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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

CURSO DE HISTÓRIA

LUIZA DELAMONICA SCAGLIONE

ÍNDIOS NA CABANAGEM
Participações e Identidades (1835)

GUARULHOS
2019
LUIZA DELAMONICA SCAGLIONE

ÍNDIOS NA CABANAGEM
Participações e Identidades (1835)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


à Universidade Federal de São Paulo como
requisito parcial para a obtenção do título de
Bacharel e Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. André Roberto de Arruda


Machado.

GUARULHOS
2019

1
NA QUALIDADE DE TITULAR DOS DIREITOS AUTORAIS DO TRABALHO CITADO,
AUTORIZO A UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO A PUBLICAR
GRATUITAMENTE, NO REPOSITÓRIO INSTITUCIONAL DA UNIFESP, SEM
RESSARCIMENTOS DOS DIREITOS AUTORAIS E DE ACORDO COM A LEI 9.610/98,
PARA FINS DE LEITURA, IMPRESSÃO E/OU DOWNLOAD EM MEIO ELETRÔNICO PARA
DIVULGAÇÃO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA.

SCAGLIONE, Luiza Delamonica.

Índios na Cabanagem: participações e identidades (1835) / Luiza Delamonica


Scaglione. – São Paulo, 2019.
43f.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em História) – Universidade Federal


de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2019.
Orientador: André Roberto de Arruda Machado.

1. Cabanagem 2. História dos Índios 3. Período Regencial

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LUIZA DELAMONICA SCAGLIONE

ÍNDIOS NA CABANAGEM
Participações e Identidades (1835)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


à Universidade Federal de São Paulo como
requisito parcial para a obtenção do título de
Bacharel e Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. André Roberto de Arruda


Machado.

Aprovado em: ____/____/______

__________________________________________________________________________
Prof. Dr. André Roberto de Arruda Machado
Universidade Federal de São Paulo

__________________________________________________________________________
Prof. Dr.
Universidade Federal de São Paulo

__________________________________________________________________________
Prof. Dr.
Universidade Federal de São Paulo

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Agradecimentos
Este trabalho, conclusão de uma etapa da trajetória acadêmica iniciada com minha
pesquisa não teria sido possível sem a orientação e amizade do Prof. Dr. André Roberto de
Arruda Machado: mestre hoje e sempre. Agradeço também aos colegas do grupo de
estudos Thaís, Amanda, Bruna, Juliana, Samuel, Marcos e Augusto que tanto me ensinaram
em nossas reuniões e debates coordenadas pelo professor André. Ainda no âmbito
acadêmico, agradeço aos amigos e colegas que me acompanharam nessa trajetória, dando
o apoio emocional e mental que toda a graduação exigiu. Helena, Heloísa, Mayumi, Mayara,
Renata, Igor e Matheus, muito obrigada. Eu não estaria aqui sem vocês.
Agradeço àqueles que me acompanharam desde o início, meu pai Sandro e minha
mãe Silmara por sempre colocarem minha educação em primeiro lugar. Devo meu espaço
na universidade à vocês e esta também é uma conquista sua. Muito obrigado. Por último
agradeço a meu companheiro, Murilo, por me apoiar em todas as empreitadas. Obrigada.

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Resumo
Dos conflitos ocorridos durante o período Regencial, a Cabanagem destacou-se não
só pela narrativa violenta, mas pela larga participação de indivíduos localizados à margem
da sociedade, particularmente os indígenas. Embora este seja um consenso, apenas em
tempos recentes a historiografia vem se dedicando a medir a dimensão dessa participação
indígena. Como se sabe, a tradição costuma apontar que a população insurreta era
composta em grande parte por índios que viviam entre os brancos, denominados tapuios.
Mas de que outras formas eles aparecem? Há ainda muito a se questionar sobre o emprego
deste termo no processo de entendimento das identidades cabanas, particularmente nas
relações raciais que ocorreram no Império. A Cabanagem, encarada quase sempre de forma
uníssona – o que se reflete na designação cabano – na verdade foi composta por uma
miríade de grupos étnicos e sociais, cuja variedade cultural pode ser observada também no
conflito. Esta diversidade teve reflexos na revolta. Neste sentido, há também abertura para
se pensar no envolvimento de grupos subalternos nas Revoltas Regenciais, suas
motivações e a relação destas com as disputas políticas que ocorreram no período. O
objetivo desta monografia foi verificar a dimensão da participação de indígenas na
Cabanagem tendo como base o primeiro ano da revolta (1835), por este ter sido o período
mais intenso de confronto entre rebeldes e tropas legais, especialmente na capital paraense.

Palavras-chave: Cabanagem – Grão-Pará – História dos Índios

5
Abstract
Of the conflicts that occurred during the Regencial Period, Cabanagem stood out not
only for its violent narrative, but for the large participation of individuals located on the fringes
of society, particularly indigenous peoples. Although this is a consensus, only in recent times
has historiography been devoted to measuring the extent of this indigenous participation. As
is well known, tradition usually points out that the insurgent population was largely composed
of Indians who lived among the whites, called tapuios. But in what other ways do they
appear? There is still much to be questioned about the use of this term in the process of
understanding cabano identities, particularly in the race relations that took place in the
Empire. The Cabanagem, seen most often in unison – what is reflected in the cabano
designation – it was actually made up of a myriad of ethnic and social groups, whose cultural
variety can also be observed in the conflict. The same diversity was reflected in the revolt. In
this sense, there is also openness to think about the involvement of subordinate groups in
the Regentials Revolts, their motivations and a relationship between these and the political
disputes that occur in the period. The objective of this monograph was to verify the
participation of the indigenous population in the Cabanagem based on the first year of the
revolt (1835), as it was the most intense period of confrontation between rebels and legal
troops, especially in the capital of Grão-Pará.

Keywords: Cabanagem – Grão-Pará – Indian History

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Sumário

Introdução……………………………………………………………………………………...………8

Capítulo 1: As Revoltas Regenciais: os sentidos dos conflitos………………………………….9


1.1. As razões dos conflitos: um debate historiográfico………………………………………….9
1.2. Os indígenas nas Revoltas do Império……………………………………………..……….16
1.3. A Província do Grão-Pará: um território sempre em conflitos?......................................21

Capítulo 2: Cabanagem: História e historiografia………………………………………...…….23


2.1. Da anarquia à revolução………………………………………………………....………….24
2.2. Os cabanos, segundo a historiografia……………………………………………………...33

Capítulo 3: Raça, trabalho e revolta indígena…………………………………………………..38


3.1. Raça e Trabalho………………………………………………………………...…………….38
3.2. A noção de “raça” na cabanagem…………………………………………………………..45

Considerações finais………………………………………………………………………….…...47

Fontes……………………………………………………………………………………...……….50
Bibliografia………………………………………………………………………………………….51

7
Introdução

Das chamadas ​revoltas regenciais​, ou seja, a série de insurreições ocorridas ao


longo do Período Regencial (1831-1840), a Cabanagem (1835-1840) é provavelmente uma
das mais conhecidas pela marginalidade do povo que a integrou. Ao longo da historiografia
amazônica e paraense, os cabanos sempre aparecem como figuras populares, com pés
descalços, chapéu de palha e as mãos em armas, como o famoso quadro de Alfredo Norfini
(1940). O cabano, personagem principal da Cabanagem seria esse indivíduo austero,
moldado pelas dificuldades do seu modo de vida simplório, nas margens dos rios e nos cais
em Belém, ou assim quis a historiografia consagrada sobre o tema, em meados do século
XX.
O que este trabalho verdadeiramente se dispõe a apresentar é justamente uma visão
mais pragmática da figura do cabano, na esteira dos trabalhos mais recentes sobre o tema
que se debruçam sobre a identidade dos povos participantes na Cabanagem. Dentre eles,
destacam-se os índios, mulatos e tapuios1, parte constituinte e indissociável do cenário
marginal da Província paraense no período. Desta forma, a pergunta que se busca
responder neste trabalho é: dentro de uma revolta cuja principal característica foi a
multiplicidade de ​pensamentos e povos, ​qual a dimensão da participação indígena na
Cabanagem?
Graças à extensa documentação do período, presente no Arquivo Público do Estado
do Pará (APEP) que foi compilada e disponibilizada no Centro de Memória e Pesquisa
Histórica da UNIFESP (CMPH), foi possível encontrar uma volumosa documentação que
corroborou com a proposta apresentada inicialmente: compreender até onde ocorreu a
participação indígena na revolta. A comparação com outras fontes documentais,
particularmente aquelas compiladas por David Cleary (2002) e Domingos Antônio Raiol no
2
clássico ​Motins Políticos (1865) contribuiu grandemente para um importantíssimo debate
historiográfico acerca das diversas representações do índio e dos cabanos na literatura
sobre o assunto.
Devido justamente a esse extenso volume documental, o recorte cronológico foi
reduzido à apenas o primeiro ano da Cabanagem (1835), por se tratar do período em que a
rebelião ainda era urbana e situada principalmente em Belém, o que contou com uma
descrição maior e mais detalhada por parte dos agentes legais. Destaca-se também que
outras fontes, tais como os documentos carcerários produzidos a partir de 1836 já foram

1
De forma geral, o ​tapuio pode ser entendido como um índio destribalizado, que viva entre a
população livre e pobre. Posteriormente este termo será abordado de forma mais detalhada.
2
A edição utilizada neste trabalho foi a de 1970.

8
3
largamente utilizadas pela historiografia e trariam pouca renovação ao debate, embora
sejam importantes reforços para o argumento apresentado.
O primeiro capítulo apresenta um panorama amplo dos temas que serão abordados
ao longo da monografia. Em primeiro lugar, apresenta um debate historiográfico do Período
Regencial, explanando sobre as principais visões a respeito do período desde o século XIX
até a atualidade. O recorte sobre as revoltas regenciais vem como apoio para a análise
seguinte, sobre a História dos Índios e o surgimento dessa corrente historiográfica que em
grande medida pauta a monografia. Por fim, o capítulo procura desmontar um antigo
conceito presente na História paraense, de que este seria um “território sempre em
conflitos”. Como se verá, esta visão faz parte de uma construção histórica que também pode
ser remontada ao século XIX.
O segundo capítulo continua os debates historiográficos, desta vez sobre a
Cabanagem propriamente dita, apresentando como se deu a construção das interpretações
sobre a revolta nos meios acadêmicos e como o campo vem se renovando com os recentes
estudos sobre os povos marginalizados e a própria identidade cabana. Esta perspectiva
apresenta terreno fértil para os estudos sobre História dos Índios, devido à afirmação
pragmática da historiografia clássica, em que os povos indígenas teriam atuado
massivamente na Cabanagem.
O terceiro e último capítulo vem, portanto, para contribuir com este campo,
demonstrando na prática como e onde figuram tais povos na documentação analisada. Um
ponto de destaque está no fomento ao debate sobre a relação entre identidade nacional,
racial e étnica, que será detalhadamente analisada no capítulo. Finalmente, é importante
destacar que esta monografia foi resultado da pesquisa de iniciação científica de mesmo
nome (2018-2019), financiada pelo PIBIC/CNPq e que esta pesquisa integrou o projeto
Vassalos ou cidadãos, obrigados ao trabalho coordenado pelo Prof. Dr. André Roberto de
Arruda Machado.

Capítulo 1: Revoltas Regenciais: os sentidos dos conflitos

1.1. As razões dos conflitos: um debate historiográfico


Para que se compreenda a Cabanagem e a participação indígena nela, deve-se
primeiramente traçar um panorama historiográfico referente ao período das Revoltas
Regenciais. Desta forma, pode-se entender melhor como as populações marginalizadas

3
Autores como Luis Balkar Sá Peixoto Pinheiro (2003), Leandro Mahalem de Lima (2004) e Carlos de
Araújo Moreira Neto (1988) utilizaram-se de tais fontes a fim de demonstrar o argumento de que
índios constituíam a principal raça participante da Cabanagem.

9
foram apagadas ao longo do tempo e como recentemente elas voltaram a figurar como
protagonistas de diversas pesquisas históricas.
Pode-se remontar a historiografia das Revoltas Regenciais ao Segundo Reinado.
Estas interpretações possuíam cunho estritamente político. Basille (2009) aponta que
apenas nos anos 1970 o campo livrou-se das amarras do século anterior, separando os
estudos do período por áreas temáticas, tais como dos grupos políticos, associações, ritos
cívicos e com particular destaque, trabalhos sobre a imprensa (p. 56-58). Entretanto, o
retrato criado no século XIX já havia se cristalizado e novas interpretações do período
levaram tempo para se firmarem.
Aldo Janotti (1983), por exemplo, volta ao polêmico Ato Adicional, desta vez para
destacar a preocupação da Regência em preservar a unidade nacional a qualquer custo (p.
47). Embora sua análise contribua para entender o papel das reformas liberais no período e
suas consequências para o ​regresso conservador no Segundo Reinado, Janotti ainda não
se livra completamente do estigma que envolve o período regencial, declarando-o como um
dos mais “conturbados da história”. O autor escreve logo no primeiro parágrafo do artigo:

“Sedições, motins, movimentos restauradores, repúblicas provisórias ou


pretensiosamente definitivas, uma nação conturbada, eis o panorama
político do Brasil regencial. Porque os anos da Regência foram os mais
críticos do nosso desenvolvimento histórico, nunca esteve o Brasil tão
seriamente ameaçado de desintegrar-se num sem número de outras
formações geo-políticas. Consequentemente, nunca tantos esforços foram
despendidos com o objetivo de se preservar a unidade nacional. Unidade
nacional: a grande preocupação da Regência.” (Idem)

Declarar o período regencial como um episódio conturbado e anárquico nunca foi


novidade na historiografia. Na verdade, pode ser remontado à segunda metade do século
XIX, quando figuras políticas proeminentes e ativas durante a Regência escreveram suas
4
próprias interpretações sobre o período. José Murilo de Carvalho (2018) foi pioneiro no
campo de estudos sobre a Regência, ao elaborar uma análise profunda da formação das
elites nacionais que constituíram o poder e ditaram as narrativas sobre a construção do
Estado Nacional. Foi uma contribuição importante pois, sem entender o papel das elites na
formação do Estado brasileiro, não se pode analisar com clareza a construção da
historiografia sobre o período regencial.

