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Léon RimbauH

Missionário Apostólico

As Heroinas
do Dever
(ESTUDOS FEMININOS)

DO DEVER:
As que PENSAM.
As que VIBRAM.
As que AMAM.
As que CHORAM.
As que U.EZAM.
As que TRABALHAM.
As que LUTAM.
Algumas mulheres-modelo.
NllllL OBSTAT
Taubaté, ln festo Assumpt. B. M. V. 1939
P. Ferd. Baumhoff S. C. J.
Censor ad-hoc.

IMPRIMATUH
t Anti.ré, Bispo diocesano.
Taubaté, 26-8-39.

IMPRIMI POTEST
Taubaté, in festo Annuntiationis B. M. V.,
annl 1940
P. P. Storms
Praep. prov. brasil.

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Prefácio
Houve quem dissesse a profunda palavra: Cabe
aos homens o construirem a grandeza de um povo, mas
é pelas mulheres que um povo ascende ou desce.
Com efeito. Se isto foi verdade sempre, é o,
mais que nunca, nos tempos que correm. Já passou a
hora das ociosas discussões. M(llis do que nunca está
em jogo a causa de Deus em nossa Pátria estret/Dl!cida.
São inúmeros os inimigos que invadem a fronteira da
moralidade que herdamos dos nossos país. Forças in­
gentes se conjugam contra as convicções que tanto aca­
lentamos, contra os costumes que contornavam os nos­
sos berços.
E não são parágrafos que conseguem rept1imir a
avalanche do mal, não é a polícia que vale arrostar o
inimigo que espalha o joio por entre a seara. Não. E.
a mulher cristã, é a riquev1 da alma feminina, abebe­
rada nas fontes salutares do Cristianismo, em cujas mãos
está o conjurar a invasão infernal. t!, no coração femi­
nino, culto e formado de acordo com suas justas aspi­
rações, que se esbarram todas as maquinações do Infer­
no e de coorteis.
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6 LÉON RIMBAULT

Na H,istória do Mundo e no mundo da História


não há nada que tanto se confirme, como o poder inex­
pugnável da mulher que dedica a riqueza de sua sensi­
bilidade, e fervor de seu entusiasmo, os encantos de to­
do o seu ser à defeza de uma causa ou à vitória de uma
batalha. Não há quem lhe resista.
Se é verdade o que Goethe diz, que o eterno en­
canto da mulher é que nos fascina a todos.,. é PELA
MULHER que o mundo pode sarar, quando esta for
possuída de todo o alcance de sua missão e lhe devotar
todo o potencial riquíssimo de suas energiias.
Forçoso e, entretanto, que nada lhe falte para es­
te elevadíssimo mister. Todos os seus atributos natu­
rais devem ser cultivados para serem concentrados na
suprema finalidade: a cristianÍsllfão da sociedade.
.fjs, Senhorás brasileiras,. a razão-de-ser, deste li­
vro preciosíssimo. Espalha a luz do Evangelho sobre
vossas almas para despertar-lhes as energias que valem
magnetizar e - digo mesmo - revolucionar o mun­
do para ii causa de Deus. Em toda a magnificiência des­
cortinam estas páginas, ante vós, o sublime ideal que o
Criador vos há confiado. As energias, porém, que após
o estudo deste livro sentirei& estuar em vosso sangue
não rricms vos abancf,onarão. Redundarão em' prol dei
vossa família, em prol da sociedad�, em prol de todo o.
nosso amado Brasil.
Destinado, no oriiginal, às senhoras francesas, não
é com menos acêrto que a vós se dirige. Tendes os mes­
mos dotes, as mesmas energias latentes a aguardarem a
orientação segura dos ensinamentos da Igreja. E, em/

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AS HEROINAS DO DEVER 7
oferecendo este livro AS SENHORAS BRASILEIRAS,
não fazemos senão seguir a tradição da IGREJA CA­
TôLICA, felizes e ufanas de prestar às mulheres das
classes dirigentes a honra de que as tem cercado de São
Jerônimo a São Franciisco de Sales,. de Pénelon a Lacor­
daire,. e Dupanloup todos os séculos cristãos.
É pois nas mãos de todas as donzelas e senhoras
brasileiras que desejávamos ver este livro valioso. Bem
meditado e seguido, porém, dar-nos-á a benção desta
elite aguerrida de HEROINAS DO DEVER que tão
extraordinária, tão incomensurável, tão estupendamente
tem entrado a determinan. na História do Criistianismo,
o curso para a ascensão dos povos.

P. LACROIX

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lntroducdo

Ao narrar o bloque,ío da cidade de Siena dá-nos o


historiador MONTLUC um quadro eloquente da ener­
gia viril das mulheres.
"Ao início deste belo empreendimento do povo
em defeza de sua liberdade - diz ele - todas as senho­
ras de Siena se repartiram em três grupos. O primei­
ro estava sendo chefiado pela signora Forteguerra que
trajava cor de violeta, como todas que lhe seguiam no
encalço. Era o segundo comandado pela $ignora Picco­
lomini, tiy!stid'd de setim encarnadQ e como !ela u'm'a
fileira intérmina de mulheres. O terceira grupo, enfim,
era precedido pela signora Livia Fausta que, com toda
a sua vasta falange, estava de branco.
Eram estes três esquadrões compostos 'de três mil
senhoras, de fidalgas e de plebeias.
Suas armas eram lanças, pás compridos, cestos e
fachinas, sendo que assim aparelhadas, marchavam em
desfifa, para procederem às fortificações."
Em todos os tempos como em todos os países se
afirma e reafirma o valor e <> heroismo das mulheres.
Minhas Senhoras. Dignas irrniis que, sois d,ssa�
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heroínas de Siena de MONTLUC, tambem vós pos­


suís prodígios de coragem; e de dedicação para levan­
tar fortalezas em prol da defeza dos direitos da:; almas
e da sociedade.
Pdis bem. Quero mostrar-vos com.o deles vos de­
v�s servir.
Marchavam aquelas sienenses em desfile, antes de
irem à luta de construção e de defeza.
É o que tambem nós faremos. Passaremos em re­
vista as vossas forças e nem deixamos de apreciar. tão
pouco, as vossas fraquezas.
Nosso argumento é O DEVER e suas HE­
ROINAS.
O dever e uma BANDEIRA. Saudá-la-emos em
sua inexorabílidade, em sua majestade, em :todos ps,
seus caraterísticos.
As heroínas lhe formam, a galharda guarda de
honra.
É sob este aspeto que mencionaremos:

As mulheres que PENSAM,


As que VIBRAM,
As que AMAM,
As que CHORAM,
As que REZAM,
As que TRABALHAM,
As que LUTAM.

Completarem.os o nosso estudo em apontando o


exemplo de algumas M.ULHERES-MODELO, comot

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AS HEROINAS DO DEVER 11

sejam GENOVEVA, CLOTILDE, BRANCA DE


CASTELA e JOANA D'ARC que vos patenteiam sua
influência extraordinária sôbre as almas e a sociedade.
Esclarecer, à luz do passado, os camlinhos do pre­
sente, para preparar, por vosso intermédio, a marcha
do futuro, - não mo negareis, minhas Senhoras -
que isto equivale a traçar-vos um programa de vitórias
- e procurar, nas riquezas da História, as lições dum
ensinamento moral e religioso, que tão bem guarda pa­
ra os vossos espíritos, ávidos de conhecer e desejosos de
se recordar.

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DO DEVER

"Ai do •conhecimento que não tende ao amor",


disse Bossuet.
Deus não quer apenas a homenagem dos nossos
pensamentos, pede tambem a consagração dos nossos
atos, e eis porque, ao lado do dogma, se ergue a mo­
ral, que se resume em duas palavras: Fazer o bem,
evitar o mal.
Que vem a ser o dever? E' a obrigação que a mo­
ral nos impõe, o elo que nos liga a Deus e a nossos ir­
mãos na sociedade.
O dever é tudo quanto a conciência prescreve, tu­
do o que a lei intíma, tudo o que Deus manda.
Que é o dever em si rilesmo? Que é que represen­
ta em nossos tempos?

Cumpre crer no dever. E' uma necessidade filosó­


fica, moral, social, religiosa.
E' primeiramente uma necessidade filosófica.
O dever é negado pelo fatalista, pelo materialista
e pelo livre pensador. Têm razão esses homens?
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14 LÉON RIMBAULT

Não; porque nunca se tem razão contra o bom


senso.
O senso comum afirma a existênc.ia e a necessida­
de do dever.
Abrí qualquer dicionário. As palavras: honra, ver­
gonha, virtude, crime, dedicação, egoísmo, não dão o
mesmo som nem o mesmo sentido. A sua harmonia
ou dissonância vem-lhes da sua aproximação ou do seu
afastamento do dever.
Analisando a noção elo dever, descobrimos-lhe três
elementos constitutivos: Deus, a liberdade e a imorta­
lidade da alma.
Deus, antes de tudo, é o fundador do dever. E'-lhe
a razão viva, substancial, infinita.
Desde que se há sentido que Deus existe, Deus
aparece como o Senhor Onipotente, o Legislador e o
Juiz, armado da sanção.
"Amigo meu! Deus te vê, Deus te julgará": eis o
grito da conciência.
"Todas as coisas obedecem a Deus": eis o grito
da natureza.
"Feliz de quem serve ao Senhor! Ai do ímpio":
eis o grito da história.
Na noite negra, sôbre mármore negro, uma for­
miga negra, - Deus a vê e a ouve.
Discerne ele, pois, nos últimos refolhos do nosso
sêr, os nossos pensamentos, desejos, vontades.
Daí, o sentimento do temor de Deus na alma hu­
mana, sentimento esse que constitue o ponto inicial de
toda sabedoria.

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AS HEROINAS DO DEVER 15

Daí, tambem, a ambição de servir-lhe custe o que


custar.
Ernesto Hello, quando criança, ficou impressiona­
do com essa supremacia de Deus, que nos curva na
prosternação do dever.
Seu pai, então procurador geral em Rennes, es­
crevera ao Rei Luiz-Filipe, a respeito de um condena­
do cuja graça pedia. Não a po@endo alcançar, afligia­
se perante a família, fato esse que sumamente admira­
va ao seu filho Ernesto.
- Como, papai, então o sr. não pode tudo? Não
pode nem perdoar a esse pobre homem?
(Perdoar era uma palavra que parecia magnífica
àquele menino e lhe fazia pulsar o coração de entu­
siasmo).
- Não, meu filho, - diz-lhe o pai, - isso de­
pende do Rei.
- Ah! o Rei está acima do sr.? E acima do Rei
que há?
- Acima do Rei há a lei.
- E acima da lei? - prosseguiu Ernesto.
- Ah! acima da lei, respondeu o sr. Hello, só há
Deus.
- Pois bem!_ exclamou o menino, é a Deus que
eu quero obedecer. (l)."
Deus é, com efeito, a suprema razão do dever.
"Quero obedecer-lhe", disse Hello.
"Quero". Eis a afirmação da nossa liberdade.

(1) Ernesto Hello, por Joseph. Serre.

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O animal só tem instintos: por isto, nenhuns de­


veres. Levam-no , curvam-no, coagem-no. :l'tle não é
livre. O homem o é. Não falo de nev:róticos da raça
dos Rougon-Macquart; refiro-me a homens de espíri­
to e de corpo sãos. Não se trata dessas nervosidades
femininas "detraquées", como passam pelos hospícios,
objetos lamentáveis de todas as experiências de hipno­
se e de catalepsia. Trata-se da alma em plena posse
das suas faculdades.
O assassino que _lança aos seus juizes esta des­
culpa: "Eu vi rubro!", tende a suprimir, se fala a ver­
dade, a responsabilidade pessoal, o livre arbítrio, e,
em definitivo, o dever. O advogado pleiteará a s ·cir­
cunstâncias atenuantes. Mas todo ato humano supõe
a liberdade.
Somos livres, mesmo no impulso mais forte das
nossas paixões. Quando os nervos trepidantes, a inte­
ligência obcecada e a vontade enfraquecida parecem
tornar iminente o minuto do naufrágio, sentimos que
cedemos voluntariamente ao mal.
Mesmo quando, na estrada dos abismos, seguimos,
como na velha lenda alemã, os fantasmas de vozes fei­
ticeiras, de cantos que coam no ouvido o seu filtro
adormecedor, ouvimos o grito da ,conciência amedron­
tada:
"Toma cuidado, não o escutes, é o rei dos Amiei­
ros!... " Somos livres, mesmo nesse momento 9e ver­
tigem e de deleite.
Um sobressalto , um recuo, a revolta do eu ,que,
reapossando-se de si 1 lança o apelo do cavaleiro de As-

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AS HEROINAS DO DEVER 17
sas: "Para mim, Auvergne, os inimigos!" - E não é
tarde nem então.
Ainda podemos evitar uma catástrofe.
"Ouço muita gente argumentar contra a liberda­
de do homem, escreve Jean-Jacques Rousseau, e des­
prezo todos esses sofismas, porque, por mais que um
argumentador me queira provar que eu não sou livre,
o sentimento interior, mais forte que todos os argu­
mentos, os desmente sem cessar.
A crença universal de todos os povos proclama a
nossa liberdade. Em toda parte aprova-se o bem, esti­
gmatiza-se o mal; em toda parte estabelecem-se tribu­
nais, baixam-se leis.
Tudo isso supõe a ijber1ade.
Consequências horrorrosas decorrem do êrro con­
trário. Se não somos responsáveis, não há mais dever,
porquanto a obrigação de querer o bem implica de es­
colhê-lo.
..
' Se não somos responsáveis, não há mais nem vir-
tude, nem vício: como não há nem bem nem mal para
os brutos.
O assassino não será mais culpado do que sua ví­
tima. Não há mais conciência. Por que corar? por que
chorar? por que temer? O tigre mata e dorme. O ho­
mem deve proceder da mesma fórma. Não há mais
justiça. Os criminosos são, quando muito, uns doen­
tes. Abolí a magistratura, derrubai as prisões, abrí os
hospitais.
Consequências tão monstruosas, tão -contrárias ao

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18 LÊON RIMBAULT

senso comum, provam, eloquentemente, a nossa liber­


dade.
A imortalidade da alma é o terceiro elemento da
noção do dever.
Incorruptível, a nossa alma é imortal, não por fa­
vor ou privilégio, mas em virtude da sua natureza es­
piriutal.
Deus não nos criou para fornecermos à terra fos­
fatos de cal e carvão animal.
Não estamos em marcha senão para chegarmos ao
nosso fim de além-túmulo. Foi só alem da morte que
Deus colocou a sanção eficaz do dever, as recompen­
sas e os castigos da vi<la humana. A sua Sabedoria e a
sua Justiça fizeram-nos essa imortaliuadc. As nossas
aspirações à verdade integrat à felicidade perfeita, à
vida sem fim, fazem-nos, a cada passo, sentir a impe­
riosa e sublime necessidade do dever.
Neste mundo, notai-o bem, temos meros esboços:
esboços de verdade, esboços de amor, esboços de feli­
cidade, esboços de infinito. "O Céu guarda-nos em re­
serva os divinos acabamentos." Modicwn passos Deus
perficiet. ( 1)
Para aceitar o dever, não raro, tão duro, tão peno­
so, quando se trata de lhe ser fiel, faz-se mistér, nada
menos, do que uma crença inabalavel numa vida fu­
tura.
"Uma sociedade que não crê nem em Deus, nem
na alma, nem no além, disse Ga.uly, já não respeita

(1} Epístola de São Pedro.

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AS HEROINAS DO DEVER 19
nem justiça, ne;m moral_ De feito, se tudo se limita à
vida presente, por que a autoridade, por que os pnv1-
légio5 nas rodas da aristocracia? Por que a sujeição,
a pobreza, :is misérias e os sofrimentos nas camadas
da plebe? Si a vicia futura não passa de sonho, o ho­
mem tem razão de buscar na vida presente sua alegria
e felicidade,
Se não as acha, faz muito bem em forcejar por
conquistá-las pelas armas, pelas revoluções. Se fracas­
sa, ninguém póde censurá-lo por se refugiar no cleses­
pêro e pedir ao suicídio o único remédio que lhe resta.
Como se vê, a ausência de toda crença na imortalida­
de é o caminho fechado a toda virtude, a todo herois­
mo, a toda dedicação. E' a trilha aberta para todas as
paixões, para todos os crimes, para todas as revolu­
ções.''· Cumpre, pois, crer no dever.
Deus, a libcnladc e a imortalidade da alma fazem­
no uma necessidade filosófica.

Cumpre crer no dever. E' uma necessidade moral.


A pedra de toque no valor do homem provêm do
conjunto das suas relações com o dever.
O que nos distingue, no sentido eminente do ter­
mo, não é nem a riqueza, nem a beleza, nem a fôrça,
nem o espírito, é o dever.
O mundo se compraz em julgar os homens pelas
aparências. Tributa honra aos que estão nas honrarias,
inda quando sejam, quanto à moral, os maiores degra-

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20 LÉON RIMBAULT

dados. Apenas exige que sua imoralidade seja ga-lante,


requintada, de bom tom.
O salteador da estrada e os miseráveis, que o pau­
perismo impeliu a se mudarem, caladinhos, sem pagar,
ou a furtar um pão à montra de um padeiro, o mundo
entrega às gemonias. Indulgências particulares reser­
va, no entanto,aos bandidos de casaca com gardênia à
lapela. A estes oferece, sorrindo, faceis perdões. Como
eles matam as almas e deshonram as famílias com uma
espécie de diletantismo na sedução; como cobrem as
suas nauseabundas infâmias com um verniz de alto
mundanismo, abre-lhes a sociedacle, de par em par, as
portas dos seus salões. 'l"�- mesmo uma maneira de
chamar maus sujeitos a -ré�es Dons Juans e a esses
Lovelacs, que vem quase ··aó mesmo que lhes chamar
homens de bem.
Deixemos o mundo pensar ou dizer o que quiser:
O homem é honesto apenas na medida em que serve
ao dever.
Sob pretexto algum, deve conceder-se o diploma

-
de honestidade ao vício.
Por isto, surpreendei o povo nas suas explosões
de bom senso cotidiano.
Por que respeita ele a Irmãzinha dos pobres que
passa? Por que é que não vê sem emoção a irmã de
Caridade nas salas do ambulatório?
Por que, ao contrário, persegue com seus esgares
e zurze com as suas chalaç:i�t . _em largos salpicos, a
mulher exibicionista e suspeita, "imodesta e pouco reca­
tada, que passa a se ostentar?

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AS HEROINAS DO DEVER

Por que é- ·que lança o seu desprezo à face do vi­


vedor que passeia dnicamente os seus adiposos ócios
até na multidão das atividades e das pobrezas subur­
banas?
Porque aqui se estadeiam, desavergonhados, entes
refratários ao dever.
Porque alí passam, nobres e puros, os tipos de
verdadeiras filhas da pátria e da Igreja, heroicamente
consagradas ao dever.
"Beija, às vezes, aos meus filhos", escreveu o ba­
rão de Amphermet, "e dize-lhes que seu pai cumpriu
o seu dever" (Amphermet foi fusilado em Quimper a
9 de Janeiro de 1796).
Que ufania ! Que glóda )•
! -Que
.
conciência da dívida
quiüHla !
Cumprir o sc11 de\'l:r ! 1·is toda a 111or:1l. Eis a nos­
sa única razão dl' si:r neste mundo.
Cumpre crer no dever; é uma necessidade social.

Deus não nos criou, única e exclusivamente para


nós próprios, temos encargo do próximo.
Seria na verdade demasiado facil atravessar a vi­
da num egoismo sem responsabilidade, roçar a igno­
rância e a miséria das massas sem se dignar perce­
bê-la.
Devemos trabalhar na obra comum.
Cumpra cada um o seu dever, e a questão s ocial
está resolvida.
Porque afinal, "se tudo andasse bem, nada mais

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22 LÉON RIMBAV.LT

haveria a reformar, e tudo andaria bem se todos esti­


vessem no seu lugar." (1)
Quanta gente reclama perpetuamente um regime
de excepções e de favores, não curando dos seus deve­
res mais sagrados ! A antiga nobreza gozava· de -certos
privilégios, justa compensação dos encargos que assu­
mia, notadamente do pesado encargo das armas.
Infelizmente exagerou os seus direitos, em detri­
mento dos deveres. O goso embotou os caracteres e
relaxou os costumes. O abuso de cima gerou a revolta
de baixo.
A burguesia moderna, que se apoderou <los ne­
gócios públicos em 1830, classe dirigente hoje em dia,
zombou da liberdade e da igualdade prometidas, ta­
lhando para si a parte do leão nas funções políticas e
administrativas.
Está por demais ocupada em retalhar alí mesmo o
orçamento de quem vive nas honras, conde-corações e
privilégios, para perder uma dentada em levantar a ca­
beça e ocupar-se dos pequenos e esfomeados.
Desencadeou a onda do socialismo. Que outra coi­
sa é o socialismo senão as represálias do dever ultra­
jado e da justiça olvidada?
A famosa declaração dos "Direitos do homem"
desconheceu os direitos de Deus.
Ocupando-se demasiadamente do indivíduo, de­
senvolveu-lhe a, cobiças e o orgulho, em detrimento
da sociedade. "Todos os seus artigos, diz Taine, são

(1) Abade Naudet, O ,:ruer social.

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AS HEROIN AS DO DEVER 23

punhafs dirigidos ,contra a sociedade; basta empurrar


o cabo para fazer entrar a lâmina."
Como vedes, membros solidários de um mesmo
século, de uma mesma nação, temos mútuos deveres
sociais a cumprir.
"Era na paz que o papado queria acabar com as
dificuldades sociais como com as dificuldades políti­
cas: era com a generosi<lade voluntária e igual dos ri­
cos na solicitude, dos pobres na paciência, e com o es­
forço conciencioso feito por cada um pela justiç�, que
Leão XIII contava com os mais seguros remédios pa­
ra os males tão perigosos da nossa civilização". (1)
Seja qual fôr a situação que ocupemos, cumpra­
mos com o nosso dever, "aomos todos, pelo mesmo tí­
tulo, os obreiros da pátria".

- Cumpre crer no dever: é uma necessidade re­


ligiosa.
"Deus o quer, Deus o quer ... ", foi o grito magní­
fico das cruzadas.
E' o grito de toda alma atenta às vozes que vêm
do Evangelho, da Cruz, da Eternidade.
"Guarda os mndamentos, diz o Senhor, vai nisto
todo o homem."
"Se queres entrar na vida, segue os preceitos."

(1) E. Lamy, A polrlica do último pontificado.

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24 LÉON RIMBAULT

"Anda na minha presença, sê santo, eu sere"i' a tua


superabundante e esplêndida recompensa."
Todos os ensinamentos escriturários impõem ao
homem o dever. E' a condição "sine qua non" da sal­
vação eterna.
Todos os profetas, doutores, mártires, não cessam,
através dos séculos, de proclamar a necessidade do de­
ver. Elçs passam o facho um ao outro sem que jamais
pqss� �tinguir-sc sua luz divina.
· E, de�de que Nosso Senhor Jesús-Cristo os­
tentou, nas su�s feridas sangrentas, o programa, o có­
digo eterno de todas as virtudes, a cruz marcha à testa
de toda geração, a •cruz aparece na curva de todos os
séculos, no vértice de toda sociedade, como o palácio
obrigatório, indispensavel, de toda alma que se sal­
var, da humanidade inteira, reconquistada para o de­
ver pelo Homem-Deus.
Que faz a Igreja Católica senão manter o ideal do
dever do mundo?
Todo o vasto labor de zelo, de orações, de graças
�-
·e ·de sacramentos, com que ela cobre a Terra, não tem
p,�r fim senão a instalaç�o, a restauração, a permanên­
cia do dever nas almas ·e na sociedade.
Sim, cumpre •crer no dever, é preciso, é necessá­
rio.
E' necessário, outrossim, que lhe obedeçamos.
O dever é uma realeza. Deve dizer-se: Sua Majes­
tade o Dever.
E vede como é breve, luminoso, decisivo o termo
que o revela e designa:

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AS HEROINAS DO DEVER 25

E' necessário.
Sim, é necessário. O dever é uma dívida sagrada,
a hipotééa -segura que é preciso resgatar. E' uma co­
mo penhora ,dt;t�que importa, resolutamente, no3 liber­
temos.
E' necessário. Que palavra profunda! E' Deus na
conciência humana.
Oportet illum reguare. . . é necessário qµe êle rei­
ne sôbre todas as nossas faculdades.
Não é a inteligência, por ventura, um poder legis­
lativo que vê e decreta? Não é a vontade um poder
executivo que aplica a lei? E as paixões, não teem elas
os frênesis e as psicoses das sublevações do povo, que
se devem submeter?
Quem valerá garantir a reta ordem das nossas fa­
culdades? Qu<'m rnnscg-11irá abater-lhe os levantes e
as revoltas?
E' a conciência bem formada. E' a conciência do
dever.
E' necessário! Razão eterna (Platão lhe chama de
LOGOS, Cícero de SUMMA RATIO, o Evangelho de
VERBUM) mostra-se-nos com o braço autoritativa­
mente extendido a indigitar-nos o nosso fim e destino:
"Vai!"
E' necessário! E' de dentro de nós que nos vêm
esta obrigação indeclinável. E' porém mais forte que
nós, está acima de nós.
E' por isto que o dever não se confunde nem ,com
a opinião, nem com o interêsse. E' a própria moral,

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26 LÉON RIMBAULT

superior a todas e quaisquer normas, ind�vendcute de


todos os caprichos humanos.
Emanada do VERBO, a idéia do deve!" é indepen­
dente, não de Deus, mas das nossas -fr�qitezas, dos
nossos erros, dos nossos excessos.
Por isto, consoante à palavra de Sar.to Agostinho,
"quando o preceito divino se faz ouvir, cumpre obe­
decer e não discutir."
�• necessário I Vai-te, pois, donzela, vai-te. Ao te
casares e te tornares mãe, forçoso será que digas adeus
às tuas comodida.<les e aos teus prazeres. Pertencerás,
unicamente, ao teu filho. Tem ele o direito de tomar­
te tudo: o sangue, as lágrimas, o repouso, o amor, as
fadigas, os sacrifícios.
E se morrer antes de crescer e antes de realizar os
sonhos de teu coração, necessário será, que te subme­
tas, sem murmúrios e queixumes, a Deus, que realizou
os seus planos. Tenhas, embora, o coração aos franga­
lhos, não se te varrerá da mente a confiança na Bon­
dade de Deus e serás heroína do dever.
E' verdade nunca assás lembrada "Quando o pas­
tor quer que lhe siga a ovelha, toma o cordeiro nos
braços."
E' necessário I Vai-te, pois, soMn.do da pátria, vai­
te. Submete-te ao duro regime das caserna::- e dos cam­
pos, vela de dia, vela de noite, no calor e no frio, sob
chuva e vento. Parte a terras longínquas; tomba, lon­
ge dos teus, tomba, caindo numa terra que te beberá
o sangue. Sacrifica pai , mãe, irmãos, a terra natal, à
magnitude do dever.

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AS HEROINAS DO DEVER 27

E' necessário I Vai-te, sacerdote de Jesús-Cristo.


Vai-te. Encarrega-te das expiações do teu povo. Evan­
geliza, gasta-te, edifica igrejas e escolas, defende Deus
e as almas. Morre, abreviado na tua carreira, sem ver
no teu último suspiro, brotar a messe, cujas sementes
foram adubadas com teus s'uores e tuas lágrimas.
O dever o quer.
E' necessário! Ouvís, marujos e lavradores, ope­
rários e patrões, maltrapilhos e milionários? Esbi.'mos
neste mundo para servir ao dever. E' nosso Rei -
que digo? é o próprio Deus.

:*
**
Houve qttcm quisesse confundir o dever com o
intcrêssc. E' ttm abismo que os separa.
Sem dúvida, há em cumprir o próprio dever um
interêsse remoto e final, mas é um interêsse invisivel,
discutível aos sentidos, no qual a paixão não crê.
O que ela v� é apenas a fadiga presente, o perigo
iminente, a aspereza do esfôrço atual.
Por isto o eterno conflito do dever com as 'Pai­
xões. E' o mais palpitante combate a que os anjos e
os homens possam assistir neste mundo.
Tudo quanto se há feito de grande, através dos
séculos, é da alçada do dever.
Tudo quanto se tem feito de ignóbil, é da alçada
do interêsse. E' necessário I clama ao interêsse o dever.
E não há coisa mais bela, mais sublime <"., não raro,

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28 LÉON RIMBAULT

mais dramática, que a resposta dolorosa, mas corajo­


sa, que a conciência humanà dá à magestade do Dever.
Outróra os pescadores de Camaret, em Cornouail­
les, •cediam, sem demasiado escrúpulo, à tentação de ir
ao mar, aos domingos, quando o tempo convidava.
Um Camaratense ganhara assim duzentos francos.
Um domingo, à tardinha, enquanto passeava com
a família
. , nos penhascos de Gouin, onde vêm embater-
se, it_elinchantes e alvas de espuma, as loucas cavalga-
·�-o
'êlas Oceano, sua mulher, detendo-o de repente, dis­
se-lhe:
"Eu sempre ensinei aos nossos filhos a respeita­
rem a lei de Deus. Não quero que eles se julguem, por
tua culpa, autorizados a violá-la ...
Trago comigo os duzentos francos das tuas pes­
cas do domingo. E' dinheiro maldito.
Olha , aquí está o que faço dêle" E atirou a quan­
tia inteira ao mar.
O homem baixou a cabeça : uma lágrima assomou­
lhe à pálpebra. Ele tinha fé: E' duro, diz ele, mas
tens razão. Juro que não o tornarei a fazer."
Que energia! que heroismo! Por que é que o ato
da ardorosa Bretã nos -comove? Porque seu coração
sentiu o que representava aquele dinheiro: suores do
marujo. Ela o pesou na sua mão de mulher e de mãe.
Que é que lhe clamava o interêsse? "Fica com êle, é
lume, é pão, é alegria, bem-estar, vida para teus filhi­
nhos." - "Não, não", clamaram a honra de Deus, o
respeito do domingo, - "não! rejeita-o, dá u� exem-

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AS HEROINAS DO DEVER 29
plo a teus filhos, lição deci.êiva ao teu homem, sacrifi­
ca o dinheiro à sublimidade do dever. E' necessário!"
E ela obedeceu sem hesitação, e não sem sofri­
mento. Daí, o seu heroismo e sua grandeza dalma.
Devé dizer-se: "Sua Majestade o Dever!" como
se diz: "Sua Majestade a Morte!"
Aliás, imolar o interêsse ao dever é, em certos ca­
sos, entregar-lhe a cabeça, sa,crificar-lhe todo o saii-
· · ·•
gue.
"Escapa ao suplício a todo custo", murmura, c.o­
vardemente, o interêsse. "Que importa uma palavra?
inda que seja juramento! Dize-a, presta-o! - Não!
não!" Potius mori quam foedari 1 "Antes morrer que
pecar", raciocina a conciência cristã.
Era em 1793. Um sacerdote bretão, quase sexa­
genário, Monsenhor Riou, reitor de Lababan, era d­
tado perante o tribunal revolucionário. Desejoso de
salvá:lo, o juiz lhe aconselhara, antes do interrogató­
rio, declarar que tinha sessenta anos, ou que não co­
nhecia a lei.
"Tens certamente mais de sessenta anos", per­
guntou-lhe o juiz, mal êle compareceu. - "Não,"
respondeu o prevenido. - "Enganas-te, pareces ter
mais de sessenta anos." - "Já vos disse que não te­
nho," prossegue Mons. Riou, "e, se não quiserdes acre­
ditar na minha palavra, dai-me tempo de mandar vir a
minha certidão de batismo ( sic), e vos provarei a ver­
dade do que estou dizendo." E acres•centou: "Não
quero salvar minha vida por uma mentira."
Acolheu com serenidade a sentença que o man-

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30 LÉON RIMBAULT

dava ao cadafalso. "Desde muito, diz êle, eu andava.


errante; não sabia onde ?epousar a cabeça; ansiava
por achar um alojamento seguro; espero que o bom
Deus me dará agora um pela eternidade."
Consolava os companheiros de cativeiro que cho­
ravam ao tomarem com êle a refeição de despedida e
dizia-lhes :
'!Tive três belos dias na vida: o dia do batismo, o
dia da ordenação e o dia de hoje."
Marchou bravamente, e mesmo com alegria, para
a morte, cantando o hino triunfal: "Sandorum meri­
tis."
E' assim que procede a conciência bem formada.
Assustar-se-ia ela da morte? Jamais 1
A morte lhe representa lucro.

*
**
Outros houve que quisessem fazer depender o de­
ver da opinião. Tão pouco como o interêsse, a opinião
póde ditar o dever.
A opinião é cambiante e voluvel, o dever é imutá­
vel, inalterável, inexorável.
A opinião não tem outro impulso senão o capri­
cho, o instinto, a paixão cega; o dever, ao invés, apoia­
se na razão. Tumultuosa, febril, a opinião perde a ca­
beça, atira-se aos abismos; -calmo, digno, o dever ha­
bita na paz das cumiadas.
A opinião é uma torrente, tem-lhe os rumores, Oi
sobressaltos, as perturbações, as espumas; o dever é

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AS HEROINAS DO DEVER 31

uma geleira, tem-lhe a virgindade esplêndida; dêle, as


sublimes altitudes onde floresce o branco veludo elas
edelweiss, onde cabriolam as camurças, onde adejam
as águias.
A opinião póde ser grande, só o dever é grandioso.
A opinião é mendaz, é uma nuvem de pó que os
pés dos homens levantam.
O dever é verdadeiro, irradia da fronte de Oeus.
Cumpre desprezar a opinião 9arMobedecer áó de-
ver.
Cumpre, quando êle pede a abdicação do direito
ou a 2.postasia da conciência, cumpre· saber responder­
lhe como Pio VII ao vencedor de Austerlitz: "Sire, eu
bem vos posso -ceder o meu direito, mas não vos posso
ceder o meu dever. Posso admfrar-vos, amar-vos, e
mesmo dar-vos minha vida, mas não vos posso entre­
gnr 111inhn ronciênria. Bem posso, grande imperador,
peri!l"r por vós tudo, mas não posso perder minha al­
ma, porque minha alma é a minha eternidade".
Oh! quão raros são os homens que assim racioci­
nk t
Quão isolados e esporáticos, os que assim proce­
dem!
A opinião quer que um moço sé divirta. Quando
se divertiu, pois, quando perdeu muito tempo, quando
tem dívidas, quando está medíocre, inútil, enfarado,
cliz-se que muito viveu. "Dever-se-ia dizer, escreve
Ernesto Hello, "qHe morreu muito, porquanto, o que
f<·z, ó uada." Está vazio. Deixou fermentar em si o
mal. Sol>r<'Hio o tt�clio. O nacla é uma raiz venenosa

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32 LÉON RIMBAULT

que produz o tédío por flor e por fruto o desespero.


O desespero é o tédio que chega à maturidade. Por
isto, esses que viveram muito acabam de bom grado
se enforcando.
Pois bem ! jovens, é preciso fugir aos meios dele­
térios onde a opinião gosta de encontrar-se convosco.
O dever o manda.
Eis um homem de posição. A sociedade cotiza-se
para assegurar.alhc um palácio, um tratamento, hon­
rarias.
Todos os olhos estão fixados nele. Nos dias difí­
ceis o país conta com a sua sabedoria, com a sua co�
ragem, Deus guarda dêle as provas magnânimas da
sua fidelidade.
Si êle fosse verdadeiramente o campeão da justi­
ça, submeteria as decisões que toma ao veredicto da
sua conciência. Que importa a opinião, se Deus é glo­
rificado? Viva o dever! Mas não. "Serei agradável ou
desagradável à gente do meu partido? Que pensarão
da minha atitude aqueles de quem tudo tenho a es.Pe­
rar, mas tambem tudo a temer?"
Para êsse homem, cumprir o seu dever é transi­
gir, é mesmo capitular.
Quando as unidades sociais vergam ao vendaval
das sedições do populacho ou cedem ·às ameaças de
uma imprensa venal e sectária; quando o interêsse e
a opinião sobem ao pretório, ao forum: acabou-se. As
unidades sociais não passam de zeros. Que queréis
que Deus faça delas?
O marasmo invade as -conciências, as convicções

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AS HEROINAS DO DEVER 33
se esborrondam, as almas se embotam, tudo definha
numa diferença esteril, numa paz deshonrosa que se
parece com a morte.
O interêsse e a opinião devem ceder à majestade
do dever.
Todas as cóleras das paixões nada farão: o dever
ultrapassa-as, ou antes, fica fóra dos seus botes.
O Monte-Branco cintila ao longe, na sua alvura
triunfal, e, segundo a palavra pitoresca de Combalot,
"os ratos não o hão 9e comer.',

*
**
O dever é indestrutível: como o sacerdócio cató­
lico. A Igreja não precisa de mais que de uma gota
de óleo e ele algumas palavras; com isso faz um padre.
O padre prega a ncecssiclaclr, a serenidade, a in­
violahilid:ak do dcvn, encarna-o cm si. O dever exa­
la-se das dobras <la sua batina, como o perfume de
Aarão. E' o cimento das suas obras, o braseiro do seu
zelo, a corôa dos seus amores. Tentai impedir o <lever
de ecoar nos lábios sacerdotais! Tanto valeria sustar
o nascer do sol: podem-se matar padres, o sacerdócio
não morrerá, nem o dever tão pouco. O seu púlpito
mais eloquente, o seu altar mais radiante, é ainda o
cadafalso.
O dever é indestrutível: como a cruz. Stat
cruz qum volvitur orbis ! Impossível abolí-la. Com
dois pedaços de pau, fabrica-se o signo da nossa re­
denção. E esta imagem tosca basta para evocar todo

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34 LÉON RIMBAULT

o Evangelho. Tentai pois arrancar todas as árvores,


far-se-ão cruzes.
O dever é indestrutível: como o firmamento. Co­
mo atacar as profundezas invioladas onde formigam os
sóis e as estrêlas? Vas castrorum in excelsis, splen­
dens gloriose (Eccl.).
"Derrul;iaremos os vossos campanários", dizia um
revolucionário a um campônio da Vendéia, "tirar-vos­
emos todos os sinais da vossa superstição!" - "Pois
seja." respondeu o aldeão, "então nos poremos de joe­
lhos diante das estrelas: destruí-as, se puderdes! ..• "
Os astros se riem das ameaças do ímpio. Enquanto
brilharem nas alturas serenas, darão à majestade do
dever o seu imperturbável testemunho. "Nós obedece­
mos a Deus", parecem dizer-nos, "seguimos, sem nun­
ca desviar, a órbita das nossas elipses."
"O' tu que nos contemplas, homem, creado à ima­
gem do nosso Creador, serve pois, com liberdade, com
inteligência, com amor, Aquele cujas vontades nós
executamos inconcientemente."
Quando todos os tratados de moral desapareces­
sem dêste mundo, o homem leria ainda o seu dever
no livro do firmamento.

E quando o dever lhe impusesse os mais pesados


sacrifícios, o homem saberia, com a graça de Deus,
consagrar-lhe o coração e a vida. Quem escreverá o
livro de ouro dos heróis e das heroínas do dever?

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AS H ER OI NAS D O D E VER 3 5.

O nosso século tem eriçado o dever de dificulda­


des sem número. E os mártires ele todo gênero não
lhe têm faltado.
- O dever é facil quando o dever é brilhante.
Lacordaire em Notre-Dame, Berryer no Parla­
mento, Freppel na Sorbona, davam o seu curso com
todas as ufanias de uma missão brilhante, em meio
aos aplausos <le toda uma geração. O auditório e o ora­
dor eletrizavam-se mutuamente.
- O dever é facil quando o dever é breve.
Quantos cristãos são capazes de um ato de gene­
rosidade magnífica: tal aquele pobre operário dando
o seu relógio a Monsenhor Mermillod: "Não preciso
saber as horas quando um povo morre de fome!" Tais
são os salvadores lançando êste grito sublime: "Salvar
nossos irmãos 011 perecer com eles I". Esses se dedi­
cam, sem pestanejar, sob um súbito impulso de entu­
siasmo ou de caridade. Mas não saberiam praticar
longo tempo a castidade, nem domar os ímpetos inces­
santemente renas·centes da cólera.
Têm o impulso mas carecem de perseverança. As
vezes a penitência custa mais que o martírio. Este é
instantâneo, aquela dura.
- Custa muito à jovem mãe amamentar o filho
"suspenso ao seu peito como uma flôr que a enfeita?"
Custa a filhos amar sua mãe? a um recem-casado con­
tentar sua mulher?
Evidentemente que não. E se o dever tivesse al­
guns espinhos nessas circunstâncias, exclamaríamos

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36 LÉON RIMBAULT

gostosamente: "Obrigado, meu Deus, por haverdes


feito brotar sôbre êstes espinhos tantas rosas! ... "
·*
**
Mas o dever tem as suas obscuridades, o seu si-
lêncio, o seu anonimato.
Que aplausos confortam o pescador nos nevoei­
ros da Islândia?... o comandante que sossobra em ple­
na noite, de pé, no tombadilho do seu navio afunda­
do? O maquinista esmagado debaixo da sua locomoti­
va? o mineiro sepultado e queimado numa explosão de
grisú? Não são esses uns heróis do dever?
- O dever tem as suas monotonias, as suas intér­
minas longuras.
Há que retomar dez anos, trinta anos, cincoenta
anos, cada manhã, no mesmo lugar, o mesmo jugo, a
mesma coleira de miséria.
Pobre criado a serviço de gente egoísta, rabujen­
ta, desconfiada!
Pálida e debil operária, acorrentada ao trabalho
durante a vida, numa oficina ou no seu tugúrio, alí,
no barulho ensurde,cedor que a fatiga, aquí num iso­
lamento que a rói!
Corajosa e cristã professora, perdida numa esco­
lazinha de aldeia, bastante forte, bastante paciente pa­
ra reter no coração a indignação que lhe assoma, às
vezes, aos lábios ao lado de tantas outras: "Sr. Inspc­
ctor, o pão que comemos sob as suas ordens já era
bem duro; mas hoje o sr: o tornou tã.o amar go, que
o irei comer à outra parte I"

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AS HEROINAS DO DEVER 3 7,

Humilde cura d'aldeia, privado durante o terror


bretão, da tua minguada côngrua, por ter ensinado às
tuas ovelhas, na língua dos avôengos, o catecismo que
ilumina e que consola: soklado da Igreja, que só a
morte póde dispensar de tua sublime facção.
Pobre doente a definhar, às vezes, cego e paralí­
tico; tua fé e energia persistem mais fortes que as in­
sônias, a pobreza, o sofrimento.
Não são esses os heróis do dever?
O dever tem suas amarguras e suas agonias.
Escutai o que conta a respeito do general Trochu,
o Correspondente, de 10 de Outubro de 18%:
"Eis aí um homem que, tendo ao mesmo tempo a
palavra e a pena, sepultou-se voluntariamente num
imutável silêncio, que, alvo, havia vinte e cinco anos,
ele todos os ataques, de todas as injúrias, de todas as
calúnias, teve a fôrça de ânimo ele suportar tudo, de
tudo sofrer com incomparável <lignida<le, resolvido a
calar-se até à morte, entregando-se, quanto à defesa
da verdade desconhecida e quanto à honra da sua me­
mória ultrajada, nem sequer a uma posteridade mais
ou menos imparcial, porém, unicamente à justiça de
Deus".
"Lembrai-vos de que deveis esquecer tudo ao me
deixardes (dizia êle a um amigo a quem narrava o seu
verdadeiro papel durante a guerra e a sua demissão da
Assembléia nacional), porque, repito, quero ser um
desaparecido. Só estou separado do asilo do último re­
pouso por' uma pequena parede por trás da qual me
espera minha querida mulher; doravante o meu único

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38 L É O-N RIM B A U L T

desejo neste mundo é ir juntar-me a ela na misericór­


dia de Deus."
Essas vidas dolorosas, heroicamente sacrificadas
ao dever, são menos raras do que se pensa, no nosso
tempo de crises financeiras e de catástrofes econômi­
cas.
Ah! quando a desgraça entra numa família, trans­
formando •completamente as condições de vida, dei­
xando nela, como que por um requinte cruel de sorte,
o brazão da riqueza desaparecida sôbre a pobreza pre­
mente, a distinção das maneiras na vulgaridade da la­
buta; impelindo ao escritório, à fábrica, aos duros em­
pregos da domesticidade o aticismo de uma democra­
cia decaída, faz-se mistér a esses homens e a essas
mulheres (mil vezes mais pobres do que os outros),
uma grandeza dalma, uma robustez de vontade, que
é o mais consumado heroismo.
Superar a má fortuna e manter a firmeza à altu­
ra da provação supõe, em tais conjunturas, uma rara
energia.
Não são esses os heróis do dever?
Cortejemo-los, com todo o respeito que merece a
coragem e a virtude. Façamos melhor do que admi­
rá-los, alistemo-nos resolutamente na sua milícia.
Mesmo porque não é lícito isolarmo-nos num egoísmo
sem honra, desertar o partido da ordem e da liberdade.
O dever é uma bandeira que não capitula nem re­
cua nunca. Deus plantou-a ufanamente nas alturas da
conciência humana. Cumpre, pois, seguí-lo no cami,
nho do sacrifício.

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AS HEROINAS DO DEVER 39
Os heróis jamais lhe têm faltado, nem ao culto,
nem à defesa. Poderemos, pois, como tantos outros,
formar-lhe das nossas vontades uma invencível guar··
da ele honra.
Façamos noss o o lema dos velhos manjes: Deo et
paci militantibus. "Avante por Deus e pela paz!" -
Deus, cuja glória queremos; a paz, que só o sentimen­
to do dever cumprido dá às almas.

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AS QUE PENSAM

Minhas senhoras.
"Os grandes pensamentos", disse Vauvenargues,
"vêm do coração."
Já antes Pascal chamara ao pensamento "o mais
alto lugar do mundo, ao qual nos devemos elevar."
"Pensar", escreve a seu turno Amiel, "é recolher­
se na própria impressão, desprendê-la cm si e proje­
�.ú-la 1111111 j11izo JH'ssoal. Por outra, é libertar-se, alfor­
riar-sc, ro11q11iHlar-sc.
Coração, beleza, elevação, recolhimento, liberta­
ção, alforria, conquista, como o vêdes, minhas Senho­
ras, nada falta à glória das que pensam.
Por todos esses títulos elas merecem ser arrola­
das entre as heroinas do dever.
Viestes hoje a esta conferência para ouvir falar da
alta cultura intelectual da mulher em nossos tempos.
Quais as razões 5:lela? quais as vantagens e os
perigos?
Dando ao vosso espírito, minhas Senhoras, sôbre
matérias tão complexas, a luz que ele reclama, não fa­
ço senão seguir a tradição da Igreja católica, feliz e
ufano de prestar à mulher da classe dirigente a honra
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42 LÉON RIMBAULT

de que a têm cercado, de S. Jerônimo a S. Francisco


de Sales, de Fénelon a Lacordaire e a Dupanloup, to­
dos os séculos cristãos.

*
**
"A alma não é um vaso que é preciso encher",
dizia Plutarco, "é um fóco que cumpre reaquecer". A
mulher, pelo mesmo título que o homem. minhas �e­
nhoras, tem direito a essa luz e a essa chama.
Porquanto, rogo-vos, noteis bem, não preconizo
aqui o estudo e a ciência para o vosso sexo, senão com
o ú.n.ko fim de vos tornar melhores. Morte à instrução
que em nada contribuísse para o vosso aperfeiçoamen­
to moral!
Toda conquista da vossa inteligência deve, pois,
estender e enriquecer o campo da vossa virtude.
Era bom afirmar isto, afim de não incorrer nas
fulminações de certos psicólogos de vistas curtas que
confundem, de caso pensado ou sem o saber, toda rei­
vindicação dos direitos legítimos da mulher com êsse
feminismo hostil, extravagante, anárquico, do qual se
póde dizer, sem exagêro, que era "um programa es­
crito com o que restava de petróleo nos tambores da
Comuna". (1)
Já não sei quem teve esta espirituosa tirada:
"Sim, estamos no século das luzes, mas é o diabo
quem segura a lanterna". Se assim fôr, minhas Se-

( 1) Abade Bolo, A mu./hey e o clero.

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AS HEROINAS DO DEVER 43

nhoras, devereis, tal como nós, dizer o vosso mea cul­


pa. Nosso Senhor Jesús-Cristo não mandou porventu­
ra aos seus cristãos que fossem o facho do mundo?
Onde, pois, lhe achareis na doutrina um passaporte
para a ignorância?
Filhas da Igreja, não tendes o direito de enterrar
a vossa inteligência. Ela deve, ao contrário, ser o agen­
te mais ativo da vossa elevação moral.
Fóra da religião católica, que vem a ser o desen­
volvimento intelectual da mulher? - Uma irrisão. A
história consigna, a cada passo, a espécie de diminu­
tio capitis de que fica ferido, longe do verdadeiro sól
de justiça, o pens·amento femini_no.
Interroguemos o paganismo.
"A mulher era educada numa ignorância comple­
ta: vivia à parte no gineceu. Fiar a lã, fazer vestidos,
distribuir a tarefa às servas, serva ela própria ou qua­
se, intendente, para nada exagerar, tais eram as ocupa­
ções" (1)
"Odeio uma sábia", dizia Eurípedes; "longe de
minha casa a que eleva a mente mais alto do que con­
vém a uma mulher."
Moliere não faz senão confirmar a induração do
preconceito pagão nos nossos costumes, quando põe
nos lábios do seu bom homem Crisale esta inépcia:
... "que uma mulher já bastante sab12
Quando a capacidade da mente se lhe exalça
A distinguir dum desponto um cós de calça I"

( 1) E, D��chancl, As cortesãs gregas.

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44 LÉON RIMBAULT

A mulher chinesa, a quem atrofiavam os pés e o


cérebro, a mulher gala que dizia ao viajor: "Não pos­
so indicar-te o •caminho, não passo de uma mulher"; e
a mulher turca, servilmente clausurada nas infâmias
do harem, em que foi que deixaram de ser as vítimas
dêsse exclusivismo deshumano e tão profundamente
materialista do paganismo?
Onde quer que não luz a doutrina de Cristo, a
J11Ulher permanece imersa na ignorância.
E como haveria de não ser assim? O paganismo
despreza por demais a mulher para haver jamais pen­
sado em lhe dar uma alta cultura intelectual.
Praticamente e socialmente, tem êle do vosso se­
xo, minhas Senhoras, sempre uma lastimável opinião,
a do velho Simônides de Amorgos: "Há dez espécies
de mulheres: a primeira parece-se com o javalí; a se­
gunda, com a raposa; a terceira, com a cadela rabu­
genta; a quarta, com a terra bruta; a quinta, com o
mar caprichoso; a sexta, com o burro teimoso; a séti­
ma, com a doninha magra e ladra; a oitava, com ·o ca­
valo de bela -crina; a nona, com o macaco; a décima,
enfim, com a industriosa abelha."
Esta enumeração faz pensar mais num curral do
que numa academia. O paganismo não parece suspei­
tar que a mulher tem uma inteligência.
O protestantismo leva em conta a inteligência da
mulher, mas lhe esquece a a�ma, desenvolve o "eu"
em excesso. Segurámente, con•forme Lutero, a mulher
não merece lá muito que se ocupem com a sua instru­
ção. Ente culpado e decaído, tem ela por amo o m�n-

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AS HEROINAS DO DEVER 45
do. "Há que honrá-lo, temê-lo, obedecer-lhe em tudo;
e à mulher não é lícito resistir mais do que é lícito ao
servo estar em luta com o dono; a mulher traz sem­
pre sôbre si o pêso da antiga maldição". (1)
Por uma dessas contradições de que formiga a
Reforma, a mulher, é verdade, deve pedir hoje em dia
a ciência a sua emancipação. Os liceus de moças fun­
cionam, por toda parte. Mas esses internatos sem al­
ma têm produzido a normalista sem fé, sem ideal, sem
entusiasmo, de vencimentos irrisórios; a nevrótica, a
desclassificada, a diplomada sem lugar, em revolta
contra a sociedade e contra a moral, que achareis "nos
albergues noturnos, em Saint-Lazare e nas calçadas
das grandes cidades" (2)
Portanto, o protestantismo não impeliu a lllulhcr
à conquista do saber humano scniio para relt·g·:'L--la para
longe de Deus, d<'sro11t1·111t', irritada, ro111 suas il11sõcs
destruidas e seus desejos insaciados. Desarraigada, ela
se mata ou se prostitue. Lúgubre desfecho da corrida
aos diplomas.
- O laicismo racionalista, por sua vez, só quer
apoderar-se da mulher instruida para arrancá-la à
Igreja, acusando a esta do obscurantismo.
"Para _dar cabo do catolicismo, é mistér, segundo
a palavra de Frederico, rei da Prússia, fazer dêle uma

. (1) Cf. Lutero, Obras, T. I, ed. Wittcnbergue, por Joan


Luffet.
(2) L. Randon, As vftimas da instrução, p. 23-25.

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46 LÉON RIMBAULT

coruja", como sabeis, essa ave solitária e triste, que


se posta a um canto com um ar carrancudo.
"Eis aí o segredo", dizia Lacordaire; isolarem­
nos de tudo, da política, da moral, do sentimento, da
ciência; suspenderem-nos entre o céu e a terra: "Ten­
des a Deus, para que precisais do resto?".
Se Lacordaire voltasse, minhas Senhoras, não fa­
laria mais da genuflexão dos nossos adversários. Hoje
em dia, a hostilidade não tem mais dessas deferências,
é abertamente violenta. Ai! parece que ainda o não é
bastante, de vez que nada nos póde tirar do nosso
torpor.
O livre pensamento tenta cm vão arrancar a mu­
lher à influência do catolicismo, e pretende havê-la
emancipado voltando-lhe o direito da instrução.
Não nos deixemos extorquir essa honra.
Só a Igreja deu à inteligência da mulher o nobre
e largo surto da verdade integral.
Só ela, sem discontinuar, tem convidado a mulher
a exercer, pela luz tanto quanto pelo amor, o império
do seu proselitismo sôbre as conciências, sôbre os go­
vernos, sôbre os povos, sôbre a vida religiosa ou sôbre
a vida familiar, sôbre a constituição temporal do pa­
pado e sôbre a propagação da fé.
A religião nunca foi um apagador, porém um re­
flet-or. Não amesquinha nem comprime a mulher; pro­
tege-a, fortifica-a e dilata-a.
Abrí os Evangelhos ou os anais eclesiásticos : em
parte alguma, minhas Senhoras, d�scobrir'eis a teor1a
da escravização intelectual do vosso sexo. Neles acha-

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AS HEROINAS DO DEVER 47

reis, ao contrário, a doutrina e o fato constantes da


elevação do pensamento feminino.
Quando foi, pois, que a ignorância, segundo o ca­
tolicismo, nos fez jamais assemelhar a Deus?
O nosso Deus não é porventura o Deus das ciên­
cias? Consoante Santo Agostinho, "a nenhuma das
creaturas a quem Deus confiou a lâmpa_da da inteli­
gência é lícito deixá-Ia esgotar-se e morrer à míngua
de alimento".
Corno tão pouco as do homem, as faculdades da
mulher não devem ficar inativas; a elas, como ao ho­
mem, se dirige o convite para ascender e avultar, que
é a razão divina da sua perfectibilidade: Ascende su­
perius.
"Todos os dons recebidos de Deus para servirem
v. alguma coisa, escreve M ons. Dupanloup (1), devem
ser cultivados; as almas, como a terra quando a dei­
xam maninha, só produz frutos silvestres, spinas et
tribulos. E Deus não fez as almas das mulheres, como
não fez as dos homens, para serem terras levianas, es­
téreis e malsãs".
Tudo o que a mulher possue de dignidade, de li­
berdade, de bem-estar, vem-lhe da Igreja.
Esta oferece aos dois sexos a mesma instrução re­
ligiosa. Por outro lado, a Igreja jamais ensinou que a
mulher era um sêr necessariamente relativo, "creado

( 1) A m11lh11r estudiosa..

