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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ


CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, EDUCAÇÃO E LETRAS
COLEGIADO DE HISTÓRIA

JANAICE BERTOLDO DA SILVA

ESCREVER A HISTÓRIA EM TEMPOS DE CRISE: HERODIANO E O


REINADO DO IMPERADOR HELIOGÁBALO

Monografia apresentada como pré-requisito para


aprovação na disciplina de Monografia II do curso de
História, para obtenção do título de Licenciado em
História.
Sob orientação do Professor Dr. Moisés Antiqueira.

Marechal Cândido Rondon


2019
2

AGRADECIMENTOS

Eu gostaria de agradecer todas as pessoas que fizeram parte do meu período de


graduação, que com alguma palavra gentil e singela, contribuíram para o meu crescimento e
que dessa forma me ajudaram a desenvolver essa monografia. Em especial quero agradecer meu
pai Edson Lima e minha mãe Dilema Bertoldo por sempre me incentivarem a estudar, ao meu
orientador Moisés Antiqueira, por todos os ensinamentos e pela paciência. Um agradecimento
especial a todos os meus amigos: Renan, Ana, Kamila, Regiane, Márcia, Vitor, Gabriela, César,
Francisco e Milena; e ao pessoal da Hermanoteu Tour: Alana, Gustavo Luan, Gustavo
Schneider, Marcelo, Gabriel; que escutaram eu falar dessa pesquisa por quatro anos.
3

RESUMO

Heliogábalo (218-222) é um dos imperadores romanos que constantemente tem sua imagem
retratada de forma degradante, tanto pelas fontes antigas, quanto pela historiografia moderna.
Essa visão negativa foi composta principalmente após sua morte, quando o Senado, por meio
da damnatio memoriae, apaga da memória pública os atos desse imperador, sendo assim,
desonrando a imagem de Heliogábalo e estimulando a transformação de sua memória nos
moldes do estereótipo do “mau príncipe”. Nesse caso, uma das principais fontes para
compreender a figura de Heliogábalo corresponde à narrativa histórica escrita por Herodiano
(c. 250-260). Deste modo, nos interessa compreender a maneira como o referido historiador
construiu sua representação a respeito do imperador e entender por quais razões Herodiano
escolheu retratá-lo da maneira como o fez.

Palavras Chaves: Heliogábalo, Herodiano, Século III, História Antiga.


4

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 5

2. CAPÍTULO 1 ........................................................................................................ 14

3. CAPÍTULO 2 ........................................................................................................ 25

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 36

5. FONTES ................................................................................................................ 38

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 39


5

INTRODUÇÃO

A pesquisa em História Antiga no Brasil conheceu uma longa trajetória para


sobressair-se nas universidades brasileiras. É só a partir de meados da década de 1990 que
houve um crescimento de pesquisas, dissertações e teses elaboradas nessa área, principalmente
devido ao surgimento da História Cultural1, que mudaria os parâmetros da investigação
historiográfica (CARVALHO & FUNARI, 2007, p. 15). Atualmente, há uma grande variedade
de pesquisas nacionais desenvolvidas e sendo produzidas em História Antiga. Entretanto, ainda
há algumas questões que fazem a pesquisa nessa área serem um desafio para jovens estudantes.
Entre outras, o fato de muitas fontes e bibliografias de apoio estarem em línguas estrangeiras,
como o inglês, espanhol, francês, grego e latim.
Nesse contexto, o Império Romano foi abordado na historiografia do século XX por
diversos motivos e com diferentes intenções e implicações ideológicas (GUARINELLO apud
SOUZA, 2010/2011, p. 2). E a presente monografia se insere nesse âmbito, em tentar avaliar
como a historiografia moderna, assim como as fontes clássicas, deixam suas intencionalidades
interferir no retrato da vida de Heliogábalo. O terceiro século do Império Romano é
caracterizado por escassez de fontes escritas (ESTELLER, 2013, p.59). Diante disso, escolhi
trabalhar com uma das fontes de destaque desse período, a obra de Herodiano, isso pois, mesmo
tendo uma posição única, os dados que fornece são poucos considerados.
Sendo assim, o propósito deste estudo é compreender, a partir da escrita de
Herodiano, o reinado de Heliogábalo e suas políticas religiosas, e como as religiões
“estrangeiras” estavam inseridas na Urbs2. Foram traçados objetivos que me ajudariam a
chegar até estes resultados, como: entender através da leitura da obra de Herodiano o contexto
histórico de “crise” do século III em Roma e como o fenômeno histórico da damnatio
memoriae3/usurpação é usado como um mecanismo de propaganda política em períodos de
crise; descrever e analisar a maneira como Herodiano elaborou um retrato a respeito de He-

1
A História Cultural, ao menos em sua definição comum a partir da década de 1970, frequentemente combina
as abordagens da antropologia e da história para olhar para as tradições da cultura popular e interpretações
culturais da experiência histórica e humana. A História Cultural ocupa-se com a pesquisa e representação de
determinada cultura em dado período e lugar. Ela não se dedica diretamente à História Política (em um sentido
mais tradicional) ou à história oficial de países ou regiões. Na História Cultural, a cronologia não é tão relevante
quanto na historiografia política. Para tanto, ver Burke (2005).
2
A palavra urbs ou urbe vem do latim para “cidade”. Urbs, em maiúscula, geralmente é usada para se referir a
uma cidade específica: a própria cidade de Roma.
3
É a expressão em latim que quer dizer “condenação da memória”, no sentido de remover a lembrança de algo
ou alguém. Na Roma Antiga, era uma forma de desonra que podia ser aprovada pelo Senado a traidores ou outros
que tivessem causado vergonha ou desonra ao Estado romano.
6

liogábalo e da época em que o jovem imperador havia reinado; finalmente, compreender as


possíveis intenções que subjazem às formas de representação acerca do citado governante, tal
como observadas na obra de Herodiano.
Este presente estudo é dividido em dois capítulos. O primeiro deles será voltado para
determinar quais os “aspectos e dimensões” que certos autores destacam a respeito da escrita
de Herodiano, bem como pensar a intersecções entre autor, texto e contexto, ou seja, atentar
aos pequenos detalhes, por vezes quase imperceptíveis, mas que se fazem presentes na
narrativa, que podem revelar as intenções que impulsionaram a empreitada do historiador4. Já
no segundo capítulo, irei delinear as intenções de Herodiano ao tecer seu relato a respeito do
imperador Heliogábalo e entender por que razões Herodiano escolheu retratá-lo da maneira
como o fez. E pensar também, o contexto histórico de “crise” do século III em Roma, com
enfoque no período do reinado de Heliogábalo, entre 218 e 222 d.C.
A ideia de estudar o imperador Heliogábalo emergiu das pesquisas de iniciação
científica que eu desenvolvi durante a graduação. A escolha de trabalhar com esse personagem
em particular surgiu ao percebermos um grau de menor interesse da historiografia em relação
a ele. São poucos os trabalhos dedicados a ele, mesmo na área de História Antiga. No Brasil,
as pesquisas relacionadas a este imperador são quase inexistentes, salvo os trabalhos da
Semíramis Corsi da Silva5. Nas fontes, há bastante contradições sobre sua vida, seu governo,
suas práticas religiosas e as questões de gênero e sexualidade – justamente os elementos que
despertaram meu interesse por Heliogábalo. Estudar sobre a vida de tal imperador é importante
para preencher o vazio que existe de pesquisa relacionada a ele, assim como para entender as
relações das diversas religiões que estavam presentes na Urbs no século III d.C. Além de que,
o período é marcado por crise em Roma, e entender sobre sua vida e governo nos ajuda a
lançar luz sobre esse momento do Império Romano. Logo, vão haver revoltas e interferências
diretas do exército no governo, mas mesmo assim, ainda haverá um florescimento econômico
no Império, nos fazendo perceber que essa ideia de “crise” vem de uma concepção
historiográfica moderna, assim como os ideais sobre Heliogábalo.

4
Esse procedimento metodológico é baseado no “paradigma indiciário” de Ginzburg.
5
Ver, por exemplo: SILVA, Semíramis Corsi. Barbaridade versus Humanitas no Principado Romano: a política
e a construção da imagem do imperador Heliogábalo (século III EC). Revista Alétheia: Rio Grande do Norte.
Nº2/2017; SILVA, Semíramis Corsi. Identidade cultural e gênero no principado romano: uma proposta de análise
interseccional das representações do imperador Heliogábalo (século III d.C.). Phoînix , v. 24, p. 142-166, 2018;
SILVA, Semíramis Corsi. A corrupção e os crimes de Heliogábalo: aspectos da governabilidade imperial romana
e as práticas políticas do princeps sírio vistas por seus detratores (século III EC). In: Semíramis Corsi Silva; Carlos
Eduardo da Costa Campos. (Org.). Corrupção, crimes e crises na Antiguidade. Rio de Janeiro: Desalinho/CNPq,
2018, v. 1, p. 193-216.
7

Para estudar Heliogábalo, fizemos um apanhado das fontes sobre o período (séc III
d.C.), com enfoque em seu reinado. Entre essas fontes estão o trabalho dos autores como Dião
Cássio (230 d.C.) História Romana, Herodiano (259-260 d.C.) História do Império Romano
depois de Marco Aurélio e a História Augusta (que foi publicada somente no final do século
IV d.C.), são obras que dedicam um texto mais extenso sobre a vida de Heliogábalo que outros
autores. A partir da leitura e análise dessas três obras, decidi prosseguir somente com o trabalho
de Herodiano. As razões pelas quais optei apenas por ele foi, pois, que as outras duas obras
(de Dião Cássio e da História Augusta) tem uma visão muito ligada ao Senado Romano. Ou
seja, a aversão demonstrada pelos autores à Heliogábalo está relacionada aos pensamentos e
opiniões que corriam dentro dos segmentos senatoriais6, mas a insatisfação dos senadores com
o imperador levou a difusão de boatos a respeito de Heliogábalo. O teor desses rumores tem
a intenção de prejudicar a imagem do imperador, e assim sendo, não temos como saber até
onde esses boatos — de que ele seria homossexual e de que gostaria de se tornar mulher —
são verdadeiros ou somente isso, boatos. Mas, para entender melhor sobre a figura de
Heliogábalo, devo falar sobre a vida dele.
Heliogábalo foi um “imperador criança”, que governou Roma dos 14 até seus 18 anos
(218-222 d.C.). Nasceu em 204 com o nome de Vário Avito Bassiano, e fazia parte da dinastia
romano-siríaca7 dos Severos. Após a morte de Caracala, Macrino que era prefeito do pretório8,
faz um apelo ao Senado por meio de uma carta. Essa carta convenceu os senadores de que ele
seria um candidato melhor a imperador do que um menino de 13 anos. Logo, os senadores
“concedem todas as honras de Augusto” (HERODIANO. 5.2.1)9 a Macrino.
Logo que Macrino assume como imperador, decide exilar a família de seu antecessor.
Júlia Mesa, juntamente com suas duas filhas e seus dois netos – Heliogábalo e Alexandre Severo
–, se estabelece em Emesa na Síria, sua cidade de origem. Não demora muito para Júlia Mesa
em companhia de seu conselheiro e tutor de Heliogábalo, Gannys, arquitetam para elevar seu
neto mais velho a imperador. Para isso, iniciaram um boato de que Avito Bassiano
(Heliogábalo) era na verdade filho ilegítimo de Caracala, por meio de uma relação adúltera
entre ele e sua prima Júlia Soêmia. Mas era necessário mais do que isso para conseguir total
apoio das legiões. Diante disso, Júlia Mesa faz uma demonstração de riqueza ao distribuir

