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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
LAURA BATTAGLIA
São Paulo
2013
LAURA BATTAGLIA
Faculdade de Educação da
Área de concentração:
Orientador:
Claudemir Belintane
(EXEMPLAR REVISADO)
São Paulo
2013
1
2
Nome: BATTAGLIA, Laura
Título: Das memórias narrativas às representações míticas:
arte e desafios na alfabetização.
Aprovado em:
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
Aos meus avós Andrea, Yvonne, Alberto e Lúcia, e à minha tia Gabriella que
mesmo irremediavelmente longe ainda me ensinam a cantar ninas, olhar flores,
entalhar madeiras, bordar tecidos, gostar de guloseimas: obrigada pelos colos,
aconchegos e os cantos que trouxeram de outros lugares.
Às tias Marina e Ângela que cantam em comunhão. À tia Lourdes que sabe cantar
para muitos desencantados. À prima Lúcia que canta com paixão.
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REVERÊNCIAS
5
AGRADECIMENTOS
Pessoais
Aos alunos dos 1º. e 2º. Anos do Ensino Fundamental I da Escola de Aplicação da
USP, por expressarem a alegria de aprender; a seus familiares pela confiança no
trabalho e disponibilidade para esta pesquisa.
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AGRADECIMENTOS
Institucionais
7
Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me
induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo,
desânimos, esforços. Dela me prezo sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém,
um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda
ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do
que seja na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com
que me familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo,
aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?
Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
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RESUMO
9
ABSTRACT
This thesis aims to contribute to the field of literacy through its entanglement
with narrative memory and mythical representation under the beacons of
Psychoanalytic theory and studies on orality. By analyzing how literacy
occurred in Brazil, from the catechesis of its indigenous people to the present
day, with (almost) all children in school, it was noticed that it has always been
ineffective: formerly caused by the exclusion of portions of the population and
today by the inefficiency of the captained educational guidelines, or by the
coordination spheres, that were placed away from the school institution, or by
the foreign pedagogical models adapted to our culture. It is first noticed the
exhaustion of teaching knowledge, caused by the controlled production and
use of teaching materials; secondly, a pedagogical practice that does not
consider the child in their childhood features, and thirdly, as a consequence of
the first two situations, the disregard not only to the diversity as well as to the
singularities. In the field of pedagogical developments focused on literacy, the
gaze is directed primarily at the processes of writing (always ruled by an
amount of time of the student’s know-how), ignoring the fundamental
importance of reading, that being neglected, is provided through simplistic,
homogeneous materials, which highlight a pragmatic and uninteresting
reading of the world, which works, thus, as a decipherment of the everyday
adult life, crossed by market interests. In place of this symbolic emptying of the
pedagogical field it is demonstrated, through the elements of the
"CHALLENGES" PROJECT, a literacy that happens on three axes: the first
includes the rescue of reference narratives and of poetic orality with aesthetic
reliefs, for easily allowing the assumption of a reader positioning, subjective,
prone to intertextuality and interpretation; the second considers
heterogeneities in the context of the work with the singularities and the third
does not allow teachers isolation, involving them in a net of relationships
through which discourses about the practice of teaching and learning circulate
and reference one another. If, on one hand, literacy practice was brought to
the place where it happens – in the student-teacher relationship – yet, on
another, it is pointed out the urgency of government policies reviews in the field
education, that must consider not only the financial investment in this area, but
also, and especially, the representation of the repetitions discursive exclusion,
in order to allow us to make the rescue of history and involve aspects of
Brazilian culture in its parameters.
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NOMENCLATURAS
EI – Educação Infantil
EM – Ensino Médio
EMNR – Escola Municipal Nila Rego, em Pau dos Ferros (Rio Grande do Norte)
FE – Faculdade de Educação
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FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
QI – Quociente de Inteligência
TI – Tecnologia da informação
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Conteúdo
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 1
1. MEMÓRIAS (DES)ENCAMINHADAS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA ......................................... 27
1.1. A COLÔNIA – A EDUCAÇÃO RELIGIOSA DOS ‘PRIMITIVOS’ ......................................... 28
1.2. O IMPÉRIO – A EDUCAÇÃO DA ELITE .......................................................................... 45
1.3. OS MÉTODOS DE ENSINO – NA ESTEIRA DO LIBERALISMO E DO MÉTODO
CIENTÍFICO............................................................................................................................... 50
1.3.1. DUAS CARTILHAS EMBLEMÁTICAS ...................................................................... 51
1.3.2. OS SENTIDOS DA PALAVRA ‘ALFABETIZAR’ ......................................................... 59
1.4. A REPÚBLICA – DOS GRUPOS ESCOLARES À LEI DE DIRETRIZES E BASES (LEI Nº
9.493/96) ................................................................................................................................. 61
1.4.1. A ERA DOS MÉTODOS – A CONTENDA DA SEPARAÇÃO OU UNIÃO DA
LEITURA E ESCRITA .............................................................................................................. 62
1.4.2. A REFERÊNCIA PAULISTA ..................................................................................... 68
1.4.3. UMA PEQUENA DIGRESSÃO SOBRE A INTRODUÇÃO DOS ESPECIALISTAS NA
EDUCAÇÃO .......................................................................................................................... 72
1.4.4. VÁRIOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO E SEUS USOS ........................................ 79
1.4.5. A ESPERA PELA ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO: O SILÊNCIO DO
PENSAMENTO...................................................................................................................... 80
2. CONSTRUTIVISMO – UM MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO? ................................................... 89
2.1. OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAL ............................................................. 90
2.2. O CONSTRUTIVISMO DE EMILIA FERREIRO, ANA TEBEROSKY E COLABORADORES.... 95
2.3. A LECTOESCRITA DO CONSTRUTIVISMO ................................................................... 102
2.4. A COOPERAÇÃO ENTRE PARES .................................................................................. 114
3. NARRATIVAS E SUBJETIVIDADE – REPRESENTAÇÃO E TRANSMISSÃO COMO CONDIÇÃO
DE LEITURA E ESCRITA ............................................................................................................... 129
3.1. TRAMAS DE BERÇO.................................................................................................... 135
3.1.1. REDES TEXTUAIS – O LIVRE TRÂNSITO DAS PALAVRAS ..................................... 138
3.2. MEMÓRIAS ORAIS – O CORPO EM TORNO DO SAGRADO ........................................ 142
3.2.1. MEMÓRIA ORAL E MEMÓRIA ORAL ESCRITA – A SUBVERSÃO DA NARRATIVA 147
3.2.2. MEMÓRIAS EXTRA-CORPO – O REVIRAMENTO HISTÓRICO SOBRE OS
TESTEMUNHOS.................................................................................................................. 153
3.3. MEMÓRIA – LAÇOS DE TRANSMISSÃO ..................................................................... 157
3.3.1. LINGUAGEM E MEMÓRIA – REPETIÇÕES NO CORPO E FENÔMENOS DE FALA 163
3.3.2. DA LETRA À ESCRITA – NASCE UM SUJEITO QUE PERGUNTA ........................... 182
3.4. MITOLOGIA – A FUNDAÇÃO E A FUNÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL................................. 185
13
3.4.1. A INTERTEXTUALIDADE – A MONTAGEM E A DESMONTAGEM DE SENTIDOS
EM UMA CRIAÇÃO MÍTICA ................................................................................................ 196
3.5. INFÂNCIA – O FUNDAMENTO DA EXPERIÊNCIA, DA HISTORICIDADE E DA POESIA.. 202
3.5.1. A POESIA E A INFÂNCIA ..................................................................................... 206
3.5.2. LUDISMOS INFANTIS – O INTERTEXTO NO NONSENSE ..................................... 209
3.6. ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO – MOLA DO CONHECIMENTO ........................................ 212
3.6.1. SEPARAÇÃO – PROCESSO PRIMÁRIO DE LETRAMENTO .................................... 212
3.6.2. ALIENAÇÃO – ENTRADA NO PROCESSO SECUNDÁRIO DE LETRAMENTO ......... 214
3.7. SUBJETIVIDADES NA ALFABETIZAÇÃO – HETEROGENEIDADE NAS SALAS DE AULA . 215
3.8. NARRATIVAS E ENLACES DE LEITURA E ESCRITA ....................................................... 218
3.8.1. ROTINA INFORMATIVA – UMA FORMAÇÃO DESINTERESSANTE ...................... 223
3.8.2. ORALIDADE – ABERTURA AO DESEJO ................................................................ 231
4. TEXTUALIDADES – DA DERIVA À REPRESENTAÇÃO ........................................................... 240
4.1. PROJETO LER E ESCREVER E PROGRAMA BOLSA ALFABETIZAÇÃO – UMA VISÃO
SOBRE AS NARRATIVAS E SOBRE A LEITURA ......................................................................... 244
4.2. A TRANSMISSÃO NARRATIVA E A FUNÇÃO DA EXPERIÊNCIA ................................... 256
4.3. OS MEANDROS DA MODERNIDADE .......................................................................... 268
4.3.1. VOCÊ PRECISA, LOGO VENDO ........................................................................... 280
4.3.2. PELA JANELA ...................................................................................................... 291
4.4. O GOZO VAI À ESCOLA .............................................................................................. 301
4.4.1. O MERCADO DA ALFABETIZAÇÃO ..................................................................... 302
4.4.2. PRATELEIRAS DE NOMES ................................................................................... 305
4.4.3. O LUGAR DA ESCOLA NA EDUCAÇÃO ................................................................ 314
4.5. LEITURA E ESCRITA PARA ALÉM DO PAPEL – A REPRESENTAÇÃO COMO FUNÇÃO
DE LETRAMENTO ................................................................................................................... 320
5. NARRATIVAS – TENSIONAMENTO ENTRE A SINGULARIDADE E A SÓCIO HISTÓRIA ......... 328
5.1. HETEROGENEIDADES EM SALA DE AULA – O TENSIONAMENTO DAS RELAÇÕES..... 330
5.1.1. DIFERENTES ESCUTAS/OLHARES SOBRE O ALUNO E SOBRE A EDUCAÇÃO ...... 332
5.1.2. DIFERENTES ORIGENS........................................................................................ 339
5.2. NÚCLEOS FAMILIARES – QUESTÕES ACERCA DAS NARRATIVAS ............................... 346
5.3. O RESGATE DAS NARRATIVAS E DAS MEMÓRIAS – REPRESENTAÇÕES EM SALA DE
AULA 374
5.3.1. DO LAÇO DE FITA NO CHAPÉU À MENINA ........................................................ 374
5.3.2. O ENTEADO NA TRAMA GENEALÓGICA ............................................................ 383
6. CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 391
7. ANEXOS ............................................................................................................................. 395
7.1. Anexo A ..................................................................................................................... 395
7.2. Anexo B ..................................................................................................................... 398
7.3. Anexo C...................................................................................................................... 404
14
7.4. Anexo D ..................................................................................................................... 412
7.5. Anexo E ...................................................................................................................... 417
8. REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 420
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INTRODUÇÃO
O lugar do estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de
suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho,
entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto. Não há
prisão pior que uma escola primária de interior. A imobilidade e a insensibilidade me
aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me
comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler (RAMOS, 1945: 206).
1
Ourela – borda espessa de uma peça de tecido.
1
transmissor dos valores sociais deste acontecimento, nem de ações em políticas
públicas que as estabeleça e oriente. Esta tese se organiza em torno destes temas.
2
CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão vinculado ao
Ministério da Educação (MEC) que tem como atribuições a avaliação da pós-graduação stricto sensu,
acesso e divulgação da produção científica, investimentos na formação de especialistas de alto nível
e promoção da cooperação científica internacional e INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira, autarquia federal vinculada ao MEC, que visa, entre outras, manter e
organizar sistemas de informações e estatísticas educacionais, orientar e coordenar projetos
educacionais, subsidiar políticas públicas em educação.
3
A síntese deste projeto e suas propostas encontram-se no Anexo A desta tese.
2
2. Nas várias mudanças de rumo da alfabetização no Brasil, o que se repetiu
e o que foi elidido nas transmissões geracionais?
3. Como as discursividades estabeleceram o que é permitido saber?
4. Como operar com as narrativas mnêmicas e com as construções míticas
para que seja possível promover mudanças na alfabetização brasileira?
5. Que habilidades narrativas mínimas um professor deve ter e sustentar
para ser um agente alfabetizador efetivo?
6. Em um quadro tão amplo de variáveis, o que é possível propor como
mudança das políticas públicas que reverta em transformações efetivas
para o campo da alfabetização?
Parto de três pressupostos para enunciar a hipótese desta tese. O primeiro é de
que o ser humano não é segmentado em áreas de ação e saber, tampouco que sua
realidade se dissocia em interna e externa (pretendendo um sujeito-social
desarticulado do sujeito-individual), e que por isto, ainda que para efeitos didáticos
a separação destes dois planos facilite teorizá-los, esta divisão no âmbito do
pensamento e das ações educacionais é uma das condições de prejuízo da educação
formal brasileira. O segundo ponto é de que a aprendizagem se dá necessariamente
por meio de relações humanas concretas de ensino / aprendizagem e que estas
comportam lugares desiguais, isto é, alunos e professores (assim como filhos e pais)
ocupam posições sociais e subjetivas diferentes para que a transmissão geracional
aconteça e ambas são determinantes para o processo de aprendizagem. O terceiro
pressuposto é de que está nos enunciados discursivos dos diferentes campos
mnêmicos a possibilidade de se fazer laço social e de compartilhamento dos códigos
da língua, mas o modo como se repetem e são representados é que determina a
transmissão efetiva, ou a repetição alienada e sem sentido.