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48 LéON RIMBAULT

unicamente para o homem e forçosamente condenado


ao casamento". (1)
Sem dúvida Deus creou a mulher dizendo: "Não
é bom que o homem esteja só: façamos-lhe um aclju­
tório semelhante a êle" Mas não é temerário afirmar
que o casamento foi instituído mais para a raça do que
para o indivíduo. Por isto, a mulher póde muito bem,
mesmo fóra do casamento, adquirir o seu desenvolvi­
mento intelectual e moral.
Certamente, a imensa maioria das mulheres encer­
ra as suas atividades nos limites estreitos da sua casa.
E' a vocação elo grande número. Porém a Igreja, lem­
brando-lhes o retrato da mulher forte, "que tece ves­
tidos para seus filhos, e cujos dedos seguram o fuso",
nunca lhes quis interdizer nem o livro nem a pena.
"faz o panegírico do trabalho manual, adora o filho do
,carpinteiro de Nazaré, •canoniza artífices. Mas preco­
niza, acima da "mulher dada aos trabalhos do lar, a
mulher arroubada na contemplação da verdade e que
escolheu a melhor parte"
De Paula a Radegunda e a Hildegarda, de Lioba
e de Gertrudes a Brígida, a Teresa, e Catarina de Sena,
ela tem mantido, nos altares, a independência femini­
na, colocando na mesma luz de apoteose, com a virtu­
de transcendente, os labores intelectuais e artísticos
das vossas ilustres predecessoras. Mme. Craven, Mme.
Barra, Mme. Swetchine, Maria Jenna, Eugênia Gué­
rin, não foram apenas, no nosso tempo, mulheres de

(1) Abade Naudet, Em Prol da mulher.

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AS HEROINAS DO DEVER 49

virtude sólida, porém pensttdoras e escritoras �istin­


tas.
"As mulheres parecem ser a presa, o joguete dos
homens, escreveu Michelet, e são-lhes a fatalidade".
Palavra terrível e profunda em certos casos, mas
que soa como uma blasfêmia quando se evoca a mara­
vilhosa influência da mulher sôbre o homem na histó­
ria da Igreja católica.
De qualquer ponto de vista que nos coloquemos
para admirar a irradiação benéfica, a ação preponde­
rante e decisiva da mulher erudita e piedosa sôbre os
homens e sôbre as -coisas da sua época, somos força­
dos a reconhecer na mulher a marca luminosa do es­
pírito da Igreja de que ela foi impregnada desde a
manhã da sua rehabilitação pela cruz e do seu aposto­
lado pela caridade.
"Mlle. Jericot, diz um douto escritor (1), crean­
do a Obra da Propagação da Fé, preparou um futuro
que lhe deverá talvez ta nta glória quanto à mãe de
Constantino ou à espôsa de Clovis".
Se a todas estas considerações cada sacerdote
acrescentasse o ·que êle deve em luzes naturais e sobre­
naturais ao pensamento de sua mãe, reconheceríamos
sem custo que aí, mais ·ainda que alhures, a inteligên­
cia da mulher tem sido geradora de grandes coisas.
Era dêste ponto de vista superior que o bem-aventu­
rado Suzo contemplava o vosso sexo, minhas Senho­
ras, quando, pondo ambos os pés na sargeta para dei-

(1) Bolo, A mulher , o cl-ero,

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50 LÉON RIMBAULT

xar passar uma das vossas, dizia esta palavra tão ca­
valheiresca e tão cristã: "Respeito para toda mulher
que passa na rua. Deixo-lhe o alto da calçada, porque
vejo nela a santíssima Virgem".
O paganismo relega a mulher à servidão, o pro­
testantismo atira-a ao orgulho.
Só a Igreja católica, transfigurando-a divinamen­
te, "deixa-lhe o alto da calçada" e convoca os homens
a cantarem o cântico das suas alegrias e das suas gran­
dezas: Magnificat ... quia respexit humilitatem ancil­
lae suae ... Fecit mihi magna qui potens est.

Excelentes razões reclamam essa cultura superior


do pensamento feminino. Ela tem suas vantagens, co­
mo tem seus perigos.
Não tenho o direito de calar nem umas nem outros.
A utilidade dessa educação intelectual é incontes­
tável.
- A mulher instruida saboreia alegrias superio­
res, grandes emoções estéticas, desconhecidas ainda do
mal por tantas mulheres.
A sabedoria antiga gravava no frontispício das
suas bibliotecas esta palavra em letras de ouro: Re­
médios para os males d'alma. Por que não haveria a
mulher de tomar a sua parte de cordial? Por que lhe
haveriam de recusar êsse anestésico das dores da vida?
Quantas entre vós, minhas Senhoras, se queixam
d.êsse "inexorável tédio que faz o fu.ndo da vida hu-

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AS HEROINAS DO DEVER 51

mana" (1) ! Elas poderiam fugir à lassidão, à desespe­


rança, pedindo ao estudo, a uma leitura séria, medita­
da, as fôrças de que a sua vontade há mister. Por que,
em vez de sonhar, não procuram elas pensar?
- A mulhei;: instruida pratica mais facilmente a
virtude, Nos seus caros livros, consultados em tempo
oportuno, analisados, saboreados longamente como
um nectar, gota a gota, acha ela uma diversão salutar
para as obsessões perturbadoras. Longe dela, esses so­
nhos malsãos on_cle, nas cubiças inferiores, confusa­
mente revolvidas, cavalgam por entre as trevas, sôbre
a fronteira imprecisa da imaginação, as larvas impu­
ras do infernal abismo.
Longe dela essas impetuosidades estonteantes da
paixão, quase sempre à espreita nos cios dum nervo­
sismo romanesco e sentimental.
Longe deb, enfim, todos esses esmorecimentos,
todas essas prostituições duma alma que não sabe mais
senão seguir à mercê da corrente - tal o nenúfar dos
pantanais mórbidos - as impressionabilidades do iso­
lamento e do vago do coração, das molezas da divaga­
ção deprimrnte do espírito, O trabalho intelectual, ro­
busto e moderado é um seguro preservativo contra a
nevrose e contra a histeria.
- A mulher instruida - não falo nem da pedan­
te, nem da sabichona carregada de diplomas e que não
sabe nada, mas da que tem "clarezas em tudo" (2) -

( 1) Bossuet.
(2) Mme. de Sévigné.

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52 LÉON RIMBAULT

adquire da vida idéia mais justa, dos seus deveres con­


cepção mais verdadeira.
Ela traz à sua tarefa toda a superioridade que lhe
distingue a inteligência (1). Liberta-se virilmente do
fetichismo dos enfeites e dos mexericos. Porque a se­
renidade luminosa e habitual do pensamento haveria
de fazer dela uma má dona de casa? Por que o encanto
de bom quilate que ela exerce no salão haveria de tor­
ná-la imprópria para a perfeita ordenação do ofício?
A mulher instruída reage eficazmente contra a
inanidade e banalidade das reuniões mundanas; impri­
me ao pensamento dos homens, pela oportunidade dos
seus reparos, pela finura das suas percepções, pela so­
lidez dos seus juizos, uma direção superior tanto mais
podero&a quanto mais doce, e quanto tem por aliados
a graça e o sorriso.
- A mulher instruída, quando permanece humilde
e piedosa, pura e caridosa, nada tem a temer das per­
versidades heréticas e das ironias livre-pensadoras. Co­
nhece a racionabilidade fundamental da sua fé, pesou
o valor dos testemunhos católicos. O catolicismo é
para ela não só um conjunto tle mistérios que lhe é ló­
gico e necessário aceitar, porém um fato visível, ber­
rante, transcendental, com o qual confinam a ciência,
a santidade, a liberdade, a civilização, a história, a poe­
sia, e cuja grandeza lhe provoca os entusiasmos., as
ternuras, as ufanias. O catolicismo aparece-lhe como

( 1) Mme. Maria do Sagrado Coração, A formação da mu­


l/1er contemporânea.

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AS HEROINAS DO DEVER 53
o mons magnus, a montanha sublime, assente por Deus
.no centro dos séculos e da humanidade: todos os rios
da vida individual e social lhe manam dos flancos; to­
dos os clarões da profecia iluminaram-lhe a fronte;
todas as águias da contemplação se lhe aninharam nos
cimos; Deus e o homem encontraram-se-lhe nas vere­
das. N êle está edificada a cidade de Cristo e das al­
mas. Assim sendo, que importam a essa crente as dis­
cussões mesquinhas da crítica racionalista, a chicanar
sôbre um algarismo, sôbre um texto? Ela abraça o ca­
tolicismo na amplitude da sua majestade, na duração
da sua influência, na riqueza inexaurível das suas ins­
tituições e no encanto perpétuo do seu milagroso reju­
venescimento. Nada é mais antigo e nada é mais mo­
derno; nada é mais necessário e nada é mais vivo. Por
isto, "com o ramo de ouro da religião na mão, ela pas­
sa valentemente através das sombras, das tristezas e
das tempestades, certa do caminho que deve seguir e
da meta que deve atingir" (1). Não contente de con­
servar a fé, defende-a, propaga-a. Cristã convicta e fe­
liz não é o bastante: cumpre que seja apóstola.
- A mulher instruida faz a felicidade e a gran­
deza do marido.
"Só há sociedade entre as inteligências, e.screveu
algures Lammenais. A sociedade intelectual é a única
sociedade, o elemento necessário e como que o fundo
df; todas as associações exteriores". - "Mais cedo ou

(1) Mons. Fuzet, De11 anos de episcopado: A vei.tu,w de ter


convicções religiosas.

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54 LÉON RIMBAULT

mais tarde, diz Lacordaire, quanto mais a gente enve­


lhece, tanto mais acaba por só amar as almas".
Sob diferentes fórmulas, cada qual pensa assim.
E por que então, na prática, se age de modo con­
traditório? Fortificai a inteligência da mulher, dai à
,sua fé a cultura duma filosofia �m relação com a sua
natureza, mais delicada, tão nobre porém quanto a elo
pomem; duma filosofia conforme às exigências novas
da sociedade moderna; e tereis apertado os laços da
sociedade conjugal.
O cimento dos interêsses materiais ou da paixão,
tão efêmera, é demasiado fraco para assegurar por
muito tempo a indissoluvel união das pedras do lar. O
coração, sem dúvida, tem a sua linguagem. Gosta de
conjugar em todos os tempos o verbo que melhor ex­
prime a sua lei, a sua necessidade, a sua beatitude.
Mas a gente se cansa, apesar de tudo, de pôr sem fim,
segundo a palavra dum poeta francês, "um ponto cor
de rosa sôbre o i do verbo aimer."
"E' uma grande infelicidade, disse Moos. Dupan­
loup (1), quando um marido boceja em escutando a
mulher. A mulher póde agradar por uão sei que graças
leves e todas de superfície, mas isso não basta para for­
mar um interior atraente, interessante, capaz de reter
um marido em casa e de subtraí-lo aos apelos de fóra.
Isso não basta para fundar esses apegos sérios, pro­
fundos, duradouros, que não dispensam a estima e a
confiança.

(1) A mulher estudiosa.

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AS HEROINAS DO DEVER 55
"Cedo ou .tard�, não se frue mais senão das al­
mas", minhas Senhoras. A cultura intelectual na mu­
lher preserva-a dos -cabelos brancos e das rugas. Eis
aí, não duvideis, a verdadeira fonte da juventude do
amor, quando êste se eleva, à hora que pende para a
noite, às cumiaclas tranquilas duma forte e suave ami­
zade.
"Toda espôsa, verdadeiramente espôsa, disse Le­
gouvé, tem como carreira a carreira do marido".
Isso supõe entre êles a harmonia das inteligências
na luz tanto, quanto a dos corações no amor.
Ditosos os casais onde o marido, em qualquer
ocurrência, póde dirigir à mulher a interrogação de
Luiz XIV à Mme. de Maintenon: "Que pensa disso
Vossa Solidez?".
A mulher instruida conserva sôLre a alma dos fi­
lhos duradoura e vitoriosa influência. "Os homens são
raros, escreve uma douta mulher (1), porque são ra­
ras as verdadeiras mães.
"Estas preocupam-se demais com fazer dêles um
bonito manequim de vestuários, e muito pouco com
fazê-los uma criatura séria, capaz de compreender os
deveres da. exi'51.êuda. Elevar a mulher para engrande­
cer o homem, regenerar o indivíduo para regenerar a
sociedade, é o que todo homem sábio repete, o que
nós repetimos por nossa vez". Qual o meio que ela
propõe?
"Uma instrução superior na qual entrarão, como

(1) Mmc. Maria do Sagrado Coração.

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56 LÉON RIMBAULT

primeiros elementos, a ciência que f6�a a mulher in-


telectual, e a rel�gião que fórma a cristã".

*
**
Eis aí algumas das preciosas vantagens que a mu­
lher está no direito de pedir ao ensino. Mas a impar­
cialidade exige que eu não cale, tão pouco, os pe;igos
duma cultura intensiva da inteligência feminina. Na
estrada da plena luz para onde vos convoco, minhas
Senhoras, há que plantar, por intervalos, o poeta avi­
sador do Touring Club: "Atenção! descida rápida!
curva perigosa! ".
Os adversários dos progressos feministas exage­
ram naturalmente esses perigos: porém as suas obje­
ções estão longe de ser insolúveis. Que nos opõem êles?
Argumentos de mundanidade.
"Quereis fazer das nossas filhas, dizem êles, umas
sabichonas, umas pedantes, umas viragos. Tornareis
intoleráveis as reuniões de família, impossíveis as "soi­
rées" do mundo."
- Em qtte é, pois, que a ciência bem. entendida,
isto é, sã., modero.da, nssimila<la brandamente ao t:spi­
rito, haveria de tornar a mulher menos amável?
A supor que ela evitasse um pouco mais �s salões
d o "mundo onde a gente se aborrece", para consagrar
os seus lazeres ao estudo, onde estaria o mal? Haverá
sempre bastante bonecas e ídolos nos templos do pra­
zer, nos grandes armazens _cte novidades, no teatro,
nos parques, nos corsos.

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AS HEROINAS DO DEVER 5 7,
Argumen'tos de moralidade.
"A mulher instruída tornar-se-á orgulhosa, imper­
tinente; abrís brecha na autoridade do marido, desu­
nís a vida doméstica."
Meu Deus! o espírito de soberba não é tão raro
entre os homens, minhas Senhoras, que muito tenha­
mos de nos admirar de encontrá-lo entre as mulheres.
Mas, em matéria de orgulho, a ciência será a única
culpada?
Não conheceis mulheres tanto mais arrogantes
quanto mais ignorantes? O pavão certamente faz mal
em se comprazer nas esmeraldas da sua plumagem;
porém o perú terá mais razão de ostentar a ignomínia
da.· sua carúncula?
Em que é que o orgulho dos tôlos é mais suportá­
vel cio que o ela gente de espírito?
A ciência verdadeira, a única desejável, minhas
Senhoras, é a ciência de joelhos diante de Deus, serva
ativa da virtude.
Ela revela o nada do homem e a grandeza de
Deus: é na confluência destes dois sentimentos que co­
meça a humildade. A pequenez, a mediocridade, a pre­
tenção, -n vulgaridade, a estreiteza: eis os produtos da
falsa •ciência. O silêncio, a paz, a adoração, a sublime e
terna confiança, a oração: eis os frutos divinos da ver­
dadeira ciência.
"Acontece às pessoas sábias", escreve Montaigne,
"o que acontece às espigas do trigo: vão-se elevando
e alteando, de cabeça erguida e altiva enquanto estão
vazias; mas quando estiverem cheias e grossas de

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53 LÉON RIMBAULT

grãos, na maturidade, começarão a humilhar-se e a


abaixar as cristas".
Tendo humildade, por que será, por outro lado,
que a mulher, com ter o espírito mais ductil, mais es­
clarecido, se haveria de tornar insuportável ao marido?
Longe da mulher a ciência que diminuisse nela a
espôsa ou a dona de casa! Mas, francamente, se a su-,
perioridade do marido se obtém à custa da ignorân-
,
cia de sua mulher, é muito barata.
E, sem comprometer a felicidade conjugal, é lícito
achar que Mmc. Racine, "localizada entre a fruteira e
o armário de roupa, inhábil para se elevar acima duma
receita de doces ou dum processo p'ra se livrar das tra­
ças", não é talvez o ideal da mulher cristã. Ela é por
demais exclusivamente a Marta do lar.
Argumentos de fisiologia.
A cultura intelectual, dizem ainda, só póde desen­
volver na mulher o cérebro em detrimento do coração.
Ela stúocará, nos frios cálculos dum positivismo
todo masculino, os germes de entusiasmo, de piedade,
de simpatia, em que era tão ricamente fecunda essa
frágil e delicada.-:'natureza.
O sexo da beleza e da devoção deve confinar-se na
(l.
:'d� icação : seu papel é o ministério do interior. - Por
que en�o, pela ciência, lhe quereis confiar o ministé­
rio do exterior?
A sedenhriedade escolar, a "surmenage", o aço­
damento da corrida aos diplomas, deram-nos um__a ge­
ração sorumbática, cerebrina, estiolada, nevrótica, "dé­
traquée"...

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AS HEROINAS DO DEVER 59
- Respondo: sim, o trabalho intelectual exagera­
do, para as moças e para as mulheres, é o que há de
mais malsão.
Sim, a instrução intempestiva e excessiva é con­
trária a todas as clelicadezas nervosas, idealistas, afeti­
vas, 4aquela a quem necessariamente é confiada a re­
serva do futuro.
Fóra com as patentes e com os diplomas!
Uma nulidade póde ser revestida de pergaminhos
e de incapacidades. Não se trata, minhas Senhoras, de
atulhar a vossa memória, mas de exorná-la; não se tra­
ta àe exacerbar, de fatigar a vossa inteligência, em­
panturrando-a de trechos de história, de geografia, de
literatura, de física, de química, sem nexo, sem coesão,
sem solidez, porém de dar-lhe idéias justas que ela
possa controlar, princípios gerais que a elevem e forti­
fiquem. Por que então a mulher que sabe mais haveria
de ser menos amante, menos generosa, menos dedi­
cada?
Não teria ela., ao contrário, num estudo apropria­
do ao seu sexo, aos seus lazeres, aos seus deveres do­
n:ésticos, conjugais ou maternos, um alimento para a
avidez da sua imaginação, um poderoso meio de com­
bater todas as idiotices e lascívias literárias de que são
infectados os salões modernos, um refúgio calmo e mo­
ralizador contra as ventanias da tentação ou contra as
fulminações da provação?
Esse estudo não tirará à mulher nada do encanto
do seu sexo. O boi e a alvéloa frequentam o mesmo
sulco, o belo sulco que fumega pela "manhãzinha",

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60 LÉON RIMBAULT

prontinho para a "canção das espigas d'ouro". A gra­


ça alada da mulher não tem que tomar, no campo do
trabalho intelectual, os portes pesados, a marcha lenta
e penosa do homem.
Entre o homem e a mulher, não há identidade in­
telectual, há equivalência, paralelismo, harmonia. Os
dois sexos se valem e cada um completa o outro. Mes­
mo estudando as ciências que o homem aprende, a mu­
lher deve estudá-las como mulher.
"O homem", disse Ruskin (1), "deveria saber a
fundo toda língua ou toda ciência que aprende, ao
passo que a mulher só deveria saber dessa mesma lín­
gua ou dessa ciência aquilo que a torna capaz de sim­
pa�izar com o marido nas suas satisfações intelectuais
ou nas dos seus melhores amigos."
Conserve, pois, a mulher uma missão conforme à
sua natureza. O homem arrastado pelas preocupações
materiais da luta pela existência precisa encontrar, na
gleba do seu rude trabalho, uma alma que não suporte
o pêso dêste, uma inteligência esbelta, elevada, alada
como o pensamento, alegre como o amor.
"O novo papel da mulher", disse um escritor, "é
opor o culto do ideal, que se vai, ao culto invadente
da matéria."
Ao boi que lavra deixai a alvéloa que canta.
- Opõem-nos, finalmente, argumentos de religião.
Tomai tento, clamam-nos, foi i:)OS países protestan-
tes, Inglaterra, Alemanha, Estados-Unidos, que o sur-

(1) O lfrio do jardim da RaiKha, § 74-75.

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AS HEROINAS DO DEVER 61
to intelectual foi principalmente dado à mulher. Con­
vém que a mulher católica siga êsse arrastamento?
Não receiais que a "dúvida se substitua à qença, dada
sobretudo a feição sectária do ensino público, às vezes
abertamente dirigido contra a fé" (1)?
E primeiramente por que foi que deixámos aos
protestantes, a honra duma iniciativa que nos de­
veria ter cabido? A testa de todo progresso, de toda
reforma, deveríamos ocupar a primeira fila. Por que é
que, filhos da luz e da caridade, nos deixamos suplan­
tar num terreno qualquer de influência social?
Em segunda, devemos nós dar a crer que o ,cato­
licismo é refratário a toda ascensão legítima dos sexos
e das classes? Depois de termos mostrado, a respeito
do movimento socialista, uma imperdoável indifere:a­
ça, iremos repetir a mesma falta a respeito do movi­
mento feminista?
Seria temivel desgraça.
A mulher, repitamo-lo, nada tem que temer da
ciência. A sua religião tem tudo a ganhar, pelo contrá­
rio, com essa ,cultura intelectual que valorizará, aos
olhos da crítica moderna, as verdades fundamentais
da fé.
"A malevolência e a tolice", disse Ernesto Hello,
"têm conspirado para dar às virtudes um aspecto beó­
cio e desbotado, apagado e lamentável. Ninguém sabe
até que ponto os homens, famintos e sedentos de gran-

(1) Abade Naudet, Desenvolvimento iHtelertual da mulher.

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62 LÉON RIMBAULT

deza, são afastados de Deus pelos pequenos livros que


fazem Deus pequeno."
A mulher instruída estará para sempre ao abrigo
das mesquinharias insulsas duma devoção sem alma.
Larga de espírito, profunda de coração, ela terá, com
um juízo esclarecido, sólido e seguro, a fé firnússima,
as másculas virtudes duma cristã meditativa e meiga
como a pomba, forte e temível como um "exército e�
linha de batalha".

Minhas Senhoras.
Termino:
Lembra-vos terdes visto no Salão, há alguns anos,
um quadrinho encantador de Toudouze? Num páteo
de fazenda oriental, um pobre jumentinho espera, cis­
mador, sob os arreios 9-a partida: uma charrua ,derri­
bada, um ancinho, urna lanterna, jazem no chão her­
boso; umas galinhas ciscam aquí e acolá, cacarejando.
E todas essas coisas são banhadas de paz e de
frescor. Lá em baixo, o dia nasce e faz, todo cor de
rosa, um recanto do céo, ao passo que no lado oposto
as estrelas se apagam, loiras, já pálidas, no lapis-lazuli
do firmamento.
Ora, perto de boà alimária, silenciosa e selada,
José, o carpinteiro, em pé, mira vir a santa Virgem.
Ei-la que sái çla rústica casa: aparece, graciosa e reco­
lhida, no mais alto degrau da escada musgosa pela
qual se desce para o cercado.
Com que ternura, com que fôrça, segura ela nos
praças o meigo Menino que a faz resplandecer I Bela

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AS HEROINAS DO DEVER 63
e pura, na sua longa manta azul, elé!, irradia, sôbre um
fundo de estrelas e de aurora, a luz da virtude.
T0da a luz de sua alma se lhe funde na fronte,
em nimbo de apoteose.
Por entre os instrumentos agrícolas, na simpleza
dessa moldura campestre.,. José contempla-a, respeito­
so e enternecido.
Não duvideis, minhas Senhoras, a mulher instruí­
da também exercerá êsse encanto poderoso, 1rres1s­
tível.
Nas alturas da vida doméstica, ela será, numa cla­
ridal1e cre3cente, a alegria, a felicidade de todos os
que a amam.

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AS QUE VIBRAM
Minhas Senhoras.
O homem é uma creatura essencialmente emotiva.
As alegrias e as tristezas, os entusiasmos e as indigna­
ções ,os desejos e os desesperos, tudo o faz perpetua­
mente vibrar. Num poético símbolo, a sabedoria egí­
pcia comparo_u-nos, minhas Senhoras, àquela estátua
encantada das solidões de Memnon, que, com a fronte
banhada de auroral claridade, se fundia em harnronio­
sas modulações. Ah! não é somente a nossa cabeça
que canta, é o nosso coração, é a nossa própria carne.
Cor meum et caro mea exultaverunt in Deum vivum.
A lira humana, suspensa no centro dos mundos, tem
cordas inúmeras, sempre prontas a" vibrar, e, donde
quer-que soprem as brisas que as tocam passando, elas
vibram, acordando écos misteriosos do infinito ou ru­
mores confusos de abismo.
Mais ainda que o homem, a mulher é emotividade,
a mulher é vibração. Haverá que nos admiremos? Não.
Os yossos tecidos mais delicados, os vossos nervos
mais tênues, o vosso coração mais sensível, mais ar­
dente, mais profundo, a vossa imaginação mais móvel
e mais viva, por natureza, vos colocaram neste mundo,
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66 LÉON RIMBAULT

minhas Senhoras, qual harpa eólia, onde o homem gos­


ta de reencontrar, com um encanto a mais, o mistério
das suas próprias emoções.
Poucas mulheres querem e sabem pensar.
Todas, voluntariamente ou não, vibram, porque
todas são apaixonadas. Não vos escandalizeis com esta
palavra, minhas Senhoras. Ela nada tem de ofensivo.
As paixões são movimentos, fôrças. "Deus", disse um
romancista (1), "crea fôrças, e o homem, no seu livre
arbítrio, emprega essas fôrças no bem ou no mal. E
como Deus é uno e indivisível em toda a sua onipo­
tência, sucede com as paixões como co� os outros
elementos: nenhuma é má em si; são alavancas. O ho­
mem serve-se delas bem ou mal, segundo as decisões
do seu livre arbítrio."
Pois bem, já que as paixões desempenham papel
preponderante na vida das mulheres, eu quisera estu­
dar convosco qual a natureza delas: o que modificará
talvez algumas das vossas idéias sôbre isso; e quisera
em segundo lugar dizer-vos que uso devemos fazer de­
las na vida cristã: o que, tranquilizando certo niímerô
de conciências, poderá mudar igualmente algum dos
vossos hábitos e ambições.

***
Há, na moeda corrente de que os homens se ser­
vem para as suas transações comerciais, peças de mau

(1) Eugênio Sue, Os sete pecados capitais, a Inveja, XXVII.

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AS HERod�As DO DEVER 67

quilate: desconfiamos delas, e temos razão. Na maio­


ria elas vezes, tomadas informações, verifica-se que
são falsas. O mesmo se dá com as palavras. No uso
que delas faz, o mundo compraz-se em fazer circular
moeda má.
O mundo falseou o sentido da palavra paixão.
Quase sempre, na linguagem vulgar, a palavra
paixão é tomada em mau sentido, e quase só designa
os movimentos violentos, bastante fortes para nos per­
turbarem a razão, para nos paralisarem a liberdade.
"Têm êles analogia", diz Tomaz Reid, "com tempes­
tades no oceano, com borrascas nos ares".
Esta expressão "as paixões" acabou mesmo por
ser reservada aos arrastamentos dos sentidos, às lou­
curas ruidosas da vida. Daí estas 'expressões: a idade
das paixões, largar a rédea às paixões, as devastações
das paixões.
E' bem essa, não é exata?, a imagem que em nós
desperta imediatamente e quase sempre essa palavra
terrível e grande?
Por isto, minhas Senhoras, se nos elevarmos ago­
ra ao estudo ou à indagação do que pensaram dela os
moralistas, vamo-nos achar em face de escolas dife­
rentes.
Eis o estoicismo.
Condena êle as paixões, de todo em todo, decidin­
do que são más; que são as febres malignas da nossa
humaúidade, enfermidades e decadências a que o sá­
bio deve antes de tudo subtrair-se.
E como a essa academia orgulhosa faltava talvez

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68 LÉON RIMBAULT

o prestígio dos amplos gestos e das retumbantes sono­


ridades, conheceu ela essa rara fortuna de ter por após­
tolo e por pontífice o gênio mais fecundo, mais macio,
mais harmonioso, mais decorativo, senão o mais vigo­
roso, que a antiguidade tenha visto: o gênio de Cícero.
As paixões num homem, segundo Túlio, são per­
turbações mórbidas: perturbationes mentis.
Os criminalistas modernos parecem inspirar-se
dessa lamentável teoria, quando pretendem descobrir
nos crimes, ditos passionais, um regresso inconciente
às selvagerias do instinto, às ferocidades ancestrais,
aos gestos ele presa por onde o homem proclama a sua
filiação animal. O. delírio homicida, segundo a expres­
são dos psiquiatras, revela-se em grande número de
casos como uma fórma disfarçada tjo delírio alcoólico.
Os passionais são uns irresponsáveis. Uns degene­
rados, ,conclue a ciência .moderna, que· os distingue,
que os categoriza entre "o anormal simples e o crimi­
noso puro".
Por isto, o ilustre Lombroso, em outubro de 1897,
no congresso internacional de medicina de Moscou,
propunha uma fórmula adequada do sistema penal,
baseada principalmente na "diminuição da pena em in­
fâmia e em rigor, pelo seu aumento em duração e em
garantia social".
Depois do estoicismo antigo e da antropologia cri­
minal moderna de que se inspiram os nossos bons ju­
rados, para absolverem a torto e a direito, eis a escola
naturalista.
P:tr" Rnic11ro_ romo nara Te�rn-Ta-cotte;: Rousseau.

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AS HEROINAS DO DEVER 69

as paixões, longe de serem doenças e degenerescên­


cias, são a condição sine qua non da virtude; são ex­
celentes, <levemos cultivá-las, desenvolvê-las, abando­
naranos a elas sem escrúpulo, não fazer caso algum das
conveniências e convenções sociais que as proscrevem.
"O homem nasce bom, é a sociedade que o depra­
va." - "Todos os movimentos d a natureza ( quer di­
zer, as paixões) são bons." - "Quereis fazer um sá­
bio? começai por fazer dêle um corruto: máxima in­
contestável". (1)
"Não creio em nada nem em ninguém. Tenho por
princípio fazer em tudo aquilo que me apraz, a despei­
to de todas as convenções sociais. Quereis que vos
abra o meu ·coração? Penso que se deve pedir a esta
vida o máximo de gozos possível, euquanto não che­
ga o grande pavor final que é a morte". (2)
Finalmente, eis a escola católica.
Para nós, minhas Senhoras, as paixões não são
necessariamente impulsos desordenados ela seiva vi­
tal, nem arrastamentos fatais das nossas potências in­
feriores; significam apenas abalos, atividades, emotivi­
dades da alma para fugir a um mal ou buscar um bem.
E' a fórmula da escolástica: Motus appetitus sen­
sitivi ex imaginatione boni vel mali, cum transmuta­
tione corporali. ( 3)
- Na idade média, Santo Tomaz, inspirando-se

(1) Jean-Jacques Rousseau.


(2) Pierre Loti.
(3) S. Tomaz.

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70 LÉON RIMBAULT

de Aristóteles, admite onze paixões principais, -classi­


ficando-as em dois grupos segundo o seu objeto se
apresenta simplesmente sub ratione bani, isto é, como
um fruto delicioso de ver, de tocar, de gostar, cuja só
aparição nos faz, perdoai-me esta palavra, vir água à
boca, ou sub ratione ardui, isto é, rodeado de obstá­
culos, eriçado de dificuldades cuja vista aguilhoa as
nossas energias.
As primeiras, em número de seis, são : o amor e o
ódio, o desejo e a aversão, a alegria e a tristeza, e su­
põem apenas a presença ou a ausência dum objeto
bom ou máu. As cinco outras: a esperança e o temor,
a audácia e o desespero, e finalmente a cólera, acres­
centam a essas idéias a de um obstáculo a vencer.
As paixões são essencialmente movimentos sensí­
veis da alma. Por isto, notai-o, minhas Senhoras, a
cólera não póde ter contrário na ordem passional ; pois
o seu contrário seria a ausência de movimento, por
conseguinte de paixão.
BOSSUET aceita a divisão ele Santo Tomaz, mas
aplica-se a mostrar como, cm definitivo, todas as pai­
xões se reduzem a uma só: o amor.
"Tirai o amor, diz ele, e não há paixões; ponde o
amor, e as fa_zeis nascer todas. Assim o amor é a pri­
meira das paixões e a fonte de todas as demais"
Essa nomenclatura, minhas Senhoras, parece-vos
talvez um pouco sêca, e por isto não me desagrada
dar-lhe um pouco de relêvo, iluminá-la da chama
quente e viva que jorra do coração humano.

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AS HEROINAS DO DEVER 71

"A eloquência é filha da paixão", afirma Lacor-


daire. Tudo o que apaixona, faz, portanto, vibrar.
Escutai os salmos de Daví.
Nada mais apaixonado.
Jamais a fibra humana resoou em acordes tã? ín­
timos, tão penetrantes e tão graves; jamais a alma e a
carne do homem fizeram ouvir tão sublimes e tão jus­
tos, tão dilacerantes e tão ternos acentos; jamais sen­
timentos se escaparam do coração com semelhante im­
petuosidade, jamais lágrimas, diante do Eterno, rola­
ram dos olhos com tanta amargu:r� e tamanha doçura.
Que explo�ão de vida! que intensidade de emo­
ção! que santa embriaguez!
Escutai cantar, chorar, indignar-se a harpa ou an­
tes a alma do rei dos líricos, do primeiro dos poetas
do sentimento, e reconhecereis, de pronto, cada uma
das paixões catalogadas por Santo Tomaz.
- "Como são amá veis os �·ossos tabernáculos, ó
Deus dos exércitos! Minhalma desfale-ce e se consome
nos átrios do Senhor, minha carne e meu coração exul­
tam no Deus vivo. O pardal acha uma morada e a rôla
um ninho para repousar a sua ninhada. Vossos alta­
res!. .. O' Deus dos exércitos, meu Rei, meu Deus!... "
Eis aí o amor ...
- "Não odiei aqueles que vos odiavam"?, diz êle
a Deus. E se ouve blasfemar-lhe o nome, se vê calcar
aos pés a sua lei, oprimir as viuvas, despojar os ór­
fãos, não se contém já, irrita-se, ameaça, indigna-se,
amaldiçoa, seca de dor. "Ah! detesto-os com ódio per­
feito."

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72 LÉON RIMBAULT

Eis aí o ódio.
- "Até quando ficarei entre os habitantes odio­
sos de Cedar?" - Ad te de luce vigilo. "O cervo sus­
pira pelas fontes de água viva", musicais, atravessadas
de arco-iris, "assim minhalma suspira por yÓs, ó meu
Deus" "Quem me dará as asas da pomba, e irei des­
cansar em vós."
Eis aí o desejo.
- "Quanto aos m.áus, não tomarei minha parte
nos seus sacrifícios cruentos, nem sequer seus nomes
me mancharão os láBios." "Hei fugido aos seus con­
ciliábulos ... "
"Estive só com o pelicano no deserto."
Eis aí a aversão.
- Sob vinte nomes diferentes a lei de Deus lhe
torna aos lábios, acompanhada de novos elogios. Ele
gosta de meditá-la, ela o consola na sua mágua, é a
sua luz, o seu tesouro, a sua fôrça, a sua glória. Deve­
lhe êle a sabedoria dos velhos e a felicidade das crian­
ças. "Como as vossas palavras são doces na minha
boca!".
- "Corri na trilha dos vossos mandamentos,
quando me dilatastes o coração."
Eis aí a alegria.
"Sou como o xofrango escondido nas ruínas, co­
mo o pardal solitário que geme na cumieira elos palá­
cios ... Meus olhos vertem rios de lágrimas. comí
e meu pão na amargura... consumí minhas noites nas
desolações, enquanto me clamam: onde está o teu
Deus?"

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AS HER0INAS DO DEVER 73

"Por que estás triste, minhalma. e por que me


perturbas?"
Eis aí , a tristeza.
"Esperei no Senhor, não serei confundido." O Se­
nhor faz as vezes de tudo para o salmista: é a sua fôr­
ça, o seu sustentá,culo, a sua paciência, a 'sua miseri­
córdia. Spera in Deo, anima mea.
- Aquí Davi manifestamente inspirou Alfredo de
Musset:
Quand j'ai traversé la vallée,
Un oiseau chantait sur son nid:
Ses petits, sa chere couvée,
Venaient de mourir dans la nuit;
Cependant, il chantait l'aurore.
O mon âine, ne pleurez pas ;
A qui perd tout , Dieu reste encore,
Dieu là-haut, l'espoir ici-bas. ( l)

Eis aí a esperança.
"As frechas elo Senhor perfuraram-no. Seus ossos
estão abalados, suas carnes se despregam, êle arreia
em terra, o coração se lhe turba, toda a sua fôrça o
abandona."
"Por que te intrometes a anunciar os meus pr_e­
ceitos, boca impura? disse o Senhor ao culpado. Só
quero ser celebrado pelo justo."

(1) Quando atravessei o vale, cantava 11111a ave cm seu ni­


nho; os pdizes, sua cara ninhada, tinham morrido durante ·a noite;
entretanto êle cantava a aurora. O' minha alma, não choreis, não;
a c1ucm perde tudo Dens resta ainda, Deus lá em cima, a esperanç11
cá em baixo.

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74 LÉON RIMBAULT

"Se considerardes as minhas iniquidades, Senhor,


Senhor, quem suportará o vosso choque?"
Eis aí o temor.
"Que temerei? Diante de quem tremerei? Meus
inimigos são como uma matilha que ladra à caça, que­
rem devorar-me. . . esmagar-me debaixo do rolo ...
Erijam êles contra mim o seu acampamento, meu co­
ração não temer.á.
Levantem-se para me combater, contarei com o
próprio ,combate." •
Eis aí a audácia.
"As ondas tragaram-me, debato-me, uivando, no
fundo dum pélago lodoso. . . O' Deus, ó meu Deus,
por que me abandonastes?"
Eis aí o desespero.
No salmo CXXXVI, o mais belo dos cânticos sô­
bre o amor da pátria (1), que indignação contra os
inimigos de Jerusalém!
"Mald'ita filha de Babilônia, bendito seja o vinga­
dor que te retribuir teus golpes! bendito aquele que
tomar os teus petizes e os esmagar no calçamento I"
Eis aí a. cólera.
Que téla viva os salmos! tudo toma uma fórma,
um corpo, uma� alma, uma linguagem. A paixão ex­
plode por toda parte em acentos ternos ou pungentes.
Todos os gemidos e todos os gritos do coração
humano acharam suas notas e suas vozes nos lábios

( 1) Chateaubriand.

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AS HEROINAS DO DEVER 75
do Rei-Profeta, o mais apaixonado dos cantores de
Israel.
Após denominar as paixões e fazê-las vibrar aos
vossos ouvidos na harpa de Davi, quero dizer-vos o
mecanismo delas ou a tática.
Nas suas relações ,com a vontade, as paixões, em
nós, seguem uma tríplice estratégia: antecipam-se-lhe,
acompanham-na, seguem-na. Per preexistentiae, re­
dundantiae, electionis.
Tomemos exemplos:
Eis-vos aquí, minhas Senhoras, numa igreja: a luz
misteriosamente tamisada pelos antigos vitrais, um
vago odor de incenso de que estão impregnadas as
pedras, um silêncio profundo, o clarão vacilante, sím­
bolo, na penumbra do santuário, dum coração que se
oculta e que trt•mc: tuda t'Ssa amhiêucia pcnctra0 vos,
comove-vos; deliciosamente enternc,cidas, vibrais, qua­
si em lágrimas. E' obra <las paixões. Ainda não agistes.
Mas, assim predispostas à oração, eis que vos
pondes de joelhos, juntais as mãos, murmurais arden­
temente o Padre-Nosso, a Ave-Maria, o Credo: é o
ato da vossa vontade.
As paixões precederam. Nesse caso, diz S. Tomaz,
a bondade moral da vossa oração tem menos valor.
P,or que?
Porque a oração, elevação da alma a Deus, come­
çou por ser emotiva antes de ser voluntária.
Sentir vem da matéria, querer vem do espírito.
Póde suceder que uma pobre mulher, sem enterneci­
mento, torturada até ao pé dos altares por tentações

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76 LÉON RIMBAULT

·de escrúpulo, de desespero mesmo, em luta com a ima­


ginação para continuar uma oração sêca, desolada, an­
gustiada, tenha um mérito cem vezes maior!
Ela tem menos emotividade: a sua oração está to­
.da em vontade.
Nosso Senhor Jesús-Cristo nunca suportou, sem
o haver previamente querido, o -choque emocional das
suas potências inferiores.
Ele se indigna, encoleriza-se, freme, chora: é que
o resolveu.
Jamais n'Ele a paixão se antecipa ao querer. Tur­
bavit semetipsum et lacrymatus est Jesus.
Outras vezes, as paixões acompanham o querer.
Eis-vos na rua, a passeio; encontrais um mendigo,
dais-lhe esmola.
Mas, ao lhe entregardes o vosso óbulo, vos sentís
comovidas; os seus andrajos, as suas faces macilentas,
os seus pés descalços, os seus membros enfermos fa­
zem-vos tremer a mão, e põem-vos uma lágrima à
borda das pálpebras.
Nesse caso, diz S. Tomaz, as paixões não aumen­
tam nem diminuem a bondade moral do vosso ato,
são mero sinal dum querer mais intenso.
Finalmente as paixões seguem a vontade.
Acabais de ler o relato duma injustiça. O Papa
foi ,caluniado, agredido, uma Igreja Yê o seu bispo na
prisão, os seus pastores em exílio.
A vós mesmas reconstituís o drama do martírio
dêles: e então vos quereis inflamar, indignar. Excitais,

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AS HEROINAS DO DEVER 77

atiçais a vossa cólera. Não toquem na Igreja católica:


é uma mulher! ... na pátria, é minha mãe!
Todas as santas cóleras explodem em vós, qual
maré enchente de que cada onda é uma impetuosidade
comandada, refrega terrivel onde a conciência dá a
carga dos sentimentos incoercíveis e das vibrações po­
derosas.
Nesse caso, diz S. Tomaz, aumentais o mérito dos
vossos atos.
Compreendeis melhor agora, minhas Senhoras: as
paixões são, realmente, energias, alavancas.
A Igreja católica teve grande cuidado de as não
amaldiçoar. Declara que elas não são más em si; ape­
nas, depois da queda original, tornaram-se perigosas.
E' preciso tomar cuidado para que o seu domínio não
se avolume e não se afirme tiranicamente.
Fachos poderosos, elas nos alumiam ou nos incen­
deiam ; espadas de dois gumes, defendem-nos ou fe­
rem-nos ; corcéis nervosos e rápidos, carregam-nos aos
píncaros ou nos precipitam aos abismos.
No dia da creação, o homem recebeu da mão de
Deus as paixões para amar, a liberdade para escolher.
Aguias e leões, elas puxavam, pelas alturas, com
toda a fôrça _çlos seus músculos de aço, com todo o im­
pulso das suas formidáveis asas, o carro triunfal da
verdade: atrelagem majestosa e segura.
Adão, nimbado ele inocência, conduzia-as ,com
graça. Eram-lhe submissas, quais cordeiros e pombas.
Mas, ái ! desde aqueles dias de aurora, "em que
nada era pequeno, em que tudo era infante", as feras

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78 LÉON RIMBAULT

rugidoras ameaçam, a cada minuto, devorar o doma­


dor.
O h()mem só as dobra ao seu serviço em as acor­
rentando e açaimando.
Eis aí, minhas Senhoras, o que deveis pensar das
paixões: resta-me ensinar-vos o que deveis fazer delas.

*
**
Os estóicos não hesitam em tirar do seu pessimis­
mo doutrinal s6bre as paixões as mais radicais conse­
quências ....
Haviam dito: todas as paixões são más. E con­
cluem : é preciso, pois, extingui-las, destruí-las.
A gente ,cuida estar sonhando ao ouvir filósofos
usarem de tão monstruosa linguagem.
Extinguir as paixões, fazer morrer as paixões !
Começastes vós mesmos, oh, senhores, por seguir
êsse método? Orgulhosos professores do radicalismo
pessoal, fostes vós os primeiros a pôr o ferro destrui­
·dor nas vossas chagas? Tenta�tes quebrar, e arrancar
vivinhas do coração humano, essas fibras sangrantes?
E destarte, hipócritas, por que tendes a· audácia
e a crueldade ele impor aos outros um jugo que não
haveis supórtado?
Escusa ter frequentado as vossas escolas para sa­
ber que desmentido vergonhoso infligíeis moralmente
às vossas teorias! S. Paulo, na sua epístola acusadora,
burilou o horror dos vossos crimes sem nome.
Extinguir as paixões, será passivei?

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AS HEROINAS DO DEVER 79

E se alguma alma ingênua, iluclida, corajosa, ti­


vesse a loucura de tentá-lo, a que resultado chegaria?
Vinde ver que sombrio espetáculo, minhas Senho­
ras.
Um coração de homem onde morre toda paixão,
um tição que fumega apenas, um planeta invadido pe­
lo frio da morte universal!
Ah! sim, é sombrio. •-
O sol apagou-se, todo calor retirou-se: dir-se-ia
uma caverna dos tempos prehistóricos, onde algum sá­
bio descobre casualmente, para grandt; admiração dos
seus semelhantes, entre blocos de gelo que nenhum
raio de sol pôde derreter, os vestígios enormes duma vi­
da de há muito desaparecida.
Eis aí o coração que não tivesse mais paixões!
Seria tal o coração creado por Deus, tão terno,
tão hclo, tão vibrante?
Q11r tem, pois, a Ycr com o amor êsse foco dora­
vante apagado?
Póde o Espírito-Santo pedir outra coisa ao nosso
coração de homem senão aquilo que êle próprio é: o
fogo vivo?
Abrí, pois, a Bíblia, minhas Senhoras.
O Espírito de Deus, no começo, paira sôbre as
águas. Incuba, de certa fórma, debaixo das suas asas
abrasadas, as vidas latentes, as energias obscuras, os
germes embrionários das eclosões mundiais.
Jeová revela-se a Moisés, que se fica descalço e
prostrado no pó. O ostensório em que pompeia o mis­
tério do Ego sum qui sum é uma moita de chamas.

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80 LÉON RIMBAULí

O cimo onfie o Senhor imprime a marca dos seus


passps é o Sinai que fumega, sob as nuvens que fulgu­
ram.
Uma coluna de fogo guia, através da noite, pelos
�ilvedos do deserto, Israel em marc, ha para a terra da
promissão.
J:\4�\lel, Gabriel, Rafael aparecem através dos sé­
culoi-�;ovidencialmente, entremeados aos grandes
�.
mistéri s'da honra, do amor e do poder de Deus: são
os chefes augustos dos serafins de ardente triságio,
vivos braseiros .eles próprios ela eterna dileção.
O Verbo de Deus feito homem anuncia enfim ter
vindo trazer à Terra a tocha que arde e que corre, de­
voradora, inextinguível. O seu sagrado Coração abre­
se na cruz como uma fornalha.
O incêndio de Pentecostes cái do Céu e arroja-se,
fazendo progressivamente na Igreja, sem detença, a
sua presa em milhões d'almas.
Ando errado, por Yentura, dizendo que a chama
está no temperamento de Deus?
Ele quer que o amemos como ele ama, com um
coração de fogo.
O estoicismo é o frigorífico do coração, o cristia­
nismo é-lhe a lareira.
Os materialistti:s, por seu turno, com o seu otim!s­
mo doutrinal das paixões, redundam nas pi6res degra­
dações.
Todas as paixões são boas, dizem êles.
Donde êste grito de lógica: logo, é preciso satis­
fazê-las.

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AS HEROINAS DO DEVER 81

A Bíblia traduziu, numa poesia toda oriental, o


epicurismo de todos os libertinos.

Coronemus nos rosis, eras enim moriemur.


Coroemo-nos de rosas, pois amanhã morreremos.

A primavera convida-nos ao prazer.


Vamos, eis a estação das flores e dos amores.
Todos os rosais da região espalham no ar mais
puro capitosas olências.
A erva está fres,ca. Antes da sega, tomemos as
nossas alegres folganças, cedamos ao encanto dos do­
ces lazeres. Para os ascetas, o misticismo branco dos
grandes lírios melancólicos, solitários à beira das águas
calmas; para nós, porém, o volutuoso simbolismo, com
a inebriante realidade elas rosas de coração inflamado.
Vinde: as rosas, ;i_primavera, a nossa juventude
não têm mais que uma hora. A primavera vai fugindo.
Rápido, colhamos as rosas, reparemos com a sua
púrpura efêmera o palor das nossas frontes; esta noite
elas estarão mur,chas.
Apressemo-nos, engrinaldemos de festas a nossa
juventude ardente: amanhã estará ela morta.
Canção e máxima de Epicuro! Minhas Senhoras,
sempre na moda em todas as gerações.
- Ao casal-tipo do qual, no seu romance famo­
so, deve sair a nova humanidade. Vitor Hugo dá, por
intermédio de João Valjean, esta recomendação su­
prema:
"Deverefa divertir-vos baiitante, meus íilhos. De\·e-

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82 LÉON RIMBAULT

reis ter uma carruagem, de vez em quando um cama­


rote no teatro, belas "toilettes" de baile, minha Co­
setta; e depois dar bons jantares aos vossos amigos,
ser muito felizes!" - Ah! em verdade, está aí tudo o
que há a fazer para ser o casal modelo de Vitor Hugo?
Será à custa disso que se faz a regeneração social?
Assim não julga a velha Bíblia. Factio lascivien­
tium auferetur: Cortarão desta Terra a turba dos g o­
zadores.
Que quereis que Deus faça de indivíduos seme­
lhantes? Entregues ao despotismo dos mais vis apeti­
tes, perdem êles todo ideal. Caem fatalmente nas pio­
res escravidões.

Ce n'était pas Rolla qui gouvernait sa vie,


C'étaient ses passions: - il les laissait aller,
Comme un pâtre assoupi regarde l'eau couler.
Elles vivaient: - son ,corps était l'hôtellerie
Ou s' étaient attablés ces pâles voyageurs ( 1).

Abandonar a própria vida aos caprichos desenfrea-


dos da carne, da imaginação, do coração, é expor-se à
sorte de Mazeppa, amarrado ao animal fogoso que o
carrega, machucado, ensanguentado, sem resistência
possível, através dos desertos da Ucrânia.
Querer satisfazer-s� e aplacar todas as cubiças

(1) Alfredo de Musset, Rolla.


Não era Rolla que governava a sua vida, eram as suas
paixões; êle as deixava correr, como correr olha as águas um pas­
tor sonolento. Elas viviam; - o corpo dêle era-lhes a hospedaria,
onde se haviam abancado aqueles pálid-os viajares.

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AS HEROINAS DO DEVER 83
obsessoras que se agitam perpetuamente em nós, é o
impossivel e desesperador esfôrço.
Que dilacerantes confissões não temos ouvido saír
da boca das vítimas das paixões!
Escutai-lhes os remorsos e o arrependimento.
"Reclamamos", escreve o autpr de Do. Bendita
(1), "a vida integral, com todos os seus gozes e todas
as suas alegrias.
"Pode-se, porem, pronunciar de boa fé esta pala­
vra, que se afigura uma ironia a quem quer que não
seja mais criança, "a alegria de viver"?
"Onde a buscamos com efeito? Nos sentidos? Mas
cada volúpia, imediatamente punida pela tristeza da
carne saciada, é um passo para a nossa destruição."
Noutro lugar narra ele com eloquente tristeza as
comuns vicissitudes do rio e de sua alma "profunda
como a memória, amarga como a experiência".
"Pobre alma, fenecida pela existência e profunda­
mente conturbada no limiar do grande mistério, tam­
bém tu ousas sonhar com inocência imortal! E' por
isto que pensas hoje em todas aquelas velhas torres de
igrejas e catedrais que o rio refletiu nas suas ondas e
que tantas vezes tens encontrado no teu ,caminho, sem
obedeceres ao seu gesto solene. E' por isto que res­
pondes enfim ao sinal daquelas antigas flechas de pe­
dra que, com confiança te mostram o céu e te orde­
nam a oração e a fé."
O A caminho de J. K. Huysmans conta-nos, com a

(1 ) Fraiçois Coppée.

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84 LÉON RIMBAULT

mais enérgica franqueza, em capítulos de pungente


emoção, o desgosto intenso que sente de si próprio o
inditoso Durtal, e como ele se "precipitou na penitên­
cia". "E ' mistér que Deus não seja -difícil de se con­
tentar com gente como eu!" exclama ele; e encerra
seu livro com esta asserção sobre os escritores elo dia:
"Se esses soubessem o quanto são inferiores ao
último dos convertidos! se pudessem imaginar o quan­
to a ebrieda.de divina dum porqueiro da Trapa me in­
teressa mais do que todas as suas conversas e do que
todos os seus livros! Ah! viver, viver à sombra das
preces do humilde Simeão, Senhor!"
Quem não conhece as admiráveis queixas do po­
bre Verlaine em Sabedoria?

0' mon Dieu, vous m'avez blessé d'amour,


Et la blessure est encore vibrante.

0' mon Dicu, j'ai connu que tout cst vil


Et votre gloire en moí s'est installée. ( 1)
A escola epicurista achou nos nossos dias, num
certo.mundo, uma espécie de atenuação, um sistema de
conchavo.
Não se deve nem extinguir nt!m saciar totalmente
as próprias paixões: está entendido. Mas por que não
tentar colher em tudo a fina flor das sensações estéti­
cas? por que não praticar o ecletismo?

(1) Oh I meu Deus, feristes-me de amor, e inda está vibran­


te a ferida. . . O' meu Deus, conhecí que tudo é vil, e em mim se
instalou a vossa glória.

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AS HEROINAS DO DEVER 85

Esse "flirt" de elegância em torno das paixões,


minhas Senhoras, é velho como a "maroteira humana
que gosta ele negacear-se", segundo a palavra de Mon­
taigne. E' o sistema do "velho caminheiro e das semi­
virgens" Eis aí o bastante para •condená-lo.
"Certos doentes que não podem comer melão",
dizia S. Francisco de Sales, "comprazem-se em chei-•
rá-lo de longe".
Ai dêsses cristãos híbridos que se julgam bastan­
te hábeis para triturar numa mesma taça as cebolas do
Egito como o maná do Céu! Esquecem-se do tremen­
do oráculo: "Deus vomita os mornos".
Desprezam o anátema lançado por Jesús-Cristo
contra o gozo e ú riso: Vae vobis qui ridetis; a sua
condenação ao mundo hipócrita e escandaloso: Vae.
m1;1ndo a scandalisl; a sua declaração tfto formal dum
irredutível antagonismo entre o serviço de Deus e a
escravidão elas paixões: Non potestis duobus dominis
servire.
A verdade e o êrro, mesmo diluido, são incompatí­
veis. O sonho dum Evangelho edulcorado; duma cruz
de angulos arredondados, florída, enfeitada de fitas;
duma penitência confortável e de bom tom, duma ado­
ração bem doce e perfumada, surgindo qual supremo
luxo nos dias abarrotados de mil nadas da vida moder­
na, é uma quimera, um ilogismo, uma covardia. um pe­
rigo. E' a anemía, a tísica das almas contemporâneas,
paulatim decidet.
Nada mais contrário à correção evangélica, como
a Igreja no-la tem transmitido acêrca da nossa perfei-

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86 LÉON RIMBAULT

ção moral. A vida cristã não consiste em queimar


diante de Deus, em bonitas caçoilas de prata, o incen­
so duma religiosidade odorante e fina; porem, no acre
cheiro da pólvora, sacar da espada pela honra do seu
nome, pela defesa da sua causa.
- Que uso resta, pois, fazer das nossas paixões?
Ei-lo numa palavra: Devemos aprender a conduzí-las
e a empregá-las.
Não vos queixeis, minhas Senhoras, de ter uma
natureza ardente. Todos os santos foram apaixonados.
Amaram a Deus com fogo, loucamente.
Conheceis esta frase de Santa Teresa, a espanho­
la de coração de fogo: "Eu, morreria de ciume se esti­
vesse certa de haver neste mundo uma alma que ame
a Deus mais do que eu!" Daí, aquele desejo impetuoso
de promov�r a glória de Deus, daí aquelas fundações,
eriçadas de mil dificuldades, que ela empreende com
magnanimiclade, que prossegue com heroismo, que re­
mata com amor, alegria e ufanía.
- De que é que provém, na França, a populari­
dade do nome de S. Vicente de Paulo? "Maugrado
tudo o que se tem podido fazer para inspirar à multi­
dão o desprern da religião e o ódio dos seus ministros,
a gente de blusa permanece fiel a êsse bom homem de
batina; e o insolente capadócio que acaba de imitar o
grasnido do urubú ao passar ao lado dum eclesiástico,
enternecer-se-á, um momento após, se enxergar mais
adiante, nalguma parte, a gravura em que Vicente de
Paulo é representado numa rua de París, por um tem­
po de neve, já tendo recolhido numa aba do manto

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AS HER0IN AS DO DEVER 87

uma criança abandonada, e inclinando-se para apanhar


uma segunda."
Donde vem que esse velho "de batina surrada e de
chapéu velho, tão pouco prestigioso de aspeto, e de
costumes tão rústicos, tenha sido durante mais da me­
tade da sua longuíssima existência alguma coisa assim
como o ministro todo-poderoso da caridade na Fran­
ça" ( 1)?
Era um apaixonado de Deus e dos pobres.
- Ora, só a paixão aguilhoa as almas no caminho
das grandes ambições do bem.
Vergonha a quem treme de ir demasiado, depres­
;,a, demasiado longe, em direção a Deus! :Êsse medo
tem creado, nos tempos presentes, a religião do menos
possivel.
"E' preciso ir a Deus", dizia o Cura d'Ars (mais
outro apaixonado), "como uma bala <le canhão." Sim,
é isso, sem recuo, sem detença, sem desvío, fornecen­
do toda a sua trajetória, desabaladamente! Tentai,
pois, vos dardes, vos entregardes, vos perderdes as­
sim, sem paixão ..
Ditosas, portanto, as almas apaixonadas.
- Só a paixão atiça nelas as grandes cóleras do
bem.
Irascimini et nolite peccare, diz-nos o Salmista.
O profeta Elias, de carro e de corceis de fogo, fumega
elas incoercíveis indignações do zelo contra os inimi­
gos de Deus.