6
Debate esse apresentado em Winterling (2012).
7
Ver Kemezis (2014, p. 272).
8
Oficial romano, responsável pela guarda imperial e pela administração da justiça.
9
Forma de referência a obra de Herodiano, História do Império Romano depois de Marco Aurélio, em que o
primeiro número refere-se ao livro que pertence à obra, o segundo número, ao capítulo dentro do livro, e o terceiro
número, o parágrafo.
8

uma quantia em dinheiro para os soldados – além de laços de clientela/patronagem que ligava
a Terceira Legião a ela –, ações essas que asseguraram a lealdade desses combatentes. Os
soldados aclamam então Avito Bassiano como imperador em 218 e, para reforçar sua
legitimidade, o jovem passou a se chamar Marcus Aurelius Antoninus, que era o nome do
próprio Caracala, seu pretenso pai.
Macrino, tentando assegurar sua posição, envia cartas ao Senado chamando
Heliogábalo de “o Falso Antonino” e afirmando que ele era louco, convencendo assim o Senado
a declarar guerra contra Heliogábalo e Júlia Mesa. Mas, com o desfalque de uma legião inteira,
que havia se aliado à família dos Severos, perdeu a batalha de Antioquia. Derrotado, Macrino
e seu filho Diadúmeno fogem, mas são capturados e mortos.
Seu codinome Heliogábalo adveio de sua profunda vinculação com o culto do deus
sol de Emesa, chamado de Elagabal. Na Síria, Heliogábalo foi sacerdote desse deus solar, que
era simbolizado por uma pedra negra em forma fálica. É de importância ressaltar que ele, em
todo momento, se considerou sacerdote antes de imperador (MARTÍNEZ, 1994, p. 11). Dessa
forma, é compreensível porque ele quis levar seu culto para Roma. Para que os romanos se
acostumassem com sua imagem e com sua postura sacerdotal, é enviado à cidade de Roma
um retrato seu vestido de sacerdote para que fosse colocado no interior do Senado
(HERODIANO, 5,5,7).
Pela perspectiva historiográfica de alguns autores modernos, o assunto que diz
respeito à Heliogábalo que causa mais debate é sobre sua sexualidade. Durante um período de
três anos, teria se casado pelo menos cinco vezes. Casou-se com uma vestal10, o que já era
chocante o suficiente, pois elas deveriam permanecer virgens enquanto servissem à Vesta; do
contrário, deveriam ser sepultadas vivas. Casou-se também com um homem, Hierócles, um
escravo auriga, que segundo Herodiano (5,6,2) era amante, mulher e rainha de Heliogábalo.
Supostamente gostava de jogos e passatempos considerados femininos, como
costurar. Teria também maneirismos de mulher, como o tom da voz e a forma de falar, além
de rebolar enquanto andava. O vestuário que usava era muito mais luxuoso, com tecidos mais
leves de coloração púrpura e dourado; utilizava também colares, braceletes, tiaras e joias
abundante em ouro e pedras preciosas. Teria também pedido que lhe fizessem uma vagina, já
que desejava ser mulher, além de alegadamente ser submisso e masoquista. Aspectos esses de

10
As vestais (em latim virgo vestalis), na Roma Antiga, eram sacerdotisas que cultuavam a deusa romana Vesta.
Era um sacerdócio exclusivamente feminino, restrito a seis mulheres que seriam escolhidas entre a idade de 6 a
10 anos, servindo durante trinta anos. Durante esse período, as vestais eram obrigadas a preservar sua virgindade
e castidade, pois qualquer atentado a esses símbolos de pureza significaria um sacrilégio aos deuses romanos e,
portanto, também à sociedade romana. Para tanto, ver Rosa (2006).
9

que desejava ser mulher, além de alegadamente ser submisso e masoquista. Aspectos esses de
comparação com a figura feminina, para desqualificação, já que o homem deveria ser
sinônimo de força, virilidade e coragem.
Tais fatos, sejam eles verdadeiros ou falsos, causaram descontentamento por parte
dos soldados e apoiadores de Heliogábalo. Mas não foi só isso que causou desaprovação: o
que levou ao estopim foram as reformas religiosas implementadas. Uma de suas primeiras
medidas, enquanto imperador, foi estabelecer um templo dedicado à Elagabal: o local
escolhido para tanto foi uma construção feita por Domiciano, no monte Palatino, em
homenagem a Júpiter. O santuário então foi rebatizado para Elagabalium, em homenagem ao
deus Sol Invictus.
Fez também uma reestruturação da hierarquia das divindades tradicionais,
estabelecendo Elagabal como divindade suprema, acima inclusive de Júpiter. Dessa forma,
os outros deuses estariam subordinados a esta entidade oriental. Cria também uma nova tríade,
que integraria o deus Sol Invictus, Atena e Afrodite Urânia, substituindo assim a tríade
capitolina11 já existente. Em vista disso, impactou com dureza o ideal de mos maiorum12,
desestabilizando a ordem política então vigente. Vale ressaltar que, em Roma no séc. III d.C.,
existiam práticas religiosas voltados a divindades estrangeiras; entretanto, o problema da
reforma de Heliogábalo foi ter colocado o deus Elagabal acima de todo o panteão romano.
Depois de fazer essa explanação sobre a vida de Heliogábalo, partimos então para
um breve balanço historiográfico, que nos ajuda a perceber como a historiografia moderna
trata da vida desse imperador. Pois, depois no primeiro capítulo quando estiver analisando a
fonte, poderá ser feito um paralelo e compreendido que muito das visões da historiografica
são reflexos das fontes.
No decorrer da produção historiográfica imperial, observamos a elaboração de um
“modelo ideal de imperador”, cujos atributos eram os mais variados. Os diferentes historiadores
exaltavam a civilidade do governante no trato com o Senado, e valores como a sabedoria,
dignidade, coragem e bravura, respeito aos deuses, entre outras. Ao mesmo tempo, os que são
considerados “maus príncipes” não apresentariam nenhuma dessas características, sendo
descritos como cruéis, egocêntricos, narcisistas e tirânicos.

11
Tríade Capitolina: na religião romana antiga, eram as três divindades supremas do Capitólio. Essa tríade era
composta por Júpiter, Juno e Minerva. Sua substituição era um ultraje pois significava mudar a ordem religiosa
tradicional de Roma.
12
O mos maiorum constituía os princípios coletivos consagrados pelo tempo, modelos de comportamento e
práticas sociais que afetavam a vida privada, política e militar na Roma antiga. No seu conjunto, eram considerados
símbolo de integridade moral e de orgulho do cidadão romano.
10

Em Herodiano, o optimus princeps13 ao qual Heliogábalo será comparado não é


Augusto, mas sim um imperador muito mais próximo cronologicamente, que é Marco Aurélio
(161-180) (ICKS, 2012, p. 141).
Para determinar as formas de abordagem sobre as alegadas transgressões de
Heliogábalo no interior da produção historiográfica contemporânea e fontes pesquisadas, foi
empregado o texto de Aloys Winterling14 como fundamento para análise. Winterling
evidência características depravantes comuns na escrita da imagem dos considerados “maus
imperadores” nas fontes, que ajudam a identificar a abordagem do escritor, ou seja, se ela está
ligada a anedotas ou é fruto de um relato sério, voltado às estruturas políticas e culturais. De
acordo com o autor,
As fontes citam como características comuns orgulho, ódio e perseguição da
aristocracia senatorial, luxo e prodigalidade, crueldade e perversão sexual,
megalomania e, ainda [...] sinais de doença mental. Todos [...] foram
assassinados. Após suas mortes, foram apagados da memória pública pelo
Senado pela damnatio memoriae, e seus atos, postumamente declarados
inválidos (WINTERLING, 2012, p. 5).

Essas escritas que atribuem características degeneradas a imperadores tidos por


“loucos” são pouco confiáveis. A posição tomada por essas fontes apresenta obstáculos para
a historiografia moderna, pois não é possível contestar tais acusações, principalmente por
essas fontes serem o único meio de transmissão desses fatos.
Por causa disso, devemos deixar de considerar a questão da “loucura imperial”? Claro
que não. Entretanto, devemos questionar o que está por trás dessa suposta subversão da posição
do imperador. Essas fontes provêm de autores que eram membros da ordem senatorial, equestre
ou que circulavam pela classe aristocrática. Ou seja, “eram pessoas que estavam em contato
direto com os imperadores e que foram imediatamente afetados pelo comportamento imperial
em suas oportunidades de vida – por patronato ou acusações” (WINTERLING, 2012, p. 6).
Diante disso, consegue-se perceber os conflitos de interesse entre esses imperadores,
considerados “loucos” e a classe aristocrática, da qual advinham os autores dessas histórias.
Para não ficarmos preso a essa visão depravadora desses imperadores, é necessário
recontextualizar suas ações. Para isso, precisamos entender as estruturas e sistemas históricos,
a tradição da sociedade em que nosso objeto de estudo está inserido, compreender as estruturas
socioculturais e políticas implementadas. Desta forma, consegue-se empregar uma visão mais
ampla e separada das opiniões das fontes, sem ficar presa a elas. Sendo assim, a escrita da

13
Optimus Princeps é o modelo ideal de como um governante (imperador) deveria ser.
14
Ver acima, nota 6.
11

historiografia moderna não irá reproduzir as mesmas declarações tendenciosas das fontes.
Através dessas percepções que Winterling apresenta, temos uma forma mais
explícita de como avaliar os textos historiográficos e como eles tratam da imagem de
Heliogábalo: se estão ou não presos aos relatos das fontes. Sendo assim, veremos o que alguns
autores modernos escrevem sobre Heliogábalo.
Chrístopher Recio Sobrino (2014, p. 401-407) por uma perspectiva psicológica
avalia que a escrita histórica é subjetiva, o que leva a uma descrição injusta de muitos
personagens, o que prejudica a compreensão da sua existência, por causa de uma “opinião
particular”. Para ele, os autores contemporâneos a Heliogábalo fizeram de sua personalidade
uma aberração e de sua sensibilidade um ato cômico, fazendo-o inepto para o lugar que
ocupava. E isso seria injusto, já que sua personalidade poderia ser resultante da religião que
seguia e da qual era sacerdote. Além de que essas especulações serviam só para minar a
popularidade do imperador. Mas para o autor, não foi isso que o prejudicou, mas sim a reforma
religiosa imposta por Heliogábalo, posto que colocou um deus distante da tradição romana
como divindade superior a Júpiter.
Já os textos escritos por historiadores procuram analisar o reinado de Heliogábalo
por um viés mais crítico, levando em conta sua falta de tato e conhecimento da realidade
romana, rompendo com certas normas comuns deste povo. Além de afastar o poder senatorial
da figura do imperador, deixar a desejar na sua conduta com o povo e distribuir cargos
políticos para plebeus e escravos, pessoas que não faziam parte da aristocracia, e que não
entendiam as engrenagens de funcionamento da política romana. E ainda, as radicais reformas
religiosas. Discute-se o âmbito sexual da vida deste personagem, mas é um aspecto muito
menos importante quando se trata de falar do reinado deste imperador.
Assim, para Ana Teresa Marques Gonçalves (1998/1999, p. 147-159), Heliogábalo
foi um príncipe muito jovem, mal instruído sobre a moral romana e o sobre o papel do
imperador, dedicado que era à sua própria religiosidade. Ascendeu na sociedade romana pela
ambição de parentes que viram em sua figura uma oportunidade de se manter nas camadas
altas da sociedade, mas ao mesmo tempo foi levado à ruína por não se encaixar no papel de
governante. Apresenta também outro ponto de vista muito interessante para se pensar o retrato
degenerado de Heliogábalo escrito pelas fontes. Tanto Dião Cássio quanto Herodiano
escrevem de forma que a biografia dele serviria de contraponto para Alexandre Severo, seu
primo, que se tornou imperador após sua morte, que depois foi retratado como um modelo de
príncipe perfeito.
Já Rebeca Fernández Puerta (2014, p. 30-34) apresenta questões muito interessantes
12