4
As teses originais, ​A Construção da Ordem ​e ​O teatro de sombras​ são datadas de 1980 e 1988,
respectivamente.

10
Segundo este autor, havia uma grande quantidade de indivíduos letrados e
estudiosos entre os membros da elite brasileira. Para ele, a construção das elites políticas
no Brasil foi mais uma questão de formação acadêmica ​— ​geralmente iniciada na
Universidade de Coimbra ​— ​do que por uma questão de classe ou ​status ​social. Desta
forma, o que realmente importava era o alinhamento ideológico de tais grupos (Idem, p.
230).

“A educação em Coimbra, a influência do direito romano, a ocupação


burocrática, os mecanismos de treinamento, tudo contribuía para dar à elite
que presidiu a consolidação do Estado imperial um consenso básico em
torno de algumas opções políticas fundamentais. Por sua educação, pela
ocupação, pelo treinamento, a elite brasileira era totalmente
não-representativa da população do país”. (Idem, p. 231)

Portanto, pode-se inferir que, ao criar suas análises sobre determinados períodos
históricos ​— neste caso a Regência, os homens da elite política não estavam preocupados
em compreender os eventos que ocorreram, mas sim em interpretá-los sob seu próprio viés
político e ideológico.
Tal fator estendeu-se pelos estudos acadêmicos até quase a atualidade. Morel
(2003) destaca que na historiografia há duas maneiras de interpretar a Regência: retomando
a visão consagrada no Segundo Reinado, que a ditou como período anárquico, ou focando
exclusivamente nas revoltas regenciais como forma de analisar aspectos de resistência e
opressão no Brasil. Para o autor, esta última interpretação pode ser perigosa pelo risco de
cair em anacronismos (p. 7-8). Como uma das maneiras possíveis de livrar-se desses dois
vieses, o autor destaca como o período regencial, na sua qualidade de “laboratório da
nação”, trouxe à superfície múltiplas facetas socioculturais, étnicas e políticas (idem, p.
5
31-51) que atuavam naquele momento e que raramente são trabalhadas devido ao
preterimento da historiografia em permanecer no âmbito político e legislativo. Pensar o
período regencial é pensar um momento de construção e consolidação nacional.

5
Estas facetas são trabalhadas pelo autor ao longo da obra, segundo o autor “[...] as lógicas que
estruturam as divisões políticas fundamentais se expressam na tripartição de soberanias corrente em
princípios do século XIX: a soberania do rei, a soberania do povo e a soberania da nação.” (ibidem, p.
33). Levando estes princípios em consideração, quaisquer interpretações sobre o período regencial
que ignore um dos três elementos torna-se demasiado rasa.

11
“A importância do período regencial coloca-se porque, dilacerante, ele foi
momento-chave para a construção da nação brasileira, quando, ao custo de
muitas vidas e despesas, garantiu-se a independência e o caminho de uma
ordem nacional, com determinadas características. A estrutura política ⎼ que
se pretendia consolidar com o Estado Nacional ⎼ abalava-se pela ausência
de poder centralizado na figura do monarca e pela emergência de atores
históricos variados com suas demandas sociais. O Brasil
recém-independente parecia prestes a se despedaçar, mas acabou
tomando um rumo. O Período Regencial foi, portanto, tempo de esperanças,
inseguranças e exaltações, tempo de rebeldia e de repressão, gerando
definições cujos traços essenciais permanecem na sociedade” (ibidem, p.
10)

Essas características apontadas pelo autor foram bastante diminuídas no século XIX.
Izabel Marson (2005), destacou as visões políticas de alguns autores do período. Armitage,
que narrou eventos ocorridos até 1831, relataria algo próximo de um “despertar da
consciência política” brasileira, comparando a situação do Brasil com a da Europa. Em sua
visão, os populares se encaixam nas disputas entre senhores e escravos e entre brasileiros
e portugueses. Já a inabilidade das elites políticas de conter o populacho seria um
problema, uma falha do projeto político brasileiro (idem, p. 75-77).
Torres Homem limitou-se a comparar o país com os Estados Unidos e destacaria
um embate entre “a liberdade e a tirania”, uma “característica política essencial do século
XIX” (idem, p. 78). Os anos de 1831 a 1837 para ele seriam um período de equilíbrio
democrático que “reprimiu a ​desordem (sic), reorganizando e salvando o país da anarquia
remanescente do governo anterior” (Idem, p. 79). Ele ainda chama o período regencial de
“acidente funesto e lamentável” “que exteriorizou as ‘paixões e os instintos grosseiros da
escória da população’” (idem).
O que se pode notar a partir da publicação deste autor é que havia um sentimento
geral de negação do primeiro reinado, sendo o período regencial um momento de
reorganização do governo e restauração da ordem, apesar das revoltas ocasionadas pela
instabilidade da população. De uma perspectiva liberal, Torres Homem absolveu sua classe
política de ter influenciado os conflitos, atribuindo toda a culpa às massas.
Por outro lado, Justiniano José da Rocha preferiu uma abordagem que, num primeiro
momento, parece prezar pela neutralidade, embora o efeito desejado pelo autor seja
exatamente o contrário. Ele dividiu todo a Regência em três períodos e cinco fases, além de
subordiná-los a duas leis: uma de ação-reação e uma de progresso. A primeira teria sido

12
aplicada de maneira cíclica até anos de 1850, quando a influência conservadora se
consolidou. (Idem, p. 82) Como Torres Homem, ele acreditava que a alternação entre a
influência liberal e conservadora no Parlamento influenciava nas políticas do Estado, entre
períodos de maior liberdade ou de grande autoridade. Os períodos democráticos, que vão
de 1831 a 1836 seriam marcados por desordem, no qual o Ato Adicional foi o grande
catalisador de todos os problemas. Ele mantém uma visão negativa sobre as revoltas
regenciais, declarando que aquele foi um momento de despreparo dos homens que estavam
no poder. Nesta perspectiva, a população comum mais uma vez é ignorada. (Idem, p. 83-85)
Foi na segunda metade do século XX, com a renovação dos estudos sobre o Período
Regencial, que os historiadores voltaram-se para essa parcela marginalizada da população,
que anteriormente figurou apenas como coadjuvante, fosse como massa de manobra das
elites políticas do Império ou anacronicamente como símbolos de uma revolução que nunca
6
ocorreu. Abaixo serão destacados alguns estudos em torno de revoltas regenciais que em
grande medida contribuem para a compreensão da Cabanagem como revolta popular
organizada por indivíduos marginalizados socialmente, mas que mantinham papéis
importantes dentro destes levantes, apesar do envolvimento ou não das elites políticas do
período.
Marcelo Basille, no artigo ​Revolta e cidadania na corte regencial (2006) destaca
justamente o viés popular das revoltas ocorridas no período imperial, acentuando o exemplo
de 1831, ocorrida no Teatro S. Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro. O que se depreende
da narrativa é a ênfase dada pela nova geração historiográfica de atribuir os tumultos —
sempre de cunho político — ao crescimento da opinião pública e expansão da imprensa
nacional. O autor evidencia como os setores políticos, tanto ​exaltados​, como ​moderados
descreveram os eventos, culpabilizando cada um, o seu rival pelos ocorridos, num viés
conspiracionista (idem, p. 49). Entretanto, Basille aponta algo ainda mais importante, na
perspectiva dos estudos sobre as revoltas regenciais: embora não haja “dúvida de que
houve participação expressiva de indivíduos de baixa condição social, inclusive escravos”
(ibidem, p. 52) e “não houvesse um fator único a impelir igualmente todos os diferentes
manifestantes” o episódio foi baseado na opinião política dos participantes (ibidem, p. 54) e
foi, comprovadamente, uma forma de as camadas marginalizadas fazerem-se ser ouvidas.

6
Como será demonstrado no capítulo 2, os participantes da Cabanagem foram particularmente
vitimados por este tipo de visão, sendo colocados como exemplo a ser seguido durante os tempos de
luta contra a ditadura civil-militar.

13
“Para além de uma cidadania formal estado-cêntrica, estabelecida de cima
para baixo, sob tutela do Estado imperial, desenvolvia-se uma prática
informal de cidadania, construía debaixo para cima, mediante a participação
ativa das mais diversas camadas sociais nas instâncias de ação política do
espaço público”. (Ibidem, p. 56)

Um bom exemplo da tomada das ruas e da revolta como mecanismo de atuação política
está na Balaiada. Santos (1983, p. 66) acredita que a revolta dos balaios era diferente e
paralela à dos bentevís. Na verdade, a rebelião só encontrou a revolta negra nos anos finais,
quando já estava desgastada (idem, p. 89):

“Em nenhum momento, os líderes rebeldes preocupam-se com a sorte dos


escravos ou sequer colocam em discussão o problema do trabalho escravo.
Não é preciso ser muito perspicaz para reconhecer a semelhança entre
essas posições rebeldes e as teses defendidas pelo Partido Liberal
Maranhense. Os documentos balaios, embora permeados pelas
reivindicações sociais, expectativas dos homens pobres, mestiços, caboclos
e mesmo índios, não nos autorizam a reconhecer neles qualquer
identificação dessa luta com a do escravo.” (Ibidem, p. 90)

7
Assunção (1996) vai ainda mais longe, separando balaios, bentevís e quilombolas .
Para o autor, Cosme Bento das Chagas, líder quilombola conhecido por sua atuação na
Balaiada apenas se aproveitou do momento de insurreição para iniciar revoltas escravas nas
fazendas. A “visão política de uma aliança com os rebeldes balaios” foi o que garantiu o
sucesso de sua empreitada (Idem, p. 445). Este tipo de participação de populações
marginalizadas em grandes revoltas organizadas por camadas mais ricas ocorreu também
na Cabanagem, onde a maioria dos rebeldes participou devido a interesses próprios e
questões locais. Para eles, as grandes disputas da política nacional possuíam pouca
relevância. No caso da participação de Chagas na Balaiada, o enfrentamento entre
quilombos e fazendas já era um processo antigo na região, mostrando como, apesar da
influência da opinião pública e do clima geral de rebelião (Ibidem, p. 442), as demandas de
Chagas eram diferentes e poderiam até mesmo ser completamente dissociadas das dos
revoltosos balaios.

7
Lembrando que a Balaiada (1838-1841) contou com a participação de dois grupos principais de
ação: os balaios ​— pequenos comerciantes; e bentevís ​— os membros do partido liberal
maranhense Os quilombolas só viriam a integrar a revolta no final.

14
“As proclamações dos rebeldes retomavam muitos elementos do discurso
dos liberais exaltados, como o antilusitanismo ou a luta contra arbitrariedade
que sofriam as pessoas de cor. Na prática, porém, muitos grupos rebeldes
foram engrossados por escravos fugidos e vice-versa”. (ibidem, p. 446)

Este caso destaca-se justamente pela questão abolicionista. Se, como os intelectuais
do século XIX diziam, as classes mais baixas eram apenas ​bárbaros sem quaisquer
reivindicações e apenas voltados para a ​anarquia​, como seria possível que Chagas
possuísse demandas abolicionistas? Limitado ou não, o quilombola tinha conhecimentos
sobre a política do período. Nos anos após a Balaiada houve um movimento constante do
governo para suprimir as revoltas. Havia ainda o medo “que se repetisse a aliança com a
população livre e pobre” (ibidem, p. 452).
As relações com as populações marginais em situações de revolta vão paralelas aos
povos indígenas, por vezes se encontrando. Costa (2016) ressalta que os balaios
encontraram tanto resistência como adesão dos índios à revolta (idem, p. 263) justificando a
proposição na qual os índios viviam a realidade do Império de forma diferente dos brasileiros
(ibidem, p. 265). Esta dimensão apontada pelo autor permite refletir sobre a interação entre
os diversos grupos sociais encontrados na revolta, argumento também utilizado por
Assunção, nos quilombos maranhenses durante a Balaiada. Segundo o autor, a geografia
neste caso, aproximou índios e outros povos marginalizados, como os quilombolas. Ao
instalarem-se nas áreas marginais da sociedade, como nas matas e nos arredores das
cidades, estes indivíduos entraram em contato com as populações indígenas que já estavam
no local, criando laços de resistência e parceria conforme a situação (ASSUNÇÃO, 1996, p.
460).
Machado (2017) argumenta que houve na historiografia brasileira um apagamento
geral dos conflitos na História do Brasil. Este fator pode ser notado em vários momentos,
mas o autor destaca em particular a Independência, onde a unidade da colônia teria
supostamente permanecido única e exclusivamente por um pacto entre as elites políticas
preservando os interesses dos grandes senhores de escravos (Idem, p. 11-12). Essa ideia,
tão bem cristalizada na História nacional suprime uma série de fatores e conflitos, muitos
dos quais resultariam na Abdicação e no Período Regencial.
Entretanto, os detentores do poder, ao imaginarem uma nação pacífica suprimiram
boa parte dos conflitos a duas situações: seu quase desaparecimento da memória nacional
e da historiografia oficial – a exemplo dos próprios conflitos da Independência como os que
ocorreram na Bahia e no Grão-Pará – ou a sua total distorção – que é o caso do Período

15
Regencial, frequentemente visto como um período de experimentação e inabilidade de
liderança do Estado (Ibidem, p. 17).
Os indígenas não escaparam à agitação do momento. É um erro comum na
historiografia silenciar sua participação, dando a entender que estes povos se
encontravam alheios às ocorrências no país. Como todos os outros setores sociais,
incluindo os escravos, eles lutaram por seus direitos imediatos, como a defesa de seus
aldeamentos e a resistência aos processos civilizatórios. Em meio a este processo,
enxergaram oportunidades de ascensão social e maior participação política.
Assim, a historiografia sobre a Regência construiu uma ideia de “laboratório”, onde o
país fora comandado por elites completamente alheias à realidade da nação e com objetivos
diferentes desta. Conforme o que foi exposto, o cenário pode ter sido contrário, onde as
autoridades trabalharam para conter a ordem dando maior autonomia às províncias, a fim de
evitar um possível separatismo. Tal fato é comprovado pelas legislações indigenistas,
utilizadas das mais variadas formas, a fim de comportar as necessidades de cada província.
No Grão-Pará, essa legislação teria papel fundamental em conjunto com o Ato Adicional
para a eclosão da Cabanagem, pois, como destaca a documentação, a participação dos
índios na revolta se deu justamente às questões envolvendo o trabalho compulsório, mais
do que as políticas gerais do período regencial.

