada mais
grave, felizmente. Nessas ocasiões, Mateus nos fortalecia muito.
Entre sustos, "artes" e bagunças, íamos aprendendo cada vez mais.
Aprendemos a não nos preocupar excessivamente antes de acontecer
algo, ou seja, paramos de ficar imaginando o pior antes de sabermos o
que de fato havia acontecido.
Após essa adaptação inicial ao modo de vida que passamos a ter,
entrei em contato com a terapeuta ocupacional que havia sido indicada
em São Paulo. Ela nos fez uma primeira visita para conhecer Jonas e,
imediatamente, se encantou com ele. Resolvemos que ela viria três
vezes por semana, para trabalhar com ele em nossa casa, o que ocorreu
durante um ano, quando então ela se casou, não podendo mais
continuar o trabalho, e não encontramos outra para substituí-la. Mas
esse período foi excelente para Jonas, que passou a gostar dela, pois se
comunicava afetivamente com essa moça. Mateus também gostava
muito de suas vindas, tratando-a carinhosamente de "titi Balu". O nome
dela era Malu. Quando ela não pôde mais vir, voltei a trabalhar mais
intensamente com Jonas, tentando aproveitar ao máximo o que consegui
aprender com ela, combinando esse aprendizado com as orientações da
psicóloga de São Paulo. Mas os resultados de todo esse esforço sempre
iam por água abaixo a cada convulsão de Jonas... Por água abaixo?
Não, isso não é correto, pois Jonas, que no início de sua vida não
suportava contato físico com ninguém, foi ficando cada vez mais
carinhoso.
E essa afetividade para com algumas pessoas ele jamais perderia,
graças a Deus! Notamos, aliás, que ele se aproximava de algumas
pessoas que vinham em casa (geralmente de quem gostávamos), e
evitava outras (curiosamente, de quem não gostávamos), demonstrando
uma sensibilidade muito aguçada, ou excepcional mesmo. Isso nos
serviu (e até hoje ainda serve) como um alerta para nós, que não temos
uma sensibilidade tão refinada quanto a dele, e até hoje aprendemos
com a convivência maravilhosa que temos com ele. A diferença que
havia entre ele e outras pessoas de sua idade é que ele não se
interessava em aprender as coisas que geralmente elas aprendem. Além
de mim, passou a demonstrar um amor muito intenso pelo pai, o irmão e
as pessoas "legais" que tinham um maior relacionamento com ele.
De qualquer forma, achamos que seria necessário ele ter um
convívio maior com crianças de sua idade, e que também brincassem
com ele, pois Mateus roubava toda a atenção de seus amiguinhos.
Pensamos num "jardim de infância", algo que não existia em São Tomé.
Outro tratamento

Nessa época, fui informada sobre um grande psiquiatra de São


Paulo, especialista em autismo. Marcamos imediatamente uma consulta
com ele, e um novo tipo de tratamento se iniciou para Jonas. O
psiquiatra era realmente interessadíssimo em autismo e pesquisava,
experimentava, estudava, publicava artigos, o que demonstrava
claramente sua paixão pelo assunto, além de sua maneira carinhosa e
compreensiva de lidar com os pacientes, inclusive Jonas. Em nossa
primeira visita, ele nos descreveu o tipo de tratamento que fazia e os
bons resultados que já havia obtido. O tratamento chamava-se
Reorganização Neurológica (RN). O entusiasmo desse psiquiatra era tão
grande que nos convenceu. Jonas tinha quase seis anos na época.
Marcamos uma segunda consulta que deveria ser bastante longa, pois
deveríamos ficar em São Paulo cerca de dez dias, para fazer contato e
começar a série de exercícios que compunha o tratamento, os quais
seriam passados por uma fonoaudióloga. Seria o tempo suficiente para
aprendermos a Reorganização e continuarmos trabalhando em casa.
O período em que utilizamos esse novo método foi bastante difícil,
pois Jonas não gostava dos exercícios físicos, e por isso precisávamos
de duas ou três pessoas para ajudar nas sessões. Já a parte de fono da
RN era agradável para ele, que fazia com alegria as atividades
requeridas, embora nesta parte também precisássemos de ajuda de
outros. Apesar da resistência de Jonas em aceitar os exercícios, a
confiança da fono e do psiquiatra era tanta que nos contagiou. Além
disso, no período em que ficamos em São Paulo, conhecemos várias
outras crianças autistas, bem mais desenvolvidas intelectualmente do
que Jonas; algumas até falavam normalmente. Atribuíamos isso à RN,
pois essas crianças já faziam esse tratamento há algum tempo, e nessa
época não sabíamos que havia autistas de nível intelectual variado,
conforme catalogações de especialistas. Quando nos tornamos bem
treinados, voltamos para casa e começamos essa nova etapa, que durou
quatro anos. Tivemos de contratar outra pessoa para nos ajudar, pois
apenas Erik e eu não éramos suficientes.
Nesse período, retornávamos a São Paulo a cada mês, tendo
consulta com o psiquiatra e a fono. Eles continuavam sempre a nos
incentivar, dizendo que a RN controlaria as convulsões. Esperávamos e
trabalhávamos confiantes.
Os dois profissionais nos alertavam constantemente quanto à
importância de exercícios aquáticos para Jonas, pois além da água
ajudar na socialização, proporcionaria exercícios respiratórios
importantíssimos que contribuiriam para o controle das convulsões.
Como estava muito difícil freqüentar a piscina municipal com a
regularidade exigida, achei que poderíamos construir uma em nossa
casa. E como não tínhamos o dinheiro necessário, mas tínhamos a
necessidade, descobri que poderia ganhar um bom dinheiro vendendo
semijóias. Começamos a comprar aos poucos o material para construir a
piscina. Quando já tínhamos adquirido todo o material necessário,
faltando apenas o cimento e a mão-de-obra, conseguimos juntar mais
um pouco de dinheiro e começamos a obra. Certo dia, o pedreiro
informou-nos que o cimento havia acabado, e que era preciso comprar
mais (não me lembro exatamente quanto, mas era uma quantidade
muito grande). Ouvindo isso, Erik disse que naquele momento não
poderíamos fazer essa compra, e sugeriu suspendermos
temporariamente a obra. Pedi para esperarem um pouco, e saí de casa
com o meu saquinho de jóias. Quando voltei, trouxe uns três ou quatro
sacos de cimento. Eu vendera algumas peças ao dono da loja de
materiais de construção. Fatos como esse aconteceram mais umas duas
ou três vezes, até que finalmente a piscina ficou pronta. Foi realmente
um dos melhores investimentos que fizemos, pois Jonas e Mateus
adoravam entrar na água, onde passavam momentos muito felizes.
No início, tínhamos um pouco de medo de Jonas se afogar, então,
além de não sairmos de perto dele, sempre colocávamos uma bóia ao
seu redor (daquelas de lona que se amarram nas costas). Com o tempo,
percebemos que aquela bóia o atrapalhava, pois ele queria enfiar a
cabeça na água e ela o impedia. Por isso, resolvemos tirá-la, e, quando
o fizemos, descobrimos que ele boiava muito bem, gostava de mergulhar
e se divertia muito jogando brinquedos no fundo da piscina para ir
apanhá-los.
O problema maior era que Jonas queria entrar na água inúmeras
vezes ao dia. Cercamos a piscina com um pequeno alambrado, para que
ele não entrasse em algum momento de descuido nosso, mas como ele
tinha uma agilidade incrível, pulava várias vezes a cerca, e, quando
dávamos por nós, lá estava ele dentro d'água. Um dia em que fazia
muito frio, e por isso ele estava bem agasalhado com roupas de lã, tênis
e meia, escapou de nós e eu o vi pulando na parte mais funda da
piscina, com roupa e tudo, mas saiu com agilidade pela parte mais rasa.
Peguei-o rapidamente e o coloquei, mesmo vestido, numa ducha quente;
tirei suas roupas lentamente. Foi um susto, mas a partir desse dia, antes
de entrar na piscina, ele sempre enfiava o pezinho primeiro para saber
qual a temperatura da água.
Mateus costumava trazer seus amigos para nadar em casa, o que
era muito bom, sobretudo para Jonas. Mas essas crianças
freqüentemente tinham piolhos, e ficaria ainda mais difícil para mim se
Jonas também os pegasse. Então, a solução foi submeter a turminha de
Mateus a um "exame" habitual: faziam fila à minha frente, e um a um
punha a cabeça no meu colo para ser examinada. Isso chegou a ser
divertido. Essa piscina foi realmente muito importante para o
desenvolvimento de Jonas e de Mateus, e para o relacionamento entre
os dois.
Certo dia, Jonas estava brincando de pegar os próprios pés dentro da
piscina. Eu estava do lado de fora, cuidando das plantas, apenas
olhando para ele de vez em quando, pois ele se virava muito bem dentro
d'água. Numa dessas olhadas que dei, reparei que ele estava
demorando para levantar a cabeça, e então percebi que estava tendo
uma convulsão dentro da piscina. Pulei imediatamente dentro d'água,
sem ao menos tirar os sapatos, retirei-o da piscina e o deitei no chão. Foi
Deus agindo no momento exato, pois tão logo o recostei no chão, ele
inspirou profundamente, como sempre fazia (e faz) quando uma
convulsão termina. Então percebemos o perigo que corríamos, se o
deixássemos sozinho dentro da piscina (porque às vezes as convulsões
não dão sinais antecipados de que vão ocorrer), e por isso nunca mais
deixamos que ele entrasse ou ficasse sozinho dentro d'água. A partir
desse dia, o uso da piscina foi se reduzindo bastante.
Começamos a perceber que o próprio Jonas parecia ter ficado com
um pouco de medo, pois nunca mais tentou entrar sozinho nela. Hoje,
em dias quentes, principalmente em fins de semana, nós é que temos de
insistir com ele para que brinque conosco na água.
Tentando ser "normal"

Uma outra exigência do psiquiatra que atendia Jonas e nos orientava


e era de que ele deveria freqüentar uma escola: ou um jardim-de-
infância "normal", ou uma escola exclusiva para autistas. Esse assunto
começou a nos incomodar, pois sabíamos que isso era necessário, mas
não víamos como fazê-lo. Jonas era o único autista que conhecíamos na
cidade, na qual não havia escola infantil. Então tivemos a idéia de tentar,
junto à Prefeitura, planejar e instalar uma escola infantil.
O prefeito se interessou bastante pela idéia, e já havia um local bem
adequado para a escola ser construída. Então montemos um belo
projeto para concretizar a idéia.
Um ano depois, a escola Miudinho foi inaugurada.
Quando relatamos ao psiquiatra a respeito da escola, ele ficou
entusiasmado e disse que o convívio com crianças "normais" seria muito
bom para Jonas. Mas esclareceu que o convívio e o carinho familiar
ainda eram mais importantes para ele, e que por isso não seria bom nos
separarmos dele por um tempo superior a duas horas. Então imaginei:
"Tudo bem, eu trabalho nessa escola por meio período, durante o tempo
em que Jonas estiver lá. Assim, poderei atuar junto a ele sempre que
necessário (na época ele era extremamente "arteiro", e gostava de
esparramar e jogar ao chão tudo que via), para não atrapalhar o
aprendizado das outras crianças".
Além disso, iria passando aos professores a forma mais adequada de
lidar com ele.
Contudo, acho que houve uma falha nossa, por não entendermos (o
que ocorre até hoje) os freqüentes jogos de poder que muitas pessoas
praticam, impedindo que realizássemos as coisas como planejáramos.
Quando a escola estava pronta, o prefeito disse que o quadro de
funcionários estava completo, e que não seria possível eu trabalhar
apenas meio período. Nosso papel, na escola que havíamos projetado,
passou a ser apenas o de pais de alunos, sem direito a nenhuma
participação mais profunda na administração e funcionamento da escola.
De qualquer forma, essa escola foi fundamental para Mateus, que a
freqüentou com entusiasmo dos três aos seis anos, possibilitando que eu
tivesse mais tempo para Jonas. As tentativas que fiz para incluí-lo nessa
escola não deram certo: quando íamos lá, ele só queria brincar comigo
nas dependências externas, e o contato com as outras crianças era
mínimo e esporádico. Não foi possível estabelecer uma rotina de "ir para
a escola", que seria muito importante para ele.
Continuamos com a Reorganização Neurológica (RN) em casa,
trabalhos de terapia comigo e muitos passeios pela cidade, nos quais
eventualmente incluíamos uma ida até a escola.
Mateus ia se desenvolvendo cada vez mais. Tornou-se um amigo
muito querido dos coleguinhas. Numa festinha de aniversário dele, após
consultá-lo sobre quantas pessoas queria convidar, ele me informou,
depois de contar nos dedos, que seriam umas 10 ou 15. Mas, sem nos
avisar, acabou convidando a escola inteira. Quando vi aquele "monte" de
crianças chegando em casa, entrei em pânico, pois não havia o que
oferecer para tanta gente. Não sei como, até hoje não entendi, mas o
fato é que, fora a bagunça que fizeram, tudo transcorreu muito bem.
Todos se divertiram bastante e a festinha, ou melhor, a festança, foi
muito boa — Mateus que o diga!
Mateus era bastante sociável, e seus amiguinhos adoravam
freqüentar nossa casa. As crianças sempre foram mais "sábias" que os
adultos, e talvez por isso todos os amigos do Mateus, enquanto crianças,
sempre encararam Jonas com naturalidade, o que foi excelente para a
formação de todos. Não raras vezes um ou outro amiguinho do Mateus
dormia em casa, outras vezes ele é que ia dormir na casa de algum
amigo. Nossa casa virou uma verdadeira creche. Na hora da merenda,
todos adoravam a vitamina que eu fazia, então tinha que bater duas
receitas, pois apenas um copo do liqüidificador não era suficiente para
todos. Na hora do banho, o banheiro virava uma piscina, pois sempre
tinha alguma criança que também queria tomar banho (eles adoravam
nossa banheira, que Erik ganhara de uma colega de trabalho, em São
Paulo, e que fizera questão de trazer com a mudança e instalar em
casa). Há muito tempo a bagunça que as crianças faziam havia deixado
de ser uma preocupação para mim.
Continuamos vivendo felizes. O autismo de Jonas já não nos
preocupava, pois ele demonstrava ser feliz. A única coisa nele que nos
preocupava (e que ainda nos preocupa) eram as convulsões. Felizmente
elas passaram a se manifestar quase sempre durante o sono, não
havendo portanto perigo dele cair e se machucar. Rebaixamos a sua
cama, que ficou reduzida praticamente ao estrado no chão, e ele gosta
muito dela.
Um pouco do que aprendemos

Foi nessa época que entramos em contato com algo superior, por
meio de um amigo nosso. As pessoas que não se acomodam com
respostas fáceis sempre estão, de uma maneira ou de outra, procurando
algo que parece estar situado além das aparências e que responda a
suas perguntas mais íntimas. Algo que as faça lembrar que são filhas de
Deus, e que têm uma responsabilidade, uma missão aqui na Terra. Algo
que justifique sua existência e as "barreiras" que a vida lhes oferece e
que as faça lembrar de si mesmas.
Começamos a participar de reuniões, com um professor desse
"Ensinamento" (acho que podemos chamá-lo assim). Nosso aprendizado
era voltado para o interior de nosso ser, por meio de práticas e
ensinamentos, e envolvia os três níveis do ser humano — físico,
emocional e intelectual.
Devagar, fomos descobrindo a realidade nossa e a do mundo
externo. Começamos a aprender a ver além das aparências, por meio de
experiências pessoais, do próprio sentir de cada um. Porque o
verdadeiro conhecimento só pode ser adquirido por experiências (não
por experimentos) pessoais, do próprio vivenciar... Todo o resto é mera
informação.
Esse Ensinamento oferece uma possibilidade de contato com a
essência de todas as grandes religiões, de todas as ciências, de todas
as Artes, de toda a Filosofia.
É algo que possibilita recuperarmos a partícula divina que existe em
todos nós. E essa partícula, hoje o sei, é infantil. Como disse Jesus:
"Deixem vir a mim as crianças, e não as impeçam, porque o Reino de
Deus é daqueles que se assemelham a elas". (Mc, 10. 14).
Bem, é essa pureza infantil que começamos a buscar resgatar.
Esse Ensinamento, juntamente com Jonas, foi importante para um
crescimento interior nosso, que continua até hoje. Creio que uma coisa
complementava a outra, pois foi mais ou menos nessa época que
conseguimos entender e aceitar plenamente nosso filho realmente como
ele é. Começamos a compreender o porquê de sua vinda entre nós e
perceber o presente incrivelmente lindo que havíamos recebido. Tenho
certeza de que muitos pais de crianças com "problemas" semelhantes
chegaram a essa compreensão, que os especialistas, por não passarem
por nossas experiências, não conseguem ter, e por isso nos tacham de
sonhadores e outras coisas mais. É realmente uma pena que muitos
deles não consigam ver o lado mágico e puro desses seres
encantadores, para quem o passado já passou, o futuro está distante, o
presente está sendo vivido intensamente, e eles estão nos convidando a
todo instante para vivê-lo também!
A realidade