3
O que justifica os esforços desta pesquisa em alfabetização está resumido em
dois fatos: o primeiro relacionado a dados antagônicos fornecidos por órgãos
governamentais, referentes aos índices de melhoria da qualidade de ensino no
Brasil, especialmente da alfabetização; o segundo relacionado a apreciações
cotidianas sobre as habilidades leitoras e escritoras da população brasileira em
geral e à disseminação do que se convencionou chamar de ‘analfabetismo funcional’.
Fôssemos analisar aos olhos de hoje a situação descrita por Graciliano Ramos,
diríamos que fatos como aquele se deram há muito tempo e que tanto as condições
adversas do ensino básico se alteraram, quanto os índices de crianças incapazes de
ler aos nove anos também não são mais os mesmos. Efetivamente, muito se avançou
na escolarização básica no Brasil com a obrigatoriedade de sua universalização, com
a formação de professores, com o aumento significativo do número de escolas e com
a preocupação em torno da elaboração de diferentes materiais didáticos; mas
muitas questões sobre a qualidade e a efetividade da alfabetização continuam em
aberto.
4
Maria do Rosário Longo Mortatti, 2004.
5
A Prova Brasil é uma avaliação de âmbito nacional realizada a cada dois anos, pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), com estudantes que estão
concluindo o 5º. Ano do Ensino Fundamental I (EFI) e o 9º. Ano do Ensino Fundamental II (EFII).
4
cujos dados do ano de 2011 apontam para um quadro bem diverso do grau de
instrução mínima para o português. A avaliação aplicada a todos os estudantes das
escolas públicas brasileira que estavam concluindo a 4ª. série primária (atual 5º.
Ano de EFI), mostrou que somente 40,02% dos alunos atingiram índices
satisfatórios de acertos – níveis de 4 a 9 na Tabela 1 – ou seja, quase 60% das
crianças de 9-10 anos não alcançaram a meta mínima de letramento necessária à
aprendizagem subsequente (índices de 0 a 3 da mesma Tabela 1):
Tabela 1 – Prova Brasil 2011: Percentagem de alunos por nível de proficiência em Língua
Portuguesa (leitura) na quarta série/quinto ano do Ensino Fundamental I. O nível 4
corresponde à média mínima estipulada pelo Sistema de Monitoramento do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE) e pela organização não governamental Compromisso de
Todos pela Educação (BRASIL, 2012) necessária ao prosseguimento dos estudos.
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Níveis
6,99 14,49 19,04 19,46 16,44 11,63 7,16 3,32 1,27 0,19
Total Brasil (%)
5,44 11,31 16,04 18,28 18,00 14,59 9,71 4,53 1,81 0,28
São Paulo (%)
9,86 21,62 25,45 20,73 12,12 5,92 2,82 1,14 0,31 0,04
Pará (%)
Rio Grande Norte 12,90 20,61 22,43 18,29 12,29 7,70 3,56 1,62 0,55 0,04
(%)
Já na Tabela 2 vemos que os níveis alcançados pelo conjunto dos alunos de 8ª.
série (atual 9º. Ano EFII), também para proficiência em português medidos pela
Prova Brasil em 2011, mostraram que 55,19% dos alunos de 13-14 anos não
atingiram índices igual ou maior a 6 e que só 44,81% alcançaram a meta:
6
Estes estados compõem a Tabela 1 por compreenderem as cidades de Belém (PA) e Pau dos Ferros
(RN) nas quais se encontram duas das escolas que participam do PROJETO “DESAFIOS”.
5
Tabela 2 – Prova Brasil 2011: Percentagem de alunos por nível de proficiência em Língua
Portuguesa (leitura) na oitava série/nono ano do Ensino Fundamental II. O nível 6 é a
média mínima estipulada pelo PDE e pela ONG Compromisso de Todos pela Educação
(BRASIL, 2012) necessária ao prosseguimento dos estudos nesta faixa de escolarização.
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Níveis
0,32 2,40 6,23 11,20 16,16 18,87 17,86 13,90 8,41 4,64
Total Brasil (%)
Não se quer afirmar com isto que não houve inúmeros esforços para a reversão
do quadro da alfabetização, especialmente ao longo da República neste último
século. No Mapa do Analfabetismo no Brasil, publicado pelo INEP em 2003 há uma
vasta lista desses programas de governo, que aqui reproduzimos, para que se tenha
ideia de que não foram poucos os empenhos. Dentre eles pode-se ver: Campanha de
Educação de Adolescentes e Adultos (1947, Governo Eurico Gaspar Dutra);
Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958, Governo Juscelino
Kubitschek); Movimento de Educação de Base (1961, criado pela Conferência
Nacional de Bispos do Brasil-CNBB); Programa Nacional de Alfabetização, valendo-
se do método Paulo Freire (1964, Governo João Goulart); Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral) (1968-1978, Governos da Ditadura Militar); Fundação
Nacional de Educação de Jovens e Adultos - Educar (1985, Governo José Sarney);
Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania - Pnac (1990, Governo Fernando
Collor de Mello); Declaração Mundial de Educação para Todos (assinada em 1993
pelo Brasil em Jomtien, Tailândia); Plano Decenal de Educação para Todos (1993,
Governo Itamar Franco); o Programa de Alfabetização Solidária (1997, Governo
Fernando Henrique Cardoso); Programa Uma Escola do Tamanho do Brasil (2002,
Governo de Luiz Inácio Lula da Silva). Ainda no Governo de Lula foi lançado outro
programa (Mais Educação, 2007) e o atual Governo de Dilma Roussef que tem
6
continuado os programas do Governo Lula, no início de 2013 acrescentou o Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa.
Educação
A educação é muito importante na nossa vida.
Para quando crescermos está muito bem educados porque é os pais que educa os
filhos.
Para educar os mais velhos ter educação não são só nos que precisa ter educação
como todo o mundo, tem gente nesse mundo que os pais não educam seus filhos não
têm respeitos com os mais velhos, com os idosos como moços senhores etc.
É nós sabemos o que é educação esse mundo não [palavra ilegível] educação para
varias gentes tem gente que pega coisas sem pedir dos outros etc.
É educar muitas gentes que vive nas ruas como meninos que chinca seus próprios
pais seus avós etc. (VAZ, 2008: 328).
Observamos em trechos como este que a necessidade de narrar é premente; mas
a possibilidade de fazê-lo é posta à prova.
Uma história contada, uma tese escrita, um caso relatado: quem está livre de
enredar um texto? A uma criança se lhe pede que conte seu dia na escola, ao jovem
que descreva a geografia de um país, ao adulto que reporte ao chefe os resultados
7
de seu trabalho e ao idoso que dirija suas narrativas novamente aos pequenos.
Descrições fantasiosas ou objetivas, criações ficcionais ou retratos de uma
realidade: todos os dias a humanidade conta histórias. Mas, quando pensamos na
dimensão tomada pelo texto (oral ou escrito) no estabelecimento das relações
humanas, percebemos que não é em qualquer medida que é possível falar, escrever,
descrever, contar, narrar para si e para o outro, para embrenhar na cultura. Se de
um lado, pela própria condição humana de ser de linguagem, as palavras nos
escapam, faltam ou se repetem à revelia de nossa vontade, por outro, o que
identificamos – e que aqui é objeto de pesquisa – é que além da falta intrínseca à
linguagem, há uma expropriação do direito a algumas formas de expressão da
linguagem – leitura e escrita – à qual uma parcela significativa da população está
submetida, ao ser semi-alfabetizada.
8
recrudesce e o espírito aliena-se nos poucos elementos externamente ofertados pelo
cotidiano. Muitas crianças, mesmo imersas no mundo letrado, não são alvo dessas
contações de histórias. Veem-se assim impedidas de alcançá-lo e não conseguem
aceder ao universo alfabético que o sustenta. São crianças que em idades avançadas
do processo de escolarização conhecem alguns poucos rudimentos da língua escrita
mas não são capazes de participar do código social que lhes permitiria compartilhar
e criar suas próprias histórias.
7
Refiro-me aqui ao acompanhamento diário de alunos do Ensino Fundamental I e II, e do Ensino
Médio, por mim realizado em escola particular de grande porte na cidade de São Paulo, entre os
anos 2000 e 2003, e depois entre 2008 e 2009, tanto quanto à experiência de consultoria a
Delegacias de Ensino do Estado de São Paulo em 2004 e 2005, à pesquisa realizada em escolas
públicas com crianças com câncer e à atividade como docente de cursos de graduação em instituição
particular, também na cidade de São Paulo, desde 2010.
9
avaliado pelo fato de haver obstáculos à aprendizagem – situação em que se avalia
apressadamente a dificuldade como intransponível – mas precisa ser resolvido
pelos sentidos e representações assumidos por estas dificuldades.
8
Banda de Moëbius é um espaço tridimensional feito com uma tira plana retangular (bidimensional)
que contém inicialmente duas superfícies (avesso e direito) e quatro bordas (duas maiores e duas
menores) que, ao se fecham em suas extremidades menores, depois de aplicar à fita uma
semitorção, resulta em uma única superfície (a face avessa se liga à direita e vice-versa) e uma única
borda (equivalente de um círculo).
10
É preciso fazer confluir estas duas concepções mnêmicas, uma vez que, quando
há a separação dos dois planos de realidade em que os sujeitos estão presentes, há
também a desarticulação do sujeito com o mundo social ou, o que dá no mesmo, sua
total alienação ao meio. Isto é, quando os professores/pais deixam de ser
investigadores que com sua subjetividade vão questionar as dificuldades próprias
daquele aluno/filho, e passam a delegar as respostas para uma esfera supra-relação,
impedem a criança de representar aquela relação onde se dá a aprendizagem/
educação. Quando o professor/pai sai de cena, ele está respaldado por uma
discursividade sobre educação representada histórica e socialmente, mas na qual o
aluno/filho não consegue se representar subjetivamente.
Seria perfeitamente descabido cair num sistema do mundo, como se faz com muita
frequência, projetando nosso domínio, de maneira insuficiente e bem pobre, sobre toda
uma série de ordens e campos escalonados da realidade, a pretexto de que eles podem ter
alguma analogia de conjunto com aquilo que fazemos, porque o grande se encontra sempre
no pequeno. Esta projeção não poderia, certamente, esgotar de jeito nenhum a realidade,
tampouco o conjunto dos problemas humanos. Em contrapartida seria aberrante isolar
completamente nosso campo e recusarmo-nos a ver o que, neste, não é análogo, mas sim
diretamente conectado, em comunicação, às voltas com a realidade que nos é acessível de
outras disciplinas, outras ciências humanas. Estabelecer essas conexões me parece
indispensável para bem situar nosso domínio, e mesmo, simplesmente, para que nós o
entendamos melhor (LACAN, 1957: 257-258).
No plano sócio político o educador Paulo Freire (1987 (b)) considera que só há
educação ao se admitir a importância e a função da palavra ‘não’ como
condicionante capital das relações sociais. O ‘não’ é a palavra fundante do gesto
político e, para este pensador, não há educação sem política. Mais ainda, não há
11
educação sem projeto futuro político – e este só se faz respaldado pelo confronto
constante com os entraves que sistematicamente impedem o acesso à educação no
plano social/coletivo. Aponta Freire que uma das formas de se perpetuar a exclusão
do processo educativo é delegá-lo, entregá-lo ao encargo de outrem – e é a esta
tentativa que ele sistematicamente diz ‘não’, levando cada sujeito a assumir sua
posição de educador e educando.
Retomar a memória política de muitos gestos e muitos esforços foi registro, foi
mapeamento da sociabilidade na qual eles vêm se exercendo enquanto pessoas. [...]
criticar é quando, procedendo com jeito, a gente toma nas mãos o pensamento que
tomou conta dos nossos gestos (FREIRE, 1987(b): 10).
Assim como o meio social configura o espaço de ação de seus indivíduos, estes
também agem sobre o grupo emprestando suas balizas subjetivas. Faz-se
necessário, portanto, considerar igualmente como as constelações de enunciados se
acomodam, são reproduzidas e podem ser operantes de mudanças pelos sujeitos
agentes da educação – sejam eles professores, pais de alunos, diretores,
coordenadores, estudantes, gestores públicos, teóricos da educação, etc. Estas
marcas são únicas a cada um dos sujeitos que se apropria dos discursos coletivos de
modos diferentes. Os recursos que permitem as diversas e infinitas ponderações
humanas dependem de duas condições interligadas: da posição subjetiva
(compromisso ético) e da memória subjetiva (apropriação discursiva,
representação).
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Antônio José Santana Martins – o cantor, compositor e ator Tom Zé – nos fornece
um exemplo de como memória e alfabetização se articulam. Era filho de um
carismático comerciante do interior baiano, dono de uma oralidade rica, embora
com pouca instrução escolar. Do lado materno, era de família rica e afeita aos
estudos. No programa Olhar Brasileiro da Rádio USP9, descreveu dois momentos
cruciais de seu processo de alfabetização formal, imbricados à memória. Ele e seus
irmãos iniciaram os estudos em torno da mesa de casa, nas recorrentes conversas
que se davam após as refeições. Ali falavam, consideravam, explicavam, discutiam
as ‘coisas da vida’, de modo particular. Quando foi para escola cursar seu primeiro
ano primário, fracassou uma, duas, três vezes, deixando seu pai angustiado e certo
de que a ele e ao filho ‘só restava o abismo’. Diz Tom Zé: O que ele não sabia é que
encontrei no balcão da [sua] loja oito séculos de cultura oral árabe, da invasão da
península Ibérica que fazia dos portugueses e espanhóis povos muito cultos, e isso eu
não encontrava na escola. Seu primeiro vislumbre foi de que toda riqueza de saber,
permeado pela oralidade à qual já tivera acesso, não encontrava ressonância alguma
na instituição escolar. Quando finalmente pode ler na escola pela primeira vez um
texto que falava de uma criança chamada Pedro, sobrevieram outras questões: Será
que todo mundo entendeu que Pedro entrou na sala? Será que todo mundo entendeu o
que eu entendi nesses rabiscos? Será que é assim?