(1) François Coppée, Dor b-endita: S. Vicente de Paula.

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88 LÉON RIMBAULT

Zelo zelatus sum pro Domino exercitium.


Onde estão, miuhas Senhoras, esses frêmitos ca­
valheirescos da vossa conciência ante as seduções do
mundo? Onde estão as combatividades impacientes da
vossa fé, diante das provocações da heresia ou do li­
vre pensamento? Onde a ira veemente do vosso amor
intransigente, quando soa a hora dos assaltos satâni­
cos, a hora tambem das divinas cavalgadas?
Mas é uma pilhéria, minhas Senhoras, fazer esta
interrogação.
Somos realmente demasiado fracos para excitar­
mos em nós essas cóleras profundas, vivas, para expe­
rimentarmos sequer essas salutares e santas violências.
Fazemos ao mundo, ao demônio, aos nossos defei­
tos, uma guerra de "fita": damos-lhe combates de es­
grima.
Temos grande cuidado de embotar as nossas es­
padas, afim de que o nosso caro "eu" evite até os ar­
ranhões, e para que o nosso inimigo, mesmo várias
vezes atingido, possa reerguer-se sempre.
Não é exato, minhas Senhoras, que só bem rara­
mente nos confessamos com perfeito ódio do mal no
coração? Quanta vez, batendo no peito, alimentamos
a secreta e vaga esperança de que as ocasiões de que­
da, confessadas e arrependidas, serão no entanto oca­
siões susceptíveis de renascer! Não lhes damo:., um
eterno adeus.
Não ousamos, sem dúvida, murmurar-lhes com os
lábios: Até logo! Seria sancionar a culpa do coração.

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AS HER0INAS DO DEVER 89

Não formulamos nada: não marcamos encontro. E


é só.
- Só a paixão torna as almas capazes de supor­
tar corajosamente as grandes tristezas do bem.
A vida cristã sempre foi austera e séria. Porém
nunca os católicos tiveram mais necessidade de ener­
gia, de paciência do que no nosso tempo, na nossa
época.
Lembrai-vos dos isolamentos, da11 monotonias,
das aparentes esterilidades do dever no século vinte.
Pois bem, não obstante o imenso perigo do desâ­
nimo, afrontai heroicamente, minhas Senhoras, no ru­
de campo de batalha a que Deus vos e!"lvia, o choque
formidável das fôrças ad\·ersas. Batalhai sem mais:
Deus dará a vitória.
Ide ao fogo como Joana d'Arc, honra imortal do
vosso sexo, ten<lo fé na .-ossa missão; por "meu Se­
nhor, o Rei do Céu"; levando n'alma, como a ardente
heroína, essas ternuras, essas firmezas, essas sinceri­
dades cálidas, esses rasgos magníficos, esses entusias­
mos gloriosos por si mesmos, que só paixões nobres,
vivas e santas podem gerar.
Adorai, amai, serví a Deus, minhas Senhoras, com
as exultações de todas as vossas potências.
Não lamenteis o terdes, ao lado da liberdade para
escolher, as paixões para vibrar. Se fôsseis livres sem
serdes apaixonadas, cumpriríeis sem dúvida o bem,
mas não lhe quereríeis bastante. As paixões no homem
são a glória do amor. Dever-se-á quebrar a lira de Ho­
mero por que cantou os falsos deuses? Não! não! to-

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90 LÉON RIMBAULT

mai-a vós, duas vezes vibrantes, como cristãos e como


filhas da Pátria, tomai-a, minhas Senhoras, das mãos
do poeta cego, e cantai nela o nome, os benefícios, os
triunfos do Senhor Jesús-Cristo.
"Cantai!" exclama Lacordaire; "a Terra vos es­
cuta, e o Céu vos responde; porque a lira de Homero
é também a lira de Daví, e a paixão que mata o ho­
mem, salvou o mundo no Calvário."

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AS QUE AMAM

Minhas Senhoras.
Houve tempo, e não vai talvez muito longe, em
que era pouco próprio, em que parecia mesmo perigo­
so falar de amor ou de casamento tntre os católicos.
Em que se fundava essa pudicícia )'à�senista? O amor
não é a lei vital? O casamento, um grande sacramen­
to? E, longe de condenar o amor, a Igreja não o apro­
va até, sob as espécies do matrimônio?
Um jornal cio começo clêste século consignava-o:
Dumas filho tinha profunda razão, quando escrevia:
"Devemos reconstituir o amor em França, ou estamos
perdidos". Mas os escritores católicos não se apressam
em trabalhar nisso. Parece que têm medo dêsse assun­
to, não falam de amor, ou, se falam, nunca se atrevem a
misturar-lhe a religião. Contribuem assim, por sua par­
te, para a laicização do amor."
Madame Cláudio Lavergne, por seu lado, confia­
va certa vez espirituosamente à filha as mesmas refle­
xões: "Espero que êstes Contos te divirtam, embora
mundanos. O Sr. X. escandalizou-se porque, sôbre dez
contos, há neles cinco em que as pessoas acabam se
casando! Quereria êle que nunca se falasse disso. Re-
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
92 LÉON RIMBAULT
,,
cebí a crítica dêle rin,cl�-me, e disse-lhe que o Espíri­
to-Santo não era da sua opinião, pois se dignara con­
üi.r-nos as histórias de Rebeca, de Raquel, de Tobias,
àe Ester, de Rut, histórias matrimonia'is, se as hou­
ve ... Mas êsse bom senhor é assim, e tem tal pavor
de 'que as filhas pensen� em casar-se, que quisera não
falassem jamais diante delas dêsse mau sacramento.
'Não receiemos, nós, minhas Senhoras, abordar
esta grande coisa: magna res est amor.
Alguns confundem cinicamente o coração com os
'sentidos objetos salpicam com todas as suas torpezas
passionais, em se l�,.-ando na gamela de Epicuro e de
Lucrécio, o mais sublime sentimento de que é capaz a
nossa humanidade.
Deixemos aos imundos o "rictus corrosivo que
apodrece dissolvendo" (1). Reivindiquemos, porém,
minhas Senhoras, em nome da Igreja católica de quem
sois filhas dedicadíssimas, a honra de tratar sacerdotal­
mente um dos grandes assuntos delicados de que fala
nas suas cartas o P. Didon (2), e <le pôr em luz, sem
receio de melindrar nenhuma delicadeza, a realeza do
coração e a divindade do amor.

*
**
John Ruskin maldizia a mulher "moderna que se
faz engenheira" º'Sem a ternura d'alma e sem a pure-

(1) Gaffre, A lei do amor.


(2) Car, tas, p. 257.

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AS HEROINAS DO DEVER 93
za moral das mulheres", dizia êléf!"os povos estão per­
didos."
Ensinar-vos, minhas Senhoras, a conhecer o valor
cio coração (sem o qual nada sois nem podeis), dimi­
nuindo em vós as suas superfícies impressivas, centu­
plicando-lhe as concentrações, é, portanto, fazer obra
de salvação social.
O coração é a melhor parte de vós mesmas, ou,
melhor, é toda a vossa pessôa.
Em qualquer ordem de coisas por que encaremos
o coração, ocupa ele o lugar régio.
"E' o primeiro a começar a viver", diz Ar.istó,elês,
"e é o último a acabar de morrer." Primum �v.éns,
tiltimum moriens ...
- A fisiologia não contradirá êste axioma.
Esse coraçfw ele mamífero, suspenso na caixa to­
rácica como o provetc no flanco duma possante máqui­
na, bomba aspirante e premente, "músculo ôco" se­
gundo a expressão dos médicos, explica todos os fenô­
menos do sangue, todos os mistérios da vida em nós.
Talvez, minhas Senhoras, qtte, enxergando numa
mesa de an:fpteatro êsse coração de aurículas e ven­
trículos, tivésseis um movimento de repulsa, um so­
bressalto de recuo.
Seja como for, a fisiologia está de acordo com a
Bíblia:
"Guardai cuidadosamente o vosso coração, pois
nele toda vida tem raiz."
- f.. linguagem da humanidade não é menos ex­
i:; lícita.

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94 LÉON RIMBAULT

Em todos os idtbmas, o coração é o emblema, a


séde, o órgão da coragem e da bondade, das cóleras
generosas, dos veementes desejos, de todos os senti­
mentos nobres, ternos e fortes que engrandecem e ele­
vam a nossa personalidade.
"Tudo vem do amor", disse Santo Agostinho, "o
bem e o mal, a vida e a morte."· E', pois, o coração,
para onde afluem, abrasadoras e rápidas, as ondas do
sangue veiculador das paixões, que o amor palpita nas
suas mais fortes pulsações.
Por isto, o bom senso popular não se engana a res­
peito.
Quer ele fazer o elogio de alguem. "Que coração
c!e ouro", exclama, "que coração de fogo!" Ou ainda:
"Ele tem má cabeça, porem bom coração, é todo co­
ração."
"Se for mistér erguer altares a algo de humano,
eu preferiria adorar o pó do coração a adorar o pó do
gemo ...
A •
''

"Amo-vos!" - dez mil palavras precedem esta,


mas nenhuma outra lhe vem depois em língua algu­
ma. Quando a dissermos uma vez, não há mais senão
um recurso, é repetí-la para sempre. A boca do ho­
mem não vai mais longe porque o seu coração não
ni mais alem" (1).
O homem de gênio e o homem do povo reconhe­
cem pelas mesmas expressões a realeza do coração.

( 1) Lacordaire.

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AS HEROINAS DO DEVER 95
O coração é o que há de mais belo, de mais pre­
cioso em nós. Embalsam-no, legam-no, veneram-no.
Vêm-se mães que querem conservar numa urna
o coração .do filho que a morte lhes arranca.
Quando morreu em 1800 La Tour d'Auvergne, o
primeiro granadeiro da França, seu coração foi con­
fiado à guarda _da companhia que ele adotara, e até em
1814 recebia ele, a cada chamada, as mesmas honras
que a bandeira.
O' Connell, moribundo, ordena que mais tarde seu
coração seja levado a Roma,, em testemunho do seu
amor à cidade dos santos apóstolos.
Mons. Freppel escreve no seu testamento: "Resti­
tuireis o meu coração à Alsácia, no dia em que a· Alsá­
cia voltar a ser francesa."
Por que o coração, e não a cabeça?
Sempre pela mesma razão, porqur o coração é a
mais nobre parte do homem.
"A Europa é de Bonaparte", dizia ele Maistre, "po­
rem meu coração é meu !"
- Interrogai a Escritura sagrada. Deus julga co­
rno os homens.
"No coração toda vida tem raiz." - "Amareis de
todo vosso coração."
"Meu filho, dá-me o teu coração." - "Não des­
prezeis, oh meu Deus, um coração contrito e humilha­
do." - "Dilacerai os vossos corações e não as vestes."
- "E' a crença do coração que justifica." Carde cre­
ditur ad justítiam. - "Bem-aventurados os corações
puros, porque verão a Deus." - "Hipócritas, fariseus,

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96 LÉON RIMBAULT

raça de víboras, sepulcros caiados, alimpais a beira


da taça, e o vosso coração está corrompido ; vossos lá­
bios formulam preces longas e vãs, porem o vosso co­
ração está longe de mim."
- O procedimento de Nosso Senhor Jesús-Cristo
não desmente essa doutrina.
As lições das coisas evangélicas corroboram o en­
sinamento escriturário.
A quem o divino Mestre foi de preferência?
A gente de espírito, de habilidade, de política, de
dinheiro? ... Não, à gente de coração.
Ele nunca disse àqueles a quem queria alistar sob
a sua bandeira: "Sois da alta sociedade? fazeis bela
figura nos salões?" porem : "Quereis amar-me? Ten­
de confiança em mim. Tendes coração para beber o
meu cálice?"
Que é que ele enumera na apoteose profética do
juízo derradeiro? Nada senão os dons e as obras do
coração.
Onde quer que encontrou o coração partido e
"atribulado", qualquer que fos!ie a degradação a que
esse coração fraco tivesse cedido, Ele se inclinou para
curá-lo e salvá-lo.
Ah! aqueles pobres pecadores, sua clientela de es­
colha: Pedro, Zaqueu Mateus, Madalena, como Ele os
lastima, como os olha, como os atrai afim de redimí­
los !
Detergidos nas próprias lágrimas, Ele os aplica à
salvação das almas. Pobres grandes corações que, nas

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AS HEROINAS DO DEVER 97

suas profundas misérias, terão sen!ido melhor a inefa­


vel hcleza da divina misericórdia!
Mesmo porque, a cruz, a Virgem-Mãe, a Eucaris­
tia não são porventura as três invenções adoraveis do
Sagrado Coração de J esús?
Assim sendo, como poderia a J greja desconhecer
a nobreza do coração do homem?
A religião que ela é encarregada de pregar ao
mundo que outra coisa é, em suma, senão a leitura
das obras de Deus pelo coração do homem, relegere?
a escolha do serviço de Deus pelo coração do homem,
relígere? o vínculo ind.issoluvel do coração de Deus e
do coração do homem, religare? Como ousaria a Igre­
ja renegar as palavras, os atos, as dores, a morte de
Jesús-Cristo?
- Alias, seguí-a na sua marcha gloriosa através
dos séculos, interrogai os seus grandes homens. Por
toda parte ouvireis aclamar nela, a realeza do coração.
Quereis a virgindade e a juventude da alma a ir­
radiarem até os extremos limites da idade? aí tendes
São João: "Deus é amor", diz ele. "Aquele que fica
no amor, fica em Deus."
Quereis o apostolado com as febres da conquista
e as delícias do êxtase? Aí tendes S. Paulo: "Quando
eu falasse todas as línguas dos homens e dos anjos, se
não tiver caridade, nada s ou. Anátema a quem não ama
Jesús-Cristo !"
Quereis o gênio do pensamento a bater asas doi­
damente por entre as desolações do mal, águia em
pranto que reencontra a luz nas alturas do arrependi-

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98 LÉON RIMBAULT

mento? Eis Santo Agostinho: "O amor é no mundo


moral", escreve o imortal Doutor, "o que a atração é
no mundo físico."
Quereis a poesia embriagada do vinho jubiloso
dum amor seráfico? Eis S. Francisco de Assís, bardo
de mãos estigmatizadas, a suspirar a sua queixa me­
lodiosa e triste: "O amor não é amado! o amor não é
amado!"
Quereis, em pleno século dezenove, a fé capaz de
transportar montanhas? Aí tendes Dom Bosco, no dia
d<. seu sacerdócio, exclamando, banhado em lágrimas:
'· Meu Deus, resta-me corresponder à vossa vontade,
tornando-me domador de féras humanas."
Que gênios da perfeição, minhas Senhoras!
Pois bem : direis que eles nada devem à religião?
'!'irai-lhes então da vida aq�ilo que nela pôs de
grandeza o catolicismo.
Que teriam sido eles? S. João: um barqueiro in­
gênuo e simples; S. Paulo, um correieiro verboso, de
cabeça escaldada; Santo Agostinho, um acadêmico de
vida alegre; S. Francisco de Assís, o filho dum vende­
dor de fazendas, a jogar dinheiro pela janela a fóra;
Dom Bosco, um aldeão bem lombudo, original, servi­
çal para com os vizinhos.
Mas por isso que a religião lhes tocou no coração,
foram eles fornalhas do amor divino, benfeitores su­
blimes do home�. A realeza do coração sagrou-os com
uma glória que a filosofia antiga jamais teria suspei­
tado.
- Quereis ainda saber em que estima a Igreja

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AS HEROINAS DO DEVER 99
tem o coração? Sabei que ela lhe reconhece, em certos
casos, uma espécie de poder sacramental.
Escutai bem, minhas Senhoras.
Estais numa ilha deserta. Ides morrer e não sois
batizada. Não há lá ninguem para vos dar o sacramen­
to que é a porta da salvação. Porem tendes um cora­
ção, tirais dele um desejo.
Eis-vos regenerada, salva.
Quem ensina is�o? A Igreja.
Estais em agonia. A lembrança duma falta grave
tortura-vos. Padre algum está à vossa cabeceira para
perdoar-vos. Porem tendes um coração, tirais dele uma
lágrima, um grito de arrependimento. Estais justiii­
cada.
Quem ensina isto? A Igreja.
Estais, desta vez em estado ele graça, diante do
tabernáculo fechado. Já não é a hora <lo sacrifício, nem
da comunhão, porem tendes um desejo, e suspirais:
"Meu Deus, amo-vos, miriha àlma desfalece na vos,,d.
presença. Vinde a mim, ó Deus dos altares! tenho sê­
de de vós. 1'
Podeis ter tal intensidade de amor, que a vossa
comunhão espiritual iguale em resultado a comunhão
real.
Quem ensina isto? A Igreja.
O coração recebeu, pois, de Deus o privilégio de
suprir os sacramentos quando impossível se torne re­
cebê-los.
Ele batiza, absolve, dá de comungar.

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100 LÉON RIMBAULT

O coração do homem é tão grande, que depois de


Deus nada é tão grande.
E' por isto, minhas Senhoras, que nós lhe procla­
mamo_s a realeza: Oh coração, teus abismos são inson­
daveis ! Só Deus póde enchê-lo�!
Oh coração, a tua origem e o teu destino são do
alto. Não tens o direito de te aviltares!
- Enfim, levemos a termo as glórias cio coração,
consignando que o coração tem o seu lugar na teologia.
O ilustre Contenson, dos Frndes Pregadores, es­
creveu: Thcologia mentis et cordis. Há, portanto, uma
teolng-ia do coração.
Os olhos elo coração si:'to o amor, amor oculus est,
e esses olhos têm intuições misteriosas que pódem vir
de Deus.
"O coração tem razões que a razão não compreen­
de" ( 1). O coração não substitue a inteligência, não
póde, por si só, provar as verdades religiosas ; mas
apoia-as, confirma-as.
Ora são induções morais que vão até à certeza;
ora analogias explicativas dos dogmas; ora simpJe�
noções tiradas do coração, porem poderosas para pren­
der as almas à verdade. A teologia do coração é a ciên­
cia que escruta as harmonias da doutrjna católica com
o coração do homem.
Ela não i,enetra os mistérios, mas às vezes pres­
scn te-os, revela-lhes os germens vivos nas últimas pro­
fundezas da nossa natureza; mostra-lhes as misterio-

( 1) Pascal.

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AS HEROINAS DO DEVER 10.1
sas conveniências; não tem, sem dúvida, o valor pe­
remptório duma demonstração filosófica; mas consti­
tuc uma confirmação {splêndida ela divindade das pró­
prias crenças, particularmente doce e consoladora pa­
ra os corações dos que sofrem. "Que é Deus visível à
mente, diz Mons. Bougaud, ao lado de Deus sensível
ao coração?. . . Oh meu amigo, Deus fez do coração
do homem um evangelho.
"Gravou nele todos os mistérios, fez de nós pela
nossa natureza uma Trindade, uma Incarnação, e, nos
folhos e refolhos da paternidade , ocultou em nós a
creação, a providência, a redenção, o sacrifício, a
cruz" (1).
- A teologia do coração supõe na sua base esta
palavra de Deus: "Conduzí-la-ei à solidão, e lá lhe fa­
larei ao coração" (2).
Ela exige almas amantes: Da amantem et sentit
quod dico (3).
- Não tem ela outro fim senão fazer-nos chegar
ao conhecimento do amor de Deus, dilatando-nos na
alegria e na paz das verdades harmônicas a todos os
nossos rasgos, a todas as nossas necessidades, a todos
os nossos instintos sublimes, segundo esta palavra de
Lacordaire: "Não há dois amores, meu amigo: o ainor
do céu e o da terra são o mesmo, excéto que o amor
do céu é infinito. Quando quiserdes conhecer o que

( 1) O Cristianismo e os tempos prese11tes.


(2) Sto. Agostinho.
(J) ·Lacordaire, Cartas a jovens.

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102 LÉON RIMBAULT

Deus sente, e:::utai o bater do vosso coração e acres­


centai-lhe apenas o i!lfinito."
- Ela admite no método, incompleto, bem certa­
mente, porem sugestivo, - oh! e quanto! - a influên­
cia do coração sôbre a certeza ou sôbre o conhecimen­
to da verdade. Apelo para Pascal: "Deus", <ilz ele,
"quis que as idéias divinas entrem do coração na men­
te, e não da mente no coração, para humilhar essa so­
berb::i. potência do raciocínio que pretende dever ser
juiz das coisas que a vontade escolhe, e para curar es­
sa vontade qu.e se corrompeu toda por sórdidos apegos.
"E daí vem que, enquanto, falando das coisas hu­
man,:s, se diz que importa conhecê-las antes de amá­
las, os santos, ao contrário, falando das coisas divi­
nas, dizem que é preciso amá-las para conhecê-las, e
que só se entra na verdade pela caridade" (1).
-- Ela admite todos os testemunhos: S. João, Hu�
gues e Ricardo de São Vitor, S. Boaventura, Fénelon,
Santo Afonso de Ligório, Chateaubriand, Lacordaire,
Faber, Gerbet, Gay, Bottgaud ... todos enfim os que
procuraram as afinidades do cristianismo com a alma
e com o coração.
-- Tem ela uma imensa vantagem, e é - não a
esquecermos.
A ciência raciocinada vai-se do espírito aos peda­
ços.
De todos os cadernos em que acumulamos as nos­
sas netas, observações, documentos escolásticos, que é

(1) Pascal, PenJamento$: Da arte de persuadir,

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AS HEROINAS DO DEVER 103

que nos resta após quatro anos de seminário maior?


Esquecemos perpetuamente. Cada dia, faz-se mis­
tér restaurar e, por assim dizer, brunir de novo a fer­
ramenta complicada da nossa dogmática. Quando se
ama, não se esquece. Quando o coração, à hora do es­
tudo, mantem o espírito em presença do amor de Deus,
nada enfraquece a doce e benéfica visão.
Perdem-se de vista os pormenores da teologia es­
peculativa, para só lhe guardar os grandes lineamen­
tos, mas nunca se desaprende a própria teologia do ço­
ração.
"Quando o coração ama profundamente", disse
Mons. Gerbet, "o nome da pessôa amada existe como
uma recordação permanente no fundo d'alma, e os lá­
bios estão sempre prontos para murmurá-lo."
- Essa inviolável teologia do amor produz enfim
efeitos maravilhosos. Embeleza, vivifica, aquece as ver­
dades de que o raciocínio nos há convencido.
_Persuade-nos deliciosamente, prende-nos a Deus
pela sua lógica tão misteriosa quão encantadora; sus­
tenta-nos e consola-nos na vida.
A maioria dos cristãos ignoram as grandes dis­
cussões religiosas. Mas eles são guiados, em todas as
circunstâncias, pelo sentimento íntimo que conservam
da bondade divina atenta às suas necessidades, do
amor de J esús morto na cruz pela sua salvação, da
paz inefavel que lhes dão à conciência os sacramentos
da penitência e da eucaristia, da esperança jubilosa
que lhes promete o céu.
Numa palavra, sabem, porque ·vivem dela, a teo-

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104 LÉON RIMBAULT

logia do coração. Ela lhes está viva na alma. Ela faz


os verdadeiros cristãos e os santos.
Fisio!ogia, literatura, Escritura sagrada, história
ae Cristo, história da Igreja, teologia: todas as vozes
de Deus e do homem proclamam a realeza do coração.
Cantam, com não menos magnitude, a divindade
do amor.

*
**
O amor é um instinto, um sentimento, ou uma
virtude. Volúpia, amizade, caridade, eis aí essa miste­
riosa entidade progressiva, como nasce, tal como cres­
ce no centro do coração humano. E em toda parte e
sempre o amor é a fôrça, a verdadeira, a única. Magna
res est amor.
O instinto possante, indeliberado, exclusivo, imen­
surado, - alma do mundo material, vibração da uni­
versal vida, - cái de repente sôbre o homem e o .ar­
rasta. Pode-se ser ferido pelo raio e não morrer. Esse
infeliz é a prova disto. O seu mal é de uma ordem à
parte.
Por que passa ele <lias a suspirar, noites a chorar?
Por que é _que nada o póde arrancar a essa obsessora
visão, à música feiticeira? Tudo se ilumina ou tudo se
sombreia, tudo se lamenta ou tudo exulta. A natureza
inteira: as aves, as flores, os mares, as brisas, as nu­
vens, as tempestades, o sol parecem não estar aí se­
não para embalar a estranha paixão que o absorve,
que o mina, e tão deliciosamente o mata,

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'
AS HEROINAS DO DEVER

Tandis que tout me disait: aime !


105

Écoutant tout hors de moi-même,


Ivre d'harmonie et d'encens,
]'entendais, ravissant murmure,
Le chant de toutc la nature
Dans le tumulte de m.es sens. (1).

E' nesse tumulto de toda a gama passional que os


poetas, os romancistas, os dramaturgos têm haurido
as suas mais ricas inspirações, e é daí tambem que
saem todos os "desequilíbrios da paixão, todas as lou­
curas do amor ' e todos os crimes".
O instinto que incli11a os sêres a saírem do círculo
do seu egoismo, do seu isolamento, da sua estéril inér­
cia, para entregar-se às impetuosidades geradoras do
grande todo, é o apêlo intenso e fatal da lei das afini­
dades 111ulec11larcs, da�, harmonias orgânicas, que pre­
side, mangrado todos os obstáculos, através do espaço
e do tempo, à renovação perpétua da creação.
Fôrça bruta n _ os sêres inanimados ou puramente
sensíveis, ele se afina e se atenua no homem, sem se
abstrair absolutamente dos "caracteres das leis natu­
rais, isto é, da fatalidade, da unidade da orientação e
do .absolutismo".
Originariamente, ele vem de Deus.

(1) Victor Hugo, Os Cantos do CrePiísrnlo. "Enquanto


tudo me dizia: ama !, escutando tudo fóra de mim mesmo, ébrio
de harmonia e de incenso, eu ouvia, encantador murmúrio, o canto
de tôd?- a natureza no tumultuar do11 meus sentido�, "

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106 LÉON RIMBA'ULT

C'est Dieu qui mit l'amour au bout de tout chose,


L'amOitr en qui tout vit, l'amour sur qui tout pose (1).

Flúido incoercível, veículo de todas as seivas, de


todos os fermentos, de todos os germens, ele circula
através dos séculos, arrastando todas as creaturas pa­
ra o fim fixado, acima das contingências e dos desfa­
l�cimentos daquilo que passa, por Aquele que fica.
A volúpia desse amor, provedor da vida, é antes
de tudo uma isca para o mais temivel dos deveres.
Deus não a apresenta aos sonhos apetitivos da vida
jovem, ardente, conquistadora, senão consagrando-a,
no homem, pela austeridade do sacrifício, senão exi­
gindo do homem, na satisfação desse atrativo impul­
sivo, a inteligência do plano providencial e a coragem
das graves responsabilidades.
Deus é Pai tanto quanto Senhor.
Na natureza, prodigalizou ele, com luxo inaudito,
todos os matizes maravilhosos da verdura cuja cor re­
pousante nos acalma e refrigera a pupila.
Na borda da taça amarga do dever pôs, na ordem
moral, com requintada bondade, o mel saboroso das
íntimas consolações.
Como, dess'arte, nos haveríamos de admirar de
que ele haja amenizado o preceito oneroso da propaga­
ção da vida, pelo encanto dum magnetismo ao qual a
humanidade não sabe geralmente resistir?

(1) Idem, ibidem. "Foi Deus quem pôs o amor no fim de


tôdas as coisas, o amor em que tudo vive, o amor em q�e tudo
assenta."

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AS HEROINAS DO DEVER 107

Reconheçamos nessa primeira fórma instintiva do


amor a lei universal da vida que se afirma e triunfa.
Ela é manifestamente divina na origem e na finalida­
de. Mas, ai! por que há de ser que a animalidade no
homem tenha tantas vezes prostituido, em proveito
dum vil egoismo, as magníficas energias de atração,
de impulsão, destinadas pelo Creador ao rejuvenesci­
mento da sua obra? Que importam os transviamentos,
as falhas das creaturas na execução dessa lei sobe­
rana?
Nenhuma perversidade pode prevalecer cóntra a
sabedoria do Legislador. Não calemos, por farisaica
pudicída, nem as degradações humanas do amor, nem
o divino poder deste.
Por minha parte, minhas Senhoras, aplaudo a re­
flexão tão :;ábia ele Edward Montier sôbre os infelizes
que :-e deixaram corromper: "Nunca lhes falaram de
amor senão em termos velados, como duma coisa gros­
seira e proibida; cometeram o crime de deixá-los con­
fundir no pensamento, e por conseguinte na vida; o
amor e a obcenidade. De quem a culpa? Onde have­
riam êles de aprender que o amor é outra coisa, se
aqueles que o sabiam nunca lhes disseram isto? Cum­
pre, pois, distinguir entre os amores, e não é sem ja­
mais falar dele séria e abertamente que o jovem pode­
rá escolher."
Nunca se deve, porém, brincar com o amor. Uma
palavra, um olhar, um gesto, um sorriso ateiam às ve­
zes incêndios terríveis. Ai da vaidade, da frivolidade
cJUel "passando e repassando como uma ave q.e çha-

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108 LÉON RIMBAULT

ma, que põe o fogo em mais de uma alma"! Ai da


mundana que póde não passar de mero "embuste vivo
e róseo"!
O fogo alegra e reanima, mas tende cuidado, mi­
nhas Senhoras, ele tambem devora e aniquila.
Além e acima do instinto, eis o sentimento. De­
pois do amor indeliberado oncJe os sentidos lançavam
a sua perturbação tenebrosa, eis o amor senhor de si,
cujas belas e nobres emoções iluminam e aquecem as
profundezas da alma. Aquí, nada de tumultuoso nem
de irracional. Tudo é calmo e maduramente refletido.
A serenidade, a segurança, a alegria pura e ampla do
coração nesse amor, vêm da sabedoria, dá independên­
cia da escôlha que preside à união daqueles que s�
amam.
O cego, o obsessor, o despótico instinto não tem
parte alguma no desabrochar desse sério e sublime
sentimento.
A idéia desempenha nele um grande papel. Atra­
vés dos encantos da beleza corporal, vê-se sobretudo
resplandecer a alma.
, "Onde quer que eu viva", escreve o P. Didon,
ê[eciso de claridade; as minhas ternuras profundas de­
sabrocham à luz. Eis porque, quando um ente já não
está em comunhão de idéias comigo, a amizade arre­
fece-se depressa, e se as divergências, as oposições se
acentuam e se agravam, às vezes ela morre."
"Vós outras, mulheres, não sois assim. Viveis d�
ternura. Eis que vos melindrais, vos picais, vos mor-

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AS HEROINAS DO DEVER 109

deis ... e depois, uma carícia, um beijo ... e tudo está


e�quecido."
"O mesmo já se não pócle dar com os homens."
(1).
Claridade, idéia, alma: eis, por conseguinte, o que
faz vibrar as almas amantes, nessa alta e serena atmos­
fera a que havemos chegado. As simpatias repousam
no conhecimento mútuo das qualidades harmônicas, na
reciprocidade conciente dum respeito igualmente com­
partilhado. Neste grau, nascem todas as delicadezas
do amor conjugal, todas as intimidades puras da ami­
zade, todas as ternuras da família, todos os generosos
ardores do culto patriótico, todos os desinterêsses que
às almas de escol inspira este augusto ideal: a verda­
de, a justiça, a liberdade, a humanidade.
Nessa região de afetuosidade, o sentimento ie de­
pura e se idealiza, tornando-se mais ardente e mais
profundo.
Daví e Jonatas, Dante e Beatriz, Lacordaire e Ma­
dame de Swetchine, Maurício e Eugênia de Guérin, de
Villebois-Mareuil e os Boers são, nessa ordem múlti­
pla do amor, tipos imortais.
Por isto, que louvores não se têm deferido a esse
amor, honra e corôa da nossa humanidade !
"A riqueza", disse Lacordaire (2), "não é nem o
ouro, nem a prata, nem as naus que aproximam dos

(1) Cartas, LXXXII.


(2) 26.• conferência de Notre-Dame.

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110 LÉON RIMBAULT

extremos da Terra as coisas preciosas; riqueza, só há


uma, � é o amor!
"De Deus ao homem, da Terra 3io Céu, só o amor
une e enche tudo. Ele é o começo, o meio e o fim de
todas as coisas. Quem ama vive; quem ama se dedi­
ca; quem ama está contente; e uma gota de amor em
balança com todo o universo carregaria com ele, como
a tempestade carregaria com uma felpa de palha ...
"Por maior- que seja a revelação do gênio, eu po­
ria mais alto ainda a revelação do coração; e se hou­
vesse que erguer altares a algum·a coisa de humano,
eu preferiria adorar o pó do coração a adorar o pó do
gênio."
"Um amigo, - exclama por sua vez o grande
proscrito de Corbara, - um amigo, sabeis o que é? E'
um ente que nunca duvída dele. Um amigo é um ente
que nada vos pede e que está pronto a vos dar tudo.
Um amigo, é um terra-nova que se atira à água para
vos pescar. Um amigo é um cão que salta à gorja da­
quele que vos ataca. Um amigo é um ente clarivi­
dente que tem a coragem de vos dizer: Fazeis mal!
Um amigo é um coração largo que esquece e perdôa.
Um amigo é um ente que se compromete para vos
servir. Um amigo, é a pérola no fundo dos mares" (1).
De origem mais nobre e de essência mais etérea,
o amor, vínculo das almas, é verdadeiramente a "gló­
na do rico, a fortuna do pobre, a pátria do exul, a saú­
de do doente, o raio de vida do moribundo" (2).
(1) Cartas do P. Didon.
(2) Cassiodoro, Tratado da amizade.

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AS HEROINAS DO DEVER 111
Nenhum sentimento oferece ao homem, enquanto
homem, tanta doçura e fôrça. Nenhum tem mais ra­
zões para durar, para desenvolver-se e para arrastar as
almas para o alto.
Manifestamente, esse amor desce cios píncaros,
íonte esguichante ávida de remontar até ao nível do
seu manancial; tem ele às vezes, coisa rara entre os
homens, desinterêsses admiraveis, generosidades sem
eiva de interêsse próprio. E' paciente e delicado, enche
os .abismos afim de igualar e unificar: Pares amicítia
invenit aut facit. E' belicoso e indomavel. Derruba al­
tivamente todo obstáculo que lhe barra o caminho. E'
capaz de todas as imolações para engrandecer e beati­
ficar o amado.
Todavia, apesar da sua pureza crescente, esse pre­
cioso amor de benevolência não poderia, mesmo no
termo das suas ascensões, chegar ao limiar deslum­
brante da caridade. "Entre os dois", diz um sábio psi­
cólogo, "há nada menos que um mundo: a distância
que separa a ordem natura1 da ordem sobrenatural",
( 1). Há o infinito de Deus. - Que progressão, minhas
Senhoras, nessa misteriosa fôrça que é o amor!
Instinto, destinado pela divina Providência a man­
ter na creação o sopro vital, o amor alimenta-se dos
encantos da beleza da carne. Como a carne, ai! tem ele
a graça efêmera da flor dos campos.
Sentimento, subtraído à tiranía ela matéria, acha
ele numa liberdade maior uma mais alta perfeição. O

(1) P. Gaffre, A Lei de amor.

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112 LÉON RIMBAULT

desencanto da idade, as provações da vida, as próprias


ameaças da morte não podem alterá-lo.
"Quanto mais envelhecemos", dizia Lacordait�,
"tanto mais amamos só as almas ...
Alfredo de Musset, depois de conhecer todas as
angústias estranhamente suaves duma paixão pertur­
badora:

Se lever en sursaut, sans raison, les piecls nus,


Marcher, prier, pleurer des larmes ruisselantes,
Et devant l'infini joindre des mains tremblantes,
Le coeur plein ele pitié pour eles maux inconnus,

eleva-se, nas regiões serenas do pensamento, até à luz


duma "alma naturalmente cristã".
O febril e vibrante poeta elas Noites, sob o impé­
rio benéfico duma pura e profunda amizade, escreve
a Lamartine :

J'ai connu, jeune encore, de severes souffrances,


J'ai vu verdir les bois et j'ai tenté d'aimer,
Je sais ce que la terre engloutit d'espérances,
Et, pour y recueillir, ce qu'il y faut semer.

Mais ce que j'ai senti, ce que je veux t'écrire,


C'est ce que m'ont appris les anges de douleur;
Je le sais rnieux encare et puis rniuex te le dire,
Car leur glaive, en entrant, l'a graYé dans mon coeur:

Tes os, dans le cercueil, vont tomber en pouss1ere ;


Ta mémoire, ton nom, ta gloire vont périr,

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AS HEROIN AS DO DEVER 11�

Mais non pas ton amour, si ton amour t'est chere:


'l'on àme est immortelle, et va s'en souvenir. ( 1).
Amar sofrer, esperar! Que consoladora filosofia!
Como já estamos longe das materialidades estreitas,
dos gosos infinitos cio amor no estado de cupidez! A
amizade faz soar nos cimos a grande festa dos cora­
ções a que só faltam azas de anjo para atingir a ca­
ridade.
Do instinto ao sentimento, há o homem; do senti­
mento à virtude, há Deus. Por isto o amor não pode
nem ir mais longe, nem subir mais alto. E' aquí a fes­
ta carrilhonada, as páscoas do pensamento em que as
almas, ainda cativas no cárcere -do corpo, comungam,
sob as espécies do supremo amor, a própria vida de
Dcns.
"lll-11� {� raridade", exclama S. João. "E a ca­
ridacl<• cl1· .ksús- ( 'ri�l1>'', acrescenta S. Paulo, "é difun­
dida 110s nossos corações pelo Espírito-Santo"
Estais ouvindo, minhas Senhoras? o homem e
Deus se tocam, se penetram, não fazem mais que um
só, e o cimento, a alma dessa união, o fermento dessa
vida indizível outro não é senão a graça infinita d' A­
quele de quem o amor não é um acidente transitório,
mas a própria substância, d'Aquele que é o principio
beatificante dos ardentes serafins, o Ato puro amando
por todo o seu sêr.
"Deus é caridade", o amor lhe é a essência, a vi­
da, a lei. Por isto Deus quer que o amemos. Reclama

(1) Alfred de Musset, Lettre à M. de Lamartille.

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114 LÉON RIMBAULT

o nosso coração. Que de mais natural? O coração é o


vértice do homem.
"Quando se disse a alguem: honro-o, venero-o,
ainda se lhe pode dizer outra coisa", declarava Lacor­
<laire; "póde-se-lhe dizer: amo-o. Mas quando uma
vez se dirigiu esta palavra a alguém, não há mais se­
não um recurso, é repetir-lha para sempre."
E como é que Deus, ç_ue tem direito a todo o nos­
so -sêr, não haveria de exigir o nosso coração?
Exige-o. Seu amor é imperioso. "Amarás o Se­
nhor teu Deus, de todo teu coração, de toda tua alma,
cc,m todas as tuas forças." Mas não é o impossível?
O amor vive de confiança e <le simpatia. Como,
assim sen<lo, se harmonizaria ele com as desigualdades
estupefacientes que separam Deus do homem, com as
desproporções irredutíveis que opõem. o homem a
Deus?
E depois, eis que surge uma dificuldade nova.
Não basta que dois sêres sejam feitos para se
agradarem. E' preciso, ademais, que sejam postos em
presença um do outro.
Ora, entre Deus e o homem, onde se fará o en­
contro?
Sem dúvida, Deus está em toda parte -no nosso
caminho, mas em toda parte está invisível. Qual é seu
nome? Que idéia o representa? Que fórmula o designa?
Mesmo por que viverá o amor de abstrações?
Trégua às objeções, minhas Senhoras.
Deus interveiu. Ele ordena o amor, é que o amor
é realizável.

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AS HEROINAS DO DEVER 115
Primeiramente, ele dispôs o nosso coração para
cf'se ato sublime. Somos creados "à Sua imagem e se­
melhança".
Noutros termos, somos capazes de amar (1) não
bàmente as coisas amáveis, mas a essência que as tor­
na amáveis; capazes de amar a própria amabilidade,
capazes de amar o Soberano Bem; capazes de nos
amarmos."
"Fizeste-nos para vós, Senhor, suspirava Santo
Agostinho, e o nosso coração está inquieto enquanto
não acha em vós o seu repouso!" Todos os corações
atormentados do nosso século fazem éco a esta queixa
desolada:
"Au fond <les viis plaisirs que j'appelie à mon aide
Je trouvc un tcl degout que je me sens mourir... "

E o poeta arr<'sccntava:

Malgré nous, vers le ciel il faut lever les yeux (2) ."

Essas lágrimas das coisas que fazem a nossa de­


sesperança, "sunt lacrimae rerum", não são o indício
da nossa grandeza nativa, u ma primeira e magnífica
preparação para o amor de Deus?

(1) Mons. d'Hurlt, Conferências sôbre o amar de De·us.


(2) Alfredo de Musset.
"No fundo dos vís prazeres que chamo em meu auxílio,
acho tal desgosto que me sinto morrer ... ".
"Mesmo sem o querermos, para o céu temos que levan­
[tar os olhos."

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i16 LÉON RIMBAULT

A esse instinto deiforrne que pôs em nós, Deus


juntou de seu lado condescendências inauditas que der­
roubavam os obstáculos ao amor. Ele teve o amor su­
plicante. Não hesitou em entregar-se, neste cantão re­
moto do universo que é o nosso vale de lágrimas, à
mendicidade do amor.
Abaixou-se até a tornar a nossa natureza; tomou
tudo: pobreza, humilhação, sofrimento, morte, tudo,
exceto a mancha. Bem mais, injetou nas veias e nas
moléculas da nossa natureza a fôrça e a vida da dele,
comunicando-nos a graça.
Não objeteis m�is, agora, a invisibilidade de Deus.
"O que nossos olhos viram, o que nossas mãos to­
caram, eis o que vimos dizer sôbre o Verbo de vida."
O Evangelho revela-nos os seus sorrisos, as suas
lágrimas, as suas palavras, as suas obras, os seus gri­
tos, as suas feridas, o seu sangue.
"Deu amou-me e entregou-se por mim", clamava
S. Paulo apaixonado. "Amemos, pois, por nossa vez",
replica S. João, "não em palavras, mas em ações."
Consoante uma tradição popular checa, onde quer
que os Slavos ensopam juntos a terra com seu sangue,
brotam flores de amizade.
Que floração maravilhosa de virtudes tem germi­
nado do sangue da Igreja misturado ao sangue de Je­
sús-Cristo em todos os calvários do amor, desde há
dois mil anos.
Sim, Deus, magnificamE;nte conhecido pelos exces­
sos da Redenção, tem sido loucamente amado pelo ho­
mem.

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AS HEROINAS DO DEVER 117
"Se me dessem a escolha", exclamava em Cons­
tantinopla S. João Boca de Ouro", entre ser doutor,
profeta, apóstolo, querubim ou serafim, entre estar
sentado à direita 9-e Deus o� estar imerso em negra
masmorra em companhia de Paulo supliciado, carre­
gado de ferros por amor de Jesús-Cristo, meu Mestre,
eu quereria compartilhar a sorte do grande apóstolo;
preferi-lo-ia a todas as alegrias do paraiso. Porque ...
ser prisioneiro de Jesús-Cristo !"
"Perdoe-rr.e Cristo as minhas tibiezas passadas",
clama eloquentemente, na outra ponta do Mediterrâ­
neo e dos séculos cristãos o mais moderno dos monjes,
todo machucado dos golpes da provação; "sepulte-me
vivo se lhe aprouver e tome a chave da minha prisão:
bendi-lo-ei!. .. (1).
"Cristo arrasta-me e sacode tudo em mim terri­
velmente. Oh Cristo, se cu não te tivesse votado a mi­
nha vida, se não fosses o meu primeiro e o meu derra­
deiro amor, oh Cristo, se eu não fosse um crente até a
medula dos ossos, se fôrças estranhas, inapreensíveis,
mais altas que eu, não me envôlvessem num amplexo
suave para me manterem em Ti. . . quantas tempesta­
des neste coração, neste crâneo rugiriam, abalar-me­
iam a vida e amontoariam ruínas em mim e em torno
de mim!. .. "
Eis aí, minhas Senhoras, a verdadeira caridade.
Impossível doravante amar a Deus sem amar seu
Filho único, o eterno objeto de suas complacências,

(1) P. Didon, Cartas,

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118 LÉON RIMBAULT

sem amar com o mesmo amor todos os nossos irmãos


em Jesús-Cristo.
"Tomarei", diz o Salvador, "como feito a mim
mesmo o que fizerdes ao menor dos meus."
Donde a conclusão de S. Paulo: "D'ora em dian­
te não há mais nem judeu, nem gentio, nem estrangei­
ro, nem bárbaro, nem escravo, nem senhor. Em tudo e
em todos só o Cristo."

Sous de pauvres haillons, c'est Die_µ qc'on aperçoit.


Le pauvre tend la main, mais c'est Dieu qui reçoit. (*)

Compreendei agora as palavras de ouro que flame­


jam no frontispício das Santas Casas: Christo in pau­
peribus 1
O eixo do amor divino é daquí por diante o meri­
diano de todas as dedicações ao homem.
Amar o homem porque ele é imagem de Deus,
amigo de Deus, e para agradar a Deus, eis o único
meio de amar verdadeira e universalmente.
O amor atinge aquí o seu píncaro culminante.
Ele nada mais tem a temer das muilhantes tira­
nias do instinto, nem dos limites dum sentimento su­
perior, mais puro, mais ardente, porem fatalmente hu­
mano; entra no Oceano da caridade: perde-se no pró­
prio infinito de Deus. E' com essa largura e essa pro­
fundeza, é com essa pureza e com essa luz, que eu

(*) "Debaixo de pobres andrajos, é a Deus que a gente en­


[xerga.
9 pobre estende a mão, mas é Deus quem rcce�. "

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AS HEROINAS DO DEVER 119

compreendo a tirada inflamada da Fotina do poeta


(2):

Amour... amour... aimer ! ... Le ciel, c'est quand on aime.

Aimez encore. Aimez toujours. Aimez quand même.


Aimez-vous bien les uns les autres. Quand on aime,
Il faut sacrifier sa vie à son amour.
l\'.loi je vous montrerai comment on aime, un jour...
Ainour ! N'ayez que de l'amour dans la poitr!ne...
Airnez-vous ! ...

(2) Edmond Rostand, La Samaritaine:


"Amor. . . amor.. . amar !. .• O céu é quando se ama.

Amai ainda. Amai sempre. Amai mesmo assim.


Amai-vos bem uns aos outros. Quando se ama,
há que sacrificar a vida ao próprio amor.
Um dia vos mostrarei como se ama... Amor!
Não tenhais senão amor no :peito 1... Amai-vos l. .•. ".

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AS QUE CHORAM

Minhas Senhoras .
., Uma mulher, no Evangelho, se encontrou imorta­
lizada por um arrependimento mais profundo que suas
fraquezas, por um amor tão amargo, tão ar<lentc como
as suas lágrimas, uma mulher que conheceu em cada
etapa da sua estrada dolorosa e ::i.tormentada, as vee­
mências da paixão de amar.
O mundo inteiro comoveu-se ante a visão dessa pe­
cadora de cabelos fulvos, cujas ondas de ouro rolaram
sôbre os pés de Cristo, numa penitencial suntuosida­
de de pesares; dessa contemplativa, extasiada ante o
ideal das altas e puras dileções; dessa silenciosa aman­
te da cruz, que chora, de lábios, de braços, de fronte
colados ao madeiro infame, donde a misericórdia a co­
bre com sua sombra; dessa procuradeira matinal, ao
raiar da Ressurreição, duma vida reclamada.por todas
as feridas da sua alma seráfica, por todos os abismos
do seu sêr purificado ; dessa proscrita enfim, mártir
duma lembrança e duma esperança cujos ardores só
os anjos conheceram.
Ela atravessou os séculos tendo nas mãos a urna
de alabastro de simbólicos perfumes.
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122 LÉON RIMBAULT

'Toda alma tem sonhado exalar os mesmos suspi­


ros. Toda geração tem-se sensibilizado ante os encan­
tos da sua beleza severa.
O Céu e a Terra permutar-se-ão para sempre a pa­
lavra com que o Homem-Deus envolveu essa mulher
como duma glória: Muitos pecados lhe são perdoados
porque muito amou.
Diante de Maria Madalena em lágrimas, as que
choram - que têm necessidade de chorar - compreen­
derão sempre a beleza purificadora do evangéiico rela­
to: Uma mulher pecadora da cidade, tendo sabido que
Jesús estava à mesa na casa dos fariseus, para alí se
dirigiu com um vaso de alabastro cheio de perfume.
E postando-se-lhe por detrás, ao longo dos seus
pés, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxu­
gava-os com os cabelos, da sua cabeça, e beijava-os, e
l1.ngia-os de perfume.

Respeito-vos muito, minhas Senhoras, para fazer­


vos a pintura dessa rainha do prazer, dessa mulher li­
vre e emancipada de Magdala.
Isto bastar-vos-á: Por entre alegrias sem pudor,
sem freio, e longo tempo sem remorsos, Maria Mada­
lena chegara a uma espécie de ousadia e de orgulho
no mal. Triste celebridade prendia-se-lhe ao nome. Ela
não era só pecadora, era a pecadora entre todas, o pe­
cado público e vivo da cidade: Mulier erat in civitate
peccatrix,

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AS HEROINAS DO DEVER 123

"Ela profana tudo", escreve ,_Lacordairc, "e só po­


dia apresentar a Deus ruínas" (1).
Porem sob as cinzas do seu coração profanado vi­
ve ainda uma centelha de verdadeiro amor, o desejo
ideal de pureza e dedicação.
Todas as fibras dessa mulher foram distendidas
pelos abalos das paixões juvenecidas, porem uma só
ficou que vibra ainda ao sopro da- honra, da beleza mo-
1'.a''l, da virtude.
f
E é o bastante para reerguê-la e transfigurá-la na
luz duma conversão que pecadora alguma ultrapassou
depois.
A conversão tem três fases: o arrependimento, a
confissão, a expiação.
Para volver a Deus, toda mulher que chora deve
retomar o caminho de Maria Madalena.

O arrependimento! essa 1risteza amarga da alma,


essa reviravolta enérgica çium coração que torna,ao
princípio, esse golpe de vara milagrosa de que o ro­
chedo do orgulho necessita para se partir e deixar jor­
rar
1 as lágrimas da salvação.
-:Juando essa hora soa, a morte afâsta-se, o abis­
mo se fecha, e no Céu, reaberto, explode o cântico dos
alegres regressos :

(1) Santa Maria Madalena.

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124 LÉON RIMBAULT

Alegremo-nos, meu filho estava perdido e ei-lo


achado, estava morto e ei-lo ressuscitado.
Quais foram os elementos geradores do arrepen­
dimento fie Maria Madalena? Qual foi a sua gênese?
No meio dos seus desvarios, levada pelo turbilhão
do prazer, Maria Madalena permanecera sempre em fa­
ce do ideal.
A virtude aparecia-lhe sob os traços de Marta sua
irmã, Marta a valente do dever, a crente ardorosa �­
convicta, a serva ativa, engenhosa, amável, infatig;ii';
vel, a hospedeira admirável do Senhor Jesús.
"Se Madalena", diz o P. Ollivier, "considerada
como uma das obras-primas do Creador, reinava sôbre
o seu círculo de relações pelo encanto do seu espírito
e da sua beleza, Marta dominava-o pelo ascendente da
sua prudência e da sua graça: o que se não entende
�ó dos seus familiares e amigos, no dizer dos seus an­
tigos cronistas, mas tambem dos vizinhos, a maioria
dos quais dependiam dela a título de inquilinos, de ser­
vos, operários ou escravos.
"E, verdadeiramente, devia ser difícil não se in­
clinar ante aquela filha de reis, quando ela aparecia à
soleira da sua morada, com a cabeça coroada da mitra
síria, com a sua alta estatura a fazer valer a elegante
simplicidade das suas vestes de lã branca, e quando,
com a fina m�.o carregada de anéis preciosos, afastava
o véu, mostrando o meigo brilho dos olhos e o sorriso
dos lábios." Mais cedo ou mais tarde Maria Madale­
na ctevia suportar o domínio dessa virtude sedutora.
Os conselhos, as exortações, os e�emplos, as e:iç-

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AS HEROINAS DO DEVER 125

probrações mesmo de Marta e de Lázaro seu irmão de­


viam, finalmente, tocar o coração amante e generoso
da frívola pecadora.
A visão de Betânia, a tranquila povoação das fi­
gueiras, do lar familiar caro ao Salvador e cheio das
recordações dos avoengos, exercia-lhe sôbre a sensibi­
dade, sempre desperta, o encanto secreto duma atração
(iUe ela suportava sem o saber, cada vez que alí entra­
va, cansada e desencantada das festas do mundo.

Objets inanimés, avez-vous clone une âme,


Qui s'attache à notre âme et la force d'aimer? ( 1)

A oração e as lágrimas da mulher inocente alcan-


çaram a conversão da mulher culpada. Eis aquí, con­
soante vários Padres da Igreja, em que circunstância.
Por instigação de sua irmã, Maria Madalena deci­
de-se a ir ver o Senhor Jesús ·e a assistir a uma das
suas pregações.
Talvez tambem a curiosidade feminina a impelis­
a
se desejar conhecer um homem que enchia a Palesti­
na do esplendor da sua doutrina e dos seus. prodígios.
Nesse dia, Jesús fez um grande milagre. Trouxe­
ram-lhe um possesso do demônio e, por cúmulo de in­
fortúnio, mudo e cego: Oblatus est ei daemonium ha­
bens, caecus et mutus.
O Mestre teve compaixão dele. Num instante, ex-

( 1) " Objetos inanimados tendes então uma alma,


que se prende à nossa alma e a força a amar? ".