Mas, como estamos num mundo repleto de seduções, elas nos


impedem de vivenciar essa lucidez 24 horas por dia. Na verdade,
durante a maior parte do tempo agimos sem essa lucidez plena. Agimos
como todo mundo, automaticamente, conforme os "cutucões" que vamos
recebendo da realidade. Num desses "cutucões", recebi um convite para
trabalhar na área social da Prefeitura. Como ainda não havia
desenvolvido a mínima vocação para dona de casa, achei que seria bom
para mim e para a cidade, pois, graças à minha formação de socióloga,
poderia desenvolver um trabalho importante para o município. Além do
mais, eu gostava muito de trabalhar nessa área. Erik me incentivou
bastante, e aceitei a proposta com a condição de trabalhar apenas meio
período e, sempre que fosse necessário, poder ir para casa dar
assistência a Jonas. Treinamos uma babá para ficar com Jonas durante
minha ausência e novamente comecei a trabalhar fora de casa. O
Mateus já estava bem crescidinho e não necessitava de maiores
cuidados; além disso, no horário em que eu estaria fora de casa, ele
estaria na escola. Nessa época, Jonas e Mateus estavam com 10 e 8
anos, respectivamente.
Em relação ao trabalho com Jonas, abandonamos a RN, pois além
de não notarmos nenhum progresso ele passou a me evitar quando
percebia que uma sessão ia começar.
Fiquei temerosa de perder a afetividade que havíamos conquistado a
duras penas. Continuamos com a terapia, mas de maneira mais
esporádica. Na verdade, relaxamos um pouco em seu tratamento.
Por outro lado, meu trabalho na área social, por meio de visitas
domiciliares que fazia, revelara que havia vários deficientes mentais na
cidade, que até então eu sequer imaginava. Será que não seria possível
eles terem um local para freqüentarem?, comecei a pensar. Mas durante
algum tempo isso foi apenas uma idéia muito vaga.
Após dois anos de trabalho na Prefeitura, vi que não valia a pena
tanto esforço por poucos resultados. Além disso, por me preocupar
demasiadamente com o serviço, acabava relaxando um pouco dentro de
casa. Achei melhor sair do emprego e me dedicar mais às crianças e ao
lar. Quanto a trabalhar, passei a ajudar em nossa loja, da qual havíamos
comprado uma boa parte, graças a uma ajuda financeira de meu pai.
Isso possibilitaria a Erik dedicar-se mais ao magistério, de que tanto
gostava.
Jonas estava sendo atendido por outro neurologista, considerado na
época a maior autoridade em autismo. Seu tratamento era
predominantemente medicamentoso, visando acima de tudo controlar as
convulsões. Novas idéias eram relatadas a respeito de tratamento
terapêutico e esse médico enfatizava bastante a necessidade dele
freqüentar uma escola especial (idéia que até então fora descartada
pelos médicos anteriores).
Durante umas férias, na fazenda de meus pais em Minas, ficamos
sabendo que uma escola especial seria aberta naquele município.
Entramos em contato com a responsável, que era mãe de uma criança
autista, e pedimos para conhecer a escola. Essa visita nos entusiasmou
muito, pois foi a primeira escola, entre as várias que conhecemos
posteriormente, onde notamos um verdadeiro carinho dos profissionais
para com os alunos. Estes demonstravam grande alegria, assim como
as pessoas que trabalhavam ali. Era um ambiente muito alegre e
agradável, completamente diferente do que tínhamos visto até então (e
de todos que veríamos depois).
Em relação ao espaço físico, não havia nada de excepcional: era
uma casa adaptada, com amplo quintal, piscina e tanque de areia sob
uma árvore. No interior da casa havia três quartos, que foram
transformados em sala de atendimento individual (terapia e
fonoaudiologia), sala de atendimento grupal e sala de repouso. Uma
ampla sala servia de refeitório, sala de atividades grupais e festas para
os alunos. A cozinha era bem espaçosa, permitindo que alguns alunos
colaborassem nas tarefas culinárias. Na parte externa existia um
pequeno galpão, que era usado para recreação e atividades musicais.
Havia apenas dez alunos, atendidos por três estagiários da área e três
monitores, sendo um deles do sexo masculino. Além disso, a escola
contava com uma merendeira, um jardineiro e a coordenadora, que
havia cedido a casa para a escola funcionar. Eles não tinham intenção
de ampliar muito o número de alunos, pois temiam que isso pudesse
comprometer o bom atendimento de todos. Jonas nos acompanhou
nessa visita e, pela alegria que expressou enquanto estivemos lá,
demonstrou plena aprovação do lugar. Não tínhamos vontade de sair de
lá.
Voltando a São Tomé, ficamos pensando na possibilidade de abrir
uma escola semelhante. Sabíamos da existência de oito deficientes
mentais na cidade, um número suficiente para uma escola. Quanto ao
pessoal especializado, já havíamos percebido que estagiários seriam a
melhor opção, pois além da orientação que recebiam na faculdade havia
o entusiasmo próprio dos estudantes, além de representarem custos
mais baixos. Poderíamos encontrar esses estagiários num centro maior,
vizinho de São Tomé. O mais difícil seria o local, pois não tínhamos nada
além de nossa casa. Solicitar à Prefeitura? Achávamos improvável
receber apoio, uma vez que a abrangência de pessoas que seriam
atendidas era muito pequena. Precisaríamos pensar numa outra forma.
Enquanto essa idéia ia tomando forma e amadurecendo, nossa vida
ia seguindo mais ou menos tranqüila. Mateus se interessava cada vez
mais por música e menos pela escola regular. Jonas seguia feliz a seu
modo. Apenas as convulsões pareciam judiar dele e de nós. Erik
cativava cada vez mais seus alunos, pelas aulas que dava, e eu, como
sempre, continuava meio atrapalhada com os afazeres domésticos, de
mãe, comerciante e projetos para criar uma escola.
Um vislumbre

Nesse meio tempo, num dos momentos (que não eram raros) de
excesso de tarefas e preocupações — aqueles em que estamos fazendo
uma coisa mas pensando nas outras mil que devem ainda ser feitas, e
por isso não prestamos muita atenção ao que realmente estamos
fazendo —, Jonas chegou, solicitando insistentemente comida.
(Novamente ele me faz acordar, chamando-me para o momento
presente.) Quando percebi isso, preparei sua comida com grande
alegria, dei a ele e parei com todas as outras preocupações e afazeres,
procurando fazer apenas o que devia ser feito naquele instante.
Não sei se conseguirei expressar aqui o que compreendi. Naquele
momento, tive uma visão muito clara de minha missão: nasci mulher,
com um forte instinto maternal. Então, por que complicar as coisas?
Alguém já disse que "as coisas mais simples são as mais bonitas"...
Realmente, eu tive uma compreensão muito clara disso. Outra coisa que
me veio à lembrança foi algo que meu pai sempre dizia (aliás, eu sempre
brigava com ele quando isso acontecia), e que passei a compreender
plenamente: "Lugar de mulher é em casa". Esses vislumbres me fizeram
perguntar: Por que não me dedicar com mais amor, alegria e prazer ao
meu simples e grandioso papel de mulher e mãe? A partir desse
instante, o ambiente em casa ficou bem mais harmonioso e equilibrado.
Em vez de reclamar de todos os afazeres domésticos, passei a
desenvolvê-los com alegria e — o mais importante — sem me preocupar
com outras coisas que não pudesse resolver no momento.
A atividade a ser executada era exatamente aquela que estava sendo
feita; meu pensamento e todo o meu ser estavam ali, e o produto de
minha ação seria oferecido a outras pessoas. Uma das conseqüências
(para mim, totalmente inesperada) dessa experiência foi que, a partir de
então, passei a cozinhar cada vez melhor e com grande satisfação!
Você, leitor, com certeza já ouviu dizer que "atrás de um grande
homem, sempre existe uma grande mulher". Eu tinha a sorte de ter, ao
meu lado, não apenas um grande homem, mas três! Eu precisava
permitir a mim mesma, e a eles, ser uma grande mulher, para eles
continuarem a ser grandes homens! E, a partir daí, comecei a tentar ser
uma grande mulher.
Permanecendo mais tempo em casa e executando com prazer as
atividades domésticas, é evidente que a dedicação e as descobertas de
novos afazeres começaram a aflorar. Novas receitas culinárias eram
experimentadas e apreciadas. Comecei a cuidar de plantas, e ficava
(como fico até hoje) extremamente gratificada ao vê-las nascer e crescer
bonitas! Procurando vivenciar uma informação do Ensinamento, que
dizia que se você quer amar as pessoas deve primeiro aprender a amar
plantas ou animais, Erik começou a cultivar violetas com a mesma
dedicação e alegria que eu sentia.
Outra atividade que o Ensinamento nos sugeriu, e que, por executá-
la, acabamos descobrindo que era muito importante para um maior
equilíbrio interior nosso, foi a prática de atividades manuais. Iniciamos
(confesso que sem muita convicção) a confecção de tapetes, segundo
técnicas orientais antiqüíssimas. Acho que não sou capaz de expressar
o quanto essa atividade foi útil para nós, possibilitando-nos adquirir uma
paz interior e uma comunhão com Ele — coisas que não imaginávamos
que fossem possíveis.
Antes de dominarmos as técnicas básicas, nossa atenção ficava
voltada exclusivamente para o tapete que estávamos tecendo; caso
contrário, erraríamos tudo.
Isso foi muito importante para mais um aprendizado de estar
presente em cada momento vivido. Pensamos que, após o domínio das
técnicas, não conseguiríamos mais permanecer nesse estado, pois aí
tudo passaria a ser feito mecanicamente, a exemplo da maioria das
coisas que fazemos: o corpo ali, mas os pensamentos... sabe lá onde.
Mas não foi o que ocorreu, pois após dominarmos as técnicas nossa
atenção ficou muito mais intensa e presente, não no fazer propriamente
dito, mas no transmitir alguma intenção ou mensagem. É uma atividade
que desenvolvemos até hoje, diariamente. Para mim, ela é ao mesmo
tempo uma ajuda e uma oferta.
Nova tentativa