relacionadas às mulheres da família Severa. Para ela, as mulheres desta dinastia foram capazes
de transformar a original linhagem africana dos Severos em uma linhagem das Júlias. O sucesso
do elaborado programa de propaganda imperial criado pelas Júlias foi o instrumento
fundamental para a legitimação e afirmação do imperium15 do imperador. Essa propaganda
visava o apoio das legiões, que foram fundamentais para a vitória frente ao poder da instituição
senatorial. Tais campanhas foram reforçadas pela cunhagem de moedas, inscrições e por
monumentos comemorativos em homenagem a essas mulheres, apesar de a popularidade da
família não ter sido reassegurada por Sexto Vário Avito Bassiano (Heliogábalo). Essas
mulheres foram fundamentais para a afirmação da dinastia severiana: sem elas essa família
provavelmente não teria chegado tão longe.
Pela leitura desses textos historiográficos, se nota a preocupação em problematizar
a forma como a própria historiografia e a documentação textual trata de forma degenerada
a imagem desse imperador. Problematiza-se, ainda, a própria ideia de veracidade das fontes e
até onde o que se escreve sobre os desvios morais de Heliogábalo é verdadeiro. Para isso,
escolhi trabalhar com a obra de Herodiano, a “História do Império Romano depois de Marco
Aurélio”, que é uma das principais fontes para compreender a figura de Heliogábalo. Deste
modo, nos interessa compreender a maneira como Herodiano construiu sua representação a
respeito deste jovem imperador e entender por quais razões o autor escolheu retratá-lo da
maneira como o fez.
Considerando-se a natureza da proposta, a pesquisa insere-se no âmbito da História
Intelectual16, lidando, pois, com as intersecções entre autor, texto e contexto. Vale destacar que
trabalhamos com a tradução espanhola da História de Herodiano, haja vista a impossibilidade
de leitura do texto original, escrito em língua grega.
Feito tal apontamento, problematizamos a fonte partindo da perspectiva defendida
por Antoine Compagnon (1999) de que é possível analisar a polissemia do texto e então
compreender a linguagem enquanto forma, estrutura do estudo da história e da técnica da
narrativa enquanto tal. Nesse caso, “a resposta que o texto oferece depende da questão que
dirigimos [...], mas também de nossa faculdade de reconstruir a questão à qual o texto responde,
rativa porque o texto dialoga igualmente com sua própria história” (COMPAGNON, 1999, p.
63). É também importante para pensar o autor enquanto intenção, de perceber que existe sen-
15
Imperium era a palavra latina que designava o conceito romano de autoridade; É a personificação, no magistrado,
da supremacia do Estado, supremacia que exige a obediência de todo o cidadão ou súdito, mas está limitada
pelos direitos essenciais do cidadão ou pelas garantias individuais
16
Segundo Marcos A. Lopes (2015), História intelectual, história das ideias, história do pensamento político,
interessa-se particularmente pela compreensão das obras políticas e pelo arsenal instrumental teórico e
metodológico posto em prática pelos historiadores empenhados na compreensão dessa dimensão do fazer humano
13

tido tanto próprio quanto figurado, no estilo linguístico, que pode ajudar a entender as
intencionalidades da obra.
Assim sendo, em meio a essa tentativa de delinear as intenções de Herodiano ao tecer
seu relato a respeito do imperador Heliogábalo, nos apoiamos em Carlo Ginzburg (1989, p.
143-179) e seu “paradigma indiciário”. Ou seja, o trabalho com a História de Herodiano
demanda que refinemos o nosso olhar para atentarmos aos pequenos detalhes, por vezes quase
imperceptíveis, que se fazem presentes na narrativa, que podem revelar as intenções que
impulsionaram a empreitada do historiador.
Igualmente, o conceito de representação de Roger Chartier (1991, p. 173-191), que
diz respeito ao modo como em diferentes lugares e tempos a realidade social é construída por
meio de classificações, divisões e delimitações. O autor também acredita que esses códigos,
padrões e sentidos são compartilhados, e apesar de poderem ser naturalizados, seus sentidos
podem mudar, pois são historicamente construídos e determinados pelas relações de poder,
pelos conflitos de interesses dos grupos sociais. Sendo assim, o conceito se mostra importante
para entendermos a situação de Herodiano como um funcionário público da res publica17 e
sua relação com um governante como Heliogábalo.
Finalmente, levamos em conta também a concepção de Michel de Certeau (2000, p.
56-108) de que o discurso histórico deve ser analisado pela sua relação com o corpo social, o
do sujeito, para pensar sobre a escrita de Herodiano e como a vida do próprio autor irá
influenciar sua obra. Para Certeau (2000, p. 66), não existe a separação da história do lugar,
do sujeito e do tempo em que algo é escrito; pode ser que essas questões não apareçam de
forma explícita na escrita, mas elas aparecem no subtexto ou na forma como se escreve. “É,
pois, impossível analisar o discurso histórico independentemente da instituição em função do
qual ele se organiza silenciosamente” (CERTEAU, 2000, p. 71).

17
Res publica é uma expressão em latim que significa “coisa do povo”, “coisa pública”. É a origem da palavra
“República”. Lembrando que apesar de ser a origem do termo “república”, o termo clássico não tem o mesmo
sentido que hoje de república.
14

CAPÍTULO 1: ESCREVENDO A HISTÓRIA EM TEMPOS DE CRISE

Antes de falar sobre Heliogábalo e seu controverso reinado de acordo com o que
escreveu Herodiano, apresentarei aqui, justamente, a fonte a qual utilizarei neste trabalho. Para
além disso, também é necessário fazer uma série de questões referentes à trajetória de vida do
autor da fonte, para determinarmos suas possíveis intencionalidades e a razão pela qual o autor
escreverá sobre Heliogábalo da forma que o faz.
Assim, a “História” de Herodiano é um registro contemporâneo de meio século sobre
os governos de diferentes imperadores em Roma. Em oito livros, a narrativa abrange os anos
de 180 a 238, desde a morte de Marco Aurélio até a ascensão de Gordiano III. Sua obra original
é escrita em grego; logo, para compor esse trabalho foi usada uma tradução em espanhol por
Juan J. Torres Esbarranch, publicada pela editora Gredos, como indicado anteriormente.
Cada um dos oito livros relata, em linha gerais, a trajetória de um imperador diferente
entre os anos de 180 a 238. Mas o livro do qual se fala sobre Heliogábalo é o livro cinco, que
é o tomo analisado para fins de pesquisa. Utilizo também o livro um, em que Herodiano fala
sobre os métodos que aplica para escrever e sobre sua vida, e partes do livro seis, voltado para
o reinado do primo de Heliogábalo, Alexandre Severo, que nos ajuda a lançar luz sobre os
contrapontos da vida dos dois e como Heliogábalo vai ser condenado por meio da damnatio
memoriae.
Lendo a História do Império Romano depois de Marco Aurélio, fica claro que o autor
tem métodos muito específicos. O trabalho dele consiste em enfatizar as inúmeras situações
inconstantes e repentinas que caracterizariam a vida dos imperadores. A obra relaciona o que
aconteceu durante o reinado de vários imperadores, organizando os eventos por governante e
cronologicamente. Herodiano, juntamente com Dião Cássio, Filóstrato, entre outros, estão
entre os principais escritores do século III. Muitos autores dos dias de hoje consideram
História Romana de Dião Cássio como uma das fontes mais completas do período: segundo
Kemezis (2014, p. 24), “Dião é um representante competente da historiografia ortodoxa, e
fornece informação abundante, precisa e perspicaz sobre os imperadores do seu tempo”, sendo
assim, provavelmente, o principal historiador da era dos Severos. Entretanto, nem todos o
consideram a mais confiável das fontes, em virtude do destaque que dá a anedotas, por
exemplo.
Devido a isso, escolhi trabalhar com a obra História do Império Romano depois de
Marco Aurélio de Herodiano, que tem uma escrita menos formal mas, ao mesmo tempo, ele-
15

gante, apresentando também uma perspectiva das reações do povo e “que nunca se distancia
do ambiente imediato do imperador” (KEMEZIS, 2016, p. 364). Além disso, de todos os autores
que retratam Heliogábalo, é o que tem menor foco nos detalhes considerados lascivos.
No final do livro dois, Herodiano afirma que seu objetivo é o relato comedido de um
período que abrange o reinado de muitos imperadores e insiste que se refere a eventos dos quais
ele tem conhecimento pessoal. Ele quer que sua narrativa siga a ordem dos acontecimentos e
seja seletiva. Para tanto, pretende evitar anedotas e bajulações, evidenciando as situações mais
notáveis ou qualquer coisa que seja digna de lembrança ou alusão (HERODIANO, 2.15.7). “Ele
precisa fornecer essas provas de precisão, pois alega que é o rigor de sua narração, juntamente
com a importância dos eventos, que darão prazer ao seu leitor” (SIDEBOTTOM, 1997, p. 237).
Assim Herodiano aponta,
Portanto, registrarei as realizações mais significativas e distintas de
[Septímio] Severo na ordem em que ocorreram, não selecionando as
favoráveis para lisonjeá-lo, como fizeram os escritores de seus dias; por
outro lado, não omitirei nada que valha a pena contar ou que valha a pena
lembrar (HERODIANO, 2.15.7).

Porém, esse trecho apresenta um problema, pois ele afirma que só contará os eventos
que “valha a pena contar ou que valha a pena lembrar”. Ou seja, ele é que julgará quais
realizações devem ser retratadas, o que resulta no fato de que talvez ele tenha omitido algum
acontecimento que julgou não ser significativo, mas que seria importante para entender o
governo, queda ou ascensão de algum imperador. Devemos pensar que como Herodiano é
contemporâneo desses eventos, esses lugares sociais em que o indivíduo está inserido irão
influenciá-lo (CERTEAU, 2000, p. 81).
Mas antes de nos aprofundarmos na forma de sua escrita e possíveis intencionalidades,
devemos saber quem é Herodiano. A vida dele é envolta em mistério: não temos informação
exata acerca da sua data de nascimento, nem de sua morte. Igualmente, não se sabe de onde
ele veio, sua carreira, status social, família ou amigos, a data de escrita de seu livro ou até
mesmo seu nome completo. Tudo o que se tem são dados que emergem a partir do próprio
trabalho dele. As estimativas sugerem que Herodiano teria nascido entre 178-180, com base
em um relato no seu texto em que ele afirma que estava presente nos jogos de Cômodo, que
ocorreram em 192. Considerando que essa observação seja plausível, para estar nos jogos ele
teria que usar a toga virilis18, e assim ter pelo menos 14 anos. Ademais, o autor escreve que

18
A toga virilis era um tipo de toga que, na Roma Antiga, tinha um significado particular, pois vesti-la significava
a passagem da infância para a adolescência. Assim, só poderia ser usada quando o homem atingia a idade de 14
anos.
16

relatará um total de 70 anos da história do Império Romano e que foi contemporâneo de todos
reinados daquele período: “Mas é minha intenção escrever um relato cronológico das façanhas
de muitos imperadores ao longo de um período de setenta anos, façanhas sobre as quais tenho
conhecimento por experiência pessoal” (HERODIANO, 2.15.7).
Apesar de alegar que é contemporâneo de todos os reinados que narra, a obra de
Herodiano apresenta algumas faltas de detalhes ou grande semelhança com o relato de Dião
Cássio. Sendo assim, historiadores consideram que, quando Herodiano escreveu sua obra, ele
já poderia estar mais velho e, logo, em consequência da idade poderia ter se esquecido de alguns
detalhes. Assim, Sidebottom (1997, p. 271) infere que a composição do trabalho teria se dado
sob o reinado de Décio (249-251), ou talvez até um pouco mais tarde, provavelmente em torno
de 260, não mais que isso.
Tal afirmação se dá em razão de acusações que Herodiano faz em sua obra – em que
ele crítica abertamente imperadores que ascendem ao poder através de golpes, que compram
a paz com povos bárbaros, para se elevarem ao poder e/ou que sejam muito jovens –, o que
leva Sidebottom (1997) a determinar que o autor não teria escrito sobre o reinado de Filipe, o
Árabe (244-249) já que não surgem críticas relacionado a ele, sendo que Filipe chegou ao
poder em circunstâncias suspeitas e fez também um acordo de paz com os Persas.
A teoria mais aceita é de que a obra História do Império Romano depois de Marco
Aurélio teria sido escrita durante o reinado de Décio (249-251) ou até um pouco mais tarde;
Mas também é possível que ele tenha escrito sua obra durante o reinado de Galieno (260-268),
já que “a discussão de Herodiano sobre o uso de crianças como reféns pode ter tido uma
ressonância contemporânea após o assassinato de Salonino 19 em 260” (SIDEBOTTOM, 1997,
p. 276). Entretanto, para o autor, Herodiano não poderia ter escrito depois de 268:

Uma data de composição após 268 parece altamente improvável, dada a


atitude de Herodiano em relação aos panonianos, pois o império era
governado por panonianos (com os possíveis breves intervalos de Tácito e
Floriano, e Caro e seus filhos) pelo resto do século (SIDEBOTTOM, 1997,
p. 276).