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126 LÉON RIMBAULT

pulsou o demônio do corpo daquele homem, abriu-he


os olhos e desatou-lhe a língua.
Esse triplo prodígio empolgara o povo. A multi­
dão palpitava de esperança: Et stupebant omnes tur­
bae et dicebant: Numquid hic est filius David?
Maria Madalena sentia a emoção dessa cena gran­
diosa com toda a fôrça da sua rica natureza. Um cla­
rão da divindade de Jesús incidira-lhe na alma, e a luz
ascendia nela.
Que beleza! que majestade naquele homem ! Nã<>·
seria o Messias?
Ele impõe o respeito até à adoração. Excita o en­
tusiasmo até ao amor, e esse amor confunde-se com
uma pureza divina. Oh estranha coisa! "Pecadora
ainda, diz o P. Lacordaire, "ela reconheceu a Deus na
carne do Filho do homem, e, toda coberta da sua ver­
gonha, concebe o pensamento de chegar até ele. De
feito, se ele fôr o Salvador, não póde curá-la? Possessa
do demônio, cega para as claridades da conc1encia,
muda para a prece: por que a sua desdita haveria de
ser irreparável?
Já a confiança lhe nasce no coração. Mas, depois
de ver Jesús agir, ouve-o falar.
Os judeus blasfemam estupidamente, atribuindo
ao poder demoníaco a virtude pela qual Ele curara o
possesso.
Nosso Senhor refuta-os vitoriosamente. E essa
palavra do Mestre leva salutar pavor à alma de Mada­
lena. Ela vê no quadro que Ele traça das devastações

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AS HEROINAS DO DEVER 127

de espírito imundo , o drama terrível das suas próprias


paixões.
Ela conhece, por experiência antiga, as perversi­
dades cuja volta piora a desgraçada condição do peca­
cior. Não é a ostentação dos sete pecados capitais que
estão nela?
Não se dirige a Maria Madalena esta amença de
J esús-Cristo: "Será o castigo desta geração perversa
que me escuta sem se converter," Sic fiet generationi
huic pessimae?
A esse golpe direto da divina misericórdia, Maria
Madalena estremece: "Ai de mim, sou do número des­
ses endurecidos. Se parei, às vezes, no caminho da ini­
quidade foi para retomar a minha marcha com mais
fogo e mais acabrunhamento.
"Todo esse discurso de Jesús é a mim que se di­
rige.
"E' a pintura da minha vida. Eis bem aí o abismo
em que caí, a horrivel sorte que me espera!"
Vêdes a progressão da luz nela? O seu passado
aparece-lhe com as suas deformidades e nódoas; ela
se julga, perante Deus como perante a sua conciência,
i>. luz da morte e dos juizos de alem-túmulo.
Cora de pejo, treme_ de pavor. Aquele que não é
comigo é contra mim, clamava Jesús. Quem não reco­
lhe comigo, desperdiça e dispersa. Compreendes, Ma­
dalena, essa meiga exprobração do Mestre? Quanto
tempo tomaste partido contra Ele! E que foi que
achaste, longe do seu serviço, senão as trevas, a menti­
ra e a amargura?

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128 LÉON RIMBAULT

Compreendes-lhe o terno convite? Ele te promete


se quiseres estar na sua companhia, ajudar-te a repa­
rar o tempo perdido, a recuperar os bens celestes, a
te salvares. Sim, Madalena compreendia, e a esperan­
ça tornava a entrar-lhe no_ coração.
Todavia, Deus lhe reservava um derradeiro assal­
to. E isto foi quando Madalena ouviu sua vizinha Mar­
cela, incapaz de conter por mais tempo o seu entusias­
mo religioso, exclamar no meio do silêncio admirativo
das multidões: Bem-aventurado o ventre que vos trou­
xe, bem-aventurados os peitos que vos amamentaram 1
O rasgo ele coragem viril de Marcela, sua amiga,
afrontando o ódio dos fariseus, inflamou de emulação
::-. ardente pecadora de Magclala: "Eis aí, dizia ela con­
sigo, uma alma sem medo, porque é sem mancha; uma
alma livre para o bem, ao passo que eu cedo ao mal;
uma alma senhora de si, aberta a todas as generosida­
des da fé e do amor, ao passo que eu, escrava, arrasto
o peso de todas as vergonhas.
"Oh Marcela, nunca te vi tão nobre, tão bela, tão
sublime! Oh! como és feliz I"
Uma palavra acabou de tocar o coração tão sen­
sível, mas tão altivo, de Maria Madalena. Foi a recom­
pensa prometida à magnífica confissão de Marcela, e
2- rica e suave promess a feita a todo pecador arrepen­

dido. Dizei antes: bem-aventurados os que ouvem a


palavra de Deus e a guardam.
Por que, por sua vez, não haveria Madalena de
querer as delícias da virtude, as recompensas da eter­
nidade? Não ouvira ela, por um misericordioso desí-

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AS HER0INAS DO DEVER 129
gnio da Providência, a palavra do Salvador? Quem a
impede de guardá-Ia?
A mesma voz ameaça-a de castigo e anuncia-lhe o
perdão. Madalena confunde-se e tranquiliza-se, teme
e espera, treme e ama.
A mundana, havia pouco tão leviana, tão arrogan­
te, deixa a multidão e apressa-se, de fronte baixa, de
coração partido, a alcançar ele novo Betânia, onde Mar­
ta a l'Spcra, 110 seu tranquilo e fecundo labor de postu­
Ian Lc da sua conversão.
Madalena retira-se para o segredo do seu quarto
e de sua alma. Sozinha com as suas recordações, exala
as desolações inenarráveis dum coração doravante con­
quistad'o para o arrependimento.
Chora, como chorará mais tarde Agostinho : Ego
peccabam et tu dissimulabas; non continebam me a
sceléribus, et tu abstinebas te a verberibus; prolon­
gabam ego, peccando, iniquitatem, et tu, Domine, pie­
tatem tua.
Eis aí, minhas Senhoras, a primeira fase da con­
versão de Maria Madalena.
O arrependimento! Nós todos sentimos o valor
desta palavra, porque todos havemos experimentado,
r.o fundo do nosso sêr, a realidade cruenta que ele en­
cerra.
Madalena arrepende-se porque entrevê, através
das suas lágrimas amargas, o Ideal divino a que ela se
póde assemelhar. As palavras e os atos de Cristo, os
exemplos de Marta sua irmã e de Marcela sua amiga,

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130 LÉON RIMBAULT

servem para reavivar na alma da pobre transviada o


encanto dessa luz superior.
Não há arrependimento sem visão de ideal. Se não
enxerga;:des alguma coisa acima de vós, se vos esque­
cerdes nos vossos prazeres e festas; se fordes essa
"humanidade animal que fareja e mastiga o que é ter­
reno" ( 1), jamais tereis esses remígios que salvam;
essas nostalgias profundas, sinais da nossa imortal
grandeza; não conhecereis o arrependimento. Há ho­
mens, há mulheres que a onda duma vida abundante e
feliz arrasta à matraca.
Sêres vivo.s e rastejantes, cedo satisfeitos e repas­
tados, a Bíblia profetizou-lhes, desde a origem, a bai­
xeza dos instintos: Andarás sôbre o ventre e comerás
pó todos os dias da tua vida.
E' a história das almas que vivem, neste mundo,
chafurdadas na matéria, sob a vergonhosa escravidão
ela carne e do mundo, sem um olhar para Deus, sem
preocupação da eternidade.
Nada há a esperar desses gosadores, enquanto lhes
não rasgardes a catarata que lhes cobre os olhos.
Mas no dia em que lhes fizerdes penetrar no cora­
ção, qual lâmina de punhal, o remorso da conciência,
o sentimento da honra desprezada, a saudade da virtu­
de perdida, tê-los-eis salvos. Eles terão reencontrado
o Ideal.
Iluminado por uma luz melhor, o ente humilhado,
decaído, olhará para mais alto, para mais longe, e dirá

(1) S. Paulo.

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AS HEROINAS• DO DEVER 131

a si: "Eu poderia ter sido grande, puro, santo! Eis aí,
pois, o que esquecí. A esses cimos preferí a lama e a
nrúte ! Sou um miserável, pequei, arrependo-me! ... "
Sim, quando o Ideal, longo tempo esquecido, rea­
parece no horizonte 9uma alma, ela se desola, chora,
arrepende-se.
E' a vossa história, minhas Senhoras.
Quando ides às vossas misérias douradas, quando
vos mergulhais nessa nuvem de pó que vos encobre
as coisas divinas, não se vos deve falar de arrependi­
mento.
Mas quando, vinda a noite, em face duma vida
que não se tem respeitado, vos mostram as belezas
adoráveis do Senhor Jesús-Cristo; quando, no terra a
terra e na estéril agita�ão dos vossos corações ociosos,
YOS lançam o grito de amor de alguma santa mulher,

cle alguma mãe heróicamente cristã; quando, acima da


creatura, fazem irradiar o infinito; ao lado das alegrias
e dos amores que passam, as felicidades e as dileções
que ficam; ao lado da juventude que adquire cabelos
brancos e rugas, a juventude sem declínio e a vida
imortal; quando enfim, afastando a miragem de todos
os vossos prazeres, sem nome, sem sabor e sem glória,
vos dizem: Olhai para a eternidade! Lá, tudo é santo,
tudo é belo, tudo é grande, tudo é doce; lá, vereis,
amareis, possuireis a Deus; lá, o vosso amor sem espi­
u ho, sem pesar, encher-vos-á o coração, a vossa con­
ciência será reta e tranqui!a; vossa alma será saciada,
vosso ideal realizado!. . . Oh! dizei-o, minhas Senho­
ras, então os vossos joelhos não se dobram? as lágri-

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132 LÉON RIMBAULT

mas não vos vêm aos olhos? e, com o coração partido


como Maria Madalena, não acusais as falhas do vosso
passado e vos arrependeis?
Nada é tão belo, como o espetáculo dessa fronte
humilhada, dessa face banhada em lágrimas amargas.
E' a miséria humana prostrada ante a eterna beleza,
que ela deveria atingir e de que se desviou. E' o holo­
causto generoso do eu aos rigores redentores do Ideal.
Ah! essa miséria humana, sobejas vezes a haveis
experimentado para ousardes negá-la; as vossas tenta­
ções, as vossas quedas, as vossas tristezas de sobra
vo-la têm provado; por certo, nem a vossa carne é de
bronze, nem o vosso coração é de aço.
Fatigadas das festas da véspera, quando, pela ma­
nhã, envoltas no véu dos vossos remorsos, �rranc.áveis
um por um os espinhos de que vossa alma, sangrando,
estava traspassada, não haveis porventura suspirado
com lágrimas: Ai! eis-me ainda infiel aos meus jura­
mentos! fui covarde, ingrata, pecadora! ...
E o adoravel Ideal, Deus, erguia-se luminoso dian­
te de vós. E víeis elevar-se do fundo puro da vossa
juventude, e passar tambem nos conselhos e nos exem­
plos de alguma Marta cristã, vossa mãe ou irmã, e,
quem sabe? talvez de vossa própria filha, ó mundanas;
na dedicação de alguma santa mulher, ardendo de amor
a Cristo, como Marcela; na pregação do sacerdote, 1 a
continuar no meio do mundo o ministério de Cristo.
Lembrai-vos então disto: vossa alma vos está sempre
"nas mãos", está sempre em vosso poder rasgar ou
lavar com lágrimas <j-S páginas manchadas da vossa

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AS HEROINAS DO DEVER 133
vida, cuja recordação vos faz corar; é sempre tempo,
mulheres cristãs, artistas sublimes, se haveis descober­
to cm vossa alma uma falta contra a arte e uma menti­
ra à eterna beleza, é sempre tempo de tomardes o esti­
lete, o pincel, o buril, e de corrigirdes à vontade, de fa­
zerdes uma obra-prima, de contrastes maravilhosos,
cnde não se sabe que mais admirar, se a miséria humi­
lhada e contrita cio homem, se a misericórdia inefavel
cc Deus.
Apenas, uma vez terminada a obra, em lugar de
Livro da Inocência intitulá-la-eis Livro do Arrependi­
mento.
Um, porem, como outro, aos olhos de Deus, pode­
rá ser um livro perfeito, caro aos anjos do paraíso.
Porque todas as harmonias e esplendores da creação
empalidecem diante desta dupla obra-prima da Reden­
ção: a Inocência em flor, o Arrependimento em pranto!

O arrependimento leva à confissão.


Madalena lamentava profundamente o número e
a. malícia dos seus escândalos. Sentia bem, pelo amar­
gor das suas lágrimas, que já não era pecadora. Fazia­
sc-lhe, porem, mistér uma segurança divina. Só o Sal­
vador lha podia dar: Absolvo-te dos teus pecados.
Só ele, selando-lhe a conversão, tinha o direito de
dizer-lhe: Vai em paz.
Onde quer que ele esteja, irá ter com ele. Arrepen-

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134 LÉON RIMBAULT

dida, precisa expandir as suas lágrimas e ostentar, aos


olhos do divino médico, as chagas de sua alma.
Não descansa enquanto não executar o seu inten­
to. Escutai Lacordaire contar essa cena evangélica.
"Do seio da abjeção mais profunda em que possa cair
o seu sexo, uma mulher levanta os olhos para a pure­
za divina e não desespera da beleza de sua alma. Pe­
cadora ainda, ela reconheceu a Deus na carne do Filho
do homem, e, toda coberta da sua vergonha, concebe
e; pensamento de chegar até ele.
"Toma um vaso de alabastro, símbolo de luz, per­
fume precioso. Talvez fosse o vaso onde ela hanrira
até alí o relevo 9-os seus criminosos atrativos, e, naque­
le perfume que ela leva para outro uso, talvez tivesse
procurado para si própria um acréscimo dos seus ver­
gonhosos prazeres. Profanara tudo, e só ruinas podia
apresentar a Deus. Por isto, entra sem pronunciar uma
5Ó palavra, e do mesmo modo saira.
"Arrependida, não se acusar.á perante Aquele que
üe tudo sabe; perdoada, não exprimirá sentimento al­
gum de gratidão. Todo o mistério lhe está no coração,
e o seu silêncio, que é um ato de fé e de humildade, é
também o derradeiro esfôrço duma alma que supera­
bunda e nada mais póde.
"Era uso naquele voluptuoso Oriente ungir a ca­
beça de perfumes, e era um culto tocar assim o homem
com uma unção no ápice da sua beleza. Maria sabia-o
melhor que ninguem, e, não raro, nos dias dos seus er­
ros, havia honrado assim os escravos da sua sedução.
Não cuida, pois, aproximar-se da cabeça bendita do

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AS HEROINAS DO DEVER 135
Salvador, mas, qual serva acostumada aos mais vís ofí­
cios, inclinando-se-lhe para os pés e, sem tocá-los a,
princípio, rega-os com suas lágrimas. Jamais, desde o
começo do mundo lágrimas tais haviam caído nos pés
do homem. Podiam tê-los adorado por temor ou por
amor; podiam tê-los lavado em águas embalsamadas,
e filhas de reis não haviam desdenhado, nos séculos da
hospitalidade primitiva, essa homenagem prestada às
fadigas do estrangeiro : mas era a primeira vez que o
arrependimento se assentava em silêncio aos pés elo
homem, e derramava neles lágrimas capazes de res­
gatar uma vida.
"Chorando, e s em esperar por uma palavra que a
anime e que não é dita, Maria deixa cair os cabelos em
volta da cabeça, e, fazendo das suas madeixas magní­
ficas um instrumeuto da sua penitência, enxuga, com a
seda humilhada delas, as lágrimas que derrama.
"Era também a primeira •;ez que uma mulher
condenava ou, antes, consagrava a sua cabeleira a esse
ministério de ternura e de expiação.
"Tinha-se visto mulheres cortarem os cabelos em
sinal de luto; tinha-se visto outras oferecerem-nos co­
mo homenagem no altar dalguma divindade : mas a
história, que notou tudo o que foi singular nos movi­
mentos do homem, em parte alguma nos mostra o ar­
rependimento e o pecadõ .a crearem juntos tão tocante
imagem de si próprios...
"Feito isso, a pecadora afoita-se. Aproxima dos
pés elo Senhor os lábios deshonrados, e cobre-os de bei­
jos que apagam a impressão de todos os que ela deu e

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136 LÉON RIMBAULT

r�cebeu. Ao contacto daquela carne mais que virginal,


as últimas fumaças das velhas i:ecordações se desva­
necem; os estigmas inexpiáveis desaparecem, e aque­
la boca transfigurada não respira mais senão o ar vivo
da santidade. Só então, e para consumar pelo amor to­
do o mistério da penitência, ela abre o alabastro, que
contém, com o perfume, as suaves imagens da imorta­
lidade, e derrama-o nos pés do Salvador, por cima das
lágrimas e dos beijos com que os cobriu; suas mãos
purificadas não receiam mais tocar e ungir o Filho de
Deus, e a casa enche-se da virtude que sái do vaso
frágil e do vaso imortal, do alabastro e do coração."
Oh Madalena, sois o tipo para sempre consagrado
de todas as mundanas, vindas depois de vós, pelo ás­
pero caminho do sacrifício, para reconhecerem e cho­
rarem os desvarios da sua vida, rogando sempre a Je­
sús, ajoelhaçlas e vencidas, com a luz que alumia, com
a fôrça que reergue, a palavra de consolo cujo encan­
to inebriante saboreastes, oh santa penitente: Muitos
pecados lhe são perdoados porque ela muito amou.
Como vedes, minhas Senhoras, a confissão dos pe­
cados é o segundo elemento da conversão.
Se aspirais à redenção do vosso coração decaído,
da vossa vida tombada, tendes lealmente que vos resi­
gnar a reconhecer as vossas culpas e a acusá-las.
- Por que a confissão? dir-me-eis.
Porque Deus ofendido por vós tem o direito de
exigir uma reparação e de fixar-lhe o modo.
Ora, Jesús-Cristo, seu Filho, impôs-nos a confis­
são feita ao sacerdote, seu representante.

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AS HEROINAS DO DEVER 137
Impossível burlar a lei da confissão.
Mesmo porque, por mais penosa que seja, a con­
fissão responde a uma tríplice necessidade do vosso co­
ração. Vistes Madalena ir por si mesma ao encontro
dessa humilhação. Toda alma amesquinhada pelo pe­
cado reclama, de feito, imperiosamente, essa confissão
que custa, que mortifica, mas que salva.
Entes fracos, entes culpados, entes desditosos, a
confissão impõe-se-vos inelutavelmente.
Todas as mentiras do mundo não vos podem ocul­
tar isto: se haveis pecado, minhas Senhoras, sois uma
fraqueza. Ora, quando se é fraco, quando se tem a con­
ciência da própria enfermidade, sabeis qual a primeira
necessidade do coração? é chamar em socorro um sêr
forte e v�alente: um salvador; em suma.
Sem ele próprio o saber, o náufrago, do seio do
abismo, busca uma mão estendida para ele na tempes­
tade.
O pobre doente, em meio às suas insônias febrís,
grih pelo médico ou pelo enfermeiro.
Inútil provar em que fraqueza caíram os pecado­
res na véspera de se converterem.
Já que a fôrça hostil os lançou por terra, estão
despedaçados. Não tendes que lhes cavar muito a den­
tro na alma para vos capacitardes do mal interior que
os acabrunha e dessa imema necessidade dum salva­
dor, que eles reclamam às vezes cm gritos_ dilaceran­
tes.
Ora, a confissão, a confissão sacramental, traz-vos
justamente esse Salvador.

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138 LÉON RIMBAULT

Sofrendo o instinto de todo sêr fraco, dizeis pois


ao padre: "Tenho angústias e acabrunhamentos: dá­
me o teu apôio, ou desfaleço."
Outras fôrças vão empolgar-vos nesse primeiro
estado e inclinar-vos ainda à confissão dos vossos pe­
cados. - Não sois somente fraqueza, sois culpabili­
dade.
Não se po<le cometer o mal sem marcar a fronte
e o coração C011J. um ferro em brasa.
Pecadoras, que seguís as Yeredas perdidas de Ma­
dalena, só na vergonha podeis ir dar.
Cada passo tira-vos em enfeite e um atrativo. Ca­
minhais para a destituição total.
Breve as pessoas se desviarão de vós, como de
ruínas apenas respeitadas. Sereis semelhantes a paúes
de estéreis caniços. Iludido por um atalho florido, mal
o viajar se aproxima dele logo reconhece o seu êrro,
e apressa-se em afastar-se desses tremedais, lançando­
lhes uma maldição.
Porque o que embeleza é a virtude; o que afeia é
o vício; o que honra e faz viver é o bem; o que deshon­
ra e mata é o mal.
Andando, pois, pela senda da perdição, não vos
exaltais, e sim vos abaixais, vos devastais.
E, a despeito de todos os vossos esforços, as vos­
sas frontes trazem marcas dela, cuja vergonha disfar­
ce algum pode dissimular.
Por sob a máscara emprestada do vosso riso, sob
o cambiante recamado duma jovialidade estudada, o
ôlho experiente do psicólogo saberá descobrir os ves-

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AS HEROINAS DO DEVER 139

tígios bem vivos dum passado culposo. Dá-se com a


vida de certas mulheres o que se dá com um solar ou­
trora incendiado.
Afastem-se os festões p.e madresilva e de hera que
engrinaldam os muros, e descobre-se a lepra deixada
pelo fogo.
Por mais que fizerdes, minhas Senhoras, se a vos­
sa falta não fôr confessada, guardar-lhe-eis algures,
11alma ou na vida, o pertinaz e doloroso estigma.
Ora, sabeis qual é a primeira necessidade duma
alma culpada? Não é nem o silêncio, nem o esqueci­
mento. Primeiramente, o criminoso busca as trevas,
põe numa fuga apressada a sua segurança. Mas é essa
uma necessidade superficial. Ponde-lhe a alma a des­
coberto: ela tem sêde de se trair, de gritar: "O mise­
ravel sou eu!" Eis aí a necessidade invencível da con­
ciência humana.
Ah! podem os espíritos levianos zombar da con­
fissão. Eles nunca viram, como nós, os terrores secre­
tos dos culpados; nunca tiveram sob os olhos o espe­
táculo duma vida fechada a todos os olhares, havia ses­
senta anos, e abrindo-se de repente para ostentar, qual
tumba aberta, a ignomínia das suas obras, a atroz an­
gústia dos seus remorsos; eles nunca se ouviram cha­
mar, na estrada solitária, pelo assassino de cabelos
brancos, desconhecido da justiça dos homens e supli­
cando ao padre arrancá-lo à justiça de Deus.
Sim, esses podem ridiculariza,r a confissão sacra­
mental, porem ficai sabendo que, sem reflexão e sem

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140 LÉON RIMBAULT

respeito, eles zombam duma coisa entre todas sagrada:


e;nosso pobre coração martirizado!
Jesús-Cristo conhecia bem esse coração frágil e
miserável. Por isto, para purificá-lo, inventou o sac.-a­
mento da misericórdia, "esse tribunal, como diz Bos­
suet, que justifica os que se acusam"
- A confissão impõe-se, finalmente, ao ente que
sofre.
Ora, impossível a vós, minhas Senhoras, sair da
lei moral sem vos tornardes um sofrimento.
O fruto do pecado é amargo.
A cada etapa do pecador na trilha larga das suas
concupiscências, ressôa a lúgubre queixa de Dante, na
sua Divina Comédia:

Per me si va nella città dolente,


Per me si. va nell'eterno dolore !

A cada passo, novas <:bagas se abrem na alma, fe­


ridas se cavam mais profundas; lágrimas rolam, san­
gue corre. Culpados, nunca escapamos à dor.
Dizei-me, minhas Senhoras, como se chama o
amanhã das vossas festas, dos vossos saraus, dos vos­
sos triunfos?
Amanhã é a nuvem velando o azul dos céus.
Amanhã é o coração confrangido, triste, a acusar
a imaginação que o iludiu.
Amanhã é a prostração da alma ante os destroços
da sua honra aviltada.
Amanhã é o inutil pesar; amanhã, a amargura do

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AS HEROINAS DO DEVER 141

abandono, a acuidade dos remorsos, o desencanto, o


desespero! ...
Eis aí, minhas Senhoras, o reverso horrendo das
vossas brilhantes mundanidades.
Infelizes, ao sairdes da sala do festim cintilante
do fulgor dos lustres, não contáveis com o poço som­
brio dos calabouços eriçados de lâminas de espadas.
Não vos seduzais, pois, a vós mesmas.
Eis que vos credes rainhas, e sois escravas. For­
mam-se em torno do vosso colo colares, porem colares
de servidão, e vós sofreis. Tendes, dessarte, necessida­
de do curandeiro. Rogai ao padre que vos tire as al­
gemas, que alivje a vossa desolação.
Fraqueza, culpabilidade, sofrimento: tudo cede à
confissão.

A confissão, entretanto, não é só um arrependi­


mento e uma declaração, é uma expiação.
E' preciso, deste ponto de vista, estudá-lo em Ma­
ria Madalena. No tempo dos seus desvarios, Maria
Madalena sacrificara tudo ao prazer, ao mundo, a si
mesma. Todas as creaturas haviam-na cativado.
Agora, arrependida, ela irá generosamente até à
consumação do safrifício. Nem os desdens, nem as cen­
suras do mundo a impedirão de entregar-se inteira­
mente ao serviço do Mestre adorado, cujo perdão a
regenerou.
A sua atitude, doravante, é a prosternação.
Oh Madalena, quando, desatando as compridas

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142 LÉON RIMBAULT

tranças, enxugáveis com a sua seda dourada e cobríeis


de beijos adoradores os pés do Senhor Jesús, notáveis
por ventura o riso escaninho dos convivas, as suspei-·
tas irônicàs dos fariseus?
Não; chorando sôbre o vosso orgulho passado,
não vistes esses desprezos.
Estaveis toda na expiação 1
Quando, sempre aos pés dele, com a alma sequio­
sa de luz e de paz, lhe bebíeis a palavra no recesso de
Betânia, ouvíeis acaso as recriminaçõões do zêlo um
tanto amargo de Marta?
Não; resgatando, na contemplação, o tempo per­
dido da vossa louca juventude, aquelas censuras não
as haveis percebido:
Estáveis toda na expiação !
Mais tarde, na ante-véspera da pa1xao, quando,
quebrando o alabastro nas mãos, derramáveis o seu
perfume sôbre a cabeça e depois sôbre os pés do Sal­
vador, distinguíeis porventura as murmurações indi­
gnadas de Judas contra as vossas profusões?
Não; lastimando o luxo dos vossos antigos afei­
tes, não vos ofendestes com aquelas críticas.
Estáveis toda na expiação !
No Gólgota, quando, com a fronte apoiada nos
pés cravados de Jesús-Cristo, vos abismáveis na vos­
sa dor, tinheis conciência das peripécias da lúgubre
tragédia?
Não; quebrantada à lembrança dos vossos peca­
dos, inundada do sangue divino que os apagava, nada
víeis, nada ouvíeis:

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AS HEROINAS DO DEVER 143
Estáveis toda na expiação !
As próprias glórias da Ressurreição acharam-vos
insensível. Desatenta aos aleluias dos anjos, entregue
toda ao vosso luto e ao vosso amor, fez-se mistér que
o próprio Jesús vos perguntasse o porquê das vossas
lágrimas: Mulier, quid pioras?, o objeto das vossas
rirocuras, quem quaeris? Isso mesmo não bastou para
vos tirar das profundezas da vossa expiação. O Mestre
deve ter revolvido todos os écos do vosso coração, di­
zendo-vos: Maria 1 "Oh! que acento teve essa pala­
vra!", diz Lacordaire, "acento de censura, porque Ma­
dalena não reconhecera Jesús; acento de revelação pe­
la censura... Maria: Mada!ena ouviu tudo no seu no­
me; ouviu o mistério da ressurreição, que ela não com­
preendia; ouviu o amor de seu Salvador, e nesse amor
reconheceu-o."
Mestre! respondeu ela. Uma palavra lhe basta, co­
mo uma palavra bastara ao Filho de Deus.
"Quanto mais as almas se amam, tanto mais cur­
ta lhes é linguagem."
M.as que expiação a que necessitava da censura de
um Deus para ceder às alegrias da Ressurreição!
Eis aí, minhas Senhoras, o que vós mesmas fareis
no dia em· que decidirdes converter-vos: confirmar­
vos-eis na expiação.
Quando éreis mundanas, gostáveis dos bailes, dos
festins, dos vestuários, dos teatros. No dia em que
voltardes a Deus, deixareis todas essas misérias ruido­
sas e brilhantes; pouco a pouco desdenhareis toda es­
sa "fascinação da bagatela", retirareis gradualmente

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144 LÉON RIMBAULT

dessa atmosiera morna e amolentadora o vosso cora­


ção feito só para os amores eternos.
Repelireis o luxo do vosso trajar, e ver-vos-ão, co­
mo simples mulheres sem arrebiques e sem atavios,
reduzidas ao que se tem quando se quer ser cristã,
despojadas desses ornamentos de ídolos.
Parecereis um pouco no luto e na simplicidade.
Será a expiação.
Talvez me acuseis de pregar a severidade. Prego
fÓ a justiça.
A expiação recusa a um ente culpado não só o que
é supérfluo, porem até mesmo aquilo que ele poderia
legitimamente conceder-se se não tivesse pecado.
Por que afinal, minhas Senhoras, vos excedestes
no goso; em vez de dardes o vosso supérfluo aos po­
bres de Jesús-Cristo, fizestes da vossa riqueza o pasto
das vossas cubiças, a provedora das vossas frivolida­
des, do vosso luxo, do vosso sensualismo. Abusastes
ele mil dons, do vosso tempo, da vossa saúde, da vossa
mocidade, dn. vossa beleza I E não haveríeis de querer
restabelecer, por um excesso contrário, o equilíbrio
tão tristemente rompido por vossas faltas?
Prodigalizastes vossas horas e gosos ao mundo, e
recusaríeis empregá-los �:l'ora cm diante na oração e
nas boas obras?
Abusastes do vosso coração, e hesitaríeis em der­
ramar-lhe o amor - ai! tanto tempo desperdiçado e
profanado - aos pés do Deus que tão pacientemente
esperou por vós?
Não! tal se não dará. Se a justiça fala em vós,

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AS HEROINAS DO DEVER 145
minhas Senhoras, como a dôr, a fraqueza, a culpabili­
dade; se sois, numa palavra, mulheres de honra e de
valor: não vos cingireis a fazer, a um padre, a confis­
são do vosso arrependimento, pedir-lhe-eis as obras
austeras da expiação.
E, na esteira dessa mulher que tanto chorou e
tanto amou, vireis, por vosso turno, quebrar aos pés
de Jesús-Cristo o frágil porém fiel vaso dos vossos
pensamentos, das vossas lágrimas e do vosso amor.

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AS QUE REZAM

Nas suas notas de viagem, Victor Hugo conservou


a lembrança duma capelinha erigida no monte Pilatos,
bem no local onde a lenda situa a emboscada de Gui­
lherme Tel1 :
"Uma Nossa Senhora, conta êle, está no altar;
diante c:lessa Nossa Senhora está aberto um livro onde
os passantes devem registrar os nomes. O último via­
jante entrado na capela escrevera nele estas duas li­
nhas que me sensibilizaram mais do que todas as de­
clarações de guerra aos tiranos, de que o livro está
cheio: "Rogo humildemente a nossa santa Mãe de
Deus que se digne, por sua intercessão, fazer minha
pobre mulher recuperar um pouco de vista". Eu nada
escrevi naquele livro, nem sequer o nome. Por baixo
dessa meiga prece, a página estava em branco. Em
branco deixei-a eu." (1)
"Dize a Didina e a Dédé", escreve ele alhures,
"que pensei nelas na ·capela de Nossa Senhora do Li­
vramento. Havia lá pobres mulheres de marujos, que
rezavam de joelhos pelos maridos arriscados no mar.

(1) Em 'VÍagem, Alpes, I.


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148 LÉON RIMBAULT

Eu tambem rezei, verdade é, sem me ajoelhar, sem pôr


as mãos, com o orgulho besta do nosso tempo, porem
do mais profundo do coração". (1)
Assim, pois, a gente do povo e o homem de gênio
encontram-se no mesmo ato religioso, na confissão
confiante da sua mendicidade que bate, instintivamen­
te, à porta do bom Deus. Escreve, porem, Deus uma
resposta na página, que ficou em branco, da petição do
pobre? Olha Deus a prosternação das mulheres de ma­
rinheiros?
Escuta Deus o que ascende "do mais profundo do
coração" do homem?
Noutros termos: Que é rezar? Devemos rezar?
São nossas preces sempr� ouvidas? que devemos pe­
dir a Deus? quando e como devemos rezar? Outras
tantas questões, minhas Senhoras, pelas quais devem
interessar-se as Heroinas do dever.

*
**
Têm-se dado à oração nomes maravilhosamente
belos. Têm-na chamado: uma ciência. . . uma arte ...
um tesouro, a vida das almas, a chave de ouro dos ce­
lestes favores, a escada do paraiso, o arco-iris da es­
perança, o pão de munição �o crente, a boia de salva­
mento dos pecadores.
A oração é sobretudo um mistério.
"Pôr, pelo pensamento, o infinito de baixo em

( 1) Carta • de Julho de 1896, Victor Hugo íntimo.

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AS HEROINAS DO DEVER 149

contacto com o infinito de cima, isto chama-se re­


zar" (1).
Imensidade de fraqueza, imensidade de desejos,
como é que tudo isto, saindo do coração do homem,
póde alcançar o coração de Deus? Como transpor o
pélago insond.avel que nos separa d':Êle? Para isto far­
se-ia mistér:
"Levantar um a ponte gigante sôbre milhões de
arcos" (2). O homem considera o abismo, e desespe­
ra-se.
Mas um fantasma desespera-se diante dêle. Escu-
tai o poeta:

Et ce fantôme avait la forme d'une !arme:


C'était un front de vierge avec des mains d'enfant;
II ressemblait au lis que la blancheur défend,
Ses mains en se joignant faisaient de la lumiere. (*)

Eis aí o anjo que levantará a ponte prodigiosa.


"Como é teu nome?" digo-lhe eu. E ele me diz:
"A prece."
Profunda como o coração do homem, sublime co­
mo o coração de Deus, a prece é, pois, primeiramente,
uma elevação da alma, uma ascensão de todo o sêr.

(1) V. Hugo, Os Miseráveis.


(2) As Contemplações, I-VI.
(*) "E esse fantasma tinha a fórma duma lágrima:
era uma fronte de virgem com umas mãos de criança ;
parecia-se com o lírio que a alvura defende,
as mãos se lhe juntando germinavam luz."

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150 LÉON RIMBAULT

"Gostamos de tudo o que ascende", escreve Maria


Jena (1), "das árvores, dos campanários das aves, das
nuvens; não é um sinal de que tambem nós somos
feitos para ascender?" "Meu coração toma o seu vôo",
diz Raimundo Brucker, "mal pronunciam diante de
mim o nome de Jesús-Cristo." Mesmo porque, no es­
tado confuso de perfumes, de raios de luz, de balbucíos
universais, exala-se da natureza um vago instinto de
adoração e de reconhecimento para com o Creador.
O universo parece-se com "esses mudos em cuja
alma saltita uma grande palavra a dizer, e que rolam
de impotência a vossos pés por não a poderem pro­
nunciar" (2).
Cabe ao homem ser, perante Deus, o intérprete e
o bardo dos mundos. Como não haveria ele de empres­
tar a inteligência, o coração, toda a alma enfim, à crea­
ção, já que ela não lhe solicita o olhar e não se lhe
prostra aos pés senão para se elevar por ele até o trono
do seu comum Autor?
Qual o meio de não ceder ao impulso imanente da
ambiência, ao fluxo ascensional das coisas a buscarem
a Deus?
Só os cínicos e os materialistas se excluem da pre­
ce unive,;sal.
"Todo homem que não reza é um tratant.e ou um
top eira" ( 3).

( 1) Pensamentos duma crente.


(2) Bolo, Sriblimidades da ora,ão.
(3) Otávio Feuillet, Cenas e Comédias, a Ermida.

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AS HEROINAS DO DEVER 151
De fato, olhai para cima como par,:t, baixo de vós.
O inseto vale um mundo. Há o mesmo formigamento,
o mesmo mistério na esfera celeste e na bolha dágua.
"As três mil espécies de efêmeros para uma só
roseira, verificadas por Bonnet de Genebra o anel de
Saturno que tem sessenta e sete mil e quinhentas lé­
guas de diâmetro; as dezesete mil facetas do ôlho da
mosca ... ; o bólido e o cometa; o volvox e o víbrion ... ;
as nebulosas, essas nuvens do abismo; os môfos, essas
florestas do átomo; os furacões de Júpiter, os vulcões
de Marte, as hidras nadando nos glóbulos do sangue,
o infinitamente grande de Campanela, o infinitamente
pequeno de Swammerdam, a eterna vida para sempre
visível em cima e em baixo ... - Tirai-me daí de bai­
xo", exclama Victor Hugo, "se não quiserdes que eu
reze!" (1).
A prece é essencialmente uma ascensão. Por êste
título é ela já a glória da nossa natureza inteligente
e livre, amante e imortal: ascensus mentis in Deum.

L'océan a sa masse et l'astre sa splendeur.


L'homme est l'être qui prie, et c'est là sa grandeur. (2)

(1) Post-scripfllm de m-iiiha vida.


(2) Lamartine, A q11éda de mn anjo, 8.• visão.
"Tem o oceano sua massa e o astro seu esplendor.
O homem é o sêr que ora, e esta é sua grandeza. "

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152 LÉON RIMBAULT

Não só o homem se eleva para Deus, porem quer


conversar com Deus. A oração é o doce e familiar co­
mércio da alma com Deus seu princípio: familiaris
quaedam collocutio Dei et animae.
Nos dias calmos e puros da inocência original, a
prece ia a Deus com as asas da confiante e singela
pomba. Rei do universo, o homem falava ao seu Crea­
dor filialmente. Ai! o mal quebrou-lhe o i,Urto. Águia
ferida, o homem não tem mais senão surtos de impo­
tência. Pecador, corrompido, amaldiçoado, ele se sente
como que desterrado nos cimos, tão laboriosamente
percorridos de etapa em etapa pela obstinação dos seus
desejos, na hora em que deveria fumegar o incenso
duma ardente exoração.
E durante quarenta séculos a prece esgota todas
as notas de humildade, do temor, do desânimo, dà 9e­
solação, da vergonha, do próprio desespero. Escutai-a
soluçar na Bíblia.
"Senhor, não sou mais que pó, não vos irriteis se
ouso falar-vos ! " ( 1). "Oh Deus, mostra-nos a tua fa­
ce!. .. Senhor, Deus das virtudes, até quando respon­
derás pela cólera à prece do teu servo? Fazes-nos co­
mer um pão de lágrimas, abeberas-nos de pranto e a
medida está cheia!" (2).
"Minha alma murcha e séca no seio da minha car­
ne, os vermes que me roem não podem adormecer, e
tornei-me semelhante a uma turba infecta. . . clamo

(1) Gen., XVIII, 27.


(2) SI., LXXIX, 4, 5, 6.

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AS HEROINAS DO DEVER 153

para ti e não me ouves; espero, ele pé, e não me olhas.


Tens par mim entranhas de ferro ... Oh terra, terra!
não me bebas o sangue, e nenhum refolho se abra on­
de possam ocultar-se, para serem aí abafados, os meus
gritos!... (1).
Vãos esforços! incuravel miséria! Deus permane­
ce inacessível, irritado, ameaçador, terrível!
Em vão o homem chama em seu auxílio as rique­
zas inauditas do culto tradicional; as flôres e os frutos
da terra, a música dos levitas, os cânticos das virgens,
o murmúrio das crianças, o sangue de inúmeras víti­
mas.
Abomino o vosso sacrifício e o vosso incenso, diz
o Senhor. Vossos sábados e festas entediam-me.
"Para trás as vossas hecatombes!" (2).
Que dizer? que fazer? que esperar?
Nessa incomensurável penúria, Nosso Senhor Je­
sús-Cristo interveiu: "Tende confiança", diz ele aos
homens ... "Tudo o que pedirdes ao Pai em meu no­
me ser-vos-á concedido". (3).
"Não quisestes oblações do homem pecador, diz
Ele a Deus: eis-me aqui. Dou-vos graças, meu Pai,
porque me ouvistes, e sei que me ouvireis sempre" (1).
Homem-Deus, Ele tomou sôbre si o peso das nos­
sas lágrimas, dos nossos gemidos, das nossas dores;
tudo, exceto a inquidade.

(1) Jó, XVI, 18-19.


(2) Is., 1, 11-13-14.
(3) João, XV, 7.

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154 LÉON RIMBAULT

Homem-Deus, Ele embebe as nossas súplicas na


unção da sua graça. Cobre as nos.sas indigências com a
amplitude dos seus méritos, e agora as nossas petições
são válidas em presença d'Aquele que amou tanto o
mundo que lhe deu seu Filho para redimí-lo.
Todo o gênero humano, graças a esse nepotismo
divino, recebe audiência do Eterno. Cada um dos mi­
seráveis dêste mundo apega-se perdidamente ao Me­
diador e repete à saciedade, a palavra de amor dum
sempiterno estribilho, como a criança dolente que ador­
mece no seio da mãe: Per Dominum nostrum Jesum
Christum Fílium tuum.
Demais, quando formulamos, diante de Deus Pa­
dre, em nome de Deus Filho, a exposição dos nossos
pedidos, a voz de Deus Espírito-Santo ecoa-nos na al­
ma. Só a vontade de rezar vem de nós. Tudo o mais,
na oração, é de Deus. Oh poema divino em que, para
nos dar confiança e alegria, repercute a voz imensa do
tríplice Infinito !
Por isto, doravante a prece do homem terá todas
as audácias, como todas as tonalidades.
Será, por excelência, o estilo humano-divino das
almas, quero dizer: a expressão absoluta da sua gran­
deza e da sua miséria. Não está aí o estranho amálga­
ma da nossa natureza decaída?
Ora, a oração afirma o nada do homem, põe-no de
joelhos como o mendigo do Evangelho, de pratinho na
mão, cego, nú, suplicante: afirmação de desolação e de
penúria.
Porem mostra-o ao mesmo tempo agindo sôbre

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AS HEROINAS DO DEVER 155

os decretos de Deus: afirmação de sobreeminência e


de soberania!
Por ela, Deus introduz-nos no mistério do seu go­
vêrno, e o instante em que Ele nos entremeia assim
aos seus conselhos é o instante em que nos precipita
de rosto no chão.
"A prece, escreve Ernesto Helo, é ao mesmo tem­
po o grito da angústia e o hino de glória." Que mais
esplêndida expressão do homem todo?
Um grito, minhas Senhoras, um grito, sabeis o
que é? E' a revelação súbita do fundo dum sêr; um
grito é a explosão dum sentimento tornado incoercí­
vel; um grito é o supremo recurso dum sofrimento em
talas; um grito é, no salve-se quem puder das fraque­
zas de baixo, um apelo irresistível à intervenção da
fôrça do alto; um grito é o ultimatum da miséria elo
homem à misericórdia de Deus. Ora, Deus não sabe
resistir à eloqu'ência do grito.
"Quem me tocou?" perguntava outrora, nos ca­
minhos da Judéia, Cristo a seus apóstolos: - "Se­
nhor", poderiam ter respondido os discípulos, "toda
gente vos toca. A multidão dos indigentes, dos aleija­
dos, dos infelizes, comprime-vos. Que de admirar se
ela vos roça, se vos esbarra?"
- "Não: alguem me tocou de modo particular:
porque uma virtude saiu de mim."
"Quem foi que gritou até mim? diz a seus anjos
o Deus da eternidade." - "Mas, Senhor, todas as
creaturas gritam perpetuamente diante de vós; não há

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156 LÉON RIMBAULT

boca que não se abra para mendigar, a grandes gritos,


o seu pão, o seu repouso, a sua vida ...
Não sois a universal Proviciência ?"
- "Sem dúvida", responde o Senhor; "mas ouví
subir do vale das lágrimas a veemência duma súplica
onde repontava a acuidade duma. dor e dum amor
transcendentes, alguma coisa do grito possante de meu
Filho crucificado no Gólgota. Esse grito desarma a
minha justiça e faz pender a · minha misericórdia:
"Uma virtude saíu de mim".
"Se um inseto pudesse rezar-nos quando lhe va­
mos pisar em cima", diz Lacordaire, a sua prece tocar­
nos-ia de imensa compaixão" (1). Como então não ha­
veria Deus de se sentir comovido? Tantos gritos se
elevam da Terra ! "
Gritos de confiança filial:
"Louvai a Deus! a ovelha vem quando o cordeiro
a chama; eu chamava o Senhor, e o Senhor veiu" (2).
"Confiança em Deus!", escrevia Luiz Veuillot. "O P.
Godofredo me dizia: Se por acaso o Sr. precisasse
dum pedacinho da lua, haveria que lho pedir, e não há
razão para que ele não lho concedesse" (3).
� Gritos de invencível esperança:
Torturado por um mal horrendo, arruinado, fulmi­
nado por espantosas provações, Jó, o homem da catás­
trofe, fixa no seu Redentor os olhos afogados em lá-

(1) Conferências de Notre-Dame.


(2) Victor Hugo.
( 3) Correspondê11cia, t. I.

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AS HEROINAS DO DEVER 157

grimas: "Sei que ele está vivo e que o contemplarei.


Minha esperança é imortal em minha alma."

Quand la vie est mauvaise, on la rêvc meilleure.


Les yeux en pleurs, au ciel se levcnt à toute heure:
L'espoir vers Dieu s e tourne, et Dicu l'entend crier.
Laissez tout ce qui pleure
Prier. (1).

Gritos de entusiástica admiração e de cavalhei­


resca altivez:
Quis ut Deus? "Quem é como Deus?" Quem tem
a beleza de Deus? Quem melhor do que Deus merece
a adoração? "Adorár, diz Victor Hugo, é amar admi­
rando" (2).
- Gritos de suprema angústia:
Veni in altitudinem maris et tempestas temersit
me. Salvum me fac, Deus, quoniam intraverunt aquae
usque ad animam meam (3). Não se diria um transa­
tlântico desarvovrado, desventrado, prestes a sosso­
brar? Os fogos estão apagados, debalde o apito uiva,
em vão o canhão trôa ..• Nenhum farol no horizonte,
vela alguma na imensidade. Todos os cérberos do abis-

(1) Victor Hugo, Os quatro ventos do espírito.


"Quando é má a vida, eis que a sonhamos melhor.
Em pranto o olhar ao céu se eleva a toda hora;
A esperança a Deus se volve, e Deus ouve-a clamar.
Deixai tudo o que chora
Rezar."
(2) Victor Hugo, Literatura e filosofia miscelânea.
(3) S'almo.

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158 LÉON RIMBAULT

mo ladram. Nada de compartimentos estanques: a


água abisma-se nos flancos do navio ... Salvum me
fac, Deus! Socôrro, meu Deus!
- Gritos �e magnânima objurgação:
"Não vos deixarei ir", diz Jacó ao misterioso lu­
tador, "enquanto não me tiverdes abençoado" (1).
''. Apagai-me do livro de vida", exclama Moisés,
"ou perdoai a este povo" (2).
Clovis ergue-se a prumo nos seus estribos de fer­
ro, e lança, por cima do barulho das franciscas e dos
broquéis que se entrechocam, este grito decisivo:
"Deus de Clotilde, se me deres a vitória, não terei an­
tro Deus senão a ti! "
- Gritos de heróica caridade:
Em Lourdes, durante a procissão do SS. Sacra­
mento, uma jovem tísica de Villepinte oferece a vida
pela cura duma doente estirada, quase sem vida, numa
maca ao lado dela: "Virgem Maria, aquí vim para vos
pedir que me curásseis; mas se Deus não permitir
que sejamos ambas curadas, deixai-me, e curai minha
companheira." E, à passagem do ostensório divino, a
vizinha da colegial de Villepinte levantou-se de súbito
e andou.
"Obrigada, minha Mãe", exclamou a pequena tu­
berculosa, pregada à sua maca. "Vi a vossa bondade,
escutastes a minha prece, podeis agora chamar-me a
vós."

(1) nxodo.
(2) Gênese.

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AS HEROINAS DO DEVER 159

Gritos, enfim, da alma naturalmente cristã:


"Um amigo meu", conta François Coppée, "que
fez pra si só uma doutrina, uma espécie de budismo,
na medida em que a pude compreender, confessa as­
sim a sua derrota filosófica: "Sim, passei dez anos <le
minha vida a me persnadir de que tudo não passava
de ilusão e de nada, e o meu sistema marchava às mil
maravilhas. Porem, outro dia, quando minha filhinha
estava tão doente, pus-me mui simplesmente a implo­
rnr wn Deus bom, um Pai celeste que pudesse conser­
var-ma neste mundo ou restituir-ma no outw."
"Vem, pois, oh alma humana", exclamava Tertu­
liano, "comparece perante nós ... não tu, alma forma­
da nas escolas, exercitada nas bibliotecas e nutrida
nas Academias, tu que, sob �s pórticos da Grécia, de­
clamas orgulhosas máximas.
"Não, vem cá em toda a rudeza, em toda a simple­
za da tua ignorância primitiva, tal qual te possuem
aqueles que só têm a ti; acorre da via pública, da' en-
cruzilhada, da oficina... " Porque é que dizes, no so-
frimento, na perturbação, sob o golpe duma persegui­
ção ou duma desgraça: "Meu Deus! Deus permita!
Deus queira!... (1) ", Oh tstemunho indesarraigável
duma alma naturalmente cristã!
Júlio Simon negou algures a racionalidade desse
téstemunho. A oração, segundo ele, é um grito de in­
conciência, porquanto, se tivesse um sentido, seria o

(1) Tertuliano: Do testemunho da alma.

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160 LÉON RIMBAULT

pedido formal dum milagre e destruiría o plano 4e


Deus.
Um homem cái num precipício. "Meu Deus!" ex­
clama ele. Eis aí o instinto. Mas para que serve esse
apelo? Ou uma raiz de árvore se torce à beira do abis­
mo, e o homem tinha só que agarrá-la: inutil gritar;
ou então não há nada a agarrar, e o seu grito é então
o pedido formal duma creação.
Quem é que não vê nessa argumentação o so­
fisma?
Que importa que haja ou não à beira do precipício
uma raiz? Poderia ela achar-se alí sem que o homem
pudesse agarrá-la ou sequer a percebesse. A minha
prece pede a Deus clarividência para vê-la, geito para
pendurar-me a ela, vigor para aí me manter. Essa raiz
fragil cederia ao meu peso; suplico a Deus que me fa­
ça dela um apoio, um instrumento de salvação... Meu
grito não tem, pois, nada de inconciente. Não encerra
ele a minha fé na Providência? Que, se a raiz não exis­
te contraa parede sôbre a qual escorrego, e se se faz
mistér aquí uma intervenção miraculosa, porque teria
e? dificuldade em afirmar qu� exceto o mal, tudo se
póde pedir a Deus?
"Porque a prece é infinita" {1). Se tivésseis fé,
do tamanho de um grão de mostarda, mandaríeis a es­
sa montanha atirar-se ao mar, e ela se atiraria" (2).

(1) Victor Hugo, As folhas d, outono.


(2) Evangelho.

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AS HEROINAS Dó DEVER 161

Esta afirmação de Cristo não vale por todos os raciocí­


nios dos filósófos?
Em que é que minha prece destrói o plano divino?
"Creio que o bom Deus, ,crearido-nos para fazermos a
sua vontade, ·previu que, precisaríamos disto, daqúífo�
durante.o: nol,so trânsito pela Terra ... , e qúe.Ele pró­
prio deu a nós, suas pobres c:reaturas, o ·instinto de lhe
pedirmos aquilo que .desejamos, inda que fosse só para
nos manter em adoraçã·0, em desejo e em -gratidão
perpetuamente diante d'Ele... Bem sei qu� :dizem:
"Mas toda vontade de Bens 'é eterriá e imutavel cómo
Ele próprio; portanto é inutil: pro�ú.rar 'rriodifüá�la pe�
la oração." Por.ém- eu; dé rriiin; periso ·que Ele previu
ele toda etétnidade que 'nós Lhe pediríainos pela 'Óra�
ção tal ou tal graça, e que Ele a concedeu tatnbein ele
antemão de toda eternidade à ótação qú'é Lhe fizésse­
mos, de maneira que essa pretensa modificação na ésúa­
vontade; não é mais, no fundo, ·que o eterno cumpri­
mento desta. -Digo-me às vezes: "O Senhor é- setne:.
lhante ao arquiteto duma cúpola de ferro como·teiiho
visto, que:. deixa jogo entre os ·materiais que lhe for­
mam. o :arcabouço, afim de que o fer�o se alongue ou se
encurte; livremente, conforme ás estações; sem que
isso . lhe rompa o organismo."
"Esse jogo do arquiteto lá de ·cima qúe deixa efei:­
to à .sua vontaçle imutável, deixando eft!ito à invocação
do homem, imagino ser a oração" ( 1):

(1) Lamartine, O Talhador de p,dras de Saint-Point.

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162 LÉON RIMBAULT

Eis aí, minhas Senhoras, a resposta do bom senso


à objeção de Júlio Simon.

Nós, católicos, cremos na eficácia universal da


oração. "Há na Oração dominical", dizia Lamartine,
"pouco ma�s ou menos tudo o que se póde pedir. E' co­
rno que uma boa moeda no bolso, contra a qual vos
dão por toda parte um pedaço de pão."
A oração do maometano esbarra numa inflexível
fatalidade.
A oração do judeu envolve-se das tristezas dum
Messias que não mais voltará.
A oração do protestante não crê nas relações de
penitencial refrigério, de amorosa reversibilidade, que
nos une a!ôls finados.
Só a oração do católico honra a Deus e infunde
confiança às almas.
Só ela, como a caridade, "crê tudo, espera tudo,
afronta tudo".
Quando ela não pode, à fôrça de súplicas e de lá­
grimas, de soluços e de gritos, afastar duma cabeça
querida o gládio desse "rei dos pavores" (1), Sua Ma­
jestade a Morte, atinge, às vezes, duma feita ao su­
blime, derramando por entre o luto fúnebre os celes­
tes raios de luz da imortalidade.
A filha do Sr. Dupont, na flor da idade, acabava
de exalar o último suspiro.

(1) Bossuet.

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AS HEROINAS DO DEVER 163

"Doutor", exclamou o heróico pai, minha filha


está ,vendo a Deus", e, nos transportes duma alegria
sobrehumana, entoou o Magnificat.
As vezes tambem, ela sustenta magnanimamente
o choque terrivel das tentações e das humilhações;
suporta, não sem queixas, mas sem desalento, as apa­
rentes despreocupações de Deus: "Clamo a Ti, e não
me escutas, posto-me de pé a teus pés, e não me olhas:
porque és para mim tão duro e tão cruel?"
Ela persevera até à morte na sua heróica fidelida­
de, certa de que. . . Deus sabe o peso da mó que mói
o coração, esse grão de trigo ! Seio tribulation�m tuam.
Deus tem suas horas para intervir. J esús-Cristo, todo
católico faz hipoteca sôbre a Misericórdia infinita, e o
Eterno nunca deixou protestar a firma sangrenta de
seu Filho.
Donde vem o não sermos às vezes atendidos ...
nas nossas preces? "Isso vem , responde Santo Agosti­
nho, duma defectibilidade no estado do peticionário,
no objeto da petição ou no modo do requerimento:
Mali, mala, petimus.
Cessai de ser inimigos de Deus : Como Deus ha­
veria de escutar com favor aqueles que querem conti­
ntiar a ofendê-lo? Não reclameis a Deus coisas noci­
vas: "Nós nos ignoramos a nós mesmos", exclama
Shakespeare, "e pedimos muitas vezes a nossa ruína.
A sabedoria recu�a-nos para nosso bem, e ganhamos
em não alcançar o objeto dos nossos pedidos" (1). Não

(1) Antônio e Cleopatra.