Claro que, com tudo isso de belo e bom acontecendo, a vida de nós
quatro seguiu bem melhor. Evidentemente, não abandonamos a
preocupação com o tratamento de Jonas; ao contrário, ela ficou ainda
mais forte, a ponto de nos motivar para fazer que ele fosse cada vez
mais feliz.
Era necessário um local, fora de casa, que ele pudesse freqüentar
todos os dias, como um compromisso, como todos nós temos, onde,
além do convívio alegre e de atividades com outras pessoas de sua
idade, fosse visto simplesmente como um ser humano, mais nada.
Estávamos convencidos de que Jonas merecia ter sua própria escola.
Nessa época, ele estava com 14 anos.
Era ano de eleições municipais, e isso nos deu uma idéia:
conversaríamos com os pais e parentes de outros deficientes na cidade
e faríamos um abaixo-assinado, solicitando ao prefeito a ser eleito um
prédio para montarmos nossa escola especial. Erik e eu elaboramos
uma carta, expondo as razões do pedido, e comecei a recolher as
assinaturas. Ninguém acreditava que fosse possível realizar esse sonho,
mas insistíamos tanto, e estávamos tão confiantes, que conseguimos um
número significativo de assinaturas. Depois dos familiares de
excepcionais terem assinado, coletamos assinaturas de pessoas
influentes da cidade. Então a lista ficou pronta, e só tínhamos de esperar
o resultado das eleições, para então colocar nela o nome do prefeito
eleito (num espaço que havíamos deixado em branco) e entregar
"solenemente" a ele no dia da posse.
A posse do novo prefeito seria no dia 1º de janeiro, dia que
costumávamos passar na casa de meus pais, em Minas. Então tivemos
outra idéia que, creio, foi determinante: convenci a mãe de uma menina
deficiente, bastante desenvolta e alegre, de que sua filha entregasse o
abaixo-assinado ao novo prefeito, durante a solenidade de posse. Antes
de viajar para a casa de meus pais, encomendei um buquê de rosas, a
ser entregue à nova primeira-dama, que sabíamos ser uma mulher
bastante sensível.
Tudo saiu melhor que o esperado. Bastante surpresos e
emocionados, o prefeito e a primeira-dama comprometeram-se ali
mesmo, diante dos presentes, a construir a escola.
Alguns dias depois, a primeira-dama veio me convidar para trabalhar
novamente na Prefeitura, na área social. Como isso representava uma
chance adicional de trabalhar mais intensamente no projeto da escola
especial, aceitei o convite. Sabia que estaria novamente sacrificando
minha família, mas meus planos eram ficar nesse emprego apenas até a
escola sair. Aí tudo ficaria perfeito!
Comecei então, mais uma vez, a trabalhar na Prefeitura, agora sem
horário fixo, podendo desenvolver a maior parte de minhas atividades
(elaboração de projetos) em casa. Isso evitava sacrificar muito minha
família, principalmente Jonas. Logo nos primeiros dias nesse novo
trabalho, vislumbrei a primeira chance para a escola: eu teria de elaborar
um projeto para a aquisição de materiais a serem utilizados por alguma
entidade social já existente ou que viesse a existir. Perguntei se poderia
direcionar o projeto para a nova escola e me disseram que sim.
Rapidamente obtivemos os primeiros materiais didáticos, que ficaram
guardados até o momento de sua criação. Embora não fosse muito, era
um começo importante, pois fortaleceria ainda mais o compromisso
assumido pelo prefeito de montar a escola. Depois desse primeiro
projeto, elaborei outros, e assim, projeto atrás de projeto, fomos
conseguindo o material necessário para a escola. A dificuldade ainda era
o local, pois nenhuma das propostas possibilitava a compra, aluguel ou
construção de algum imóvel (coisas de políticos brasileiros). Mas eu
aproveitava ao máximo as possibilidades.
Como os futuros alunos estavam bastante motivados, e alguns deles
até ansiosos, esse estado emocional deles não podia se prolongar por
mais tempo. Provavelmente, não havia pessoa mais ansiosa do que eu,
nessa época, mas um clima de impaciência era generalizado entre pais
e os excepcionais, que expressavam sua ansiedade de uma maneira
que conseguia compreender.
Escrevemos para vários dirigentes políticos, mas não tivemos sequer
uma única resposta de algum deles. Muitas vezes, vejo os políticos com
um certo humor, e me divirto muito com isso...
Dois anos depois ainda permanecíamos à espera da concretização
do nosso sonho. Então, comecei a pensar na possibilidade de
utilizarmos algum local, público ou não, já existente em São Tomé, onde
pudéssemos instalar, mesmo que provisoriamente, nossa escola.
Quando falei com o então prefeito sobre a situação emocional em
que estávamos, ele sugeriu que utilizássemos o salão de festas da
Prefeitura. Era um prédio isolado, um local tranqüilo, e com
dependências adequadas para nossos planos: um salão amplo, que
poderia ser utilizado para atividades grupais e possibilitar o atendimento
de duas turmas de até dez alunos. Havia também uma pequena sala,
que poderia ser transformada numa ótima sala de aula para os alunos
com comportamento mais difícil de ser trabalhado, incluindo Jonas, ou
ser utilizada para atendimentos individuais com a fono ou a psicóloga (as
únicas técnicas de que necessitávamos).
O salão de festas incluía ainda duas cozinhas, uma interna e outra
externa. A primeira poderia ser transformada em sala, e a externa
poderia ser adaptada para possibilitar o preparo da alimentação dos
alunos. Havia ainda dois banheiros, com chuveiros, e um pequeno
aposento, que poderia ser utilizado pela "direção" da escola. Parte do
mobiliário necessário poderia ser conseguido nas escolas rurais, que
haviam sido desativadas (outra atitude irônica dos políticos), e o que
faltasse certamente nós conseguiríamos obter.
Mãos à obra! Estávamos em setembro de 1994. Nós, mães,
decidimos nos instalar no local e iniciar as atividades da escola em
meados de janeiro. Antes disso, precisávamos selecionar e treinar o
pessoal que trabalharia na escola. Para isso, o primeiro passo era
termos uma boa orientação de alguém experiente, e visitarmos uma
escola semelhante à que pretendíamos instalar. Conversando com o
neurologista de Jonas, em São Paulo, ele falou de uma escola, situada
numa cidade vizinha de São Tomé, sugerindo que a visitássemos.
A primeira-dama do município estava bastante entusiasmada com a
criação da escola, e aceitou prontamente meu convite para acompanhar-
me nessa visita. Fomos muito bem recebidas pela diretora da escola,
Ollga, que nos auxiliou muito com sua experiência, além de nos animar,
dizendo que não era necessário praticamente nenhum material
específico, apenas um "pessoal disposto" e "muito empenho e
disponibilidade". Bem, isso tínhamos de sobra. Após conhecermos as
atividades que alguns alunos desenvolviam ali, as coisas foram ficando
mais claras para nós. Ollga se dispôs a fazer uma palestra em nossa
cidade, com a finalidade de motivar e averiguar as pessoas que se
dispunham a trabalhar conosco. Para o número de alunos que teríamos,
considerando os tipos de deficiências que apresentavam, precisaríamos
de quatro monitores, uma psicóloga e uma fonoaudióloga.
Fisioterapeuta, pelo menos nesse primeiro momento, não seria
necessário. Eu estava preocupada com uma pessoa para dirigir a
escola, pois precisaria ser alguém com bastante interesse, competente
e, sobretudo, carinhosa.
A palestra foi feita na pré-escola municipal, e dela participaram, além
das professoras e monitoras desta, alguns estudantes de nível superior e
outras pessoas da comunidade. Na palestra foi apresentado um vídeo
sobre a escola que Ollga dirigia e, em linhas gerais, como era o trabalho
com os deficientes mentais. Ela manifestava um entusiasmo muito
grande e por isso os participantes também ficavam entusiasmados. No
final, várias pessoas vieram me procurar para dar seus nomes, pois
estavam interessadas em trabalhar na escola que iríamos montar. Entre
essas pessoas, havia uma estudante de Psicologia. Muitas dessas
pessoas estavam dispostas a trabalhar voluntariamente. Como a seleção
do pessoal para ser treinado não seria feita por mim, anotei o nome de
todos e, posteriormente, tive uma conversa com o prefeito (o
responsável pelas contratações), indicando-lhe as pessoas que estavam
interessadas.
Entre estas, foram selecionadas oito, que inicialmente fariam um
estágio e receberiam orientações na escola de Ollga. Destas,
selecionaríamos as quatro que melhor se saíssem, além da estudante de
Psicologia, que nos pareceu bastante interessada. O estágio começou
na semana seguinte. Íamos semanalmente até a escola, ficando lá um
dia inteiro. Contratamos uma estudante do último ano de
Fonoaudiologia, que nos acompanhou nesse estágio.
No início, ficamos um pouco sem jeito frente àquelas pessoas tão
diferentes. Não sabíamos como lidar com elas, conversar ou sequer agir
com a naturalidade necessária. Mas rapidamente descobrimos a pureza
e a beleza de todas elas, e tudo ficou bem mais fácil. Freqüentamos
essa escola durante três meses, e ao final desse período tínhamos uma
idéia bastante clara de como deveria ser a "nossa" escola. Quando
voltávamos para São Tomé, sempre comentávamos a respeito do que
havíamos presenciado, aprendido e pensado durante aquele dia de
estágio. Havia algumas coisas ali com as quais intuitivamente não
concordávamos muito, mas eu sempre dizia: "Vamos aproveitar apenas
as coisas boas, as de que não gostamos vamos deixar de lado".
Uma das coisas que todas nós achávamos péssima, por exemplo,
era a falta de uma maior afetividade dos técnicos para com os alunos,
que muitas vezes nos procuravam, como que pedindo esse afeto, e nas
vezes em que isso ocorria não tínhamos coragem de recusar. Era uma
troca muito boa, pois criava uma confiança bem intensa entre os dois
lados (aluno e professor). Embora nossa atitude não fosse muito
aprovada por Ollga, era algo que não conseguíamos evitar.
Um fato importante foi o surgimento de uma amizade muito forte
entre todas as pessoas que iriam participar do quadro de funcionários de
nossa escola.
Quanto à direção da escola, insisti várias vezes na necessidade de
que fosse encontrado alguém para a função, chegando mesmo a sugerir
alguns nomes, mas o prefeito e a primeira-dama não concordavam de
maneira alguma, insistindo em que a escola seria minha e eu é que
deveria coordenar tudo. Eu tinha um pouco de receio de que ocupar
essa função pudesse prejudicar Jonas. Finalmente, não encontrando
outra solução, concordei em ser coordenadora, mas apenas enquanto
não encontrássemos outra pessoa para ocupar o cargo.
Bem, já que seria eu a coordenadora, conversei com Regina e Selma
(estudantes de Psicologia e Fonoaudiologia, respectivamente), e
estipulamos um horário diário para começarmos a redigir normas, planos
de aula, definir atitudes — enfim, tudo que seria necessário para
iniciarmos as atividades com os alunos. Também começamos a fazer
visitas domiciliares aos futuros alunos, com a finalidade de colher as
informações necessárias sobre cada um deles e suas respectivas
famílias. Sempre éramos muito bem recebidas, principalmente pelos
futuros alunos. As informações que coletamos foram suficientes para
traçarmos o perfil de cada um deles, e nos permitiram fazer uma divisão
inicial de turmas, bem como definir os atendimentos individuais e
atividades que seriam mais interessantes para cada um deles, segundo
suas possibilidades, necessidades e aspirações.
Listamos o material de que necessitaríamos, e começamos a tentar
consegui-lo. Ganhamos muitas coisas, a Prefeitura adquiriu outras, e
muitas outras nós mesmas doamos para a escola; conseguimos reunir o
material básico para iniciar o atendimento, mas faltavam algumas peças
de mobiliário, principalmente armários, nos quais pudéssemos distribuir
ordenadamente o material. Por isso, conseguimos algumas tábuas e
caixotes de frutas e com isso improvisamos nossos armários, que seriam
depois forrados pelos alunos.
Faltavam quinze dias para o início das aulas, e como ainda tínhamos
um certo receio de não darmos conta do recado, resolvemos começar
com apenas seis alunos, para nos adaptarmos, chamando os demais
após quinze dias.
Depois de montada, achamos nossa escola linda! No salão principal,
fizemos três ambientes: um refeitório e dois lugares para duas turmas. A
cozinha interna transformou-se numa excelente sala de aula, com as
prateleiras cheias de brinquedos pedagógicos. A pequena sala passou a
ser a sala de estimulação para atendimentos individuais de fono e
psicologia, além de possibilitar o repouso necessário a algum aluno
(alguns de nossos alunos apresentavam convulsões), e a minha sala
ficou no lugar da sala de banho, que estava desativada, sendo minha
mesa composta por duas carteiras escolares colocadas uma diante da
outra. A cozinha externa transformou-se, enfim, numa ótima cozinha
geral, e para ela conseguimos até uma mesa grande, armários, geladeira
e fogão. Os utensílios foram adquiridos pela Prefeitura e
eletrodomésticos como geladeira, liqüidificador e outros, adquiridos com
verbas de projetos que eu havia elaborado para a Prefeitura.
Ah! Tínhamos também um aparelho de som, que foi instalado no
salão principal. Considero a música fundamental para toda pessoa
especial, pois pode proporcionar alegria e situações excelentes para o
estabelecimento da socialização e de atividades grupais que são
fundamentais para todos.
Uma das monitoras tinha grandes dotes artísticos, e fez várias
gravuras e pinturas que embelezaram ainda mais nossa escola.
Uma semana antes do início das aulas, reunimos toda a nossa
equipe e discutimos todos os pontos que Regina, Selma e eu havíamos
elaborado: quem e como eram nossos alunos, como ficariam as turmas
e quem seria responsável por elas individualmente, nossos objetivos,
normas, atividades etc. A partir daí, cada monitora elaborou, sob nossa
orientação, seu plano de ensino para o primeiro mês de aulas. Juntas,
resolvemos que haveria alguns pontos básicos comuns a todas: com os
alunos que iríamos ter, ninguém poderia ter certeza de nada, assim
como ninguém seria a dona da verdade; seríamos suficientemente
responsáveis para discutir com as demais qualquer dúvida, e buscar
orientação fora sempre que isso se fizesse necessário, pois nosso
objetivo seria sempre, e acima de tudo, oferecer o melhor para cada um
dos alunos.
Tínhamos a nosso favor as duas estagiárias, que poderiam recorrer a
seus professores sempre que fosse preciso. Além disso, havia Ollga,
que se dispôs a nos auxiliar sempre que precisássemos.
Foram contratadas uma merendeira e uma faxineira, às quais
detalhamos nossos objetivos e como eram nossos alunos. Explicamos
quais seriam suas funções, como deveria ser o relacionamento delas
com os alunos, os horários de faxina, tipos e horários de refeições etc.
Como iríamos trabalhar inicialmente apenas no período da tarde,
resolvemos que haveria um lanche no intervalo das atividades e um
jantar antes da saída (pois sabíamos que a maioria de nossos alunos
provinha de famílias carentes, tendo por isso uma alimentação
insatisfatória). Por outro lado, as refeições também serviriam para
ensiná-los a alimentar-se sozinhos, desenvolver hábitos de higiene e
comportamento adequado durante as refeições.
Em relação a Jonas, eu tinha um certo receio de que ele não
gostasse ou não se acostumasse com a rotina da escola. Eu sabia que
todo esse alvoroço, toda essa mobilização e todo esse trabalho era
apenas em função dele. É evidente que a escola beneficiaria muitos
outros, mas ele era o maior responsável por tudo.
No período em que estávamos montando a escola, eu o levei várias
vezes até lá, para saber como se locomovia no local, se aprovava, enfim,
se ele se sentia bem naquele lugar que, no fundo, estava sendo
montado especialmente para ele. Suas reações, quando estava ali,
indicavam que estava gostando muito. Faltava apenas ver como se
comportaria com os colegas.
Outra coisa que nos preocupava muito era a temperatura do lugar.
São Tomé é uma cidade bastante quente, e como o salão era coberto
com telhas de amianto, a temperatura interna era muito alta. Por isso, o
prefeito mandou instalar vários ventiladores no teto, o que amenizou um
pouco o calor que todos sentíamos.
Bem, estava tudo pronto, com o máximo de perfeição que
conseguimos com o que tínhamos. Agora era respirar fundo e pôr mãos
à obra. Avisamos a todos os alunos e seus familiares que as aulas
começariam na segunda-feira, às 13 horas, e solicitamos a eles (ou a
seus pais, no caso dos mais dependentes) que levassem escova de
dentes, creme dental, sabonete e toalha de rosto, pois pretendíamos
trabalhar bastante com os hábitos de higiene para lhes possibilitar maior
independência em casa. Outras coisas não seriam necessárias, pois a
escola poderia fornecer.
Começaram as aulas!