A dúvida de Tom Zé faz pensar naquilo que a escola espera quanto ao uso da
língua e seus sentidos. Os fracassos escolares iniciais que o cantor enfrentou põem
em evidência a dissonância entre os textos fundados na oralidade da tradição
popular e a linguagem estabelecida na instituição escola. Como assinala Claudemir
Belintane (2011), os elementos da tradição oral estão dispostos aos sujeitos antes
de qualquer relação de aprendizagem formal e, como acontecimento vinculado à
fala, está sujeito às vicissitudes da linguagem. Isto é, como temos evidências desde
Sigmund Freud, sabemos que a linguagem, a fala, acontece pelos interstícios do
imprevisto, do equívoco, do esquecimento, e neste ponto é bem diversa da
linguagem matriciada na/pela escola, de cunho essencialmente comunicativo,
pragmático e objetivo, que tenta barrar as intromissões subjetivas da língua.
9
Programa produzido e apresentado semanalmente por Omar Gilbram, que vai ao ar todos os
domingos das 10h00 às 11h00. A referência acima é do dia 15/01/2012 e pode ser acessada pelo site
www.radiousp.br
14
As narrativas orais articulam elementos de história e dos traços da cultura de
cada povo e lugar, ao mesmo tempo que também permitem maleabilidades
vinculadas à subjetividade do orador que é alvo dessas narrativas e repassa-as
adiante. Como, então, a escola incorpora ou rechaça estes aspectos da língua? Como
a alfabetização é, ou não subsidiária das tradições orais?
Mas, alfabetizar-se não é só saber ler e escrever – isso é dito e redito todos os
dias nas brechas desse país – mas tampouco é aprender só na escola a
operacionalidade da leitura e da escrita úteis ao convívio social e à formação cidadã,
como se pretende atualmente nas orientações curriculares das instituições de
ensino. Alfabetizar-se tem um ‘agora’ e um ‘depois’ em que o sujeito tem que ser
considerado com suas vicissitudes e particularidades anteriores, já que sem elas é
incapaz de fazer o laço social necessário à mínima troca com o outro. Poder falar de
si em toda atividade que se desenlaça – e dentre elas a alfabetização – é condição de
poder situar-se na relação com o outro, de compreender o que o outro deseja e nos
demanda, e medir o quê e quanto dar em troca a esse outro: ‘O que escrevo para que
ele me leia? O que ele escreve para que eu o leia?’
15
o presente, tanto mais incerto será o juízo que pronuncie sobre o porvir 10 (FREUD,
1927: 5, tradução minha). Estabelece esta posição a partir dos possíveis
questionamentos do homem frente sua cultura e seus destinos, e destaca três fatores
que agem no sentido contrário de pensá-los. Primeiro porque são poucos os que
conseguem ter uma visão geral e panorâmica das ações humanas e todas suas
ramificações – geralmente transitam por um campo circunscrito dentro delas.
Segundo, porque as expectativas subjetivas exercem um papel preponderante, em
que o julgamento das coisas depende de fatores e experiências pessoais. Por fim, o
fato ‘assombroso’ na sua visão, de que os homens vivenciam seu presente com certa
ingenuidade, sem apreciar seus conteúdos, o que só seria possível tomando-se certa
distância do presente: [...] vale dizer que o presente tem que tornar-se passado para
que se possa obter dele uns pontos de apoio para formular o juízo sobre as coisas
vindouras11 (FREUD, 1927: 5, tradução minha).
10
[...] sin embargo, mientras menos sepa uno sobre el passado y el presente, tanto más incierto será
el juicio que pronuncie sobre el porvenir (FREUD, 1927: 5).
11
[...] vale decir que el presente tiene que devenir passado si es que han de obtenerse de él unos
puntos de apoyo para formular juicios sobre las cosas venideras (FREUD, 1927: 5).
16
leva ao tolhimento destes sonhos no campo da educação, deixando que emerjam e
se consolidem prioritariamente ações concretas, tarefeiras, utilitárias, engendradas
só por técnicas e métodos. Descartam-se assim a criatividade e a fantasia próprias
dos sonhos, que no entanto não deixam de ser sonhados: estão lá, prontos para
serem buscados e trabalhados.
Além deste trabalho teórico, também contei com uma pesquisa de campo cujo
material foi cotejado com os elementos das análises bibliográficas. Os dados
empíricos derivam prioritariamente da pesquisa empreendida pelo PROJETO
“DESAFIOS” e comporta atividades de três instituições: da Escola de Aplicação da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em São Paulo-SP (doravante
nomeada EA-FEUSP), Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará, em
Belém-PA (doravante denominada EA-UFPA) e Escola Municipal Nila Rego, em Pau
dos Ferros-RN (doravante denominada EMNR-PF). Esta tese conta com materiais
colhidos prioritariamente em São Paulo, mas não deixa de se valer daqueles
provenientes dos outros dois polos.
17
traços de expropriação cultural de algumas populações paulatinamente se arraigam
na educação, culminando com a teoria do ‘déficit linguístico e cultural’ que se
instalou nas décadas de 1970-80.
18
O Capítulo 2 dediquei à análise das Leis de Diretrizes e Bases (LDB de 1996) e
de como dispõem sobre a educação básica no Brasil hoje, e à análise dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs de 1996) e de como propõem revisões sobre a
alfabetização no país. Identifiquei nos PCNs uma discursividade em torno do
letramento que se vale de conceitos e termos do Construtivismo, pesquisa
empreendida por Emilia Ferreiro, Ana Teberosky e colaboradores sobre os
processos cognitivos infantis para construção da leitura e da escrita.
19
alfabetizador é um mediador deste processo infantil, que se dá prioritariamente
entre pares – situações que em última análise delegam a cada criança a
responsabilização pelo seu processo alfabetizador.
12
É importante esclarecer que este material didático, embora tenha sido enviado à escola, deixou de
ser utilizado a partir de 2011, quando o PROJETO ”DESAFIOS” teve início naquela instituição de
ensino.
20
possibilidade de se ir de um modo textual a outro permitindo, nesta passagem, as
emergências da subjetividade: intervalos, faltas, excentricidades.
21
que onde se ancoram as dificuldades de letramento também estão fundamentadas
as dificuldades com relação à autoria dos próprios textos míticos.
Utilizo neste Capítulo 3 textos de autores como Walter Ong, Milmam Parry,
Giorgio Agamben, Claudemir Belintane, Walter Benjamim, Sigmund Freud, Jacques
Lacan, Paul Ricour, Christian Ingo Dunker, entre outros. Dou prosseguimento à
análise do material didático EA-FEUSP e apresento mais alguns dados do material
de campo colhido na PESQUISA “DESAFIOS”. Valho-me de alguns exemplos de uso
da oralidade (como o que estabelece Belintane) e de manifestações da linguagem
que, por sua natureza imprevisível e espontânea, fazem parte de manifestações
cotidianas que não estão registradas de forma que se possa revisitá-las ou consultá-
las, mas que, por este mesmo caráter subjetivo evanescente, são considerados como
materiais relevantes para esta tese, pois revelam o campo privilegiado da leitura que
cada sujeito faz do mundo e de seu lugar nele.
14
Programa Bolsa-Alfabetização – criado pelo governo do Estado de São Paulo em 2007 (Decreto
51.627) consiste na colaboração de instituições de ensino superior na prática pedagógica em sala de
aula, em que alunos dos cursos de pedagogia e letras apoiam professores das salas de 2º. Ano EFI.
15
Projeto Ler e Escrever – instituído pelo governo do Estado de São Paulo em 2007, [...] é um
conjunto de linhas de ação articuladas que inclui formação, acompanhamento, elaboração e
distribuição de materiais pedagógicos e outros subsídios, constituindo-se dessa forma como uma
política pública para o Ciclo I. Tinha como meta [...] ver plenamente alfabetizadas, até 2010, todas
as crianças com até oito anos de idade (2ª série/3º.ano) matriculadas na rede estadual de ensino,
22
função secundarizada dos textos e do uso dos textos para a alfabetização, sustentada
pelo discurso oficial de orientação educacional e tensionada em sala de aula por
diferentes visões de professores e alunos. Em seguida resgato o que é um narrador
e a importância da função narrativa nas transmissões geracionais. Passo então à
apreciação crítica sobre o declínio das grandes narrativas e da tentativa de
cooptação mercadológica do espaço vazio que aí se abre, com destaque para a
hiperinfluência da televisão como elemento portador das narrativas e do
esvaziamento do papel da escola na transmissão geracional. Em paralelo a isto,
analiso pormenorizadamente o material didático EA-FEUSP, no qual identifico
exatamente a evasão textual para a entrada de elementos de propaganda de
produtos e bens de consumo. Verifico também neste material didático, que o
discurso dirigido aos professores tenta recobrir toda prática de sala de aula, de um
lado desqualificando os profissionais do seu saber sobre os alunos (em parte como
as cartilhas utilizadas desde o Império até a década de 1980) e de outro,
estabelecendo para os alunos conteúdos extremamente repetitivos, formalizados e
esvaziados de relevos estéticos que lhes permita explorar a linguagem. Vamos ver,
por exemplo, que com relação ao gênero poesia, o aluno é convidado a perceber a
forma do texto, mais do que sua riqueza poética. Destaco que não há nenhuma
referência neste material didático, às culturas indígenas e africanas, contradizendo
os preceitos das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica.
bem como garantir recuperação da aprendizagem de leitura e escrita aos alunos das demais
séries/anos do Ciclo I do Ensino Fundamental
(http://lereescrever.fde.sp.gov.br/SysPublic/InternaPrograma.aspx?alkfjlklkjaslkA=260&manudjsns=
0)
23
especialmente no que diz respeito à apropriação subjetiva do professor pelo seu
espaço de trabalho.
24
12 agentes domiciliares de alunos dos três polos da PESQUISA “DESAFIOS”; 4)
apresentação de materiais de dois alunos que participaram da PESQUISA
“DESAFIOS” e discussão sobre intervenções e resultados de atendimentos
individuais e em pequenos grupos.
Desde este complexo percurso, foi possível conclui que nossa proposta de
trabalho com as narrativas de referência e com a oralidade no processo de
alfabetização possibilita novos caminhos no campo da superação do que se coloca
como dificuldade de letramento.
25
letramento a partir da oralidade e das narrativas oriundas da tradição e ao
articularmos estes elementos às elaborações psicanalíticas que estabelecem o
letramento primário como primeiro ponto de constituição subjetiva (que se dá por
meio da inscrição dos traços mnêmicos entre mãe e bebê) o ineditismo desta tese
está na ideia de que o letramento secundário (aquele que se dá no processo formal
de alfabetização infantil) é condição fundamental, não só para a formação de sujeitos
cidadãos, mas para a conclusão da constituição subjetiva. Isto evidencia que a
negação de acesso aos processos educacionais tem reflexos negativos na formação
da sociedade, mas também na de cada sujeito.
Começo então, dando uns passos atrás, propondo uma reconstrução – que não
deixa de ser uma representação – sobre quem somos nós, brasileiros, herdeiros de
uma história riquíssima que precisamos revisitar para operar mudanças no campo
da alfabetização.
26
1. MEMÓRIAS (DES)ENCAMINHADAS DA EDUCAÇÃO
BRASILEIRA
Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas
Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas
Com estes versos Roberto Mendes e José Carlos Capinam encerram a canção Yá
Yá Massemba, relato da peleja dos negros traficados para o trabalho escravo no
Brasil Colônia e Império. Um fim que aponta para saída honrosa e esperançosa para
a condição de povos africanos sequestrados e comercializados; um objetivo ansiado
há tanto tempo e que ainda espera resposta. Os resultados insatisfatórios no que
concerne à capacitação para leitura e escrita de todos os brasileiros (ou ao menos
sua franca maioria) esbarra ainda em questões prosaicas sobre o que é alfabetizar,
ou quem se responsabiliza por seu acontecimento.
Essa história de educação social, de tão poucos avanços e muitos recuos, faz das
nossas escolas contemporâneas herdeiras desse passado.
27
campos sociais que, no mais das vezes, pendeu para o lado da exclusão de algum
segmento populacional. Assim, ora encontraremos claramente este discurso
afirmado em leis, ora veremos como estão velados em acontecimentos.
Interrompemos as investigações na década de 1980, quando se dá no Brasil a
entrada mais contundente do Construtivismo, assunto que abordaremos
separadamente, no próximo capítulo.
16
Constituição Brasileira de 1988.
28
pela convivência com outras civilizações penam para manter seus hábitos culturais
ou tê-los reconhecidos.
Nossa hipótese leva em conta que se a tradição oral acumula e filtra determinados tipos
de textos e os mantém como um acervo de todos é porque tais textos se prestam ao
desenvolvimento de determinadas estratégias linguageiras que, entre tantas outras
funções, também preparam a leitura, mesmo quando não há suportes gráficos diante
dos olhos (BELINTANE, 2011: 26)
17
Em setembro de 2011 e abril de 2012.
29
Pois bem, acreditávamos que aspectos da cultura indígena já estivessem
presentes nos textos disponibilizados para as crianças da Escola de Aplicação da
Universidade Federal do Pará, não só por meio das lendas do Açaí, da Mandioca, do
Mapinguari, do Boto, entre outros, mas também das línguas indígenas. Mas, para
espanto, só a duras penas estes aspectos vêm sendo introduzidos aos poucos nas
salas de aula, subsidiados pelo PROJETO “DESAFIOS”. Cabe dizer que a equipe de
pesquisadores do polo de Belém tem se empenhando, entre outras atividades, no
resgate da cultura local como subsídios de suporte da alfabetização. Ainda assim, no
primeiro ano da pesquisa estes elementos não foram trabalhados como parte do
currículo local, mas como ‘exigência do projeto’. Com mais facilidade os professores
lidavam com dados da cultura norte americana (o ‘mundo Disney’) amplamente
disseminada no universo infantil.