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f64'
seJ1is . #�� onitiÍho�ó�,. n�m dés�� nf,;dqs, 'nem ne�li­
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na m1la�rosamei;ite curada,. Hav�a dezoito apos. que ela
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1

saúde : dezoito anos de heroísmo na fé, no


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na a��r
paciênc'it'h'i';odi;ió1
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; Qri�m··dtff a'op1.a�d�üi"à!:/ ���-;hiYr,é�,f�.�htcíf�quem:
1
pi� tarã a explosão, ' dâ,' sua a'Ieg'd� deli�ánt� .e ó''i:i-'an's�·
bôrcla�e'ntb\:ia su'a g;�ti<lã'.c/ e�t'asíada/6úin�'p: -�ti��\. ✓,
ffl , tft .
·1 -�11_x11fü9.: ,;;.E
º d s . d d
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50 º ª t
por .�9.!-1-e1 a, J?U tner, comp�eendí á .profunda .f1�<:>s�fia 49,
texto· d'e São-''.sóa� 'hiu'ü'i N9n in' Qrâtion�: üCih ,iidê�r ·
1
1

JU') ,.!)')( J' ,I, :.• J ';J ,,:-•;(;/1'Jt•.l ,: ]f,:Jf


.•·: ,:;;/ •
Ct siilitêiri,
;: ;·; r :: !
J ;, �J �i; f! í �'.:) !' 1

"Mê�mo poiquê, r8i-ádo 'p réipr1h 'objdtchi� óri'ção',"


--
< 1 1

não achamos no seu exercício o mecanismo de loàas


1 Í
as energias, Qe todas as virtud'�s?' 'Sigámtà'i�/ Nhk·so

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AS HEROINAS DO DEVER 16,5
r. ;,. . ' ! V •.:,1,

Senhor Jesú�-Cristo, �s�e II\estre na arte de oração,


". ' .. :;, : ' : ) , . : , ..
h'�- hortô e,cictGet�ên1á.'ni,"' '::' ' ! };·r .; r i
" , - ' �::_:
f: .'
lj:', -?-, ff<i?.!P i mif��i;i,9}1,9, º1?,4� 31�1 ���a� },1;1,t3rrp., às
vezes ensopadas d�_m_is_uor d,e.�goni�.; a �r�c?l.a de ,at;n,<;>r
onqe o. Salvador, s.imultaneam_ente doµtor e mártir, dá
a,i, .w�iüç.5i�:-1�m�;�oPt·�f9,iAr,,
ir �,t;)�r'.i���u�·Íf?;P.f1Çãp,,
çi:�:R� ��jr�frcI�, r
c:lr r , hHWH?�1rl (�t.: �l!-, , �e r��. t ��. ,-P�rs.e­
vera�ç�.
• '., !,
J 1 ,
a� a,lmas con,t,:!mpla� com a�1:0iração .
, J l ;_ ••, � , j , , "· I I
I
I , , , • , , > 1

.. , ; , :Que, gr-�ndeia:: �� i P.tel_qqjo. !


,:-Cristo ..af�sta�se ;dos, �iisdpulos. Av.ança à. distân­
cia: de: .uma) .pe;c;lrada. t Soz}àho,, pisa. o ,lagar. da • jooti�a..
Suas vestes rubras de sangue estão iguais à túnica d.os
vindimadores que pisam: :as uvas ,na: ,euba;· e entre as
u;;i.çpe$, �e111Jitm: hdal'«m·AlF! ;le:vagtar.p-ar;a.'.:Combatet_ e so­
frer com ele":
·,Qtfeaugusita;altivez·!
'Ós apóstàlos dormem, inas ·o· Pontífice su'premo,
o itheàsó Velador, negótiâ no alta:r do sacrifício a s�l­
váção: dá' hunfanid:idé. Cotho''Det�s, ·;órâm á' ele Artjd�;
como Homem-Deus, Ele ora pelo�?h'ôfueif�r verbd etér�
rio/Eiéi :o igülil i tlê 1 �seu 1 Fa:i, :o objefo 'êlas srias 1 coinpla­
c'êticlâs'' infinita�; Vêrbô 'fütafüadô, tevestí'd6 da 1ibté
f

-�º
dO�'péddotês� � { à Ví'fihia' i'inofada' à •in:ê:Xorâ\re' 'j\.isti-­
çcl.; b'.rC6rdêirh '�lê ;Deus q'ú�:-·apâgà •bs.''peeadôsi
rtihnd'�.
Que huiriildade profunda!
' t-, · '· , ,
Ele cai .de joelhos, de rosto no chão T Por qüé.:essa .
1
• ,,- • 1 • r( -

1• 1 ;·
p'tostJdi'iç[� esttânha ob�Hríada f I�;:

Pórqtie ·.;aqilêlé qüe se iiJmilh� será exaltado". 1\

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166 LÉON RIMBAULT

prosternação propicía a luz. E' mistér "be�er a água


da torrente para levantar a cabeça".
O pecado é peso de vergonha. O mal arrasta para
baixo as almas e as aglutina à lama.
Porque, filha do pecado, a morte nos enterra. Os­
tente e orgulhoso fariseu as suas filacteras, e, de fron­
te erguida, desenrole, por entre o fasto dos mármores
sagrados, a insuportável comédia dos seus merecimen­
tos: Jesús-Cristo, amigo dos publicanos, dá, à sombra
<las oliveiras, a todos que querem ser justificados , o
sublime ensinamento em lágrimas, da miséria de joe­
lhos.
Que confiança invencível !
Abba, Pater; omnia tibi possibilia sunt: "Oh Pai,
podes tudo: afaste-se de mim este cálice"!
S. João, testemunha dessa magnânima piedade fi­
lial, dirá mais tarde aos primeiros cristãos: "Não re­
cebestes vós a alma dos escravos, mas o espírito dos
filhos de liberdade. E' neste espírito que clamamos:
Pai! Pai! Abba, Pater."
A nossa confiança, minhas Senhoras, glorifica a
Deus. A oração, feita em união com Cristo, empenha
a honra do "Pai que está nos Céus" Oh Pai, ds aquí a
minha quitação, apresento-vos a assinatura rubra de
vosso Filho, deixareis protestar-lhe o nome? Pelo san­
gue dele, tenho fôro sôbre a vossa misericórdia.
Que admiravel resignação!
"Meu Pai, se é possível, passe longe de mim este
cálice! mas, contudo, todavia, não como eu quero, se­
não como tu queres."

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AS HEROINAS DO DEVER 167

Pela primeira súplica, Jesús-Cristo conjura o Pai


a dispensar a sua humanidade santa de beber as amar­
guras da Paixão.
E' o grito da natureza ofegante diante da dor. Pe­
la segunda, submete suas re1rngnâncias instintivas ao
jugo da vontade racional, subordinada plrnamente à
vontade divina. Por esse modo, Ele se revela a nós co­
ma a perfeição viva de tudo o que traz um coração de
homem: ut ostenderet se veram naturam humanam
suscepisse cum omnibus affect"lbus naturalibus.
Que heróica perseverança l
"Clamo a ti", dissera o Profeta, "e não me escu­
tas; posto-me a teus pés, e não me olhas, tornaste-te
para mim um Deus de crueldade": "Sê fiel", responde
o Senhor, "persevera até à morte: esto fidélis usque
ad mortem. O Mestre realiza a profecia, com um co­
ração que desolação alguma alcança, que nenhuma re­
cusa desanima; Ele vem, torna a vir ainda, pela ter­
ceira vez. Recomeça a orar, nos mesmos termos de an­
gustiosa prolixidade, doutor e martir duma ciência em
que a morte tem tanto lugar quanto o amor: iterum . ..
tertio abiit. . . et oravit, eumdem sermonem dicens. Et
factus in agonia prolixius orabat.
"Ensinai-nos a orar", pediam os Apóstolos. Que
melhor Mestre que Nosso Senhor Jesús-Cristo? Que
mais divina escola do que o horto de Getsêmani?

***
Alí, esmagado, a escorrer de suor rubro, o Filho
do homem, prostrado, nas trevas, ofereceu aos seus

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168 LÉON RIMBAULT
e
três apóstolos um des�fio de generosidade que a. sono­
lência deles mal compreendeu. Non potuistis uná hora
vigilare mecum?
"Oh, como! não pudestes vigiar uma hora comi­
,
go? ... ,
Mas, não obstante o estranho marasmo •dos seus
bem-amados, Nosso Senhor Jesús-Cristo fundou, na­
quela, noite� uma tríplice oração que ·não findará mais
no mundo católico: a oração solitária, a oração notur­
na., a .oração cruenta. "Orai sempre'\ ·diz Nosso Se­
nhor. "Orái em tudo'.', acrescenta o apóstolo.: -"Quer
comais, quer bebais, fazei tudo pela. glória de Deus",
"Na vida como na morte, somos do Senhor.''
"Orai em toda parte", acrescentam os santos.
E, de fato, o divino pedagogo da oração otóu no
templo de Jerusalém e nas sinagogas, ein Nazaré e ·em
Betânia, entre o povo e na intimidade dos seus. Não 'e,
minhas Senhoras, a consagração da oração paroquial,
familiar; popular?
Certamente, a oração paroquial, aos acord·es gra·n­
diosos dos· órgãos, ào flarneja:r do santuário ·e às ·s-uri­
tuosâs··evoluções da liturgia dos ·dias de festa, corres­
pohde :às, nécessida:des religiosas' 'd"â �lma huril':inai
Nada de pungente com.ó o Dies irae dos fünerais;
nada de· solene e de vibrante cotno um Te Deum de en­
terramento de mgsão; nada de alegre e de entusiásti­
co como o Magnícat ele Natal ou de Páscoa.
E' a oração do arrastaip.ento pela eletricidade das
massas, da fraternidade dos corações na união dos es­
píritos. Por outto lac�, a oração familiar diante do

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AS HEROINAS DO DEVER 169

crucifixo dos avós dá à5 almas o sentimento duma fôr­


çà duldssimà, duní respeito múttio' na ordem 'do.s s�r­
viços, dunia a'.legria profunda que se éxàla, . puríssim·a,
do lar, como dum turíbulo.
A casa onde pai e mãe, filhos e domésticos se
ájoelham juntos, tem algo do ninho tio "home;; e do
oratório.
Deixa, mesmo ao longe, a cada um dos seus bem­
amantes, a lembrança de intimidades· felizes cujO eíi�
canto nada lhes póde velar i Vah I câlefadtis ·sfoti: vidi
focum.
Oh ventura! vi a lareira é aqueci-me à. sua chama.
Mas a óração paroquial, a oração fainilíat, a ·ora­
ção populr são mera extensão e multipficação 'da ora­
ção irídividttal. Esta, com ser 'às vezes solitária, notur­
tia e true·nta, não é senão mais clramâtica e n1ais meri­
tória. E' por excelência a oração reparadora.
Por ela, nós levantamos o desafío de amor l_ança­
do pelo 'Mestre em Getsêmani: "()h, como! não pudes-
tes velar uma hora comigo?"
Por ela também aplacamos a necessidade dereco-
lhimento profundo que se abre nalma.
Sim, em certos dias, a oração em famílja:• �•u' �m
paróquia já não me basta. Terilio sêcie de estar só, ria
sombra do altar, em coração á coração com o bem-
· '':
amado do tabernáculo.
"Mostre-me ele a s�a 'fate! é b�la; oúça-lh� '�u'a
voz! é doce." Daví falou· do leito sofitário onde, na
noite, as lágrimas correm gqtá a gota, como b orva­
lho, ou por torrentes, como ur,na çhuv'a 1e
-�emp�st<lde;

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170 LÉO.N. RIMBAULT

·Oh céus! preciso''desses orvalhos, preciso gemer e ru­


gir sozinho com o meu coração: Rugiebam a ge•mitu
cordis mei.
Faz-se-me mistér, como ao profeta por entre os
rumores de Babilônia, por cima das suas venalidades
e corrupções, a janelinha aberta diante, da qual reza­
rei, de joelhos, voltado para Jerusalém: fenestris aper­
tis contra Jerusalém orabat.
Deixai-me, pois, procurar, na capital, o tranquilo
oratório que guarda as relíquias dos santos que são
caros à minha piedade. Sem nada tirar às atrações en­
cantadoras da paróquia , comprazo-me nas capelas si­
lenciosas, onde, na sua glória póstuma, dorme, no meio
da atividade de seus filhos e filhas, o humil& S. Vi­
cente de Paula; onde se ostenta, por entre o esplendor
das velas e das flores, o manto ardosiado de S. Fran­
cisco de Assís; onde se vê ainda a Virgem negra aos
pés da qual S. Francisco de Sales foi liberto duma
tentação de desespero.
Em certas horas de tristeza, a alma, diante de
Deus, precisa de não ouvir já ruido algum. Tudo a
perturba; seja o passo pesado, sinistro, dos mcrcer:á­
rios fúnebres a carregarem um féretro; sejam os gol­
pes de bengala do guarda que perambula, automatica­
mente, pelas lages das naves seja o tinir das moedas
na caixa de esmolas; sejam os gr"i.tos agudos do recem­
nascido que batizam à entrada do templo; sej a qual­
quer outro ruido ou distração. Deixa-a, pois, a alma,
para emigrar para a capela à parte.
Alí, nem barreiras de castas, nem genuflexórios

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AS HEROINAS DO ,DEVER 171
aristocratas, nem lugares numerados, nem barulhos,
nem i�pedimentos. A capela é Getsêmani, o recinto
misterioso, o lagar de olivas, o poço sagrado de para­
disíacos ribeiros: effusiones tuae, Paradisus.
Alí se abriga a p rece solitária, como o pardal na
cumieira dos telhados, como a· corsa tímida por entre
as moitas dos bosques.
No horto das Oliveiras, Nosso Senhor Jesús-Cris­
to funda a Tebáida ou a vida orante . dos reclusos e
dos manjes.
Alí está ele "em capela". "Estar em capela", en­
tre os espanhóis, diz-se do condenado à morte a quem
põem em retiro.
Ora, não somos nós todos uns condenados à
morte
Por que, então, minhas Senhoras, niio vos reco­
lheis quase nunca? A solidão mete-vos medo, porque
vos rememoraria o vosso passado. Os sinos da Is sub­
mergida resoam ainda, do fundo das águas, ao ouvido
atento dos pescadores que se ajoelham na praia de
Douarnenez. A lenda bretã conta quanta tristeza põem
na alma aquelas vozes submarinas.
E vós, minhas Senhoras, não havereis de escutar
os dobres que sobem das profundezas bem diversa­
mente misteriosas de vossa alma, na hora em que a
solidão vos facifíca, enternecendo-vos?
Se não tiverdes os conventos para vos oferecerdes
os encantos desses desertos sagrados onde o ar é mais
puro, o céu mais aberto, Deus mais familiar, in desertis
aer superior est, coelum apertius et familiarior Deus,

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.172 LÉON RIMBAULT
(}-

pos�a a jgreja parc;,quial oferecer-vos doravante, na pe-


nuhibra dalgJmi'.1à:péí'�' 'absidi�f�u r'étí�ada'./hhde v�­
thi fampadéi. do Sahtíssihit>/'µm' -·· ,·1
él;siÍcrtão cle;Jjivel ao
' ' ·•, -r (
... , . - ' .-. ' ,'·•
misticisinô das almás medita.tivas 1
s •r,• ::-.· :] .· -.
1
�a oÍàçãó nÜ�t�id
Os "crimes da térra niio cessarri. ' de. chamar . as vin-
' •• ' ' ; : �' 1 :
ganças dtvmas sôbre as nossas cabeças,
:
• •
• f • J 1

Onde_.
estão os párP:-raios? Ôrid� estão l/,S .
iimas
contenü>lativas, encarregadas de oferece,;. a Detis as
- ' . - . ,• . \ ' : -;-, . : /

expiaçõés individuais e sociais? Estão no clau_�trC>, es-


' ,: ' • ;·. • . ! ·, f , . ;·•,, •

tão nos conventos, 11as co,munidades, nas congrega­


ções. Nã'o podereis substitt1ir, :duraÍ:Úe a noite, � ·coali­
ção 'santa:' do'� daustrbs, fié'is à prece liti'.t'rgica, e cujas
vigílias austeras alcançam para a Igreja''� p�i-�· �'pá.­
fria as suks mais' 'abu�<là�tes. 'bênçã'.�s. Ma;, me­ p�i�
nos, nas vossas passageiras insônias, uní-vos pelq
f
pe�'�
sarnento e pela fê, res��s_ �ilíciai 'bbJdita� de' t�ntos
r'éiigiosos · e refigiosas que mantêm, por' toda parte, a
g1,1arda de horira. da expiação. Prcicu'rai, tocia semana, '• ·,

cqrrespondeí: ao d,ese;o árdente dó Sá.grado Coraçaó de


• l

: • • • �
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Jesfrs,' consagra.rido, ria noite de qúintà' ,p�r'a sexta-feira.


1• , " ' • 1 } t , l ·•. �" \ , • '. ; 1 J
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sa'rita; uma hórà a 'ifr��it�s.ão .�? stia duen t�/1.goni,a no
' • 7 t • ' •• '. ' r " r • .
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J ' / '. ; : . ' i

,
horto das .Oliveiras. .. · · , , · ·· · ,
. ,·':;Nada ''m�i� ··��iJtaf dó 'ciu e' �s;e .'�:i�,r�'fci�' 'ci� hora
.
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na nossa oração.
A oração �rtie�t� ê erJsé'n'ci�Im'ente rederi tó';a_. 'Ora-
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AS HEROINAS DO DEVER 173

Escutai o magnânimo testemunho _çle dois márti­


res do Japão, os padres Guilherme Courtet e Miguel
Orazata, da ordem ilustre de S. Domingos. Enquanto
lhes enfiavam nas unhas compridas sovelas, eles excla­
mavam:
"Oh Jesús, como é doce sofrer por vós I"
Entrechocavam-nos um co11tra o outro, e eles pa­
"recia que vibravam como instrumentos de música:
"Oh! repetiam eles, que suave harmonia para o pa­
raisa!"
Um deles, à vista das abundantes gotas de sangue
que lhe manavam dos dedos, parecia arroubado em
êxtase, e dizia: "Jesús! Jesús! que belps cravos me
florescem nas mãos! Oh I magníficas rosas! como são
vermelhas! Tingí-as com meu sangue por vosso amor,
oh meu Salvador!"
Oh aqueles choques dolorosos e aquela inefável
música, aquelas feridas sangrentas e aquelas flores em­
balsamadas!
Conheceis, minhas Senhoras, símbolo mais em­
polgante da oração e do sacrifício?
Sofrer, sangrar, cantar: não é esse, em definitivo,
o ideal sublime, o papel herpico d'As que rezam?

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AS QUE TRÀBALHAM

Minhas Senhoras.
Era lá numa praia do Finisterra. Sob o ouro dum
alegre sol de Maio, o mar ondulava, em largas dobras
ele seda verde, murmurante, feiticeiro, como que esmo­
recido. Brincava com as comas espessas dos rochedos,
que, enormes, suas patas de veludo importunavam. E
dizer que é tão meigo, tão encantador o felino!
Mais além desenrolavam-se as imensas alcatifas
dos tojos e dos juncos, magía rósea e douradá sôbre a
qual pairava o céu vaporoso e lácteo da Bretanha.
Aquí e acolá, pedras druídicas acidentavam o ma­
tagal. A beira do caminho, uma velha cruz de granito,
toda pensa, emplumava-se de líquens.
Pertinho, por entre os centeios e os trigos, um al­
deão parecia escutar a canção misteriosa dos colmos
frementes, prometedores de pão.
Parei: conversámos. Entre nós, conversa-se assim,
entre duas cêrcas, na rampa dos atalhos floridos; con­
versa-se agricultura, pesca, religião.
Falou-me ele de semeaâuras e de segas. Respondí­
lhe com conferências e publicações.
"Estou vendo", disse ele, "que vosmecê trabalha
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176 LéON RIMBAULT

mais com a língua e com a pena do que eu com a en­


xa4_a. Nossa Senhora! cada um tem mesmo que ganhar
sua vida. Cada um tem sua tarefa ! ... " - Achei sober­
ba esta palavra na boca daquele simplista.
Sim, minhas Senhoras, o trabalho é uma tarefa.
Essa tarefa tem a sua grand�za, o seu ,merecim�nto, as
suas consolações; e tem, ne> nosso século, os i.eus peri­
gos e sofrimentos.

Já vístes a cotovia matinal riscar o céu com vôo.


intrépido e álacre.? Desde a aurora ela se lança como
uma :flecha ei:.n pleno vôo, eleva-se cantando; sen;i nun:­
ca perder de vista a sua ninhada :::.brigada, no sulco,
sobe, sobe mais, sumindo-,se nas n�vens. Não � vêm
mais,' porem ouvem-na sempre.' Simb::>lo encantador da
oração fiel, do dever solícito, do amor jubiloso.
E' o pensamento de S. Boaventura: assiduitate,
celeritate, alacritate.
,, I?,entro e"' pouco( �élebre comq ui:µa fleçha, a ,co­
tovia cairá de novo em terra.
Cu�priu a sua tarda. Tem, direit<;>. aq repou,so..
Ess� repousa ,nunca é muito longo. "Mesmo quando a
ave 'anda, di:z o poeta, a gente sente que ela tem ,asas!"
"A a�e � 'reita pa;a voar, e o homem para trabalhar."
Homo �ascitur ad laborem, et avis ad volatum.
A poesia do provérl:>iq bíplico encerra ,toda a gran�,
deza, ,q.o .nossq .destine) J;1umano,.
O trabalho é a primeira lei da nossa raça, a sua

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AS HEROIN AS DO DEVER 17Z
obrigação inelutável, ao mesmo tempo que a sua hon­
ra régia.
Transportai-vos, pela imaginação, para sob o céu
puro do paraíso terreal.
Mansão de inocência e de delícias, "onde tudo era
infante, onde nada era pequeno".
Adão nele reina, ornado de justiça e de fôrça, na­
tureza virginea envolta no manto esplêndido das gra­
ças de origem. Por que foi ele colocado no seio daque­
le campo encantador? O Gênese dí-lo formalmente:
"Deus, colocando-o no jardim, confiou-lhe a guar­
da e a cultura dele."

Ut custodiret ... ut operaretur.

Sem dúvida, ao sair das mãos creadoras, o ho­


mem, rei do universo, trabalhava com alegria. O seu
labor não lhe causava nem cuidados, nem fadigas.
Era o dízimo de atividade reservado espontanea­
mente pelo amor e jubilosamente oferecido pela gra­
tidão ao Mestre e Senhor de todas as coisas.
Pelo exercício quotidiano das suas faculdades, o
homem aperfeiçoava-se divinamente, e a sua domina­
ção efetiva sôbre o mundo estava em proporção dire­
ta com a sua submissão ativa ao Creador do mundo.
O trabalho é a condição gloriosa da família de
Adão. E' a lei absoluta do seu progresso, a razão de
ser das suas energias ativas.
Se fôsse de outra forma, teríeis o direito de per­
guntar a Deus porque a sua bondade vos dotou tão • ! •

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178 LÉON RIMBAULT

camente de instrumentos inúteis. O órgão supõe a fun­


ção.
Por que a circulação do sangue nas vossas veias?
Por que a maciez e o vigor das vossas musculaturas?
Por que a adaptação maravilhosá das vossas mãos a
tantos usos diferentes?
"Nem o homem nem os próprios materiais foram
creados com o mero intuito de subsistirem um instan­
te após terem vivido. O firmamento, a terra, a vegeta­
ção, o ar e o fogo não saíram das mãos onipotentes pa­
ra serem, no tempo e no espaço, a aparição efêmera
duma substância inútil, à maneira da bolha de sabão
que o sôpro duma criança cnfunou" (1).
Em torno de vós tudo trabalha. Os astros, sem ja­
mais se desviarem das suas rotas de fogo, executam
o seu curso magnífico.
O mar abaixa e levanta alternativamente a formi­
dável amplitude das suas marés. A seda e as pérolas,
cujo brilho realça os encantos da beleza feminina, são
elaboradas pelo bicho da amoreira ou pel'a humilde
bivalve dos rochedos do oceano.
O pássaro forma o seu ninho com a arte dum há­
bil arquitecto, a abelha é industriosa, oh! e quanto!
na confecção do seu mel. Em parte alguma encontra­
reis a ociosidade, na creação.
Como então vos julgareis dispensadas d.e contri­
buir com a vossa parte para a obra universal?

(1) A vida cristã, pela princeza Úlrolina de Sayn Wittgens�


Jein.

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AS HEROINAS DO DEVER 179

Todas as creaturas vos clamam, não que as 1m1-


teis ( seria uma decadência!), mas que lhes presidais
às evoluções, que dirijais regiamente o coro das suas
fecundas operações : é esse o vosso ministério glorioso.
As suas vozes não vos bastam? Eis aquí o manda­
mento autêntico, imprescritível, de Deus: Comerás o
teu pão com o suor do teu rosto, até tornares ao pó.
Eis bem aí a tarefa ingrata e dura, difícil e fecun­
da, santa e meritória, imposta de então por diante aos
filhos de Adão culpado. A revolta do homem Deus
opõe o peso dum jugo de que ninguém poderá jamais
exonerar-se.
O trabalho é de então por diante irmão da dor e
da morte! A terra germinará cardos e espinhos, já
que agora deve beber as nossas lágrimas, antes de nos
servir de sepultura.
A condenação não poupa nenhum dos membros
da família humana.
Quem recusa trabalhar torna-se indigno de comer.
Com que fronte ousaria sentar-se à mesa alimentadora,
pejada dos frutos do labore de seus irmãos, o pérfido
refractário à tarefa comum?
E' cometer um roubo para com a sociedade, é re­
cusar obediência a Deus, é instalar o escândalo no lar
doméstico; é carregar-se dum tesouro de cólera, duma
dívida de expiação, que a justiça eterna não deixará
cair em perempção. Recusar trabalhar é repudiar a
glória do esfôrço realizado e o ,goso da propriedade
conquistada com o suor do rosto. Daví não cantou

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180 LÉON RIMBAULT

porventura:_ Comereis os frutos dos vossos trabalhos;


sereis felizes e cumulados de bens?
Ozanam gostava ele dizer: "Ganho o meu pão,
escrevo, porque, não me tendo Deus dado forças para
guiar uma charrua, cumpre não obstante que eu obe­
deça à lei do trabalho e ganhe o meu dia." Mais tarde,
quando a moléstia o impedia de trabalhar, ele excla­
mava com dor: "Miseravel que sóu, estou comendo um
pão que não ganhei!"
Sabeis como Lacordaire, até mesmo por entre os
túmulos, se excitava à atividade do trabalho cristão.
"Passeava eu, escrevia ele em 1848, pelos arrabal­
des de Roma, próximo às catacumbas ele S. Lourenço;
dirigí-me para um ,cemitério novo que cavaram naque­
le velho cemitério, e fiquei impressionado, à porta,
com esta inscrição : Chora pelo morto, porque ele des­
cansou! Entrei meditando-a, porquanto, que queria ela
dizer?
Não me foi difícil compreendê-la.
"Chora pelo morto, porque ele descansou de fazer
o bem, porque suas mãos não podem mais dar, nem
seus pés ir ao encontro. da desdita; porque as suas en­
tranhas não são mais comovidas pela queixa, e seu es­
pírito, evolado para longe das disputas dos homens, já
lhes não opõe o acto duma fé humilde e paciente. Cho­
ra pelo morto, porque ele descansou, ao passo que
aquele que o alimentava na Terra com a doutrina e
cem o pão da vida, seu Senhor e seu Mestre, ainda es­
tá sujeito às contradições.
"Chora pelo morto, porque o tempo da virtude

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AS HEROINAS DO DEVER 181
findou para ele, porque ele nada mais acrescentará à
sua corôa.
"Chora pelo morto, porque ele não póde mais
morrer por Deus."
Advertência sublime, estais ouvindo, minhas Se­
nhoras? O trabalho imola-nos, cada dia, cada hora. Ca­
da gota do nosso suor corajoso aumenta a libação sa­
grada do altar: Jam delibor ... quotidie morior ... tem­
pus resolutionis meae instat. E deveis ser felizes de
viver sacrificando-vos, felizes de vos consumirdes a
fogo lento, nobres vítimas dum amor todo em obras,
felizes de assegurar, pela fecunda atividade ... do pre­
sente, a gloria imortal do futuro.
A vida humana é o crisol donde deve sair a vida
futura.
"Enquanto tivermos tempo, diz S. Paulo , opere­
n10s."
Sim, sim, operai, agí, trabalhai, e não vos conde­
neis a um covarde repouso, a uma deshonrosa ociosi­
dade.
O ignominioso "far niente" do "lazzarone" napo­
litano ostentado, no luxo dos seus andrajos, ao mais
belo sol do mundo, esbofrteia a dignidade dos discípu­
los d'Aquele que dizia: "O Pai e eu operamos sem ces­
sar". Operai, porem conforme tem o cuidado de acres­
centar o apóstolo, operai o bem. O bem é a vida orde­
nada e séria.
Nada de oposto a esse sério da vida como a indo­
lência e a desocupação duma certa classe de ricos,
sempre a mesma, em todas as sociedades. Os moralis-

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182 LÉON RIMBAULT

tas de todos os séculos de Isaías a La Bruyere , de


Juvenal a Rochefow:auld, têem estigmatizado a ma­
draçaria dessa turba lasciva: factio lascivientium.
Com pincel vingador, fizeram-nos eles o quadro
lancinante e cômico dessas demências e dessas inutili­
dades do mundo, e mesmo elo "grande mundo".
Sabeis de mais ferina flagelação do que esta após­
trofe do Espírito-Santo a respeito de todos os ociosos:
"Depressa para a escola da formiga, mandrião!"?
As formigas sindicalizam-se, industriosas, em ,coo­
perativas de produção e de consumo. Certo naturalis­
ta afirma tê-las visto, de volta da sua viagem de nú­
pcias, arrancarem resolutamente as asas, e, assim des­
pojadas, dizendo adeus ao prazer, consagrarem-se aos
múltiplos empregos do formigueiro. Gounod compôs
mesmo, sôbre esse tema encantador, uma das suas de­
liciosas melodias: "Caí, caí, minhas asas!" Seja como
for, as formiga5 febrilizam-se no seu incessante labor.
Ao contrário das cigarras, loucas de sol e que cantam
descuidosas, as humildes moleiras ceifam e ajuntam
no estio a provisão dos dias de inverno.
Córa de pejo, oh preguiçoso, e na escola delas
aprende a viver. Vade ad formicam, piger 1
O preguiçoso! a que compará-lo? E' um insen­
sato. Não sabe prever o futuro. De braços cruzados, à
soleira da sua casa, desperdiça as horas de luz e de ati­
vidade. Amanhã a miséria e a fome virão cair sôbre
êle.
Os cardos dum parasitismo deshonroso entresa­
cham-se-lhe em torno do nome e sob os passos. Nele,

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AS HEROINAS DO DEVER 183
inteligênca, liberdade, personalidade, tudo se atrofia.
Demência precoce ou demência senil. Releguem-no pa­
ra longe dos vivos, dos sãos de mente e de corpo. Um
louco é sempre perigoso. Metam-lhe a camisa de fôr­
ça, afivelem-no, debaixo de chave: Stultissimus est.
E' um ente repugnante. Tocar-lhe a mão consti­
tue um perigo. Tem esse transeunte sarna, ou lepra,
ou preguiça?
Que importa! Fugí-lhe depressa ao contato. Qui
tetígerit eum, excutiet manum.
"Vinagre nos dentes, fumaça nos olhos!"
E' o bastante para dizer o quanto ele é desagra­
davel? Sicut acetum dentibus, sicut fumus oculis.
Inútil, aborrecido, nocivo, o preguiçoso merece o
desprezo público, o pelourinho infame. Fora rnistér
apedrejá-lo.
Com pedras? não, com lama! Que digo? lama ...
A lama ainda é nobre para ele!. . . De stercore
boum lapidábitur piger. "A ociosidade é a mãe de to­
dos os vícios." Todos os crimes lhe são imputáveis.
Daí, minhas Senhoras, a indignação vingadora do
profeta contra os mandriões.
Quantos males a preguiça tem espalhado na
Terra!
As cidades da Decápole eram florescentes mais
que todas as cidades do tempo de Abraão. Mas, um
dia, o céu entreabriu-se, o raio fulgurou, um dilúvio de
betume em brasa devorou aqueles povos felizes.
No lugar daqueles monumentos de mármore, da­
queles metais preciosos, daquela ostentação inaudita

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184 LÉON RIMBAlJLT

âo luxo e d a prosperidade, não houve mais senão um


montão de ruínas fumegantes que o Patriarca, de lon­
ge, contemplava consternado.
Qual foi a causa dessa pavorosa destruição?
Ezequiel no-lo informa: otium. A ociosidade gan­
grenara aquelas cidades famosas. Nada, nos indivíduos
como nos povos. prevalece contra o anátema bíblico:
"Tirai da superfície da Terra os lascivos que a cons­
purcam!" factio lasciventium auferetur a terra.
Deus descobre, até no mais longínquo das ida­
des, as c�sequências tremendas da ociosidade, e, re­
conduzindo à sua fonte primária todos esses pecados,
todos esses crimes, odeia-lhes o princípio gerador no
coração do preguiçoso. Eis aí o motivo da sua indigna­
ção justiceira.
Os ociosos estão em abominação diante do Se­
nhor. Pesam à sociedade, são pesados a si próprios.
O começo da sua punição é se ·consumirem no
tédio.
Há que ler em Mons. Mermillod o quadro "da
preguiça de mãos brancas", no P. Van Tricht o das
"mães-substitutas", das "mães-amas", no abade Bolo
o retrato "das decadentes do cristianismo", para sentir
até que ponto as almas da nossa geração estão mina­
d,is pelo mal-estar do "far niente".
Lêde, porem, esta análise sutil do aborrecimento;
é uma obra-prima do começo deste século: "Há defei­
tos que estão muito difundidos em certas épocas. Na
nossa, o aborrecimento faz especialmente parte dos
nossos costumes.

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AS HEROINAS DO DEVER 185

"Não é que sempre não tenham existido inteligên­


icias desocupadas, imaginações desregradas, naturezas
indolentes; não é que não tenha havido em todos os
tempos almas presas da preguiça.
"Porém, se a preguiça não nasceu ontem, toma
hoje em dia, de bom grado, o poético disfarce dum
aborrecimento em m'oda, - fugindo a todo encargo e
procurando todo goso, - revestindo-se de belas "toi­
lettes", - passeando de visitas em visitas, de saraus
em saraus, de festas em festas, de teatros em teatros,
de romances em romances. E' sob esta fórma que a
preguiça exerce mais devastações.
"Por uma inversão caprichosa em aparên�ia, mas
que encerra em si uma lição profunda, não são os po­
bres e os humildes que são atingidos por esse desgosto
geral da vida, por esse tedium vitae de que o aborreci­
mento provém e a que conduz, girando assim num cír­
culo vicioso.
"Os desherdados deste mundo não conhecem essa
suprema ingratidão para com Deus, essa rebelião tão
frequentemente gerada pela saciedade, raramente pelo
penar, jamais pelo trabalho.
"Os pobres e ·os humildes aplicam-se com afinco
a melhorar a sua posição. Entre eles, as mulheres são
ativas, previdentes, econômicas, inventivas. Fazem ale­
gremente o que têm a fazer; e, depois de acabar, re­
começam para outrem, engenhando-se em duplicar os
recursos do agradável, afim de embelezarem os repou­
sos e os curtos lazeres da família.
No seu lar modesto, todos os infortúnios podem,

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186 LÉON RIMBAULT

ai! entrar: porem o aborrecimento compreende que


não acharia uma cadeira para se sentar, e ainda menos
um sofá para se estender, e então não bate à porta.
"O aborrecimento tem alhures o seu domícílio e a
sua terra de predileção.
"Floresce noutra parte, entre os ricos e no seio
das classes elevadas. Pode-se ·compará-lo a um desses
vegetais maléficos, próprios das regiões tropicais, ves­
tidos de folhagem exuberante, de brilhante floração,
- e a exalarem uma atmosfera de morte.
"No mundo, e sobretudo no "grande mundo",
Madame não põe a mão a nada. Guarda-se de ocupar­
se pessoalmente do que quer que seja, mesmo daquilo
que poderia aumentar-lhe o bem estar já existente;
não se dá ao trabalho de juntar-lhe essa harmonia do
bom gosto e duma certa ordem moral, que as pessoas
assalariadas não podem difundir numa casa, de vez
que só o proprietário é capaz de ageitar a sua proprie­
dade, como se ageita o casaco à própria estatura. Ma­
dame não tem tão pouco a fadiga dos filhos, que as
conveniências obrigam a ·cercar dum batalhão de amas
de leite, de amas sêcas, de governantes, a se interpo­
rem entre eles e a mãe, a ponto de impedir esta de
perceber que aquelas. crianças são dela.
"Madame não condescende em se interessar pelos
negócios é só o marido que lhes suporta o peso.
"Madame, afora certas leituras faceis, certas opi­
niões de partido, certas preocupações fortuitas, não
tem mais que uma medíocre idéia de tudo o que toca
à ciência, à literatura, às artes.

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AS HEROINAS DO DEVER 187

"Madame não crê para si na vocação das benefi­


cências absorventes, achando haver conquistado raros
méritos: - participando, das obras pias, fundadas no
prazer; - assistindo a um baile, a uma representação,
a um festival, dados em benefício dos indigentes; -
tomando bilhetes de loteria; - deixando arrancar al­
guns níqueis ou algumas pratas por uma brilhante pe­
dinte a quem se não póde recusar.
"Que resta, pois, a Madame fazer? Levantar-se;
sentir-se viver; arrastar em automovel a sua displi­
cência, receber e ser recebida.
"Depois, - como isso nem sempre baste, - se­
gt!ir às estações balneárias; percorrer a Europa ; e,
quando estiver saturada das capitais, explorar os ma­
res, investigar as fontes ocultas dos rios; após o que,
descobrindo em si de repente músculos de aço, escalar
o Monte Branco e outros cimos inacessíveis, - tudo
para se desentediar !
"Havendo-se-lhe tornado horrorosamente banais a
Suíça e a Itália, uma condessa da alta sociedade baixa­
va as ·cortinas ela sua viatura ao perlongar os Alpes,
e fechava os olhos nas ruas de Roma, "para não com­
partilhar os êxtases dos beócios", dizia ela.
"Podendo cada um visitar Valclusa e o Alhambra,
Atenas e Esparta, o Bósforo e as Pirâmides, Jerusa­
lém e o Mar Morto, há quem queira ir a Nínive, des­
cer o Eufrates, transpor o Equador e dobrar o Cabo
Norte. Haverá tambem que fazer a volta do globo. Pa­
recerá modesto demais o haver-se limitado a atraves­
sar o Saara até Tombouctou, pisar a terra dos Pata-

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188 LÉON RIMBAULT

gões e contemplar os Esquimós nas suas choças estra­


nhas.
"Assim se renuncia, por vãs e pueris fantasias, a
todo o atrativo, a todas as alegrias honestas dum lar
delicioso, dum "ho1:!e" magnífico, duma vida de fa­
mília numerosa e honrada, que milhões de homens
quereriam adquirir à ·custa de incessantes trabalhos, e
cuja perda cada qual deploraria com tanta amargura
se uma volta da roda da fortuna o viesse privar dela
subitamente. - Oh aberração humana!"
E' doloroso ver a ociosidade feminina tão fina­
mente denunciada por uma mulher.
A princesa Carolina de Sayn Wittgenstein tem o
gênio da dissecção psicológica.
Citei-a longamente. Mas não vos haveis de quei­
xar.
Seguí estes sábios conselhos, minhas Senhoras.
Ficai em vossa casa. Creai para vós um trabalho,
e crêe o trabalho alguma ·coisa em vós !
Tendes sentido o mal estar enervante do aborre­
cimento? Combatei-o valentemente.
E para isso, expulsando de vós todos os diabos
azuis da imaginação, a preguiça sob todas as fórmas,
a indolência sob todos os aspectos, ponde-vos corajo­
samente na escola de Jesús Operário: Ide a Nazaré.
"Jamais consideração alguma humana, raciocínio
algum, por mais fundado que seja por outras causas,
prevalecerá contra este fato divino:
"Nosso Senhor Jesús-Cristo, vindo operar a re­
denção do mundo, ganhou o seu pão com o suor da sua

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AS HEROINAS DO DEVER 189
fr0nte e trabalhou com suas mãos, num mistér rude,
até a idade de trinta anos!
"Ele quis associar ao seu labor sua santa Mãe,
seu Pai nutrício.
"O Pontífice eterno, a Virgem-Sacerdote, o Con­
fidente da sua vida interior durante longos anos em­
pregaram o tempo e as fôrças em manejar as ferra­
mentas mais humildes" ( 1).
Quem, pois, ousará dizer que, na hora presente,
ante o "Filho do Carpinteiro", temos o dever, ou se­
quer o direito, de repelir o serrote e o cepilho, porque
as nossas mãos não receberam a unção santa que faz
os sacerdotes de "Jesús-Cristo"?
E vós, minhas Senhoras, quando Jesús "mantem
uma loja para sustentar sua mãe viuva" (2), quando
a Rainha dos anjos, fiando o linho, tecendo a lã, se
consagra alegremente aos cuidados de casa e, "procla­
mada bem-aventurada por todas as gerações", opõe
modestamente a esse fastígio de glória a sua condição
de Escrava do Senhor, ousaríeis apresentar aos olhares
o escândalo da inutilidade mundana?
Os operários têm a honra de poder contar a Cris­
to na sua corporação (3). Entre esses humildes e esses
pequenos cuja rude e ativa existência é fadiga inces­
sante e produção, teríeis o cinismo de ostentar a este­
rilidade duma vida toda de gasto e de prazeres?

(1) Os ofícios possíveis do padre áe amanhã, por Luiz Ballu.


(2) Bossuet.
(3) Idem.

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190 LÉON RIMBAULT

Tendes o religioso dever de dar aos carregadores


do trabalho forçado o heróico e santo exemplo do la­
bor voluntário.
Senão, mulheres das classes dirigentes, a vossa
vida ociosa, de elegantes afetações, contrastaria tan­
to com o ideal ev;angélico quanto com a atividade la­
boriosa imposta ao p©vo pelas duras neeessidades da
luta p�la conquista do pão.
A opulência impõe-vos exigências onerosas; mas
não vos isenta da lei da nossa raça: Comerás o teu pão
com o suor do teu rosto.
"Indignam-se as pessoas com a inveja elas classes
pobres, mas haveria que se indignar com a despreo­
cupação das classes ricas. Que de admirar em que uns
queiram arrasar tudo, quando os outros se recusam a
edificar o que quer que seja? Que de admirar em que
uns não respeitem nada daquilo que é antigo, quando
os outros não compreendem nada elo que é novo?"
A opulência não vos dá o direito de serdes PA­
RASITAS. Os ricos, no plano providencial, são uns
PRODUTORES.
Por isto Deus, para assegurar-nos a felicidade
prometida a um trabalho honesto, creou a proprieda-·
de privada. Garante ele assim a cada um a posse legí­
tima dos bens que produziu.
Recusa mesmo o direito de comer, não a todos os
que não fazem nada ( e afetivamente há na sociedade
crianças, velhos, enfermos, doentes), mas a todos os

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AS HEROINAS DO DEVER 191
que "não querem fazer nada","Si quis non vult ope­
rari, nec manducet" (1).
Em çonsequência, o apóstolo trata de ladrões os
preguiçosos, porque estes vivem necessariamente às
custas de outrem.
Um economista bem conhecido, o Padre Ludovi­
co, cujos pés descalços de capuchinho seguiam altiva­
mente o carro dourado da fortuna, formulou nitida­
mente as conclusões da Igreja contra a preguiça (2).
"Para evitar esse vício, para trabalhar, no sentido
cristão do termo, não basta produzir utilidades per­
mutáveis a preço de dinheiro, há que fazer alguma
coisa de honesto, fazê-lo honestamente e fazê-lo por
um motivo moral.
Por conseguinte, os que se enriquecem lisonjean­
do as paixões, corrompendo os �spíritos e os corações,
como os fazi;dores de romances imorais, como certos
atores e certas atrizes, por mais fadiga que se dêm não
merecem o nome de trabalhadores. Não o merecem
mesmo n(') sentiâo dos economistas; porque, em vez
de produzirem utilidades, as destroem, já que enervam
a energia moral dos seus leitores e ouvintes. Asseme­
lham-se aos assassinos e aos incendiários, em quem
ninguém quererá reconhecer a qualidade de trabalha­
dores.
Semelhantemente, os que querem enriquecer ime­
diatamente, sem preocupação alguma da justiça e da

(1) S. Paulo, II, Tess., III, 10.


_(2) Bernardino de Feltre e sua obra, tomo II, livro II, cap. II,

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192 LÉON RIMBAULT

caridade, unicamente para passar o resto da vida no


prazer, ainda quando tivessem uma profissão honesta
não escapam ao vício da preguiça. No mais forte ela
sua atividade laboriosa são preguiçosos, visto que essa
atividade nenhuma virtude lhes dá. Longe disso, endu­
rece-os no seu egoismo; embota-lhes o senso da hones­
tidade •cristã, e indú-los a se enriquecerem por todos
os meios, consoante a palavra da Escritura: Qui :Ees­
tinat ditari, non erit innocens.
"Aquele que se apressa a chegar à fortuna não fi­
cará inocente" (1). Quando tais homens conseguem
mover tesouros, as mais das vezes é açambarcá-los em
detrimento do próximo, e o seu papel é tão nefasto
quanto o dos ladrões.
Para um cristão, o termo necessano do trabalho
é, portanto, o desenvolvimento do seu valor moral.
O trabalho moral está, pois, na primeira linha, até
mesmo na ordem econômica. Ele é a melhor fonte e
fica sendo o aroma do trabalho material. Seremos jul­
gados unicamente sôbre o trabalho moral. Jesús-Cris­
to não nos perguntará: "Ganhastes muito dinheiro?"
Perguntar-nos-á se consagramos nosso tempo, nossas
fôrças, nossos recursos, nosso trabalho em definitivo,
a nos tornarmos melhores, a nos tornarmos úteis.
Eis aí o verdadeiro trabalho. Quem o contestará?
S. Tomaz lançou sôbre toda essa doutrina a luz da sua
definição.

( 1) Prov., XXVIII, 2.

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AS HEROINAS DO DEVER 193

"A preguiça, diz ele, é o desgosto do bem contido


na virtude: acedia de bono virtutis".
Como vêdés, minhas Senhoras, os ricos não têm
o direito de ser parasitas. São produtores.
O Capital é um cooperador para o Trabalho. "Ai,
pois, dos ricos que se fazem os opressores de seus ir­
mãos do povo , ex plebecula vili Cristi, da pobre plebe
de -fesús-Cristo (1) !
O sentimento da justiça e o culto da caridade
preservar-nos-ão, assim, º desejo, minhas Senhoras,
desses monstruosos excessos do egoismo, tão energi­
camente denunciados por Leão XIII na sua Encíclica:
"Da condição dos operários na sociedade cristã".
O grande Papa, nessa Encíclica, reivindica alta­
mente os direitos do trabalho, preconiza as suas rela­
ções de justiça e de benevolência com o capital. Cha­
ma para ele, de toda sna alma, a paz e o amor. Daí,
esta palavra soberba: "A Encíclica ... é qualquer coi­
sa de mais e de melhor do que um programa econô­
mico, é um ós·culo de Cristo aos seus pobres."
"O rico e o patrão, exclama o Papa, lembrem-se
de que explorar a pobreza e a miséria, e especular sô-
1::re a indigência são atentados igualmente reprovados
pelas leis divinas e humanas; de que é crime a clam:ir
vingança ao Céu o frustrar alguem elo verdadeiro pre­
ço do seu labor.
"Façam patrão e operário tantas e tais convenções
quantas lhes aprouver, combinem a seu talante a ci-

( 1) Tertuliano.

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194 LÉON RIMBAULT

fra do salário; acima deles e da sua vontade livre há


uma lei de justiça natural mais elevada e mais antiga,
e esta protesta. Se, forçado pela necessidade, o operá­
rio aceita ·condições tão duras, sofre violência e a justi­
ça clama, porque é violada."
Visto isto, têm então o sentimento do seu dever
social essas mulheres do munr.io assás desnaturadas
para imporem às suas costureiras, às suas modistas,
acréscimos de trabalho noturno, dispêndios de fôrças
físicas e morais, totalmente desproporcionados co_m o
irrisório salário que lhes dão?
Têm o sentimento do seu dever social e:;isas donas
de casa, cujo capricho imperioso, cujo egoismo trans­
bordante provocam o perpétuo éxodo das criadas?
Nunca encontrastes, minhas Senhoras, dessas cria­
turas puritanas de índole acrimoniosa, ridiculamente
vaidosas, susceptíveis em excesso, incapazes de fazer
coisa alguma com os seus dedos, e que, consoante Fé­
nelon, tratam os criados como cavalos, a rédea curta
e bridão cerrado? Elas jamais se interessam pela sorte
dessa pobre gente, nem pela educação dos seus filhos,
nem pela sua melhoria moral e material.
Não cuidam da iµstrução religiosa deles, e, pelas
sua,S·: exigências, tornam-lhes onerosa, até à impossibi­
liqa<le, a observância do dever dominical.
! Tende afeto aos vossos servos, minhas Senhoras,
é a palavra de S. Paulo, sem usardes de ameaças, sa­
bendo que tendes juntas um Senhor no c�u que não
faz accepção de pessoas.
Têm acaso o sentimento do seu dever social essas

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AS HEROINAS DO DEVER 195
pretensas grandes senhoras, cujo luxo custoso lhes
tem secado o coração, cuja despreocupação manda res­
ponder por um lacáio à pobre operária ansiosa para re­
ceber o preço do seu trabalho: "Madame não se lem­
bra de lhe haver pedido a conta"?
Pagai vossas dívidas, minhas Senhoras. Não
acueis aos apuros, por vossa culposa negligência, os
vossos fornecedores, nem à fome as 'vossas 'Costurei­
ras. Deus conta as gotas d_ ''Wr e as lágrimas dos
fracos. Delas vos pedirá :Êle contas severas.
Escutai a Bíblia.
Não recusareis Q salário do precisado e de vosso
pobre irmão, mas no mesmo dia, antes que o sol se po­
nha, entregar-lhe-eis o preço do seu trabalho, porque
ele é pobre e precisa dele para sustentar sua vida. To­
mai cuidado de que ele não clame a Deus contra vós
(1).
Não tendes o direito, minhas Senhoras, no meio
do vosso quietismo burguês, de ignorar a intolerável
situação feita à operária das cidades pela Nêmesis co­
mercial e industrial do nosso tempo.
Várias, entre vós, se reunem em retumbantes e
generosos congressos para a reivindicação das liber­
dades femininas. Aplaudo sinceramente a coalição dos
seus esforços, por que elas consagram, no seu progra­
ma de estudo e de discussão, a mais larga parte ao pro­
blema angustioso da vida laboriosa da operária no seio
da nossa sociedade.

(i) Deut., 24, 14 e 15.

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196 LÉON RIMEAULT

A ver as condições detestávei3 do trabalho impos­


tas à companheira do homem, na fábrica, na oficina,
em certas administrações, a gente pensa naqueles felás
do Alto Nilo que atrelam à mesma charrua o burro e
a mulher, nesta asserção do velho Hesíodo, de acôrdo
com Aristóteles sôbre esse ponto: "A primeira famí­
lia foi composta da mulher e do boi feitos para a la­
voura."
Protegem-se os an im:iis na nossa época, para lhes
1
poupar os maus tratos.
Protege-se tambem a mulher, em certa medida;
mas, desde o momento que ela é obrigada a esperar
do seu labor o pão de cada dia, como a sua sorte ainda
é lamentável! (1)
Interessai-vos, pois, minhas Senhoras, pela vida
dolorosa, e às vezes tão heroicamente paciente, da
mulher do povo.
Favorecei, com toda a vossa influência, as obras
que reclamam a diminuição das suas horas de trabalho
na oficina, o aumento do seu salário, a liberdade e o
repouso do seu domingo, a sua volta benéfica à vida
de família.
Ponde-vos em relação pessoal com a operária.
A operária, que sabe ela de vós?
Vê-vos passar nas vossas brilhantes limousines, e
sente-se enlameada.
Vê-vos através das exterioridades brilhantes da
vossa mundanidade: vossos vestidos, vossas pérolas,

(1) Marcelo Lecoq.

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AS HEROINAS DO DEVER 197

vosso luxo ... Não vos conhece, ou, o que mais indi­
toso é ainda, vos conhece mal. Julga-vos arrogantes
e desdenhosas, soberbas e sem misericórdia, duras e
stm entranhas, alimentando-vos cum os suores do ope­
rário, pondo-lhe em leilão os braços e as filhas, algozes
e tiranas de escravas (1).
Aproximai-vos, pois, da operária, da mulher p o­
bre. Supri entre ela e vós os vossos criados, as vossas
governantes, as vossas damas de companhia.
Não mais intermediários! Informai-vos da penú­
ria dela, visitai-a, ajudai-a, respeitai-a, amai-a, salvai-a.
E' vossa irmã, é filha do vosso Deus.
A questão operária é uma questão social. A ques­
tão social não tem solução possível e duradoura se­
não pelo Evangelho. O Evangelho é o ósculo divino
dado na Terra pela justiça à caridade. Ah! minhas
Senhoras, muitos discorrem e escrevem em favor da
oper.ária : e�tá h.em ; devotar-se, sacrificar-se por elas,
é melhor. Nunca vos esqueçais, pois, desta palavra de
Júlio Simon :
"O mal de que sofremos é des:es que se não po­
dem sanar senão pondo nisto todo o coração."

(1) O Operário, por Van Tricht.

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AS QUE LUTAM

Minhas Senhoras.
Convem-vos plenamente, assim me parece, este
elogio deferido pelos nossos santos livros à mãe herói­
ca <los Macabeus. Fêminae cogitationi masculinum ani­
mum inserens. "Ela inseria na sua mentalidade de mu­
lher a máscula energia dum coração de homem" (1).
Em ·começando este segundo congresso, sob os
auspícios <la virgem francesa tão digna de envolver,
na luz cio seu nome, a fe(leração dos vossos religiosos
e patrióticos esforços, não podeis, com efeito, dar-vos
o testemunho de que Deus abençoou a legitimidade do
vosso empreendimento, a pureza das vossas intenções,
a virilidade dos vossos atos?
Não faz muito, o conjunto das vossas linhas
femininas não deixava de inquietar certos psicólogos
sérios, mais atentos talvez ao movimento das idéias
filosóficas do que à evolução dos fatos sociais.
Aparecíeis então a muitos como a concurrência
temível do monopólio masculino, no domínio econô-

( 1) Discurso de abertura do 2.º Cortgresso Joana d' Are, na.


capela do Instituto Católico.
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200 LÉON RIMBAULT

mico, social, político mesmo. Essa coalição pacífica,


porem 9e altivo e firme porte, de tantas mulheres que
sabem o que querem, que fazem o que dizem, resol­
vidas a reivindicar para o seu sexo os cargos e privi­
légios de direito comum, sem nada sacrificar aliás da
sua tarefa familiar ou caritativa, assustava - oh, e
quanto! - certos espíritos acostumados a só ver a
mulher no seu papel, secular e glorioso, de anjo custó­
dio do lar ou de anjo consolador da miséria. Alguns
- os pessimistas - ernpenharnm-se em desanimar­
vos.
Outros - e foram os mais numerosos, os pru­
'dentes - guardaram a vosso respeito uma atitude ex­
pectante e um tanto ansiosa. Ai! podereis vencer? per­
guntavam-vos, sem excesso de entusiasmo, ·confesse­
mo-lo, aqueles mesmos que emprestavam à obra do
primeiro Congresso Joana d'Arc para estudo das
questões sociais o concurso bené,·olo duma palavra
brilhante. . . e ponderadora. ( 1).
Por que essa palavra ai?
"Qmmdo tudo está desesperado numa causa na­
cional", escrevia Lamartine, "ainda não se deve deses­
perar enquanto restar um foco de resistência no cora­
ção duma mulher!
"As mulheres são mais naturalmente heróicas do
que os homens. E quando esse heroísmo deve ir até o
maravilhoso, é duma mulher, ficai sabendo, que se de­
ve esperar o milai:"rc."

(1) Discurso do P. Sertillanges.