Finalmente chegou o grande dia: o primeiro dia de aula. Estávamos


todos a postos para receber nossos primeiros seis alunos: as quatro
monitoras, as duas estagiárias, as serventes e eu. Eles foram chegando
pontualmente, um a um, muito felizes, acompanhados de seus pais.
Houve apenas um pequeno problema: um deles, Paulo (adolescente
com dezesseis anos), chegou praticamente puxado pela mãe e chorando
muito. Fui conversar com ele, que me disse entre soluços:
— Eu não sou doente. Não sei o que eu vim fazer aqui!
Isso me revelou que já havia um certo preconceito, um estigma em
relação à nossa escola, antes mesmo que ela começasse a funcionar.
Teríamos que trabalhar muito cuidadosamente essa parte, pensei. Mas,
naquele momento, a preocupação era Paulo. Então lhe disse:
— Que bom que você não é doente Paulo! Eu também não sou, e
nenhuma das pessoas que você está vendo é doente, senão estaríamos
todos em lugar errado. Veja, aqui não tem médicos nem enfermeiras.
Aqui é apenas uma escola diferente das outras. Diferente porque nós
vamos fazer mais coisas do que se faz em outras escolas, diferente
porque haverá menos alunos, para que possamos conversar e conhecer
bem todos vocês. Diferente porque aqui vai ser proibido ficar triste, e nós
vamos, além de estudar, nos divertir bastante.
Então ele ficou mais calmo, e eu pedi que ele experimentasse o
primeiro dia, dizendo-me depois o que tinha achado, e se queria
freqüentar ou não o lugar.
Ele ainda reclamou um pouco. Então, pedi ajuda a Regina, que
conversou bastante com ele, convencendo-o a "experimentar" a escola.
Regina saiu-se muito bem nessa primeira atuação, pois Paulo ficou
tranqüilo e quase feliz durante todo o período, chegando mesmo a nos
ajudar em algumas atividades, acompanhando e auxiliando outros
alunos que tinham muito mais dificuldades do que ele. No final das
aulas, fui até ele e perguntei:
— E aí, Paulo, você vai voltar amanhã?
Ele respondeu de uma maneira como quem não quer nada:
— Acho que vou, eu preciso ajudar o Leonardo!
Dentre os primeiros alunos que freqüentaram a escola, Leonardo era
o que mais nos dava trabalho. Apesar de ter apenas quatorze anos, era
muito grande e forte. Sempre levantava as mãos, ameaçando bater em
qualquer pessoa que lhe solicitasse algo. Regina chegou a ficar com
medo dele, e me disse:
— Pelo amor de Deus, não me deixe sozinha com ele, pois se ele me
der um empurrão, ele me desmonta!
Segundo informações que colhemos de seus pais, ele era
"perfeitamente normal" até os cinco anos de idade, quando foi acometido
de meningite e quase morreu.
Quando, por fim, sarou, não mais se desenvolveu mentalmente,
apenas fisicamente. Talvez seja por isso que até hoje ele sempre
responde, quando lhe perguntam qual é a sua idade: "Chínco anos".
Quando começou a freqüentar a escola, ele era muito negativista, não
queria fazer nada, e sempre respondia "não" a tudo que lhe
perguntávamos.
Os outros quatro alunos eram Célio — apresentava um leve atraso
mental quanto à escolaridade, mas tinha grande habilidade manual —,
que gostava muito de nos ajudar, e rapidamente ele e Paulo tornaram-se
nosso "braço direito"; Gabriela, uma aluna com deficiência auditiva e
mental, mas uma pessoa muito esperta; Cidinha, uma jovem
encantadora: tinha Síndrome de Down, era muito carinhosa e atenciosa;
por fim, Lucas, o aluno mais alegre e falante de todos, que conseguia
deixar o ambiente muito animado.
Trabalhamos com esses seis alunos durante uma semana. Depois
desse período de adaptação (principalmente nossa, pois os alunos
adaptaram-se muito bem), sentimo-nos suficientemente seguras para
chamar os demais. Por isso, definimos onde eles ficariam.
No início foi um pouco complicado dividi-los em turmas, pois cada um
deles era aparentemente um ser humano muito diferente dos demais e
queríamos formar três turmas mais ou menos homogêneas. Entre os
alunos, havia três que requeriam mais atenção e cuidados constantes,
porque eram bastante dependentes:
Sabrina, que mal sabia andar e não falava, precisava ser alimentada
e ir ao banheiro com uma acompanhante. Só conseguia realizar
atividades em classe se tivesse ajuda e estímulos constantes de outra
pessoa.
Quase desistimos de trabalhar com Chiquinho, pois ele era
agitadíssimo, não parava um minuto, tirava a roupa, fazia xixi em cima
desta e gostava de atirar objetos nos colegas e em nós. Era necessário
ter alguém sempre junto dele, procurando acalmá-lo e vesti-lo, e mesmo
assim algumas vezes toda a equipe tinha que ir atendê-lo. Ele também
gritava muito. Era bem pequeno para os seus oito anos, mas tinha uma
força enorme. Com o tempo, após muitas tentativas nossas e troca de
informações e idéias a seu respeito, ele foi melhorando. Hoje ninguém
diz nem acredita como ele era.
Nosso terceiro aluno muito dependente, claro, era Jonas, que ficava
com a turma de Sabrina e Chiquinho. No começo, era muito difícil
mantê-lo sentado. Imagine então levá-lo a fazer outras coisas! Mas,
depois de um mês, ele já ficava sentadinho em seu lugar, sorrindo para a
professora e fazendo joguinhos de encaixe. Para trabalhar com uma
turminha "infernal" como essa, eram necessárias duas monitoras, pois
uma não conseguia fazer nada, pelo menos no começo.
Os outros treze alunos foram divididos em duas turmas. Como a faixa
etária deles era entre quatorze e dezoito anos, procuramos agrupá-los
conforme suas habilidades.
Muitos deles tinham condições de participar de atividades mais
"escolares", além das manuais. Os demais necessitavam de atividades
físicas, trabalhos manuais e música.
Era uma turminha que tinha necessidade de maior socialização e de
comportamentos mais adequados, principalmente em locais públicos.
Mas do que todos eles precisavam era muita diversão e alegria, e por
isso procurávamos lhes propiciar isso. E acho que obtínhamos sucesso,
pois todos demonstravam estar muito contentes, apresentando uma
fisionomia muito feliz. Para todas nós, isso era nossa maior recompensa
pelo que estávamos fazendo!
Com raríssimas exceções, eles eram muito carentes, não apenas
financeira, mas (sobretudo) afetivamente. E quanto carinho eles tinham
para dar! Sentíamos que éramos obrigadas a retribuir uma coisa tão bela
que eles nos ofertavam todo o tempo.
Não demorou muito e nossa pequena escola improvisada
transformou-se numa grande, amorosa e feliz comunidade. Eu me sentia
uma segunda mãe de quinze filhos, os quais amava imensamente. Até
João Carlos, que sempre estava bravo, enfezado, reclamando de tudo,
acabou nos cativando com seu jeito especial, e nós o cativamos
também.
O único problema que tínhamos era em alguns fins de semana, pois
como nossa escola estava instalada em um salão de festas público,
quase toda sexta-feira tínhamos de recolher e guardar tudo na salinha
de atendimento individual, trancando-a, pois no sábado ia haver alguma
festa no salão.
Na segunda-feira seguinte, logo de manhã, lá estávamos nós
montando a escola novamente. Mas, com a ajuda de alguns alunos,
remontávamos nossa escola num clima acolhedor de muita alegria e
dedicação.
Para conseguirmos verbas governamentais, precisávamos ter uma
entidade registrada, com diretoria etc. Por isso, providenciamos essas
coisas, convidando pais de alunos e algumas pessoas da comunidade
que estavam sensibilizadas com nosso projeto para fazerem parte da
diretoria, que foi formada rapidamente.
Evidentemente, existiam algumas discussões entre monitores e
técnicos e, às vezes, entre mim e alguns deles. Mas essas polêmicas só
ocorriam quando não havia consenso quanto à melhor forma de lidar
com algum aluno em certas situações, e por isso elas eram muito
proveitosas. No fundo, os maiores beneficiados com essas discussões
eram sempre os alunos, pois por meio delas acabávamos descobrindo a
forma de melhor lidar com cada um e com o conjunto deles. Acabamos
desenvolvendo uma compreensão muito delicada quanto à relação entre
as necessidades individuais e coletivas que eles tinham. Algumas vezes,
após discutirmos um determinado caso, decidíamos como deveríamos
proceder, mas, no momento em que púnhamos em prática o
procedimento que havíamos definido, não dava certo. Quando isso
acontecia, reuníamo-nos novamente, levantando possibilidades de
novos procedimentos, até encontrar um que sempre dava certo. Isso
acontecia porque, no fundo, todas nós tínhamos em comum um ponto
central muito forte: queríamos o melhor para eles Quando uma de nós
descobria um procedimento que considerava bom para lidar com algum
aspecto mais delicado de um aluno, conversávamos a respeito, e, se
todas consideravam bom o procedimento descoberto, ele era
compartilhado por todas, incluindo as merendeiras. Esse procedimento
(será que devemos chamá-lo "democrático"?) ajudava muito, pois além
de reforçar um aprendizado dava segurança ao aluno, visto que todas
nós passávamos a tratá-lo da mesma forma. Sempre conversávamos
com os familiares dos alunos sobre nossas descobertas. Havia um elo
bastante profundo entre a escola e as famílias, uma vez que todos —
funcionários e pais — começaram a perceber que necessitavam de
todos para o bem-estar de cada uma daquelas pessoas maravilhosas
que freqüentavam nossa escola.
Um parêntese: como sentíamos que muitos habitantes de São Tomé
tinham um preconceito muito forte em relação à escola, resolvemos
convidar Ollga para fazer uma palestra no clube da cidade, para a qual
convidamos toda a população, por meio do alto-falante móvel da
Prefeitura, informações boca a boca e cartazes que confeccionamos e
espalhamos por toda a cidade. Mas essa palestra não resolveu muita
coisa, pois compareceram apenas os membros da diretoria da escola,
alunos (acompanhados por seus pais) e alguns vereadores. A palestra
de Ollga foi muito interessante, mas, quando terminou, seu
comportamento não nos agradou, a Erik e a mim (só depois percebemos
isso): em vez de procurar dialogar com colaboradores voluntários da
escola, como funcionários e membros da diretoria, ela dedicou sua
atenção apenas a políticos — vereadores e principalmente o então
presidente da Câmara.
Mas voltemos ao que interessa.
Todas nós assumimos que teríamos completa liberdade para nos
corrigirmos mutuamente, de forma discreta e amigável. Essa postura
contribuiu muito para errarmos cada vez menos. Como eu exigia que
não houvesse um poder autoritário, centralizado, conseguimos criar um
ambiente muito harmonioso, onde, diferentemente da maioria das outras
escolas, havia cooperação, e não disputa entre as pessoas.
A escola era um ambiente maravilhoso e nos sentíamos
extremamente gratificadas por nosso trabalho. Recebíamos várias
visitas, não apenas de pessoas da cidade, mas também de
representantes de instituições públicas e privadas, e dirigentes políticos.
Todos, sem exceção, notavam o clima de amor e harmonia que reinava
ali, e ficavam encantados com o que havíamos conseguido com os
alunos em tão pouco tempo. Esses visitantes acabavam ficando mais
tempo do que previam, pois se sentiam muito bem no lugar e por isso
sempre queriam permanecer mais tempo ali. Diziam que nunca haviam
estado numa escola para deficientes tão alegre como a nossa, que as
que haviam visitado sempre eram ambientes opressivos e tristes, e que
nossa escola poderia ser um exemplo para outras. Isso nos enchia de
orgulho (algo ruim, como vejo hoje) e confiança em nosso trabalho.
Quando chegou o mês de junho, resolvemos fazer uma festa junina
aberta aos familiares e amigos de nossos alunos. Foi uma trabalheira,
mas como valeu a pena!
Queríamos apresentar uma quadrilha, da qual participassem todos os
alunos, incluindo os que tinham alguma dificuldade de locomoção.
Fizemos vários ensaios, dos quais todos participaram com uma alegria
imensa. Como a grande maioria dos alunos era do sexo masculino (entre
os dezesseis, só cinco eram meninas), decidimos dançar também, para
que todos tivessem seus pares. No começo, receamos que eles não se
saíssem muito bem, mas a cada ensaio eles nos surpreendiam com
suas infinitas habilidades. No dia da festa, tudo saiu completamente
diferente do que tínhamos ensaiado, mas o resultado inesperado foi uma
quadrilha linda! Para a festa, preparamos tudo a que eles tinham direito:
barraca de pesca, de tomba-lata, de argola, de doces, de pipocas, de
milho verde... Enfim, um ambiente de uma festa junina decente, pois eles
jamais haviam tido oportunidade de participar de uma delas, brincando
com tudo que era possível, uma vez que em outras festas havia sempre
muita competição. Nessa festa não, eles não precisariam competir com
os "mais espertos", porque a festa era deles. E como se divertiram nesse
dia! Ah, Jonas, apesar de nesse dia estar ainda se recuperando de uma
forte gripe, saiu-se muito bem na quadrilha, dançando com sua
professora, que o adorava.
Interferências externas

Mas nem tudo eram flores nesse período: em casa, estávamos


passando por uma terrível fase de turbulências. Eu estava tão envolvida
e entusiasmada com os afazeres da escola, que nem reparei que meu
relacionamento com o Erik estava se deteriorando. Pela primeira vez,
sentia que o ambiente do trabalho era muito mais agradável que o de
casa. Se pudesse, ficaria na escola o tempo todo. Jonas também
gostava muito de lá. Eu detestava quando terminava o expediente e
tinha que voltar para casa com ele.
Erik estava quase sempre com um péssimo humor. Reclamava de
tudo e mal conversava com a gente. Discutia muito com Mateus e
comigo. Às vezes eu estranhava quando estava mais calmo e dizia: "Nós
vivemos muito bem, né...? São raros os casais que vivem bem...!". Eu
não sabia qual era o seu ponto de referência ao dizer coisas assim, e
concordava com ele para não criar atritos, embora achasse que
estávamos indo de mal a pior. Cheguei a pensar que viveríamos bem
melhor se nos separássemos.
Mas, para os meninos, principalmente porque eram adolescentes,
isso não seria nada bom. Mateus já estava tendo alguns "probleminhas",
típicos de sua idade, e nossa separação seria terrível para ele. Por isso,
sem saber exatamente o que estava acontecendo, fui contornando a
situação, procurando não me preocupar muito, porque a escola me
envolvia totalmente.
Na verdade, Erik nada me dizia e eu não conseguia enxergar que ele
precisava de ajuda, porque estava visivelmente sendo "puxado para
baixo". Mas, como eu não conseguia ajudá-lo, também comecei a ser
arrastada na mesma direção.
Meu amor e a confiança que tinha nele estavam muito abalados.
Passamos alguns meses nessa situação. Foi o pior período de nossas
vidas, pois em todas as crises pelas quais um de nós passara, até então,
sempre havia o outro para dar apoio, mas agora não: éramos nós dois
que estávamos indo para o abismo. Erik foi se recuperando e superando
o problema, e tentando reconquistar minha confiança e meu amor, mas
às vezes "escorregava". Contudo, logo depois dessas quedas, sempre
se reerguia novamente. Finalmente, com minha ajuda, ele resolveu o
problema, e nossa vida voltou ao normal. Acho até que passamos a viver
muito melhor do que antes, talvez porque o sofrimento que vivenciamos
nos fez valorizar mais um ao outro.
Hoje, quando relembro esse período, vejo que aqueles fatos eram tão
pequenos que seriam incapazes de destruir tudo que havíamos
construído e conquistado juntos; algo realmente insignificante dentro da
grandiosidade de nossas vidas e de nossa pequena e linda família.
Felizmente fomos suficientemente sábios para superar essa fase ruim.
Existem certos lugares que nos proporcionam uma sensação
especial. Esses lugares têm uma energia diferente de outros, e basta
que neles permaneçamos para desenvolvermos uma sensibilidade muito
superior do que a que temos em outros lugares em que geralmente
ficamos. Esses lugares também podem nos ajudar — basta que
saibamos nos conectar corretamente com eles. Eles estão por toda
parte, mas geralmente não os percebemos. Aqui em São Tomé existe
um lugar assim. Uma paisagem aparentemente comum, que talvez as
pessoas não percebam porque fica próxima ao cemitério. É um vale que
pode ser visto de um ponto mais elevado (e de fácil acesso), oferecendo
uma visão maravilhosa da natureza, das plantas, dos animais e do céu
(alguém precisa mais do que isso?). Seus vários tons verdes, formados
pelas diferentes plantas, mesclam-se com os variados tons azuis do céu,
em qualquer época do ano. Esse lugar é vivo.
Se você se vira para a esquerda, vê, bem abaixo, a maior parte da
cidade, que, dali, parece muito menor do que é. Comecei instintivamente
a ir até esse lugar, com Jonas, quando me sentia 'com mais problemas
do que era capaz de resolver. Lá de cima, vendo a paisagem e São
Tomé, muitas vezes pensava: "Não é possível que aquela cidadezinha,
com seus minúsculos moradores, possa ser mais importante (a ponto de
me fazer sofrer) do que esta criação, esta obra tão bela, infinita e...
divina!". Na volta para a cidade, a "civilização", eu me sentia plena de
forças para enfrentar qualquer situação.
Num desses dias "ruins", convidei Erik a ir até lá comigo. Assim que
chegamos a esse lugar, ele sentiu imediatamente o que eu sentia. A
partir desse dia, começamos a ir para ali com mais freqüência, e
começamos a chamá-lo (egoisticamente?) de "nossa paisagem". Hoje o
chamamos simplesmente de "paisagem". Sempre que sentíamos que
nossa situação não estava bem, íamos para esse lugar,
contemplávamos durante algum tempo tudo que nos era oferecido
(plantas, animais, pessoas, céu), interagíamos com o lugar, respirando
suavemente, e recuperávamos nossa lucidez e paz de espírito. Às
vezes, em momentos especiais, levávamos um bom vinho, que
bebíamos no gramado, integrados com tudo.
Agora, passada aquela fase, hoje pequena e insignificante, ainda
freqüentamos, ao cair da tarde, à "nossa paisagem", que nos ajudou e
ainda ajuda. Às vezes, no fim da tarde, ficamos nesse lugar até surgirem
as primeiras estrelas. Jonas sempre nos acompanha...
A nova escola