Mas Sidebottom (1997, p. 276) considera ainda uma terceira possibilidade, a de que
Herodiano poderia ter mentido sobre ser contemporâneo de toda a história que narra:
Como parece que Herodiano estava dizendo menos do que a verdade quando
afirmou ser contemporâneo de toda a história que cobriu, devemos enfrentar

19
Júlio Cornelio Salonino Licínio Valeriano foi imperador do Império Romano juntamente com os imperadores
Valeriano e Galiano, seu avô e seu pai. Salonino foi assassinado por um general do exército chamado Póstumo.
17

a pergunta “quanto menos do que a verdade ele estava dizendo?”. Se a


resposta é que ele estava dizendo muito menos que a verdade e produziu sua
História no meio do chamado “túnel escuro” do terceiro século, o reinado
de Galieno, implicações profundas para as percepções contemporâneas, até
mesmo a existência, da suposta “crise total” da época (SIDEBOTTOM,
1997, p. 276).

Infelizmente, não temos como provar nenhuma dessas hipóteses, devido a sua
narrativa evasiva. Entretanto, isso traz uma perspectiva interessante sobre a escrita do autor:
dessa forma ele não procura reconhecimento por sua escrita, mas sim tenta focar a atenção
unicamente no relato que faz do período. Independente do momento exato em que a narrativa
foi elaborada, ela se insere em um contexto de crise política e militar que caracteriza o Império
romano em meados do século III.
O mistério é o que torna parte da sua escrita interessante, segundo Kemezis (2014, p.
308), “do ponto de vista literário é seu anonimato acima de tudo que define sua persona autoral”.
Ou seja, como Herodiano não tenta promover sua obra através de sua vida, como acontece com
outros autores como Dião Cássio, o mistério, querendo ou não, se torna um atrativo e nos diz
muito sobre Herodiano, fazendo com que ele preze para que sua obra se destaque pela sua
escrita e não pela pessoa que ele era. Dessa forma,
Isso não é simplesmente falta de recursos técnicos ou imaginação. Para
Herodiano, a evasão é um objeto em si, assim como para Dião e Filóstrato,
uma forte personalidade narrativa era essencial para suas estratégias
argumentativas (KEMEZIS, 2014, p. 261).

Essa evasividade dá uma certa vantagem a Herodiano: como ele não constrói uma
história para si mesmo, permite que ele conte histórias que outros autores como Dião Cássio
não poderiam contar por causa de suas especificidades. Por exemplo, sabemos que Dião foi
um senador; logo, quando lemos sua obra esperamos que ele fale sobre o que acontecia no
Senado. Também sabemos que “ele é excluído da esfera privada dos imperadores e que tudo
o que ele nos diz sobre acontecimentos dessa esfera é boato” (KEMEZIS, 2014, p. 262). Por
sua vez, “Herodiano chega mesmo a admitir em alguns momentos que desconhece certas
informações capazes de dotar um acontecimento narrado de uma veracidade indubitável”
(GONÇALVES, 1995a, p. 44,). Em contraposição, toda vez que Herodiano relata pensamentos
privados se ignora as limitações hierárquicas de cargos. Conforme Kemezis,
Os leitores céticos podem suspeitar que Herodiano não possa saber dessas
coisas, mas ele não lhes dá como confirmar essas suspeitas interrogando o
narrador. Mais importante, ele permite, de fato, convida leitores não-céticos
a ignorar completamente as perguntas informativas (KEMEZIS, 2014, p.
262).
18

Só temos ideia de quem Herodiano é como narrador ao analisar, justamente, a sua obra.
Como já foi dito acima, ele não será favorável aos acordos de paz com os povos bárbaros e
também sempre será muito crítico em relação aos jovens imperadores, pois considera que eles
são muito imaturos para governar um império. São esses lapsos de subjetividade em sua obra
que indicam como Herodiano pensa e narra os fatos. Como aponta Ginzburg (1989, p. 150-
151), os resíduos discursivos do indivíduo fornecem uma chave interpretativa que ajuda a
desvendar intenções onde antes parecia algo sem importância ou corriqueiro. Neste sentido,
ele acha que é bom para os imperadores serem corajosos e ruins para os
soldados serem gananciosos; é provável que poucos de seu público tenham
discordado. Ele acredita que é melhor para os imperadores serem educados
do que não, mas tem pouco a dizer sobre o que eles devem aprender ou sobre
como isso os ajuda a enfrentar os problemas da época (KEMEZIS, 2014, p.
270).

Sobre sua posição social, existem duas teorias que são fortemente difundidas: uma
delas considera que Herodiano seria um liberto imperial e a outra que ele seria um funcionário
público. A primeira teoria pode ser refutável, já que seria quase impossível que um escravo
liberto ascendesse a um cargo público “por mérito próprio” e ainda que soubesse ler e escrever
em grego, linguagem essa que era utilizada somente pelos intelectuais e aristocratas. Além
disso, Herodiano também critica os imperadores que elevam seus libertos a cargos importantes
(HERODIANO, 1,12,3; 5,7,7). Levando em conta o público que a História de Herodiano
atinge, faz mais sentido ele ter sido um funcionário público. Ademais, no livro afirma ter
conhecimento pessoal dos eventos relatados (HERODIANO, 2,15,7). O mesmo se vê no
seguinte trecho: “Eu escrevi uma história sobre os eventos após a morte de Marco que eu vi e
ouvi toda a minha vida. E em alguns deles eu participei diretamente em minhas posições de
serviço imperial e público” (HERODIANO, 1,2,5).
Sobre sua origem, há algumas hipóteses, entre elas a de que Herodiano seria natural
da Síria, por causa do vasto conhecimento que tem das outras regiões do Império e do destaque
que dá à região da Antioquia, conhecimento que pode ser justificável se ele fosse um procurador
equestre, como aponta Semíramis Corsi Silva (2018, p. 170). Igualmente, como aponta Ana
Teresa Marques Gonçalves (1995b, p. 19), Herodiano se preocupa em descrever os cenários
naturais como se esses elementos ambientais pudessem interferir diretamente nas ações
humanas. Além de que, na História do Império Romano após Marco Aurélio as características
do culto de Heliogábalo serão usadas para “sublinhar a natureza “oriental” do imperador”
(ICKS, 2012, p. 138). Logo, se Herodiano fosse mesmo sírio, é de se presumir que essas
características não seriam apontadas como orientais e estrangeiras, mas sim como algo natural.
19

Por fim, outro argumento contra sua origem síria é baseado nos erros que ele comete e na
ignorância de certas questões sobre as quais um sírio deveria estar bem informado (GASCÓ,
2010, p. 168). Com isso, pode-se dizer que:
A polarização entre o greco-romano e o “oriental’ está, portanto, certamente
presente no trabalho de Dião, embora seja mais explícito e importante na obra
de Herodiano. Este último, argumenta Sommer, pode ter sido um grego
vivendo na Síria, caso em que ele provavelmente se distinguiu da população
nativa ao definir os sírios como não-gregos (SOMMER apud ICKS, 2012,
p. 145).

Porém, a hipótese mais aceita é de que Herodiano seria grego, seu nome é derivado
de Herodes, palavra de raiz helênica. Além disso, sua História foi escrita originalmente em
grego e voltada para um público helênico. Algumas passagens do seu livro confirmam isso:
“Os Alpes, alta cordilheira, inigualável em nossa parte do mundo” (HERODIANO, 2,11,8).
Para se referir ao imperador, usa o termo em grego basileu, enquanto Dião Cássio usa termos
como autokrátor. A partir desses apontamentos, supõe-se que Herodiano teria nascido de uma
província de fala grega, mas não temos provas concretas disso.
Além dos termos que Herodiano usa que são um indicativo de sua origem, existe outro
ponto que pode confirmar essa hipótese: a sua forma de escrita. Como bem indica Ana Teresa
Marques Gonçalves:
O autor coloca-se, assim, ao menos a nível do discurso, ao lado de uma
tradição historiográfica que remonta aos gregos, na qual busca-se os fatos
verdadeiros mediante a feitura de uma investigação criteriosa do que será
relatado (GONÇALVES, 1995a, p. 38).

Dessa forma, seu estilo literário diz muito sobre suas influencias gregas, devido ao fato
de que sua escrita apresenta muitos pontos que são retirados de ensinamentos gregos, tais como:
enfatizar os fatos narrados e não aquele que o relata; a História, para Herodiano, não é o
relatode todos os fatos ocorridos, mas sim a narração do que é considerado importante e digno
de glória pelo narrador; mais importante que datá-los é inseri-los numa sucessão lógica e
cronológica; os fatos narrados devem transmitir uma mensagem verdadeira sobre o passado e
não de modo a adular ou criticar imperadores e outros agentes (GONÇALVES, 1995, p. 39).
“Minha intenção é relatar o que ocorreu em cada caso, ordenando os fatos cronologicamente
e por reinados” (HERODIANO, 1,1,6).
Partimos agora para uma análise aprofundada da escrita de Herodiano, que mantém
alguma relação com o movimento da “segunda sofística”. A “segunda sofística” foi um
movimento literário que influenciou muitos escritores durante o século II e III. Esse movimento
é caracterizado pelo aticismo, o purismo lexical, a sintática e a eloquência. Sua origem se deu
20

na parte oriental do Império – o que pode ser mais um indicativo da origem de Herodiano, pois
como ele também pode ter crescido nessa região, seria muito possível que seu contato com
a segunda sofística se origine ali – que desfrutou de um importante esplendor econômico e
alto desenvolvimento intelectual (ESTELLER, 2013, p. 60).
A segunda sofística teve tanta influência como manifestação literária, que os
imperadores do final do primeiro século para o segundo utilizaram esse movimento para
difundir a cultura romana entre os habitantes dos novos territórios conquistados. “Dessa
maneira, esses professores de eloquência tornaram-se grandes colaboradores da autoridade,
não como homens políticos, mas como homens da cultura, da palavra” (SIRAGO apud
ESTELLER, 2013, p. 61). Portanto,
Os homens que incorporavam essas novas atitudes na literatura eram
geralmente membros das famílias mais ricas e influentes da aristocracia, que
exibiam suas habilidades perante o público nas grandes cidades (BOWIE
apud ESTELLER, 2013, p. 61).

Essa citação contém um indicativo que provavelmente não tenha se levado muito em
conta. Como havia discutido anteriormente, alguns autores contemporâneos consideram que
talvez Herodiano possa ter sido um escravo liberto, mas quem sabe possa ser que ele tenha
vindo de uma família rica de alguma província grega na parte oriental do império. Como Bowie
(apud ESTELLER, 2013, p. 61) coloca, só os homens das famílias mais ricas e influentes da
aristocracia incorporavam essa corrente na literatura; logo, pode ser que Herodiano tenha tido
seu contato com a sofística por ter pertencido a alguma família aristocrática.
Através da escrita de Herodiano, consegue-se perceber inclusive quais escritores da
segunda sofística mais o influenciaram, caso de Luciano de Samósata com a obra Como a
História deve ser escrita e também Filóstrato. O objetivo da obra de Luciano é determinar
regras para caracterizar a boa escrita histórica, dentre as quais algumas que Herodiano segue:
- Que a guerra é o assunto mais digno de ser historiada.
- Que a história deve ser útil, verdadeira e com uma ordem cronológica
dos fatos que vale a pena mencionar.
- Que o historiador deve ser inteligente, conhecedor dos fatos em primeira
mão. Sem ser tentado por desejos pessoais, a busca por elogios, aplausos.
- Que seu trabalho deve ser imperecível (ESTELLER, 2013, p. 62).