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AS HEI<.OINAS DO DEVER 201

O heroismo e o milagre são raros, eu o sei. Porém


a valentia duma multidão, a teimosia das vontades, a
unidade de escopo e de ação que aguilhoam os cora­
ções, a coaliçãc das energias, não podem também al­
cançar a vitória?
"No conflito dos i nterêsses sociais", diz Tocque­
ville, "os pessimistas são meros espectadores, só os
otimistas são atores."
Vós, minhas Senhoras, acreditastes que devíeis
ajudar os homens a conjurar os males de que sofre a
nossa sociedade. Tivestes a intuição do yosso poder
novo pela associação, e de que o que YÓs queríeis,
Deus o queria também.
Em 1853, o cólera rebentou no Finisterra. rer­
gttntavam a um "maire" do Leonardo que precauções
tomara contra o flagelo. Contentou-se êle, sem dizer
palavra, mm cst<'nrlcr a mão para doze valas cavadas
de antemão.
Pois bem, minhas Senhorns, diante dos males que
ameaçam a sociedade, vós não aceitais esse papel de
resignação silenciosa, julgais que há outra coisa mais
a fazer do que dobrar sinos de funerais, do que cavar
valás; sois otimistas.
E podereis ve�cer?
E por que não?
O que reclamais nada tem senão de justo. Que
pedís, em definitivo?
Em gráus diferentes, todas mais ou menos a mes­
ma coisa.: "Ciência para a moça, direitos para a cida­
dã, equidade e respeito para a espôsa, segurança e att-

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202 LÉON RIMBAULT

xílio para a mãe" (1). Tudo isso está em conformi­


dade com o espírito do Evangelho.
E' porque quereis conquistar - o termo e:,prime
bem a dificuldade da empresa - a vossa parte de legí­
tima inf�uência social, que vos reunís aquí em con­
gresso.
Sêres de aperfeiçoamento e de progresso pelo
mesmo título que o homem, suas iguais não talvez pe­
rante o Código, mas perante a natureza, perante o de­
ver, perante o sofrimento, perante a graça, perante a
glória eterna, vós reivindicais, senão uma igualdade
irrealizável sôbre certos pontos, pelo menos essa equi­
valência que a estrita justiça deveria conceder às de­
licadezas do vosso sexo.
Vossos princípios, minhas Senhoras, são absoluta­
mente os meus. E subscrevo de todo coração o vosso
programa.
Não quereis derrubar a casa em que sois rainhas:
permaneceis conservadoras; porém pedís que abram as
janelas, que alarguem as portas, para alí fazer entrar
mais ar, mais luz: sois progressistas.
E' vosso direito. Não há muito, afetava-se rir dis­
so. Hoje vos discutem : é sinal de que vos tomam a
sério.
Mesmo porque, com o tempo, tendes andado, ten­
des agido.
Seria pueril negar, hoje, a amplitude e a fôrça do
movimento que leva a mulher para a ação social. Tan-

(1) Abade Bolo, A Mulher -e o Clero.

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AS HEROINAS DO DEVER 203

to ;aleria deter as pacíficas porém irresistíveis inva­


sões da maré enchente. Essa revelação nova do poder
feminino não é para nos assustar: a Igreja é imutá­
vel, não é imovel. Filhas da Igreja, guardai poi.s os
princípios: eles são eternos; desenvolvei-os, do melhor
modo, em pról das necessidades do nosso mundo ator­
mentado: eles são vivos.
Quer queiram quer não, há qualquer coisa de mu­
dado na sociedade mo�erna, e é a exigência legítima
da mulher na participação dos privilégios e dos encar­
gos de direito comum, tanto em matéria de instrução,
de salário, de testamento, quanto em matéria de civis­
mo, de moral e de religião.
Já não é mais o tempo, minhas Senhoras, das lon­
gas rocadas das matronas, só de longe se envolvendo,
na paz inalterada do home, nos cuidados da coisa pú­
blica, reserva exclusiva dos homens. A luta está por
toda parte. Todos devem ir para o bastão da defesa.
Já não estamos mais no tempo em que as mulhe­
res da Bretanha se contentavam com vender a sua ca­
beleira para o resgate de Duguesclin. Todas as mulhe­
res de todas as nações devem alistar-se no exército das
heroínas do dever social, e contribuir, eficazmente,
para o reerguimento moral da pátii'a.
Já não é mais o tempo das cavalgadas guerreiras
de Joana d'Arc a esporear chefes e soldados com estas
palavras duma temeridade tão francesa: "Em nome
de Deus, sôbre os ingleses ! Quando eles estivessem
pendurados às nuvens, haveríamos de despregá-los".
Não se trata atualmente da invasão do território,

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204 LÉON RIMBAULT
f,
trata-se da invasão da farrilia, das instituições,· dos
princípios, da alma nacional toda.
E, sem tomar das armas como Joana d'Arc, quan­
tos meios tendes, minhas Senhoras, para botar fóra da
pátria tantos elementos exóticos de generescência e
de corrupção, que ameaçam o nosso patriotismo e a
nossa fé!
"Há que laborar quando Deus quer." Longo tem­
po a mulher fóra do lar confinou-se na caridade: nisso
ela excele. Chegada é, porem, para vós, minhas Se­
nhoras, a hora de congregardes ao advento da justiça
social, sem deixardes caducar nenhuma das nossas
obras católicas, todas as vossas atividades femininas.
E podereis vencer?
E por que não?
Falta-vos inteligência?
Não, pois sois um escol de mulheres sérias, visto
que cristãs. Várias entre vós escrevem, falam, agem
com um talento que se impõe à admiração dos homens
imparciais.
Muitas estão a par de tudo o que concerne à defe­
sa dos interêsses femininos. Tanto melhor!
Falta-vos energia?
Não, porquanto não vos entregais às obras de pa­
triótica regeneração senão depois de haverdes cumpri­
do todos os vossos deveres de familiar serviço. Dais
às vossas aptidões especiais a cultura intensiva e ex­
tensiva que exigem as necessidades do vosso meio so­
cial, mas não entendeis subtrair-vos a nenhuma das

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AS HEROINAS DO DEVER 205

vo•s obri2"ações prévias de espôsa, de mãe, de dona


de casa.
Falta-vos prudência?
Tão pouco, porquanto a libertação da mulher, tal
qual a reclamais, não se faz nem contra Deus, nem se­
quer contra o homem.
Deus não creou um duelo, porém um dueto harmo­
nioso entre o homem e a mulher. Duo erunt in carne
una, diz o Gênese. Qnc síntese admiravel de todos os
seus direitos, ele todos os seus recursos, de todas as
suas esperanças, fundidos numa viva unidade!
Por outra parte, a mulher só está sujeita ao ho­
mem porque pecou e fez o homem pecar contra Deus.
Seria temerário afirmar, por conseguinte, que,
quanto mais ela se aproxima de Deus, tanto mais es­
capa ao jugo do homem? que, em todo caso, só em
Deus acha ela a razão detemiinante da sua submissão
ao homem? S61lditae estote viris in Domino.
Cristãs portanto, vós aceitais com alegria a rea­
leza do homem; modernas e patriotas, repugnais so­
frer-lhe a tirania. Que há de intempestivo nesse pos­
tulatum?
Percorro o vosso programa de estudos e de dis­
cussão. Vejo-vos preocupadas com sindicatos, mutua­
lidades, patronatos, escolas profissionais ou agrícolas,
ligas, obras de imprensa, escolas de enfermeiras: que
campo de atividade, minhas Senhoras, e como um con­
gresso evoca bem a imagem duma colmeia! Ouvis
esse zumbido de abelhas enfebrecidas no precioso la­
bor do mel? Cada uma traz sua idéia, cada uma enche

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206 LÉON RIMBAULT

seu alvéolo, cada uma defende a sua conquista a'tre


spicula, sponte favos.
O esfôrço individual adianta a obra social. Vamos,
"viva a labuta!"
Falta-vos, porventura, o poder que d� o número?
Não. Sois muitas, e muitíssimas podeis ser nessas
ligas e associações desabrochadas como por encanto
por toda parte, ao sol da liberdade, com a seiva inten­
sa dum cristianismo e dum patriotismo que acha em
Joana d'Arc o seu ideal, a sua fôrça, a sua fecundidade.
Quantas sois? Para sabê-lo, avaliai num lance d'o­
lhos o número das flores duma campina, ou o das es­
trelas da via láctea !
Milhares e milhares de mulheres enquadradas nes­
sas falanges de honra onde, sob vinte nomes diferen­
tes, volvem sempre estes dois mesmos elementos ge­
radores de êxito: a luz da idéia que dirige, a aliança
das fôrças que marcham juntas para o mesmo fim 1
Milhares e milhares de mulheres! que reserva
para a causa da pátria e da Igreja!
Cinco ou seis mulheres fizeram mais, para propa­
gar a notícia da ressurreição de Jesús-Cristo, do que os
onze apóstolos, os setenta e dois discípulos e os qui­
nhentos homens testemunhas das suas aparições. E
vós sois mílhares, minhas Senhoras!
Que fôrça se, em dado momento, todas essas roda­
gens se puserem em movimento para uma mesma
ação, movidas por uma mesma palavra de ordem!
E por que não?
Seria inoportuno assinalar o movimento de união

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AS HEROINAS DO DEVER 207

que ·se_ desenha em,torno do congresso, verdadeiro sur­


to espontâneo que a nada melhor posso comparar dq ·
que ao gesto de pessoas que, sentindo-se resvalar p:!�
ra o abismo, se retêm umas às outras, impelidas pelo
instinto de conservação?
Podereis vencer? Sim, minhas Senhoras. Inteli­
gência, energia, prudência, fôrça do número, nada vos
falta; acrescentai a isso a condição sine qua non do
êxito: a união; - e vencereis!
Desinteressadas, generosas, apegai-vos a pôr em
comum tudo o que, nas vossas associações respetivas,
póde servir de cimento para edificar a obra social, e
vencereis, não tenhais dúvida.
"A união faz a fôrça".
Um a federação das vossas associações, deixando
a cada um dos vossos ag-rupamentos a sua autonomia
de método, de instrumental, de evolução, a sua inicia­
tiva própria, poderia utilissimamente estreitar a mul­
tidão compacta das boas vontades, orientá-las para um
bem geral e transcendente. Seria um vínculo tão macio
quanto sólido.
Lembrai-vos da palavra de Vercingetorix: "A
Gália, unida e animada dum mesmo espírito, póde de­
safiar o universo."
Sob o domínio 9um mesmo patriotismo cristão,
essa federação, se o quiserdes, fará vitoriosamente
campanha contra todo mal, por todo bem.
Uní-vos, pois, para a resistência, contra o inimigo
comum.
Uní�vos, para a marcha para a frente. A libertação

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208 LÉON RIMBAULT

da Mulher, tal como tendes razão c:ie desejá-la, é à


custa disso.
Não tendes acaso no coração,. na diversidade das
táticas, a mesma flama 9e inspiraç ão: o amor da Igre­
ja, o amor da pátria?
Divididos por mil paixões, os vossos adversários
formam um bloco indivisível quando se trata ele bater
em brecha tudo o que nós amamos, tudo o que defen­
demos.
Dar-lhes-eis o escandaloso espetárnlo de agitações:
estéreis, ele infinitesimais divisões?
Não, não, minhas Senhoras.
Já passou a hora c:Ias discussões ociosas, das inju­
riosas suspeições, das sucetibilidacles ele campanário.
A ninguem fulminemos de ostracismo. A Igreja está
ameaçada, a pátria está em per:go, a causa de Deus
está em jogo. Cerrai, pois, fileiras para combater:
"Deus dará a vitória"
Quando o inimigo invade a fronteira, q'uando to­
,das as suas fôrças se conjugam contra a mãe-pátria,
será, minhas Senhoras, ti hora de deixar desmontar ::i.
defesa? O momento será bem escolhido para fracionar
a própria admiração, para dispersar as próprias prefe­
rências sôbre tal ou tal arma?
Pedro só gosta da infantaria. "Eu", diz Sancho,
"prefiro a cavalaria" - "Você não entende nada dis­
so", acrescenta Martinho"; "Viva a artilharia!"
Esses patriotas se enganam. Em face do perigo
nacional, um só grito deve subir aos lábios: Viva o
exército! Viva a Pátria! Em face do perigo mundial e

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AS HEROINAS DO DEVER 209
social, um só grito deve subir aos lábios: Viva a cris­
tandade! Viva a Igrej�!
As almas são at��p.ás. A religifio, mais ou menos
por toda parte, atravéssa as fases ou encara o ptrigo
de perseguições tanto mais temíveis quanto mais re­
fletidas e de sangue frio, quanto mais patrocinadas
por sistemas.
Trégua, pois, ao espírito de lksuniãu ! 'l'oclo lugar
para a luz, filha do amor; todo lugar para a união, fi­
lha <la vel"dadeira fraternidade; todo lugar para a açã o
firme e uniformemente orientada contra o inimigo co­
mum!
Luta pelo patrimônio da civilização! luta pela preser­
vação da sociedade! luta pela salvação do maior nú­
mero!

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ALGUMAS M ULHERES-MODELO

GENOVEVA E A S VIRGENS
D O LAR

Minhas Senhoras.
Em que época e em quadro histórico devemos si­
tuar essa radiante figura?
Genoveva preside ao alvorecer dos destinos nacio­
nais da França. Vem ao mundo em Nanterre, vive em
Lutécia: é a virgem das margens do Sena, a padroeira
de París.
Estamos no ocaso do século quinto.
A eloquência de Crisóstomo extinguiu-se, deixan­
do, como o sol no declínio, uma longa esteira de ouro
na história.
Agostinho dobrou as azas do seu gênio, quebrou
no túmulo a sua pena de doutor, repousa em Hipona
silencioso.
Tranquilizado contra os juizos de Deus, Jerônimo
adormeceu, aos cânticos embaladores dos pastores e
dos vinhateiros de Belém.
E' a hora em que, para preservar a Igreja contra
os cismas do anti-papa Lourenço, os grandes bispos
vão-se reunir.
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212 LÉON RIMBAULT

Já, os vigias de Israel se fazem viajares, missioná­


rios, batizadores. Lupo de Troyes, Germano de Auxer­
re percorrem a Europa ocidental, passam o mar para
irem à Grã-Bretanha combater o pelagianismo e se­
mear a verdade no sulco das almas.
Patrício apresta-se para evangelizar a Irlanda.
Enquanto as águias do apostolado se abatem sô­
bre as almas e sôbre os povos - vastos despojos, pre­
sas divinas-, as pombas da viela monástica agrnpam­
se, meditativas, na solidão.
A vida claustral floresce, com Santo Honorato,
em Lérins.
A ciência e a santidade pedem, sôbre as ondas,
um refúgio ao ninho dos alciões.
Simeão Estilita sobe à coluna mais alta, aos
olhos d a fé, do que as pirâmides elo Egito, sublime
ponto de encontro dos anjos e cios homens! Todas as
graças de Deus chovem-lhe no cimo, todos os pedidos
dos pontífices e dos reis, dos soldados e dos escraYos,
comprimem-se-lhe na base.
Lutécia ainda não passa de uma capital em fun­
dação; Clovis, é um simples e jovem guerreiro bárba­
ro, jovem rei tão ufano de sua espôsa cristã quanto fiel
ao culto dos seus falsos deuses.
Entretanto, Clotide fatiga o Céu com suas prece!.
Traz à côrte dos Francos o perfume do Evange­
lho nas dobras do véu nupcial. Seu amor, seu sorriso,
mas virtudes advogam a causa de Jesús-Cristo. Ela
se apresta para converter Clovis .
.Conselheiro da rainha, o santo arcebispo de

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AS HEROINAS DO DEVER 213

Reims, Remígio, o homem a quem a voz popular atri­


hue a ressurreição dum morto, será o instrumento da
ressurreição ele um povo.
A monarquia francesa está a pique de nascer.
Ouvem-se, por trás das montanhas da Germânia,
rinchar os corcéis impacientes de Átila, e a Terra se
espanta ao vê-los precipitar-se no seu galope elevas­
taelor.
Os homens, como sempre, se agitam.
l\Ias, por cima dos acontecimentos, a mão de Deus
adianta-se para conduzí-los. E' a moldura bastante
grandiosa, o fundo do quadro bastante aclarado?
Através desse céu tempestuoso é que passa, bran­
c a e abençoada, qual a pomba da arca, - luminosa
aparição da esperança, - a amável Santa Genoveva.
Era ela filha de Gerôncia e de Sevéro. Seus pais
possuiam uma terra no monte Valeriano. Era seu pai
condecorado com um título ele burguesia romana, ou
seria apenas o simples proprietário dos seus rebanhos?
Discute-se muito sôbre as origens da padroeira dos
Parisienses.
Durante mil e quatrocentos anos, Godescardo, au­
tor do Breviário de París, sustentou, nas snas lendas,
a opinião duma Genoveva pastora. O próprio Voltai­
re, exprimindo a sua confiança nela, dizia: "Gosto de
Genoveva, é a minha pastora".
Tal como Puvis de Chavannes no Panteão, Mons.
Freppel, no seu panegírico da santa, julgo'u não lhe
dever tirar :elas mãos o cajado das pastorinhas.
Erudita escola de hagiografia, bem o sei, pretende

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_214 LÉON RIMBAULT

que a tradição andou errada chamando Genoveva ( 1) :


a pastora de Nanterre. Ela deve ter pertencido a uma
família abastada, rica mesmo, distinta. Onde estão as
perentórias em abono desta opinião? Não fornecem ne­
nhuma. Aventuram-se hipóteses e suposições. E' só.
A meu ver, isto é suficiente. Mesmo porque Genoveva
patrícia não se parece mais com as donzelas do Noble­
Faubourg, do que Genoveva pastora se confunde com
as guardadoras de carneiros da Champagne pobreto­
na. - "Nem esse excesso de honra, nem essa indigni­
dade!" Seja o que for desse aburguesamento seródio,
Genoveva, no dizer dos velhos autores, tinha a sim­
plicidade dum cordeiro, a pureza dum lírio, o ardor
dum serafim, a calma dum santuário.
Chama-se Genoveva; Genoveva significa : Boca
do Céu, Filha do paraiso I Do Céu não tem ela, com
efeito, os sorrisos, as lágrimas, os lampejos?
*
**
Pelo sorriso, ela encanta Germano de Auxerre.
Uma tarde em que ele parava, com seu irmão no
episcopado, Lupo de Troyes, no burgo de Nanterre,
discerniu, por entre a multidão dos cristãos acorridos
para lhes receberem a bênção, a humilde menina, en­
tão na idade de sete anos!
Viu-lhe brilhar na fronte o sinal de Deus. E a tra-

(1) Santa Clotilde, abbé Poulin. "Têm contestado que Ge­


ooveva foi pastora; absolutamente não há nenhuma razão séria
para pôr em dúvida essa s6lida tradição." Cf. Missal do século

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AS HEROINAS DO DEVER 215

<lição conservou os pormenores encantadores do encon­


tro do velho bispo com a pequena predestinada. Bei­
jou-a na face, pôs-lhe a mão na cabeça, abençoou-a
com efusão, pendurou-lhe ao pescoço uma medalha de
cobre assinalada com a cruz, dizendo-lhe: "Guarde-a
em lembrança de mim".
No dia seguinte, perante Gerôncia e .Severo enter­
necidos, recebeu ele na igreja, entre os salmos, as ve­
las e o incenso, a consagração priri1icial da jovem vir­
gem ao Senhor, e deu-lhe o véu branco das esposas do
l'.livino Amor.
Os verdadeiros corações de leões são os verdadei­
ros corações de pais. Germano, o feroz guerreiro, o ru­
de caçador feito bispo, sentiu o inexprimível encanto
da doçura de Genoveva.
- Pelo sorriso, cativa o coração, sedento de vin­
gança, de Childerico.
O bárbaro rei dos Francos teme o poder irresistí­
vel do sorriso da virgem. Tem medo de ver evolar-se­
lhe a cólera ao sopro da "Boca do Céu". Afasta-se às
pressas de París, com o intento bem definido de man­
dar decapitar uns prisioneiros que ele condenava ine-'
xoravelmente à morte. Fechai atrás dele as portas de
Lutécia, puxai as barras e as correntes de ferro!
Assim, Genoveva não lhe virá amolecer o coração
e solicitar o perdão dos cativos. Vã política do rei ca­
beludo contra a virgem amável! Por si mesmas, rolam
sôbre os gonzos as pesadas portas, e eis Genoveva!
Qmtl o meio de lutar contra a aurora? Como guerrear

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2·16 LÉON RIMBAULT

contra uma pomba? Com um sorriso, a "Filha do pa­


raisa" quebra os grilhões dos vencidos.
- Pelo sorriso, Genoveva é irmã de Joana d'Arc.
Ambas pastoras, digam o que disserem, elas têm essas
delicadezas, essas aristocracias do sentimento que não
são apanágio exclusivo dos privilegiados do armorial.
Genoveva é a doçura; Joana d'Arc é a fôrça; Ge­
noveva é mais celeste, Joana d'Arc é mais humana;
GenGveva é mais contemplativa, Joana d'Arc é mais
ativa. Joana d'Arc fala muito de Deus à França: "Vim
da parte de Deus. - Deus Nosso Senhor deve ser ser­
vido em primeiro! - Ainda não tendes isso de mim,
não tenho a licença de Deus. - A gente d'armas ba­
talh?.rá e Deus lhe dará a vitória". Eis o que ela diz e
repete ao rei, aos bispos, aos seus companheiros d'ar­
rnas, aos seus juizes de Ruão. Gcnoveva fala muito
da França a Deus. Pela pátria, está sempre de joelhos
no chão do seu quarto, ou em marcha para os santuá­
rios.
- Joana d'Arc é o anjo das batalhas e das expia­
ções sangrentas, é a cavaleira das altivas reivindica­
ções nacionais. Genoveva é o anjo da prece; a provi­
dencial portadora do pão, a onipotência consoladora
da Gália no transe e de Paris no deses,ero.
Ambas, meigas e fortes, virginais e valentes, oran­
tes e laboriosas, estendem-se a mão e formam, com
seus braços radiantes, através de nove séculos que as
aproximam distinguindo-as, um arco triunfal por cima
da terra de França, conquista abençoada do seu incom­
parável amor.

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AS HEROINAS DO DEVER 217

Pelo sorriso, Genoveva fez irradiar o berço e o


túmulo.
- A doçura da inocência envolve de deliciosas re­
cordações os lugares em que a santa passou os dias da
primeira juventude.
O poço onde tirava água do milagre, e uma parte
do subterrâneo testemu11ha de suas devotas orações,
estão hoje encerrados nu111 cercado vizinho da igreja
paroquial rlc Nantcrrc.
A oncla da bendita fonte, amada dos peregrinos,
fecunda aquele jardim todo semeado de flores e cober­
to de ridentes sombras.
Paz e serenidade dos campos, alvoradas e cantile­
nas das aves repetem, no contraste empolgante da ca­
pital, a calma soberana da granda vida que come­
çou aí.
Em Nanterre como em Santo Estêvão do Monte,
no berço como no túmulo da imortal Pastora, o povo
de París, todo ano, durante as festas da novena, gosta
de respirar os perfumes duma santidade sempre glo­
riosa, de cantar os louvores duma proteção sempre
eficaz.
Em torno da urna dourada de Genoveva, aos mi­
lhares os corações ardem como os círios, os círios ch0-
rarn como os olhos. Da manhã à noite, o rumor cl(')s lá­
bios orantes eleva-se por sob as auóbadas do antigo
santuário, surdo e longo como o murmúrio das ondas
da gratidão popular. Rwnor bonitatis vulgabatu� in
�opulo.

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218 LÉON RIMBAULT

Os sorrisos de Genoveva são o triunfo da sua ino­


cência; suas lágrimas, o do seu amor.
A religião cristã não proibe o riso. Contrariamen­
te a certos herejes que quereriam sempre ver-nos em
lágrimas, ela discerne sabiamente os tempos da ale­
gria e do penar : tempus flendi, tempus ridendi.
Como haveria o riso de ser mau, já que é próprio
do homem, um dom de Deus?
Filhos de jubilação, não pertencemos, por um ri­
so alegre, discreto, oportuno, à raça daqueles cuja ofe.,
renda agrada ao Senhor? Hilarem enim datorem dili­
git Deus.
"Não convém à Verdade", diz Tertuliano, "ter o
riso nos lábios e alegria nos olhos?. . . Congruit et ve­
ritati ridere quia laetans".
O riso não é a efusão natural, a explosão necessá­
ria duma boa conciência e de um coração puro?
Entretanto, as lágrimas predominam no cristia­
nismo; por isto têm chamado a religião de Jesús-Cris­
to de religião da dor.
Sob este ponto de vista, Genoveva é uma verda-
deira cristã.
Poucas santas choraram como ela.
Senão, vêde:
- Ela chora, ainda criança, seguindo, após a par­
tida de Germano, sua mãe à igreja: "Com o auxílio ele
Deuz", <liz ela, "guardarei a fé prometida ao bispo,
frequentarei os ofícios, afím de ser uma fiel esposa de
Cristo e merecer seus ornamentos e suas pérolas, co­
mo o santíssimo confessor me certificou".

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AS HEROINAS DO DEVER 219
Oh lágrimas de terna piedade!
- Chora quando, mais tarde, sua mãe, tornada
subitamente cega por havê-la esbofeteado, Genoveva
inclina-se por sôbre o beiral do poço, suplicando ao
Céu dar à água que ela tira uma virtude ele cura.
Oh lágrimas de filial misericórdia!
- Chora quando, ao sair duma paralisia de três
dias, durante os quais sua alma teve a visão do paraí­
so, contempla, com os olhos do corpo, o céu das nu­
vens e das estrelas.
Oh lágrimas dos santos desejos!
- Chora ao longo das orações, na cela, em casa
da madrinha, chora tão abundantemente que Germano
vê nisso um sinal patente da santidade de sua cara fi­
lha espiritual.
Oh lágrimas de penitência!
- Chora no regresso dos sacerdotes enviados por
el a para escolherem o terreno destinado à construção
duma basílica em honra de S. Diniz. Anunciam-lhe
êles terem sido descobertos dois fornos de cal de ma­
rnvilhosa grandeza. Ela não se contém.
Oh lágrimas de gratidão !
- Chora quando suplica ao Céu dar de beber
aos operários que trabalham na sua igreja.
Oh lágrimas de fervor!
Lágrimas sagradas, lágrimas fecundas, lágrimas
àoces e amargas, lágrimas inestancáveis, oh lágrimas
de Santa Genoveva, ensinai-nos!
Que dizer, depois disso, das lágrimas tolas, in­
sulsas, infantís, nervosas, 9a nossa geração?

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220 LÉON RIMBAULT

Outrora, as mulheres choravam sôbre as piegui­


ces de Paulo e Virgínia. Os grandes coqueiros da fon­
te e as canas de açúcar assediavam-lhes o sono. Quan­
tas mulheres acharam admirável a simplicidade dessa
obra-prima e a inocência da heroína! Essa prosa fluen­
te, humanitária, sentimental, esse romance velho e
malsão, bom para fazer chorar r.um canapé uma mu­
lher ataviada que se entedía.
"Oh bestialidade humana", exclama Ernesto Hel­
lo, "quisera eu poder marcar-te com um ferro em
brasa!"
"Levantai-vos, minha senhora, ficai certa de que
há na vossa vizinhança dores verdadeiras por conso­
lar, obras sérias por sustentar. Quapdo tiverdes cho­
ramingado nesciamente sôbre desditas imaginárias,
estareis disposta a auxiliar os que trabalham? Enxu­
gai depressa essas lágrimas. São más.
As lágrimas são culposas se corrtm sôbre objetos
proibidos. Lágrimas de despeito ou de cólera, lágrimas
de inveja, de moleza, de paixão, lágrimas de hipocri­
sia, que correm quando as podemos ver.
Pedi, senhoras, com fé, o dom das verdadeiras
lágrimas: lágrimas de arrependimento, de sacrifício,
de amor. Só essas lágrimas são dignas de vós que as
derramais, dignas úe Deus que as concede. Só essas
fortes e grandes que dão à afma uma têmpera de aço.

***
Genoveva chora, mas age. A sua prece é uma ar-
ma de combate, um poder de intervenção decisiva.

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AS HEROINAS DO DEVER 221

Os lampejos de Genoveva fizeram recuar Atila.


Sabeis o que era a invasão de Átila, a mais terrível das
invasões cuja lembrança registou a história?
Meio milnão de bárbaros desencadeados sôbre a
Gália, e que bárbaros !
Os Hunos, disformes e monstruosos, comedores
de carne crua, e que, para destru-irem em si os germes
da barba, sulcavam o rosto dos filhos de ci-:atrizes de
que conservavam por toda a vida um aspecto hedion­
do e terrível.
Os Álanos, armados de lanças e coiraçados de fo­
' . de chifre.
lhas
Os Gelões, tatuados, vestidos de casacos de péle
humana.
Os Sarmatas, montados em carrinhos.
Os Germanos das margens do Vístula, do Óder e
do Niemen, talhados c9mo hércules.
Os Hérulos, tão ferozes que espantavam os pró­
prios Germanos. Os Gépidas, os Ostrogodos, etc ....
raças de chacinadores e de saqueadores, féras desaçai­
madas, em cio de sangue, através da Europa aterrada.
Comandava-os Atila, t::spécie de Quasímodo enor­
me; Átila o fratricídio, a íuxúria, a bestialidade, a ga­
bolice incarnada num homem, Átila que dizia com riso
escarninho: "Os generais dos imperadores são lacaios,
e os lacaios de Átila são imperadores". - "A erva não
brota mais por onde passou o cavalo de Átila!"
Átila, o flagelo de Deus, lançava-os como um di­
lúvio devastador sôbre a pátria de Genoveva, de Clo­
tilde, de Remígio; e as igrejas flamejavam, os cadá-

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222 LÉON RIMBAULT

yeres empilhavam-se aos milhares, o sangue corria a


flux.
Treves, Mogúncia, Strassburgo, Metz, Colônia,
Arras, Reims foram tomadas de assalto e incendiadas.
Era agora a vez de París, de Laon e de São Quintino.
Átila podia despenhar-se sôbre París em dois dias.
Quem o deterá? Nenhum braço humano.
Aécio, chefe 90 exército romano, o único que po­
deria ter oposto alguma resistência, demora-se em Ar­
les, no Sul, hesitante e ansioso.
París tem apenas fortificações irrisórias. E aliás,
ante a inundação de Hunos, os Parisienses paralisados
p elo medo não pensam em se defender, mas em fugir.
Quem salvará París? Genoveva de Nanterre. Sô­
bre aquela devastação de sangue, ao clarão dos incên­
dios, ela aparece como o anjo das divinas misericór­
dias. Não reveste a cota de malhas, a exemplo de Joa­
na d' Are. Cái de joelhos, não diante de Átila, que ela
$.

nunca viu, mas diante de Deus.


Átila, repentinamente, lança-se sôbre Châlons, sô­
bre Troyes, sôbre Orléans. Por que esse longo desvio
que o mantém longe de París?
Por que? Porque a prece, à hora em que neste
mundo nos lança de joelhos, de rosto em terra, entra,
lá em cima, no conselho do Eterno, para lhe modificar
os decretos.
Porque uma donzela fatigou o Céu com seus gri­
tos e desarmou o braço da justiça divina.
Porque, espôsa do Rei dos reis que tem nas mãos

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AS HEROINAS DO DEVER 223

os conquistadores, Genoveva fez descer a fôrça que os


detém e os esfacela.
Porque uma voz, secreta e irresistível, fez éco à
súplica da virgem, dizendo ao indomável Atila: "Não
irás mais lQnge ! Vai-te!"
Na realidade, a partir da misteriosa intervenção
de Genoveva, Atila sofreu derrota sobre derrota.
Lupo em Troyes, Aignan em Orléans, Léon em
Roma, todos os pacíficos, numa palavra, derrotam-no
e salvam seus povos.
Portanto, por seus sorrisos, por suas lágrimas,
por seus lampejos, Santa Genoveva é realmente o an­
jo protetor da pátria.
Como então, na escola dela, as virgens do lar, vos­
sas filhas ou vossas irmãs, minhas senhoras, não have­
riam de aprender a amar a Deus, às almas, à pátria?

*
**
Fundando a instituição das virgens no mundo,
Genoveva tornou-se a padroeira de todas as mulheres
sem espôso. Vemos-lhe na cabeça o véu de virginda­
de, mas não lhe enxergamos em torno nem grades
nem clausura.
Ela vive em casa dos pais. Por morte destes, re­
tira-se para a casa da madrinha. Achamo-la sucessiva­
mente em Nanterre, em París, em Laon, em Tours, em
Arcissur-Aube.
E' a virgem do mundo. Mistura-se aos interêsses
da cidade, aos negócios da Igreja.

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?.24 LÉON RIMBAULT

Não é a religiosa no claustro, ainda que tenha o


fervor de verdadeira contemplativa.
O espírito de virgindade, que fez florescer as so­
lidões, póde desabrochar tambern nos grandes cami­
nhos.
Portanto, o aforisma de urna certa sociedade: um
marido ou um convento, é absurdo.
Devemos afirmar, em boa lógica, a excelência do
estado das virgens no lar.
Inclino-me mesmo a pensar que a virgindade no
mundo estará cada vez mais em honra. E eis aquí as
razões:
No dizer do profeta Isaías, nas crises sociais, o
número das mulheres excede o dos homens: Septem
mulíeres apprehenderunt virum. As mulheres casadas,
por sua vez, deixam bastante atrás ele si as mulheres
celibatárias.
Em 1891, contava-se na França a cifra de .......
2. 622.770 moças maiores livres, contra 7 milhões e
1/2 ele mulheres em poder marital; quer dizer, uma
moça em quatro, conforme a estatística, deve guardar
o celibato. Mas as exigências do luxo para as altas
classes, as durezas econômicas da vida para o povo, o
egoísmo, no alto e em baixo, constituem nos nossos
dias um obstáculo temível para o casamento. Muitos
moços não se casam mais, ou se casam o mais tarde
possível. Ora, como para se casar é pn�ciso serem dois
e que um dos dois seja homem, uma multidão de mo­
ças acham-se condenadas ao isolamento do coração.

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AS HEROINAS DO DEVER 225'

São virgens por necessidade, são as resignadas do


celibato.
- Mas há almas altivas e sérias, que, antes de en­
trarem no matrimônio, refletem.
Meditam na fragilidade do amor humano; pesam
as alegrias e as desilusões cio coração no lar conju­
gal; passam em revista as uniões rompidas pela infi­
delidade e pela morte; em compensação, pensam lon­
gamente nos encantos da liberdade e da independên­
cia, na beleza de Jesús-Cristo. O ideal di�ino, caro a
Santa Inês, também as cativa. Elas não se casarão.
Elas poderiam ter escolhido um espôso, mas não qui­
seram.
Dão-se à virgindade; são as voluntárias do celi­
bato.
>-- Outras, em face dos clamores do exército do

mal, ante a maré enchente da perseguição, das misé­


rins por consolar, das fraquezas por levantar, sentem­
se feridas no coração por um imenso desejo de se de­
dicarem. Por outro lado, não saberiam submeter-se
às sujeições da vida de comunidade; não têm nem a
saúde, nem a maciez de caráter que se faz mistér no
claustro.
Essas ainda, virgens por caridade, por sêde de sa­
crifício, permanecerão no mundo, serão os anjos con­
soladores do lar.
Outrora, a moça não tinha que escolher: a aristo­
cracia encerrava-a num claustro ou dava-a a um ma­
rido. Os caçulas de família entravam para o santuário.
Esse tempos não voltam mais.

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226 LÉON RIMBAULT

Hoje, entre o altar monástico e o altar conjugal,


ergue-se, virgíneo como o primeiro, mais feliz que o
segundo, o altar doméstico.
A expulsão das religiosas em· certos países, o fe­
chamento dos mosteiros, não consegue moderar o mo­
vimento que leva as almas para a virgindade. Por
quem será então mantida a vitalidade das obras cató­
licas? Se elas o quiserem, pelas virgens do lar.
O mundo, bem o sei, considera o celibato, - para
as mulhere!, bem entendido, - como um estado de
infortúnio bem caracterizado, e, conforme ele, o fa,to
de ter ficado solteira crea sempre uma situação incô­
moda, e que não é isenta de algum ridículo.
Em virtude desse preconceito, ele confunde com
umas egoistas "solteironas", fetichistas femininas do
cão policial ou do lulú, do gato angorá, dos saguís e da
chícara de café, toda uma falange de virgens amáveis
e dedicadas.
Em que é que estas se parecem com aquelas?
Em que é que a "solteirona", tão detraída pela
opinião pública, vale menos do que "o solteirão", re­
traído no seu egoísmo, como o caracol na sua con­
cha? Talvez ela se tivesse dobrado menos sôbre si mes­
ma se a sociedade tives�e aberto uma saída às suas fa­
culdades afetivas. "Na França sobretudo", escrevia um
protestante (1), "só lhe permitiam sair sozinha na ida­
de em que ela, por assim dizer, não tinha mais sexo, e
nunca pensavam em lhe pedir que cooperasse numa

(1) As solteironas, por Ch. Gide.

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AS HEROIN
-'!'
AS DO DEVER 227

obra útil . . . Ponde alguem ele quarentena, e depois


disso exprobrai-lhe amargamente o viver para si mes­
mo. Que quereis que façam as "solteironas", já que
não as deixam fazer nada?"
"E, diz ele alhures, aquí como em todas as ques­
tões que concernem às mulheres, notai a injustiça hu­
mana. Admite-se primeiro que todo homem tem mil
outras funções sociais que a de ser cspôso e pai. Admi­
te-se, ademais, q11e, se um homem não se casou , não
é o que não tenha podido, mas unicamen'l:e que não o
quis, e assim o celibatário-homem acha-se exornado
duma certa auréola de devotamento social, ou pelo
menos enobrecido por um certo desdém dos laços bur­
guêses e prosáicos _do casamento, que lhe permite an­
dar de cabeça erguida, bem alinhado, - prestígio ab­
solutamente recusado à solteirona".
Deixemos, pois, ao mundo esses egoistas celibatá­
rios de ambos os sexos, e reivindiquemos para as vir­
gens do lar a honra e o brilho de todas as imolações.
De Nosso Senhor Jesús-Cristo a S. Paulo, de Santo
Ambrósio e de S. Jerônimo aos Padres do Concílio de
Trento, a virgindade secular, como a virgindade claus­
tral, tem recebido os mais magníficos louvores.
E' tanto aos lares quanto aos mosteiros, que se
dirige o epitalâmio bíblico: Quam pulchra est casta
generátio!
As virgens, e, se o termo vos parece um pouco
místico, as senhoritas, graciosas como as libélulas, suas
irmãs, de longas asas nacaradas, que pousam nas fb-

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228 L É O N RIM B A U L.:r
res sem as curvarem, são mulheres superiores. Calcam
aos pés os tolos preconceitos do mundo.
O mundo supõe que, se uma mulher não se casou,
é que não o pôde.
De fato, estas não o quiseram. Beleza, espírito,
coração, dinheiro mesmo: nada lhes faltou. Elas, po­
rem, nobremente recusaram o marido obrigatório, in­
dispensável, cético, jogador, caçador de dote, que vos
toma o braço para ajudar-vos a transpor o limiar dum
salão, e a quem tantas mulheres soltam, cinco anos
mais tardt; , como se solta um suspiro.
Elas não aceitaram suportar as exibições de ves­
tuários e de saraus, as míseras comédias do mercade­
jar, mais ou menos velado, que preludía o noivado.
Altivas de sobra para passarem como que "par
dessus le marché", ou sobejamente amantes para se
exporem aos desencantos e às monotonias dum amor
que acaoa por não ser mais do que uma boa amizade,
ou, menos ainda, uma correta juxtaposição de senti­
mentos, elas se constituiram, consoante uma pitoresca
expressão nossa, as en-cas da família e da paróquia.
Encontramo-las em todos os postos de dedicação
obscura, abandonado pelas outras.
- Elas exercem a suplência das mães. Quando a
morte devasta o ninho familiar, quando arranca a mãe
aos filhos, quem é que recolhe os órfãos? Quem é que
vem substituir a ausente no lar enlutado? Elas, as tias
ou irmãs amadas. Elas não se casarão, afim de educa­
rem a família alheia.
Virgens cujo seio a maternidade jamais entumes-

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AS HEROINAS DO DEVER 229

ceu, elas repartem o seu pão, dão o seu coração aos


desherdados da -vida, às vítimas da desgraça e da po­
breza.
- Exercem a suplência do padre.
Quem é que concerta os panos do altar? quem cui­
da das flores do santuário? quem canta no côro? quem
auxilia o vigário nos catecismos e primeiras comu­
nhões? quem se intromete, para o bem, em todas as
circunstâncias de alegria, de trabalho, de provação, na
paróquia? Elas, as celibatárias, zelosas como Marta. A
quantos agonizantes têm elas facilitado a confissão! a
quantos doentes têm aliviado os sofrimentos! Quantas
crianças lhes devem a graça do batismo!
- Exercem a suplência de Cristo.
Tomam sôbre si a expiação dos pecados da paró­
quia. Juntam à paixão de Jesús-Cristo a quantidade de
suores, de lágrimas e, às vezes, de sangue, in<lispensá­
yel à salvação duma alma. Prolongam, diante do ta­
bernáculo silencioso, as Yigílias reparadoras. O sacer­
dócio ameaçado, a vida religiosa desorganizada, os di­
reitos de Deus, desconhecidos : tudo as incita à peni­
tência. Nada lhes é estranho das dôres e provações da
Igreja. Assim, elas rezam como os anjos, imolam-se
como vítimas. Por essas almas de escol amorosamen­
te sacrific�das, o Céu se asserena, a misericórdia de
Deus sorri aos pecadores. Tendo-o pago generosamen­
te, elas são as precursoras do perdão.
Que valem agora as objeções da falsa prudência
contra o celibato da mulher no lar?
- A virgindade do mundo, dizem, diminue a pro-

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230 LÉON RIMBAUL'T

pagação da espécie humana. Opõe-se à lei de fecundi­


dade e de progresso, imposta pelo Creador: Crescite
et multiplicamini et replete terram.
Respondo: A que homem, até aquí, já faltou es­
posa? Na Europa, o número das mulheres ultrapassa­
va, há anos, de quatro milhões o número dos homens.
Os países mais povoados são justamente aqueles
em que há mais virgens. A Bretanha, num século, au­
mentou de um milhão a sua população. Onde achamos
mais padres, mais religiosos, mais celibatários? A vir­
gindadé, em todas as suas revelações, não é porventu­
ra o tributo alegremente oferecido a Deus pelos raros
prolíficos.
A lei do crescite é menos um mandamento do que
uma bênção. Em todo caso, dirige-se aos esposos ava­
rentos e parcimoniosos ela sua fecundidade, mas não às
virgens que só se isolam e desprendem para se eleva­
rem e dedicarem.
Dizem ainda : Por es sa prática da virgindade no
mundo, diminuireis o número das vocações religiosas.
- Embelezareis o lar em detrimento do claustro.
Respondo: Não; visto que nem todas as virgens
são chamadas à vida de comunidade. Há muitas que
compreendem e desejam a honra, as delicadezas, o
apostolado da virgindade, mas não quereriam absolu­
tamente submeter-se ao jugo da obediência ou prati­
car os rigores da pobreza. Há outras que a isso se re­
signariam talvez, mas cujo temperamento doentio,
cuja constituição frágil, reclamam um regime incom­
patível com as austeridades monacais,

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AS HEROINAS DO DEVER 231

Por outro lado, quantas voca-ções religiosas têm


fracassado porque as moças não apreciavam bastante
a grandeza da virgindade!
- Dizem ainda: Expondes a salvação dessas al­
mas que deixais virgens, no meio dos perigos do
mundo.
Respondo : A virgindade no lar é uma vocação, pe­
la mesma razão que o matrimônio ou a vida religiosa.
Deus lhe deve, pois, o seu socorro eficaz. As virgens
cristãs nada tem a temer. Estão no mundo, mas não
são do mundo.
Preservadas pela graça do alto, couraçadas de pru­
dência, animadas de zêlo ardente, elas, pelo contrário,
espalharão no mundo o bom odor de Jesús-Cristo.
Purificarão, curarão, levantarão tudo o que, em
Babilônia, ainda póde ser reconduzido ao bem. O sal
nada tem a temer da corrupção, nem a luz tem a temer
da lama.
"Por que é", perguntavam a uma pobre mendiga,
"que passais toda manhã, de terço na mão, pela casa
desse sectário?"
- "Na minha opinião", respondeu ela. "é que as
Ave-Marias são como água de Colônia. Não podemos
espalhá-las sem que elas embalsamem, e quero desin­
fetar essa alma".
Pois bem, as virgens imitarão a dizedora de Ave­
Marias. Deixarão sôbre a sua passagem uma esteira de
perfumes.
Por que o lar doméstico não haveria de ter o pri­
vilégio da laranjeira? "O fruto, na laranjeira, não des-

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232 LÉON RIMBAULT

trói a flor" Ao laco das espôsas e das mães, ponde


virgens, e, por entre muitas tristezas, tereis feito irra­
diar o sorriso de Deus.
Porquanto, não o esqueçamos, as virgens do lar,
como Santa Genoveva, sua padroeira, têm nome de
Boca do Céu e Filha do paraiso.
O mundo chama-as ironicamente de solteironas,
Engana-se. Só ele é velho sob os seus ourope1s e sua
máscara: velho como as misérias de que não póde pres­
cindir, velho como o demônio e suas mentiras, velho
como todos os "blasés" sem fé, sem vigor, que se ar­
rastam lame:ltavelmente ao longo dos seus paúes. O
mundo tem velhos de vinte anos.
Mas as virgens do lar, mesmo sob as neves dos
anos, possuem o segredo duma juventude admirável;
são jovens como os princípios, jovens como o dever, a
esperança e o amor. Nonagenárias, o seu coração tem
sempre vinte anos! Elas são moças da idade madura,
a primavera prolongada, as flores olorosas do Monte­
Branco.
Quando entrarem no paraíso, rodeadas das suas
obras e das suas virtudes como dum cinturão de hon­
ra, escoltadas pelo povo alegre de todos os seus filhos
de adoção - anciãos assistidos, órfãos recolhidos, pe­
cadores convertidos, - ouvir-se-ão proclamar bem­
aventuradas: Habitare facit sterilem in domo, matrem
filiorum laP.tantem.
Os polJres dir-lhes-ão: Minha Mãe! Os anjos: Mi­
nha Irmã! E Deus levará ao auge a glória delas, dan­
do-lhes o mais gracioso e mais doce dos nomes: ?4i­
p.h� Filhfl !
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CLOTIDE E A MULHER-APóSTOLO

Minhas senhoras.
Pelos sorrisos, pelas lágrimas, pelos lampejos da
vida de Genoveva, iluminámos a condição das virgens
do lar e pusemos no quadro que lhe é próprio o seu
apostolado no meio do mundo.
Como dizíamos, elas exercem a suplência da mãe,
a suplência do padre, e, segundo a palavra de S. Pau­
lo, a suplência do próprio Cristo : Adimpleo ea quae
desunt passionum Ch:risti. Depois de semelhantes
obras, como não haveria de ser um especialíssimo
triunfo a entrada delas no paraisa?
Falemos hoje qe Clotilde e da Mnlher-Apóstolo.
E' a ela que pertence inaugurar a França cristã,
merecendo o milagre de Tolbiac, preparando o batis­
mo de Clovis e o pacto de Reims.
Na sua escola, as noivas aprenderão como se dis­
porem para o casamento; as espôsas, como se dedica­
rem, como se salvarem uma alma; as viuvas, como se
transfigurarem no luto e na dor.
*
**
Da pastora à rainha, a transição é fácil. Genoveva
é virgem, Clotilde é espôsa. Ambas estão entremeadas
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234 LÉON RIMBAULT

aos acontecimentos do século quinto na França, e pre­


sidem às origens providenciais desta. Mas, na mesma
intensidade de fé que faz delas incomparáveis apósto­
los, achamos nelas contrastes empolgantes de tempe­
ramento e de raça, de meio e de ação. Genoveva nas­
ceu nas margens do Sena. Segundo o testemunho de
Juliano o Apóstata (1), que chama París "minha cara
Lutécia", "o Sena é de aspecto risonho: a água é pu­
ríssima e agradável de beber. O inverno é brandíssimo;
o solo dá boas vinhas ; os Parisienses têm a arte de
elevar figueiras". Como vêdes, estamos lónge das
imundícies e das fealdades dos esgotos e das usinas
do rio moderno.
Tudo é encantador, tudo é límpido, tudo canta e
exala alegria como Genoveva.
Clotilde nasceu nas margens do Ródano. Tem as
impetuosidades e as perturbações deste. A braços, des­
de a infância, com temíveis dificuldades, agitada, às
vezes, pelas paixões do seu século, quebrantada ao
choque de tremendas desventuras, ela, na sua longa
existência, parece refletir as vicissitudes e as violên­
cias do rio estranho e caudaloso, testemunha da sua
primeira juventude.
Genoveva é Gaulesa; Clotilde, Burgunda. Verda­
deira filha dos Niebelungen, ela sente ferver-lhe nas
veias o velho sangue desses bárbaros "simultaneamen­
te terríveis e mansos, que os Galo-Romanos haviam
chamado para entre eles como protetores e amigos,

(1) Juliano, O Mysopogon,

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AS HEROINAS DO DEVER 235
mas que -conservaram contudo algo da rudeza dos Ger­
manos".
Representam-na (1) alta, majestosamente bela, ro­
busta; com uma cabeleira fulva ou "louro ticiano";
com olhos de cambiantes reflexos de esmeralda; duma
distinção e graça "de que falavam ao longe", ardente,
apaixonada, entusiastica, duma prudência pouco co­
mum e de extraordinária vivacidade de espírito.
No mais, senhora de si, com uma brandura pa­
ciente de mulher e não sei que instintivo guerreiro,
que estranha energia, que indomavel caráter.
Viu a luz em Lião, onde reinava seu pai, Chilp�­
rico. Alí, criancinha, recebeu de sua mãe Agripina e
de sua avó Caréténé - duas santas! - os princípios
de "uma fé viva como o carvalho e de uma virtude só­
lida como a rocha". Indizíveis infortúnios lançaram
sombra "sôbre a primavera da sua idade" Seu berço
foi salpicado do sangue de sua família, imolada às am­
bições de seu tio, Gondebaldo.
Por que milagre a jovem Clotilde escapou, com
sua irmã Soedeleuba, ao morticínio dos seus? A histó­
ria não esclareceu este enigma.
Sabe-se apenas que Soedeleuba, alguns anos mais
tarde, se consagrou ao Senhor, e que, sob uma vigi­
lância hostil, Clotilde, relegada para Genebra, recebeu
educação distintissima.
Alí, num sítio maravilhoso, ponto de encontro de

(1) Gregório de Tours, Godofredo Kurth, Rouquette, Ama­


deu Thierry, Poulin (passiff! ).

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236 LÉON RIMBAULT

todas as graças e de todas as suntuosidacles ..da natu­


reza, Clotilde, "familiarizada em boa hora com a lei­
tura da Escritura Sagrada e com a recitação dos Sal­
mos" (1), @levava a alma para Deus contemplando-<;>
nas suas obras.
A misericórdia inclinava-a para os infelizes: por­
que ela sofrera e era pura; o amor do ideal, o tormen­
to do infinito, punham-lhe na fronte essa beleza gra­
ve, essa melancolia superior, sinal das raças e dos indi­
víduos absorvidos pelo pensamento elas grandes coisas.
Todas as moças são assim. Por sob o exterior !e­
viano e voluvel da sua idade, achareis predicados ce­
lestes.
O papel da educação consiste justamente em de­
senvolver os germes de virtude, paralisando as tendên­
cias originais para o mal. Toda a vida humana depen­
de, em regra geral, da primeira orientação. Esse con­
junto de aspirações e de sentimentos para um escopo,
a princípio assaz confuso, depois entrevisto, desejado,
admirado numa claridade crescente, constitue, com o
atrativo misterioso e tão possante dum encanto que
vem do alto, a graça da vocação. Toda crcatura hu­
mana tem a sua vocação. Deus creou a totalidade dos
séres em massa, mas, segundo o testemunho da Bíblia,
foi por um que ele fabricou os nossos corações: Sin­
gillatim finxit corda eorum.
Daí, sôbre cada um de nós, essa Providência de
todo instante cuja revc:-lação, cuja epifania, será para

(1) Abbé Poulin, Sa1ita Clotilde,

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AS HEROINAS DO DEVER 237

os eleitos no Céu o tema duma adoração e duma grati­


dão eternas. O desígnio de Deus sôbre Clotilde é ma­
·.nifesto; predestir.a-a ao matrimônio, pois desse matri­
mônio dependia o batismo de Clovis, o nascimento da
Frnnça para o catolicismo, e, pela "Fi°lha mais velha
ela Igreja", a civilização cristã do mundo.
Na solidão de Genebra, Clotilde aguardava, pois, a
hora de Deus: essa hora soou. Por que concurso de
circunstâncias Clotilde conheceu Clovis? Devemos dar
crédito ao relato de Fredegário? Alg·uns consideram­
no como um romanr.e. Seja como for, a negociação dos
esponsais entre o jovem rei dos Francos e a princeza
ele Burgônclia recorda o idílio !Jíblico ele Eliezer com
Rebeca.
Desejoso de <'.sposar Clotilde, cujos extraordiná­
rios encantos os :oeus embaixadores lhe haviam gaba­
do, Clovis despachou para a filha de Chilperico um
cios seus conselheiros, o romano Aureliano, católico
arcle!lte que via nesse matrimônio a glória da verdadei­
ra religião. Ele partiu sozinho, disfarçado em mendigo,
de mochila às co-stas. Que meio mais seguro de pene­
trar até Clotilde, vigiada ciosamente pelos soldados de
Gondebaldo, mas livre, todavia, de se ocupar do cui­
dado dos pobres?
Portanto, recebeu ele, a título de estrangeiro, a
hospitaliclade na casa. Enquanto Clotilde lhe lavava os
pés, segundo Ç> santo costume dos cristãos daquela
época, Aureliano, inclinando-se para ela, disse-lhe bai­
xinho ao ouvido:
"Princesa, tenho a vos comunicar uma mensagem

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238 LÉON RIMBAULT

de suma importância, se é que me quiserdes indicar


um lugar onde eu possa conversar convosco mais se­
cretamente".
Clotilde, sem dúvida, fic\)U admirada, mas logo se
normalizou, habituada como estava a confiar na Pro-
vidência e a encarar todos os acontecimentos como
vindos de Deus; fez, pois, um aceno de cabeça e disse
ao mendigo:
"Podes falar."
- "O rei dos Francos, Clovis", diz Aureliano,
"enviou-me a vós; deseja, se tal for a vontade de Deus,
tomar-vos por espôsa e elevar-vos, a seu lado, ao tro­
no; para que não duvideis, entregou-me ele para vós
o seu anel."
Profundamente emocionada e toda trêmula, Cio-.
tilde recebeu esse penhor e não pôde dissimular um
movimento de alegria extrema.
Disse a Aureliano :
"Recebe estas cem moedas de ouro como recom­
pensa, e toma igualmente este meu anel. Volta a toda
pressa para teu amo, e dize-lhe que, se ele deseja espo­
sar-me, tem que mandar imediatamente embaixadores
para me pedirem em casamento a meu tio Gondebal­
do; que os enviados, depois de tomarem os salvos-con­
dutos necessários, não percam um só minuto; temo
muito a volta de um conselheiro de Gondebaldo, Aré­
dio, atualmente em missão em Constantinopla. Se éle
chegar antes da conclusão do negócio, impedí-lo-á cer­
tamente, e tudo falhará".