Nesse meio tempo, o prefeito nos comunicou que finalmente


teríamos nossa sede própria. Uma proprietária rural e empresária, a Sra.
Jandira, havia se sensibilizado com nossa situação, e se propôs a
construir um novo prédio em terreno doado pela Prefeitura, e isso seria
feito rapidamente. Ficamos todos muito felizes, porque finalmente
teríamos um local realmente nosso. Foi pedido para eu rascunhar uma
planta para o prédio, e eu a fiz com enorme carinho, projetando uma
pequena escola: idealizei um espaço para uns vinte alunos, pois um
número maior deles certamente comprometeria a qualidade do
atendimento. Além disso, ela era proporcional ao tamanho de nossa
cidade e baseada nas pesquisas que havíamos feito, que indicavam
serem aproximadamente vinte pessoas que freqüentariam nossa escola.
Reconheço que minha planta era bastante modesta, mas suficiente para
atender a todas as necessidades dos alunos.
A Sra. Jandira, para mim ainda desconhecida pessoalmente,
considerou minha planta muito acanhada, e por isso solicitou a uma
empresa especializada um aperfeiçoamento de meu rascunho. Quando
vimos a planta feita pela empresa, não acreditamos. Era enorme, e tinha
muito mais do que jamais havíamos sonhado!
A nova escola começou a ser construída rapidamente, num terreno
próximo ao salão onde estávamos instalados. Nós e os alunos
passamos a acompanhar diariamente o andamento das obras: a
terraplanagem do terreno, os alicerces, tijolo por tijolo, fomos vendo
como o prédio tomava forma rapidamente. De vez em quando, alguns
alunos iam apreciar a construção, escolhendo onde seriam suas classes,
e nós pensávamos como distribuiríamos nosso parco mobiliário e poucos
materiais num espaço tão imenso.
Quando o prédio estava quase pronto, mais uma surpresa: Sra.
Jandira quis ter um contato comigo. Fiquei muito emocionada ao
conhecer essa pessoa que, para nós, havia literalmente caído do céu.
Ela me pediu que elaborasse uma lista de todo o material (incluindo
mobiliário) que seria necessário para a escola. Fiquei pasma! Era muito
para nós, que queríamos apenas um pequeno espaço para nossos
filhos! Como não sabia o que solicitar, pedi ajuda a Ollga que, por sua
experiência, certamente sabia o que era mais necessário. Ela elaborou
uma lista imensa, com algumas coisas mais específicas que eu nem
conhecia. Fiquei até um pouco envergonhada quando passei essa lista
enorme para a Sra. Jandira, mas ela não demonstrou surpresa e
comprou tudo o que estava mencionado.
Quando esse material chegou, o prédio já estava pronto. A própria
Sra. Jandira contratou uma pessoa especialmente para fazer a faxina, e
quando estava tudo limpo fomos arrumar os móveis e materiais em seus
devidos lugares, com a ajuda de alguns alunos.
Na véspera da inauguração, fomos, juntamente com os alunos, dar
os últimos retoques na escola para deixar tudo em ordem para o grande
dia. Estava tudo muito limpo, em ordem, mas senti uma sensação de
frieza no lugar. Pensei: "Isso está acontecendo porque ainda falta o mais
importante — vida e calor humano —, mas isso logo conseguiremos".
Realmente, quando saímos, o lugar já estava um pouquinho mais
aconchegante, uma vez que os alunos sujaram levemente as paredes e
esparramaram alguns brinquedos, dando-me a sensação de que o local
tinha agora um pouco de vida.
A Casa da Harmonia foi inaugurada com muita pompa num sábado.
Era uma escola muito grandiosa para nossa pequena cidade.
Evidentemente, os alunos estavam eufóricos, e nós também. Foi uma
festa, acima de tudo, política. Grandes personalidades da região
estavam presentes para serem homenageadas. Ollga, nossa
"orientadora", juntamente com uma colega psicóloga, também
compareceu. Nossa equipe ficou num cantinho, com os alunos, e nos
sentimos muito felizes pela felicidade deles. Evidentemente, a Sra.
Jandira foi a pessoa mais homenageada, chegando a receber o título de
Cidadã Tomeense. A festa foi bastante emocionante, e não cansamos de
agradecer a Sra. Jandira por sua grande ajuda. Passamos a ela o cargo
de presidente da Casa da Harmonia.
Logo na segunda-feira, nossas atividades com os alunos foram
reiniciadas, agora naquele prédio monumental. Como já estávamos no
fim do ano, continuamos apenas no período da tarde. O período integral
começaria no próximo ano.
Tivemos muita dificuldade para nos adaptar ao novo lugar (aliás, hoje
percebo que, na verdade, nunca nos adaptamos a ele). O prédio era
muito grande, as pessoas ficavam muito separadas, e minha sala era
totalmente isolada. Logo dei um jeitinho para mudar de lugar. Além do
mais, o prédio começou a chamar muita atenção.
Se antes trabalhávamos exclusivamente para os alunos, agora
tínhamos também de prestar esclarecimentos às mais diversas pessoas,
que vinham nos procurar dos mais diversos lugares do Estado.
Intensificamos um pouco mais nossas reuniões, para que não
perdêssemos o elo de companheirismo e preocupação exclusiva com
nossos alunos, que sempre nos acompanhou e fortaleceu.
Terminamos esse primeiro ano de trabalho muito bem, pois tínhamos
um grande apoio da Prefeitura e de várias pessoas da comunidade. Só
nos incomodava um pouco uma certa cobrança, que vinha de diversas
pessoas, para fazermos mais propaganda da escola. Nós não queríamos
nos preocupar com isso, pois o que nos interessava era o bem-estar de
nossos alunos. Queríamos vê-los sempre felizes, apenas isso.
Conseguimos perceber o quanto o fator externo procura abafar o interno,
como é o caso das pessoas que se preocupam excessivamente com a
própria aparência: quanto mais adornos e preocupações externas elas
têm, mais feias são interiormente. Felizmente tínhamos consciência
disso e não deixaríamos que nada influenciasse nossa postura.
Em seu segundo ano de existência, nossa escola continuou muito
bem. Mais adaptadas ao local (pois fomos decorando toda a escola com
os trabalhos dos alunos, que aprenderam rapidamente a circular por
toda ela), começamos a funcionar em período integral. Agora os alunos
tinham mais chances de aprender coisas úteis para o seu dia-a-dia.
Além das atividades específicas de uma escola especial, procurávamos
reproduzir a rotina diária que normalmente se tem em casa. Dessa
forma, eram servidas quatro refeições diárias, e muitos dos alunos
tomavam seu banho diário na própria escola. Eles até fizeram uma
pequena horta! Evidentemente, nem tudo que se plantava dava em
abundância, pois muitos queriam colher antes do tempo, mas, quando
colhiam no tempo certo, com que alegria iam entregar o produto de seus
serviços para a merendeira preparar o almoço ou jantar!
Ollga foi contratada pela Prefeitura e vinha nos orientar mais ou
menos uma vez por mês. Numa dessas suas vindas, nós lhe
apresentamos André, pedindo sugestão sobre como proceder com ele.
André era um aluno novo, que estava internado na Santa Casa local com
graves problemas de desnutrição e, conseqüentemente, com deficiência
mental. Além disso, tinha paralisia cerebral. O diagnóstico médico que
tínhamos era de que sua deficiência havia sido causada pela desnutrição
e que, provavelmente, ele jamais viria a andar nem falar. Estava com
três anos de idade, mas aparentava ter apenas alguns meses. Pedimos
ao médico e à sua família para tentarmos fazer algo por ele. Nessa
época, ele permanecia deitado o tempo todo. Ollga olhou para ele e,
com expressão de desconsolo, nos disse:
— Que peninha! Vocês vão conseguir muito pouco com ele! Acho
que andar, ele nunca conseguirá, mas tentem um pouco de estimulação,
quem sabe ele fica mais espertinho.
Não nos abatemos com isso, pois acreditávamos que com uma boa
alimentação, muitos estímulos e fisioterapia ele se desenvolveria
bastante. Falarei do que conseguimos com ele mais adiante.
Em outra visita de Ollga, ela veio se despedir de nós. Disse que
estava indo para São Paulo, mas que mandaria sua colega psicóloga
para ficar em seu lugar.
Lamentamos, mas não nos desesperamos, pois já estávamos
bastante confiantes em nosso trabalho e tínhamos outras pessoas para
nos orientar em caso de dúvida. De qualquer forma, percebemos que o
segredo estava simplesmente em tratar nossos alunos normalmente.
Nessa última visita de Ollga, Jonas não estava muito bem: ele havia tido
uma série de convulsões e estava bastante apático. Depois que Ollga foi
embora, a professora de Jonas veio me dizer, indignada, que ela havia
lhe dito que nunca mais ele voltaria a ser o que era, pois a cada crise ele
regrediria. Eu a acalmei dizendo que isso não aconteceria mais e que no
dia seguinte ele já estaria como era, só precisaria seguir em frente. De
fato foi isso que ocorreu.
Casos como esses só nos davam mais forças para acreditar cada
vez mais que estávamos no caminho certo. Acreditar que ia dar certo,
aliado à tranqüilidade e ao carinho, era a melhor técnica que existia.
Fomos seguindo confiantes e já estávamos quase conseguindo
reproduzir o ambiente perfeito que tínhamos na antiga "sede" da escola
(e até hoje tenho certeza de que, com mais um pouquinho de tempo,
conseguiríamos). Eu já podia, por exemplo, me ausentar da escola,
porque todos os funcionários estavam conscientes da importância de
seu trabalho, executando-o com visível prazer. Comecei a pensar em
alguém para me substituir. Era necessário apenas um pouquinho de
treinamento, e, evidentemente, eu sempre estaria por lá, pois não
conseguiria mais viver sem ter a mínima convivência que fosse com
aqueles alunos que aprendi a amar tão profundamente. E também
poderia ajudar no que fosse possível.
Outras interferências externas

Mas nem tudo ocorre conforme planejamos. Vieram as eleições


municipais e, com a posse do novo prefeito, fui dispensada
repentinamente. Meu sofrimento foi imenso. Apesar da nova
coordenadora ser uma pessoa bastante humana, que pertencia à nossa
equipe, ela não tinha condições de dirigir a escola. Era excelente
professora, mas não conseguiria desenvolver as atividades exigidas de
uma coordenadora. Eu poderia ajudá-la, mas fiquei sem jeito de voltar lá,
não sabia se seria aceita, principalmente pelo pessoal da Prefeitura.
Quando a Sra. Jandira soube do fato, tudo fez para conseguir meu
retorno. Após muitas negociações com o novo prefeito, decidiu-se que a
escola se desvincularia da Prefeitura. Assim, retornei com muita alegria
ao meu posto, e a primeira providência que tomei foi trazer de volta
quase toda a equipe do início, que havia sido dispensada junto comigo.
Agora provavelmente teria de esperar mais um tempo, até encontrar
outra pessoa para me substituir, conforme havia imaginado:
Minhas atividades aumentaram assustadoramente. Muitas coisas que
jamais haviam me preocupado até então passaram a fazer parte de
minha rotina diária: conseguir verbas, prestar contas, tentar novos
convênios, elaborar relatórios e mais relatórios, projetos novos,
contratação e demissão de funcionários, infra-estrutura da escola, definir
funções e horários... Enfim, um amontoado de tarefas e papéis que me
deixou literalmente "maluca". Com isso, meu contato com os alunos e a
equipe foi se tornando menos intenso e mais "frio". Quando não
suportava mais ou percebia algum aluno com maiores problemas
emocionais, largava tudo e me dedicava inteiramente a ele. Quando isso
ocorria, sentia-me bem melhor, mas a parte burocrática deixava a
desejar. Mesmo assim, fomos seguindo com otimismo. Esperávamos
conseguir novos convênios, que já estávamos providenciando, e com
isso mais recursos para a contratação de uma assistente social, que
poderia dividir comigo a parte burocrática e trabalhar intensivamente
com a família de nossos alunos. Apesar de sabermos que isso ainda
levaria um certo tempo, no fundo estávamos tranqüilas, pois sabíamos
que o "sufoco" duraria, no máximo, mais um ano.
Nesse meio tempo, a Sra. Jandira nos solicitou que fechássemos a
escola, pelo menos temporariamente, uma vez que estava sendo muito
pesado para ela complementar a verba que nos faltava quase que
mensalmente. Sabia que, se fechássemos, seria muito difícil reabrir
novamente. Desesperada, reuni toda a equipe e, após expor o sucedido,
disse que continuaria a trabalhar voluntariamente, mesmo que fosse
necessário reduzir o número de alunos. Perguntei se havia mais alguém
disposto a trabalhar sem receber nenhuma remuneração. Uma a uma,
começando das professoras que estavam desde o início da escola,
ofereceu-se para trabalhar voluntariamente. A emoção tomou conta de
todas nós, e choramos como crianças. Percebemos o quanto aqueles
alunos eram importantes para nós. Como todas decidiram ficar, não seria
necessário cancelar nenhuma matrícula.
Seguindo em frente

Voltamos ao trabalho com entusiasmo, mas já pensando numa forma


de solucionar o problema. No dia seguinte, fizemos uma reunião com
todos os pais e a diretoria, para, juntos, descobrirmos formas rápidas de
conseguir mais verbas. Felizmente o prefeito também compareceu a
essa reunião e nos ofereceu sua ajuda. Esta não era tudo de que
precisávamos, mas já ajudava bastante. Um pai de aluno conseguiu um
aumento do valor de um de nossos convênios, e a Sra. Jandira,
emocionada, disse que ninguém ficaria sem salário. Além do mais,
várias idéias sobre promoções a serem feitas foram colocadas em
prática.
Assim, seguimos por mais um ano. Entre fazer promoções para
conseguir mais verbas, desenvolver o trabalho burocrático, cuidar da
infra-estrutura da escola, trabalhar com os pais e diversas outras coisas,
acabei descuidando de alguns detalhes. Mas, acima de tudo, procurei
jamais me descuidar dos alunos, pois não poderíamos esquecer que a
escola era deles e para eles.
Dessa forma, durante uma boa parte do dia, deixava meus afazeres
de direção e me dedicava a um aluno autista que estava requerendo
maiores cuidados. Eu estava muito preocupada com sua auto-
agressividade, e os técnicos não estavam sabendo como trabalhar com
ele. As várias tentativas que haviam feito não deram resultado, então me
lembrei de uma fase em que Jonas apresentava problemas semelhantes
e que conseguimos superar. Comecei a trabalhar imediatamente da
mesma maneira que trabalhava com Jonas. Quando, algum tempo
depois, os primeiros resultados positivos apareceram, comecei a treinar
os professores para trabalharem da mesma forma. Chamei os pais e
pedi a eles que observassem uma "sessão", para que pudessem
aprender e trabalhar do mesmo modo em casa, nos fins de semana e no
período de férias que iria se iniciar brevemente. Após um certo tempo,
com esse trabalho, esse aluno abandonou quase que totalmente sua
agressividade e passou a interagir com os colegas. Isso recompensou
todos os "apertos" e dificuldades por que passáramos. A base desse
trabalho era muito carinho, música (cantada pela terapeuta), imitação e
brincadeiras. Qualquer manifestação de agressividade transformava-se
em carinho, qualquer interesse por algum objeto virava brinquedo,
qualquer som emitido por ele virava música...
Em outras ocasiões, quando percebíamos que faltava mais animação
e lazer, eu também largava quase tudo para "bolar", junto aos alunos,
brincadeiras, festas e passeios. Isso era de extrema importância para
todos eles e para a própria coesão da equipe. Havia datas que eram
"sagradas": a comemoração dos aniversários do mês, o carnaval (ou
participávamos do carnaval de rua ou chamávamos a escola de samba
para fazer um carnaval na escola), a páscoa, as festas juninas, a entrada
da primavera, a semana das crianças e o Natal, quando encerrávamos o
ano com uma festa lindíssima, com Papai Noel, presentes e tudo o mais.
Além disso, nos meses de férias, programávamos vários passeios em
fazendas, bosques, zoológico, bem como muitas atividades artísticas e
de lazer.
No verão, a piscina da escola era bastante utilizada. Fazíamos
revezamento nos dias da semana, para que cada turma pudesse utilizá-
la sem nenhum risco. A piscina também era muito utilizada pelos alunos
que não podiam se locomover: na água, eles se soltavam totalmente e a
fisioterapeuta aproveitava para desenvolver com eles alguns exercícios
de hidroterapia que estava aprendendo. Assim como a areia, a água
também era muito boa para acalmar alunos mais agitados.
O nosso aluno André, que sequer se locomovia quando começou a
freqüentar a escola, e sobre o qual Ollga fizera aquele comentário infeliz
a que me referi antes, estava então com quatro anos, e trabalhávamos
muito com ele. De repente, ele começou a andar! Mal acreditamos
quando o vimos dar os primeiros passinhos, pois ninguém, a não ser
nós, acreditava que isso fosse acontecer. Bem, nem é preciso dizer a
festa que fizemos e a alegria que sentimos quando isso aconteceu!
Outro fato marcante desse período foi quando André, algum tempo
depois, disse sua primeira palavra, dirigindo-se à sua professora, que
insistia com ele para que fizesse algo que não queria: suas primeiras
palavras foram "Vai cagar!". Era um palavrão, mas achamos que não
devíamos reprimi-lo e, ao contrário disso, batemos palmas, elogiamos e
repetimos o palavrão para incentivá-lo a falar mais. Até tive vontade de
lhe ensinar outros palavrões. A partir desse dia ele começou a falar cada
vez mais e melhor, deixando gradativamente de lado os palavrões.
Fatos como esses nos davam uma força imensa e nos empurravam
cada vez mais para a frente. Sentíamos necessidade de nos aperfeiçoar,
e por isso começamos a participar de alguns cursos, em outras cidades
ou promovidos por nós mesmas, na escola. Durante esses cursos,
aprendíamos um pouco mais, mas também esclarecíamos muitas
dúvidas de participantes, pois tínhamos convicção de que o dia-a-dia nos
ensinara qual a melhor forma de trabalhar com alunos como os nossos.
E Jonas? Apesar de não apresentar grandes "progressos" (mas acho
muito duvidoso o que a maioria das pessoas entende por "progresso"),
estava bem adaptado e já interagia, a seu modo, com alguns colegas.
Ele agora tinha um compromisso, desenvolvia algumas atividades e — o
mais importante — estava feliz. Continuava a apresentar convulsões
freqüentes, e isso nos preocupava muito, mas o que mais fazer, além do
tratamento medicamentoso a que ele estava submetido? Seu médico
tentava muitos medicamentos novos que apareciam no mercado,
incluindo importados, mas as convulsões não cediam. Erik e eu
procuramos então viver intensamente os períodos em que ele estava
bem, sem nos preocuparmos muito com as crises. Passamos a nos
inquietar apenas nas situações em que era necessário, e para as quais
tínhamos algum vislumbre de solução. Uma dessas preocupações foi a
de que os remédios de Jonas estavam muito caros para nós, nesse
período, e nossa dívida na farmácia local começava a aumentar
assustadoramente. Como a Casa da Harmonia fornecia medicamentos
para a maioria de seus alunos, pedi para a representante da Sra. Jandira
que Jonas também recebesse medicamentos gratuitos durante um certo
período. Em troca disso, eu forneceria mercadorias de nossa loja,
necessárias para a escola. Não me senti muito bem fazendo isso,
embora fosse um direito meu, mas felizmente essa situação perdurou
apenas por três meses.
Apesar do volume de trabalho na escola, jamais abri mão de passar a
parte das manhãs cuidando de minha família e dando a Jonas todo o
carinho que podia.
Sabia, por informações, mas principalmente por experiência, que o
carinho da família era (e é) fundamental para sua segurança e
tranqüilidade. Além do mais, descobri que fazer isso é muito bom, e
chego a ter pena de quem ainda não descobriu a beleza que existe em
ações desse tipo!
Mais problemas?