1.2. Os indígenas nas revoltas do Império


Há poucos exemplos de resistência indígena no século XIX registrados pela
historiografia, embora este quadro esteja mudando nos últimos anos. Daí a importância em
destacá-los e mostrar quais caminhos bibliográficos foram adotados ao longo desta
monografia. De certa forma, não se pode pensar na sua participação sem levar em conta o
campo da ​História dos Índios e as interpretações que ele oferece. Neste sentido, é
importante restaurar o protagonismo indígena em momentos de conflito, especialmente em
torno das legislações indigenistas uma vez que este configura uma das possíveis causas
para o envolvimento destes povos na Cabanagem.
Há poucos autores refletindo sobre esta questão. Fora alguns trabalhos recentes,
tais como os de Mark Harris (2017), que analisou os grupos indígenas localizados no
Grão-Pará em tempos da Cabanagem; de Dantas (2014; 2015), que refletiu sobre o trabalho
compulsório em Pernambuco; e João Paulo Peixoto Costa (2016), que mencionou índios
aldeados no Ceará, participantes das revoltas pernambucanas. Em grande medida,
entender quem foram os povos envolvidos nessas revoltas contribui não somente para a

16
construção da chamada História dos Índios, como também ampliaria a visão, um tanto
quanto panorâmica, da participação indígena no Império.
Estes trabalhos combatem uma ideia que durante muito tempo perpetuou entre os
historiadores, de que após o período do descobrimento, os índios teriam ‘desaparecido’ da
História. Na verdade, eles sempre estiveram presentes e atuando nas questões políticas,
sociais e culturais do país, como por exemplo durante a Cabanagem. Segundo John
Monteiro (2001), apoiado por outros autores, essa resistência aos estudos de história dos
índios é justificada pela suposta ausência de fontes sobre o assunto, particularmente
aquelas produzidas pelos próprios indígenas. Entretanto, “[…] o isolamento dos índios no
pensamento brasileiro, embora já anunciado pelos primeiros escritores coloniais, começou a
ser construída, de maneira mais definitiva a partir da elaboração inicial de uma historiografia
nacional, em meados do século XIX” (Idem, p. 2).
Essa resistência dos historiadores ao tema seria ocasionada, na perspectiva de John
Monteiro, pela aceitação de um movimento histórico e intelectual, a partir das tentativas do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) de construir uma história nacional.
Francisco Adolfo de Varnhagen, já na segunda metade do século XIX, seria a figura principal
no processo de apagar os índios da historiografia. No Segundo Reinado, foco desta
monografia, a questão indígena aparece de maneira consistente e coube aos intelectuais do
Império pensar alternativas para a questão, o que comprova que não houve
desaparecimento algum. Ao contrário, é neste período que surgem os debates sobre a
mistura de raças que era exaltada ao mesmo tempo em que os conflitos entre indígenas e
8
não-indígenas continuavam ocorrendo (SAMPAIO, 2009, p. 2-4).
Neste tortuoso debate, Varnhagen representou a oposição. Calcado em relatos de
colonos e viajantes, o intelectual consolidou a ideia do “isolamento do índio brasileiro”
(MONTEIRO, 2001, p. 2), sua incapacidade, portanto, de ser assimilado pela cultura
dominante, cabendo, eventualmente, ser dizimado. Essa visão bastante evolucionista foi o
que o fez escrever a famosa frase “de tais povos na infância não há história: há só
etnografia” (VARNHAGEN apud. MONTEIRO, 2001, p. 3). Uma vez sem futuro, os povos
indígenas foram sistematicamente apagados da historiografia nacional até os anos 1970.

8
Embora tenha sido consagrado por Darcy Ribeiro, o mito das “três raças” foi primeiramente
idealizado por von Martius em 1845, “q​ue se utilizou da metáfora de um rio composto por vários
afluentes: um branco mais caudaloso; um indígena menos profundo, e um negro ‘quase um riacho’”
(Schwarcz, 2012).

17
“Surgiu, de fato, uma nova vertente de estudos que buscava unir
preocupações teóricas referentes à relação história/antropologia com as
demandas cada vez mais militantes de um emergente movimento indígena,
que encontrava apoio em largos setores progressistas que renasciam numa
frente ampla que encontrava cada vez mais espaço frente a uma ditadura
que lentamente se desmaterializava”. (Idem, p. 5)

Após a Constituição de 1988, com o evidente processo de ​etnogênese ​a ideia da ​crônica da


​ os índios foi abandonada (POMPA, 2012, p. 64). O trabalho pioneiro de John
extinção d
Monteiro em ​Negros da Terra (​ 1994), que buscou as relações de escravidão indígena em
São Paulo durante os séculos XVI e XVII, mostrou a possibilidade de trazer os índios como
atores históricos que resistiram culturalmente ao longo do tempo. Metodologicamente, ele foi
responsável por quebrar barreira e aproximar a antropologia, a arqueologia e a história
(POMPA, 2012, p. 66-67).

“Com efeito, a releitura do estruturalismo à luz do processo histórico e


político, trazida por novos expoentes do culturalismo americano, como
Sahlins e Rosaldo, ou a reflexão sobre a relação dinâmica entre mito e
história, de etno-historiadores como Jonathan Hill, abria novas perspectivas
teóricas e de pesquisa, trazendo para o centro do palco da política e da
história a maneira indígena de fazê-las, ‘em seus próprios termos’, para citar
uma frase famosa de Manuela Carneiro da Cunha.” (Idem, p. 70)

Hoje restam dois desafios para a produção de uma História dos Índios genuinamente
deles: colocá-los como protagonistas de sua própria história e vencer a ideia de ausência de
fontes. Por muitos anos, os historiadores acreditavam que não haveria documentação
produzida por índios por estes serem supostamente iletrados. Isto os removeria por
completo de qualquer período após os primeiros anos de 1500. Consequentemente, os
deixava para os estudos arqueológicos e antropológicos, distanciando-os da realidade atual
e de sua própria memória histórica. Assim, superar, a ideia de que não há fontes produzidas
por indígenas significa também combater a ideia de que a estes povos ​só resta a etnografia.
Existem atualmente inúmeros trabalhos que se encaixam na história dos índios. Os
mais volumosos encontram-se nos anos da colônia, onde também há um mito de
abundância de fontes ​devido aos relatos de viajantes e jesuítas. Mas como Maria Regina
Celestino de Almeida demonstrou em seu trabalho ​Metamorfoses indígenas (​ 2013) esses
povos resistiram até os dias atuais, modificando-se culturalmente e adaptando-se a novos

18
espaços e regras impostos pelo homem branco. Estes traços de mudança cultural, como
forma de resistência ao avanço do domínio colonial foram de grande importância para a
manutenção das populações indígenas marginalizadas. No Grão-Pará, esses povos seriam
chamados ​tapuios:​ indígenas destribalizados, mas que por sua herança étnica e racial,
permaneceram à margem da sociedade. Na Cabanagem, eles constituíram o principal grupo
de resistência às tropas legalistas.
Em certa medida, isso implica que os espaços dos brancos seriam também espaços
dos índios, inclua-se aí os aldeamentos e vilas, bem como as formas de trabalho para as
quais estas populações eram voltadas (Idem, p. 168). Em meio a este território em
construção, fugas e insubordinações eram formas comuns de demonstrar a indignação para
com as autoridades locais e as mudanças de Estado. Afinal, os povos indígenas também
estavam a par do que ocorria no Império (Ibidem, p. 171).
Durante o período Imperial, diversos autores mostraram um apagamento sistemático
dos povos indígenas na documentação. Segundo Machado, “neste período, das décadas de
9
1820 e 1830, praticamente não há citações aos Principais indígenas nas fontes, algo que é
evidentemente contrastante com a realidade encontrada no período anterior: marcadamente
no Diretório Pombalino, novas pesquisas têm mostrado o grande protagonismo dessas
lideranças” no contexto paraense. Outra constatação fundamental é que no mesmo período
houve um aumento considerável dos índios forçados ao trabalho, especialmente o
10
militarizado (MACHADO, 2017, p. 168). Dantas (2014), quanto à Cabanada, destacou :

“[Os] índios envolveram-se dos dois lados da revolta, tanto dos cabanos
quanto da repressão, chegando a se enfrentar em alguns momentos. Os
indígenas e suas lideranças construíram leituras próprias sobre a revolta,
percebendo as possibilidades de ganhos que cada aliança ou rivalidade
representaria para, então, fazer suas escolhas.” (Idem, p. 116)

Da mesma forma, Dornelles (2018) ao analisar a província paulista no século XIX


apontou uma interessante relação entre escravidão indígena e trabalho compulsório.
Segundo a autora, houve um esforço por parte das autoridades “em descaracterizar as
populações de antigas regiões de aldeamentos coloniais do critério étnico, considerando-os
como parte da ​massa comum da população​”. Entretanto, este esforço foi em vão, pois essas

9
Principal era o nome comumente dado ao líder da população indígena, fosse ela aldeada, tribal ou
avilada, como aquelas do período do Diretório Pombalino.
10
O trabalho forçado e o alistamento compulsório constituíram algumas das principais razões para o
envolvimento de tapuios na Cabanagem, como será demonstrado no capítulo 3.

19
populações ainda eram vítimas de escravização, apesar da legislatura que reforçava a
proibição da escravidão (DORNELLES, 2018, p. 89).

“Alguns costumes praticados em relação às populações indígenas foram de


longevidade impressionante, principalmente aqueles atrelados à coerção
para o trabalho. O uso da expressão resgate, por exemplo, remonta aos
tempos coloniais, mas continuava em uso em meados do século XIX. O
resgate (sic) foi uma das formas legais de escravizar indígenas durante o
período colonial” (Idem, p. 90)

A autora ainda aponta como há uma mudança drástica no tratamento para com os
povos indígenas nos anos finais da Colônia e o início do Império. Segunda esta visão, este
fator se deveu ao povoamento colonial, que exigiu cada vez mais terras e mão de obra,
modificando assim a relação com os índios avilados e tribais (DORNELLES, 2018, p. 65).
Tanto para ela como para Machado, estas alterações no tratamento para com os povos
11
indígenas pode ser remontada ao período do Diretório Pombalino, em 1755.
Desta forma, o debate sobre a questão indígena estava presente nos primeiros anos
do Império, ainda que quaisquer sugestões de leis estivessem limitadas pela ausência de
uma legislatura nacional e condicionadas pelos fatores locais de cada província. “Na
verdade as pautas da questão indígena brotavam mais diretamente da própria sociedade,
através dos conflitos locais ocorridos em diversos pontos do território [...]” (SPOSITO, 2012,
p. 52) Segundo alguns autores, como Carneiro da Cunha (1992, p. 138-140), este fator não
configurava naquele período de construção nacional, uma prioridade. Para outros, como
Sposito (2012), esta questão encontrava-se em debate entre os homens do governo, ainda
que de forma secundária (Idem, p. 71).

“Por isso mesmo, ao se examinar vários encaminhamentos do Império a


partir de 1822, pode-se notar o caráter mais brando com relação aos índios
do que havia sido, em geral, durante o período colonial. No entanto, essa
‘cordialidade’ é mais aparente do que real por dois motivos. Primeiramente
porque muitas vezes o discurso afável e humanitário não se assentava

11
A relação entre a legislação indigenista e os conflitos do Império será analisada aprofundadamente
adiante, mas cabe lembrar que o Diretório foi responsável por acabar com os antigos aldeamentos de
índios, concedendo a esses povos o estatuto de servos do império, tutelados por agentes do Estado.
Esta lei alterou grandemente as relações internas e externas nas extintas aldeias, que tornaram-se
vilas ocupadas tanto por índios como homens livres pobres.

20
realmente em práticas conciliatórias, já que previa a incorporação e natural
extinção dos índios. Não havia, portanto, possibilidade de conciliação entre
dois interesses tão díspares: dos indígenas, de manterem sua autonomia,
sua cultura e a posse de seus territórios; do Estado, seus agentes e aqueles
a quem representavam, de avançarem sobre as terras dos índios,
expulsando-os de lá, ao mesmo tempo em que os utilizavam como
mão-de-obra, dependendo dos interesses em jogo. Em segundo lugar,
justamente para resolver impasses locais, o poder central autorizava as
províncias e vilas do Império que se usasse da força armada.” (Ibidem, p.
76)

Os exemplos acima demonstram as possíveis motivações para a participação


indígena em revoltas coloniais, como a Cabanagem. A “força do costume”, atrelada à uma
legislação pouco favorecedora pois permitia o trabalho forçado e os abusos de poder seriam
motivações mais que suficientes para a revolta dos povos indígenas. Pode-se notar que a
participação política dos índios não era uma situação peculiar no Império: embora
estivessem atuando em diversos movimentos, revoltas e mesmo nas permanências e
rupturas do cotidiano da nação, a historiografia do período fez questão de apagá-los,
preferindo manter a imagem do índio romantizado, fundador do Brasil em conjunto com os
brancos, que os intelectuais do IHGB se esforçaram por criar (KODAMA, 2009). Em certo
nível, as políticas indigenistas do Império eram condicionadas por aquelas desenvolvidas
ainda no período colonial, mas este fator não é suficiente para explicar os conflitos gerados
no Império. No Pará, em especial, estes conflitos eram recorrentes e antigos, com diversas
motivações. Por esta mesma razão convencionou-se afirmar que o Grão-Pará era uma
província problemática.

1.3. A Província do Grão-Pará: um território sempre em conflitos?


No que diz respeito à Cabanagem, é costumeiro para os historiadores remontar a
história do Grão-Pará pelo menos até a independência, como se todos os conflitos do
período convergissem para um único ponto na história, o da revolta cabana. De fato, Di
Paolo (1986), um dos autores mais conhecidos sobre o tema vai além, pensando a
Cabanagem como uma “luta armada” dos povos indígenas e pobres desde o período
colonial.