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AS HEROINAS DO DEVER 239

Esse poetico relato ajuda-nos a escrutar o estado


d'alma de Clotilde e de toda moça antes do casamento.
E' manifesto que Clotilde não tem, como Soede­
leuba, sua irmã, a vocação da vida religiosa. Desde as
primeiras aberturas de Aureliano, ela se emociona de
alegria, ele desejo, de impaciência. Sonhava, pois, com
o himeneu. A 'inclinação natural do coração é um dos
sinais de Deus. Sem dúvida, ela já ouvira falar do jo­
vem rei dos Francos, das suas vitórias, da sua altivez,
da sua bravura; talvez mesmo tivesse conhecimento
dos seus projetos <le casamento, e aguardava, palpi­
tante, a primeira ocasião de se comunicar com de.
Toda moça que sonha com os esponsais tem, n'al­
ma, desses recantos azuis e róseos em que o ideal toma
a figura dum herói.
A ambição mui legítima de se fazer honrar: clara
notitia cum laude (1), que afeta as grandes almas, não
deixava Clotilde insensível ante a eventualidade dum
casamento com um príncipe, dalí em diante poderoso.
Toda moça se ufana de se saber distinguida e esco­
lhida.
Por outro lado, tendo no coração, desde a infân­
cia, o sentimento bárbaro duma vingança a tirar do
assassino de sua família, duma justiça a cumprir para
recuperar o seu patrimônio, Clotilde, órfã e cativa, po­
dia desejar aliança mais forte <lo que a de Clovis·, cuja
francisca era temida dos próprios Romanos?
"Entre os bárbaros mais zelosos da lei cristã", es-

(1) S. Tomaz de Aquino.

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240 L:20N RIMBAULT

creve Henri Martin, "o Evangelho por muito tempo


não modificava o fundo do coração ... O gênio da bar­
baria prevalecia incessantemente".
Esta reflexão é justa. "Clotilde ainda estava mui­
to afastada dessa mansidão evangélica e dessa santi­
dade que devia iluminar-lhe a fronte com a auréola dos
milagres durante os últimos anos de sua vida" (] ).
Sem serem tão Lárbaros, os motivos que incitam
certo número de moças ao casamento, nos noisos dias,
são p0rventura menos terrenos?
Por que é que elas se casam?
- Para sacudirem o jugo dos pais. Por longos
anos suportaram, dizem elas, a ininteligente compres­
são duma autoridade mesquinha, estreita, totalmente
estranha às transformações sociais sobrevindas ao
mundo há um século. Certos pais não dão mostras de
perceberem que, aos dezesseis anos, a filha não é mais
a menina de dantes, sem iniciatiYa, absorvida pelo cui­
dado das suas bonecas.
Daí, na jovem geração, mna necessidade violenta
de emancipação, desconhecida de nossas avós.
- Para gozarem da liberdade. Essas donzelas le­
!'am tanto este termo pomposo no frontispício dos mo­
numentos públicos, nos discursos eleitorais dos seus

(1) Abbé Poulin, Santa Clotilde: "Cloti!de, depois de man­


dar incendiar e devastar doze léguas ele terra ele ambos os laelos
da estrada, entre os Burguinhões, exclamou: "Deus todo-poderoso,
dou-te graças. Vejo enfim começar a vingança de meus pais e
meus irmãos. "

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AS HEROINAS DO DEVER 241

próximos, nos manuais pedagógicos ou nos cursos de


literatura; ouviram tantas vezes, e com tanto entu­
siasmo, as mulheres casadas, suas amigas üe colégio,
falarem do encanto da independência, que elas têm fe­
bre dessa coisa desconhecida em que, segundo lhes
parece, se devem cone-entrar todos os bens.
Para não sofrerem a humilhação dum amargo de­
samparo e de um desdenhoso abandono. "Por que foi
que a Sra. se casou?" perguntavam a uma mulher in­
feliz. "Que quer?" respondeu ela; "minhas amigas es­
carneciam de mim por não achar espôso. Não pude re­
signar-me a essa afronta. Tomei o primeiro que apa­
receu."
Se fossem sinceras, v.anas acrescentariam: "Ele
era engenheiro, médico, deputado ... Prometiam-lhe as
esporas e a espacb elos adidos de embaixada!"
Mais desassorn bradamente, a aldeã diria: "Era o
"coq ele village" ! !
Para satisfazer gostos de prazer e de tola fri­
volidade.
"Um só desejo me agit a, uma só ambição me em­
polga e me possuc toda: ser tambem, um dia, uma des­
sas mulheres em quem a cidade tem os olhos incessan­
temente fitas; e, no dia seguinte a um grande baile,
deliciosamente lassa, ouvir ainda ao ouvido o sussur­
ro de declarações amáveis; ler, nas colunas dos jor­
nais, nas notas mundanas, que a mais bonita naquele
baile, a mais festejada e a mais bem rodeada, a mais
bem ataviada e a mais invejada, era eu, eu, eu, Catari-

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242 LÉON RIMBAULT

na, metamorfoseada em marqm.sa, ou em condessa de


não sei qu_e".
Eis aí, tomado ao acaso num romance, o que pó­
de agitar-se na cabeça duma moça pouco séria, a so­
nhar com o casamento.
Mas voltemos a Clotilde.
Aos motivos humanos que a induziam a aceitar
por espôso o rei Clovis, juntavam-se razões divinas,
dignas duma cristã e duma santa.
Que mais bela ohra do que submeter aos pés de
Nosso Senhor Jesús-Cristo aquele indomável, até alí
miseravelmente dado ao culto dos falsos deuses?
Podia ela unir em mais glorioso acôrdo a sua ad ·
miração e o seu amor a Clovis, do que ambicionando
convertê-lo à verdadeira religião?
Trazer o rei Salio ao batismo não era, ao mesmo
passo, conduzir a ele os guerreiros da sua "taba" e
marcar com o sêlo da cruz uma raça vigorosa, ardente
de um fogo apto a todos os heroismos do proselitismo
cristão?
Mas, fervorosa católica, devia ela expor-se aos
azares de um casamento com um pagão? "As uniões
desse gênero, sem serem precisamente proibidas pela
Igreja, eram geralmente encaradas por ela com des­
confiança, e Clotilde não podia ignorá-lo" (1).
Todavia, os escrúpulos da moça tombaram ante a
decisão unânime dos bispos do norte da Gália e da
Burgúndia.

_(l) Clóvis, por Kurth.

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AS HEROINAS DO DEVER 243

Em consideração dos interêsses supremos que


viam em jogo, eles tranquilizaram aquela alma receio­
sa, e lembraram-lhe que, mais de uma vez, segundo a
palavra do Apóstolo das nações: "O homem infiel foi
santificado pela mulher fiel".
Mas, consoante o testemunho de douto historia­
dor (1), estipularam, sem dúvida, para não exporem a
virgem a se tornar mãe duma família pagã, que os fi­
lhos saídos do casamento projetado receberiam o ba­
tismo.
Sempre foi essa, aliás, a sábia prática da Igreja.
Se Clotilde tivesse exigido um simples casamento de
razão e de sentimento, eu não ousaria, minhas senho­
ras, propô-la por modelo a vos'sas filhas. Mas, no es­
plendor dos fins sobrenaturais que decidiram do seu
consentimento pleno, Clotilde merece ser invocada co­
mo um dos anjos protetores cio grande sacramento
conjugal.
Aproximai-vos, pois, noivas, desejosas de cingir o
diadema com que Cristo exornou a sua mística espô­
sa: a santa Igreja. Aprendei quais são os nobres mó­
veis do matrimônio cristão.
O matrimônio dá a Deus almas. Incarna, de idade
cm idade, em todos os pontos do globo, num povo de
adoradores genuflexos, a fé fecunda do primordial
Crescite et multiplicàmini. Graças a ele, o Deus dos
nstros e das aves, dos germes e das flores, é tambem
o Deus �os eleitos: Propter prolem.

(1) Kurth.

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244 LÉON Ril'-,lBAULT

O matrimônio é o verdadeiro ceatro do amor


humano-divino.
Que há de mais excelente e de mais desejavel, de­
pois da honra e das inenarráveis doçuras do estado das
virgens, do que o sentimento que, do berço ao túmulo,
e mesmo nas profundezas do paraíso, une duas inteli­
gências, duas vontades, duas ternuras predestinadas
por Deus a se entre-ajudarem, a se consolarem e a se
aperfeiçoarem?
A honra da fidelidade, a perpétuidade e a unidade
no amor, eis o que reserva aos noivos o altar que lhes
alegra a juventude: Propter fidem.
O matrimônio não é tal .corno o têm descrito cer­
tos psicólogos de vistas c\1rtas: uma loteria abundante
em maus números, urna torre sitiada, uma viagem ma­
rítima de incidentes molestos, uma parelha combina­
da às cegas, um campo onde se chocam dois egoismos,
um negócio raramente feliz, um arrendamento, corno
qualquer outro, de três, seis nove anos, à vontade.
O matrimônio é uma vocação, uma cruz , um sa­
cerdócio, uma fonte de graças; tudo o. que contém ele
sublime, de forte, de suave, o termo: Sacramento.
E' por isso que esse contrato supõe a condição ela
vida sobrenatural: Propter sacramentum.
Felizes as alianças que preparam a penitência, o
pudor e a caridade. Como a de Santa Clotild�, têm elas
todas as bênçãos de Deus.

*
**
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AS HEROINAS DO DEVER 245

A união. de Clovis com Clotilde foi concluida em


492 ou 493.
"A imaginação popular entre os Francos interes­
sou-se singularmente por esse acontecimento da vida
privada do herói nacional ...
"Fez dela objeto duma multidão de ficções poé­
ticas" (1).
Conforme a crítica moderna, a lenda é que teria
imaginado a cólera de Gondebaldo, a fuga da sobrinha
num carro de bois, depois a sua corrida em rápido cor­
cel, etc. Tudo se teria passado numa paz perfeita.
"Uma embaixada solene, consoante o uso, foi ter
com a jovem noiva e trouxe-a ao noivo, que lhe viera
ao encontro em Villery, perto de Troyes, nos confins
dos dois reinos.
"A viagem foi uma verdadeira marcha triunfal;
os Gauleses, encantados de verem elevar ao trono cios
Francos uma princesa ela sua religião, rivalizavam de
entusiasmo com os antrustiões de Clovis" (2).
O consórcio teve lugar verossímilmente em Sois­
sons.
As solenidades desse dia memorável assemelha­
ram-se, sem dúvida, às núpcias de Sigisberto de Aus­
trásia com Brunehilde, tão pitorescamente reconstitui­
das por Agostinho Thierry (3).
"Chegaram, com seu séquito de homens e de ca-

(i) Kurth.
(2) Abbé Poulin.
(3) Norrativas dos tempos merovingios.

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246 LÉON RIMBAULT

valos, os condes 9-as cidades e governadores das pro­


víncias setentrionais da Gália, os chefes patriarcais das
velhas tríbus francas permanecidas além do Reno, e os
duques dos Turíngios.
"Nessa singular assembléia, a civilização e a bar­
baria ofereciam-·se lado a lado em diferentes graus.
Havia nobres Gauleses, polidos e insinuantes; nobres
Francos, orgulhosos e bruscos; e verdadeiros selva­
gens, todos vestidos de peles, tão rudes de maneiras
como de aspecto.
"O festim nucial foi esplêndido e animado pela
alegria; as mesas estavam cobertas de pratos de ouro
e prata cinzelados, fruto dos saques da conquista; o
vinho e a cerveja corriam sem interrupção em taças
ornadas de pedrarias, ou em chifres de búfalos de que
os Germanos se serviam para beber. Ouviam-se ecoar,
nas vastas salas do palácio, os brindes e os desafios
que se dirigam aos bebedores, aclamaçõf!s, risadas, to­
do o ruído da jovialidade tudesca".
- A união foi· feliz. Desde os primeiros dias, o
jovem rei bárbaro afeiçoou-se à espôsa por um amor
que nunca se desmentiu. Ela foi sempre a rainha do
seu coração, como era a rainha do seu povo.
Por seu lado, Clotilde trabalhava com todo o seu
poder na conversão de Clovis. Era a missão que se
atribuira.
Para chegar a essa grande obra, nada de debates
dogmáticos, mas o espetáculo permanente da piedade
sorridente e o exemplo encantador de todas as virtv.­
c:Ies.

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AS HEROIN AS DO DE VER 247

Todavia, Clovis ainda estava longe da conversão,


e o nascimento do seu primeiro filho, Ingo�iro, veiu
acusar de modo pungente a dissidência religiosa que os
separava.
Iam batizar a criança? A questão tinha importân­
cia capital. Acarretava, mais tarde, o ingresso, no cato­
licismo, da dinastia real e do povo franco. Clovis as­
sentiu.
Essa tolerância é o sinal mais patente do alto as­
cendente da jovem espôsa sôbre o seu coração.
Mas cruel decepção não tardou a pôr à prova a fé
da cristã: a criança ainda não depusera a veste branca
do batismo, e expirava. A violência da dor paterna ex­
plodiu em palavras de amargura: "O teu batismo ma­
tou-o", dizia ele; "se eu o tivesse consagrado aos meus
deuses, ele ainda viveria" Clotilde, longe de fraquejar
sob a tempestade que lhe quebrava as jovens esperan­
ças, mostrou a resignação duma alma santa:
"Dou graças ao Deus todo-poderoso e Creador de
todas as coisas, por não me ter julgado indigna de lhe
dar, do meu seio, um eleito para o seu celeste reino;
saído deste mundo com a sua alvura batismal, ele será,
bem o sei, recebido na felicidade de Deus" (1).
O ano seguinte consolou dessa morte cruet o casal
régio: Clot:lde deu à luz outro filho, Clodomiro, para
quem as eúplicas de sua mãe alcançaram ainda o ba­
tismo.
A criança começou a definhar, e Clovis exclamou,

(1) Bollandi, J.• Junii. - Grego. Tur., libr. II.

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248 LÉON RIMBAULT

enraivecido: "Podia acontecer a ele outra coisa que ao


irmão?"
"Êle foi batizado em nome do vosso Cristo, por­
tanto tem de morrer". Essa sinistra predição não se
realisou. Clotilde redobrou de preces, de gritos, de lá­
grimas, e a criança tornou à saude.
"Como é tocante, no seu papel de espôsa e de
mãe", escreve Kurth, "essa jovem mulher católica co­
locada junto ao rei bárbaro como seu anjo da guarda,
e que deve disputar o marido à idolatria e o filho ao
marido! Ela só tem por arrimo o seu Deus; mas o seu
Deus passa-a no crisol das dores mais amargas ; pare­
ce querer partir-lhe o coração e confundir-lhe a fé, sem
que ela deixe de glorificá-lo em meio às suas tribula­
ções, até que enfim tanta virtude alcance a recompen­
sa!"
Admirai, minhas Senhoras, a magnanimidade e a
constância de Clotilde, e ficai sabendo a que preço se
consegue a conversão duma alma. Não faltam, na nos­
sa sociedade contemporânea, as cristãs casadas com
·verdadeiros pagãos.
Elas têm quase sempre, como a nossa santa, o de­
sejo ardente de converter o irmão de sua eleição. E
devemo-las louvar por isso. Porquanto, que tortura
moral -para uma mulher católica o sentir, a c:1.da ins­
tante, que está cm oposição de crença e de pensamen­
to, senão de afeto, com o pai de seus filhos!
Tertuliano e Santo Ambrosio pintaram esse mar­
tírio das uniões díspares e falsas : Adsunt inter domes­
ticos parietes secreta martyrea,

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AS HEROINAS DO DEVER 249

Nem todos os maridos têm as delicadezas, o res­


peito, o amor de Clovis, o pagão, a Clotilde, a cristã.
Quantas vezes o pagão moderno se comporta sem
esêrúpulo com a mulher; imprudente ou perverso, vio­
lento ou cínico, nada temendo mais do que a influên­
cia da religião no lar conjuga.!! Trata-se, acaso, dos de­
veres mais sagrados - direitos elementares das almas
- a oração quotidiana, a abstinência ou o jejum, a
missa do domingo, a comunhão pascoal? Da parte dele
são só risadas acerbas, oposições sistemáticas, tirânicas
ingerências! Quero passar em silêncio certos clespotis­
mos mais íntimos em que o cego instinto prevalece sô­
bre a razão, e cuja desordem a moral cristã não póde
tolerar. E' preciso uma altiva coragem, minhas Senho­
ras, para encarar sem náusea ou sem angústia, tão te­
míveis e,·entualidacles. Sabem as moças tudo o que en­
cerram de lutas, de desencantos, de máguas, essas
alianças coixas e esses himeneus dissonantes?
Permití-me duvidá-lo. Certamente, os homens sem
fé nem sempr� são homens sem costumes. Por um ilo­
gismo assás frequente, há indivíduos, indiferentes em
matéria de religião, que são honestíssimos cidadãos,
excelentes maridos, pais de família ternos e dedicados.
Seja como for, nos casamentos, procurai, o mais que
puderdes, com a harmonia da condição e do caráter, a
harmonia das convicções. Sendo o casamento um ju­
go, nada ajuda a suportá-lo corajosamente como a co­
munidade das idéias· e dos princípios.
Mesmo porque, o espôso deve ser para a espôsa
"um chefe augusto, uma fronte coroada": Vir caput

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250 LÉON RIMBAULT

est mulieris (1). Daí, para a mulher que se quer casar,


a obrigação de só aceitar um homem digno dela em
tudo.
Às "tribulações inerentes à r-ondição conjug.i.l"
(2), inutil acrescentar a pior infelicidade: os cismas
das almas.
A maioria elas cristãs imaginam, no momento de
transporem o limiar do seu novo lar, que terão apenas
de advogar a causa do verdadeiro Deus, para trazerem
a Deus seus esposos. Clovis resistiu longo tempo às
instâncias de Clotilde.
Ela voltava à carg a para ganhar, em alta luta, a
alma elo marido. "Mas o rei não se rendia aos seus ro­
gos, contentava-se com sacudir a cabeça, e muito falta­
va para que estivesse pronto a renunciar ao culto dos
deuses germanos" (3). Sucede sempre assim, minhas
Senhoras. Os vossos sorrisos são encantadores, as vos­
sas lágrimas são tocantes, mas, para operar a conver­
são duma alma, é preciso mais outra coisa. Ainda
quando tivésseis uma ciência religiosa a toda prova,
uma paciência de anjo, uma vontade indomavel, um
zêlo de apóstolo (se uma destas quatro condições vos
faltar, nada conseguireis), teríeis ainda que exercer sô­
bre "o infiel" o prosselitismo duma conduta exemplar,
o magnetismo duma virtude sem sombra nem falha. E
ainda não é o bastante. Quem quer salvar as almas,

(1) S. Paulo.
(2) "Tribulationem carJ]is habebunt hujusmodi."
(3) Abbé Poulin.

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AS HEROINAS DO DEVER 251

paga-as a peso de sacrifício. Rezai, chorai, sofrei, e,


quando encherdes a taça expiatória, lembrai-vos de que
somos "servos inúteis" Contai, mas só então, com a
intervenção de Deus, ainda que fosse à custa de um
milagre. Esse milagre, Deus vo-lo deve, Deus o fará,
A sua fidelidade nunca engana. Clotilde fez a expe­
riência disto.
- Estamos cm 4CJ(í, ( :Io\'is está cm luta com os
Alamanos, no vale do H.cno. A história denominou esse
campo de batalha, decisivo para o futuro da Europa,
com este termo misterioso: Tolbiac! - Tolbiac, an­
gustiado como Waterloo, radiante como Austerlitz !
Escutemos na sua simplicidade, que e:içcede toda
eloquência, o rela.to de Gregório de Tours:
Os dois exércitos combatiam encarniçadamente, e
o de Clovis ia ser retalhado em pedaços. A vista disso,
o rei dos Francos, levantando os olhos ao céu, tocado
de compunção no fundo do coraç�-º e comovido até às
lágrimas, exclamou: "Oh Jesús-Cristo, oh tú que Clo­
tilde afirma seres o Filho de Deus vivo, se me deres a
vitória sôbre meus inimigos, crerei em ti e far-me- ei
batizar em teu nome!" Tantum ut eruar ab adversáriis
meis. Dizendo Clovis essas palavras, os Alamanos vol­
taram as costas e puseram-se em fuga" (1). Que cena!
Tudo nela é simples, grande, terrível, prodigioso. Clo­
vis, na hora do perigo supremo, à beira do pélago em
que vai abismar-se a vida de seu povo, não hesita mais:
sai resolutamente do paganismo e lança, na balança.

fl) Gregório de Tours, II, XXX.

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252 LÉON RIMBAULT

dos séculos, o peso da sua palavra decisiva. Sob o in­


fluxo da graça, sem dúvida, mas na plenitude da sua
liberdade, lança esse grito memorável que desloca o
eixo da história e crea a primeira das nações católicas.
"Esse grande dia", disse Kurth, "só tem par no da
Ponte Milvia; um encerrara os anais do mundo anti­
go, o outro abre os anais do mundo moderno".
"Clovis venceu os Alamanos", dirá em breve o
vencedor à verdadeira triunfadora; "porém Remígio e
tú vencestes Clovis".
E Clotilde depositará o ramilhete da sua alegria
agradecida aos pés do Mestre adorado, neste grito de
humildade sublime: "E' ao Deus dos exércitos que é
devida a glória desse triunfo".
Sim, minhas Senhoras, não nos cansemos de repc­
tí-lo: Quando uma alma se rende deíinitivamente ao
dever e cai, ditosa cativa, ante o trono da. Verdade;
quando, com brusco movimento, decidindo-se com a
rapidez do raio, se lança nos braços elo Deus Salvador,
o problema psicológico da sua conversão só acha a so­
lução definitiva na pura e gratuita atração do Pai que
está nos Céus. Como dizia Santo Inácio, "cumpre que
ajamos como se o êxit•J dependesse só de nós, e, de­
pois, esperemos tudo de Deus, de quem ele depende ex­
clusivamente"
- Clovis tinha p:--::séia de r-c:ccber o batismo. Clo­
tilde designou São Vaast para fazer ao seu real espôso
as catequeses preparatórias desse grande ato de fé. S.
Remígio teve também com ele numerosas conferênc-ias.
A tradição referiu-nos os gritos de amor e de cólera.

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AS HEROINAS DO DEVER 253
do rei sálio quando ouviu ler a narração da Paixão do
Salvador: "Ah! não estar eu lá com meus Francos 1";
cu os seus transportes ele zelo às c;wrtações do bispo
de Reims: "Irei ter com meus guerreiros, e exortá-los­
ei a se fazerem cristãos como eu" To<lo o ardor do
neófito flameja nessas palavras soberbas. - Enfim tu­
do estava morto.
- No dia de Natal de 496, pelas 9 horas ela ma­
nhã, o arcebispo Remígio esperava à porta da catedral
àe Reims. A hora do batismo de Clovis e dos seus
Francos ia soar.
O espetáculo era arrebatador. Escutemos o velho
Hincmar: Desde a residência real até o templo de San­
ta Maria, véus multicores, grinaldas de folhagens, bran­
cas tapeçarias haviam transformado o percurso.
O portal da basílica cintilava de mil fog-os. No in­
terior, clérigos queimavam perfumes que alcgraYam o
augusto recinto. Sôbre os mármores haviam derrama­
do bálsamos preciosos.
Entretanto uma multidão incontavel comprime-se
nas ruas. Atira flores; bate palmas; canta hinos.
Natal! Natal!
Eis os leudes, de uniformes brilhantes, ufanamente
montados nos seus corcéis fogosos!
Eis as fanfarras jubilosas.
Eis os bárbaros a cantarem Tolbiac, Cristo, o por­
vir.
Eis os manjes, os sacerdotes, longa teoria que se
desenrola às claridades das velas bentas, ao murmúrio
harmonioso dos salmos.

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254 LÉON RIMBAULT

Eis os bispos: S. Vaast, S. Solano, S. Princípio,


chamados por S. Remígio para a regeneração de todo
um povo.
Finalmente, eis o glorioso neófito :
Imenso grito de alegria indescriptível acorda todos
os écos.
Eis o rei!!!
Ele avança, radiante. Clotilde, a triunfadora daque­
le dia, caminha junto dêle ! Após ela, vêm Lantilde e
Albofleda, princesas elo sangue. Depois os a�trustiões
de Clovis; seus soldados armados da francisca. . . En­
fim, os prisioneiros de guerra de Tolbiac, carregados
dos seus grilhões, que dalí a pouco, como dom de jubi­
loso advento, o vencedor quebrará.
Que espetáculo! ...
No limiar da basílica, Remígio aguarda o altivo Si­
cambro! A Igreja Católica aguarda a França!
"Pai santo", exclamou Clovis, "é esse então o Céu
de que tanto me falaste?"
- Não, meu filho, respondeu sorrindo o pontífice,
é o caminho que a ele conduz.
E acrescentou, com a mão estendida para a cuba
da regeneração: "E eis alí a porta!"
Então, o chefe dos Franco-Sálios desceu à larga
bacia de pórfido, cheia dágua batismal, onde sobrena­
dava o crisma, milagrosamente trazido por uma pom­
ba, a pedido de S. Remígio.
Conhece-se a palavra do augusto batizante, ao der­
ramar a água santa:

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AS HEROINAS DO DEVER 255
"Baixa a fronte, orgulhoso Sicambro !
"Queima aquilo que adoraste. Adora aquilo que
queimaste ! "
Depois batizou-o em nome ela Santíssima Tri!l­
dade.
Três mil companheiros d'almas seguiram Clovis à
piscina da salvação.
"E quando dela saíram cristãos, poder-se-iam ter
visto sair cem eles catorze séculos de império, a cava­
laria, as cruzadas, a escolástica, quer dizer, todo o he­
roísmo, a liberdade, as luzes modernas. Uma grande
nação principiava no mundo" (1).

*
**
A Providência, depois de empregar Clovis trinla
anos na creação duma obra predestinada, só lhe deixou
tempo para preparar o seu túmulo. Ele foi arrebatado
por morte precoce, na idade de quarenta e cinco anos,
a 27 de Novembro de 511. "A rainha Clotide, depois da
morte do marido, veiu a Tours. Consagrou-se ao ser­
viço de S. Martinho, na basílica deste, vivendo em in­
teira castidade, cheia de bondade e visitando raramen­
te Paris. Era venerada por todos. A esmola enchia-lhe
os dias, e a noite passava a vigiar e a orar.
"As suas larguezas não cessaram de derramar-se

(1) Mons. Mateus, arcebispo de Tolosa.

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256 LÉON RIMBAULT

sôbre os mosteiros e sôbre os lugares santos. Insensí­


vel às vãs preocupações do século, essa mulher, que ti­
nha por filhos reis, era um modelo de humildade. Não
era uma rainha, era, ao pé da letra, uma fiel e concien­
ciosa serva de Deus"
E' nesses termos que Gregório ele Tours nos pinta
a viuvez ele Santa Clotilde (1).
Ela sobrevivia ao real batizado de Reims para en­
trar, sozinha, na região da dor. O milagre de Tolbiac,
trazendo-lhe inenarráveis alegrias, tornava-a tributá­
ria, aos olhos de Cristo, seu aliado na conversão de
Clovis e na conquista do coração ela França, de um
longo e sangrento martírio. Clotilde não cessou mais
de sofrer. Pálida, com os olhos em lágrimas, com a al­
ma dilacerada, ela nos aparece, de pé sob o golpe da
provação que não cessa de ferí-la, como o invencível
poder da paciência cristã.
A frase de Chateaubriand é aquí ele impressionan­
te realidade:
"As rainhas da Terra foram vistas chorando como
simples mulheres, e causou admiração a quantidade de
lágrimas que contém os olhos dos reis".
Clotilde não anda mais senão por entre esquifes e
sob salpicos de sangue.
Viu seu primo, o rei Sigismunelo de Borgonha,
trucidado com os filhos, e os caeláveres atirados no
fundo dum poço; viu o assassino deles, Clodomiro, seu

(1) III, XVIII.

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AS HEROINAS DO DEVER 257

próprio filho, decapitado por sua vez pelos muµigos;


viu Clotilde, sua filha, expirar cm plena juventude em
consequência dos maus tratos que a fez suportar Ala­
rico, seu marido; viu o morticínio espantoso de seus
netos Teobaldo e Gunther; viu as lutas fratricidas de
seus filhos Childeberto e Clotário.
Antes delâ, morreram Martinho e Remígio, seus
santos conselheiros; Gcno\"cva, sua angélica amiga;
Radeguncla, sua nora. ÇJuc hecatombes em torno dessa
mulher l
"Submissa à alta vontade que mais pesado fizera,
com os anos, o fardo das suas tribulações, ela o carre­
gara sem murmuração e bendizendo a Deus, e agora,
desapegada de todo bem terreno, achava-se madura
para o Céu" (1).
Finou-se, enfim, em Tours, a 3 de Junho de 545,
na idade de mais de setenta anos, cheia de dias e de
boas obras.
Não sei que mais admirar, minhas Senhoras, em
Clotilde: se a moça ardente e pura na sua fé, se a es­
pôsa toda consagrada, inteligência e coração, à captura
divina da alma irmã da sua, se a nobre viuva ajoelhada
sôbre túmulos, na luz durr,a esperança superior a todos
os lutos.
Mesmo porque, tudo se harmoniza e se funde na
radiosa auréola da santa. Caí, pois, de joelhos_. nrnlhe­
res cristãs, aos pés da meiga orante que, de braços

(1) Kurth.

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258 LÉON RIMBAULT

abertos, olha para o céu; da valente e piedosa rainha,


a primeirã protetora, com Genoveva, da França católi­
ca. Aprendei, na sua escola radiante, a pedir a Deus, a
vos desapegardes da Terra, a salvar as almas. Mas
compreendei a que preço de lágrimas e de sangue Deus
põe ( quer se trate duma alma ou dum povo) as con­
quistas da sua graça e os triunfos da Mulher-Apóstolo 1

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BRANCA DE CASTELA E AS MÃES

Minhas Senhoras.
O século treze é grande porque foi santo. Reflete
mais que qualquer outro século, como São Luiz reflete
a Deus mais que qualquer outro rei. Mas, para prepa­
rar esse século e esse rei, Deus se serviu da sua Igreja
e duma mulher. Sôbre o túmulo dessa mulher, no mos­
teiro de Maubuisson, escreveram este epitáfio: A Se­
nhora Rainha Branca, Mãe do Senhor São Luiz.
De todos os elogios que dela tenham sido feito::.,
aí está o mais simples, o mais completo, o mais su­
blime.
Que dignidade maior do que a realeza? Que amor
mais forte do que a maternidade? Em Branca de Cas­
tela, saudemos a realeza de todas as mães.

**
Branca nasceu, em Burgos, pelo ano de 1185, de
Afonso IX, rei de Castela, e de Eleonora Plantagenet,
filha de Henrique II, rei da Ing-Iaterra, e irmã dos reis
Ricardo e João.
Aquela que foi, no século treze, rainha regente de
França, não nos pertence, pois, ele nascimento. A Es-

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260 LÉON RIMBAULT

panha gerou�a, preparou-a virilmente para a sua mis­


são e no-la deu.
A fama dessa pura e jovial beleza perpetuou-se até
nós; conhecemos a sua graça e o dom que ela possui a
de se fazer amar. Sabemos dela: a sua estatura eleva­
da, flexível e majestosa, a sua alvura notável, o seu
semblante meigo e fino, de admirável firmeza.
Os cronistas não param em louvores a respeito
dela:
"Branca, boníssima e belíssima e franquíssima
donzela, e assisada duramente" (1).
"Ela foi verdadeiramente amada de Deus e dos ho­
mens a quem serviu" (2).
"Foi a mais atilada das mul�res do seu tempo, e
a França recebeu do Céu, ao mesmo tempo que Bran­
ca, todos os bens" (3).
Felipe II asseverava, "pela lança de S. Tiago, que
nunca mais agradável e graciosa espôsa se vira em
França".
"A doçura da sua palavra, as suas graças e aquela
régia majestade que lhe brilhava nos olhos, ganhavam
o coração de todos os Franceses e lhos tornavam du­
plamente sujeitos; o seu discurso tinha tantos atrati­
vos e tanta fôrça, que nada se lhe poderia recusar, e a
sua beleza era conjuntamente tão poderosa e tão mei­
ga, que ela se fazia igualmente amar e adorar.

(1) Hist. de França, t. XVII.


(2) Guilherme de Nangis.
(3) Godofredo de Beaulieu.

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AS HEROINAS DO DEVER 261
"Sua alma era embelezada por todas as qualidades
amáveis; seu gênio mais que humano, capaz das altas
empresas e das mais difíceis execuções: regendo todo
o conselho de França desde que nele ingressou, e do­
minando em todos os negócios, sôbre 1s mais possan­
tes espíritos, qt.e ela soubera trazer ao seu sentimento,
e, se assim se deve dizer, fazer dobrar sob as suas leis.
Filipe II, seu sogro, reconhecendo a fôrça dos seus
conselhos, não se envergonhava de submeter-se a êles.
O marido dependia absolutamente dela, e, se o seu
grande amor não o tornasse desculpável, dependia
mesmo mais do que o deve um homem e um prínci­
pe. Por ser benigna e mansa, não era destituida de am­
bição, que é o fogo das belas almas." Que retrato, mi­
nhas Senhoras! Ele é traçado por mão <le mestre. To­
mo--o emprestado a Mézeray, "cujo toque um pouco
rude e às vezes corneliano", diz Sainte-Beuve, "se
abranda para falar de Branca, que por ninguem foi me­
lhor compreendida".
Graça, firmeza, coragem: eis aí Branca na tríplice
radiação da sua realeza.
A energia � a nota dominante do seu caráter. A
educação toda régia e viril que ela recebera dera-lhe à
alma uma têmpera de aço. A magnanimidade acompa­
nhava em todas as suas medidas a princesa formada
desde a infância nos hábito� do govêrno. Nada en­
grandece mais a vontade do que aplicar-se a grandes
desígnios.
Nada atrai a nossa admiração como a virtude de
fôrça numa mulher. Tantas vezes a temos visto enter-

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262 LÉON RIMBAULT

necer-se e chorar, esmorecida e desanimada, desde os


primeiros obstáculos que encontra! O contrário, nela,
quase se nos afigura um <::mpréstimo feito ao nosso
temperamento, e, segundo a palavra da Bíblia, "a in­
serção duma vontade viril na sua mentalidade femini­
na: feminae cogitationi masculinum animuni inse­
rens ".
Na exploração do "eterno feminino", como diz
Bossuet, mesmo enfeitado dos encantos da sua pieda­
de costumeira: devoto femíneo sexu, esperamos encon­
trar antes a graça da rosa do que a robustez do carva­
lho.
Quem descobrirá a mulher forte? Mulierem for­
tem quis inveniet? E' um tesouro escondido nos con­
f ins do mundo, procul de ultimis finibus terrae. Branca
de Castela, essa incarna a fôrça.
A fôrça patenteia-se nas suas palavras, nas mas
obras, no seu modo de compreender as coisas e de go­
vernar os homens.
"A bondosa, a cortês, a amiga da gente pobre",
"a bendita esmoler das igrejas e elas choupanas", é., em
todas as circunstâncias que a põem às voltas com os
homens, duma firmeza e duma brandura, duma vonta­
de e duma prudência, capazes de desnortear a estraté­
gia, de vencer toda a resistência do sexo forte. Jamais
o provérbio teve mais frequente e m.ais frisante aplica­
ção: O que a mulher quer, Deus o quer. Mão de ferro
em luva de veludo.
Colho, ao acaso, entre a riqueza dos documentos,
esta anedota do velho Joinville:

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AS HEROINAS DO DEVER 263

"Luiz VIII, marido de Branca de Castela, foi con­


duzido à Inglaterra. Prisioneiro, precisa de dinheiro. O
sogro recusa enviar a quantia pedida.
"E o rei diz que, pela lança de S-. Ti2.go, absoluta­
mente não o faric)., nem que fosse excomungado. Quan­
do a Senhora Brand soube disso, veiu ter com o rei e
lhe disse:
"- Como, Senhor, deixareis então vosso filho
morrer em país estrangeiro? Senhor, por Deus, ele de­
ve ser herdeiro depois de vós, enviai-lhe o que lhe é
preciso, ao menos os rendimentos do seu patrimônio.
"- Certo, Branca, diz o rei, absolutamente não
o farei.
Não, Senhor? diz a dama.
" Não, verdadeiramente, diz o rei.
" Fica então sabendo bem o que eu farei, diz a
dama.
" - Que fareis, pois? diz o rei.
"- Pela bendita Mãe de Deus, tenho belos filhos
de meu senhor, penhorá-los-ei, e hei de achar quem me
empreste sôbre eles."
"Então deixou o rei e saiu, como insensata. E
quando o rei a viu assim ir, cuidou que ela falava ver­
dade. Mandou-a chamar e disse-lhe: "Branca, dar-vos­
ei do meu tesouro tal como quiserdes, e fazei o que
quiserdes e o que bem vos parecer".
"- Senhor, diz a Senhora Branca, dizeis bem".
"E então foi entregue o grande tesouro à Senhora
Branca, e ela o enviou a seu senhor".
Que dizeis, minhas Senhoras, desse "savoir-faire"

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264 LÉON RIMBAULT

tão hábil quanto obstinado, dessa estratégia sábia que


veste os conselhos de pedidos, que t:.mprega, com arte
consumada, os meios decisivos: lágrimas, desolação,
desespero, resenas supremas ç!a mulher, às quais o ho­
mem não sabe rl�sistir?
Dar o assalto e resistir firme são, consoante Santo
Tomaz, as duas manifestações da virtude de fôrça:
Fortitudinis est sustinere et aggredi. Nesse ponto, p ou­
cas mulheres são entendidas como Branca de Castela,
nfo é exato?
Quando ela Yinha ao encontro do rei seu espôso,
então no sul, soul'e subitamente da morte dele: "Onde
está meu senhor?", diz ela. O pranto de Luiz IX, a
sombria tristeza do "chanceller" Guérin responderam­
lhe o bastante. Ela soltou um grande grito e caíu para
trás. Eis aí o amoL Mas eis aquí a fôrça:
"Só a morte", diz Mézeray, falando de Luiz VIII
e de Branca, "só a morte podia separá-los, tão unidos
viviam êles havia vinte e seis anos; e, se a coragem
invencível da nossa princesa não se tivesse oposto à
dor dessa separaçã(I, esta os teria juntado. O seu pesar
foi· sem igual como o fôra a sua chama, porem maior
ainda foi a sua constância.
"Ela consolou-se enfim dessa aflição pelos penho­
res preciosos que o rei Jhe havia deixado, entendo vá­
rios filhos".
Graças a Deus, minhas Senhoras, é ainda isso o
que dá a muitas viuvas a coragem de viver. Na horren­
da desdita que as dl·spedaça, elas se esquecem de si
mesmas para não mais pensarem senão nos outros.

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AS HEROINAS DO DEVER 265

Conservar aos filhos, com cioso cuidado, o seu pa­


trimônio de honra, é ainda, para elas, uma maneira to­
cante de evocar a lembrança do desaparecido, de crear­
lhe, por uma fidelidade sem desfalecimento, uma sobre­
v_ivência de amor que irradia através das sombras do
túmulo.
"Com outra mulher que não Branca", diz He1ui
Martin, "a obra de Filipe Augusto teria sido des­
truida.
"Mas aquela mulher era a maior que usou a corôa
na Gália, desde a ma compatriota Bnmehilde; ela era
digna de reger e defender a herança de Filipe Augus­
to, seu sogro; tinha a sêcfe e o gênio do poder, no mes­
mo grau que o próprio Filipe, possuía o vigor, a cora­
gem, a pcr�evcranc;a, todas ns virl1.1<ks viris, sem nada
perder do g1·ilo 11<·111 <las g-raras i11:;i1111antes do seu sexo.
"Essa aliiva e i111periosa creal11ra subjugava os co­
rações mais do que os atraía; porem os afetos que im­
punha eram inalteráveis. Encontrou fidelidade cons­
tante nos homens que se dedicaram a ela."

Em Branca de Castela, a mãe esteve à altura da


espôsa. A 25 de Abril de 1215 nasceu em Poissy, ao re­
picar álacre dos sinos que festejavam o dia de S. Mar­
cos, o real infante Luiz IX.
Súbito, os repiques cessaram.
"Donde vem esse grande silêncio?", perguntou a
mãe do recem-nascido: "Monjes nem clérigos ousam

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266 LÉON RlMBAULT

perturbar o vosso repouso com tanto barulho", foi-lhe


respondido.
"Retomem o alegre carrilhão e ponham e!:1 repi­
que todos os sinos, diz a princesa; devemo-nos alegrar
e agradecer a Deus que nos dá um filho".
Branca não quis beij.á-lo na fronte enquanto ele
não recebeu o batismo. Grande exemplo, para as mães
cristãs, dum espírito de fé tornado, ai!, cada vez mais
raro! Fílii matrizant, dizem. Na argila do corpo, os fi­
lhos são translúcidos do fogo de ideal que irradia do
coração das mães.
A alma de S. Luiz será digna da alma de Branca;
e a vib-ratilidade da sua ternura por Deus ressoará nes­
ta palavra de ouro: "Foi aí que recebí a maior honra
de minha vida"; e ele se ufanará de assinar: "Luiz de
Poissy".
Não se acreditava então derrogar o respeito devi­
do à liberdade do homem, alistando-o desde a primave­
ra da sua vida, antes mesmo que ele pudesse dispor de
si mesmo, no serviço de Nosso Senhor Jesús-Cristo.
Adianta.udo-se assim ao mal, a Igreja Católica, além de
não faze�1Pais do que obedecer a seu divino Mestre,
confere às almas os seus direitos imperecíveis de "can­
didatas à eternidade" (1). Mal é, portanto, que se te­
nha vindo a achar pesado demais o fardo da glória ce­
leste e demasiado inebriante a taça da vida eterna.
Por isso, um abismo separa de Luiz IX, filho de
Branca, o Emílio de Jean-Jacques Rousseau.

( 1) Tertuliano. "Candidatus reternitatis ".

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AS HEROINAS DO DEVER 267

Há entre eles a diferença do assisado e do garoto,


a antítese da educação e da criação.
O papa Inocêncio IV (1), numa carta que escre­
veu a Branca, rende homenagem a essa pedagogia cris­
tã, única mãe das virtudes sólidas: "Todos os fiéis
unem ao elogio de vossos filhos o vosso próprio elo­
gio; porque, desde a infância, lhes haveis ensinado o
temor do Senhor e o seu amor, os haveis ensinado a
gostar do caminho reto e salutar"
Branca foi uma educadora admirável.
O espírito, o coração, a alma, o corpo : nada foi
descurado para fazer de Luiz IX um rei perfeito. Cul...
tura intensiva e extensiva do homem, nada lhe foi dei­
xado em abandono.
"Ela o entregava (2) para guardar e encerrar àque­
les que ela cuidava serem suficientes a esse respeito, e
entregava-o a boas pessoas" Wadding, nos Anais dos
Menores, cita os Franciscanos e os Dominicanos que
ela encarregou dessa grande obra. Luiz IX aprendeu a
cantar os salmos e os hinos. Ela explicava com ele as
santas letras, os Padres e os ofícios canônicos. Aos
monjes ela juntou cavaleiros que o instruÍ®)lll em to­
do gênero de conhecimentos e de desportos.
Luiz pescaya de rêde, montava a cavalo, caçaya
nos bosques reais, transpunha fossos, escalava muros,
afrontava as intempéries do ar (3). O ilustre P Didon,

(1) Bolland, t. XXXIX, p. 289.


(2) Vida de S. L1:ia, pelo confessor da rainha Margarida.
(3) Mlle. de Vauvi//iers, t. 1.

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268 LÉON RIMBAULT

·que queria desenvolver entre nós a energia do múscu­


lo, não teria desaprovado esse método. füe é de todt>s
os tempos e de todas as terras. Faz homens.
"A Senhora Branca era verdadeiramente honesta
em palavras e em feitos, e com tudo isso• reta e beni­
gna, e alegrando-se com todo bem, e fazia-o quanto
podia; e todo mal lhe desagradava."
"Ela inspirava a Luiz um grande amor do seq
povo, formava-o no ,trabalho, e não receiava mesmo in­
fligir-lhe as punições em uso naquele século". Trata­
se, evidentemente, aquí cio chicote , conforme, digamo­
lo, aos conselhos da Sagrada E:;critura e a toda a ve­
lha educação francesa. Todas as adocicadas e frágeis
mamães da nossa época elevarão o "lam:nto" da sua
compaixão escandalizada. Mas Henrique IV, Luiz
XIV, como S. Luiz, suportaram, em tempo oportuno,
a sábia e severa correção da férula. Em que, no entan­
to, temeriam esses altivos porta-espadas e porta-cetros
um paralelo com os pintainhos delicados e friorentos
que certas mães, mais ternas que fortes, escondem sob
a asa, e a quem, sob um abrigo de pluma e de fragili­
dade, espellam salvaguardar de toda frialdade e de to­
d,o choque?
Ela não sofria que, a exemplo de muitos fidalgos,
ele adotasse certos modos de jurar: um dia, Luiz IX
jurou pelos santos desta casa; Branca repreendeu-o vi­
vamente, e desde então ele não disse mais senão: "Em
nome de mim". Mais tarde, disse simplesmente: Sim
e não.
Velava com cioso cuidado pela pureza do filho.

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AS HEROINAS DO DEVER 269

Dois cavaleiros fiéis, Pedro de Soisi e Pedro de Laon,


do,:-miam alternadamente ao pé <lo leito real.
Ela mesma levantava-se, de noite, e, nas trevas,
sem ruido, vinha curvar-se, anjo das vigilantes prote­
ções, sôbre o príncipe adormecido. Se, a vida toda, Luiz
foi o rei mais continente do mundo, foi à sua mãe, de­
pois de Deus, que o deveu.
"Eu preferiria ver-vos morto, caro e belo filho, di­
zia-lhe ela a miude, do que manchado dum só pecado
mortal".
Significava isso que o amasse menos do que outra
mãe? Muito pelo contrário. E' como si ela falasse as­
sim:
"Deus me é testemunha, meu filho, e vós mesmos
deveis sentir, quanto meu amor é intenso. Como não
haveria eu de ter por vós a ternura mais profunda?
Acaso não sois par mim a lembrança viva de meu au­
gusto espôso, vosso pai? Revejo-o cm toda a vossa
pessoa. E' o seu olhar, é o seu .gesto, o seu porte, o
timbre da sua voz. Evocais em minha alma a mais cara
imagem de minha vida. Poderia eu não reportar sôbre
vós o excesso do meu amor recalcado?
"Por isso, meu filho, amo-vos com a dupla chama
que póde ter no coração uma espôsa feliz, uma mãe de­
vot2.da. Sois tão bom, tão prestativo, tão delicado, meu
filho! Mas, se eu só possuísse esses afetos terrenos,
bem belos certamente, mas efêmeros, visto que se li­
gam apenas a encantos finitos, eu não teria todos os le­
nitivos que reclama a minha fé ele cristã. As mães dos

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270 LÉON RIMBAULT

cordeiros e dos rouxinóis exceder-me-iam talvez nesse


sentimento de admirável instinto e de que todo animal
cerc a os filhos.
"B' por isso que me apego mil vezes mais à beleza
de vossa alma do que à de vosso corpo. Nessa 1 uz so­
brenatural, apareceis-me tal como vos fez o santo ba­
tismo: rei _çla creação, irmão dos anjos , herdeiro dum
eterno reino, filho privilegiado de Deus. Por isto, meu
caro e meigo filho, se eu não pudesse ver-vos conser-
var os vossos encantos exteriores a não ser pela perda
desses bens infinitos, não hesitaria um só instante; ape­
sar do horrível esfacelamento de todo o meu sêr de
mãe, eu preferiria ver-vos expirar em meus braços, ou
deitado no ataude, do que mandiado dum só pecado
mortal. Sem dúvida, a vista do vosso cadáver imovel e
gelado, far-me-ia curtir mil agonias. Mas, com o auxí­
lio de Deus, eu me consolaria, pelo pensamento de vos
tornar a encontrar um dia imortalmente belo, e esque­
ceria· o vosso simulacro humano, para não mais sonhar
senão com a vossa fórma divina.
"Pereça esse corpo que eu vos dei, oh caro e belo
filho, mas viva para sempre vossa alma que vem de
Deus!"
Eis aí o que contém, com muitos outros sentimen­
�os ainda, o grito sublime de Branca de Castela.
Podemos aproximá-lo da palavra que ela disse um
dia a sua filha Isabel. Certo dia percebeu que a jovem
princesa olhava com encanto a extraordinária beleza
da sua mão 3 rodar o fuso: "Essa mão é perecível",

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AS HEROINAS DO DEVER 271

disse-lhe Branca, "em breve estará sêca; cultivai as


belezas da alma, estas não perecem" ( 1).

*
**
Compreende-se que, com semclha11ll' educação,
dois dos filhos de Branca de Castl'la, :-;. l ,11iz e a bem­
aventurada Isabel, iC'nham asrcndido ao:,; altares. Mas
sua mãe não os seguiu até aí. E' êssc um dos espantos
da história. A imparcialidade do psicólogo manda-nos
pôr a nú o segredo dessa anomalia. Falar das relações
de Branca _ge Castela com sua nora, Margarida de Pro­
vença, é, do mesmo passo, por via dedutiva, tocar no
ponto doloroso da vida de grande número de mães.
Eterna miséria do coração humano, de que as mais
enérgicas naturezas tanto custam a curar-se!
O rei ia fazer vinte anos. A regente julgou chega­
da a hora de escolher-se uma espôsa. Deitou, pois, os
olhos em Margarida, filha mais velha de Raimundo
Béranger, conde de Provença, e de Beatriz de Saboia,
''uma elas mais graciosas figuras da história" (2).
"Era ela de tal nascimento, que não havia mais
gentil mulher entre os dois mares, diziam os que a co­
nheciam, nem mais bela e cortês (3), leal e fina don­
zela" (4).

(1) B'outaric, Revista das Q,!estões hist6ricas, 1-X-1897.


(2) Mlle. de Va11villiers, t. I.
(3) Monskes, Hist. de França, t. XXII.
( 4) Tiilernont, t. II.

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272 LÉON RIMBAULT

No mais, de grande piedade e inocência, exornada


elos costumes mais puros.
O casamõ!nto teve lugar em Sens, no sábado 27 de
maio de 1234, e no dia imediato a jovem rainha foi sa­
grada e coroada pelo arcebispo na igreja de Santo Es­
tevão.
Era essa, manifestamente, a união ideal, tão terna
quão duradoura, de dois corações predestinados um ao
outro.
O jovem rei dera à princesa um anel entrelaçado
ele lírios e margaridas, cujo engaste trazia a imagem de
Nosso Senhor, com esta divisa: "Fóra deste anel não
há amor!"
Deus, a França e Margarida I que podia faltar à
tríplice corôa de glória e de alegria do mais amavel e
mais 5anto dos reis? Faltavam-lhe os espinhos da pro­
vação com que, ai!, muitas vezes o amor materno, ain­
da sangrando do sacrifício, lancina a ventura dos jo­
vens casais.
As inhabilidades, os ciumes, as ust.trpações indis­
cretas, at; ingerências intempestivas, as recriminações
e os arrufos acrim0niosos revelam apenas sobejamen­
te o quanto pesa ao coração das mães a lei primordial
das separações obrigatórias que dilaceram o lar para
multiplicá-lo: Relinquet homo patrem et matrem, et
adhaerebit uxori suae, et erunt duo in carne una 1
Mas como! as mães já não serão exclusivamente
amadas? Outra mdher reinará sôbre o coração do fi­
lho? Para uma estranha irão os beijos, as carícias, os
pensamentos deste? Oh! sim, minhas Senhoras. E' a

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AS HEROiNAS DO DEVER 273

lei. O amor, tal como os rios, não reflue para a fonte.


Haveis amado vossos filhos mais do que eles vos ama­
rão. O casamento, que é a aurora da felicidade deles
( acredita-se isto, ao menos aos vinte anos!), lança sô­
bre a vossa mai�rnidade, até então radiante, todas as
melancoli:i.s do declínio. E é por isso que, oh mães, os
esponsais que põem em alegria o coração de Margari­
da de Provença, fazem chorar o coração de Branca de
Castela.
As mães são amáveis, as avós são amantes: pou­
cas sogras são longo tempo amadas.
Por que isso?
Por que poucas sogras sabem esquecer-se comple­
tamente; sacrificar-se, com desprendimento, à felicida­
de alheia; condenar-se resolutamente ao isolamento do
lar, à ablactação do coração. A generosidade da sua
imoláção envolveria na auréola duma beleza divina a
sua alma, a sua vida, o seu próprio nome. A sogra não
é a mãe daquela que forma uma coisa só com o esposo?
As estreitezas 'e as tenacidades dum exclusivismo
importuno, ai!, têm ericado o amor delas de todo o
aparato temível e oneroso duma guerra injusta e sem
piedade (1).
Não terão os franceses, em certos casos, razão de
chamar a sogra de mater belli; em vez de "bela-mãe"?
Branca de Castela, sem embargo das suas admirá­
veis qualidades, não soube eYitar esse defeito. Ciumen­
ta em excesso do coração do filho, muito absoluta no

(1) "Bela-mãe": Mater belli, Marte de sáias.

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214 LÉON RIMBA UL't

exercício da sua autoridade, viu ela em Margarida uma


rival? Joinville parece tê-lo acreditado:
"As durezas que a rainha Branca fez à rainha
Margarida foram tais, que a rainha Branca não queria
sofrer que seu filho estivesse na companhia da mulher,
nem mesmo à noite quando ele ia deitar-se com ela.
A hospedaria onde ela preferia ficar, era em Pontoise,
ect�e o rei e a rainha, porque o quarto do rei era em
cima e o quarto da rainha em baixo. E estes haviam as­
sim combinado as suas tarefas, que se falavam num
parafuso ( escada em espiral) que descia dum quarto
ao outro, e tinham suas tarefas tão vigiadas que, quan�
do os porteiros viam vir a rainha ao quarto do rei seu
filho, batiam as portas com suas varas, e o rei vi­
nha \mbora correndo para seu quarto, para que sua
mãe alí o não achasse. E assim tornavam a fazer os
porteiros do quarto da rainha Margarida quando a rai-·
nha Branca a ele vinha, para que alí achasse a rainha
Margarida" ( 1).
A gente cuida sonhar, não é verdade, minhas Se­
nhoras, ante semelhante tirania imposta a um rei de
França!
Eis porem, aquí, alg-..ima coisa de mais forte:
"Uma vez estava o rei ao lado da rainha sua mu­
lher, e esta estava em grandíssimo perigo de morte,
porque estava doente de um filho que tinha tido. Aí,
veiu a rainha Branca e tomou o filho pela mão e dis­
se: "Vinde-vos embora, não estais fazendo nada aquí"

(1) Joinville.

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AS HEROINAS DO DEVER 275

Quando a rainha Margarida viu que a mãe levava o


rei, exclamou : "Ai ! não me deixareis ver meu senhor
nem morta nem viva!" E então desmaiou, e cuidou-se
que tivesse morrido; e o rei, que pensou que ela mor­
resse, a grande custo reanimou-a"
NãQ é- �bsolutaraente transtornante?
Será mistér que o amor em certos casos seja cego
para que um a alma como a de Branca de Castela pos­
sa ceder sem remorso a semelhantes excessos ele des­
potismo?
Não tentarei, com um notável erudito (1), justifi­
car o procedimento de Branca de Castela. Que a rai­
nha regente de França tome precauções contra a ten­
dência de Margarida para se imiscuir no govêrno, na­
da melhor. "Margarida, com efeito, podia entrqgar-se
a funestas influências de família; pertencia, pelo lado
de mãe, à casa de Sabóia, cujos membros, pobres e ir­
requietos, procuravam de bom grado no estrangeiro as
riquezas que não tinham em casa. A rainha Branca ti­
nha debaixo dos olhos um exemplo dos perigos do pa­
rentesco, no que se passava na Inglaterra, ou de Hen­
rique III, que desposara uma irmã de Margarida, des­
contentara os barões ingleses, e creara a si próprio di­
ficuldades abandonando uma parte do governo aos tios
da mulher".
Mas a política não devia então deter-se no limiar
da alcova real? Impossível invocar aquí circunstâncias
atenuantes.
(1) Boutaric, Margarida de Provença, Revista das Questões
Históricas.