Mais ou menos nessa mesma época (as coisas sempre acontecem


ao mesmo tempo), uma de minhas irmãs adoeceu subitamente e em
pouco tempo veio a falecer. Foi um golpe terrível para nossa família,
principalmente para meus pais. Jonas, como sempre, nos deu muita
força: quando percebia que eu estava triste, vinha sorrindo me beijar e
acarinhar. Essa irmã era a que morava na cidade mais próxima de onde
meus pais residiam, e por isso estava sempre em contato com eles.
Creio que foi também por isso que eles ficaram tão abalados. Nessa
situação, eu não deveria contar meus problemas a eles, pois isso
certamente lhes causaria mais preocupações, além das (enormes) que
esse falecimento provocara. E afinal, que problemas eu tinha?
Na escola as coisas começaram a ficar mais complicadas: as
cobranças quanto a alguns detalhes burocráticos eram muitas. A
necessidade de conseguirmos mais verbas era imperiosa. Se quisesse
me dedicar, por pouco que fosse, aos alunos, teria de me desligar
totalmente da parte administrativa, da qual eu não gostava e tampouco
me considerava a pessoa certa para cuidar dela. Antes, a Prefeitura
fazia tudo, depois coube a mim, e acabei me perdendo na imensa
papelada. Para não perder o "pique" com os alunos, comecei a levar
cada vez mais trabalho para casa. O resultado foi que meu envolvimento
foi crescendo tanto que não sabia e nem acompanhava praticamente
mais nada do que se passava em casa. Nem é preciso dizer que tudo
ficou bastante caótico. Começaram a faltar coisas dentro de casa, pois
eu não tinha mais tempo de providenciá-las, a loja passou a entrar em
grande declínio, porque praticamente eu só ia lá para apanhar materiais
de que a escola necessitava, e começamos a nos endividar. Quase todo
o salário do Erik era destinado para pagar despesas da loja. E eu não
tinha sequer tempo para conversar com Mateus!
Em alguns fins de semana, quando minha dedicação era para a
família, ainda conseguia ficar atenta ao momento presente, para, por
exemplo, preparar uma refeição, trocar idéias com Erik, "namorar" um
pouco e paparicar os filhos. Mas havia vários fins de semana em que
tirava algumas horas para trabalhar para a escola.
Comecei a perceber que isso não poderia continuar assim, mas toda
segunda-feira lá estava eu novamente envolvida com a escola. Passei a
ficar estressada, e as coisas pioraram um pouco mais. O relacionamento
interno na escola foi ficando cada vez mais estranho, a maioria do
pessoal que trabalhara comigo desde o início foi saindo ou sendo
despedida. Começaram a surgir fofocas, e algumas pessoas se
aproveitaram de minha fragilidade no momento para "aparecer", fazendo
críticas altamente destrutivas ao meu trabalho. Percebi claramente que a
maioria das pessoas da escola se preocupava excessivamente com a
aparência, com o externo. O que realmente importava, a parte mais
essencial de todo o processo, estava relegada para um segundo plano
bem inferior.
Intuitivamente, percebi que seria melhor que eu deixasse a escola.
Mas, além de me faltar coragem para tomar tal decisão, as pessoas que
eu cogitava colocar em meu lugar não se decidiam, e fui permanecendo
ali até não suportar mais. Finalmente, criei coragem e tirei uma licença
de quinze dias, achando que isso me possibilitaria pensar sobre tudo
com mais calma, colocar minha casa em ordem e achar uma solução
adequada para a escola.
Durante minha licença, Jonas continuou freqüentando a escola;
gostava da professora e já estava bem acostumado. Eu aproveitei para
"esvaziar" minha cabeça de problemas, dedicar-me à minha casa e
minha família, e descansar bastante. Sentia que era o que tinha de fazer
naquele momento.
Por esse tempo, a Sra. Jandira me telefonou, dizendo que iria colocar
Ollga na coordenação da escola. Mal pude acreditar que ela deixaria o
local, em São Paulo, onde trabalhava, para vir para nossa pequena
cidade. A meu ver, isso era bom demais. Perguntei a Sra. Jandira se
continuaria com alguma função lá, e ela me disse que sim, pois a escola
era minha. Retruquei, dizendo que não, que a escola sempre fora e
sempre seria apenas dos alunos. Mas isso me tranqüilizou bastante, pois
eu continuaria lá, sem tanta responsabilidade, e, por outro lado, ainda
confiava em Ollga.
Coisas da vida

Quando voltei, era para trabalhar apenas mais quinze dias. Faríamos
a festa de Natal, encerrando o ano, para retornarmos no máximo dentro
de uns vinte dias.
Mas a Sra. Jandira nos comunicou que iria reformar a escola, e por
isso essas férias seriam bastante prolongadas.
Logo no início das férias, a Sra. Jandira, ainda presidente da
instituição, convocou uma reunião geral, na qual, após algumas críticas
severas ao nosso trabalho, apresentou Ollga como a nova coordenadora
da Casa da Harmonia. Em seguida, solicitou que cada pessoa
informasse o tempo que teria disponível para a escola. Apesar da
situação muito desagradável que estava enfrentando, alegrei-me com a
possibilidade de permanecer na Casa da Harmonia por apenas duas
horas diárias (o tempo que disse ter livre). Ollga era bastante eficiente,
não tinha outros compromissos e eu poderia ajudá-la na parte
burocrática e passar a ela tudo o que sabia a respeito de cada um dos
alunos, com toda a tranqüilidade necessária, nessas duas horas diárias.
Teria todo o tempo restante para cuidar das coisas mais importantes de
minha vida. Esse pensamento eliminou todas as coisas desagradáveis
por que passara e estava passando. Cheguei a me sentir muito feliz.
Após alguns dias, fui procurada pelo contador da Casa da Harmonia,
que simplesmente me entregou um papel (desses impressos comuns
encontráveis em qualquer papelaria) de aviso prévio. Estava sendo
dispensada e não precisaria cumprir o aviso. Não vou descrever aqui o
que se passou comigo naquele instante e nos seguintes.
Foi apenas dolorosa demais a maneira como fui despedida.
Depois de algum tempo, percebi que tudo estivera sendo
pacientemente maquinado há um bom tempo, e percebi também por
quem e por quê. Acabei sentindo pena dessas pessoas. A Sra. Jandira
foi literalmente induzida por toda a trama "bruxesca" dessas pessoas.
As aulas na Casa da Harmonia reiniciaram após dois meses. Estava
muito preocupada com a reação de Jonas, ao encontrar tudo mudado
em "sua" escola. O pátio interno, por exemplo, antes destinado à
recreação dos alunos, foi inteiramente ocupado por horríveis plantas
artificiais; o piso de toda a escola, que era antiderrapante e havia sido
cuidadosamente escolhido pela Sra. Jandira, foi coberto com cera,
ficando brilhante, mas muito escorregadio.
Mas, além da parte física, eu estava ainda mais preocupada com a
própria rotina da escola. Jonas costumava, por exemplo, me procurar em
minha sala, durante o recreio ou na hora da saída. Isso lhe dava
segurança. Fiquei muito apreensiva com isso, e logo no primeiro dia de
aula fui conversar com Ollga, para lhe solicitar que ele não fosse
barrado, logo de início, de entrar ali. Falei também da necessidade que
ele tinha (e tem) de carinho, pois tínhamos trabalhado a vida inteira para
torná-lo carinhoso (foi uma forma que descobrimos ser adequada para
substituir sua auto-agressividade). Ollga me tranqüilizou, dizendo que
sabia desses fatos, que conhecia bem os autistas, e que eu poderia
contar com ela. Disse também que eu poderia ir até lá sempre que
quisesse.
Porém, o dia-a-dia da "nova" escola revelou-se bastante diferente:
Jonas chegava em casa muito triste e faminto, e freqüentemente ficava
muito nervoso quando a hora dele ir para a escola se aproximava.
Resolvi levá-lo alguns dias e outros não, até que se acostumasse.
Quanto a mim e outras mães, não mais poderíamos ir além do portão de
entrada, que passou a ficar permanentemente trancado com cadeado,
mas esperávamos pacientemente por uma reunião, para esclarecer
nossas dúvidas.
Essas reuniões não ocorriam (durante um ano e meio ocorreram
apenas duas). Resignei-me a observar o comportamento de Jonas,
imaginar o que ocorria com ele lá dentro e conversar com alguns
professores em quem confiava e que ainda estavam lá.
Nas consultas periódicas que fazia com Jonas, conversava muito
com o médico e fatalmente falávamos a respeito de como estava a Casa
da Harmonia. Certa vez ele fez um comentário muito interessante que
me fez pensar bastante:
-Toda instituição, se não for levada com amor, não dá certo. Acaba
virando essas coisas sem coração que a gente vê por aí. Mas como
alguém pode oferecer amor, se não o possui? Eu não conheço nenhuma
boa instituição em que não existia uma mãe ou um pai afetuoso
envolvido...
Jonas freqüentou a Casa da Harmonia por mais um ano e dois
meses, e nesse período, apesar das dúvidas, preferi pensar que ele
estava bem e que só o contato que tinha com os colegas já era
suficiente para ajudá-lo a ser feliz. No fundo, sabia que estava me
iludindo, mas queria acreditar que era o melhor para ele.
Nesse ínterim, reassumi a loja, que estava praticamente indo para o
"buraco". Contratamos uma excelente funcionária, que há tempos já
havia trabalhando conosco, e começamos a computar bons resultados.
Comecei também a cuidar mais de mim mesma, de Mateus, de Erik e de
nossa casa. Tudo passou a caminhar muito bem. Erik passou a trabalhar
em outro lugar, e está se dando maravilhosamente bem no novo
emprego, pois está fazendo algo de que gosta muito. Mateus começou a
ficar mais ligado em nós, principalmente em Jonas, e passamos a
conversar mais sobre seus planos, suas idéias e aptidões. O grande
interesse dele é música, e por isso estamos procurando dar-lhe todo o
apoio. Há poucos meses, ele e sua banda gravaram um CD, que ficou
muito bom! A loja retornou ao ritmo normal, e nossa casa voltou a ser um
verdadeiro e feliz LAR.
Na época em que tivemos a idéia de montar uma escola para Jonas,
era exatamente isso que queríamos. Jamais quis trabalhar nessa escola,
queríamos apenas que ele tivesse um lugar para si, e que fosse tratado
como deve. Pronto, finalmente nosso sonho havia se realizado
plenamente, e, se eu não fosse despedida como fui, creio que jamais
teria tido a coragem de abandonar a escola. Às vezes uma coisa que
nos faz sofrer muito durante um certo tempo é necessária para nosso
próprio bem. Como eu estava feliz com essa constatação, percebida não
apenas intelectual ou racionalmente, mas verdadeiramente sentida. Só
sentia um pouco de falta do contato maravilhoso que tinha com os outros
alunos, mas às vezes os encontrava na rua, e isso diminuía um pouco
minha saudade.
Mais experiências