Ana Teresa Marques Gonçalves ainda reforça:


O que Herodiano teria retirado dos ensinamentos gregos? 1° Enfatizar os
fatos narrados e não aquele que relata; Seu nome não aparece em nenhum
momento na narrativa. Só junto ao título, responsabilizando-se pelo que está
escrito. Entretanto dá opiniões morais e mostra os procedimentos de sua
investigação. 2° A História, para Herodiano, não é o relato de todos os fatos
ocorridos, mas sim a narração do que é considerado importante e digno de
21

glória pelo narrador; Herodiano preocupa-se mais em fornecer elementos


para a reflexão política e sobre as questões relacionadas ao poder, do que
especificar indubitavelmente o momento em que os fatos ocorreram.
Preocupa-se em fornecer elementos para reflexão: costumes, perfis de
agentes históricos, conjurações de corte e tudo o mais que possa dar
inteligibilidade ao relato e nos quais a natureza humana seja transformada
em exemplo para as gerações vindouras. 3° Mais importante que datá-los é
inseri-lo numa cadeia casual; A sucessão lógica e cronológica dos fatos
fundamenta a inteligibilidade, ou seja, o que ocorreu antes explica o que
houve depois, do mesmo modo que o futuro confirma as previsões e os atos
do passado e do presente. 4° Os fatos devem transmitir uma mensagem
verdadeira sobre o passado e não de modo a adular ou criticar imperadores
e outros agentes (GONÇALVES, 1995a, p. 39-40).

A influência do trabalho de Filóstrato em Herodiano se dará pelo juízo de como deve


ser a melhor forma de governo e quais características definirão como um bom imperador
deveria ser. “Características que destacam o autocontrole, qualidade moral que limita o poder
do imperador” (ESTELLER, 2013, p. 61). Logo, em sua obra Herodiano irá comparar todo
imperador com aquele que ele considerou o modelo do bom governante: Marco Aurélio. “Ele
julga cada imperador de acordo com seu modo de agir em relação ao Senado, ao Exército e
ao Povo em comparação com o trabalho atribuído a Marco Aurélio” (ESTELLER, 2016, p.
109).
Apesar disso, uma das críticas dos autores modernos sobre o trabalho de Herodiano
é de que sua obra tem problemas no que se refere à questão da veracidade e que seria uma
“cópia” da de Dião Cássio. Já naquele período em que ambos escrevem, a veracidade era algo
de extrema importância; entretanto, o rigor no ato de comprovar a autenticidade dos fatos
relatados era diferente. Para o homem antigo, “o ver e ouvir eram critérios incontestáveis de
veracidade” (GONÇALVES, 1995a, p. 42). Por isso é muito comum que escritores como
Herodiano e Dião digam que suas obras relatam a verdade por conta de sua
contemporaneidade com os eventos, ou seja, “por sua condição de testemunhas qualificadas”
(GASCÓ, 1984, p. 355). Nesse sentido,
Em outros autores, isso pode não ser decisivo, mas Herodiano se declara
testemunha dos acontecimentos históricos que narra e por isso é essencial
tentar encontrar ou conhecer a perspectiva a partir da qual ele contempla
esses acontecimentos vividos, para melhor medir sua dimensão autêntica
(COBOS DÁVILLA, 1995, p. 635).

Como já dito acima, Herodiano afirma que é contemporâneo de todos os imperadores


sobre os quais escreve e que relatará esses 70 anos de história a partir de sua memória do que
viu e ouviu (HERODIANO, 1,1,3). Memória tal qual não deve ser aceita sem questionamentos,
pois como ele escreve seu livro em uma idade mais avançada, sua memória já não estaria mais
22

tão clara. Não podemos ignorar, como explora Paul Ricoeur (2007, p. 427), o fato de o
esquecimento ser parte integrante do processo memorialístico, configurando uma ameaça à
fenomenologia da memória e à epistemologia da história. Igualmente, há indícios no trabalho
de Herodiano que sugere que ele utilizou outras fontes.
Uma das mais claras coincidências diz respeito à História de Roma de Dião Cássio,
mas isso não é surpresa, já que o próprio Herodiano afirma ter se inspirado na história de Dião
para escrever os primeiros 3 livros de sua obra. Porém, ele alega que, tendo em vista que não
tinha o livro em mãos, ele escreve sobre o que havia lido antes (HERODIANO, 1,1,3). Mas
as coincidências não tem como ser evitadas, já que os dois escrevem sobre os mesmos
imperadores e temas. As discrepâncias entre os autores irão crescer a partir da narrativa sobre
a morte de Macrino: segundo Gascó (1984, p. 359), há pontos “na narração sobre Heliogábalo
com os quais a História de Herodiano é melhor informada que a de Dião Cássio”. Assim,
A coincidência, portanto, entre Herodiano e Dião reside no fato de que ambos
os autores estão bem informados sobre o tempo de Cômodo, dos Severos e
Macrino, pelo menos entre os escritos que chegaram. Sim, parece provável
que Herodiano leu Dião, e que ambos tinham em comum serem testemunhas
oculares dos acontecimentos e que também conheciam e liam a literatura
histórica de sua época, ambas escritas em grego e latim (COBOS
DÁVILLA, 1995, p. 644).

Inclusive, para os autores modernos, Dião está muito mais para um historiador do
que Herodiano, pois para eles sua história oferece maior valor histórico, enquanto Herodiano
oferece maior interesse no efeito dramático da narrativa do que na verdade histórica. Diante
disso,
Ao contrário de Dião e Filóstrato, a narrativa de Herodiano não é uma
tentativa de aumentar a importância do mundo fora do texto do autor e de
pessoas como ele. É, no entanto, um poderoso ato de narração em si, e se
Herodiano está afirmando seu significado em qualquer lugar, ele está no
papel de contador de histórias (KEMEZIS, 2014, p. 271).

Diante disso, concluo que as discrepâncias entre o trabalho de Herodiano e Dião Cássio
pesem mais que as coincidências. Dessa forma, não devemos considerar que a História do
Império Romano depois de Marco Aurélio seja uma cópia da História de Roma, mas também
não se pode negar que Herodiano bebe da fonte de Dião Cássio. Portanto, quando falamos da
obra desse autor, antes de levarmos em conta as críticas feitas pela historiografia moderna sobre
a falta de dados biográficos, estilo de escrita, vocabulário e mesmo acerca da veracidade sobre
as fontes utilizadas, devemos avaliar sua escrita através, por exemplo, das relações com o
movimento da segunda sofística e que, outros autores seguem as mesmas regras de escrita, tal
23

qual incluímos Luciano de Samósata e Filóstrato nesse grupo.


Para finalizar o presente capítulo, vale caracterizar o período em que ele vive; para
isso falarei sobre a crise do século III d.C. Géza Alföldy (apud DÁVILLA, 1995, p. 647) aponta
que os escritores desse período têm consciência da crise do Império, que geralmente atribuem
essa situação a mudanças do Principado em favor do Dominato, à instabilidade do Estado,
ao crescente poder do exército e ao predomínio religioso, bem como às circunstâncias sociais
e às invasões bárbaras. Porém, “apesar de citar Herodiano, (Alföldy) não faz uma análise
exaustiva do modo como nosso autor considera esse momento de crise” (COBOS DÁVILLA,
1995, p. 647). Então, tentarei aqui esboçar melhor como Herodiano vê e considera esse
momento de crise do Império Romano.
A chamada crise do século III é um período que, no entender de parte da historiografia
moderna, contempla basicamente cinquenta anos da história do Império Romano, do ano de
235 com a morte de Severo Alexandre até 284, com a ascensão de Diocleciano ao poder
imperial. Porém, Herodiano aponta que essa crise tem início no momento da morte de Marco
Aurélio, como se nota a partir da seguinte afirmação: “Este império foi governado com
dignidade até o tempo de Marco e foi considerado com respeito. Quando ele caiu nas mãos de
Cômodo, os erros começaram” (HERODIANO, 2,10,3). Logo, para o autor o momento em que
o Império cai nas mãos de um jovem inexperiente e imaturo, temos o início de um período de
crise. Herodiano acredita verdadeiramente que a morte de Marco Aurélio traz o fim da pax
romana e dos tempos áureos do Império Romano.
Segundo Gascó (2010, p. 171), foram eventos como assassinatos, motins, usurpações
e guerras civis que causaram a consciência de crise nos autores contemporâneos. Entretanto,
foram esses mesmos acontecimentos que despertaram o interesse para se escrever de um ponto
de vista historiográfico. Isso se deve ao fato de que não havia muito sobre o que se escrever
durante os momentos de paz, e como a segunda sofística bem coloca, o momento mais digno
de ser historiado são os momentos de guerra. Nestes termos,
É a crise após o advento do Comôdo que concede novamente e por um tempo
a grandeza perdida desde os tempos republicanos para a história de Roma
como um objeto narrativo. Desta forma, esta concepção do que foi mais digno
de ser historiado que produziu em épocas imperiais a ideia de que a pax
romana era um assunto ruim, faz com que a crise iniciada no final do século
II, seja percebida na história de Roma como um tema historiograficamente
adequado (GASCÓ, 2010, p. 171).

A crise do século III também foi marcada por fortes tensões sociais. Por exemplo,
Herodiano relata verdadeiras batalhas entre a população e as tropas pretorianas a partir de 190
24

(reinado de Cômodo), porém Dião Cássio relata também essas disputas, mas “reduz
consideravelmente o problema” (ESPINOSA RUIZ, 1984, p. 123). Segundo Espinosa Ruiz
(1984, p. 123), Herodiano exagera nesse e em outros relatos, pois tem em mente as grandes
lutas posteriores, como constantes invasões das fronteiras e disputas entre o exército e o povo.
Penso que Herodiano excede na sua perspectiva da crise devido a um fator de narrativa, de
que seria algo muito mais interessante para se relatar e também, como uma culpabilização
pela má governabilidade dos jovens imperadores que irão reinar após Marco Aurélio, casos de
Cômodo e do próprio Heliogábalo.
Deve-se levar em conta que Herodiano escreve em meados do século III
(provavelmente entre 259-260), período em que a “violência se tornou instrumento de estado”
(ANDO, 2012, p. 11) e que certas disputas de legitimidade eram resolvidas com violência, que
causavam “perda de vidas, e destruição de propriedade, e perturbação agrícola” (ANDO, 2012,
p. 3). Fora que o exército estava enfraquecido pelas constantes guerras com inimigos do Império
Romano que tentavam invadir as fronteiras (ANDO, 2012, p. 1-3). Sendo assim, o exagero de
Herodiano em descrever essas tensões sociais desde 190 é, também, um reflexo do momento
em que ele escreve.
25

CAPÍTULO 2: HERODIANO E O REINADO DO IMPERADOR HELIOGÁBALO

Heliogábalo foi um “imperador criança”, que governou Roma dos 14 até seus 18
anos (218-222 d.C). Nasceu em 204 como o nome de Vário Avito Bassiano, fazia parte da
dinastia romano-siríaca21 dos Severos e que foi criado na província da Síria até se tornar
imperador romano. Para elevar Heliogábalo a imperador, era necessário o legitimar como
sucessor do império, para isso, sua avó Júlia Mesa inicia um boato de que o garoto era na
verdade filho ilegítimo de Caracala, por meio de uma relação adúltera e incestuosa entre ele e
sua prima Júlia Soêmia. Os soldados ligados a Júlia Mesa aclamam Avito Bassiano como
imperador em 218 e, para reforçar sua legitimidade, o jovem passou a se chamar Marcus
Aurelius Antoninus, que era o nome do próprio Caracala. Paul Veyne (2009, p. 2-3) explica
como ocorrem essas transmissões de cargo, que o imperador poderia escolher tanto um filho
legítimo quanto um adotivo para o suceder, mas que também se dependia do apoio das legiões,
do povo e do Senado para que sua reinvindicação fosse efetiva. Sendo assim,
Em Roma, não é como membro de uma família que se destacava entre iguais
que um príncipe legava a púrpura seu filho, mas como membro de um clã,
de uma gens, apoiado por aliados como a guarda imperial ou das legiões
responsáveis por colocar no poder o imperador e seu clã. A cada imperador
destronado, entra em cena uma nova gens com o novo príncipe, que
transmitirá o poder a um de seus descendentes, seja ele natural ou adotivo.
A diferença entre as duas concepções é simples: suceder ao pai era menos
um direito que um fato natural, que não deixava de ser ratificado pelo
consenso — ou seja, pelos intérpretes desse consenso: o povo de Roma em
seus comícios, o Senado e o exército (VEYNE, 2009, p. 3).