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276 LÉON RIMBAULT

Espôsa, mãe e rainha, Branca de Bastela é incom­


paravel. Nela, só a sogra teve indisculpá veis falhas: e
foi o bastante para que a Igreja Católica jamais pen­
sasse em colocar nos altares a admiravel mulher cristã
que teve dois filhos canonizados.
Não obstante ess� franqueza de coraçâ_o· que a tor­
nou dura para sua nora, Branca foi uma mulher forte
e uma mulher terna.
Da sua fôrça dá magnificamente testemunho a
história da sua regência, quer quando jugula a quá­
drupla revolta dos poderosos barões do feudalismo, os
Pedros Maucler, os Enguerrand de Coucy, os Thibaud
de Champagne, os Rugues de Lusignan, etc.; quer
quando atura, à frente dcs seus soldados, todos os ri­
gores do frio excecional, "reforçando pela sua presen­
ça e garbo o coração dos homens, mesmo dos jovens
cavaleiros que cíe bom grado fazem feitos d'armas pe­
las damas"; quer quando, com um pau na mão, faz to­
mar as armas aos burgueses e aos cavaleiros, e coage
aos cônegos çle París, momentaneamente rebeldes, a
soltarem os camponeses que eles retinham injustamen­
te nas prisões do capítulo; quer quando ordena energi­
camente perseguir e expulsar a horda assassina dos
pastorinhos; quer quando doma o orgulho da Univer­
sidade.
Nada iguala a sua fôrça, a não ser a sua ternura.
Que de mais tocante do que a cena dos adeuses da mãe
e do filho?
Branca acompanhara até Cluny Luiz IX que par­
tia para a cruzaçla com a mulher, os irmãos, os barões.

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AS HEROINAS DO DEVER 277

Ele havia declarado sua mãe regente do reino. A hora


da separação era chegada.
"Mas a rainha sua mãe", conta a Crônica, "per­
maneceu com ele, e acompanhou-o três dias a contra.­
gosto do rei, e ele disse então:
"Minha boa e dulcíssima mãe, por essa fé que me
deveis, voltai agora. Deixo-vos meus filhos em guarda,
Luiz, Fiíipe e Isabel; e deixo-vos a guardar o reino de
França, e sei de fé que êle será bem guardado e bem
governado".
"Ao que, lhe disse a rainha, chorando: "Meu dd­
císsimo filho, como poderá meu coração suportar mi­
nha separação de vós? Certo ele será mais duro que pe­
dra, se não se partir em duas metades; porque tendes
sido para mim o melhor filho que jamais teve uma
mãe".
"A essa po.iavra, caíu desmaiada, e o rei a levan­
tou e despediu-se dela chorando; e a rainha tornou a
cair em grande desmaio, e� quando voltou a si, disse:
"Belo e terno filho, nunca mais vos verei; o coração
bem mo diz"
"E disse a verdade; porque morreu antes de ele
voltar" (1).
"Depois dessa cena de desolação", diz um historia­
dor (2), "Branca voltou para París com o sombrio
pressentimento de que não tornaria mais a ver aquele
filho dileto, obra sua. Só as mães que viram partir os

(1) Crônica de Reims (Romancero francês).


(2) Hist. de Branca de Castela, por Júlio Estanislau Doine!.

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278 LÉON RIMBAULT

filhos podem dizer-nos que trevas lhes enchem a alma,


que dilaceração se lhes faz no coração nessas horas de
angústias".
O amor e a dor sagram-nos de tal glória, que as
suas fraquezas, se elas as tem, desaparecem, como as
de Branca de Castela, absorvidas por tantos esplendo­
res.

Joubert escreveu: "Quanto mais uma palavra se


assemelha a um pensamento, quanto mais um pensa­
mento se assemelha a uma alma, quanto mais uma al­
ma se assemelha a Deus: tanto mais tudo isso é belo".
Por isto, nada de belo como uma mãe, porque nada se
assemelha mais a Deus!
A dignidade das mães merece todos os diademas.
Entre todas as mulheres, as mães possuem o prestígio
da realeza.
- São rainhas da vida:
Propagam a vida como Deus, de quem são coope­
radoras : Genui hominem per Deum.
Instalam-na no lar, na pátria, na Igreja, no céu.
As entranhas fecundas das mães têm feito com­
preender à humanidade o mistério da geração eterna
de Deus: Mater Deus guia fovet, guia sustinet, etiam
quia calcat. (1)
-- São rainhas da educação:
Os soldados guardam a bandeira nacional, os ban-

(1) Sto. Agostinho.

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AS HEROINAS DO DEVER 279

queiras conservam a fortuna pública. Mas às mães foi


c(,nfiado o mais sagrado depósito que haja no muudo,
depois da Eucàristia : a alma da i::riança. "!;;e o homem
moral, disse de Maistre, não foi formado nos joelhos
da mãe, nunca o será." Quem substituirá as mães nas
culturas das almas?
"O homem é um ente ensinado" (1). Quem ensi­
nará jamais como as mães? Por isto o poder delas é
incomensurável.
"Que eles sejam alvos", exclamava uma mãe mo­
ribunda, confiando os filhos a um ilustre dominicano;
"que eles sejam alvos como é alvo vosso hábito!" Eis
aí, o grito e o ideal das mães.
Essa alvura, as mães, quando vivas, a conservam
aos filhos, ou, quando mortos, a eles a restituem. O
fílius tantarum lacrymarum non peribit é o triunfo da
maternidade cristã.
- Elas são rainhas do sacrifício :
A Bíblia está cheia dos 1:'.eus gritos, molhada das
suas lágrimas, rubra do seu sangue.
Eva, soluçante sôbre o cadáver de Abel, abre a
história das mães do Antigo Testamento.
A mãe dos Macabeus está na última página, ante a
fogueira dos filhos.
A Santíssima Virgem inaugura, no Evangelho, o
grande drama da Igreja padecente.
A mulher misteriosa do Apocalipse encerra, nos

( 1) Lac.ordaire.

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280 LÉON RIMBAULT

seus clamores de parto, o livro das fuígurantes revela-
ções.
Em toda parte, na história das almas e dos povos,
as mães têm a atitude súplice e protetora de vítimas,
caras a Deus.
-- São rainhas da glória:
A luz de Deus está na fronte das mães, e é nas lá­
grimas delas que se prepara a glória do homem.
''Nada leva à glória, disse esplendidamente Ernes­
to Hello, exceto Aquele que dirige para o sol o olhar
das suas águias. Quando a glória ilumina um homem,
ninguém póde seguir, sôbre nenhuma carta .geográfioa,
a estrada que seguiu a auréola para encontrar a sua
fronte".
E' verdade; tudo é mi�tério, na vida e na marcha
da glória. Todavia, os grandes homens e os grand·es
:;antos têm prestado essa homenagem suprema a suas
mães, afirmando que lhes deviam o que tinham de me­
lhor.
Basta citar entre os grandes conquistadores: Ale­
xandre e Napoleão I; entre os grandes imperadores:
Constantino e Carlos Magno; entre os grandes douto­
res: Atanásio, Basílio, Crisóstomo, Gregório de Na­
zianzo, Agostinho. Os séculos nada alteram a isso.
Chateaubriand, Lamartine e Victor-Hugo; Pie,
Freppel e Bertaud; João Batista Vianney, Teófanes
Vénard e Gabriel Perboyre; Pio IX, Leão XIII e Pio
X: poesia , eloquência, virtude, grandeza: tudo canta o
poder e a glória da� mães.

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AS HEROINAS DO DEVER 281
1'
Lede o prefácio do Padre Bolo em os Decad�ntes
do Cristianismo, ou as con.fidências de François Cop­
pée em Dor bendita, ou a última página do Além do
Padre Van Tricht, ou as Cartas do P. Didon, e sabe­
reis a que profundidades as mães penetram a alma e a
vida dos filhos.
Não cessemos de repetí-lo: Fílii matrizant: Os fi­
lhos parecem-se com as mães.
Parecei-vos, pois, vós, oh mulheres sublimes, oh
rainhas da vida e da educação, do sacrifício e da gló­
ria, parecei-vos com Deus. Sêde Brancas de Castela, e
teremos São Luizes.
E vossos filhos, minhas Senhoras, apropriar-se-ão
um dia (oh! desejo que seja o mais tarde possível!)
das palavras de S. Luiz ao saber da sua desgraça: "Se­
nhor Deus, rendo-vos graça e mercê, que por vossa
bondade me emprestastes tão longamente minha cara
mãe, e por morte corporal a haveis tomado e recebido
por vosso bel prazer, à. vossa parte.
"E' bem verdade, dnlcíssimo Pai de Jesús-Cristo,
que eu amava minha mãe acima de toda creatura que
existisse neste século mortal : porque ela bem o mere­
cera! mas já que vos apraz que ela haja falecido, ben­
dito seja o vosso nome"
Tais lágrimas são o mais belo louvor das mães.

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JOANA D'ARC E O PATRIOTISMO

Minhas Senhoras.
Todo homem, quando não suporta o jugo degra­
dante das paixões malditas, traz no coração três amo­
res: o awor da família, o amor da pátria, o amor da re­
ligião.
O próprio paganismo, apesar dos seus erros e tor­
pezas, cantou essas três fontes de alegria e de prospe­
ridade. Nosso Senhor Jesús-Cristo, restaurador de to­
das as ,coisas, lançou sôbre esses três cimos ondas de
luz.
Por isso, em todos os séculos, o lar, o trono, C'
altar, ficam sendo o paládio dos indivíduos e dos po­
vos que querem viver e andar ao largo pela estrada
da civilização. Em compensação, nada iguala a desgra­
ça dos set:r1-lar, dos sem-pátria, dos sem-Deus.
Neste século, em que tantas ruinas juncam os so­
los de muitos países, afigurou-se-me bom e oportuno
mostrar-vos, minhas Senhoras, que parte maravilhosa
vos é reservada na restauração do espírito familiar, do
espírito patriótico, do espírito católico.
Para aprender ou rememorar estas grandes coisas,
nenhuma escola vale a de Joana d'Arc. E' dela que vds
devo falar agora.
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284 LÉON RI.MBAULT

Se Joana fosse apenas uma heroina militar, se só


se tratasse de redizer as suas brilhantes,e�lgadas, o
levantamento dQ cerco de Orléans, ;i: sagração de
Reims, as lutas da França contra a Inglaterra, eu dei­
xaria aos professores de história o cuidado de vos con­
tarem os gestos da Donzela. Mas Joana pertence ao
moralis'..a inda mais elo que ao orador e ao escritor.
Enviada por Deus a um povo que agoniza sob o
tacão elo estrangeiro, ela nos aparece como a encarna­
ção de todas as virtudes do lar, de todos os predicados
da alma nacional, de todas as provações augustas da
santa Igreja. Simultaneamente anjo, mulher e •guerrei­
ra, cordciro e leão, camponesa e -chefe ele exército, vir­
gem amável e mártir corajosa, ela oferece à admiração
de todas as mulheres uma vida em que se harmoni­
zam, a um tempo, o iclílio e a epopéia, o drama e a apo­
teose.
Quero vo-la mostrar em face da Família, da Pátria
e da Igreja.
*
**
Joana d'Arc nasceu em Domrémy, aldeiazinha das
margens do Mosa, na Champagne.
Oh torrão abençoado, que foste, há anos, enrube­
cid o pela chama dos incêndios e pelo sangue dos nos­
sos soldados, pertences ainda à pátria francesa. Na
horrÍYcl amputação da Alsácia-Lorena, ficaste-nos, lu­
garejo consolador. Não é a prova evidente de que
Deus não abandona a nossa cara pátria, já que nos
deixou a casa e o berço da nossa libertadora?

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AS HEROINAS DO DEVER 285

Como representar-vos, com côres dignas da sua


cândida infãncJa nas margens floridas daquele belo rio,
a jovem pastorinha, amiga elas solidões campestres,
dos prados esmaltados onde pasce o seu rebanho, dos
velhos carvallios em cujo tronco el a gosta de venerar
a imagem da Madona, de pendurar em festões, com os
cânticos e as devotas orações do seu lábio puro, as per­
vincas que colheu?
Um jardim e o cemitério separam a casa natal da
igreja da sua aldeia.
Elaj embalada às vibrações dos sinos e às canti­
lenas das aves.
Seu pai e sua mãe, seus irmãos bem-amados, suas
amigas de infância Mettgette e Hauviette, cordeiros,
uma roca, as veredas hem conhecidas do Perrier, do
Bois-Chentt, a capela ele N otre-Dame-de-Belmont, eis
aí, minhas S<'nhoras, a moldnra freE•�a e modesta da
virgem que Deus prepara à França para sua salvação.
Céu límpido por onde perpassam o vôo radioso de S.
Miguel e a veste luminosa das suas santas do paraíso.
Planície, vale encantado onde se elevam as suas vozes,
como ela dirá com a convicção dum coração inocente, a
lhe falarem ela grande lástima que eEtá no reino da
França.
Joana d'Arc, minhas Senhoras, quereis apreendê­
la no que ela tem de gracioso, de penetrante, de pito­
resco, de irresistível? Esr.utai-a falar.
Quando Joana escrevia aos Ingleses, antes de co­
meçar a batalha, prendia uma missiva a uma flecha,
que ordenava a um arqueiro lançar ao inimigo gritan-

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286 LÉON RIMBAULT

do: Lede, são notícias! E a flecha chegava com a


carta.
Palavras e sentenças, imagens e preces, respostas
e gritos de Joana d' Are têm a rapidez e a finura dessa
seta.
Lede, são notícias. As palavras dessa menina de
dezenove anos constituem o melhor "memorandum"
de trabalho e de ié, de honra e de coragem que se
possa dar a uma mulher cristã.
- Quando eu estava em casa de meu pai, cuidava
dos afazeres da. casa.
Grande lição, senhoritas. Quantas moças farão
mais tarde o desespero de um marido, por não terem,
como Joana, a pastorinha do torrão loreno, aprendido
a serem boas e simples donas de casa. Entregaram-se
sem peias ao movimento febril que arrasta tantas mu­
lheres para longe do lar. As visitas fóra, as corridas
aos "armazens" de novidades, as viagens, a multipli­
cidade dos esportes e dos prazeres do mundo, as exibi­
ções do luxo vão fazendo mais ou menos deserta a ca­
sa de família. Certas mulheres, no seu amor de êxodos
perpétuos, parecem ter tido por nutriz uma cabra;
têm-lhe o humor aventuroso e vagabundo, e tão pos­
suídas são pela paixão de andar, que se diria virem, em
linha reta, do judeu errante.
Queixam o-nos amargamente do desaparecimento
de boas criadas. ü1mo então a raça das domésticas ho­
nestas, dedicadas, fiéis, não haveria de degenerar, já
que a linhagem das donas de casa sérias se faz cada
vez mais rara?

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AS HEROINAS DO DEVER 287

Estar em casa de seu pai, para a moça solteira;


estar em casa do marido, para a mulher casada; estar
com os filhos - não digo: estar em casa dos filhos,
pois seria estar em tutela - para a mãe: eis aí, minhas
Senhoras, na família, o segredo da ordem, da econo­
mia, da paz e da felicidade.
Oh camponesinha de Domrémy, mostrai-vos, pois,
hoje, no doce brilho do vosso nimbo ele ouro, e confun­
dí, na escola do vosso torno, essa clcg-âi1cia e essa le­
viandade mundana que só sabe requebrar-se, gastar o
tempo em futilidades, agitar o leque e rir ante o palco
dum teatro, ou apalpar nas montras fazendas sedosas!
.___ Viva a labuta I Aprendí a coser a roupa e a
fiar. Para fiar e coser, não temo mulher de Ruão.
"Viva a labuta!" Joana d'Arc gosta de repetir es­
sa palavra. Faz dela o seu grito de guerra. E; a sua
nota alegre de cotovia matinal, no início das batalhas.
Lança aos seus soldados, no meio da refrega, para
trazê-los ao caminho da honra e da valentia.
"Viva a labuta!" E' a divisa que cintila em exer­
go sôbre o brasão que a gratidão dos reis de Fi:ança
concederá à sua família.
Deveria ela ser a de todas as mulheres. A munda­
nidade nã-o é, as mais das vezes, para vosso sexo, mi­
nhas Senhoras, senão a malandrice de mãos brancas.
A mulher, na terra de Joana d'Arc como em qual­
quer outra, não tem o direito de- se deixar levar às afe­
tações e às languidezes dum ignominioso "far niente".
O trabalho é a lei univenal. Nada sem esfôrço ! Nem a

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288 LÉON RIMBAULT

riqueza, nem a facilidade de recorrer a numerosos do­


mésticos dispensam uma mulher cristã de observar a
grande lei que domina toda a humanidade: Comerás o
teu pão com o suor do teu rosto 1
"Viva a labuta!" O trabalho é uma nobreza. Vale
mais que o cetro e a corôa dos reis. Dá a paz da alma,
alegra o coração, eleva o espírito, nutre o corpo. E' a
chave de abóbada das virtudes do lar. E' o mais sólido
baluarte das nações; é a fôrça e a glória da humanida­
de. E' o sinal triunfal do Filho de Deus. Nãp se diz
com igual verdade : a labuta ou os sofrimentos da Pai­
xão de J esús-Cristo?
"Viv a a labuta!" O trabalho é o sal que preserva
de corrupção as almas, é a seiva da honra, o nervo da
civilização, a chave do paraíso.
"Viva a labuta!"
As grandes cidades oferecem a suas filhas um de­
dal de coser ou jóias. A jovem operária põe a cabeça
nas mãos: viu diante de si levantar-Je o futuro: "Sou
pobre, sou bela: poderia ter esses diamantes, usa_r es­
ses vestidos preciosos, andar de carro, como uma prin­
cesa; sim, mas seria à custa da minha honra, e eu faria
chorar minha mãe. Não, não: "Viva a labuta". E a en­
cantadora filha do povo arma corajosamente com o
dedal preservador o fragil dedo. Cose, recorta, ajusta,
faz a confeção. Infatigável, persevera na rude tarefa
que lhe magoa as mãos, que lhe empalidece e cava a
fronte. Prolonga muitas vezes pela noite a monotonia
do seu sacrifício heróico. As pérolas das vossas "toi-

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AS HEROINAS DO DEVER 189
lettes", minhas Senhoras, são feitas das lágrimas dela,
e as rosas de que são ornados os vossos penteados são
menos vermelhas do que as pálpebras enrubecidas dos
seus olhos fatigados e do que os pedaços sangrentos
do seu coração dilacerado.
Mas: "Viva a labuta!" mesmo assim. Enquanto
ela trabalha, sofre, reza e se cala, o Silêncio, o mais
tímido dos anjos, está sentado, cismador, no limiar do
seu tugúrio como no limiar dum santuário. Inclinai­
vos com respeito ante a Operária, minhas Senhoras :
Nazaré e Domrémy; a Santíssima Virgem e Joana
d'Arc projetam sôbre ela o duplo ráio de luz duma
glória que impõe a admiração. A humilde plebéia po­
deria ainda lançar a muita grande dàma, com entono,
o desafio da Donzela: "Viva a labuta!" Aprendí a co­
ser e a fiar. Para fiar e coser, não temo mulher de
Ruão", ou ele outro lugar! Aviso a tantas "preciosas"
para as quais "o diploma de pergaminho substituiu os
tecidos de linho, e para quem a agulha deu lugar à pe­
na da sabichona.
- Não sei nem A nem B. Não aprendí minha
crença de outro que não fosse minha mãe. Aprendi de
minha mãe Padre-Nosso, Ave-Maria e Creio em Deus
Padre.
Joana d'Arc era, em toda a fôrça do têrmo, uma
iletrada: "Não sei nem A nem B", confessava ela in­
genuamente. Não vos direi, minhas Senhoras que fa­
çais dessa palavra o vosso lema. Por certo, uma instru­
ção sólida e boa, conhecímentos extensos, "claridades

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290 LÉON RIMBAULT

em tudo", consoante a palavra de Mme. de Sévigné,


convêm às mulheres tanto quanto aos hom�ns. No nos­
so século de luz, é mesmo sumamente,. conveniente
que as moças participem largamente dos benefícios da
instrução. Elas, como os moços, têm um espírito a cnl­
tivar, uma memória a mobilar, um juízo a formar. So­
bretudo, é importante, e de primeira necessidade, que
elas possam, na nossa sociedade discutidora em exces­
so, arrazoar a sua fé e vingá-la vitoriosamente contra
os motejos e os ataques pérfidos dum ceticismo igno­
rante, gosador ou fanfarrão. Daí, minhas Senhoras, a
indispensável fôrça da instrução. E' lastimável que tai:i­
tas mulheres no mundo só tenham sôbre a doutrina
cristã tão vagas· e tão superficiais noções. Tem-se fa­
lado muitas vezes da fé do carvoeiro. Esta tem o mé­
rito da obediência cega, o encanto ingênuo da simpli­
cidade. Humilde filha dos campos, Joana cl'Arc póde
contentar-se com essa fé. E eu diria ele bom grado com
Legouve: "Si eu tivesse de escolher para uma criança
entre saber ler e saber rezar, diria que saiba rezar,
porque rezar é ler no mais belo de todos os livros, na
fronte d'Aquele donde emana toda luz, toda justiça e
toda bondade".
Nem por isso é menos verdade que, se a mãe de •
Joana d'Arc, ensinando à filha a sua crença, tivesse
bastante instrução para lhe explicar bem a organiza-
ção da Igreja, a sua hierarquia, o funcionamento elo
seu poder, a pobre acusada de Ruão teria experimen­
tado menos embaraço ante certas perguntas dos seus
juízes astutos. "Algumas páginas do catecismo bem

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AS HEROINAS DO DEVER 291
compreendidas, diz um sagaz escritor (1), teriam pou­
pado a Joana muitas angústias".
Não a'prendí minha crença de outro que não fosse
minha mãe/
Felizes os filhos que tiveram por mãe uma cristã
esclarecida. O seu cristianismo nada tem de estreito.
Eles estão íl-º largo numa devoção bem entendida. Sa­
bem que a fé e a ciência, vindo do mesmo Deus e a
ele conduzindo as almas, se harmonizam em admira­
vel síntese, e o desenvolvimento filosófico, a cultura
intelectual não fazem senão fortificar e consolidar mais
a funcio na alma deles os imutáveis princípios da sua
primeira iniciação. Nunca se deve permitir, minhas
Senhoras, por insuficiência <le luzes em matéria do­
gmática, que os homens abandonem a vós a religião,
como incompatível com as exigências da sua razão.
Há provas perentórias para os adversários das nossas
doutrinas, as quais não tendes o direito de ignorar.
Cabe à mãe fornecer à fé da criança - o homem
ele amanhã - armas assaz resistentes para quebrar to­
dos os choques da incredulidade.
A simples filosofia do Padre-Nosso, da Ave-Maria
e cio Credo basta a toda plebéia para viver conforme­
mente à vontade de Deus e salvar sua alma; mas a to­
da- mulher elevada pela sua condição social, tendo ele
dirigir uma casa, de manter a sua posição no mundo,
impõe-se o estudo aprofundado, o exame sério e do­
cumentado dessa trilogia fecunda da crença cristã. A

(1) Mons. Le Nordez, As setenta palavras de Joana d'Arc,

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292 L É. O N RI MB AU LT

arte de crer é também a arte <le chegar à ver<la<le ou


de se fortificar na posse da verdade. Não equivale isto
a dizer que a graça, que vem só de Deus,· supõe, de
nossa parte, disposições interiores da mente e do cora­
ção? Desenvolvereis em vós o senso religioso pelo es­
tudo das verdades católicas e pela oração que fecun­
dará esse estudo. S. Tomaz de Aquino e S. Boaventu­
ra, tal como San to Agostinho e S. Jerônimo, uniam,
no trabalho da cultura teológica ou bíblica, os afetos
do coração às indagações da mente. Um Padre-Nosso
ou uma Ave-Maria, recitados com fé viva, iluminam
às vezes a alma a profundidades que nunca seriam
atingidas pela sabedoria humana deixada só aos seus
esforços.
Consoante esta palavra soberba do Cardial de Be­
rulo: "O amor tem dado mais luz do que a luz tem
dado amor".
Há nos livros de Nosso Senhor mais do que nos
vossos.
Meu Senhor tem um livro em que nenhum cléri­
go jamais leu, por mais perfeito que seja em clerica­
tura.
Sabendo e sâboreando pelo amor o Padre�Nosso,
a Ave-Maria e o Credo, Joana d'Arc achava suas delí­
cias, sua s inspirações, suas energias em ler as páginas
desse livro de Deus.
. , Oh meu Pai, dizia Jesús-Cti$to, bendigo-vcs, por­
que revelastes aos pequenos o que haveis ocultado aos
prudentes e aos sábios.
A pedagogia moder;na, neutra e laicizada, isto é,

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AS HEROINAS DO DEVER 293

sem Deus, rejeita o livro eterno, lido por tantas gera­


ções, e que _Joana d'Arc preconiza. Por isto, que sabe
ela? em que a vemos resultar? Brunetiere, com razão,
consignou a bancarrota dessa ciência.
Sim, há nos livros de Nosso Senhor mais do que
nos vossos. A ciência que não quer dobrar o joelho
diante de Deus, falta a todas as suas promessas. Não
póde nem moralizar, nem dar a felicidade, nem ser uni­
versal, nem aclarar os mistérios ela vida e da morte.
Torna-se um instrumento de maldição. Os assassinos
diplomados aí estão para prová-lo.
Nos livros de Deus, os olhos simples do crente,
oculus simplex, descobrem ensinamentos desconheci­
dos aos mais célebres filósofos da antiguidade.
Pereça a ciência que não se aplica a amar! Suárez
daria de bom .grado seus vinte e cinco volumes "in­
fólio" por um ato _de caridade. "A eloquência zomba
da eloquência", disse Pascal. A flama oratória não tem
o que fazer da retórica. A ingem!idacle tambem escar­
nece da ciência.
Meu Senhor tem um livro em que nenhum clérigo
jamais leu, por mais perfeito que seja a clericatura.
A natureza, a história, as almas, a Igreja: oh!
magníficas revelações de Deus! �as, para compreen­
dê-las, cumpre que o espírito de Deus nos abra o mis­
terioso sentido delas. Felizes as famílias onde, toda
noite, se lê o Evangelho.
Ditosos os lares onde, como no de Joana, reinam
a fé, o trabalho, a união. O Profeta entrevira-os sem
dúvida na sua beleza tranquila, quando exclamava:

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294 LÉON RIMBAULT

Vah! calefactus sum, vidi focum. Oh ventura: ví a


pedra do lar e aquecí-me nela.
Joana d'Arc é uma das mais encantadoras perso­
nificações do espírito familiar. Nada a pôde distrair da
visão matinal que lhe cativou a alma. A lembrança da
casa paterna acompanhou-a nos campos de batalha,
na apoteose da sagração e até nos horrores do cárcere.
Dizia ela um dia a João Morei, habitante de Dorn­
rémy que a viera visitar: Como eu quisera prouvesse
a Deus, meu Creador, que eu voltasse agora, deixando
as armas, e tornasse a ir servir meu pai e minha mãe, a
guardar os seus rebanhos com minha irmã e meus ir­
mãos, que folgariam bem de me verem 1
Pobre Joana ! como pôde ela deixar a sua aldeia?
e aquela casa onde nascera onde tanto amor devê-la-ia
ter amparado, já que seu pai, ao simples pensamento
de ver a filha deixá-lo e partir com gente d'armas, or­
denaya afogarem-na no Mosa. Si vós mesmos não o
fizerdes, acrescentava ele, farei eu. A corajosa virgem
disse o porquê dessa cruel separação:
Já que Deus o mandava, mesmo se eu tivesse
cem pais e cem mães e fosse filha de rei, ainda assim
teria partido,
Ela ouvira as suas vozes.
Oh gente humilde dos campos, ficai em vossa ca­
sa. Joana d'Arc não deixou após si uma "terra que
morre" à mín�ua de braços para cultivá-la; não emi­
grou para a cidade afim de '.1Jí fazer fortuna ou entre­
gar-se ao prazer. Ela só se arrancou ao lar vencida pe­
la sua missão.

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AS HEROINAS DO DEVER 295

Quais são as vozes que vos chamam, a vós, mi­


nhas Senhoras? Há vozes que Yêm de Deus e que
atraem para cima as almas.
Oh! essas vozes de pureza, de valentia, de dedi­
cação, de sacrifício! elas falam sempre a corações que
übram aos seus acentos: a irmã de caridade, o após­
tolo, o vigário que batiza, o soldado, o explorador, o
patriota, ouvem "as suas vozes"! vozes do céu! vozes
da Igreja! vozes da Pátria!
Donde quer que venham essas vozes, escutai-as,
segL{-as. Joana d'Arc a isso vos convida ardente­
mente:
O Senhor Nosso Deus servido primeiro! - Con­
tanto que Deus esteja contente I Antes agora que ama­
nhã, antes amanhã que depois! - Sem falta 1
Mas, se essas vozes vêm de baixo, se solicitam
às coisas vís e degradantes, ficai em casa, ficai em
casa.

Oh! nunca deixeis o limiar de vossa porta:


Morrei na casa em que vossa mãe é morta! (1).

O lar é o ninho dos amores, a oficina das virtudes,


a mansão da paz, o centro da união, o vestíbulo do pa­
raiso. Joana d'Arc resume-lhe o espírito íntimo, doce
e forte. Melhor que nenhuma outra, ela póde restaurar­
lhe o culto entre nós.
Quem ama o lar ama necessariam�nte a pátria. A

(1) Brizeux.

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296 LÉON RIMBAULT

pátria não é o conjunto de todas as coisas sagradas


que o homem encontra ao sair do be rço?
Por isto o sentimento familiar gera, em todo co­
ração bem nascido, o sentimento patriótico.
"Todas as vezes", disse Lamartine, "que o senti­
mento patriótico sobe até ao entusiasmo num país, as
mulheres experimentam-no no mesmo grau, e mesmo
em grau superior aos homens. A pátria não pertence a
elas mais do que a nós; porém, mais impressionáveis,
elas a incorporam a si por todos os sentidos, por todo
o coração, por toda a alma".
Joana d'Arc, minhas Senhoras, põe-vos sob os
olhos, em relevo empolgante, o patriotismo do vosso
sexo; porque ela é uma verdadeira patriota, ama sua
pátria, serve e salva sua pátria.
O sangue da patria corria nas veias de Joana, ru­
bro e quente, "tocando a investir", como disse o poe­
ta, vibrando sob o impulso do mais nobre dos corações.
Ela tem todas as impetuosidades da "furia fran­
cese" Acreditai no testemunho do seu pagem.
- Era sob Orléans, os hospedeiros de Joana não
a haviam acordado. Ela dormia profundamente. Dura­
mente batalhara e se fatigara na véspera.
O combate principiava sem ela.
Quase logo, diz ele, ela desceu: Ah! cruel rapaz,
não me disseste que Q sangue da França estava sendo
derramado! Ao mesmo tempo ordenou-me que fosse
buscar seu cavalo.
Enquanto eu ia, ela fez-se arrr.ar pela senhora di'J.
casa e sua filha. Na volta, achei-a já armada,.

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AS HEROJNAS DO DEVER 297

Ela mandou-me que fosse buscar o seu estandarte


que ficara no quarto, e passei-lho pela janela.
Uma vez com o estandarte na mão, ela partiu a
galope para a porta de Borgonha. "Corra atrás dela",
disse-me a hospedeira. Assim fiz.
Que pressa! que decisão! Reconheceis aí o tem­
peramento nacional?
- Nunca vi correr o sangue de França, acres­
centava ela, que os cabelos não se me arrepiassem.
E ainda quando se lança do alto da torre de Beau­
voir : Eu tinha ouvido dizer que os de Compiegne, to­
dos até à idade de sete anos, deviam ser postos a fogo
e a sangue : e eu, eu preferia morrer a viver depois de
tal destruição de gente de bem.
Que bondade, que sensibilidade de coração!
Eh é terna como um cordeiro, compassiva como
uma mãe.
Escutai-a. Trn.ta-se do seu pior inimigo, o chefe
do partido inglês: Glasdas, Glasdas, insultaste-me, te­
nho grande dó da tua alma e da dos teus.
E quando Glasdas e os seus rolaram no rio, Joana
d'Arc desatou em lágrimas.
Os Ingleses estão em debandada.,
Vamos, exclama ela a todos aqueles Franceses que
se encarniçam sôbre a presa; vamos, meus amigos,
meus bons amigos, deixai-os ir embora, não os mateis.
A sua retirada me basta.
Não quero servir-me da minha espada; não quero
matar ninguém. Pereferiria muito mais, mesmo qua­
renta vezes, o meu estandarte à minha espada.

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298 LÉON RIMBAULT

Ela tem todas as graças naturais do seu sexo. Na­


da achareis nela da virago moderna. Por sob a arma­
dura da guerreira, ela conserva a ingenuidade da don­
zela.
Quando se sentiu ferida, teve meclo e chorou, con­
ta o seu capelão.
Oh fraqueza encantadora da mulher, que é, não
raro, uma fôrça miRtcriosa. A":õ lágrimas são sagradas
quando são sinceras!
Depois, ao cabo de algum tempo, ela disse: Estou
consolada.
Eis aí a serenidade e a valentia da virgem.
- Ela é piedosa, penitente, crente como uma fi­
lha do claustro:
Se alguma coisa em mim se opusesse à Igreja, eu
a botaria fóra. - Tenho jejuado sempre esta quares­
ma. - Se pudéssemos ouvir missa, faríamos bem. -
Preferia ser arrastad a por quatro cavalos a ter vindo
sem a licença de Deus. - Em tudo, espero no meu
Creador.
Mas é ardente e corajosa como um leão.
Ide-vos embora, homens de Inglaterra, para vossa
terra, por Deus, e se assim não fizerdes, botar-vos-ei
para fóra de toda a França.
E as faiscas saltam por sob as patas do seu corcel.
De estandarte na mão, ela penetra em Orléans. Em
três golpes de espada, liberta a cidade. A bastilha de S.
Lupo, a bastilha dos Agostinianos, a bastilha das
'I'ournelles são tomadas.
Como ela guia com graça o seu cavalo espuman-

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AS HEROINAS DO DEVER 299

te. Que desassombro militar! Ela acaba de passar o


duque de Alençon.
Avante, gentil duque, ao assalto! Eia, sôbre os
Ingleses! Quando eles estivessem pendurados às nu­
vens, nós os despegaríamos.
Oh! gentil duque, tens medo? Não sabes que pro­
meti à duquesa trazer-te de novo são e salvo?
Não reconheceis, minhas Senhoras, nesse militar
atuamento, a graça e o desembaraço do doce e claro
falar de França, com não sei que picante de jovialida­
de, o grão de sal gaulês? Sim, Joana tem a verdadeira
jovialidade do povo francês.
Suas palavras esfusiam no ar como alvoradas de
cotovias.
Quando tivermos abatido e expulsado todos esses
Goddams, cliz ela a um barqueiro do Loire, voltaremos
à tua casa para comer um savel.
Dansei às vezes ao pé da árvore das fadas, e ainda
mais cantei.
Onde estais, ai!, cantigas alegres e puras da gente
do campo? estribilhos dos tecelões, dos pescadores e
dos lavradores? Outróra os trabalhadores acompanha­
vam-se, na oficina, do ritmo simples e sonoro dum es­
tro inestancável.
Hoje, trovadores e cancioneiros morreram. Mas as
greves uivam a Internacional ou a Carmanhola, o povo
toma absinto e lê Zola.
As réplicas de Joana aos seus juízes, seus chistes
imprevistos e originais, são marcadas do bom cunho

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300 LÉON RIMBAULT

do espírito francês: a clareza, a vivacidade, a oportu­


nidade.
"Quem vos inspira?", pergunta-lhe um Frade Pre-
gad,_1r ronhento.
- Minhas vozes, diz ela.
- Que idioma falam vossas vozes?
- Um melhor que o vosso I". E, efetivamente,
ele falava limosino.
"S. Miguel tinha os cabelos cortados?", pergun­
ta-lhe chulamente outro juiz.
- Pensais, responde Joana, que a Deus custe cor­
tar-lhos?
"Santa Margarida", perguntam-lhe, "fala inglês?"
- Como haveria ela de falar inglês, responde
Joana, já que não é do partido dos Ingleses?"
Cauchon recebeu a réplica devida ao seu cinismo.
Uma vez, interrogava-o ele para saber se as suas
vozes lhe falavam dos seus juizes: Tenho muitas ve­
zes, por minhas vozes, notícias de vós, Senhor de
Beauvais. - Que vos dizem elas de mim? - Dir-vo­
lo-ei à porte.
Resposta tão curta quanto atilada.
O gênio francês, como sabeis, minhas Senhoras,
não tem nada dos nevoeiros de além-Mancha, nem dos
pesadumes de além-Reno.
Joana d'Arc é bem do torrão francês. A sua lín­
gua tem-lhe a fragrância pitoresca, o fino e capitoso
sabor. Pode-se-lhe aplicar a palavra encantadora que
ela dizia da corôa de F'rar.ça: Ela cheira bem e cheira­
rá. bem, desde que seja bem guardada como convém.

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AS HEROINAS DO DEVER 301
- Joa-"a d'Are tem toda a energia e firmeza, to­
da a altivez da nossa raça. Escutai-a:
Antes da "mi-carême", tenho que estar perante o
rei, ainda quando tinha de gastar os pés até os joelhos.
Cumpre que eu vá e que eu faça, porque Nosso Senhor
quer que eu o faça.
Se eu estivesse em julgamento e visse o fogo ace­
so e a lenha pn,parada e o carrasco prestes a pegar o
fogo, e eu estivesse no fogo, ainda assim não diria ou­
tra coisa, e sustentaria Q que disse no processo, até à
morte.
E, quando a inquirirem dela, mais tarde, os moti­
vos da sua partida, ela responderá, com inabalável se­
gurança:
Mesmo se eu tivesse cem pais e cem mães, ter­
me-ia separado dêles para correr em socorro do rei de
França e libertar Orléans, como Deus me ordena.
Os Gauleses diziam: "Só tememos uma coisa, é
ver o céu desabar e o oceano invadir as nossas costas".
Joana d'Arc dizia mais altivamente ainda: Só te­
mo a traição. - Vim da parte de Deus. - Em nome
de Deus, a gente d'armas batalhará e Deus dará a vi­
tória.
Joana d'Arc é, pois, bem Francesa, e mesmo é , por
excelência, a Francesa. A alma da França palpita, cho­
ra, arde nela.
Ah! a alma da França! quem pois no século cator­
ze acreditava nela?
O povo? Não!
Os padres? Não! - Os soldados, os nobres? N�o !

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302 LÉON RIMBAULT

Os Ingleses? - Sim, por que a odiavi:U•


Joana d'Arc também acreditava na alma da Fran­
ça: porque a amava.
*
**
Escutai a tocante história: E contava-me o Anjo
a grande lástima que estava no reino de França.
Sim, o mensageiro celeste fazia passar sob os olhos_
extasiados da pastorinha e lhe murmurava ao ouvido
atento ... que então?
Oh! o lamentável estado, a amarga tristeza, o su-
mo acabrunhamento da pátria francesa!
Sabeis de algo mais emocionante, mais grandioso?
Esse anjo que vem do céu para falar da França?
Deus ama tanto esse caro país!
Tolbiac e os campos de Vouillé, a espada de Car­
los Magno e o cetro de S. Luiz, as Cruzadas e as ca­
valgadas do apostolado, S. Bernardo e S. Vicente de
Paulo, Bossuet e Lacorclaire, Luiz XIV e Napoleão,
vitórias, amor, liberdade, riquezas do espírito, da lín­
gua, do coração, do solo: Deus nada soube recusar à
França.
Deu-lhe Maria Madalena; deu-lhe a Virgem Ima­
culada; deu-lhe o Sagrado Coração! Todas as lágrimas
generosas, todas as purezas de doutrina, todas -as cha­
mas de amor!
E o anjo narrava a Joana o quanto a França se
afastara do plano divino. E Joana chorava escutando
a dolorosa história.
A voz do narraçlor celeste, o coração da donzela

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AS HEROINAS DO DEVER 303

aquecia-se do desejo de ir à França, de salvar a pátria


e de fazer sagrar o rei.
Sim, Joana amou a pátria.
Ufanou-se das suas grandezas.
Ela não amava tanto o seu estandarte senão por­
que ele era o emblema da pátria, mantinha-o alto e
ufano nos combates: A êle os gritos de vitória, a ele
as apoteoses:
:tl:Ie esteve na dor, é bem justo que esteja na honrai
Ela foi ciosa da independência e autonomia da sua
pátria:
Do ódio de Deus aos Ingleses nada sei, mas ttle
quer que êles voltem para sua casa.
Reivindicou-lhe a vocação e os direitos de Cristo
sôbre ela:
Guerrear contra a França é guerrar contra Jesús­
Cristo,
Ela proclamou essa prodigiosa vitalidade, esse mi­
lagroso poder de rehabilitação qué faz a França remon­
tar de tantos abismos, escapar a tantos desastres:
Azincourt e Crécy, o punhal de Ravaillac, os cadafal­
sos do Terror, Waterloo, Santa Helena, Sedan, os cin­
co bilhões, a Comuna! dizendo como se fosse profe­
tiza:
Chorou por não poder mais lhe testemunhar o seu
amor. Ei-la em prisão, de rosto contra as grades do er­
gástulo, vestida de homem para proteger a sua pureza
de mulher contra abomináveis assaltos.
Meus bons amigos, diz ela aos que passam por
diante da sua masmorra, meus bons amigos, pedí a

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304 LÉON RIMBAULT

Deus por mim. Fui traída. Não poderei mais servil' a


nobre terra de França.

*
**
E' preciso trabalhar quando Deus quer. Trabalhai,
Dell/> trabalhará. Certamente Joana trabalhou por sua
pátria.
E' hora quando apraz a Deus, dizia ela ainda.
No [,éculo catorze, a hora que soava neste mundo,
na terra de França, era uma hora desesperada, mas, lá
em cima, era a hora de Deus, a hora da salvação do
povo francês.
Deus e Joana trabalham. E vê-se este milagre, de
u ma jovem camponesa a reanimar um rei covarde e
que quer fugir, duma virgem a guiar, quais dóceis
ovelhas, os La Hire e Xantrailles, os Beaumanoir e os
Chabannes, os Dunois e os Gaucourt; todas essas ve­
lhas feras, que berram à sua voz e dão lã, roem a erva
branca das prédicas e comungam a manhã das bata­
lhas (1).
Deus e Joana trabalham. E os clérigos, os merca­
dores, os guerreiros, os nobres, os bispos aclamam essa
generalíssima, essa estrategista de 4ezenove anos que
S. Miguel e os santos do paraiso parecem acompanhar
numa luz de esperança e de glória, à testa das batalhas
da França. E eis que se levantam os dias gloriosos de
Orléans, de Meung, de Jargeau, de Patay, a esteira de

(1) K. Huysmans.

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AS HEROiNAS DO DEVER 305

fogo dos entusiasmos patrióticos, na estrada de Reims


balisada de vitórias: Auxerre, Troyes, Châlons ! ...
Deus e Joana trabalham. E como nunca a obra
humana chega à perfeição divina senão pelas lágrimas
e pelo sangue; como a Paixão coroou todos os traba­
lhos de Jesús-Cristo; como todo resgate d'alma ou de
sociedade supõe sempre o martírio,_ eis revéses estra­
nhos, o reverso lúgubre da glória luminosa: Deus per­
mite que Joana seja traída, abandonada pelos seus, e5-
quecida por seu rei, que a heroina seja derrotada, que
a triunfadora cáia na mão do Inglês, que a libertadora
da realeza e da pátria seja encerrada numa jaula de
ferro, como um animal perigoso; esposta ao pelourinho
como uma creatura infame; que a virgem tão católica
seja tratada de "caça do inferno, mágica, hereje, após­
tata, relapsa, excomungada"!
Por que esse indigno juizo? Por que esses tratos
sem nome? Por que essa condenação iníqua? Por qual
de suas obras a apedrejais com tantos ultrajes, com
tanta injustiça?
Ela disse: Todos os meus ditos e feitós estão na
mão de Deus. Vim da parte de Deus.
Nada fiz neste mundo a não ser por mando de
Deus.
Preferiria ser arrastada por quatro cavalos a ter
vindo sem a licença de Deus.
Bem vedes como me portei; portei-me o melhor
que pude.
Sôbre todas as coisas, S. Miguel me dizia: "Sê boa
menina".

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306 LÉON RIMBAULT

Sou uma cristã bem batizada.


Deus não permita que eu faça ou tenha feito obra
que me onera a alma.
Pobre Joana! Que podia ela contra a perversidade
dos juizes vendidos e felões, contra o ódio dos que os
assalariavam?
Cândido cordeiro e singela pomba, como haveria
ela de escapar àqueles tigres sedentos do seu sangue?
E' em vão que, donzela inocente, ela se queixa ao
tribunal de Ruão:
Áil tratam-me tão horrivelmente e tão cruelmen­
te, que meu corpo todo e inteiro seja hoje consumido
e reduzido a cinzas!
E' em vão que, donzela tímida , ela _deixa escapar
um grito de pavor: Ah! preferia ser decapitada sete
vezes do que ser assim queimada 1
E' debalde, em aparência ao menos, que, persegui­
da, ela faz ouvir o supremo clamor dos frac0s e dos
pequenos: Oh, apelo para Deus, o grande Juiz, dos
grandes males e ofensas que me fazem!
Por trás do ódio dos homens, Deus trabalha. E'
mistér que se cumpra por eles, mau grado dêles, para
a salvação da França e para a glória de Joana d'Arc,
a lei misteriosa que cimenta com sangue toda reden­
ção : Sine sãnguinis effusione non fit remíssio 1
Ao sair de Reis, Joana não podia voltar a Dom­
rémy. Depois da apoteose da sagração, a epopéia ma­
ravilhosa do anjo libertador da pátria não devia des­
cer de novo à pastoral.

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AS HEROINAS DO DEVER 307

Não havia mais, para a enviada milagrosa, :>--:não


1.J.m único meio de crescer; era subir à fogueira.
"Nada nos faz tão grandes como uma dor". A lei
é sem exceção. - Oh Joana, dizes através das tuas lá­
grimas:
Se eu visse a porta aberta, ia-me embora, seria pa­
ra mim a licença de Deus. A porta não se abrirá senão
para te <leixar ir ao ca<lafalso e entrar na eternidade.
Sim, Deus trabalha, e Joana agora trabalha com
êle.
A vítima está pronta.
Resigna-se: Em tudo, espero no meu Creador.
Tenho bom amo, a saber, Nosso Senhor, em quem
espero ... e não em outro.
Desde o momento que isso agrade a Deus, foi pa­
ra o melhor que fui presa.
Ela confia no socorro do alto. Reza, fortifica-se,
ei-la calma, santamente alegre:
As vozes disseram-me: "Toma tudo em agrado,
não te preocupes com teu martírio, virás para o reino
do paraíso".
Ela chorou por não poder mais testemunhar a
Deus o seu amor. Aí, a identidade das vontade é tão
perfeita que, no último momento, de pé e atada ao in­
fame poste, por sôbre o monte das achas untadas de
pixe e de enxofre onde o carrasco prende fogo, Joana
d'Arc faz ouvir uma suprema e tocante súplica.
Que pede ela na sua hora derradeira?
Será abraçar sua mãe "que não sabia que a sua
Joanit a podia ser queimada pelos Ingleses"? seu ve-

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308 LÉON RIMBAULT

lho pai que lhe perdoara o haver partido e não mais a


tornara a ver depois do triunfo da grande sagração de
Reims? ou sua irmã e seus irmãos ternamente ama­
dos? ou suas amigas de infância, Meugette e Heu­
viette?
Por certo, todas essas caras visões passaram-lhe
diante da alma, na angústia do suplício iminente. Mas
todos os beijos que ela teria querido dar-lhes, todas as
lágrimas derramadas por seus olhos de menina que não
mais as deviam tornar a ver, foi à imagem de seu
Deus que ela quis consagrá-los.
Rogo-vos, diz ela a Izambard de la Pierre, ide
buscar-me a cruz da igreja vizinha, para mantê-la ele­
vada bem direita ante meus olhos, até o passo da mor­
te, afim de que a cruz de onde Deus pendeu esteja em
minha vida continuamente ante meus olhos.
E quando já as chamas a lambiam, meio sufocada
já pela fumaça da fogueira, ela teve a fôrça de lançar
o seu grito de supremo amor: Jesús I Jesús I Jesús 1
A aceitação da vítima era absoluta.
Deus aceitava o holocausto.
Joana d'Arc morre: a França está salva.
Dizem que, no instante último, viram a alma da
már!ir sair do braseiro, sob a fórma de alva pomba.
Dizem que, por entre as brasas fumegantes, o co­
ração da virgem recusava consumir-se.
Por certo, aquela alma fôra bastante pura para
evolar-se miraculosamente ao céu.
Aquele coração ardera bastante no amor da p.át�ia
para desafiar todos os fogos do ódio do inimigo.

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AS HEROINAS DO DEVER 309
Seja o que for dêsses prodígios, ante as cinzas de
Joana d'Are os ingleses exclamaram consteicnados :
"Estamos perdidos, queimamos uma santa!"
De fato, o leopardo foi expulso de todá parte, e
não tardou a recolher-se à sua ilha.
A palavra da virgem de Domrémy, da libertadora
de Orléans, da triunfadora de Reims, <la mártir de
Ruão, realizou-se enfim:
Aprouve a Deus assim fazer por meio de uma sim­
ples donzela, para repelir os adversários do rei e botar
os Ingleses para fóra de toda a França.

***
Antes de terminar, minhas Senhoras, permití-me
entregar minha alma. Ousaria eu, em verdade, depois
de vos mostrar Joana d'Arc na Família e na Pátria,
colocá-la em face da Igreja?
Há na história de Joana d'Arc, e eu não saberia
calá-lo, um momento cheio de terror para um sacerdo­
te, e é o momento a que havemos chegado.
Quando a gente usa uma sotaina ou um burel, sen­
te o rubor subir à fronte em abordando o relato do
abominável processo de Ruão.
Os juizes de Joana d'Arc são doutorns da Sorbo­
na, manjes, prelados, um bispo!. ..
"A Igreja", diziam esses miseráveis, "não póde
mais defender-vo:5". E é diante da fogueira erguida
por suas ordens, que eles têm a impudência de usar a
l,inguagem da caridade evangélica.
:Não! eles não eram da Igrej:i.

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310 LÉON RIMBAULT

Não há nada mais doloroso do que ver os m1ms­


tros de Deus, do Deus de toda justiça, cúmplices dos
violadores do direito.
Mas, se as traições deles entristecem a Igreja, não
a atingem.
Satanaz, por sua revolta, deshonrou porventura
todos os anjos?
Judas lançou acaso a vergonha da sua venaHdade
deicida sôbre todo o colégio apostólico?
Bazaine salpicou com a sua infâmia todo o exér­
cito francês?
Um mau pai põe acaso no pelourinho a paternida­
de inteira?
Um magistrado infiel à sua função arrasta ao su­
plício toda a magistratura?
Evidentemente que não: Non ab uno disce omnes.
Então, por que haveriam de acusar a Igreja pelo
crime de alguns dos seus membros? A Igreja é a pri­
meira a reprová-los.
Joana d'Are pertence à Igreja católica e não ao li­
vre pensamento.
Ela representa a Igreja Católica nas suas inspira­
ções, nas suas lutas, nas suas vitórias, na sua imorta­
lidade!
Os adversários das nossas crenças sentem tão bem
que Joana d'Are é essencialmente católica da verdadei­
ra França, que elevam estátuas a Voltaire, o ignobil
insultador da Donzela, o lambe-botas de Frederico da
Prússia, o inimigo do povo, do povo que, como ele diz,
precisa, como o boi, "de jugo, aguilhão e feno".

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AS HEROINAS DO DEVER 311

A Igreja repudiou Cauchon. Por que guardam eles


Voltaire? Por que dois pesos e duas medidas?
Cauchon, posto que padre, não era mais filho da
Igreja do que Voltaire era filho da França, já que fran­
cês.
Não! Os juizes de Ruão não eram a Igreja. Acima
da mitra do bispo de Beauvais e do crânio raspado dos
Loyseleur e dos Lemaitre, é para a Igreja de Roma, é
para o Papa, que Joana apela.
A Igreja! a Igreja está com o cura que dá a Joana
a comunhão, com os Franciscanos que a recebem na
Ordem Tercetra, com os Dominicanos que a confes­
sam e animam.
A Igreja, está com Pio II, que foi o primeiro a fa­
zer o elogio da santa heroina; com Calixto III, que ou­
ve o apelo súplice da mãe de Joana e que ordena a re­
visão integral do processo de Ruão.
A Igreja, está com Leão XIII, amigo luminoso
dos trabalhadores, que a declara venerável.
A Igreja está com Pio X, filho de camponeses co­
mo ela, de zelo de fogo, que a canonizará amanhã. (1)
Vai, vai, vai, filha do povo de De1,1s, vai, Joana, o
teu destino de anjo protetor da pátria não terminou. A
França mais que nunca precisa de ti. Ajuda-nos a refa­
zer as almas, a reconquistar o território, a restaurar,
entre nós, o reino de Jesús-Cristo.

(1) Está finalmente com o imortal Pio XI, que teve a ven­
tura. de canonizá-la. Este livro antecede essa data gloriosa. - N.
do T.

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312 LÉON RIMBAULT

E vós, minhas Senhoras, depois de, nesta confe­


rência, beberdes até às fezes a taça de todas as vossas
glórias, pedí a Joana d'Arc a chama do verdadeiro pa­
triotismo.
Mais do que os homens, sois capazes de entusias­
mo, porque tendes mais imaginação. Tendes mais com­
paix:io do que eles, porque tendes mais coração. Por
isto, apesa.r do vosso horror à guerra, Bella matribus
dete8tata, a coragem cívica não vos é estranha.
Sem falar das heroinas judias, ou das mulheres dá
Lacedemônia, a armarem elas próprias os homens com
um escudo, dizendo: "Dentro ou por cima ! - Esquife
ou pavês !", não temos nós as Genovevas, as Joanas
Hachette, as Amelinas du Puget, as Philis de la Tour
du Pin, as Virgínias Jesquiere, as Jacqueline Robins,
as Suzanas Didier, as Alexandrinas Barreau, as Luizas
de Beau lieu, as Laurentin-Proust?
Sem tomar as armas, como tantas valentes e alti­
vas compatrícias vossas, quantos meios tendes, minhas
Senhoras, de testemunhar à pátria o amor e o culto pa­
triótico das imitadoras de Joana d'Are!
Lede os feitos e gestos pátrios.
Inspirai-vos, nos vossos estudos, do espírito pá­
trio, e não vos deixeis invadir pelas influências deplo­
ráveis de um cosmopolitismo sem beleza, sem delica­
deza, sem tradições.
Cultivai a língua pátria, evitando exóticos e des-

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AS HEROINAS DO DEVER 313
necessários empréstimos a outras línguas no vosso mo­
do ce dizer.
Segui o exemplo das nações prolíficas. Que será
d a pátria nos campos de batalha, se prevalecer essa
norma execrável do filho único de tantos lares? E que
será tambem dos nossos interêsses espirituais, quando
escasseiam os sacerdotes?
Induzí vossos pais, vossos esposos, vossos filhos a
cumprirem os seus deveres de cidadãos, em qualquer
terreno.
Inspirai a vossos filhos o amor das grandes cau­
sas, e, tanto quanto possível, evitai o êxodo dos cam­
pos para as cidades.
Reagí, minhas Senhoras, contra a insipidez dos
costumes e contra o enervamento dos caracteres.
Rezai, falai, agi, sofrei: é pela pátria. O que vós
quiserdes, Deus o quererá.
Quando tudo é desesperado numa causa nacional,
não se deve desesperar ainda, se resta um fóco de re­
sistência no coração duma mulher.
As mulheres são mais naturalmente heróicas do
que os homens. E quando esse heroísmo deve ir até ao
maravilhoso, é duma mulher, ficai sabendo, que cum­
pre esperar o milagre.

FIM

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lNDICE

Prefácio 5
Introdução 9
Do Dever 13
As ,que pensam 41
As que vibram 65
As que amam 91
As que choram 121
As que rezam 147
As que trabalham 175
As que lutam 199
Genoveva e as virgens do lar 211
Clotilde e a mulher-apóstolo 233
Branca de Castela e as mães 259
Joana d'Are e o patriotismo 283

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