Naquele mesmo ano de 2011, toda a riqueza do universo das crianças indígenas
estava presente no espaço escolar, mas como um sub conhecimento, circunscrito a
uma sala junto à coordenação. Ali empenhada, a pesquisadora e educadora
30
Wanderléia Medeiros Leitão18 esforçava-se para manter viva a tradição indígena,
acolhendo alunos da instituição em atividades não curriculares de brincadeiras e
confecção de brinquedos de miriti. A incrível beleza deste patrimônio escondido
contrasta com o material exposto na sala de aula, mais à mão e à memória dos
alunos:
18
Professora, coordenadora do Grupo de Estudo, Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Inclusiva
e coordenadora do Grupo de Estudo, Pesquisa e Educação no Campo da Amazônia, da Escola de
Aplicação da UFPA.
31
Vê-se assim que elementos importantes que carregam os traços de civilizações
inteiras estão presentes, mas o olhar não se demora sobre eles. Figuram quase como
relíquias de museu, mais prontos à visitação do que ao manuseio e regozijo.
Fica claro que os jesuítas não ignoravam a importância dos rituais tradicionais
e seu efeito arrebatador sobre os índios; no entanto não reconheciam os cerimoniais
indígenas, devendo substituí-los por elementos da cultura dominante europeia.
32
perpetuar os conhecimentos e a memória de seu povo, sendo destituídos de seu
papel de líder do grupo social.
Não sendo fácil lidar com os adultos das aldeias, mais possível era educar seus
filhos. Essa, aliás, é para Maria Rosário Mortatti (2004) a primeira forma de
cooptação dos povos indígenas, já que em seus escritos não chega a mencionar a
33
tentativa de lida com os chefes tribais adultos. Para a autora, de início os
missionários católicos criaram as ‘escolas de ler, escrever e contar’, onde se
cristianizava e instruía os índios com o intuito de civilizá-los e onde o ensino
primário convinha somente a sustentação da catequese. Essas escolas eram
destinadas às crianças indígenas, pois acreditavam que elas seriam veículo mais fácil
para a expansão do pensamento religioso entre os pares das aldeias. Ainda segundo
a autora, estrategicamente com o tempo essas instituições passaram a servir
também aos mestiços, aos filhos de colonos e órfãos vindos de Portugal19, já que só
a população indígena seduzida por espelhos ou laçada compulsoriamente não era
suficiente para lotar os bancos escolares. Além dessas escolas, foram fundados os
colégios jesuítas cuja intenção era de formar novos missionários.
19
A propósito da deportação de órfãos de Portugal para fins de colonização das terras brasileiras,
sugerimos assistir ao filme ‘Desmundo’ (2003), de Alain Fresnot, baseado no romance de Ana
Miranda. Ambientado em 1570, o filme é todo falado em português arcaico e retrata a relação de
poder e troca dos colonos portugueses com os índios locais e com as mulheres (tanto com as
indígenas, quanto com as órfãs para cá enviadas).
34
Apesar do espaçamento no tempo, as mesmas considerações que se faria para
as práticas jesuítas do século XVI, podem ser feitas para estas mais recentes. Faz
parte da instrução das crianças orientá-las a observarem (ou vigiarem?) os hábitos
caseiros e a ensinarem seus pais a terem uma ‘atitude correta’. Estas práticas
educativas revelam três situações. Primeiro, tem claro objetivo de intervir sobre
padrões de comportamento social. Segundo, são práticas cobradas dos alunos e seus
pais, mas não necessariamente cumpridas pelas instituições escolares, como
podemos ver ainda hoje com relação aos assuntos ecológicos, na prática de
desperdício de materiais pelas próprias escolas, ou – mais grave – na falta de
civilidade dos governos militares.
35
um lado o objeto é ‘reciclar’ e do outro é ‘usufruir’; no discurso cívico, de um lado
está a ‘imposição da ordem’ e de outro a ‘liberdade de expressão’; e, finalmente, no
discurso colonizador, de um lado está ‘Deus’ e do outro a ‘cultura’. Não se fala da
mesma coisa, mas ‘ecologia’, ‘civilidade’ e ‘cristianismo’ se sobrepõem aos discursos
heterogêneos amalgamando-os e, aí, alienando os dois. Segundo Pêcheux isto se dá
em toda parte, em todos os discursos, mas o que chama a atenção nos três casos
citados é o uso da criança como instrumento dos enunciados imperiosos. A condição
de estar ainda em desenvolvimento é aviltada e sobre o pequeno indivíduo recai a
responsabilidade de formar os adultos – os mesmos que deveriam formá-lo –
portanto, de desempenhar um papel que não é seu, mas dos adultos incapazes de
exercê-lo.
[...] ensinam aos índios as coisas necessárias à sua salvação, lhes dizem missa e ensinam
a doutrina cristã duas vezes cada dia, e também [...] ensinam aos filhos dos índios a ler,
escrever, contar e falar português, que aprendem bem e falam com graça, ajudam as
missas e desta maneira os fazem polidos e homens (NÓBREGA, Carta XLI, apud
MOREAU, 2003: 197).
36
começaram a fazer parte do cotidiano escolar, questionando a ineficácia dessa
prática para a aprendizagem.
Toda língua carrega consigo maneiras de pensar e agir que lhe são próprias. O
único propósito da empreitada das Companhias de Jesus era, pela via do ensino da
língua portuguesa, o de modificar a maneira de pensar dos índios, para aceitação
obediente de seu novo papel na Terra: servir aos interesses divinos. ‘Alfabetizava-
se’ para a leitura dos ensinamentos religiosos, sem mais.
Mas não se modifica a estrutura social de um grupo de uma hora a outra. Como
a história mostra, esse é um trabalho de décadas, às vezes de séculos. Diz-nos Sérgio
Buarque de Holanda (1936) que [...] a experiência e a tradição ensinam que toda
cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando
estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida (BUARQUE DE
HOLANDA. 1936: 40). Não se deu diferente com os índios, que resistiram ao
37
aculturamento enquanto era imposto à força, mas cederam a seus ‘encantos’ quando
parte de suas tradições foi incorporada aos hábitos dos colonizadores.
Como meio de se aproximar da cultura local e usá-la a seu favor, Padre José de
Anchieta, um estudioso das línguas, aprendeu o tupi, que era língua indígena mais
falada no território brasileiro. Estabeleceu uma gramática para ela e podemos,
talvez, considerar os esforços de sistematização do tupi como uma espécie de
embrião da ‘língua geral’ (que é uma mistura das línguas portuguesa com o tupi).
Esta ‘língua geral’ passou a ser utilizada na conversão dos índios, a despeito de o
português ser a língua oficial da colônia.
Quanto aos autos atribuídos a Anchieta, deve-se insistir na sua menor autonomia estética:
são obra pedagógica, que chega a empregar ora o português, ora o tupi, conforme o
interesse ou o grau de compreensão do público a doutrinar. Formalmente, o teatro
jesuítico, nessa fase missionária inicial, está preso à tradição ibérica dos vilancicos, que se
cantavam por ocasião das festas religiosas mais importantes. [...] Os autos de Anchieta,
como os mistérios e as moralidades da Idade Média, que estendiam até o adro da igreja o
rito litúrgico, materializam nas figuras fixas dos anjos e dos demônios os polos do Bem e do
Mal, da Virtude e do Vício, entre os quais oscilaria o cristão; daí, o seu realismo, que à
primeira vista parece direto e óbvio, ser, no fundo, alegoria (BOSI, 1970: 23-24).
38
Segundo Ivan Vilela (2011), os jesuítas que traziam a tradição católica barroca
ao Brasil, precisavam de muito dinheiro para manter as escolas e os colégios, e esse
provimento era escasso. Mortatti (2004) corrobora essa visão, esclarecendo que aos
poucos as escolas foram fechadas, permanecendo somente os colégios. Esses
passaram a servir aos filhos dos colonizadores e dos senhores de engenho – mesmo
àqueles sem vocação religiosa – que não dispunham de outro local de instrução onde
pudessem aprender o latim, filosofia e teologia e, ao mesmo tempo, habilitarem-se
para seguir os estudos em universidades portuguesas.
39
muito mais do que nas terras do Nordeste onde todos os provimentos necessários
aportavam sem maiores problemas e as lavouras eram tocadas pelos escravos
negros. Isto posto,
[...] sem o índio, os portugueses não poderiam viver no planalto, com ele não poderiam
sobreviver em estado puro. Em outras palavras, teriam de renunciar a muitos dos seus
hábitos hereditários, de suas formas de vida e de convívio, de suas técnicas, de suas
aspirações e, o que é bem mais significativo, de sua linguagem (BUARQUE DE
HOLANDA, 1936: 131-2).
Foi isso que ocorreu nos movimentos bandeirantes: a busca de novas terras
empreendidas, não pelos portugueses ‘puros’, mas por aqueles que tiveram que se
imiscuir aos índios, levou a que se aculturassem um tanto também. A língua geral,
antes falada mais na costa brasileira, se alastrou pelos rincões do país. Sobretudo
aquela falada em São Paulo20 se difundiu para o interior graças aos bandeirantes,
sertanistas e jesuítas, e há indícios de que ela tenha exercido boas influências na
perpetuação de um certo glossário tupi dentro do português, principalmente no que
se refere à nomeação de elementos da natureza21.
A lingua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece das letras – scilicet, não se acha
nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei,
e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente (GANDAVO, século XVI: 52).
20
No Norte do Brasil a língua geral era diferente e tinha o nome de Nhengatu.
21
Nomeação de rios (Tamanduateí, Jacareí, Piracicaba, etc.), nomeação da fauna (inhambu, urutu,
jaguatirica, arara, sucuri, etc.) e da flora (araçá, pitanga, umbu, etc.).
22
http://www.funai.gov.br/indios/fr_conteudo.htm Acesso em 23/07/2013.
40
mil, representantes de apenas 305 etnias – menos de 0,5% da população brasileira
atual. No processo de dizimação e aculturamento indígena nos últimos 500 anos,
mais de mil idiomas não são mais falados, restando perto de 274 ainda praticados23.
23
http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/08/10/brasil-tem-quase-900-mil-indios-de-305-
etnias-e-274-idiomas Acesso em 23/07/2013.
24
Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Indígena, Parecer CNE/CEB no. 14/99 e Resolução
CNE/CEB no. 3/99.
41
contadores de narrativas míticas, pajés e xamãs, rezadores, raizeiros, parteiras,
organizadores de rituais, conselheiros e outras funções próprias e necessárias ao bem
viver dos povos indígenas (BRASIL, 2013: 357).
Sobre esta questão linguística oriunda das culturas indígenas, faço um enxerto
propositivo do PROJETO “DESAFIOS”. Nos sons das línguas indígenas brasileiras
geralmente a relação consoante/vogal é muito simples, pois para cada consoante há
uma vogal claramente pronunciada na oralidade. Diferente disto, na oralidade da
língua portuguesa sempre há uma vogal da palavra que some: ‘parede’ vira p’rede,
42
‘para’ vira p’ra, (para os portugueses). Nesse sentido, o projeto ressalta o aspecto da
riqueza cultural na utilização de palavras de origem indígena no letramento.
Palavras do léxico indígena – TAPEREBÁ, BURITI, CUIA, TACACÁ, IARA, MACUCO, TAMANDUÁ,
PIPOCA, etc. – são extremamente sonoras e os elementos menores que as compõem
são facilmente apreensíveis por aqueles que estão no processo de alfabetização.
Estes são elementos que, ao mesmo tempo em que aproximam com mais facilidade
o aluno do letramento, também podem servir para avizinhá-lo das inúmeras
narrativas indígenas: lenda do Açaí, do Boto, do Mapinguari, etc.
43
colônias espanholas as cidades do México e Lima já possuíam Universidades desde
o século XVI, no Brasil, somente na República avançada (1934) inaugurou-se o
primeiro complexo universitário: a Universidade de São Paulo. De qualquer
maneira, enquanto o Brasil foi sede da realeza portuguesa, a educação básica seguiu
na sua condição secundarizada, sem importância.
Têm sido esquecidos os temas e as fontes que poderiam nos ensinar sobre as
experiências educativas alternativas dos negros e afrodescendentes. O estudo, por
exemplo, dos mecanismos de conquista da alfabetização por esse grupo; dos detalhes
sobre a exclusão desses setores das instituições escolares oficiais; dos mecanismos
criados para alcançar a escolarização extra-oficial; as vivências nas primeiras escolas
oficiais que aceitaram negros, são exemplos de temas que têm sido desconsiderados
nos relatos da história oficial da educação e que ainda carece de estudos sistematizados
(SANTOS, s/d: 1).
44
‘primitivas’ – não se enquadravam nos parâmetros racionais, tampouco eram
detentoras dos meios de produção econômica; o que quer dizer que as civilizações
europeias, compostas por pessoas brancas, eram consideradas ‘superiores’. Antes
uma exclusão religiosa e agora uma exclusão econômica científica.
Mais do que estudar, os negros passaram a ser alvo de estudos científicos que
se iniciaram no século XVIII e ganharam corpo nos dois séculos seguintes. Se pelos
preceitos salvadores de almas a Reforma e a Contra Reforma justificavam a
escravidão de índios e africanos, na modernidade o espaço aberto à liberdade do
homem frente a Deus começava a por em questão o trabalho de servidão
compulsória. Era preciso criar outras bases que suportassem a ‘inferioridade desta
gente primitiva’ e a elas veio acudir a racionalidade e o cientificismo.