Passados alguns meses, Jonas começou a apresentar um número


bem maior de convulsões. Ficamos terrivelmente preocupados, pois ele
já havia experimentado praticamente todos os anticonvulsivantes
disponíveis.
Seu médico, em conversa franca conosco, disse que não sabia mais
o que receitar, e nos informou da possibilidade de uma cirurgia que
poderia eliminar ou, pelo menos, reduzir bastante as convulsões (e,
portanto, os medicamentos também). Ficamos animados com esse
relato, e ele nos forneceu o nome do neurologista (de Nhambiquara),
que estava fazendo esse tipo de cirurgia com muito sucesso. Marcamos
uma consulta, e lá fomos nós para mais uma tentativa. Estávamos
bastante esperançosos.
Gostamos muito do médico, que confirmou a possibilidade de uma
cirurgia, mas esta teria de ser precedida de uma série de exames, para
ele poder avaliar se realmente era possível detectar o foco, para uma
possível intervenção cirúrgica. Também nos informou que tais exames
eram muito caros. Resolvemos dar um passo de cada vez, para não nos
perdermos. Seriam três exames: o primeiro poderia ser feito na cidade
maior próxima de São Tomé, na clínica do médico de Jonas. Fizemos
esse exame, e ele não acusou nada. O segundo teria que ser feito em
Nhambiquara, mas não tínhamos dinheiro para pagá-lo. Fizemos uma
rifa na cidade, espalhamos cartazes pedindo ajuda, e rapidamente
conseguimos a quantia necessária. Marcamos o exame, mas, alguns
dias antes, telefonaram de Nhambiquara avisando que a máquina que
fazia o tal exame havia se quebrado e que tão logo ela fosse consertada
seríamos comunicados, para marcar um novo dia. Esperamos mais de
quinze dias e nada. Como as convulsões de Jonas estavam muito
intensas, liguei novamente para o neurologista de Nhambiquara, e ele
sugeriu que fizéssemos todos os exames de uma vez no Hospital das
Clínicas dessa cidade. Jonas deveria ficar internado por alguns dias,
uma vez que um dos exames seria uma monitorização por vídeo durante
vinte e quatro horas por dia, até que ele apresentasse um número
suficiente de convulsões para se ter um quadro completo das crises e
localizar o foco com mais precisão (pelo menos foi isso que entendi do
que disseram). Pedimos para marcar dentro de uns quinze dias.
Durante esse período, houve uma noite em que Jonas apresentou
uma febre altíssima e, como era de esperar, convulsões. A febre não
cedia e, conseqüentemente, as convulsões também não. Os remédios e
as compressas que fazia nele não resolviam. Por isso, desesperada por
não saber mais o que fazer, ajoelhei-me e orei praticamente durante toda
a noite por ele. Houve uma grande melhora, pois a febre cedeu um
pouco e as convulsões cessaram. Naquele momento, agradecemos
imensamente a Deus, pois sem dúvida alguma fora Ele quem socorrera
Jonas. No dia seguinte, apesar de estar bem melhor, ele se recusou a
comer, não aceitando nenhum alimento que eu lhe oferecia e, quando
forçava um pouco, ele vomitava. Passou o dia só com os medicamentos
e ainda tinha um pouco de febre. O médico receitou um antibiótico, mas
esse remédio foi demais para ele: perdeu completamente a coordenação
motora e não conseguia mais andar. Desesperados, nós o levamos até
seu médico da cidade vizinha, que ficou muito preocupado com seu
estado. Solicitou uma chapa do pulmão (que nada acusou) e receitou
outro remédio. Pediu para vê-lo novamente dentro de dois ou três dias, e
que entrássemos em contato telefônico, se houvesse qualquer dúvida ou
alteração em seu estado.
Jonas estava "largado", ficava deitado, olhando para o vazio e nada
nem ninguém lhe despertava o mínimo interesse. Passei a lhe dar
alimentos e água por meio de uma seringa de injeção. Fiquei com medo
de lhe dar os remédios de convulsão, e, num pedido de socorro a Ele,
decidimos não dar uma das doses. Passados uns instantes, Jonas
levantou-se e, apesar de ainda estar muito fraco, começou a andar sem
grandes dificuldades. Solicitou comida e suco.
Meu Deus, que alegria sentimos! Ele até esboçou um sorriso! Liguei
para o médico, que me incentivou a continuar procedendo assim, mas
que à noite eu deveria voltar a dar os anticonvulsivantes. Não sei se por
coincidência ou não, quando Jonas saiu do estado de letargia em que se
encontrava, o cão que tínhamos passou a apresentar um quadro
semelhante ao que Jonas apresentara e, no dia seguinte, enquanto
Jonas se levantava, o cãozinho veio a falecer.
Lamentamos sua morte, mas silenciosamente também agradecemos.
Jonas estava bem melhor, mas ainda não se alimentava bem e
vomitava quando comia um pouco mais. Seguindo orientação do médico,
voltei a dar-lhe os anticonvulsivantes, mas com isso ele novamente
perdeu a coordenação, não conseguindo sequer levantar a cabeça.
Novamente fiz muitas orações e pedi fervorosamente a ajuda divina. Não
passou muito tempo e bateram à nossa porta. Fiquei surpresa ao ver
algumas senhoras, que não conhecia, dizendo que tinham sido enviadas
para orar pelo nosso filho, e se permitíamos que isso fosse feito.
Ficamos muito gratos, e as conduzimos até o quarto de Jonas para que,
junto conosco, orassem por ele. Como ficamos agradecidos por elas
terem aparecido na hora em que precisávamos de mais força! Antes de
sair, disseram que a cura dele não estava nas mãos de médicos. Bem,
novamente suspendi a medicação. Ele melhorou, voltou a andar e não
apresentou convulsões. Resolvemos seguir a intuição ou, para expressar
melhor, a inspiração divina que nos fora dada: reduzimos pela metade
seus remédios e ele não apresentou mais convulsões, mesmo
permanecendo um pouco febril. No dia seguinte, liguei novamente para o
médico, e lhe perguntei se ele acreditava em milagres. Ele disse que
sim, e achava que tudo isso estava ocorrendo para que nós
acreditássemos também. Sugeriu suspender toda a medicação para que
tivéssemos essa certeza. Assim o fizemos, apesar de temerosos.
Existe um ditado árabe que freqüentemente citamos em casa:
"Confie em Alá, mas amarre seu camelo". No dia seguinte à suspensão
dos medicamentos, Jonas já estando bem melhor, saí para dar uma
olhada na loja e fazer alguns acertos no banco. Quando voltei, Mateus
disse que Jonas havia tido uma convulsão bastante forte, e em seguida,
com um gesto de carinho para comigo, disse:
— Êh mãe, amarre seu camelo!
Confesso que fiquei perdida, mas voltei a dar os remédios em doses
reduzidas.
Quando retornamos ao médico, apesar das convulsões terem voltado
como antes, Jonas estava bem, apenas um pouco abatido. O médico
nos informou que, segundo nossos relatos, ele havia entrado em coma,
e que graças à diminuição, seguida pela suspensão dos remédios, teve
a recuperação. Disse também que, apesar das convulsões, as dosagens
não deveriam ser aumentadas, achando melhor aguardar os exames
que iriam ser feitos.
Num certo dia, o médico de Nhambiquara nos ligou para internar o
Jonas no dia seguinte, mas, como ele ainda estava muito mal, solicitei-
lhe que aguardasse sua melhora. Ele me disse para avisar quando isso
ocorresse.
Jonas foi melhorando lentamente e, após uma semana mais ou
menos, já estava em seu estado normal, ou seja, convulsionando uma
vez por dia, mas se alimentando bem e vivendo normalmente nos
momentos sem efeitos das crises. Achei que já poderia marcar os
exames dele. Liguei para o médico e ele me disse que iria viajar, mas
que gostaria de acompanhar pessoalmente o caso de Jonas. Pediu-me
que esperasse seu retorno e me ligaria assim que chegasse e surgisse
uma vaga para Jonas. Mas advertiu-me de que eu ficasse preparada,
porque isso poderia ocorrer de uma hora para outra.
Passou-se mais de um mês, mas esperamos pacientemente.
Finalmente, numa manhã de domingo, enquanto preparava o almoço,
recebemos um telefonema de Nhambiquara solicitando que levássemos
Jonas naquele dia, de preferência imediatamente. Ficamos assustados,
pois achávamos que isso iria ocorrer pelo menos com um dia de
antecedência.
Mas rapidamente decidimos ir e arrumamos as coisas. Tive de levar
muita coisa na bagagem de Jonas, pois não queria que nada lhe faltasse
no hospital. Além de seus brinquedos preferidos, levei também as coisas
que ele mais gostava de comer e beber (inclusive uma enorme cebola).
Já havíamos decidido desde o início que eu ficaria com Jonas, pois
só era permitida a presença de um único acompanhante. Erik e Mateus
apenas nos levariam, ficariam lá até acertarmos tudo e retornariam para
casa, pois não tínhamos condições de ter despesas com hotel. Depois
eles iriam nos buscar. E lá fomos os quatro, com destino ao Hospital das
Clínicas de Nhambiquara. Jonas e eu no banco traseiro, Erik e Mateus
na frente. Apesar do frio que sentíamos na barriga, estávamos
confiantes, pois era uma tentativa de acabar com as convulsões e
medicamentos do Jonas.
Mais ou menos na metade do caminho, aquele terrível carro branco,
vindo não sei de onde, cruzou a nossa frente. A batida foi inevitável!
Perdi totalmente a noção de tudo, não sei quantas voltas o carro deu até
parar. Apenas tentei proteger Jonas com meu corpo, mas não sei se
consegui. Quando tudo parou, vi que estávamos todos vivos e bem. Erik,
após também constatar que tudo estava bem, foi correndo até o outro
carro, pois parecia que nele havia pessoas bastante machucadas, pelos
gritos e choros alucinantes que ouvíamos. Mateus o seguiu. Fiquei
conversando com Jonas, tentando mantê-lo calmo, e ele até sorriu.
Constatei que tinha uma leve escoriação na altura do joelho, mas nada
mais sério.
A parte da frente de nosso carro ficou totalmente destruída, sem a
mínima condição de prosseguir viagem. Apesar de acharmos que isso
era mais um sinal para não irmos, pensamos que não teríamos a
consciência tranqüila se não tentássemos tudo que se abria para Jonas.
Assim, resolvemos que Jonas e eu pegaríamos outra condução e
prosseguiríamos, e Erik e Mateus ficariam, para prestar declarações e
tomar as providências necessárias com relação ao acidente e ao carro,
voltando depois para casa. Uma ambulância, dessas que prestam
socorro aos acidentados em estradas, nos levou até a cidade mais
próxima e de lá prosseguimos de carro, graças à gentileza de um
policial.
Chegando ao nosso quarto de hospital, Jonas foi logo se deitando.
Ele estava exausto e nem quis provar o jantar que o esperava. A câmera
de vídeo foi acionada, e a partir desse momento todos os seus
movimentos e sons passaram a ser gravados e transmitidos para uma
sala ao lado, onde havia sempre um profissional. Faltava colocar os
eletrodos em sua cabeça para a transmissão simultânea do
eletroencefalograma, mas, na hora de colocá-los, ele se agitou e não
deixou. A solução foi dopá-lo para conseguir essa instalação. Chegamos
ao hospital por volta das 20 horas, mas só à meia-noite ele ficou
preparado. Dormiu a noite toda. Eu estava muito temerosa de que,
quando acordasse, ele arrancasse todos aqueles fios de sua cabeça,
quisesse sair do quarto e não permanecesse na cama. Como rezei para
ele manter a calma e deixar os exames serem concluídos! Nessa hora
cheguei a ficar arrependida de tê-lo levado para fazer os exames. Que
dia terrível!
Achava que Jonas, como de costume, teria ao menos uma convulsão
durante o sono (ele deveria apresentar umas cinco ou seis para a
conclusão do exame), mas ele acordou sem ter ocorrido nada e passou
o dia todo muito bem. Eu estava admirada pelo seu bom
comportamento. Poucas vezes colocou a mão na cabeça,
permanecendo na cama, brincando com os brinquedos que eu havia
levado. O pessoal do hospital ficou encantado com seu comportamento
e carinho para com todos (principalmente com as enfermeiras), pois ele
sempre queria beijar cada um que entrava em seu quarto.
Esse primeiro dia passou bem tranqüilo, e quando começou a
anoitecer, por incrível que possa parecer, lá estava eu torcendo para ele
ter convulsões. Comecei a ficar preocupada, pois só tínhamos dinheiro
para três dias de internação. Decidi que, se até o dia seguinte nada
ocorresse, desistiria. Como é difícil estar sozinha nesses momentos!
Mas à noite, logo que começou a dormir, Jonas teve a primeira
convulsão. Fiquei espantada com a rapidez com que o pessoal do
hospital chegou ao quarto para acudi-lo. No dia seguinte, ele teve mais
duas convulsões durante o dia, e o médico me informou que, como as
crises eram idênticas, só precisaria apresentar mais duas, sendo que na
última seria injetado um líqüido para concluir mais um exame e, em
seguida, seria feito o último. Isso me tranqüilizou bastante, pois ansiava
muito por nossa volta para casa.
Essas duas crises só ocorreram no dia seguinte, e, como uma foi
muito próxima da outra, não houve tempo de preparar o líqüido que
deveria ser injetado nele.
E lá fomos nós para o quarto dia! Mas eu tinha certeza de que
durante a noite ele teria uma crise, e de manhã os outros exames seriam
concluídos. Jonas já estava ficando aborrecido naquele quarto de
hospital, então tentei animá-lo dizendo que no dia seguinte voltaríamos
para casa.
No outro dia, logo pela manhã, ele teve a convulsão que faltava, e,
como a equipe estava pronta, o líqüido radioativo foi injetado em sua
veia. O médico veio em seguida me comunicar que dentro de no máximo
uma hora viriam buscá-lo para fazer o "spect" (um exame que
fotografaria todo o cérebro — parece-me que no momento da crise — já
que o líqüido foi injetado nesse momento). Assim eles mapeariam o
ponto onde as convulsões se originavam. Disse também que ainda antes
do almoço ele faria o último exame e, à tarde, poderíamos retornar para
casa.
Animada, comecei a arrumar nossas "tralhas", dizendo para Jonas
que voltaríamos para casa à tarde e que à noite estaríamos todos juntos
novamente. Ele ficou muito feliz e já queria descer da cama. Vieram
buscá-lo para fazer o spect e, evidentemente, pedi para acompanhá-lo.
Nesse exame, que dura cerca de quarenta minutos, ele deveria ficar
completamente imóvel, e por isso deram um remédio para dopá-lo, mas
o medicamento não fez efeito nenhum, então deram outra dose, que
também não fez efeito. Acho que Jonas estava muito excitado com a
perspectiva de voltar para casa e por isso não queria perder nada.
Quando iam dar uma terceira dose, pedi que não o fizessem, dizendo
que eu seguraria sua cabeça durante o exame. Felizmente concordaram
em tentar isso e, apesar de ter ficado com os braços dormentes por
segurar sua cabeça durante quarenta minutos, o exame foi concluído
sem problemas. O médico disse que assim que tivesse o resultado ele
iria conversar comigo.
De volta ao quarto, solicitaram que o último exame fosse marcado o
mais rapidamente possível. Liguei para Erik, pedindo que viesse nos
buscar, pois no máximo às 16 horas estaríamos liberados.
O médico veio em seguida conversar comigo sobre os resultados
obtidos. Disse que as crises de Jonas eram muito generalizadas, e que
por isso não fora possível detectar o foco delas. Ele apenas suspeitava
de onde vinham, mas não tinha nada conclusivo, e que o último exame
daria a palavra final.
Fiquei muito angustiada quando ele disse isso, pois passei a achar
que todo o sacrifício a que havíamos submetido Jonas tinha sido em
vão, e, apesar de ainda me restar um fio de esperança, naquele
momento não consegui mais conter o pranto que havia reprimido todos
aqueles dias. Para complicar as coisas um pouco mais, pediram-me que
ficássemos no hospital por mais um dia, já que a máquina para fazer o
último exame estava com um pequeno problema, mas que seria logo
solucionado. Pensei: "Meu Deus, será isso mais um aviso para não
concluirmos os exames? Por que tantos impedimentos? Será que
devemos realmente fazer esse último exame?". Esses e muitos outros
pensamentos me vieram à cabeça naquele instante. Olhei para Jonas e
concluí que não agüentaríamos mais, pois não tínhamos condições
emocionais de passar mais uma noite ali. Então decidi que quando
fôssemos buscar os resultados dos exames já feitos, faríamos o último
exame.
Voltei a arrumar o resto das coisas para retornarmos para casa,
sentindo-me dopada, tremendamente cansada e confusa. Parecia que
quando eu achava, num certo momento, que tudo havia terminado, toda
a energia e calma que eu tinha procurado manter durante aqueles dias
tinha ido embora. Quando fui me arrumar e me olhei no espelho, levei
um susto: como estava com uma aparência horrível!
A última etapa