As atitudes de Heliogábalo durante seu governo vão enfurecer os soldados da guarda


pretoriana. Percebendo que a popularidade de seu neto caia exponencialmente, Júlia Mesa
volta-se para seu outro neto, Alexandre Severo, pois via nele o sujeito ideal para se tornar um
imperator. Convence então Heliogábalo a nomear seu primo como seu herdeiro: a Alexandre
foi concedido o título de César e partilhou o consulado com o imperador no ano de 221.
Contudo, Heliogábalo reconsiderou isto quando começou a suspeitar que a guarda pretoriana
favorecia o seu primo acima de si. Depois de falhados os vários atentados à vida de Alexandre,
Heliogábalo despiu o seu primo dos seus títulos, o retirou do consulado e circulou a notícia de
que Alexandre estava perto da morte para ver a reação dos pretorianos. Um motim foi o
resultado, e a guarda exigiu ver Heliogábalo e Alexandre no acampamento pretoriano.

21
Vide Kemezis (2014, p. 272).
26

O imperador obedeceu e em março de 222 apresentou o seu primo, com a sua mãe
Júlia Soêmia. Ao chegarem ao campo pretoriano, os soldados aclamaram Alexandre,
ignorando Heliogábalo, que ordenou a prisão e execução de todos os que tinham tomado parte
nesta ação contra ele. Em reposta, os pretorianos atacaram Heliogábalo e a sua mãe. Seus
corpos foram arrastados pela cidade e depois jogados no rio Tibre.
Tradicionalmente, a figura de Heliogábalo é apresentada pelos escritores antigos
como um bárbaro cruel, sem limites, desvirtuado por sua religião, o culto sírio do deus Sol
Invictus Elagabal, que incentivaria suas excentricidades sexuais e feminilidade. Nesse
capítulo, discutiremos o porquê de Heliogábalo ser representado de forma negativa por
Herodiano e porquê sua memória é associada à dos “maus príncipes”. Apesar de Heliogábalo
ter governado o Império Romano somente por quatro anos, foi o suficiente para que sua
imagem caísse em desgraça. Sua vida é lembrada pelos textos antigos com destaque pelos seus
eventuais crimes à moral romana e seus desvirtuamentos sexuais. Aponta Silva nesse sentido,
De maneira geral, os autores greco-romanos dos textos sobre Heliogábalo
que chegaram até nossos dias desenvolveram suas críticas apoiados em
elementos de seu governo e práticas político-religiosas ligadas à sua
identidade cultural considerada bárbara e elementos e imagens ligados às
representações de gênero e usos dos prazeres sobre o imperador. Sobre estes
últimos elementos, os textos irão frisar uma imagem de Heliogábalo
considerado feminino e seu comportamento sexual e amoroso mais
semelhante ao que era considerado próprio de mulheres naquele contexto: a
submissão, o descontrole e o excesso (SILVA, 2017, p. 115).

Em conformidade com outras obras antigas, Herodiano também faz apontamentos


sobre suas práticas religiosas bárbaras e seu comportamento sexual do governante, mas de
forma muito menos escandalosa e depravante que outros autores. Por exemplo, Dião Cássio
escreve que Heliogábalo “matava crianças e usava encantamentos” e que “jogava genitais
humanos para animais em prática de ritos profanos” (DIÃO CÁSSIO, 80,11,2), enquanto
Herodiano escolhe somente relatar que Heliogábalo fazia rituais de sacrifícios de animais: “as
especiarias e as entranhas dos animais sacrificiais não eram carregadas por criados ou homens
de nascimento baixo” (HERODIANO, 5,5,9). Logo, para entendermos o porquê dessas
transgressões de Heliogábalo serem abordadas tão extensamente, retomamos novamente as
considerações feitas por Aloys Winterling (2012) para melhor compreensão sobre a forma
que a fontes antigas abordam as figuras desses “maus imperadores”, apontando que os
principais traços atribuídos a eles são as características depravantes, comportamentos
anormais, escândalos sexuais, etc.:
As fontes citam como características comuns orgulho, ódio e perseguição da
aristocracia senatorial, luxo e prodigalidade, crueldade e perversão sexual,
27

megalomania e, ainda [...] sinais de doença mental. [...] Após suas mortes,
foram apagados da memória pública pelo Senado pela damnatio memoriae,
e seus atos, postumamente declarados inválidos (WINTERLING, 2012, p.
5).

As fontes que relatam a vida desses imperadores considerados “loucos” atribuem


muitas vezes só características degeneradoras, o que as torna pouco confiáveis no que se refere
à facticidade histórica. O que não acontece com Herodiano, já que por exemplo: quando ele fala
sobre as roupas de Heliogábalo, em quanto outros autores consideram femininas pelo luxo
dos tecidos e das joias, o autor julga como sendo algo da cultura e natural do ofício religioso
ao qual Heliogábalo havia sido inserido desde muito cedo (HERODIANO, 5,5,4); igualmente,
Herodiano não relata o acontecimento 22 de que o jovem imperador teria se casado com uma
vestal por puro desrespeito a tradição romana, como acontece em outras obras, mas sim como
uma “falha masculina – uma paixão avassaladora pela donzela” (HERODIANO, 5.6.2). Icks
(2010, p. 337) complementa afirmando que isso possa ser uma “tentativa de forjar um vínculo
pessoal e estreito entre o culto de Elagabal e a religião tradicional do estado romano”. Ou seja,
Herodiano não procura focar seu relato em evidenciar os escândalos sexuais e degradante sobre
Heliogábalo.
Logo, o relato de Herodiano sobre Heliogábalo é diferente do que se nota em outras
fontes: de fato, “o historiador apresenta Heliogábalo como um "oriental" cuja estranha religião
e gostos luxuosos contrastam com valores e tradições romanas” (ICKS, 2010, p. 336), mas não
como razão para suas transgressões. Para Herodiano, mais do que tudo o jovem imperador
queria apresentar seu deus aos romanos, sendo assim, os rituais e escolhas de roupas e, alguns
costumes são tidos por naturais para Heliogábalo, pois tudo o que conhecia eram essas práticas,
sem que ele tivesse a intenção explícita de ofender os romanos. Seja como for, de todos os seus
atos, com certeza o que causou mais tensão foram suas reformas religiosas.
As reformas religiosas de Heliogábalo são difíceis de explicar. Embora o
imperador tivesse chegado ao poder como o filho de Caracala, ele escolheu
um caminho muito diferente daquele de seu suposto pai. Os atos de
Heliogábalo como sumo sacerdote de Elagabal certamente não estavam de
acordo com o papel que tradicionalmente se esperava que um imperador
desempenhasse, ou seja, o de um príncipe benigno e amável que sustentava
as tradições romanas (ICKS, 2010, p. 338).

22
Dião Cássio descreve esse acontecimento de forma extremamente negativa: “Mais tarde, ele se divorciou de
Paula, com base em que ela tinha alguma mancha no corpo, e ele coabitou com Aquilia Severa, violando
flagrantemente dessa maneira a lei; pois ela foi consagrada a Vesta e, ainda assim, ele a desonrou. Dessa forma,
ele se orgulhava de um ato pelo qual deveria ter sido açoitado no Fórum, jogado na prisão e depois condenado
à morte” (DIÃO CÁSSIO, 80, 9, 3-4).
28

Heliogábalo ser retratado como exótico muito advém das características do seu culto
ao deus Elagabal, ritos do qual Herodiano descreve como sendo “exótico e orgiástico”
(HERODIANO, 5,5,4). Outro fato que destaca tais caráteres é que o deus seria adorado na
forma de uma pedra negra fálica, que foi protagonista de uma procissão de um templo (templo
dedicado a Júpiter no monte Palatino) a outro (é possível que se tratasse do Elgabalium, templo
que Herodiano, Dião Cássio e a História Augusta mencionam como sendo em homenagem a
Elagabal, que Heliogábalo teria mandado ser construído, mas que foi destruído posteriormente
e sua localização exata perdida). Tal edifício havia sido construído no subúrbio, era “muito
grande e magnífico, para o qual todos os anos, no meio do verão, ele trazia seu deus”
(HERODIANO, 5, 6, 6). De acordo com Herodiano:
Ele colocou o deus do sol em uma carruagem adornada com ouro e joias e o
trouxe da cidade para os subúrbios. Uma carruagem de seis cavalos
carregava o deus do sol, os cavalos enormes e perfeitamente brancos, com
acessórios de ouro caros e ornamentos ricos. Ninguém segurava as rédeas e
ninguém andava na carruagem; o veículo foi escoltado como se o próprio
deus do sol fosse o cocheiro. Heliogábalo correu para trás na frente da
carruagem, encarando o deus e segurando as rédeas dos cavalos. Ele fez toda
a jornada dessa maneira inversa, olhando para o rosto de seu deus. Como ele
não conseguia ver para onde estava indo, sua rota foi pavimentada com pó
de ouro para impedi-lo de tropeçar e cair, e guarda-costas o apoiaram de
cada lado para protegê-lo de ferimentos. As pessoas corriam paralelas a ele,
carregando tochas e jogando guirlandas e flores. As estátuas de todos os
deuses, as ofertas caras ou sagradas nos templos, os ornamentos imperiais e
as valiosas relíquias foram levadas pela cavalaria e por toda a Guarda
Pretoriana em homenagem ao deus do sol (HERODIANO, 5, 6, 6-8).

Essa “jornada ritualística” da pedra foi celebrada por Heliogábalo como se fosse um
triunfo militar (ICKS, 2012, p. 144). Herodiano dá um sentido de “ressignificação” para essa
cerimonia, pois era uma celebração ligada a religião tradicional romana e não a uma religião
de origem estrangeira. Isso pode ser observado na medida em que, de acordo com o relato, ele
teria exigido que a cavalaria e a guarda pretoriana, assim como membros importantes do
Senado estivessem presentes em todo ritual em homenagem ao deus Elagabal, além de
participarem ativamente do culto (HERODIANO, 5, 5, 9-10). Winterling (2012, p. 20) discute
que muitos dos imperadores que serão considerados loucos, assim como Heliogábalo, tentaram
de variadas formas se aproximarem da aristocracia senatorial, pois tinham a noção de que sem
o apoio deles seria muito mais difícil manter a ordem social. Logo, essa parece uma tentativa
de Heliogábalo se unir a ordem senatorial, permitindo que eles participem do que o jovem
imperador considerava como uma das mais altas honras que ele poderia conceder, que era de
atuar durante as cerimonias em homenagem a Elagabal. Mas nem toda a aristocracia via isso
29

como uma honra social, isso pois, não os agradava fazer honras a um deus estrangeiro ao invés
de Júpiter, o que vai acabar sendo um dos motivos de insatisfação por parte do Senado em
relação a Heliogábalo. “Os senadores só conseguiam ter acesso ao imperador durante esses
cultos, pois ele se cercava de pessoas que compartilhavam de seus costumes” (GONÇALVES,
1998/1999, p. 151).
Também se faz necessário perceber esse culto ritualístico como formador de
identidades que se constituem dentro da sociedade romana do século III d.C. e, portando sinais
que demonstram as dimensões dos papéis sociais de cada sujeito político: a plebe romana, o
próprio imperador, o exército e o Senado. O exército e os senadores são encarregados de
carregar os vasos de ouro com as oferendas ao deus sol, as especiarias e entranhas de animais
sacrificados, o que dentro do ritual seria um posto de grande honra (HERODIANO, 5,5,9-10),
ficando atrás somente do papel do sacerdote, que cabia ao imperador. Já a plebe, era responsável
pela preparação do ritual e por assisti-lo. É interessante perceber que, através de atitudes como
essa, Heliogábalo ainda procura manter a hierarquia social, não tenta quebrá-la ou
intencionalmente desrespeitá-la. Cada um possui seu papel e seu espaço específico (SOUZA,
2010/2011, p. 8) e, sendo assim:
[...] é importante percebermos que tanto nos relatos de Herodiano quanto no
de Dion Cássio o que se evidencia é a unidade construída nestas festas, sem,
no entanto, significar homogeneidade identitária, pois os papéis
desempenhados por cada um dos participantes seguem distintamente
apresentados. [...] Nossos resultados mostraram como a plebe romana, [...]
o senado, o Imperador e o exército desempenhavam papéis sociais nestas
festividades, afirmando para si e para os outros atores sociais, em um jogo
de exclusão/inclusão, a afirmação e, portanto, a formação de suas
identidades (SOUZA, 2010/2011, p. 8).