Uma sanha atávica de usar compasso, régua, balança e outros instrumentos de medida
para peso do cérebro, largura e ângulos da face transformam o ser humano em objeto
de laboratório para justificar preconceitos sociais na segunda metade do século XIX. É
o nascimento das teses raciais. Qual era a raça superior e quais eram as raças inferiores?
Além das justificativas religiosas, geográficas e climáticas, a justificativa do tipo
biológico também aponta o dedo para a inferioridade dos não-brancos, dos negros
(CUSTÓDIO, 2009: 1).
45
brancos europeus, uma vez que os negros, mesmo libertos e nascidos no Brasil, eram
considerados africanos (SANTOS, s/d).
[...] negrinhos que por ahi andão, filhos de Africanos Livres que matriculão-se mas não
frequentam a escola com assiduidade, que não sendo interessados em instruir-se, só
frequentariam a escola para deixar nela os vícios que se acham contaminados,
ensinando aos outros a prática de actos e usos de expressão abomináveis, que
aprendem ahi por essas espeluncas onde vivem [...] Para esses devião haver escolas a
parte (Relatório do Professor José Rhomens enviado ao Inspetor Geral da Instrução
Pública da Província de São Paulo, 1877, apud SANTOS, s/d: 5).
25
Segundo Sérgio José Custódio (2009), por ocasião do Congresso Mundial das Raças, acontecido em
Londres em 1910, o governo brasileiro apresentou um quadro pintado sob sua encomenda, em que
46
ou outro discurso há clara intenção de não permitir ao negro a existência como
cidadão de direitos no uso do espaço públicos e das instituições. Não é preciso ir
longe para encontrarmos discurso semelhante mesmo hoje. Ainda segundo Custódio
(2009), pesquisas do Instituto Datafolha de 1995 e 2008 indicaram que 90% dos
brasileiros admitiam a existência de racismo no país, embora poucos se assumissem
como representantes deste pensamento ou prática.
Vale lembrar que em 2003 uma das primeiras leis assinadas pelo recém
empossado presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, foi a Lei 10.639/2003, de
09/01/2003, que alterava a Lei 9.394 de 20/12/1996 (que estabeleceu as diretrizes
e bases da educação nacional), acrescentando alguns artigos, como o de número 26
que fixava a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira, nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Diz a Lei nos seus dois parágrafos:
se via um avô negro, um filho mestiço e um neto branco. Ao apresentar a obra, o representante
brasileiro conclui em sua fala que ‘em 100 anos o Brasil será branco’.
47
Nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2013) estão
estabelecidas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
visando atender – 10 anos depois! – os propósitos estabelecidos na Lei 10.639/2003
e assegurar [...] o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como
[garantir] igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além
do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros (BRASIL,
2013: 477). As diretrizes orientam para a necessidade de formulação de projetos da
história e da cultura dos afro-brasileiros e dos africanos e que estejam [...]
comprometidos com a [valorização] de educação de relações étnico-raciais positivas,
a que tais conteúdos devem conduzir (BRASIL, 2013: 477).
48
tê-los como balizas para que não se repitam; só desta maneira será possível corrigir
estes erros no presente e no futuro.
Por fim ressaltamos deste documento que a sua implementação exige algumas
alterações na postura educacional frente a elas – com o que também concordamos:
49
1.3.OS MÉTODOS DE ENSINO NA ESTEIRA DO LIBERALISMO E DO
MÉTODO CIENTÍFICO
Ainda que a exclusão fosse explícita para alguns, o fato de não haver escolas
suficientes no território brasileiro, tampouco de haver professores para as
instruções, fez com que a concretização do ensino amplo não se desse de modo
satisfatório, deixando de lado também boa parte da população alvo da educação. Foi
50
preciso outro período de mudanças políticas para que se começasse a reverter a
situação de analfabetismo na nação. Para Mortatti (2004), o fato de os escravos
negros serem paulatinamente libertos e de simultaneamente haver forte afluxo de
imigrantes de outras nações diferentes da portuguesa, em nossas terras, pressionou
a discussão sobre a instrução pública elementar e a sua organização efetiva. Foram
parte integrante fundamental dessa contenda, os ‘métodos de ensino’.
51
desenvolvida pelo Abílio César Borges – chamado Barão de Macaúbas26 – (Primeiro
livro de leitura para uso da infância brasileira, de 1867).
26
A cartilha do Barão de Macaúbas é aquela à qual Graciliano Ramos (1945) faz alusão no seu difícil
processo de alfabetização.
52
provérbios, máximas), ao que se seguiam os mais extensos. Em cada texto poder-se-
ia encontrar diferentes tipografias, com as quais as crianças deveriam se
familiarizar.
[...] mais eficiente e menos enfadonho. É opinião minha muito antiga, que si as creanças,
depois de conhecido o alphabeto, deparassem logo, na reunião das letras em syllabas,
com palavras que lhes fossem familiares, combinadas em curtas orações já por elles
usadas no tracto familiar, não só aprenderiam a ler rapidamente, mas aprenderiam com
mais gosto, por encontrarem, nas suas primeiras lecções de leitura, justamente as
palavras e phrases que estavam acostumadas a ouvir e a fallar em suas casas, e cuja
significação, portanto, lhes não seria estranha (BORGES, 1867: 3, apud., CORRÊA e
SILVA, 2010: 34).
53
É possível identificar há quase dois séculos, nas duas cartilhas apresentadas, o
embrião de muitos discursos metodológicos que vigoram nas nossas escolas
contemporâneas. Em primeiro lugar a rapidez, a facilidade, a atração e o pouco
esforço para aprender são elementos perseguidos pelas instituições de ensino e
propagandeados pelo uso de suas apostilas plenas de conteúdos didaticamente
explicados e sintetizados. E quem houve por bem pensar que a aprendizagem é sem
esforço? Por que se criou a ilusão de que as coisas do mundo podem ser apreendidas
e compreendidas sem demora? Quem se pergunta qual é o preço de tal facilidade
pretendida?
54
[...] desgaste da experiência de realidade para as crianças: não há mais nada de rijo
contra o que chocar-se, não se deve privá-las, frustrá-las, entristecê-las, é preciso
sempre ‘compreendê-las’, [mas] é preciso mostrar de vez em quando a uma criança que
não a ‘compreendemos’. A experiência do fato de que alguém não é necessariamente
‘compreendido’, sequer pelos entes mais chegados, é constitutiva do ser humano
(CASTORIADIS, 1983: 99).
Eis onde isto se encontra com os métodos de ensino enunciados acima, cujos
ecos se fazem presentes – de forma mais contundente e preocupante – nas práticas
escolares de hoje: a escola contemporânea adota aquele modelo ‘facilitador’ e ‘pouco
esforçado’ de ensino, que visa o sucesso rápido e soma a ele o modelo
‘compreensivo’ da criança que não pode sofrer e para quem nunca se diz não. Porém,
desde esta ótica, a instituição escolar mostra objetivos contraditórios de [...] fabricar
em série indivíduos predestinados a ocupar tal ou tal lugar no aparelho de produção,
através de uma seleção mecânica e precoce [dado que a representação está
esvaziada]; e ‘dar livre curso à expressão da criança’ (CASTORIADIS, 1983: 99) de forma
que seja expressão pura sem relação com a realidade coletiva.
55
dava-se o mesmo com palavras di ou polissilábicas. Ao final apresentava 9 textos
para serem lidos direto, dispensando a preparação da leitura por meio da
apresentação das palavras. Só se passaria de uma lição a outra quando houvesse
total compreensão e desenvoltura da criança com relação à precedente.
Curioso é que, com tanto afã sedutor da palavra em detrimento de suas sílabas,
o autor não dispensava a separação silábica das palavras polissilábicas.
Argumentava que no Brasil a eliminação total das sílabas não poderia acontecer de
imediato, pois demandaria ‘talento e vocação dos professores’. Mantinha, portanto,
o espaçamento silábico ao longo de todo o primeiro livro, em franca desqualificação
e declaração de incompetência dos mestres de outrora – a quem também atribuía os
entraves e falhas do uso do método proposto. Tanta explicação ao professor de como
proceder em sala de aula, dando detalhes de como usar o método, ‘ensinando o
docente a ensinar’, também são orientações que verificamos nas apostilas que
atualmente substituíram as cartilhas de outrora.
27
Isso pode-se verificar às centenas nos materiais confeccionados desde a Educação Infantil até o
Ensino Médio. Em material escolar da Educação Infantil analisado no PROJETO “DESAFIOS”,
deparamo-nos, na própria folha de atividade do aluno, com as seguintes inscrições dirigidas ao
professor: ‘Adaptar à faixa etária: as orelhas podem ser desenhadas com pintura a dedo’, ou ‘Se a
criança for capaz de executar essa tarefa, pode considerar que está na hipótese silábica de
alfabetização’, ou ‘Depois que você ler a historinha, veja se os alunos não estão cansados e se são
capazes de fazer a atividade escrita. Caso precise, desenvolva atividades de jogos antes’, ou ainda,
‘Essa fábula cria na criança o sentimento moral de que é preciso ver o ponto de vista das outras
pessoas’.
56
Mais uma vez recorro a Graciliano Ramos, desta vez mais longamente, para
ilustrar uma infância que se viu às voltas com a cartilha do Barão de Macaúbas:
57
tendenciosos que visam, a partir do julgamento do que é uma criança, impor
objetividade e moralidade aos pequenos bárbaros vadios. Percebe-se aqui uma
preocupação menor com o ensino da língua e da alfabetização, e maior com a
modelagem do caráter dos alunos. E quem eram estes estudantes? Eram as crianças
da passagem do século XIX ao XX, filhos de ex-cativos ou da população branca de
baixa renda, incultos contumazes. Além da apreciação de antemão pejorativa das
atitudes dos educandos, chama atenção a leitura objetiva feita do cotidiano infantil,
que tenta instrumentalizar e desqualificar o rico e fantasioso mundo da criança, por
meio de uma visão nebulosa deste universo.
Por fim, mas não menos intrigante, o método de Borges propunha que o prazo
para se ir do começo ao término dessa primeira parte do método deveria ser de dois
meses! Este seria o tempo necessário e suficiente para partir-se ao segundo livro:
afirmo que a intenção apressada e a brevidade na alfabetização também se repetem
hoje, como antes nas cartilhas do império: há crianças sendo alfabetizadas na
Educação Infantil desde os quatro anos de idade e há quem diga que aos três elas já
seriam passíveis de aprender a ler e escrever!
Os pesquisadores dos dois métodos citados não relatam resultados com relação
à proposta alfabetizadora de Monteverde, mas encontraram registros do ano letivo
de 1883-1884 de um professor que utilizou os livros de Borges. Ao longo de seis
meses alguns poucos alunos conseguiram aprender a ler e até compreender o que
liam, mas a grande maioria dos 24 alunos, com idades entre 7 e 12 anos, não.
Essa pequena amostragem não é suficiente para revelar a eficácia dos métodos
utilizados na região amazônica, mas os censos realizados no território brasileiro,
desde 1872 já denunciavam um enorme contingente populacional apartado do
58
acesso à alfabetização. Uma herança colonial que atravessou o Império e adentrou a
República, como pode-se ver na Tabela número 3.
Taxa de analfabetismo
ANO População (população de 5 anos ou mais) População
recenseada analfabeta
1872 9.930.478 82,3 8.172.783,4
1900 17.438.434 _ _
59
insígnias e acrescenta: pessoa que não conhece o alfabeto, que não sabe ler nem
escrever; que não conhece as letras; que não tem instrução primária (idem., ibidem.).
60
Sobre a forma de ensino ao final do século XIX, a educação acabava dando no
seio da própria família. Entre as poucas instituições de ensino que subsistiam, duas
práticas predominavam: a alfabetização circunscrevia-se basicamente na
aprendizagem rudimentar das letras do alfabeto e o ensino da leitura continuava em
primeiro plano, a despeito de já se haver indicação do ensino simultâneo de ambos
(MORTATTI, 2004). Ler tinha importância mais significativa do que escrever, e com
relação a essa última prática, bastava rabiscar o próprio nome ou exercitar a
caligrafia. Ainda que a leitura que mais frequentemente se empreendia era baseada
na soletração ou na palavração, a autora não analisa essa passagem, mas poder-se-
ia considerar nesse fato os rudimentos da hierarquização do saber que aportou em
nossas escolas, já que o que se lê mecanicamente é sempre elaboração da verdade
do outro, ao passo que escrever pode significar emitir as próprias opiniões de forma
permanente. Há os que sabem e têm a verdade a ser transmitida e há os que não
sabem e precisam repetir o que aprenderam.
61
(reunião de escolas multisseriadas em grupos escolares), para disciplinarização,
unificação e controle do ensino primário; e a introdução de novos e mais adequados
métodos e processos de ensino, como o método intuitivo e o método analítico para o
ensino da leitura, bem como de material didático para esse fim (MORTATTI, 2004: 55).
Era preciso dar visibilidade à educação e para isso não bastava a implantação
de novas escolas. Fazia-se premente a normatização e a elaboração de métodos de
ensino e a compreensão das funções da leitura e da escrita, que agora passariam ao
serviço dos meios de produção capitalista.
Também para Mortatti (2004) o início da década de 1890 foi marcado por
disputas de posicionamento com relação a métodos de ensino da leitura e da escrita
e sobre a conveniência de se ensiná-las simultaneamente ou priorizando-se só a
leitura – com vantagens mais amiúde apontadas para essa última. Outra discussão
62
estabeleceu-se entre os métodos sintéticos (de soletração e silabação) e aqueles
analíticos (de sentenciação e historieta) que ganhavam terreno.
Oñativia (2009) estabelece uma breve comparação entre essas duas propostas.