“A Amazônia, que passara o século XVII em clima bastante turbulento,


seguido no século XVIII por uma repressão geral e uma reação incubada,

21
iniciou o século XIX com uma polarização mais acentuada até acontecer a
explosão revolucionária do movimento cabano”. (p. 88)

Não é nenhuma novidade que a historiografia clássica da Cabanagem construa os


eventos sob uma perspectiva estritamente local dos acontecimentos. O que se deve notar é
que a narrativa desses eventos contribui para uma construção teleológica do Grão-Pará no
século XIX, ​com a Cabanagem como epicentro. Lima (2004, p. 13) aponta que de fato, há
um caráter de mitificação da revolta, fator que limita as possibilidades interpretativas do
movimento. As causas da revolta são sempre apontadas a partir de uma perspectiva local e
normalmente são o desenrolar de outros conflitos, em particular da participação paraense
nas Cortes de Lisboa e a Independência na década de 1820.
Mahalem de Lima (2007) que vê a figura do cabano como elemento forjado, enxerga
também nas entrelinhas de autores contemporâneos da época, encontrando neles a gênese
para o mito da ​província problemática​. Segundo o autor, o ​Ensaio Corográfico sobre a
Província do Pará (1839), de Antonio Ladislau Monteiro Baena indica a predisposição de tais
contemporâneos em ver o Grão-Pará como antro anárquico e cruel (p. 197). Calcado em
Machado (2010), Mahalem de Lima conclui que a construção de tais perspectivas sobre o
Grão-Pará vem de uma reestruturação político-social ocorrida com o fim do Antigo Regime
Português.
Na contramão está Pinheiro (2009), que insiste: “A Cabanagem não deve ser
entendida como um movimento episódico, sendo processo de múltiplas tensões que
encerram percursos, demandas, ideários e objetivos distintos” (p. 1). O autor defende que a
revolta inicia-se em 1830, “como resultado do encontro de duas dessas trajetórias de
tensões” (idem), uma delas sendo as demandas locais, dos povos marginalizados e a outra
vinda dos eventos palacianos de 1820.
Entretanto, excetuando-se o triste episódio do ​brigue ​Palhaço, onde centenas
morreram durante os conflitos em 1823, não há nenhuma prova de que esses episódios
estivessem ligados à Cabanagem. De fato, Machado (2010) remonta esta construção
histórica sobre a Província apontando que, em primeiro lugar, considerar o Grão-Pará como
território de conflitos é um respiro para os estudos sobre a independência, que sempre a
consideraram um processo pacífico (p. 23). Em segundo lugar,

“[...] isso seria o reflexo do fato de os homens de maior poder econômico e


político da província terem perdido espaço para que outros personagens
emergissem na cena pública e tentassem se impor os próprios objetivos
políticos.” (idem)

22
O já mencionado relato de Baena traz exatamente essa dimensão dos fatos,
apontando que a construção histórica do período, na qual a historiografia está calcada, foi
construída exatamente pelos indivíduos da elite política que viram, no desmonte do Antigo
Regime e na ascensão da opinião pública uma situação anárquica (idem, p. 36). O autor
aponta, entretanto, que este senso de crise não foi exclusivo da província paraense (ibidem,
p. 97), mas o reflexo maior parece ter sido estendido no Pará, visto que foi o único local cuja
visão sobre uma independência pacífica não se consagrou.
Quanto a isto, Machado volta-se para a gênese da historiografia cabana. Domingos
Antonio Raiol, no célebre ​Motins políticos​, foi possivelmente o primeiro autor a enxergar a
Cabanagem como um processo contínuo, resultado dos vários problemas e conflitos da
província.

“Tendo como preocupação central do seu trabalho os conflitos da província,


o barão de Guajará construiu um recorte que ligava dois pontos distantes
catorze anos entre si: para ele a adesão do Grão-Pará às Cortes de Lisboa,
em 1821, abriu um novo período na história paraense no qual combates
armados, motins e golpes iriam suceder-se até culminarem na explosão da
Cabanagem em 1835. Para Raiol, portanto, os embates entre 1821 e 1835
marcavam um único período, o que torna sua análise muito singular já que,
frequentemente, outras revoltas regenciais são taxadas como um espasmo
de violência, não sendo relacionadas às disputas ocorridas na ocasião da
Independência”. (ibidem, p. 36)

Como se pode notar, os estudos sobre a Cabanagem têm uma dimensão tão
complexa quanto a revolta em si, que envolve compreender como diversos agentes atuaram
para a construção do ​mito cabano. Desta feita, as pesquisas sobre a participação indígena
na Cabanagem devem romper com as concepções cristalizadas sobre a revolta, abarcando
novas dimensões, tais como a História dos Índios e a inserção do evento num cenário mais
amplo, retirando-o do recorte regional, e inserindo-a de uma vez por todas no Império.

Capítulo 2: Cabanagem: História e Historiografia


Para que se entenda a participação indígena na Cabanagem, é preciso que antes se
entenda como a revolta foi interpretada pela historiografia ao longo dos séculos. De modo
geral, estudar a dimensão da participação rebelde, particularmente dos indígenas é um
campo novo. Até agora contam-se duas tradições para a Cabanagem: aquela de meados do

23
século XIX, que refuta os vencidos; e aquela que os enaltece, iniciada no século XX e
cristalizada no período do sesquicentenário da revolta (1985) (LIMA, 2008, p.24).

“Tais marcos estão atrelados a movimentos comemorativos (centenário e


sesquicentenário) realizados em Belém do Pará, com vistas a impulsionar a
apropriação política regional do passado nas lutas ocorridas na atualidade
de cada autor. Trata-se de uma disputa no presente, relativa ao tipo de
apropriação do passado a ser realizada tanto pela memória do Estado
quanto pela memória popular.” (LIMA, 2007, p. 25)

É interessante perceber as divergências e convergências nas análises de cada autor


para o movimento, bem como a interpretação do evento de acordo com seu pensamento e o
período histórico em que cada obra foi escrita. Aliás, destaque-se que há bons balanços
críticos da historiografia sobre a Cabanagem, especialmente nos trabalhos de Magda Ricci
(2006; 2008) e Luis Balkar Pinheiro (2003) dois autores que foram trabalhados
extensamente ao longo da monografia.

2.1. Da anarquia à revolução


A primeira tradição remonta a Domingos Antonio Raiol, futuro Barão de Guajará, e o
seu ​Motins Políticos (1865). Criado em Vigia, Raiol assistiu ao assassinato do pai português
pelos rebeldes cabanos, o que moldou todo o seu trabalho em torno do movimento. Em sua
obra máxima o autor encara a revolta a partir dos vencedores, considerados agentes da
civilização. Com esta visão dos eventos denominava os cabanos como ​ínfima classe,
​ índios,​ dentre outros
homens-féra, fezes sociais, cabanos, selvagens, pretos, tapuios e
termos. Bianchi Reis (2005), em sua análise, destaca uma constante comparação entre a
Revolução Francesa e a Cabanagem, que se estende ao longo do Motins Políticos.
Segundo ela, na perspectiva de Raiol, tanto o movimento quanto a revolução foram
provocados por essa classe inferior e afastada de uma liderança civilizada:

“Efetuando uma diferenciação no interior das classes populares da


sociedade paraense entre povo e ralé [sic], Raiol creditou à última, onde
residiam elementos das ‘camadas ínfimas da população’, as ações mais
violentas, os atos irrefletidos e destituídos de conotações políticas. Daí a
comparação dos atos das massas rebeldes cabanas à fase do terror, como
a historiografia denominou o período mais sangrento da Revolução
Francesa.” (idem, p. 6)

24
Vantuil Pereira (2010), destacou que as modificações políticas ocorridas nos
primeiros anos do Império foram vistas pela população como “uma forma de reivindicar a
autonomia e a liberdade”. (Idem, p. 227) Essas reivindicações ocorriam num âmbito legal,
através de petições. Ao mesmo tempo que as petições, requerimentos e queixas
relacionavam-se às situações cotidianas da população, a mesma encontrava-se atenta às
ocorrências dentro do órgão legislador e via nele uma oportunidade de participação política
(Ibidem, p. 242). Muitas ideias eram largamente difundidas através de jornais e publicações
feitas por pessoas influentes na vida política do Império (SALLES, 1992, p. 16-17).2 Elas
não escaparam da atenção das camadas mais pobres da sociedade, incluindo ainda os
escravos. É claro que as elites políticas sabiam que seus discursos atingiam os pobres.
Havia uma intenção em manipular esses grupos, a fim de que atuassem a favor de um
determinado projeto. Quase sempre a manipulação escapava ao controle dessas esferas
sociais (MOREL, 2003, p. 38-39). Obviamente, Raiol estava a par desses fatos e sua
aproximação entre a revolta cabana e a Revolução Francesa comprova um medo por parte
das elites políticas de que esse fluxo de ideais pudesse causar situações de revolta no país.
12
Raiol atuou conforme a historiografia na época , criando uma obra com intenção
pragmática e positivista, que prezava os fatos sobre os argumentos (LIMA, 2010, p. 590).
Para o autor, a Cabanagem era “[…] um levante de caráter regional, que devia ser
compreendido dentro dos ditames da formação da justiça e da organização social e política
imperial” (RICCI, 2006, p. 8). O autor tratou as classes mais baixas em seu livro com a
mesma intenção pragmática e aparentemente neutra, mas que ainda assim deixava
transparecer o preconceito de época. Para Raiol, enquanto os líderes partidários eram
levados pelo “excitamento das paixões” (RAIOL, 1970, vol. II: p. 427), os homens de ​ínfima
classe eram naturalmente voltados para a revolta e a ​anarquia (Idem, vol. III). Portanto, a
insurgência das massas não apresenta justificativa política. Ela teria ocorrido
exclusivamente do ímpeto violento e criminoso que exortava a população pobre e bárbara
(LIMA, 2008, p.37-49). O posicionamento do barão estava em acordo com os debates que
ocorriam no século XIX sobre nação e identidade. Ao chamar os revoltosos de ínfima-classe,
tapuios, índios, fica claro que ele não considerava estes indivíduos como pertencentes a
uma nação civilizada.
A obra de Raiol, embora não estivesse livre de polêmicas, foi muito elogiada e
divulgada durante o século XIX, principalmente dentro da própria província do Pará, onde

12
É preciso ressaltar que integrar o partido liberal estava longe de estar a favor de movimentos com
grande presença popular.

25
alguns capítulos chegaram inclusive a ser publicados em revistas (LIMA, 2012, p. 595). No
início do século XX, ela serviu como base para quase todos os autores interessados em
compreender a Cabanagem ou a própria história da província.
Sua obra influenciou os autores que posteriormente abordariam o tema. Para eles, a
Cabanagem perdeu o controle quando seus líderes não puderam mais administrar a “ínfima
classe” que haviam cativado. Ao tratar do caráter extremamente violento da revolta, estes
autores silenciavam a respeito das atrocidades cometidas pelas tropas, ou buscavam
justifica-las como necessárias para a manutenção da ordem na Província (PINHEIRO, 2003,
p.47). Para Ricci (2006), eles perceberam o movimento cabano como uma “guerra de
independência tardia” (Idem, p. 8). Esta primeira corrente historiográfica abordou os
rebeldes de forma geral e pouco ou nada fez para identificá-los.

“[…] os cabanos deixaram de ser tratados como ‘sediciosos’ e ‘malvados’,


para se tornarem ‘patriotas’, conceito entendido como adeptos da ‘causa
brasileira’. Nascia uma linha positiva e de continuidade nacionalista entre o
processo de emancipação política no Pará e o movimento cabano.” (ibidem)

Gustavo Moraes Reis (1965) recuperou parcialmente essa corrente historiográfica


que via nos cabanos um povo anárquico e sem direção, apesar da obra escrita
posteriormente, nos anos 1960. A partir de autores dos anos 30 e 40, ele apresenta uma
perspectiva transitória, onde critica tanto os legalistas quanto os líderes cabanos. Para ele,
coitados seriam os “caboclos humildes e índios mansos, moradores de beira-rio” (p.16). As
autoridades teriam falhado em conter não porque a população era ​selvagem e ​anárquica​,
mas porque “[...] encarnava a prepotência social, monopólio político-administrativo e a
opressão do poder econômico, ainda nas mãos dos estrangeiros colonizadores” (idem,
p.48).
Algo que se destaca na narrativa deste autor é como ela se relaciona muito mais ao
período da publicação do que com a Cabanagem em si. Reis, que era tenente-coronel do
exército na época da publicação parece querer apresentar um conto cauteloso sobre as
consequências que uma revolta populacional pode ter, uma vez que as forças legais sempre
venceriam. Na verdade, é comum na historiografia da Cabanagem que ela sirva de espelho
para outros períodos, em particular durante a segunda metade do século XX.
A segunda tradição é veiculada atualmente e iniciou-se nas primeiras décadas do
século XX, através do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP) e após as
comemorações do centenário da Cabanagem em 1936. Ela discordava da visão da revolta

26
como provocada sem quaisquer motivações que não a criminalidade e o primitivismo de
“homens-fera” e adotava uma perspectiva político-marxista dos eventos, ao menos é o que
autores como Magda Ricci (2006, p. 11) afirmaram. O movimento tornou-se uma luta
legítima orquestrada pelo povo paraense contra as injustiças infligidas pelo governo Imperial
e os já referidos portugueses. Jorge Hurley foi pioneiro neste sentido. Ao pensar a
Cabanagem na perspectiva dos derrotados, ainda que revisitando personagens de destaque
na rebelião como Malcher ou Angelim, deu os primeiros passos na legitimação da
Cabanagem como movimento popular (HURLEY, 1936). Até mesmo Caio Prado Jr. (1936),
descreveu a revolta, enaltecendo o seu caráter popular.

“É ela um dos mais, se não o mais notável movimento popular do Brasil. É o


único em que as camadas mais inferiores da população conseguem ocupar
o poder de toda uma província com certa estabilidade. Apesar de sua
desorientação, apesar da falta de continuidade que o caracteriza, fica-lhe,
contudo, a glória de ter sido a primeira insurreição popular que passou da
simples agitação para uma tomada efetiva de poder.” (Idem, p. 77)

Percebe-se nesse período uma visão um tanto quanto romantizada da Cabanagem,


apontada aqui como uma revolução popular nos moldes da Francesa ou Russa. Enquanto
autores do século XIX ignoravam a violência organizada pelas tropas legais, essa corrente
historiográfica preferiu silenciar os atos atrozes dos próprios cabanos. Por outro lado, os
últimos ainda mantinham uma visão antiquada dos acontecimentos e davam às revoltas
populares um caráter derivativo das dissidências internas entre os líderes, o que em nada
contribuiu para a discussão da identidade cabana. O movimento foi a favor da nação
brasileira apenas nas camadas superiores, a única disputa válida era aquela em torno da
centralidade do poder, da liberdade e autonomia da Província.