A plebe romana é um sujeito político de extrema importância, nesse contexto a autora


Ana Teresa Marques Gonçalves estabelece como sendo “um grupo extremamente
heterogêneo” (2000, p. 135), isso pois quase sempre agia coletivamente. Durante o reinado de
Heliogábalo a plebe será favorável ao imperador, em razão de que ele se cercava de pessoas
comuns, sem nascimento nobre, o que irritava os aristocratas, que esperavam que o imperador
tivesse próximo de si pessoas com nascimento nobre e senadores, para garantir a aliança com o
Senado, e ele constantemente oferecia benesses, o que agrava e muito o povo.
No entanto, pela própria releitura atenta da obra de Herodiano vemos que
ela reagia às ações imperiais, apoiando ou se opondo aos imperadores, que
buscavam conquistá-la através da distribuição de bens e de dinheiro e do
oferecimento de jogos. Assim, o imperador assumia a função de patrono,
trocando benesses econômicas por apoio político (GONÇALVES, 2000, p.
137).
30

Herodiano descreve uma dessas distribuições de benesses por parte de Heliogábalo,


mas o episódio acaba em tragédia, onde no tumulto para pegar os presentes que o imperador
jogava de cima de uma torre, “muitos perderam a vida na disputa que se seguiu, empalados
nas lanças dos soldados ou pisoteados até a morte” (HERODIANO, 5,69-10). Vale destacar
que Dião Cássio e a História Augusta descrevem como sendo um ato proposital e cruel de
Heliogábalo, enquanto Herodiano considera como sendo uma fatalidade. A plebe romana
pouco se oporá ao jovem imperador. Haverá revoltas das populações provinciais, uma em
especifico que Herodiano destaca, onde algumas províncias que teriam ficado insatisfeitas
quando Heliogábalo nomeou escravos libertos para governarem algumas delas
(HERODIANO, 5,7,7) e, portanto, levando-as a conspirar com o Senado e o exército contra
Heliogábalo.
Há outras reformas que foram implementadas que acabaram por ofender a tradição
romana. Entre elas, está o casamento que Heliogábalo irá orquestrar entre o seu deus Sol
Invictus e as deusas romanas Pallas e Urânia (HERODIANO, 5, 6, 3-4), o que será visto como
um ultraje, pois significa que Heliogábalo tenta substituir a antiquíssima tríade capitolina 23 já
existente. Fez também uma reestruturação da hierarquia das divindades tradicionais,
estabelecendo Elagabal como divindade suprema, acima inclusive de Júpiter. Em vista disso,
impactou com dureza o ideal de mos maiorum, desestabilizando a ordem política então vigente.
Conforme Silva,
De maneira geral, vejo que a forma como Heliogábalo cultuava Elagabal era
uma marca da barbaridade no coração do Império, não era um monoteísmo,
mas, apesar de sua tentativa de confluência cultural, marcava uma fronteira
nos limites da ordem imperial romana que seus antecessores não haviam
ultrapassado, ainda que tivessem levado o culto de Elagabal para Roma
(SILVA, 2017, p. 126).

Essas reformas religiosas aparecem constantemente como causa padrão da derrubada


do imperador Heliogábalo. Diante disso, elas explicam pouco sobre as transgressões sexuais
do jovem imperador — o que não explicam são as anedotas sobre ele ser homossexual ou de
ter desejos de se tornar mulher — ou do porque ele é considerado louco. “Escândalo sexual e,
de fato, anedotas pessoais em geral, têm pouco espaço na versão herodiana da historiografia”
(KEMEZIS, 2016, p. 364). O autor continua:
O foco de Herodiano no culto de Elagabal sugere que as imagens de moedas
que temos de Heliogábalo em seu papel sacerdotal faziam parte de uma
campanha maior de mídia visual que incluía representações do imperador sa-
23
Tríade Capitolina: na religião romana antiga, era as três divindades supremas do Capitólio. Essa tríade era
composta por Júpiter, Juno e Minerva. Sua substituição era um ultraje pois significava mudar a ordem religiosa
tradicional de Roma.
31

cerdote, a Pedra Negra e as várias cerimônias envolvendo os dois. Pode não


ter sido tão chocante ou alienígena como às vezes se pensava, mas em todos
os casos era memorável (KEMEZIS, 2016, p. 368).

Com efeito, considero que somente as reformas religiosas propostas por Heliogábalo
não foram o suficiente para que ele fosse considerado louco, pois houve antes dele imperadores
que tentaram mudar uma ou outra coisa na religião romana e haverá depois os príncipes
cristãos, que nesse caso sim, reformularão totalmente a estrutura religiosa para o monoteísmo.
Logo, para além das questões religiosas, outra atitude de Heliogábalo que irritaram
bastante a ordem senatorial romana foi a distribuição de cargos políticos tradicionais à homens
totalmente sem experiência e “que nunca haviam estado em Roma em altos postos do governo,
além de alguns de seus aliados serem afeitos em artes desprezíveis para um ocupante de cargos
político-militares, que gostava de atuar no teatro” (SILVA, 2017, p. 127).
Quando falamos da antiguidade romana, devemos levar em consideração que
existiam estruturas políticas, sociais e culturais que estão intimamente ligado com a forma
como vivem os indivíduos daquela sociedade. “Heliogábalo também não respeitou, na visão
dos autores, às práticas que valorizavam o cultivo dos costumes greco-romanos, espaço
discursivo necessário para a ordem imperial, embasados na cultura e na identidade” (SILVA,
2017, p. 128). E conforme Gongalves,
O poder político e a legitimidade de um governante não se apoiam somente
em impostos e em exércitos, mas também nas concepções e nas crenças dos
seus subordinados. O poder se constitui num processo duplo. A força motriz
que liga o soberano com os deuses não provém unicamente do soberano. Ela
advém também de seus colaboradores imediatos e de seus súditos mais
humildes, que justificam o status quo e o lugar que eles ocupam na ordem
reinante pelo apoio das divindades à situação vigente no mundo humano. A
plebe e a aristocracia não aderem necessariamente ao imperador, mas sim
ao governante ideal que simboliza a ordem moral imutável do mundo. O
imperador deveria ser, pelo menos no território público, o melhor dos
homens (Hopkins, 1978, p. 232). Por isso, na maior parte das vezes, o poder
dos imperadores se apoiava no respeito à tradição e à ordem constituída.
Colocar- se contra a tradição, questioná-la, poderia gerar, na visão
aristocrática, um campo aberto para a desagregação do próprio Império
Romano, como extensão territorial e sistema de governo, põem em xeque
todos os privilégios ainda detidos pelos aristocratas (GONÇALVES,
1998/1999, p. 155).

Logo, quando as atitudes de um imperador começam a insatisfazer a uma das instituições


mais importante e antiga como o Senado, há consequências. Por mais respeitável que fosse a figura do
imperador, um não sobrevive sem o outro, visto que “os próprios imperadores necessitavam de
senadores do alto escalão para comandar suas legiões e governar as províncias do Império”
(WINTERLING, 2012, p. 11). Por isso, o Senado esperava que o imperador agisse de maneira a
32

beneficiá-los, “tratava-se de uma classe privilegiada, datada de realidade, doutrina e interesses


próprios” (VEYNE, 2009, p. 12). Porém, quando isso não ocorre, o Senado adotava estratégias de
como lidar com esses imperadores, geralmente envolvendo a condenação de sua imagem e, a
posteriori, o uso da damnatio memoriae, para que seus atos sejam apagados da memória
pública. Aponta Kemezis que:
Primeiro, que existem critérios normativos para o que um imperador deveria
ser, e que a política tem mecanismos eficientes para remover imperadores
que não cumprem essa definição. Segundo que Heliogábalo pode ser
assimilado a essa verdade geral, de modo que, mesmo em seu desvio, ele se
torna um exemplo das regras que funcionam corretamente. Ele era um tirano
como outros tiranos, e existem maneiras de lidar com os tiranos. É uma visão
otimista em que o sistema político é autocorretivo e as narrativas históricas
alcançam um encerramento moral satisfatório (KEMEZIS, 2016, p. 349).

A posição tomada por essas fontes apresenta obstáculos para a historiografia moderna,
pois, como já dissemos acima, não é possível contestar tais acusações, principalmente por essas
fontes serem o único meio de transmissão dos fatos. Por causa disso, devemos deixar de
considerar a questão de “loucura imperial”? Claro que não. Entretanto, devemos questionar o
que está por trás dessa suposta subversão da posição do imperador. E devido a isso ressalto a
importância do primeiro capítulo dessa monografia para entendimento completo do trabalho.
Os autores que escrevem essas fontes eram pessoas ligadas a ordem senatorial,
equestre ou que circulavam na classe aristocrática. Sendo assim, essas pessoas acabavam sendo
afetadas diretamente pelo comportamento megalomaníaco dos imperadores. O desrespeito e
a aversão mostrada pelos autores das fontes estão relacionados aos pensamentos e opiniões
que estavam dentro dos segmentos senatoriais. A insatisfação dos senadores com o imperador
levou a difusão de boatos “indecentes” e “indecorosos” a respeito de sua pessoa, e assim sendo
não temos como saber até onde esses boatos são verdadeiros ou somente isso, boatos sem
maiores fundamentos. Vale lembrar que Herodiano em seu trabalho quase sempre defende o
ponto de vista da aristocracia senatorial (COBOS DÁVILLA, 1995, p. 648), mas por não estar
envolvido diretamente nas questões do Senado, não tem uma perspectiva tão injuriosa sobre
Heliogábalo. Mas fica bem claro, mesmo em seu relato, os conflitos de interesse entre os
imperadores, no caso os que são considerados loucos24, e a classe aristocrática. Gonçalves
indica:
Assim, elas apresentam Heliogábalo como um ser exótico, moralmente
condenável, afeito a excessos de diversas naturezas e não condizente,
portanto, com o cargo que ocupava. Os senadores sempre viram no compor-

24
Herodiano não usa a palavra louco para definir os “maus imperadores”, é uma palavra empregada pelas
historiografias modernas.
33

tamento de Heliogábalo os atos de alguém que se sentia superior, e que


buscava se sobrepor a eles em prestígio e em autoridade (GONÇALVES,
1998/1999, p. 154).

Para os autores Rodrigo Furtado (2007, p. 187-228) e Ana Teresa Marques Gonçalves
(1998/1999, p. 147-159) um dos principais pontos para que a vida de Heliogábalo seja retratado
de forma tão negativa, seria para servir de contraponto à vida de Alexandre Severo, seu primo
que viria a sucedê-lo. As fontes afirmam que Alexandre, desde pequeno, foi instruído nas
tradições romanas. Assim, ao contrário de seu primo, será representado como um jovem calmo
e receptivo aos conselhos de seus tutores. Apesar de também ser sacerdote de Elagabal, ele
nunca se considerou antes sacerdote do que imperador, que foi o que teria acontecido com
Heliogábalo. Herodiano aponta a contraposição entre Alexandre e Heliogábalo por meio da
educação que cada um recebe e pela devoção do exército com Alexandre: “ele foi, pelos
esforços de sua mãe, educado de acordo com os sistemas grego e romano. Heliogábalo, muito
irritado com isso, lamentou sua decisão de fazer Alexandre seu filho e parceiro no império”;
“eles estavam mais favorecidos em relação a Alexandre, pois esperavam grandes coisas de
um rapaz criado de maneira tão apropriada e modesta”; “Eles vigiaram continuamente o
jovem quando viram que Heliogábalo estava conspirando contra ele” (HERODIANO, 5,7,5;
5,8,2; 5,8,3; 5,8,4; 5,8,5; 5,8,6; 5,8,7; 5,8,8). Ademais indica Gonçalves:
As cores fortes da narrativa ao pintar o retrato disforme e monstruoso de um
tirano podem ser explicadas pelo fato da biografia de Heliogábalo servir de
contraponto para a Vita de Severo Alexandre; este sim um imperador
escolhido com o apoio do Senado e que é retratado como um Bom Príncipe.
Enquanto os vícios se acumulam na conduta de Heliogábalo, o protótipo do
Mau Príncipe, as virtudes aparecem como inerentes ao caráter de Severo
Alexandre (GONÇALVES, 1998/1999, p. 150).