Segundo ela, o método sintético remonta a mais de 2.000 mil anos, tendo se
estendido pela antiguidade até a Idade Média, período em que na maioria dos
recantos da Europa se ensinava antes o Latim depois a língua materna. (Na França,
por exemplo, só no século XVIII, com Jean-Baptiste de la Salle, considerado o
primeiro educador popular, o ensino da língua materna antecedeu ao do Latim). O
método sintético estabelecia uma graduação de aprendizagem em que o aluno
deveria primeiro dominar cada letra por meio da soletração (independentemente
do valor sonoro e de sua grafia), depois conheceria a grafia de cada uma delas; em
seguida passaria às sílabas de forma sistemática e ordenada, daí para palavras
monossilábicas e finalmente para as polissilábicas. Só quando o sujeito já soubesse
ler é que aprenderia a escrever.
63
junção correta dos diferentes harmônicos percebidos. Pobre dos surdos que não
teriam outra saída senão a reclusão analfabeta e silenciosa!
Pois bem, em meio aos argumentos sobre qual seria a melhor forma de ensino
da leitura e da escrita, estavam nossos pensadores liberais da recém criada
República. Aqueles que defendiam o método analítico viam na prática da leitura [...]
uma atividade de pensamento cuja finalidade era comunicar-se com o ‘pensamento de
outrem’ expresso pela escrita (MORTATTI, 2004: 85). O ensino da leitura nas escolas
passou a ser claramente dividido: primeiro aprendia-se a decifrar os signos da
língua escrita, segundo, partia-se para a leitura ‘corrente’, depois para a ‘expressiva’
e finalmente a ‘silenciosa’. O que não é esclarecido no texto é a que diferenças
referem-se cada uma dessas modalidades de leitura. O que se pode deduzir é que
sua aprendizagem ganhava, enfim, o incremento – ainda que rudimentar – da
64
interpretação de textos. Começava-se a abandonar a leitura mecânica da soletração,
indo em direção à compreensão das escrituras.
A autora destaca que em meio a esse movimento efusivo por mudanças, nem
tudo era como parecia. A primeira Constituição republicana de 1891 – que vigorou
até 1930 – trazia entre seus artigos, a permanência da proibição do voto ao
analfabeto (homem, já que as mulheres eram todas privadas desse direito),
argumentando que o veto só poderia servir de incentivo para os analfabetos
(inclusive os escravos recém libertos) se instruírem. Operava-se – como já
mencionei acima, mas agora de outra maneira – uma dupla discriminação em que o
analfabeto era, ao mesmo tempo, responsável por sua condição analfabeta e
responsável por sair dela, já que o Estado omitira-se com relação à garantia da
obrigatoriedade e gratuidade da educação pública primária. Se de um lado a
discussão acirrava-se sobre a necessidade de maior instrução dos brasileiros para a
formação da Nação, por outro, o analfabetismo disseminado não fazia parte da
oratória dos luminares de plantão. Em suma, cada um que se virasse para assegurar
seus direitos de participar e compartilhar das benesses sociais!
65
animal28 (FREUD, 1927: 5-6, tradução minha). Estabelece, pelos parâmetros da
psicanálise, que as civilizações erigem-se sobre uma dose de renúncia pulsional
individual, isto é, para conviver com outros homens cada sujeito precisa apartar-se
da satisfação completa de suas pulsões e o que é renunciado para si é o que permite
a construção do que é comum a todos. Com muito poucas chances de sobreviver
isolados, uma vez que a fragilidade física e psíquica não lhes permite enfrentar os
poderes da natureza, tampouco ter autonomia precoce de sobrevivência, os homens
precisam aceitar estas duas condições civilizacionais: compulsão ao trabalho que
constrói o coletivo e renúncia individual à satisfação total da pulsão. Não é fácil esta
renúncia e o esforço laboral, pois são sentidas como sacrifício imposto pela cultura
(o que não deixa de ser verdade), entretanto estas são condições de existência tanto
individual, quanto da própria sociedade. Ainda na abertura do texto Freud analisa
que não são poucos os movimentos humanos que visam criar outras condições
sociais de satisfação que tentam ignorar a necessidade cultural. Estabelece três
parâmetros essenciais: porque a relação entre sujeitos é influenciada pelas
satisfações pulsionais; porque um sujeito pode relacionar-se com outro homem
como um bem seu (tomando-o como força de trabalho ou como objeto sexual); ou
ainda porque o homem é virtualmente inimigo da civilização. Mas alerta: Ainda que
a humanidade tenha logrado contínuos progressos no subjugamento da natureza, e
tem direito a esperar outros mais, não se verifica com certeza um progresso
semelhante na regulação dos assuntos humanos29 (FREUD, 1927: 6-7, tradução
minha).
Se Freud aborda esta natureza antissocial dos homens em geral, e que está
presente em qualquer sociedade, Buarque de Holanda (1936) circunscreve-a como
marca extremamente influente no nascedouro e desenvolvimento da nação
brasileira: negros e índios são considerados ‘pessoas menores’ para quem as
produções sociais (aquelas europeias) não devem chegar, ao mesmo tempo em que
suas próprias produções culturais são desvalorizadas.
28
[...] todo aquello em lo qual la vida humana se há elevado por encima de sus condiciones animales
y se distingue de la vida animal (FREUD, 1927: 5-6).
29
Mientras que la humanidade há logrado contínuos progresos en el sojuzgamiento de la naturaliza,
y tiene derecho a esperar otros mayores, no se verifica con certeza um progreso semejante em la
regulación de los asuntos humanos (FREUD, 1927: 6-7).
66
Buarque de Holanda também descreve como estas relações de poder e
subjugamento influenciaram a produção intelectual brasileira. Denuncia que
enquanto em toda América Espanhola já existiam estabelecimentos gráficos até o
ano de 1747 (sendo que no México isto se deu em 1535), o Brasil inaugurou sua
primeira imprensa também em 1747, no Rio de Janeiro, sendo fechada no mesmo
ano por confisco Real. Milhares de livros circulavam e eram produzidos pelos países
Latino Americanos, menos no nosso, cujos poucos exemplares aportavam vindos da
Europa. Os entraves que ao desenvolvimento intelectual no Brasil opunha a
administração lusitana faziam parte do firme propósito de impedir a circulação de
idéias novas que pudessem pôr em risco a estabilidade de seu domínio (BUARQUE DE
HOLANDA, 1936: 121).
67
ora dos poderes legalizados exercidos pelos órgãos Federal, Estaduais e Municipais
– e este deslocamento foi acompanhado por inúmeras modificações na configuração
da estrutura educacional. Assim, por exemplo, a escolarização básica alterou-se de
dois, para quatro, depois para oito e finalmente para nove anos, e a cada mudança
uma autarquia diferente se responsabilizou por ela. Por vezes, inclusive, o controle
que antes era dos Municípios, passou aos Estados e depois retornou aos Municípios.
O mesmo se deu com as regências de métodos de ensino, ora legislados, ora
delegados ao encargo da escola ou do professor. O quê se controla?, Quem faz o
controle?, Qual a efetividade deste controle?
Por muito tempo São Paulo foi o Estado modelo de expansão da instrução
pública elementar. Gradativamente o número de alunos matriculados, bem como a
média de frequência em suas escolas aumentavam, fortemente impulsionados pela
urbanização de sua população e pelo afluxo de imigrantes japoneses, espanhóis e
italianos que traziam consigo a valorização dos estudos. São Paulo saia na vanguarda
da defesa dos métodos analíticos e servia de referência para outras unidades da
federação que buscavam, ali, modelos teóricos e profissionais que pudessem
implementar.
68
educacional de 1927, o emprego do método analítico (como o que era utilizado em
São Paulo) com o objetivo de homogeneizar as práticas de alfabetização.
Mato Grosso é um exemplo, mas não o único que denunciava que, não só a falta
de infraestrutura, mas também de profissionais formados e qualificados à educação
básica era escassa nas primeiras décadas do século XX. Era preciso começar do
princípio na maioria dos rincões brasileiros.
Sem uma política pública nacional sobre o assunto, São Paulo continuava à
frente nos temas da alfabetização. Havia da parte de Oscar Thompson e Antônio de
Sampaio Dória – dois professores que ocuparam a Diretoria Geral da Instrução
Pública do Estado de São Paulo – preocupação declarada em resolver o problema de
ensino dos analphabetos. Segundo Mortatti, em Carta Circular de 1918, Thompson
inaugurou o uso oficial da palavra alphabetização para referir-se ao ensino da leitura
e da escrita. Mais especificamente referiu-se ao termo pela negativa – o insucesso da
alphabetização (MORTATTI, 2004: 60) – ao constatar que havia um índice altíssimo
de crianças reprovadas nas classes de 1º ano primário, por não terem conseguido
aprender a ler e escrever. A resposta a essa carta veio na forma de um plano para
extinção do analfabetismo, proposta por Sampaio Dória, em que reconhecia a
urgência de se levar o ensino a todas as camadas da população, como condição de
‘exercício da cidadania’. Indicava que se deveria oferecer aos alunos três instruções
mínimas: saber ler, escrever e calcular.
69
Cabe lembrar que em contexto bem diverso, essa mesma proposta de se ensinar
a ler, escrever e calcular já havia sido feita pelos jesuítas ao desembarcarem no
Brasil. A insígnia permanecia a mesma, embora os parâmetros sociais, políticos,
econômicos e culturais já haviam sofrido transformações acentuadas: alfabetizar
para servir ao catolicismo, na Colônia; para viver adequadamente sob os princípios
de uma nação independente, no Império; para ser cidadão de direito, na República.
Andávamos em círculos carregando ainda a falência dos mesmos três objetivos; o
que mudava eram os norteadores sociais e políticos dos Estados que geriam a
educação.
70
na baila das discussões as propostas de um programa modernizador da sociedade e
a revisão das finalidades e funções da escola, agora não mais pretendidas para mera
erradicação do analfabetismo, mas também para educação das ‘inteligências’,
dentro de uma instituição capaz de refletir o meio em que estava inserida,
proporcionando mudanças culturais e organizacionais do país. Francisco Campos,
um dos escolanovistas importantes, posicionou-se:
Saber ler e escrever não são, porém, títulos suficientes à cidadania digna desse nome.
Não basta, pois, difundir o ensino primário [...] Se este ensino não forma homens, não
orienta a inteligência e não destila o senso comum, que é o eixo em torno do qual se
organiza a personalidade humana, pode fazer eleitores, não terá feito cidadãos (LOPES,
Eliana Marta T.; FARIA FILHO, Luciano M.; VEIGA, Cynthia G. (org.) (2000). 500 anos de
educação no Brasil. Belo Horizonte. Autêntica. apud., MORTATTI, 2004: 63).
71
todos para aprender a pensar como as elites de plantão, que deixavam de ser só
políticas e econômicas, passando a ser incrementadas pelas intelectuais que
circulavam no Brasil já no final do século XIX.
72
cognitivas da infância, depois de ter atuado na psiquiatria infantil com crianças
‘anormais’. A pedido do governo francês criou em 1905, junto com Theodore Simon
(também psicólogo francês), a escala métrica Binet-Simon cujo propósito era medir
o desenvolvimento da inteligência de acordo com a idade mental das crianças,
visando alunos com dificuldade de aprendizagem (BINET e SIMON, 1916). Note-se que
essa escala, para Binet, não permitiria definir a inteligência em si, nem estabelecer
comparativos de inteligência entre diferentes sujeitos; postulou apenas uma
classificação e hierarquização das diferentes inteligências medidas na mesma
criança, em momentos distintos. As conclusões de Binet foram mais ou menos na
mesma linha das considerações de Hinshelwood, de que os professores precisariam
intervir de forma mais atenta junto aos alunos com dificuldades, já que todos teriam
habilidades para aprender. E mais, dizia que o treino e o método levariam a uma
melhora da memória, do julgamento e da atenção.
O primeiro passo nessa direção veio dos trabalhos de Wilhelm Stern (psicólogo
alemão) que propôs em 1912 o QI para representar o nível mental e separar a ‘idade
mental’ da ‘idade cronológica’ dos indivíduos. Ou seja, crianças que em certa idade
não tivessem sido capazes de desempenhar aquilo que outras fariam ‘normalmente’,
deveriam ser consideradas mentalmente mais atrasadas – ou mais desenvolvidas,
se estivessem além dessa normalidade.
73
aluno, uma vez identificada sua inteligência, fosse encaminhado ao ‘curso adequado
às suas habilidades’, poupando gastos desnecessários com aqueles que não eram
aptos a aprender. Defendeu a testagem de toda população norte-americana para
determinar os lugares de cada um na sociedade, inclusive daqueles mais capazes a
exercer liderança. Aos que tivessem QI abaixo de 75, preconizava a internação e o
desencorajamento/proibição de procriação! Sua ideia era tornar a nação mais
segura, adequada e eficiente, a partir de suposta e tendenciosa avaliação das
capacidades de aprendizagem!
O enredo desta ideia não foi explicitamente encampado pelo governo norte-
americano da época, mas este filme não terminou de desenrolar-se até hoje. Embora
o modelo social de Therman não tenha sido implantado, seus testes continuaram
sendo usados e aprimorados – e é possível assistir de perto os efeitos de tal
pensamento na crença da sobredeterminação dos mais competentes sobre sujeitos,
culturas, Nações. Esse tipo de pensamento decorre e se retroalimenta dentro do
capitalismo liberal que boa parte do mundo abraçou – inclusive o Brasil republicano.
74
experiências nazistas sobre a supremacia de algumas raças. Ainda hoje assumidos
como discursos descontextualizados da história que lhes deu origem, são
empregados como verdades inquestionáveis, como se pode ver nos enunciados
atuais sobre os Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a
dislexia.
75
Psicofármacos começaram a ser largamente receitados, fazendo calar assim
uma série de outras questões disseminadas socialmente por questões humanas
contingentes – contradições do capitalismo – ou intrínsecas – o mal estar inerente à
condição humana falha e finita.