“Seu objetivo principal, como notou a historiadora Magda Ricci, consistia em


analisar a cabanagem ‘como uma luta eminentemente étnica’ (RICCI, 1993,
p.6). Assim, embora enfatizasse os conflitos envolvendo índios e brancos,
Hurley deixava transparecer uma ‘nova tendência com relação à
representação que se tinha do cabano’ (CABRAL, 1995, p.13), ao propor
que a análise desses acontecimentos deveria envolver os rebeldes em sua
diversidade étnica e social.” (LIMA, 2010, p.598).

27
É a partir do sesquicentenário (1984), que as obras acerca do movimento passaram
a abordar, além dos líderes, os agentes da Cabanagem. O fim da ditadura civil-militar
contribuiu com a visão da revolta popular organizada pelo povo. Trabalhos como o de
Chiavenatto (1984), Di Paolo (1986), Moreira Neto (1988), e, posteriormente, Vicente Salles
(1992), são emblemáticos. Embora ainda mantenham uma visão tradicionalista, o povo
aparece, pela primeira vez, como figura histórica do movimento, ainda que submissos à
vontade dos líderes.
Chiavenato (1984) desenvolve uma linha de continuidade longa para a Cabanagem,
apresentando uma visão historiográfica interessante e bastante difundida sobre a
Cabanagem. O livro parte de uma perspectiva estritamente localista, onde a revolta seria
apenas parte de uma série de episódios violentos iniciados no final do século XVIII e durante
o período da independência. É fato que os acontecimentos entre 1822 e 1823, envolvendo a
adesão do Grão-Pará ao Império do Brasil ainda ressoavam no discurso dos rebeldes
cabanos mais de 10 anos depois. Em parte, esse fator deveu-se ao envolvimento do
Cônego Batista Campos, que faleceu às vésperas da revolta e possuía grande apoio
popular. Por outra parte, estava a memória ainda viva do famoso blefe de John Pascoe
Grenfell, fator principal para a unificação do Império e do Grão-Pará. A revolta levou à prisão
de 256 pessoas, a maioria morta sufocada nos porões do brigue ​Palhaço (idem, p. 32). O
autor ainda destaca que os líderes da rebelião inicial – da qual fazia parte Batista Campos –
condenaram o estado de anarquia da província (ibidem, p. 35).
O que se destaca na obra de Chiavenato a partir deste exemplo é como ocorre uma
inversão da narrativa. Agora os “vilões” não eram mais o povo anárquico, eram os legalistas
e os líderes da revolta que procuraram manipular o povo para atenderem às suas
demandas. Chiavenatto afirmou que “um povo sem projeto político é sempre traído pelos
líderes” e que há uma contradição entre a posição das lideranças mais conservadoras e das
massas, que sem um projeto político definido tenderiam a confiar nos presidentes rebeldes
(ibidem, p. 75-77). A ufanização do ​povo,​ embora não se saiba dizer quem era esse povo é
algo típico das obras do período do sesquicentenário. Coincidindo com a queda da ditadura
civil-militar, o movimento cabano serviu como um espelho para o momento político
vivenciado nos anos 80, da vitória democrática e à época encarada como popular.
Outro aspecto merecedor de destaque é a ideia de que entre os rebeldes não havia
um projeto político-ideológico claro. Esse pensamento se estende ao longo de toda a
historiografia sobre a Cabanagem, desde os tempos de Raiol. Para Chiavenato, há falta,
mas não completa ausência, de lideranças populares com um objetivo claro e unificado, que
levou a um desperdício do “potencial revolucionário” (Ibidem, p. 100) da massa cabana.

28
Di Paolo (1986) provavelmente foi o autor que deu menor abertura à participação
popular em sua obra, relegando a ​massa a um papel secundário. No máximo, o autor aponta
o Diretório dos Índios, do Marquês de Pombal, como uma das causas da Cabanagem (Idem,
p.149) Na cronologia do livro, os grupos populares aparecem principalmente nos capítulos
que narram os antecedentes da revolta. Sobre a Cabanagem propriamente dita, o enfoque é
quase exclusivamente dado aos principais eventos e personagens. Como Chiavenato, ele
faz uso de uma visão localista, mas relaciona os acontecimentos no Grão-Pará como reflexo
de eventos que ocorreram no território brasileiro durante a independência. Ele ainda
menciona a importação de ideias e a influência de opositores do governo como Batista
Campos e Patroni como causas para a revolta (Ibidem).
Foi Moreira Neto (1988) quem deu um passo adiante. Apesar de ainda se referir às
massas, destacou a dimensão da participação dos índios na Cabanagem, chamando a
atenção para a violência cometida contra estes grupos, além dos mestiços e negros. Através
da análise dos registros carcerários do período, trouxe alguma luz sobre os agentes desta
revolta, em especial aqueles da corveta Defensora, classificados massivamente como
indígenas, “destribalizados” ou não. (p.61). Ainda assim, deve-se fazer algumas ressalvas
sobre o seu trabalho, especialmente quanto à vitimização desses agentes, que no jogo
político mais amplo das Revoltas Regenciais, seriam meros peões da liderança branca,
incapazes, pela sua condição social marginalizada, de criar um programa político para a
revolta e raramente hábeis para debater as decisões dos grupos dominantes. Ele ainda
mantém a visão das décadas anteriores, de que as massas seriam desorganizadas, mas
reconhece que seus interesses divergiam daqueles da liderança cabana.

“A importância numérica dos tapuios na Cabanagem não deve fazer supor


um peso correspondente nos foros de decisão do movimento, posição que
eles definitivamente não parecem ter atingido. Constituíram massa mais
numerosa da rebelião e, provavelmente, seu setor mais radical. Mas, pela
própria peculiaridade do espaço e das funções econômicas e sociais que
ocupavam em relação às demais populações amazônicas, não parecem ter
tido condições de discutir e de formular seu próprio programa político, de
modo explícito e coerente, e muito menos de fazê-lo discutir e aceitar pelo
movimento. Mas isso não quer dizer que a Cabanagem não tenha tido
dissensões internas, sob a pressão de grupos ou facções social e
economicamente mais conscientes ou mais preocupados com as questões
que as afetavam especificamente” (Ibidem, p. 67)

29
Até a década de 1990, poucas foram as tentativas de fracionar a parcela indígena
ativa na Cabanagem. A maioria dos trabalhos apresenta uma “massa” extremamente
generalizada e pouco elucidativa. Recuperar a legitimidade da luta destes povos torna-se
uma tarefa muito mais complexa do que o proposto a princípio por autores clássicos do
tema. Para eles, bastava positivar a figura do cabano para dar aos rebeldes a sua
participação no movimento. Mas remover a conotação pejorativa do termo não é o suficiente
para reconhecer e decifrar o papel político e social destes agentes.
Vicente Salles (1992) apresenta uma visão mais otimista acerca dos cabanos.
Segundo o autor, os rebeldes teriam organizado sua luta em torno da influência de Batista
Campos. O que teria sublimado sua força teriam sido os líderes “típicos da pequena
burguesia citadina” (Idem, p. 129) que não forneceram nenhuma grande mudança política
durante seu governo no Grão-Pará. Salles destacou também a polarização das classes
sociais que ocorreu neste momento conturbado, resultado das forças ideológicas que se
espalharam nos anos anteriores. (ibidem, p. 134).
Partindo do período colonial e terminando na era getulista, esta foi uma das obras de
maior recorte cronológico sobre a Cabanagem (ibidem, p. 8). É comum que os autores
clássicos remontem, a partir de uma visão localista, os anos anteriores à revolta. Mas é raro
que pensem as consequências nos anos posteriores. Entretanto, este autor não foi
responsável por uma história local. Ele inseriu a rebelião dentro do contexto nacional,
pensando-a em relação ao período em que ocorreu e aos resquícios da era colonial no
Império brasileiro.

“É necessário aprofundar a análise para tentar compreender o movimento


cabano. Ele parece ter apenas significação local ou regional, mas não tem.
É sabido que todo o Império, naquela época, suportava a mesma carga de
contradições políticas, econômicas, sociais. A Independência não trouxe
reformas profundas à estrutura social vigente no período colonial. [...] Em
toda parte soprava o anseio de atualização histórica, que se nutria não só
das ideias de emancipação política, mas também de reformas sociais mais
profundas.” (Ibidem, p. 130)

Raça, nação e contexto histórico aqui são vistas como um conflito de classes no
molde marxista. Deste modo, Salles apresenta uma visão em que as diversas classes
sociais existentes no Grão-Pará teriam convergido com o objetivo de derrubar as elites
políticas (ibidem, p. 141). Guardadas as devidas proporções, este fator foi confirmado por

30
autores posteriormente, como Ricci (2006; 2008) e Mahalem de Lima (2007), através da
perspectiva etno-histórica.
Ítala Bezerra (1994), poucos anos depois da obra de Vicente Salles, fez uso de
sesmarias e dados populacionais do Grão-Pará para justificar o envolvimento do que ela
chama “pessoas de cor” na Cabanagem, que lutariam sob um ideal de “liberdade” que, para
os escravos era literal e para a população livre e pobre, ideológica. Para a autora, a luta
modificava-se de acordo com a classe social e a etnia do rebelde, o que reforça o
argumento de que na Cabanagem houve múltiplas causas e demandas. No contexto
indígena, o movimento seria voltado para o fim da servidão, mais especificamente, dos
recrutamentos forçados para as milícias de ligeiros e outras atividades de trabalho
compulsório.
Atualmente, pode-se afirmar que uma nova corrente historiográfica da Cabanagem
foi inaugurada. Embora os estudos tenham-se expandido para todas as vertentes além da
história política, há um foco maior na questão da identidade dos participantes,
principalmente em relação aos fatores que motivaram a revolta. Tal é o caso da historiadora
Magda Ricci (2008). Para a autora, o intercâmbio de ideias, a multiplicidade de pessoas e
motivações e as relações patrióticas na Cabanagem são os elementos aglutinadores para
diferentes grupos participantes (Idem, p. 77-78). A autora destaca a importância fundamental
da aclamação popular para a manutenção dos líderes no poder. Sem apoio, eles
invariavelmente caíram (Ibidem, p. 82). Aparece ainda as disputas internas entre lideranças
e populares. Segundo Ricci, após a morte de Malcher, provocada pelas dissidências
internas e pressão popular pela aclamação de um novo líder,

“[...] Vinagre reconheceu o poder da Regência em nome do Imperador.


Neste processo, os líderes cabanos evocavam uma antiga hierarquia de
dominação, que começava em Deus, passando pelo seu reino de santas e
santos e aportava na terra com o Imperador e sua corte. [...] era
praticamente impossível se pensar, sobretudo entre as lideranças cabanas
maiores, em uma quebra total com essa hierarquia. A autoridade entre os
vários grupos que se formaram na revolução em Belém e no interior
dependia de uma certa visão distante e caridosa do Imperador menino, que
se associava com seus súditos-cidadãos no Rio de Janeiro e no Pará”.
(Ibidem, p. 85-86)

Voltada para as lideranças, mas sem perder de vista o povo, Ricci apresenta um rico
estudo sobre, em suas próprias palavras, “a experiência de ser brasileiro na Amazônia”

31
(ibidem) e como foi essa experiência, do ponto de vista de diversas classes sociais, raças e
profissões, o fator primordial para a eclosão da Cabanagem. Numa perspectiva similar está
a obra de Ana Renata Rosário de Lima (2004). Como Ricci e Bezerra, a autora também fala
em “cabanagens”, sugerindo que havendo mais de uma causa, havia mais de uma revolta
ocorrendo sob o mesmo nome. Partindo da região do Acará e da questão camponesa, ela
traçou o perfil dos agentes que participaram na Cabanagem. Na verdade, este é um fator
que já havia sido notado por outros autores, como Ricci (2008, p. 82): Boa parte dos líderes
cabanos, como Malcher, Angelim e os irmãos Vinagre saíram daquela região. Portanto,
entendê-la significa entender como a revolta se formou nos primeiros anos.
Leandro Mahalem de Lima, na tese ​Rios Vermelhos (2007), procurou também
entender as identidades cabanas através do cenário de extrema violência em que elas se
encontravam. O autor ainda faz uso de algumas informações e dados socioculturais,
destacando, por exemplo, o 7 de janeiro – data da eclosão da revolta – como sendo uma
13
data comemorativa no Pará onde realizavam-se os festejos de São Tomé . Também era
neste dia que novos vereadores deviam apresentar-se às câmaras das respectivas vilas,
segundo a constituição imperial. Mahalem argumenta que “o 7 de janeiro era um dia
ambíguo”, pois celebrava-se ao mesmo tempo a posse das autoridades na casa de câmara
e a explosão da revolta. Para o autor, no ano de 1835 ocorreu uma inversão das posições,
pois naquele momento os dirigentes perdiam o poder para a população em revolta (ibidem,
p. 69). Apesar de elementos originais, ele mantém a perspectiva localista, enxergando a
Cabanagem como desdobramento exclusivo de eventos que ocorreram dentro da província,
como os conflitos do período da Independência e a já mencionada perseguição política de
opositores do governo (ibidem, p. 97). Como Ricci e Rosário de Lima, ele também trabalha
sob a perspectiva de que houve múltiplas cabanagens e também, múltiplos cabanos.
O que se pode notar a partir do exposto é que essa nova visão sobre a Cabanagem
não abandona por completo os traços historiográficos anteriores. Ela os renova, pensando
em questões de raça e nas relações intersociais entre os diversos agentes. Desta vez não
há heróis ou vilões, mas sim atores, agentes históricos que agiram de acordo com o que o
momento exigiu. Entretanto, longe da neutralidade, busca-se aqui responder as perguntas
menores e mais específicas sobre o período. O velho discurso de uma ​ausência ideológica
também desaparece ao se reconhecer que na verdade o que ocorreu foi o oposto: havia
demandas demais para uma única revolta. Um bom exemplo é a obra ​Nos Subterrâneos da

13
São Tomé era o padroeiro dos indígenas e na ocasião dos festejos era comum que houvesse uma
maior mobilidade dos índios entre as vilas e cidades, o que facilitava também as oportunidades para
uma revolta.