A maior parte do relato de Herodiano sobre o reinado de Heliogábalo será sobre as


atividades sacerdotais do imperador, que o autor não considera nada incomum. Mas no fim
do seu relato da vida de Heliogábalo ele destacará como a educação de Alexandre é
contrastante com a de seu primo, de como ele está recebendo lições de bons tutores e deixa
de lado todo o lado exótico e orgiástico da religião do qual ele também é sacerdote.
Heliogábalo alega que os tutores estão “ensinando Alexandre a se autocontrolar, educando-o
nos assuntos humanos e recusando-se a permitir que ele dançasse e participasse de orgias
frenéticas, desvirtuando seu filho adotivo de sua religião” (HERODIANO, 5,7,6 – 5,8,10).
Como dito anteriormente, na produção historiográfica imperial, existe um “modelo
ideal de imperador”, cujos atributos exaltavam a civilidade do governante no trato com o
34

Senado, e valores como a sabedoria, dignidade, coragem e bravura, respeito aos seus deuses,
entre outras. Enquanto os que aparecem como “maus príncipes” ou “loucos” são descritas como
cruéis, egocêntricos, narcisistas e tirânicos.
Herodiano se inspira nas virtudes platônicas do rei filósofo para caracterizar o bom
governante e, para ele o único que alcança tais virtudes é Marco Aurélio. “Magnicídio romano
que só pode ser associado a quem governou de acordo com as virtudes que possuía e vivia de
acordo com elas” (ESTELLER, 2016, p. 115). Marco Aurélio foi proclamado imperador com
40 anos, ou seja, já era adulto, tinha maturidade e experiência para assumir como César.
Entretanto, Heliogábalo era apenas um rapaz de 14 anos quando foi proclamado; Herodiano
ressalta várias vezes como era jovem o governante: “Sua beleza juvenil atraiu os olhos de
todos”; “enquanto admiravam o jovem”; “proclamando-o imperador, e os jovens assumiram
o controle do império”; “ela (sua avó) tentou persuadir o jovem, que era em todos os aspectos
um jovem idiota de cabeça vazia” (ver, respectivamente, HERODIANO, 5.3.9; 5.3.10; 5.5.1;
5.7.1).
O autor em alguns trechos demonstra ressalvas em relação à juventude, à volatilidade
da personalidade e a ausência de conhecimento sobre o mundo romano por parte de
Heliogábalo: “porque ele era jovem em anos e carecia de educação e experiência
administrativa”; “Heliogábalo comprometeu-se a ensinar-lhe suas próprias práticas; ele o
instruiu a dançar e empinar e, queria que o rapaz imitasse sua aparência e suas ações”; “alegando
que esses homens, ensinando Alexandre a se autocontrolar, educando-o nos assuntos humanos
e recusando-se a permitir que ele dançasse e participasse de orgias frenéticas, corromperiam
seu filho adotivo”; “Ele elevou de maneira semelhante outro jovem ator, encarregando-o da
educação e conduta dos jovens romanos” (ver, respectivamente, HERODIANO, 5.5.1; 5.7.4;
5.7.6; 5.7.7). As atitudes de Heliogábalo serviriam para reiterar um dos principais temas da obra
de Herodiano, ou seja, que o império sofre quando crianças ou jovens são colocados "no
controle do poder absoluto, sem controle, sem autoridade dos pais" (HERODIANO, 1.3.1).
A irresponsabilidade do garoto é apresentada na obra pela falta de dedicação na
administração do império. Ele teria demonstrado mais interesse em se dedicar ao culto ao deus
sol Elagabal, se vestir com roupas exóticas, dançar e conduzir carruagem. Por conta disso tudo,
Herodiano diz que o governante teria deixado indiretamente o governo nas mãos de sua avó,
que por muitas vezes impôs seus interesses pessoais sobre o imperador. Por isso, Herodiano
o define como, “na maioria das coisas, um jovem ingênuo e idiota” (HERODIANO, 5.5.1),
“podendo assim ser manipulado facilmente” (ICKS, 2012, p. 142). Espinosa Ruiz nos diz,
É que, para o autor, ele havia dito isso pouco antes, a maturidade física é
35

sinônimo de responsabilidade e boa governança, enquanto a juventude é a


leveza e o desejo irresponsável de mudança. É o eco da opinião romana
tradicional sobre a juventude. [...] Se eliminarmos a ninhada retórica dos
primeiros capítulos, temos a tese central nua: a causa de um mau reinado é
a juventude do ocupante do trono. [...] Da imaturidade juvenil derivam as
duas constantes que presidem o mau reinado: o domínio dos favoritos e a
consciência imoderada da superioridade do soberano (ESPINOSA RUIZ,
1984, p. 119).

Consequentemente então, quando falamos sobre “a loucura imperial” em obras


historiográficas como a de Herodiano, não estamos falando do louco no sentido de pessoas com
uma condição médica de alteração mental, caracterizado pelo afastamento do indivíduo com
a realidade e a habilidade de discernir pensamentos, sentimentos e ações. Mas sim, como uma
condição em que um indivíduo altera o estado do status quo, ou seja, daquilo “que é
universalmente aceito como válido pela sociedade ao seu redor” (WINTERLING, 2012, p. 22).
Por conseguinte, estabeleço que Heliogábalo não era “louco” por estar em condição de
insanidade, de não discernir claramente suas ações, mas sim que foi representado a partir da
noção de que sua loucura é devido a seus costumes estrangeiros, que insistem em quebrar a
tradição romana. E então a aristocracia senatorial romana condenará sua imagem como louco
e tirano após a sua morte, para que seus atos não sejam rememorados pelos futuros
imperadores e pela própria população. Loucura imperial na Roma antiga, em suma, não era
loucura em um sentido psicopatológico, mas a concorrência de um antigo ideal romano de
nobreza com uma monarquia paradoxal, ilimitada e instável” (WINTERLING, 2012, p. 24).
Essas manifestações de megalomania que estavam presentes nas atitudes desses
imperadores vistos como loucos, pode ser justificado pelo poder que é instituído a eles. Os
príncipes pensavam que podiam e deviam fazer coisas extraordinárias pela autoridade que
tinham, pois o estado Romano “considera-se, de certa forma, o único Estado do mundo”
(VEYNE, 2009, p. 20) fazendo assim, eles se considerarem os soberanos do mundo.
Consequentemente, “um imperador podia ver-se tentado a abusar da posição pública de que
usufruía” (VEYNE, 2009, p. 21) eles tendiam também a levar a glória do seu cargo para a esfera
pessoal, já que muitos desses “césares loucos” vão se considerar como sendo os melhores em
filosofia, retórica e no sacerdócio, como é o caso de Heliogábalo. Esses imperadores
esperavam, portanto, sererem honrados como seres divinos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir essa monografia, devo ressaltar que o intuito é contribuir com os estudos
de História Antiga no que se refere a obra de Herodiano e a vida de Heliogábalo, tentando
quebrar com o paradigma da historiografia moderna que costuma condenar esse imperador.
Herodiano proporciona uma visão menos detratora da vida de Heliogábalo. Dentre as fontes
do século III d.C. sobre o jovem imperador, Herodiano é o que se mantém mais longe de dar
atenção a anedotas e escândalos. Mas ainda sim, é uma fonte que permite destacar os conflitos
políticos e socioculturais do período. Consequentemente, para estabelecer como Herodiano
relata a vida de Heliogábalo, é preciso investigar sobre a obra e vida do próprio autor.
Em suma, foi preciso determinar quem foi Herodiano, qual o seu papel na esfera
política pública romana e a data de composição da obra. Alguns desses objetivos se fazem mais
complexos, pois Herodiano é uma figura envolta em mistérios, não se sabe muito ao certo sobre
sua vida. Como vimos, estimativas indicam que seu nascimento teria se dado por volta de 178-
180 e que a composição de seu trabalho teria sido entre 249-260 não mais tardar que isso.
Existem algumas hipóteses sobre sua origem, mas a que apresenta pontos mais forte é de que
tenha nascido em alguma província grega. Através do seu trabalho definimos que Herodiano
foi uma pessoa que escendeu a um cargo público, não se tem certeza de qual, mas que não era
um papel de tanta importância, se comparado com Dião Cássio que era senador, por exemplo.
Mas todo esse mistério sobre sua vida também funciona como uma estratégia retorica, pois ele
garante que o texto tem crédito por si e não por quem o escreveu.
Muitas dessas características de escrita de Herodiano vêm do movimento da Segunda
Sofística. Que se caracteriza pelo aticismo, o purismo lexical, a sintática e a eloquência. A
Segunda Sofística também determina regras das quais a escrita historiográfica antiga deveria
seguir, das quais Herodiano adere: que a guerra é o assunto mais digno de ser historiado; que
os fatos de vem seguir uma ordem cronológica; que o historiador deve conhecer os fatos em
primeira mão; e que o autor da obra não deve escrever para receber reconhecimento, mas sim
para falar sobre a verdade.
Muito das suas concepções estão ligadas ao período em que escreve, que para
Herodiano seria em meados do século III d.C. Esse período é marcado por déficit econômico,
pela baixa produção agrícola e pelo enfraquecimento do exército que tentava manter as
fronteiras protegidas diante de invasões bárbaras. Logo, é perceptível na escrita de Herodiano
que esse momento vai influenciar seu olhar inclusive sobre o reinado de Heliogábalo, que é
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um pouco anterior aos piores momentos de crise do século III.


Igualmente, sobre seu relato do imperador Heliogábalo, mas ao contrário de outras
fontes Herodiano não dá tanta importância aos aspectos de lascividade da vida do imperador.
O autor foca na vida de sacerdócio ao deus Elagabal e, como esse culto determina quem
Heliogábalo foi. Demonstrando que as características do príncipe são uma extensão da sua
religiosidade, do qual foi inserido desde criança. Essas reformas religiosas aparecem
constantemente como causa padrão da derrubada do imperador Heliogábalo.
Somente essas reformas religiosas não foram suficientes para irritar totalmente a
aristocracia romana, foram necessárias atitudes como colocar pessoas despreparadas em
cargos públicos importantes, escravos libertos como governadores de províncias e o
desrespeito com a tradição romana, para que houvesse um motim. Heliogábalo foi deposto
através de um assassinato e mais tarde o próprio Senado condenou sua imagem, para que suas
atitudes não fossem rememoradas por futuros imperadores.
Para Herodiano a maior falha de Heliogábalo é que ele era muito jovem e despreparado
para ser imperador, não possuía as qualidades que são adquiridas com a maturidade e
experiência, além de ser totalmente inerte a tradição romana. Também acusa Heliogábalo de
por causa de sua imaturidade, ser facilmente manipulado, tanto por sua avó quanto por sua mãe,
que tentaram tomar as rédeas do governo.
A loucura de Heliogábalo não era devido a uma doença mental, por estar em condição
de insanidade, de não discernir claramente suas ações, mas sim resultado de uma representação
feita a partir dos vínculos de com costumes estrangeiros, que se chocavam diretamente com a
tradição romana. Sua “loucura” também é consequência de sua megalomania, fruto da crença
de que, como soberano romano, poderia e deveria fazer coisas extraordinárias e abusar do poder
público que usufruía. Logo, concluo que nenhuma das atitudes de Heliogábalo era por ser
“louco”, mas sim um jovem que teve muito poder e destaque muito cedo, que acabou por
modificar algumas das tradições romanas.
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