30
Ver Patto, 1986.
31
Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2006) mostram que o consumo de
metilfenidato (princípio ativo da Ritalina e Concerta), saltou de 23 Kg em 2000, para 93 Kg em 2005.
E em notícia divulgada em 18/02/2013, no Boletim de Farmacoepidemiologia da mesma ANVISA,
pode-se ler a seguinte informação: “O consumo do medicamento metilfenidato, utilizado no
tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), aumentou 75% em
crianças com idade de 6 a 16 anos, entre 2009 e 2011, no Brasil”.
http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa (Buscar por ‘metilfenidato’), acesso em 17/07/2013.
76
Segundo Legnani e Almeida (2008), veladamente saímos da subjetividade
respaldada simbolicamente pelos contextos culturais, para adentrarmos na era da
individualidade e da perda de ideais coletivos. Deixa-se de falar na educação para se
tratar do problema que ‘aquele’ familiar (ou professor) tem com ‘aquele’ filho (ou
aluno).
Uma criança que se diz com QI fraco pode sê-lo por perturbações afetivas; talvez ela
tenha mesmo uma inteligência fraca, mas é a psicoterapia que permitirá que ela utilize
ao máximo seus dons, para ficar livre na sociedade. Minha ideia era e ainda é a de que
não se tem o direito de não fazer tudo para que um indivíduo obtenha sua autonomia e
viva na sociedade, qualquer que seja seu nível mental em QI. Na época acreditava-se
que a inteligência não mudava no decorrer da vida. Eu sustentava o contrário
(ROUDINESCO, 1986: 16).
77
entre estas duas áreas de saber, levando a que, no ano seguinte se fizesse no Rio de
Janeiro o ‘Curso de psicanálise aplicado à educação’. Tratava-se de uma série de
conferências, cujo alvo era fazer chegar aos pedagogos os principais conceitos
freudianos. Entretanto a plateia que se formou era basicamente composta pela elite
intelectual, professores universitários e mães que procuravam subsídios para
educar seus filhos.
Mas, pela via da educação sexual, a psicanálise não conseguiu avançar no campo
pedagógico da terra brasilis; enfrentou duras críticas no terreno da moral e dos
costumes, por parte de pedagogos, médicos, ou representantes da igreja católica:
nefasta, perigosa, perniciosa eram os adjetivos para a descoberta de Sigmund Freud.
78
desse saber orientavam os aspectos psicológicos envolvidos na aprendizagem da
leitura e da escrita, dando especial destaque para os problemas que se pudesse
apresentar nesse processo. Tanto Cardoso e Amâncio (2010), quanto Mortatti
(2004) fazem referência a uma dessas proposições científicas: o ‘sistema muscular’
(ou ‘escrita muscular’) baseado na psicologia da aprendizagem e na fisiologia do
trabalho. Elaborado por Orminda Marques e respaldado em experiências de
Lourenço Filho, esse sistema recomendava o controle do corpo que, bem educado,
seria capaz de traçar bem, rapidamente e legivelmente a sua escrita, além de tornar-
se eficiente na leitura igualmente rápida e sem o acompanhamento dos dedos. O
corpo e seu movimento já eram vistos como interventores e inibidores (ou
‘atrapalhadores’) da aprendizagem. O que se pretendia era sua contenção física por
meio de ordens e de treinamentos. (Muito diferente disso é a proposta desse
trabalho que procura o reposicionamento do corpo por meio de representações).
80
Avanços de um lado, estagnação e retrocessos de outro. Alfabetizado, até a
década de 1950, era considerado aquele que obtinha êxito ao passar do primeiro
para o segundo ano primário. Depois desse período passou-se a considerar
alfabetizado o sujeito que soubesse ‘ler e escrever um bilhete simples no idioma que
conhecesse’, definição de alfabetização baseada em documentos da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que também passou
a definir indicadores relativos às faixas etárias na contagem da alfabetização: não só
se considerariam os indivíduos com 5 anos ou mais, mas também se definiriam as
faixas etárias de 10 anos ou mais e 15 anos ou mais. Esse padrão foi adotado no
recenseamento brasileiro, conforme se observa na Tabela 4.
Fonte: MORTATTI, 2004, dos anos 1920 a 2000 e IBGE para o ano de 2010 (dados do censo de 2010,
disponíveis no site: www.ibge.gov.br)
O que se pode notar desses dados é que, embora os índices de analfabetismo
estivessem diminuindo desde que se abraçou a causa da educação, na década de
1920, até 1980 os números brutos da população sem instrução básica mínima
aumentou em 64%.
A década de 1960, a despeito do retrocesso político por que foi acometida com
o Golpe de 64, é incrementada por iniciativas importantes voltadas à educação. Logo
no segundo ano foi promulgada a primeira Lei de Diretrizes e Base Lei nº 4.024/61;
81
seis anos mais tarde, já sob a ditadura militar, a Constituição de 1967 estendia a
gratuidade e obrigatoriedade do ensino para os primeiros oito anos escolares (ao
invés dos quatro anteriormente estabelecidos), criando um período de
escolarização denominado Primeiro Grau. Essas mudanças das políticas públicas
proporcionaram incremento da rede escolar e fizeram aumentar o número de
alunos no ensino básico, mas ainda de forma que a quantidade de instituições não
fosse suficiente para contemplar a todos e fazer valer a Carta Magna.
No que diz respeito à forma de ensino no período da ditadura, cuja reflexão não
era exatamente o que se esperava do alunado (e também de seus mestres), as
perspectivas tecnicistas confluíram para os aspectos comportamentais da
aprendizagem da alfabetização e, em termos linguísticos, centraram-se
prioritariamente na comunicação. As cartilhas de alfabetização eram veículos
principais dessa transmissão de saber bastante pragmático e pouco motivador da
tal leitura crítica do mundo.
O Brasil é um país que, graças à difusão do método criado por Paulo Freire, nas décadas
de 1960 e 1970, ajudou a erradicar o analfabetismo no mundo. Infelizmente, neste
mesmo período, esse educador era proibido de ajudar a combater o analfabetismo no
seu próprio País, exilado que foi pela ditadura militar que via em seu método, um
elemento de subversão da ordem estabelecida (INEP, 2003: 12).
82
Exilados ou calados compulsoriamente, educadores viram o palco ser tomado
pelo ensino ideológico, tecnicista, burocrático, militarista e direitista que se instalou
por quase 20 anos no Brasil. A discussão sobre a educação nos anos 1960 e nas duas
décadas seguintes voltava seus holofotes para a questão do fracasso escolar. Como
aponta Magda Soares (1989), embora o número de instituições escolares pelo Brasil
tivesse aumentado, não havia escolas em quantidade para todos, e as que havia eram
de qualidade questionável – fazendo ressoar, 100 anos depois, as mesmas questões
apontadas por Ruy Barbosa. Mas isso não podia ser pensado alto, pois corria-se o
risco de ter que explicar nos porões do Doicod essa tentativa de desestabilização da
ordem social.
Pois bem, se não se fala das políticas públicas para educação e se também não
se fala dos conteúdos ensinados nas escolas, falar de quê? Ou melhor, de quem?
Sobrou mais uma vez para o elo mais fraco nessa história – os alunos e suas famílias
– ter que justificar os altos índices de analfabetismo imperantes. E neste terreno os
técnicos da psicologia, da pedagogia e da neurologia criaram raízes cujas batatas
colhe-se até hoje.
83
para a expulsão escolar dos multi repetentes que não eram compreendidos – ou dir-
se-ia hoje, incluídos – nas suas singularidades sócio culturais.
Só com a abertura política dos anos 1980 novas discussões puderam ser feitas
com relação à alfabetização. Esta deixaria de ser vista só como um problema da
educação escolar e da falta de cultura da população a que servia, passando a ser
encarada como uma dificuldade a ser enfrentada nos âmbitos econômico, social,
político e pedagógico. Terreno fértil às orientações teóricas de pensadores
sociólogos, historiadores, filósofos e pedagogos, embasados em sua maioria pelo
marxismo, tanto tempo represado pelos anos da ditadura.
84
que atravessou todo século XX, inclusive seus regimes autoritários. Em análise que
faz da escolarização brasileira na década de 1980, destaca o retumbante fracasso da
democratização da escola que, pela Constituição deveria assegurar todas as crianças
de 7 a 14 anos na escola primária, mas que resultava em índices altíssimos de evasão
e repetência escolar. Soares cunha a expressão ‘escola contra o povo’, ao invés de
escola para o povo.
Cita a ideologia do ‘dom’ na qual dever-se-ia garantir escola a todos e, desde este
ponto de igualdade, o sucesso ou o fracasso escolar dependeria exclusivamente do
desempenho de cada um. Este pensamento é baseado no discurso pretensamente
científico de que existem desigualdades cognitivas naturais entre os indivíduos
(medidas pelos testes psicológicos de aptidões e desempenho) e, desta forma, as
capacidades de aprendizagem se mostrariam nos resultados escolares. A escola, não
sendo responsável pelo fracasso deveria, no máximo, atender de modo diferente
cada necessidade de sua população, através da adaptação ou ajustamento dos menos
aptos. Não se considera nesta forma de pensar que as diferenças entre os sujeitos
são intrínsecas à própria condição humana; o que se considera são as diferenças
entre grupos de sujeitos: entre grupos economicamente privilegiados e grupos
desfavorecidos. Chegou-se inclusive, a apregoar que as diferenças sócio econômicas
de diferentes camadas da sociedade, decorriam de aptidões diversas de inteligência.
85
(Ao nosso ver, à semelhança dos higienistas norte-americanos das décadas de 1940-
50).
Soares (1989) identifica ainda mais um aspecto ideológico que se punha como
justificativa para o fracasso educacional das camadas populares: o discurso das
‘diferenças culturais’. Desde as ciências sociais e da antropologia, tal pensamento
sustentava que não seria possível falar em ‘deficiência/privação cultural’, uma vez
que todo agrupamento humano é amparado por uma cultura de valores, costumes,
hábitos, diferentes de outros grupos e que lhes garante identidade e existência. Uma
vez que todos os grupos têm uma cultura, hierarquizá-las seria, portanto, incorreto.
O que é elidido desta forma de articulação é que em sociedades modernas em que
há confluência de culturas, os padrões culturais das classes dominantes são
sublevados e estabelecidos como legítimos, ao passo que as outras são tomadas
como subculturas. Isto termina por reafirmar o pensamento das ‘deficiências
culturais’.
Desde esta visão a escola estava imersa na relação dialética entre educação e
sociedade. Como qualquer instituição social, também a escola era reprodutora das
ideologias dominantes e das desigualdades da sociedade de classes. Na reversão
desse quadro, portanto, a escola deveria exercer seu papel combativo e encampar a
luta de classes, solucionando os problemas políticos, sociais e culturais. Combatia-
se o escolanovismo identificado como promovedor do tecnicismo e como
instrumento de autoritarismo ditatorial.
86
lhes o básico à vida condigna de uma sociedade letrada – serviços de primeiras
necessidades (saneamento, saúde, moradia) e acesso mínimo a bens de consumo
culturais (livros, peças de teatro, filmes, entre outros) – exigia-se da sociedade e do
Estado que cumprissem seus deveres.
Neste sentido, o que Soares (1989) destaca em seu texto, que nos interessa
diretamente com relação a esta tese, é a apreciação quanto ao papel da linguagem
para a explicação do fracasso escolar. A autora identifica nos discursos dominantes
sobre educação, que as relações entre linguagem e cultura constituiriam o núcleo
ideológico da carência cultural, no sentido de que estas diferenças ensejam o
conceito de ‘déficit linguístico’. Isto é, a linguagem usual nas camadas mais pobres
da população seria uma linguagem inferior ou deficiente, dificultando ou impedindo
o acesso à linguagem veiculada pela norma culta – esta, a ‘verdadeira’ linguagem.
Contrapondo-se a esta visão, Soares reafirma a necessidade do reconhecimento dos
aspectos políticos e ideológicos na relação entre classes sociais e linguagem, como
determinante para a concepção que se quer dar para a escola e para a educação da
população em geral.
Em primeiro lugar, a análise sociológica das relações entre escola e sociedade e das
relações linguísticas numa sociedade de classes e numa escola que serve a essa
sociedade [...], mostra ser inadmissível deixar de veicular o ensino da língua materna às
condições sociais e econômicas de uma sociedade dividida em classes. É também essa
vinculação que desvenda, nas situações de comunicação pedagógica, as relações de
forças linguísticas, reflexo das relações de forças sociais e econômicas.
[...] Em segundo lugar, é a análise sociolinguística [...] que tem levado à identificação das
diferenças entre dialetos, necessária à construção de uma metodologia de ensino que, a
partir dos contrastes entre dialetos não-padrão e o dialeto-padrão, possa conduzir
eficazmente ao domínio deste; é, neste sentido, grande a contribuição das diferenças
linguísticas para uma reformulação do ensino da língua materna (SOARES, 1989: 78-
79).
87
Isto é, Soares apontava para a necessidade premente do ensino da língua
materna culta a todos os sujeitos, assim como estabelecia o imperativo de que este
ensino precisava ser reformulado, sem desprezar o que chama de dialetos não-
padrão.
Foi em fins da década de 1980 que teve início a consolidação da democracia, que
contemplava a educação em seu bojo. A Constituição de 1988, vigente até hoje,
manteve a gratuidade do ensino e a obrigatoriedade da educação primária (que
deveria paulatinamente se estender ao Segundo Grau). Tornou o voto do analfabeto
facultativo, devolvendo-lhe o direito de decisão política confiscado um século antes.