32
Revolta de Luis Balkar Sá Peixoto Pinheiro (2003). Embora não tenha inovado no uso dos
documentos carcerários do período da Cabanagem, sua interpretação das fontes pode ser
considerada pioneira, pois traz à tona as relações raciais existentes durante o Império,
dando maior dimensão à figura do cabano.
14
É interessante opor como essa suposta ausência ideológica figura em cada
momento da historiografia. Num primeiro momento, a revolta era uma anarquia
generalizada, fruto de um povo sem cultura, e naturalmente propenso à revolta e à barbárie.
No segundo momento, o fracasso da revolta popular deveu-se à falta de um projeto político
de líderes comprometidos com o povo. Essas duas análises do cabano são muito
interessantes pois casam com a forma como os índios foram retratados ao longo da
historiografia. Ora violentos e selvagens, ora inocentes e infantilizados. Felizmente, os
historiadores atuais dedicaram-se a responder mais detalhadamente à pergunta ​quem é o
cabano?

2.2. Os cabanos, segundo a historiografia


Devido a uma historiografia extensa, os participantes da Cabanagem ganharam
diversas análises sobre seu perfil social, racial e econômico. A documentação disponível,
embora seja vasta, conta quase estritamente com o ponto de vista dos legalistas, tornando a
tarefa de identificar o ​cabano bastante desafiadora. Já foi visto que muitos dos termos
utilizados por autores anteriores à década de 1930 os classificavam apenas como
homens-fera​, ​sediciosos e ​malvados​. Atualmente a situação inverteu-se. Através de análises
bastante minuciosas, uma série de autores vem restaurando as vidas dos agentes
participantes na Cabanagem. Essa etapa historiográfica é muito recente e as pesquisas
ainda são incipientes, mas apontam para um caminho rico de possibilidades de análise da
identidade do cabano.
Tal é o caso de Ricci em artigo de 2006, no qual busca entender como surge a figura
do cabano enquanto classe, construída a partir de suas relações com os líderes da revolta
(idem, p. 13). Na ocasião da destituição de Felix Malcher, ainda em janeiro de 1835, Ricci
destaca como a participação dos revoltosos foi importante para as decisões dos líderes
seguintes. Na ocasião, Malcher teria demitido Francisco Vinagre, causando revolta na
população (ibidem, p. 18). Quando Vinagre assumiu o poder, após a morte de Malcher, seu
primeiro ato foi reconhecer o poder regencial (ibidem, p. 21).

14
Diz-se “suposta” pois uma obra jamais está totalmente despida de opiniões, ideologias e
temporalidades dos autores que a produz.

33
“No mesmo dia da morte de Malcher, Angelim e vários outros chefes
cabanos viraram a noite espalhando-se pelas ruas de Belém, aconselhando,
dispersando e desarmando revolucionários mais exaltados. Durante toda a
noite, o alarido das massas se fez ouvir. O mais interessante é que esta foi
apenas a primeira vez que a massa mostrou claramente sua voz e a elevou
acima de seus líderes cabanos. Sua aprendizagem revolucionária foi rápida
e se espalhou vertiginosamente pela Amazônia”. (ibidem, p. 22)

A afirmação de Ricci contém grande respaldo da documentação. Afinal, como seria


possível a revolta manter-se por tanto tempo após o último presidente cabano, Eduardo
Angelim, em 1836, senão através da própria organização popular? Em uma carta de 25 de
março de 1835 Angelim escreveu a um remetente desconhecido pedindo permissão para
castigar praças, uma vez que os casos de insubordinação houvessem se multiplicado em
15
larga escala (APEP, códice 979) . Esta carta mostra como os sistemas hierárquicos
encontravam-se abalados entre os revoltosos, havendo um possível questionamento das
autoridades existentes. Também mostra que, na perspectiva dos líderes cabanos, as antigas
hierarquias prévias à revolta deveriam manter-se até nos momentos de luta.
No mesmo entendimento do cabano como “classe” estão os estudos de Rosário de
Lima (2004). Ela encaixa os participantes da Cabanagem, com particular destaque para os
tapuios e homens livres pobres, dentro de uma conceituação de campesinato reforçada pela
larga participação de agentes – incluindo os principais líderes da revolta – vindos de uma
região agrária próxima a Belém, denominada Acará (Idem, p. 23). Neste sentido a autora
sugere repensar o ano de 1835 como estopim para a revolta, pois em sua perspectiva os
movimentos contra o governo já ocorriam antes desse período entre as classes sociais mais
baixas (ibidem, p. 36), o que daria respaldo para sua perspectiva de que haveriam “várias
cabanagens”, dependendo do grupo social e motivação para a participação. Aqui entra o
entendimento da figura do cabano em si, pois uma vez que ele foi retratado quase sempre
da perspectiva da legalidade, a tendência é de que apareça de maneira negativa e
generalizante.

“A existência das metáforas que marcam a documentação da Cabanagem


levou-nos a perceber a constante associação feita pelas autoridades, entre
cabanos e criminalidade. Estudos como o de Eric Hobsbawm remetem à
análise do chamado ‘banditismo social’, e pode nos fazer repensar essa
caracterização tão depreciativa e inferiorizante sobre os cabanos.

15
APEP é a sigla utilizada para designar o Arquivo Público do Estado do Pará.
34
[...]
No entanto, no estudo da Cabanagem enquanto um movimento social e em
análise à documentação referente a ela, assim como de parte da sua
historiografia, aparecem os cabanos ligados a ‘criminosos perigosos’
prejudicando a harmonia e a paz social”. (Ibidem, p. 45)

Pensar os cabanos a partir da visão dos legalistas não é nenhuma novidade. É algo
necessário, visto que a maioria – senão todas – as fontes conhecidas e disponíveis para o
estudo da Cabanagem partiram deles. O que cabe é saber interpretá-las nas estrelinhas, a
fim de destacar o cabano dessa massa geral de ​homens-fera.​ O trabalho de Leandro
Mahalem de Lima (2007) é primoroso ao realizar justamente este feito. Metodologicamente,
o autor posiciona-se entre a antropologia e a história, a fim de descortinar a participação
indígena na Cabanagem (Idem, p. 23). Dentre os vários elementos utilizados por Mahalem
de Lima, destaca-se a compreensão do território e formas de residência ao longo do
Grão-Pará como forma de se compreender os agentes envolvidos na revolta.
No entendimento do autor, havia uma nítida separação entre o sertão e a cidade,
onde o último corresponderia à civilização, à ordem e ao branco e o primeiro, à barbárie, ao
desconhecido e aos homens de cor (Ibidem, p. 223). Esta dicotomia poderia ser remontada
aos tempos coloniais e apresentaria um desafio particularmente grande a partir do período
imperial (Ibidem, p. 97). Ela também se apresentaria de outras formas durante a
Cabanagem, por exemplo através de uma disputa muito mencionada pela historiografia: a
de brancos ​versus não brancos, ou ainda, brasileiros ​versus estrangeiros. Segundo o autor,
calcado em Moreira Neto (1978) e David Cleary (2002), todo este processo desembocaria, a
partir de 1835, em uma guerra geral entre brancos e homens de cor, onde a legalidade veria
com desconfiança todo e qualquer indivíduo de cor (LIMA, 2007, p. 142). Entretanto,
deve-se questionar até que ponto esse ódio generalizado de fato ocorreu.
Ora são inúmeros os casos de participações indígenas em guerras e revoltas ao lado
de brancos e agentes da legalidade. Um caso de menor escala na região amazônica é de
uma tapuia sem nome, listada entre os refugiados da Fortaleza da Barra, em setembro de
16
1835 (APEP, códice 985). Ela teria falecido de “​bexigas” ​ a Fortaleza e não está listada
n
como escrava ou empregada de alguém, mostrando que de fato tratava-se de uma mulher
possivelmente indígena, cabocla ou cafusa, refugiada por livre e espontânea vontade. O
próprio Mahalem de Lima refuta parcialmente a própria afirmação ao listar diversas etnias
indígenas que se deslocaram da região paraense durante a Cabanagem.

16
Nome comumente usado para a varíola.
35
“Em setembro de 1839, Théodore Bagot registra em sua ‘Notice sur une
Voyage dans l’intérieus de la Guyane’ [1841], um encontro com um grupo de
tapuios,​ migrados da calha do Amazonas, na região das Serras do
Tumucumaque, após três quedas de cachoeiras, na embocadura do
Niangarini. Estes ​tapuios mirgrados do Rio Amazonas, eram o grupo mais
afastado que a expedição de Bagot encontrou”. (LIMA, 2007, p. 256-257)

Existem aqui duas possibilidades: a primeira é de que o grupo teria participado


ativamente e agora fugia das perseguições realizadas por Soares D’Andrea, uma vez que as
chances de vitória claramente haviam se extinguido. Uma outra interpretação é de que o
grupo poderia fugir da perseguição e violência dos próprios revoltosos, ou ainda, com medo
de serem confundidos pelos agentes da legalidade com os rebeldes. De toda forma esses
exemplos demonstram que a guerra racial estabelecida ao longo da Cabanagem não foi tão
explícita assim, havendo indivíduos diferentes em ambos os lados, apesar da insistência de
alguns autores, como Mahalem de Lima (2007) em afirmar que durante a Cabanagem
ocorreu de fato uma guerra racial forjada pelos agentes legais. Para ele, a disputa entre
patriotas ​versus estrangeiros, ou brasileiros ​versus portugueses, denotava na verdade, uma
disputa entre índios, tapuios e “pessoas de cor” vs. os homens brancos (Idem, p. 255).
Este argumento, embora exagerado, reforça aquele já apontado por Lima, Ricci e
Mahalem de Lima de que houve múltiplas cabanagens a partir das diferentes regiões e
relações sociais estabelecidas ao longo da província. Evidentemente, também havia
múltiplos ​cabanos e participantes indígenas. O cabano seria muito mais uma noção, um
conceito forjado pelos agentes da legalidade para englobar todos aqueles que fossem
inimigos do Império na região paraense, particularmente as populações marginalizadas,
escravizadas e não brancas.

“O que se recusa aqui é a busca pelas lógicas dos contrários da legalidade


a partir de um termo que não lhes pertencia, forjado justamente para
desqualificá-los. Porém, recusá-lo como termo unificador dos próprios
rebeldes, não significa descartar a importância de se pensar o pensamento
dicotômico da legalidade. Os legais – brancos, superiores, abastados,
senhores, habitantes das casas de alvenaria, falantes da norma culta da
língua portuguesa, alfabetizados; homens de bem, civilizados, amantes da
Humanidade. Os cabanos – homens de cor, inferiores, pobres, servos
escravos e trabalhadores, habitantes das casas de palha, falantes de
vernáculos, Nheengatú e português ‘oral’, analfabetos, homens-féra,
animais selvagens. Os legalistas eram tudo o que acreditavam ser em

36
oposição e em contraste a tudo aquilo que defendiam que os cabanos
fossem.” (Idem, p. 230)

Outro autor que buscou livrar-se da perspectiva “acentuadamente maniqueísta entre


visões depreciadoras e apologéticas” da historiografia tradicional foi Pinheiro (2003, p. 31).
Ele partiu de documentos carcerários gerados pelos legalistas para entender como diversas
raças e classes sociais tornaram-se, na perspectiva das elites políticas, nessa massa
uniforme denominada cabano. Ainda aponta a impossibilidade de se realizar uma história
puramente quantitativa acerca da Cabanagem, como anteriormente fizeram Moreira Neto
(1988) e Jorge Hurley (1936). Ele destaca como a seleção das fontes implicou em distorções
nos resultados da pesquisa, uma vez que a análise dos documentos carcerários implicou em
uma nítida ausência dos brancos – que devido à sua posição social teriam tido um
tratamento diferente (idem, p. 129) – e discrepâncias geradas pela própria forma como a
documentação foi escrita, desconsiderando de forma geral identificações de raça e cor, em
troca de termos como ​tapuio e ​índio (Ibidem, p. 131). Num movimento tão plural quanto foi
aquele, a ideia de que é possível fazer ​médias sobre as raças atuantes na revolta parece a
Pinheiro um absurdo (Ibiem, p. 125-127).

“Muito embora tais dificuldades de identificação fossem efetivas e


aparecessem com clareza nos códices que foram compulsados – uma vez
que em muitos casos indivíduos citados como índios em uma relação
aparecem como tapuios em outra e vice-versa –, tão logo procedeu-se um
cômputo onde essas variáveis (tapuios/índios) apareciam conjugadas –
como na descrição de Hurley –, as diferenças se mantiveram importantes,
embora tenham caído de 33,9% para 23,2 %.” (Ibidem, p. 131)

Como os autores mencionados anteriormente, Pinheiro traça um paralelo entre as


dificuldades da vida cotidiana na província paraense, as disputas entre povo e autoridades,
e o envolvimento maciço de populares na Cabanagem. Mais uma vez, a revolta surge como
ápice dos conflitos na Província problemática. Mas não são apenas os agentes da
legalidade a trazer suas interpretações sobre os rebeldes cabanos. David Cleary (2002)
apresentou uma “dimensão internacional da Cabanagem” (idem, p. 21) ao compilar a
documentação produzida pela marinha britânica presente no Grão-Pará naquela época.
Cleary afirma categoricamente que se tratavam de homens da elite britânica, oficiais
militares, diplomatas etc. Naturalmente, eles seriam responsáveis por reproduzir os
discursos hierárquicos da época. “É altamente significativo, por exemplo, que todas as

37
fontes britânicas não usem as palavras ‘cabano’ ou ‘rebels’ para descrever os combatentes:
dizem ‘Indians’” (Ibidem). Para o autor, o uso deste termo indicaria o racismo presente e a
visão geral dos britânicos sobre a revolta. Entretanto, é preciso questionar até que ponto
categorizar a população paraense como índia é de fato uma generalização. Muito pior,
talvez, seja o uso recorrente pelos legalistas de termos como ​tapuio, gentio, homens de cor
e ​malvados.
17
Mark Harris (2017) foi possivelmente o autor que melhor se aproximou de uma
análise étnica dos agentes envolvidos na Cabanagem. Voltado para analisar a população
paraense em vários momentos antes e durante a revolta, Harris pode compor um quadro
bastante diverso dos agentes cabanos, com particular destaque para os povos indígenas.
Suas conclusões sobre o povo Mundurucu, que atuou ao lado dos legalistas na revolta,
indicam justamente esse alinhamento dos índios às suas causas próprias, mais do que as
motivações de determinados setores ou grupos políticos. Isso porque apesar de o principal
do grupo estar aliado às tropas imperiais, uma parcela significativa de índios estava do lado
dos rebeldes (Idem, p. 299-300). Desta forma, o quadro que compõe a Cabanagem vai
muito além do que a historiografia clássica apresentou.