De volta à nossa casa (ufa!), após nos recuperarmos dessa


maratona, fomos lentamente voltando à rotina. Havia combinado com o
médico, em Nhambiquara, que voltaríamos dentro de uns dez dias, mas
eu estava cheia de dúvidas quanto a se deveríamos voltar. Ocorreram
muitas coisas (que atualmente prefiro chamar de "sinais") impedindo a
realização dos exames e, além do mais, eu tinha receio de pegar a
estrada novamente.
Mas teria um tempo para, juntamente com Erik, decidir o que
faríamos. Enquanto isso, retomamos com mais intensidade a Oração
que o Ensinamento nos havia passado, pois cada vez mais sentíamos
que a melhora das convulsões de Jonas estava apenas nas mãos de
Deus. Essa Oração era feita diariamente, no início da noite, no quarto de
Jonas, e envolvia, entre outras coisas, uma imposição de mãos sobre
ele. Não sou capaz de relatar aqui o bem, a sensação de paz que ela
dava (e dá) a todos nós.
Jonas estava incrivelmente bem. Suas convulsões tinham diminuído
bastante e, além de calmo, ele estava bem contente. Fazia muito tempo
que ele não ia até o quintal, brincar na areia e na piscina. Parecia que
tinha medo de descer os degraus da pequena escada que dá acesso ao
quintal, mas, um dia após nossa volta para casa, lá foi ele, muito feliz,
brincar na areia e em seguida na piscina. Já estava anoitecendo, mas,
como fazia muito calor, a temperatura da água estava agradável.
Coisas como essas podem parecer insignificantes, mas nos
emocionamos até as lágrimas. Até hoje, quando coisas assim
acontecem, elas nos oferecem uma energia que nos alegra
imensamente e nos dão uma disposição incomum. Naquele início de
noite, não tivemos dúvida: Erik e eu tiramos a roupa e caímos com ele
dentro d'água, brincando muito na piscina e nos divertindo não menos
durante muito tempo.
Em relação à escola, no dia em que Jonas iria retornar, fui conversar
com Ollga, para lhe contar o que havia ocorrido, e também lhe pedir que,
pelo menos no início dessa volta, desse bastante atenção e carinho a
Jonas, já que havia passado por um período bem difícil. Ele retornou à
escola, e eu aos meus afazeres da loja e domésticos (dos quais gostava
cada vez mais; pois eram uma chance de eu fazer uma oferta de algo a
outras pessoas).
Decorrido mais ou menos um mês, Erik e eu decidimos que
deveríamos concluir os exames de Jonas, já que o pior havia passado, e
não queríamos conviver com um insistente "eu acusador" a nos dizer
que não havíamos tentado tudo. Mas dessa vez fomos mais espertos:
solicitamos à Prefeitura uma condução e o pagamento do último exame
(a essa altura, estávamos completamente sem dinheiro). Conseguimos
as duas coisas. Nesse último exame, Mateus foi conosco, dando uma
força muito grande durante todo o processo. O exame foi marcado para
as 9 horas, e Jonas deveria ir em jejum absoluto. Por isso saímos de
casa bem cedinho, antes que ele despertasse.
Estava preocupada com sua fome, pois ele acorda normalmente
muito faminto e toma três ou quatro copos de café com leite. Mas, afora
a carinha triste que ele fez durante o final da viagem e o início do exame,
graças a Deus não houve maiores incidentes.
Felizmente o remédio que ele tomou para dormir teve efeito
instantâneo, dispensando a anestesia. O exame foi concluído sem
grandes problemas, e, após passar o efeito do remédio, fomos conversar
com o médico, que nos informou que, numa olhada rápida que deu no
resultado, não pôde detectar nada de anormal, mas pretendia reunir a
equipe e estudar detalhadamente o resultado. Em seguida, começou a
perguntar a respeito dos medicamentos que Jonas já havia
experimentado, as dosagens que tomara, e por aí afora.
Isso me revelou que havia pouca (ou nenhuma) esperança de que
ele localizasse o foco das convulsões para realizar a cirurgia. Já estava
preparada para isso, mas, mesmo assim, lamentei todo o esforço,
energia e sacrifícios que havíamos feito em vão. Mas também pensava,
em vários momentos: "E se não tivéssemos tentado?". O médico tinha
ficado de se comunicar comigo dentro de uma semana, para dar a
palavra final.
Voltamos para casa e para nossa vida normal. Mesmo esperando a
palavra final do médico, Erik e eu achávamos (mesmo sem conversar a
respeito) que essa etapa estava encerrada. Isso foi confirmado algumas
semanas depois.
Jonas estava indo diariamente à escola. Seu comportamento, quando
voltava de lá, não me agradava: vinha irritado, faminto e sedento. No
início de seu retorno à escola, na hora de ir, estava contente e
sorridente, mas depois de pouco tempo começou a não querer ir à
escola, chegando a fingir que estava dormindo, para que eu não o
acordasse. Achei que poderia estar imaginando coisas e tentei mais um
pouco. Mateus também começou a reparar que Jonas não estava
voltando bem, e por isso conversei com Erik; entretanto decidimos
observar mais um pouco. Durante esse período de espera, houve um dia
em que me espantei, ao vê-lo chegar vestido apenas com uma calça e
uma blusa de lã, que eu havia colocado em sua mochila. Além de não
estar fazendo frio naquele dia, imagine o desconforto de uma peça de lã
sobre a pele, sem nada por baixo. A expressão de sofrimento em seu
rosto me partiu o coração. Abrindo rapidamente sua mochila, para
entender o que tinha ocorrido, e enquanto a perua que o trazia para casa
ainda estava parada, encontrei a camiseta que havia vestido nele antes
dele ir à escola, mas ela estava encharcada de urina. Perguntei à
funcionária que estava na perua o que havia acontecido, e ela limitou-se
a dizer, constrangida:
— Ah!... Tem uma molecada lá de Robópolis que é terrível!...
Enquanto ele estava no banheiro, fazendo suas necessidades, eles
entraram e urinaram em cima dele.
Este fato foi a gota d'água. Decidimos que Jonas não iria mais à
Casa da Harmonia.
Depois, refletindo com mais calma, percebemos que esse pequeno
incidente fora necessário para tornarmos tal atitude. A Casa da
Harmonia estava com muitos alunos e poucos monitores. Jonas, como
todos os autistas e/ou dependentes, necessitam de uma atenção
constante, quase exclusiva.
Outro fato determinante para nossa decisão de não o mandarmos
mais para essa escola foi a constatação de que havíamos nos esforçado
durante muito tempo para que ele substituísse a auto-agressividade por
carinho, e tínhamos conseguido isso a duras penas. Jonas tornara-se
um ser humano extremamente carinhoso e beijoqueiro, e suas crises de
irritabilidade e auto-agressão eram (e ainda são) raríssimas. Contudo, na
Casa da Harmonia, o beijo e o abraço não eram mais considerados
"comportamentos adequados", e por isso quem tentava dar um beijo ou
um abraço em alguém era imediatamente reprimido. Não podendo
extravasar seu imenso carinho na escola, Jonas começara a manifestar
a antiga irritabilidade e, cada vez com maior freqüência, se auto-agredir.
Enfim, concluímos que havia vários fatores que o estavam
prejudicando, em vez de ajudá-lo.
Considero Ollga uma grande especialista. Mas também acho que
especialização é para insetos, como bem disse Robert Anton Wilson.
Não contesto sua capacidade de dirigir e liderar, mas me pergunto: dirigir
e liderar em direção a quê? Com quais objetivos? Apenas limitar as
pessoas a um "treinamento", porque este é aceitável e recomendável por
nossa cultura, mas que, se visto a partir de uma perspectiva mais
humana, é inibidor de qualidades que devem ser desenvolvidas,
independente do que nossa cultura acha disso?
A Casa da Harmonia era (e ainda é) um excelente espaço para os
excepcionais de nosso município que, se não a freqüentam, estão
condenados a permanecer em casa ou na rua. Mas acabou tornando-se
um lugar onde progressos aparentemente mínimos, ou mesmo
imperceptíveis (mas que na verdade são extremamente significativos
para as pessoas que têm sensibilidade para compreendê-los), são
desprezados, em nome de um atendimento quantitativo e maciço, que
deixa de lado pessoas maravilhosas que são apenas mais dependentes,
passando a considerá-las como "difíceis de lidar".
Outro ponto muito positivo da Casa da Harmonia era ela constituir um
espaço onde Jonas e outros alunos mais dependentes tinham chance de
se relacionar com pessoas iguais a deles. Por isso, pouco depois que
Jonas deixou de freqüentar esse lugar, não sei se Erik, eu, ou nós dois,
tivemos uma idéia: criar um lugar, fisicamente pequeno mas
emocionalmente infinito, onde Jonas pudesse passar horas do dia com
dois ou, no máximo, três, de seus ex-colegas da Casa da Harmonia.
As coisas mais simples são as mais bonitas

Foi muito fácil escolher dois ex-alunos, cujas mães ficaram


entusiasmadas quando lhes expus essa idéia. Seus filhos também
haviam deixado de freqüentar a Casa da Harmonia por motivos
semelhantes aos nossos. E seus filhos... Ah! Eles ficaram ainda mais
contentes que seus pais!
E tínhamos um local!, algo que havia sido nosso maior problema
quando iniciamos a luta para criar uma escola em nossa cidade. Era um
espaço que ficava ao lado de nossa loja, pequeno, mas suficiente para
abrigar Jonas e seus colegas: uma sala, cozinha, banheiro e quintal.
Uma vantagem desse lugar é que ficava em frente à Praça Santa Isabel:
teríamos ela inteira para nós.
Comecei a preparar o local, e o então prefeito Zezinho cedeu um
funcionário para a pintura e para pequenas reformas. Durante esse
período, as duas mães que havia contatado vinham me visitar
diariamente, com suas filhas, acompanhando os trabalhos e
perguntando o dia em que as "aulas" iam começar.
O prefeito Zezinho também nos emprestou quatro carteiras escolares
muito boas, e nos ofereceu os serviços da marcenaria municipal para a
confecção de alguns brinquedos pedagógicos. Já possuíamos um
pequeno sofá, uma mesa para refeições, algumas cadeiras, dois
armários e um tapete vermelho. As duas mães e eu fizemos uma boa
faxina e, em seguida, montamos com muita animação o nosso espaço.
No final, o local ficou bem aconchegante, gostoso e alegre. Jonas o
aprovou integralmente, pois ficou muito contente quando foi até lá
durante nosso trabalho e depois que o lugar ficou pronto. Apesar de não
conseguirmos fogão e geladeira, a merenda não ficou comprometida,
pois eu a preparo em casa e aí levo para esse nicho tão feliz numa
realidade repleta de tanta violência e incertezas.
Erik e eu batizamos o lugar de Espaço Original, e fizemos uma placa
(na verdade, um quadro com vidro) com esse nome, instalando-a numa
das paredes da sala.
No dia da "inauguração", para já começarmos brincando, amarrei
uma fita amarela, com um laço bem grande, na porta de entrada. No
início da "solenidade", as duas colegas de Jonas desamarraram o laço,
inaugurando a escola, e depois descerraram a cortininha que eu fizera
para cobrir o quadro com o" nome do lugar. Havíamos pedido ao padre
de São Tomé que abençoasse nosso espaço, e ele compareceu e o fez,
demonstrando estar muito honrado por ter sido convidado para isso.
Faz um mês que nos reunimos diariamente nesse lugar e, realmente,
ele é um Espaço Original! Materialmente, não termos praticamente nada,
mas, quanto ao mais importante, termos TUDO: amor, carinho e alegria.
Existe algo mais importante do que isso, em espaços como esse? Não
temos burocratiza, e as regras são feitas por nós quatro — e confesso
que nunca vi regras tão perfeitas! Jonas, após alguns dias de adaptação,
passou a interagir com suas colegas, que possuem um jeito todo
especial de se comunicar com ele, principalmente Gabriela, que, talvez
porque (como ele) também não fale, comunica-se maravilhosamente por
meio de sorrisos e gestos. Jonas gosta muito dela. Às sextas-feiras são
reservadas para passeios, piqueniques e visitas a locais interessantes.
Não sabemos durante quanto tempo o Espaço Original existirá, mas isso
não nos preocupa, pois o importante é que, enquanto ele existe:
— é um lugar muito bom;
— está fazendo três pessoas muito felizes;
— cumpre sua função de uma maneira excelente.
O Espaço Original só deixará de existir quando houver uma opção
melhor do que ele. Enquanto isso não acontece, vamos seguindo,
contentes por sua existência, pela qual sou imensamente grata a Ele.
Resultados? Você, leitor, também acha que eles são importantes? No
fundo de você mesmo (naqueles momentos em que uma vozinha
sempre nos diz o que devemos fazer, e que geralmente não ouvimos, e
por isso não fazemos), você sabe que os verdadeiros resultados são
difíceis (ou impossíveis) de serem verificados no nível de realidade em
que estamos. Apesar de nossa única pretensão ser fazê-los felizes, os
pais estão gostando muito, e falam de grandes melhoras que já
observaram em seus filhos em tão pouco tempo. Segundo sua mãe,
Cidinha, antes de freqüentar o Espaço, recusava-se categoricamente a
ajudá-la mas tarefas de casa, mas, depois que começou a participar
dessas atividades no Espaço, faz essas tarefas com muita alegria.
Enquanto estava escrevendo isso, tinha até me esquecido da alegria de
Jonas.
Como ele está feliz!!!
Hoje, acho que tudo que aconteceu (e que quando aconteceu
achamos que eram coisas que não deveriam ter acontecido) foi
necessário. Um de seus resultados foi termos conseguido um local
realmente adequado para nosso filho, onde ele vai diariamente para
encontrar seres humanos parecidos com ele, e esse contato beneficia
todos (inclusive eu). Ações coletivas que se tornam institucionalizadas
funcionam muito bem no papel, na aparência, mas na prática revelam-se
ineficazes, pois as instituições não permitem a realização do que é mais
importante em tudo: todas as potencialidades do ser humano.
Hoje sabemos que não só é possível, mas também muito simples,
"construir" um local onde seres humanos como Jonas possam conviver
com outros semelhantes.
Uma das coisas mais maravilhosas que eles nos ensinam é que
temos uma parte criança, que abandonamos e esquecemos porque
"aprendemos a ser adultos e responsáveis".
E esquecemos até que Jesus disse "Se vocês não se tornarem como
criancinhas, não entrarão no Reino dos céus (Mt 18. 3). E mesmo
quando nos lembramos disso, essa lembrança não é suficientemente
constante para pautar todas as nossas ações...
Espaço Original é um local amoroso. Um pedacinho desse planeta,
onde o emocional, o físico e o intelecto das pessoas que o freqüentam
podem se expressar e se desenvolver de maneira harmoniosa,
equilibrada, sem que um deles predomine sobre os outros.
Acho até que qualquer cidade poderia ter vários "Espaços Originais":
espaços para excepcionais, músicos, pintores, dançarinos, artesãos,
internautas, poetas, escritores, contadores de histórias, pessoas que
querem aprender algo... Espaços multifacetados, nos quais as pessoas
se comuniquem, de uma maneira bonita, entre si e com as pessoas dos
outros espaços, tendo a possibilidade de serem cada vez mais felizes.
Se você, leitor, refletir um pouco sobre isso, vai descobrir que essa idéia
não é um sonho, ou uma ilusão, e que ela não é muito difícil ou
impossível de ser realizada.
E por que é assim? Porque as coisas mais simples são as mais
bonitas (e vice-versa).
Final feliz

Enquanto a velha fita de Rita Lee vai terminando, Jonas chega na


sala onde estou, sorridente, com Erik, que acabou de chegar do
trabalho. Ele me dá um beijo e senta-se ao meu lado, acho que
relembrando o tempo em que era bebê. Em seguida, levanta-se e,
olhando para nós, vai para seu quarto. Erik me lembra:
— Ele está nos chamando para a Oração.
Isso nos enche de alegria. É lindo perceber como ele está ligado na
Oração e, mais do que isso, como nos lembra, todos os dias, o horário
em que devemos praticá-la.
Por tudo isso, e pelo Todo, no momento em que estou escrevendo
isso, este livro tem um final feliz.
Agradeço a Ele, por nos ter confiado um presente tão maravilhoso —
Jonas —, numa época em que não éramos merecedores de tamanha
riqueza. Ele tem sido uma fonte inesgotável de aprendizado, levando-
nos, cada momento, à compreensão da Sua grandeza.
Pós-escrito

Este livro já havia sido escrito quando novos fatos ocorreram. A


direção da Casa da Harmonia foi totalmente modificada, por sábia
orientação da Sra. Jandira, e a equipe inteiramente reestruturada. Ollga
foi despedida, sendo substituída por uma pessoa que reúne as
qualidades que considero necessárias para lidar com pessoas como
Jonas e outras tão maravilhosas quanto ele. Não vou repeti-las aqui,
pois já falei suficientemente delas. Aos poucos, o local volta a ter a
energia benéfica que possuía.
Pude voltar a ter livre acesso à escola e Jonas voltou a freqüentá-la.
Parece-me que ele está gostando muito do local e das pessoas dali. Nos
últimos dias, notei que ele arrumou uma namoradinha lá...
Num dos dias em que fui buscar Jonas na escola, ele estava sentado
num dos bancos do pátio externo e, num banco ao lado, estava
Francisco (aquele garoto autista a que já me referi, que era muito auto-
agressivo e com quem às vezes eu trabalhava, enquanto estava na
direção da escola). Quando me aproximei, Jonas sorriu e me deu um
beijo. Retribuí seu beijo e começamos a trocar carinhos e "conversar"
um pouco. Francisco começou a bater palmas, sorriu e emitiu alguns
sons que me pareceram de alegra. Então Jonas levantou-se e, sorrindo,
empurrou-me suavemente na direção de Francisco. Percebi que ele me
pedia para compartilhar com este um pouco do meu carinho. Obedeci,
abraçando Francisco, que retribuiu meu abraço. Em seguida, Jonas
pegou-me pela mão, despedimo-nos de Francisco e fomos felizes para
casa, com a certeza de que Francisco também havia vivenciado um
momento muito bom.
FIM

Formada em Ciências Sociais pela Unesp, Campus de Marília, Maria


Stela de Figueiredo Avelar foi professora, pesquisadora do Ibrades e da
ex-LBA. Estudiosa de portadores de necessidades especais, foi co-
fundadora e dirigiu durante :quatro anos uma escola de Educação
Especial freqüentada por seu filho — experiência a partir da qual
escreveu Autismo e família.

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