Capítulo 3: Raça, trabalho e revolta indígena

3.1. Raça e trabalho


O que foi exposto pela historiografia atual acerca dos agentes participantes na
Cabanagem indica uma íntima relação entre trabalho e raça. A dita multiplicidade de causas
e opiniões dentro do movimento rebelde, bem como de classes sociais, mostra o surgimento
de motivações de cunho político-social. Embora a ideia anteriormente apresentada da
Cabanagem como uma revolta de ​classes não ser o foco nesta pesquisa, existe uma clara
conexão entre a massiva participação dos índios e tapuios na revolta e suas condições de
trabalho na província, algo que transparece até mesmo em documentos internacionais. Em
uma carta datada de 10 de novembro de 1835 do então ministro britânico situado no Rio de
Janeiro, Henry Stephen Fox, o relato dos acontecimentos no Grão-Pará destaca dois
elementos: em primeiro lugar, a incipiência e inabilidade das tropas nacionais de conterem a
insurreição. Em segundo lugar, a vitória constante da “tropa de selvagens” constituída em
sua maioria por “índios” e “várias raças mestiças entre índios e negros, classificadas com a
denominação geral de Cafuzos” (CLEARY, 2002, p. 63-65).

17
A obra original, em inglês, é de 2010.
38
“Os índios, acima descritos, nunca foram legalmente mantidos em
escravidão, mas talvez tenham sido mais cruelmente oprimidos e estão num
estado de grande degradação moral, dotados ao mesmo tempo de uma
coragem e força pessoal que, com sua enorme superioridade numérica,
torna agora o contraste de força física aterrorizador para a raça branca
considerar”. (Idem)

É possível que o ministro se refira aos diversos mecanismos de controle das


populações indígenas que ocorreram desde a Colônia, todos imbuídos de algum tipo de
trabalho compulsório. Os aldeamentos coloniais, embora possuíssem o objetivo de
catequizar e “civilizar” os povos indígenas, também funcionaram como “reservatório” de mão
de obra, ponto onde ocorriam diversos conflitos. A oscilação, durante o período colonial,
entre as legislações que pregavam a liberdade dos índios ou a guerra justa oscilava
justamente devido a esses conflitos e à necessidade de obter trabalhadores (SPOSITO,
2012, p. 54-55). Tal é o caso do Diretório dos índios de 1755 e da Carta Régia de 1798. O
Diretório, na teoria, apresentou uma política indigenista de caráter conciliatório onde o
trabalho compulsório era regulado pelo Diretor e dava aos índios a possibilidade de
escalada social dentro da colônia. A Carta Régia, por outro lado, extinguiu as antigas
políticas do Diretório, mas manteve algumas garantias sobre o trabalho indígena,
militarizando-o e organizando-o nas Milícias de Ligeiros (MACHADO, 2011, p. 209). Desta
forma, não se pode descartar que a situação desses povos estava por vezes à mercê das
decisões parlamentares da província e do velho jogo de forças entre elas (SPOSITO, 2012,
p. 60).
Sobre a situação dos indígenas aldeados no Rio de Janeiro, por exemplo, Maria
Regina Celestino de Almeida argumenta que “a mão de obra indígena colocava-se [...] como
atraente alternativa para uma elite que, sem liquidez, não podia adquirir no mercado de
escravos africanos a força de trabalho necessária para desenvolver suas atividades
produtivas.” (ALMEIDA, 2013, p. 220). Embora a escravização indígena fosse proibida por
lei, esse fator não impediu que ela ocorresse, ocasionando uma situação de ilegalidade
paralela àquela dos aldeamentos, onde os índios também eram obrigados, por lei e
mediante um insípido pagamento, a servir os colonos. A diferença é que, no segundo caso,
as populações aldeadas tinham um limite de escolhas e possibilidades, através da figura do
capitão-mor da aldeia, responsável por intermediar as relações de trabalho (Idem, p. 229).
Estas relações de trabalho e conflito estenderam-se até o século XIX, particularmente
através dos recrutamentos forçados (COSTA, 2016, p. 264-265). Da mesma forma, as
políticas de Milícias de Ligeiros garantiram que as levas de índios forçados ao trabalho

39
continuassem. Para Machado, a criação das Milícias das décadas de 1820 e 1830 são um
produto da Carta Régia de 1798, onde mantiveram-se “condições para que o recrutamento
forçado da mão de obra indígena permanecesse, a despeito da existência dos Diretores”
(MACHADO, 2017, p. 168). Ainda para o autor, o fato de essas legislações serem utilizadas
mesmo após a Independência e de maneiras sobrepostas comprova que, durante este
período, no Império, houve um excesso de legislações indigenistas, todas com o objetivo de
atender às demandas locais de cada província em relação aos povos indígenas: fosse o
trabalho compulsório, o uso de terras ou mesmo o extermínio (Idem, 2015, p. 438).
Talvez, para o ministro britânico, as práticas de trabalho compulsório realizadas no
solo brasileiro fossem estranhas e um fim pior do que o da escravidão. Quase cinco anos
após o fim das Milícias de Ligeiros, em 1833, o agente dos correios de Manaus, Joaquim
José de Figueiredo, escreveu ao presidente de província, Bernardo Lobo de Souza pedindo
por cinco índios para trabalhar na agência. Ambas as cartas, uma datada de 21 de janeiro e
outra de 02 de fevereiro de 1835 apontam para o total desconhecimento do remetente
quanto aos eventos que ocorriam em Belém. Mas o que é realmente interessante está na
devolutiva do dia 02, em que reclama sobre o Juiz de Paz da comarca não acatar o seu
pedido e respondendo que, se o agente quisesse índios para o trabalho, que os “praticasse”
ele mesmo. Segundo Figueiredo, a má vontade do Juiz de Paz em “ceder” os índios não
estava relacionada ao término da lei de Milícias, que regulamentava o trabalho compulsório,
mas sim por ser o próprio Juiz, um indígena. O agente chegou a pedir que os índios fossem
castigados por se recusarem a trabalhar (APEP, códice 984).
É bem provável que de fato o dito Juiz de Paz fosse descendente de índios, uma vez
que após o Diretório Pombalino a ascendência de indígenas a cargos de poder na província
paraense tornou-se algo dentro dos limites do possível (HARRIS, 2017, p.139). Mas ao
contrário de Figueiredo, não se pode afirmar que a relutância em obrigar os índios ao
trabalho se devesse por causa de sua raça. O mais provável é que ele estivesse a par das
novas legislações e se recusasse a burlá-las, insistindo que, se o agente de correios queria
trabalhadores, que fosse ele mesmo atrás dos indivíduos. Outro apontamento fundamental
está na própria insistência de Figueiredo em pedir índios para trabalho como algo
corriqueiro, indicando que essa era uma prática costumeira na província, independente das
leis em vigor.
Para se compreender a complexa relação de trabalho compulsório indígena na
província do Grão-Pará é importante atentar para um episódio ocorrido no início da década
de 1830. Em 1831 um novo presidente de província foi nomeado após a abdicação de D.
Pedro I. Bernardo José da Gama – Visconde de Goiana – provocou já nos primeiros dias de

40
posse grande rejeição por parte das elites políticas paraenses. Um dia após a posse, o
presidente teria recebido alguns membros da ​Sociedade Patriótica, Instrutiva e Filantrópica
que lhe desejavam felicitações. O líder da ​Sociedade era o já mencionado Batista Campos e
a aceitação das felicitações por parte de Goiana teria provocado incômodos (LIMA, 2007, P.
102-103). Essa decisão, em conjunto com a “tentativa de efetivar a extinção dos ​governos
militares e das ​fábricas nacionais e roças comuns espalhadas pelos diversos distritos do
Grão-Pará” (Idem, p. 103) provocou o bloco conservador, que passou a articular-se para
remover Goiana da presidência da Província.
De fato, eles conseguiram depor Goiana em agosto de 1831, num episódio que ficou
conhecido como “Agostada”. Machado aponta que “[...] a importância do golpe de 1831 está
no fato de que este acontecimento pôs em xeque a capacidade das instituições manterem
os conflitos político no Pará dentro dos limites impostos pela legislação” (MACHADO, 2011,
p. 198). Para além das implicações políticas, interessa pensar que este evento teve
resultados diretos em torno da lei de 1798 que ainda vigorava no Grão-Pará. Para os
liberais, com quem Goiana estava alinhado, as Milícias de Ligeiros deveriam pertencer ao
corpo civil, algo que desagradava moderados e conservadores (Idem, p. 210). O próprio
Machado afirma categoricamente que a “a mão de obra dos tapuios” era “um dos bens mais
valiosos da província” (ibidem, p. 211) o que justifica toda a articulação de um golpe, a
despeito da legislação, para depor o presidente de província por este motivo.

“[...] Importante ressaltar que a deposição de Goiana é um episódio crucial


para o entendimento da Cabanagem dentro da interpretação consagrada
por Raiol, já que para ele este conflito era fundamentalmente resultado da
acumulação de disputas internas da província desde 1821, tendo pouca
relevância a política fora das fronteiras do Pará”. (ibidem, p. 200)

Mahalem de Lima, por exemplo, atenta para o fato de que tanto os “governos
militares” – tais como as já mencionadas Milícias de Ligeiros – como as “roças comuns” já
haviam sido extintas por lei em 1830 (LIMA, 2007, p. 107-108), entretanto, a prática ainda
era realizada comumente e uma tentativa de extirpá-la, como a realizada pelo Visconde
provocou os setores agrícolas que dependiam do trabalho compulsório indígena. Para além
deste fato, relatos como o do autor e da carta de Figueiredo mostram quais seriam os
interesses políticos por trás da adesão dos índios na revolta. Outro ponto que corrobora para
adesão dos índios na Cabanagem ter sido a questão de trabalho foi justamente a data de
eclosão do movimento.

41
O dia 7 de janeiro era importante por inúmeras razões. Era a data em que as
autoridades políticas voltavam ao trabalho após a época de festas, a data em que os
vereadores tomavam posse de seus cargos e, mais importante ainda, era o dia de festejos
de São Tomé, o proclamado padroeiro dos índios. “Os dias de festas religiosas, por muitos
motivos, eram comumente escolhidos para a deflagração de insurreições planejadas” (LIMA,
2007, p. 71). Dentre os motivos mais comuns estavam justamente o grande contingente de
pessoas que frequentavam os centros de cidades e províncias e o pouco controle que as
autoridades possuíam diante das aglomerações.

“Afirmemos que, de forma central, são as relações permeadas pelas


posições de sujeito das ​autoridades e dos ​índios (sic) que estavam em
relevo no dia dos festejos. [...] O 7 de janeiro era um dia ambíguo; nele se
celebrava, simultaneamente, a ordem (a posse de ​autoridades na casa de
câmara)​ , e os germens de sua dissolução (a movimentação de ​tapuios e
índios embevecidos nas ruas)​ . Em todos os anos, era como se estrutura
​ o interior ​da casa de câmara;​ enquanto,
fosse afirmada pelas ​autoridades n
do lado de fora, os ​índios comemoravam em festa a inversão de posições,
ou mesmo posições que não se relacionassem de nenhuma maneira com
aquelas das ​autoridades​. Em São Tomé as ruas eram tomadas pelos
índios​.” (Idem, p. 69)

Mahalem de Lima (Ibidem, p. 74) destaca ainda um documento da marinha inglesa,


que narra como soldados integraram os tumultos que ocorriam nas ruas. Somado ao que foi
exposto fica claro a importância simbólica e a praticidade do ataque no dia de São Tomé:
era o momento perfeito para encurralar as autoridades que retornavam à rotina, ao mesmo
tempo que entregava uma mensagem importante sobre a tomada de poder. O Grão-Pará
agora seria dos índios, até então forçados ao trabalho e submetidos à lei. Na área militar,
por exemplo, o alistamento compulsório era uma prática comum, formando grandes grupos
de soldados, praças e marinheiros de baixa patente, a maioria homens livres e pobres,
possivelmente tapuios e mestiços. Segundo Pinheiro:

“Outro grande contingente de rebeldes (78 ou 11%) é o constituído por


marinheiros e soldados, sendo que muitos dentre eles haviam sido
incorporados de forma compulsória, seja no próprio Pará, seja em outras
Províncias, onde, sabe-se, formaram-se as pressas batalhões inteiros de
recrutas que possuíam uma condição marginal [...] Essa situação precária
fez com que muitos soldados e marinheiros aproveitassem as possibilidades

42
abertas pela rebelião, desertando de seus postos e, não raro, passando a
engrossar as fileiras rebeldes.” (PINHEIRO, 2003, p. 136-137)

É frequente na documentação os relatos de deserções, traições e insubordinações.


Mesmo se tratando de documentos produzidos por e para militares, essas cartas aparecem
com mais frequência do que relatos da revolta ou das condições dos acampamentos
legalistas em si. Até mesmo entre as fontes rebeldes encontram-se relatos de
desobediência. Eduardo Angelim escreveu, em 02 de março de 1835 a um remetente
desconhecido reclamando dos múltiplos casos de insubordinação e pedindo permissão para
que fossem castigados, conforme já foi dito anteriormente. Na correspondência seguinte, em
20 de março, ele informa que os ditos praças foram presos a bordo de uma embarcação
(APEP, códice 979). Que tipo de insubordinação esses indivíduos teriam cometido? Por que

os líderes rebeldes optaram por manter uma hierarquia militar representativa do ​status quo?
O que os rebeldes achavam disso?
Talvez essas perguntas não possam ser respondidas diretamente, mas pode-se
especular algumas opções. Sabe-se que os principais líderes rebeldes, Malcher, Angelim e
os irmãos Vinagre eram homens brancos, envolvidos com a política local e donos de terras,
embora não fossem necessariamente abastados. Suas demandas de cunho liberal
enquadravam-se unicamente dentro do espectro político pré-estabelecido pelo Império. Não
havia um desejo real de rompimento com o ​stablishment.​ Portanto, seria natural que certos
aspectos da ordem social fossem mantidos. Assim como não era do desejo desses líderes
abolir a escravidão, também não era reformar o sistema militar. E eles possivelmente
esperavam, dos rebeldes, o mesmo compromisso hierárquico mantendo assim os castigos e
prisões dos praças insubordinados.
O próprio Raiol, em sua vasta compilação documental, aponta a insubordinação
como um problema recorrente no Grão-Pará. Este fator seria como um “prenúncio” do que
estaria por vir na província.

“A anarquia que de há muito gangrenava a sociedade paraense, começava


de dia para dia a produzir mais funestos efeitos. No dia 1º de agosto [de
1834] alguns soldados do corpo de municipais permanentes se sublevaram
no próprio quartel, desobedecendo aos seus superiores e escusando-se ao
serviço, a pretexto de falta de pagamento de seus soldos.” (RAIOL, 1970,
vol. II, p. 468)

43
Mas não foi apenas entre os rebeldes cabanos que foram notadas desobediências. O
sargento João José Gomes da Silva precisou prender o “cafuz” Manoel da oitava companhia
junto com o guarda nacional Manoel da Conceição. O motivo teria sido o assassinato de um
outro guarda da sétima companhia. As causas para o evento nunca ficaram claras, mas a
carta deixa transparecer um certo preconceito de raça, indicando que o autor da carta não
acreditava ser necessário dar mais justificativas para a prisão. O assassinato teria ocorrido
pura e simplesmente porque o assassino era cafuz (APEP, códice 977).
Costa (2019) destaca como as autoridades cearenses durante a década de 1820
tinham receios quanto à população indígena. Embora o autor não possa confirmar com
certeza, para ele era claro que as populações indígenas pudessem se posicionar contra as
18
movimentações do período , um quadro ainda mais agravado pelo medo que as
autoridades tinham de uma possível revolta (Idem, p. 492). Para o autor, essa teoria é
corroborada pelas exposições de Machado acerca dos eventos no Grão-Pará, onde os
índios participaram ativamente das decisões políticas e revoltas.

“Compondo de forma majoritária as tropas e a força de trabalho na província


e insatisfeitos com a exploração e os recrutamentos forçados no período da
independência, os índios e outros grupos subordinados provocaram temor
nas autoridades, inclusive bradando contra o governo dos brancos.” (Ibidem,
p. 495)

A partir do exposto, pode-se inferir que a adesão massiva de tapuios, mestiços e


índios na Cabanagem não se deveu exclusivamente às motivações colocadas pelos
principais líderes da revolta, conforme a historiografia clássica os posicionou. Ao contrário,
essa adesão teria uma relação mais íntima com as vivências locais da população, nos casos
apontados, o trabalho compulsório. Há ainda uma outra questão presente nos documentos
destacados e que deve ser analisada com mais cuidado. A questão de ​raça era um assunto
delicado no século XIX e estava atrelada a outros posicionamentos de classe e hierarquia
social.

3.2. a noção de “raça” na cabanagem

18
À época ocorria em Portugal o chamado movimento Vintista, que dentre várias outras proposições,
sugeriu uma nova Constituição, algo que poderia preocupar os povos indígenas pela incerteza de sua
posição no novo governo (COSTA, 2019, p. 492)

44
Tendo sido escrita por indivíduos pertencentes às elites políticas é provável que haja
distorções na ideia de raça presente na documentação. Para eles, é possível que cor, índole
e ​civilização fossem elementos formadores de um indivíduo bom. Deste modo, a população
livre e pobre, mestiça, tapuia ou indígena tornava-se a ​ínfima classe, os ​malvados ou os
selvagens,​ conforme foram descritos pela historiografia do século XIX. Pinheiro (2003, p. 90)
atenta para os perigos de se utilizar documentos produzidos por autoridades no oitocentos:

“Em todos os movimentos sociais nos quais os principais agentes da revolta


constituíam-se maciçamente de segmentos sociais marginalizados, quase
sempre a documentação da época omitia informações diretas acerca da
vivência específica desses grupos e, nas raras oportunidades em que o
fazia, era através de ‘filtros’ pelos quais as experiências populares
acabavam enquadradas dentro de um sistema de normas e condutas
dominantes que se apresentavam como modulares.” (idem)

Ainda em sua análise dos documentos carcerários, Pinheiro destaca que a


classificação como “rebelde” por parte das autoridades vinha sempre acompanhada de uma
condição de “cor da pele” (Ibidem, p. 120). Isto não significa que homens brancos não
tenham participado da revolta, mas, possivelmente, seria mais fácil para as autoridades
reprimir a revolta caso estes indivíduos fossem classificados como homens de cor e assim
justificar a violência como forma de conter a “selvageria”. Os relatos não poupam detalhes
sangrentos e termos depreciativos para descrever os rebeldes. Em uma carta de 12 de maio
de 1835, o relato de um destinatário desconhecido às autoridades assusta pela violência
exacerbada cometida aos prisioneiros capturados pelos cabanos: “Arrancaram a língua e os
olhos do Comandante, encheram as cavidades com pólvora e atearam-lhe fogo para depois
suspendê-lo no ar e queimá-lo. Durante todo o tempo, os homens dançavam, cantavam e
gritavam as palavras mais horrendas.” (CLEARY, 2002, p. 56-58).
O trecho final da narrativa, ​dançar, cantar e gritar remete muito ao imaginário popular
sobre o comportamento selvagem. Esta é a ideia do homem bárbaro, que comemora e
ritualiza atos violentos. Neste caso, o mesmo indivíduo pode ser visto como um indígena,
pois este é o retrato que foi formado do índio tribalizado, não civilizado. Outro momento em
que este imaginário se repete é numa carta de 19 de setembro de 1835, de um remetente
desconhecido situado em Cametá. Durante a narração da tentativa de invasão dos rebeldes,
o termo preterido para descrevê-los é “​féras”​ , numa nova alusão ao seu estado sub-humano.
Entretanto, o uso deste termo isoladamente não é suficiente para se afirmar
categoricamente que a testemunha falasse sobre indígenas ou tapuios. O que aumenta esta

45
certeza é quando, no início do relato, o indivíduo diz que Cametá, desde a eclosão da
revolta em 7 de janeiro “manifestou-se contra os canibais” (RAIOL, 1970, Vol. III, p.
1044-1045). Ora, de todos os estereótipos atrelados à imagem do indígena durante o
período colonial e o império, o de “​canibal” foi um dos mais proeminentes, por reforçar a
imagem de barbárie e selvageria. Segundo John Monteiro, esta forma de ver o índio deve-se
a duas causas principais: em primeiro lugar, uma insistência dos colonizadores europeus em
compararem culturalmente os povos indígenas a si próprios, classificando os primeiros como
mais “atrasados” em relação aos últimos (MONTEIRO, 2001, p. 23). E também a uma busca
pela conciliação das “origens americanas com os princípios civilizadores que guiavam os
estado-nação do século XIX” (Idem, p. 26). Como resultado, todo adjetivo negativo
encontrado na documentação analisada pode ser diretamente ligado à forma com os povos
indígenas e de cor durante a Cabanagem.
Os relatos de 12 de maio e de Cametá ganham nova dimensão ao serem
comparados com as cartas de Sir James Everard Home, capitão da chalupa ​Racehorse para
o Presidente de Província Manuel Jorge Rodrigues. Datada de 27 de agosto de 1835, o
capitão informa que houve um acordo com os “indians” para que a chalupa adentrasse a
cidade de Belém, a fim de entregar provisões aos súditos britânicos presentes na cidade.
Entretanto, a tradução em português, realizada para a leitura do presidente de província traz
o termo “indians” traduzido como “tapuio” (APEP, códice 993). Ao longo de março a junho de
1835, o comandante George Daniell, da marinha real britânica relatou, a bordo do ​Dispatch​,
os eventos ocorridos em Belém (CLEARY, 2002, p. 160-164; 171-176). Dentro do clima
geral de caos e violência da capital, o capitão destacou a participação dos índios no evento
sempre como rebeldes. Em uma carta anexada no relato de 20 de março ele narrou o saque
realizado por índios durante cerca de 3 dias. Afirmou ainda que “inúmeros índios, que
tiveram uma participação bastante ativa nos últimos ultrajes, foram vistos em retirada e a
confiança pública restaurada” (Idem, p. 160-161). A correspondência seguinte narra eventos
similares, protagonizados por indígenas. Embora mencione brevemente saques da capital,
os índios sempre aparecem atacando os legalistas, sem atingir civis.
Enquanto documentos produzidos pela marinha inglesa relatavam os cruéis atos dos
“indians”, a documentação nacional possuía um dicionário mais amplo de raças e etnias. Os
índios aparecerem exclusivamente em situações de trabalho e subordinação, como no
pedido apresentado por Joaquim José de Figueiredo. Já os “tapuios”, “cafuzes” e “caboclos”
aparecem com frequência, geralmente em situação de conflito com os legalistas ou com
certo desprezo. David Cleary (2002) acredita que o uso deste termo pelos britânicos indique
um tipo de preconceito de classes, e questiona se os ​índios descritos pelos britânicos

46
fossem de fato… índios (Idem, p. 21). Entretanto, a documentação aqui relatada gera um
outro questionamento: e se estes povos indígenas fossem reclassificados pelos brasileiros?
Como foi visto, era prática comum no século XIX separar grupos a partir de cor da pele e
etnia, apesar de nem sempre esses grupos serem mesmo separados. Ao traduzir os ​indians
de Sir James E. Home para tapuios, realizou-se uma suposição acerca do grupo que o
atacou, a partir de imagens já pré-concebidas no imaginário das autoridades.
Deste modo, pensar os agentes cabanos e a participação indígena na revolta é
também discutir as concepções de raça existentes no século XIX e como os povos
indígenas se encaixavam nelas. O que a documentação mostra é que, apesar de essa
participação ter sido massiva, ela também sofreu com distorções e exageros por parte dos
indivíduos que a produziram, um fator que não pode ser ignorado.

Considerações finais
Pode-se, então, concordar com a afirmação de que houve ​várias cabanagens​, cada
uma moldada de acordo com os agentes que a compuseram. Neste sentido, vale afirmar
que a revolta da população marginalizada não era uma novidade, muito menos
exclusividade da província paraense. A Cabanagem se destaca como violenta e constrói seu
mito tendo como base a narrativa histórica sobre a qual foi consolidada: a de uma exceção à
regra geral de pacificidade da nação (MACHADO, TOLEDO, 2017, p. 15-16). Nem por isso,
ela perde importância, ao contrário, entendê-la do ponto de vista das camadas de baixo
contribui para o enriquecimento do debate acerca das revoltas regenciais.
Ainda mais importante é trazer os estudos das identidades cabanas para o âmbito da
História dos Índios. Para uma revolta que convencionou-se afirmar ter sido realizada por
índios, ​tapuios e ​gentes de cor é interessante perceber como análises mais aprofundadas
dessas afirmações demoraram para surgir na historiografia. Autores como Di Paolo (1985, p.
86) chegaram até mesmo a apontar conflitos em torno da legislação indigenista do período,
particularmente as consequências do fim do Diretório do Índios como causas palpáveis para
19
a eclosão da Cabanagem. Para além deste fator, muitos autores já demonstraram que o
envolvimento de povos indígenas em revoltas políticas frequentemente era motivado pelas
condições sociais em que tais povos se encontravam.
A junção desses dois campos de estudo, o das revoltas regenciais e da História dos
Índios traz ainda um benefício secundário, que é romper com a perspectiva de que apenas o
Grão-Pará foi um território problemático durante o período imperial. A partir de uma
comparação mais ampla, que desfoca da história da regional, e das pesquisas sobre o

19
Conforme exposto no primeiro capítulo.

47
envolvimento de povos indígenas em outras revoltas imperiais percebe-se claramente que
todo o Império esteve em rebuliço, como é natural a qualquer nação em construção.
A partir deste ponto é preciso ainda enquadrar esta monografia como parte desta
nova corrente historiográfica da Cabanagem, voltada a entender os participantes da revolta,
construindo um retrato sobre as ​massas c​ abanas. Portanto, ela se afasta de visões que
apresentam o cabano com um mero coadjuvante da Cabanagem, ou ainda, um coitado
manipulado pelos líderes rebeldes. A documentação analisada corrobora com os discursos
apresentados anteriormente. Em particular, a associação entre as comemorações de São
Tomé em 7 de janeiro e a eclosão da Cabanagem, uma vez que houve uma larga
participação de tapuios e praças desgostosos com o governo.
Outra associação também pode ser feita em relação ao discurso utilizado pelos
legalistas para descrever os cabanos: em muitos sentidos, ele se aproxima do mesmo
discursos da época utilizado para com os índios. Os cabanos eram sempre ​selvagens,
eram-lhes atribuídas características animalescas a fim de diminuir sua humanidade,
exatamente como ocorria com os índios e com as leis indigenistas que, como foi apontado,
podiam preterir pelo seu extermínio ou pela tutela. Vale lembrar que o termo ​cabano sugere
uma ambiguidade já que pode ser visto como um termo aglutinador, que reúne sob um único
espectro todos os sediciosos do período (LIMA, 2007, p. 97). Colocando em xeque ambos
apontamentos pode-se sugerir que talvez haja uma especificidade no termo: os cabanos
eram os inimigos dos legalistas, mas em sua maioria eram tapuios e indígenas, ​selvagens.
Por fim, é preciso delimitar os apontamentos feitos neste trabalho em relação à
dimensão da participação indígena na Cabanagem e seus desdobramentos. Tanto a
documentação analisada como a bibliografia dão respaldo à ideia de que houve um intenso
movimento de indígenas na revolta. Ainda que estes nem sempre figurem na documentação
de forma específica, a leitura nas entrelinhas e o cuidado na comparação com as fontes
obtidas por outros autores do assunto levaram à essa conclusão. Tal é o caso, por exemplo,
das Milícias de Ligeiros e táticas de trabalho compulsório ocorridas na Província, além de
outras insurreições que contaram com a participação indígena no período.
Um elemento fundamental foi questionar e duvidar das fontes o tempo todo,
principalmente na utilização das terminologias. Pode-se perceber que as autoridades
legalistas tinham um cuidado especial em diferenciar racialmente a população
marginalizada. A documentação menciona não apenas ​índios,​ mas também ​cafuzes ​e
particularmente ​tapuios​. De certa forma, a variação dessas terminologias pode ter
contribuído para o apagamento histórico dos povos participantes na Cabanagem, pois os
coloca sob nova categorização criada pelos inimigos e detentores do poder. Essa é uma

48
afirmação que pode ser feita a partir dos documentos gerados pela marinha inglesa, que
preferiram a utilização de ​indians para descrever os revoltosos, ao contrário do governo
paraense.

49
Fontes
​Códices do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP)
977, 978, 979, 980, 984, 985 e 993.

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