Dispôs ainda sobre o esforço de toda a Nação para a erradicação do analfabetismo
no prazo de 10 anos. Ainda na década de 1980 as Universidades (especialmente as
públicas, mas não só) passaram a oferecer formação continuada para os professores
das redes públicas.
Mas, o que podemos apontar já como enunciado do que vimos se repetir neste
capítulo, desde a catequização indígena, até a enunciação da carência cultural, é que
nos diferentes momentos históricos os discursos impostos sobre a alfabetização
foram gerenciados por elites – antes religiosas, depois políticas, econômicas,
culturais e finalmente intelectuais – que de diferentes formas sempre agiu de modo
a excluir parcela da população do processo de alfabetização.
88
2. CONSTRUTIVISMO – UM MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO?
90
é ensinada, ou aquela que é transmitida é menos válida para os propósitos da Nação?
Os cidadãos da escola não são formadores da própria cidadania? Como se verá, esta
visão faz da cultura – principalmente a oral – de ‘fora da escola’ uma classe de
acontecimentos que, ou é deixada do lado de lá dos muros da instituição, ou entra,
desde que sofra adaptações que as torne didáticas.
Desta forma, cidadão é o sujeito sem passado que não pertence ao mundo e que
com ele se debate – é por isto que ele precisa ser ajudado. Implicitamente este
cidadão do Ministro é o cidadão incapacitado pelas agruras do mundo que tem que
enfrentar... será que este cidadão é capaz de aprender?, ou será que mais uma vez
caímos na doutrinação como saída possível?
32
SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) é precursor da Prova Brasil.
91
de discrepância série cursada / idade. Pondera que quanto mais velha uma criança
está nas séries iniciais, pior seu rendimento acadêmico e maiores as chances de
evasão escolar. Avaliação de mais de 90 mil alunos de 4ª e 8ª séries, de 3 mil escolas
públicas e privadas de todo o país, constatou que havia um represamento acentuado
de alunos nas séries iniciais do ensino fundamental – 63% tinham idade superior à
faixa correspondente à série – levando à seguinte consideração:
Sobre essa questão, uma das medidas resolutivas do PCN estabeleceu que o
ensino nacional dar-se-ia por ciclos e não mais por seriação. Vários Estados
brasileiros já vinham adotando essa forma estrutural de educação, como o de São
Paulo, que em 1983 sob o governo de Mário Covas implantou o Ciclo Básico de
Alfabetização (CB). No CB a instrução de alfabetização acontecia nas duas séries
iniciais do Primeiro Grau (e não só na primeira), portanto não havia retenção dos
alunos na passagem do primeiro ao segundo ano. O propósito inicial dessa prática
era de evitar a evasão escolar por repetência, mas também de respeitar os ritmos e
a diversidade de aprendizagem de cada aluno – questão importante apontada pela
visão construtivista de aquisição do conhecimento, que já era adotada nas escolas
paulistas.
O ciclo escolar foi determinado pelo PCN para acontecer em todo território
nacional, devendo ser adotado ao longo de toda a educação básica, não só nos dois
primeiros anos escolares. Assim aboliu-se a ‘pré-escola’ para dar lugar à Educação
Infantil (EI), eliminou-se o ‘primeiro grau’ composto de ‘primário’ e ‘ginásio’ para
92
dar lugar ao Ensino Fundamental I (EFI) e Ensino Fundamental II (EFII) e,
finalmente, abandonou-se o ‘segundo grau’ (ou ‘colegial’) para se instituir o Ensino
Médio (EM). Achou-se por bem também aumentar em um ano a instrução básica que
antes se dava em quatro anos; assim, o último ano pré escolar foi incorporado ao
EFI33. Todas essas medidas intencionavam aumentar o tempo da aprendizagem
inicial – a alfabetização – considerada de aquisição essencial para todas as outras
aquisições de saber.
Uma vez que no PCN está mencionado o fracasso da alfabetização, ele também
se manifesta a respeito de suas causas. Seu crédito não recaiu somente sobre o corpo
discente, mas também sobre a [...] baixa qualidade do ensino e a incapacidade dos
sistemas educacionais e das escolas de garantir a permanência do aluno (idem,: 23) e
sobre os instrutores. O Censo Educacional realizado em 1994 apontou que 10% dos
professores não haviam sequer concluído o Ensino Fundamental e que 5% dos que
haviam concluído o Ensino Médio ou Nível Superior não tinham formação específica
em magistério. Além da ausência de formação específica, o PCN questiona a
qualidade da formação pedagógica dos milhares de educadores à frente das salas de
aula, apontando a necessidade de se rever seus conteúdos e metodologias e de
investir no desenvolvimento e nas condições de trabalho o professor.
33
Regime de Ciclo – embora o aluno curse a cada ano letivo uma série escolar, embora cada série
tenha conteúdos específicos previamente estabelecidos e, embora cada série escolar tenha um
professor regente responsável, ele (o aluno) não é retido ou promovido senão de um ciclo para
outro. Atualmente o primeiro ciclo comporta cinco anos letivos (Ensino Fundamental I), o segundo
ciclo, quatro anos letivos (Ensino Fundamental II) e o terceiro ciclo, três anos letivos (Ensino Médio).
93
a partir das concepções educativas e metodologias de ensino que permearam a
formação educacional e o percurso profissional do professor, aí incluídas suas próprias
experiências escolares, suas experiências de vida, a ideologia compartilhada com seu
grupo social e as tendências pedagógicas que lhe são contemporâneas.
A ampla menção que o PCN faz ao Construtivismo se deve ao fato de que é essa
referência teórica que permeará todas as considerações curriculares ali feitas.
Embora afirme em alguns lugares que o professor e a escola têm total liberdade de
escolha com relação a como trabalhar com seus alunos, o texto do PCN [...] reconhece
94
a importância da participação construtiva do aluno e, ao mesmo tempo, da
intervenção do professor para a aprendizagem de conteúdos específicos que
favoreçam o desenvolvimento das capacidades necessárias à formação do indivíduo
(BRASIL, 1997: 32) e usa termos do jargão construtivista para delinear o que é
aprender, o que é ensinar, o que se espera da aprendizagem do aluno, qual o papel
do professor, qual a função da escola na socialização etc.
95
letras não estão aí ordenadas como no alfabeto, menos ainda escritas com um só tipo
de fonte. Os métodos tradicionais de ensino, além de ignorarem esse aspecto social
da língua escrita, muitas vezes recomendavam aos pais que não interferissem na
forma como a escola ensinava, como se a criança só pudesse obter informações
nesse espaço institucional. Para Ferreiro e Teberosky (1979) é justamente o
contrário disso: no meio a criança recebe informações variadas e, principalmente,
contextualizadas socialmente (ao passo que na escola geralmente eram
descontextualizadas).
Nesse caso não se trata de uma criança alfabetizada, senão que é simplesmente
um sujeito que, entre muitos objetos do meio, já teve acesso também às letras e
palavras escritas. É uma criança que vê e faz desenhos, que ouve histórias, que
folheia livros infantis, que reconta-se pequenas historietas, que rabisca nas paredes
e livros, que ouve cantigas, enfim, que está imersa nas palavras faladas e escritas que
há séculos banham o mundo.
34
Museu da Língua Portuguesa, fundado em 2006 na cidade de São Paulo (SP, Brasil), abriga acervo
predominantemente virtual sobre a língua portuguesa, em que em diferentes suportes procura
mostrar a origem, história e evolução contínua da língua.
96
Em termos de reconhecimento, no seu universo, gato e letra ‘A’ são objetos que
identifica. Em termos de significação para a real entrada na leitura-escrita, é preciso
pensar que ainda há um caminho a ser estabelecido, que a levará a distinguir esses
objetos. E sobre esse aspecto, duas abordagens serão consideradas nesse texto: a do
Construtivismo e a da Psicanálise.
97
para não dizer por vezes desastrosa. Mas deixemos a análise desse acontecimento
para mais adiante (Capítulo 4) e por enquanto voltemos às elaborações de Ferreiro
e Teberosky.
O que estava por trás dessas concepções tradicionais de ensino da língua escrita
era a aprendizagem de um código de transcrição; assim, no mais das vezes, o ensino
da leitura e da escrita circunscreviam-se por técnicas diferentes e separadas de
soletração e cópia, respectivamente. Segundo Ferreiro e Teberosky, contrariamente,
para que a criança pudesse compreender a estrutura do sistema escrito deveria
realizar tanto atividades de interpretação, quanto de produção de texto.
98
seu lugar o professor teria que ir ao mundo conhecer o seu objeto – o aluno – e
construir conhecimento junto com ele. E mais, construir seu próprio material
didático, em função do processo de conhecimento de seus alunos.
Não é difícil deduzir que aquilo que não era para ser um método, rapidamente
se transformou em um: o ‘método construtivista’, amplamente alardeado pelas
escolas.
35
Uma das atividades de pesquisa do PROJETO “DESAFIOS” consiste em analisar o registro dos
materiais e atividades desenvolvidos na Educação Infantil pelos alunos ingressantes no 1º. Ano EFI.
Estes materiais são solicitados aos pais antes do ano letivo e permitem um mapeamento prévio da
heterogeneidade de repertório dos alunos.
99
desenho ou a escrita do aluno: ‘Registro de hipóteses sobre experimento’, ‘Registro
de hipótese da roda de conversa sobre o Patinho Feio’ – vale notar que a palavra
‘hipótese’ aparece indiscriminadamente em todas as atividades. Ora, esta é uma
palavra que no Construtivismo é utilizada em larga escala como nomenclatura
referente ao estágio de compreensão e registro das escritas pela criança – hipótese
pré-silábica, hipótese silábica com valor, etc. – mas que aqui são usadas para
referência a qualquer atividade infantil, como se seu universo fosse feito só de
conjecturas, teorias e cálculos e não de espontaneidade, prazer e desejo. O segundo
ponto que chamou atenção diz respeito às inúmeras ‘Folhas Explicativas’ que a
professora endereçava aos familiares, sugerindo atividades de alfabetização com o
filho, em casa. Dentre estes aconselhamentos havia um que dizia como os pais
deveriam ajudar o filho na produção de desenhos, visando a escrita. O terceiro
ponto, registrado em 2007 – portanto quando a criança contava entre 2 e 3 anos de
idade – mostrava uma folha de atividades cujo título era ‘Experiências com registros
espontâneos’; nesta folha uma série de garatujas infantis eram expostas, ladeadas
pela escrita da professora – ‘Registra suas hipóteses’ – sem nenhuma referência ao
que a criança ‘quis registrar’.
100
Figura 4: Excerto retirado da página 23 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e
Alfabetização Linguística’ do PNLD/MEC
Por quais práticas a criança seria introduzida à língua escrita e como isso se
apresentaria no contexto escolar?
101
Emilia Ferreiro, Ana Teberosky, Yetta Goodman, Hermine Sinclair, entre outros
teóricos do Construtivismo, propõem novo olhar que priorize a natureza do objeto
de conhecimento – a língua escrita – no processo de alfabetização. Consideram a
questão pela caracterização do sistema de representação alfabética da linguagem e
pelas concepções que aprendizes e ensinantes têm desse objeto.
Ferreiro e Teberosky (1979) destacam que essa afinidade pode ser tanto
analógica, em que a representação conserva as relações de propriedade do objeto
da realidade (por exemplo, as linhas de um mapa conservam as relações de
propriedade entre dois pontos, tal qual se verifica na realidade), quanto arbitrária,
em que a representação não tem relação com a realidade (por exemplo, as divisões
das fronteiras políticas de um território, que são postas no mapa, mas que não
existem necessariamente traços correspondentes na realidade). De qualquer modo,
todo sistema representacional resulta de processo histórico de construção e, tanto
a analógica, quanto a arbitrária, não existem de forma pura, mas mesclam-se em
maior ou menor grau.
102
Por outro lado existe o código, que não é representação, mas a transcrição
alternativa baseada em um sistema representativo já instituído, predeterminado
(por exemplo, o código telegráfico com relação à língua).
103
ideográfico, que também retrata um pouco das diferenças dos significantes no uso
de recursos fonéticos).
A apreciação de Ferreiro foi de que a escrita era antes tomada como simples
código de transcrição. Alfabetizar significava converter unidades sonoras em
unidades gráficas, priorizando o exercício e discriminação perceptiva visual e
auditiva. A linguagem era reduzida a sons (contrastes sonoros no nível do
significante) e a escrita a transcrição do som para um signo visual. A aprendizagem
alfabética encerrar-se-ia na aquisição de técnicas.
De seu lado, Ferreiro avalia que embora se possa saber falar adequadamente, ou
discriminar bem elementos visuais e auditivos, essas habilidades não resolvem a
compreensão da construção do sistema representacional da escrita. Só pela via do
uso técnico dos estímulos é impossível perceber, por exemplo, porque alguns
elementos essenciais da língua oral (como a entonação) não estão retidos na
representação, ou porque nela palavras de classes diferentes são tratadas como
equivalentes, entre outras questões.
[...] vemos que desde muito cedo tende (a criança) a imitar os modelos do mundo,
mesmo quando sua função ou sua intenção não lhe sejam transmitidas explicitamente.
[...] Assim também pode fazer ‘como se’ lesse, reproduzindo os gestos observados no
adulto: olha com atenção os desenhos, segura o livro de determinada maneira e
inclusive pode chegar a relatar o que vê utilizando ‘marcas’ (de entonação ou lexicais)
que indicam claramente a intenção de diferenciar este ato de outros atos verbais 36
(FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 208, tradução minha).
Mas, obviamente, a criança é também uma produtora de textos, desde muito pequena.
Pode-se encontrar intenções claras de escrever – diferenciadas das intenções de
36
[...] vemos que desde muy temprano tiende [el niño] a imitar los modelos del mundo, aun cuando
su función o su intención no le sean trasmitidas explícitamente. [...] Así también, puede hacer ‘como
si’ leyera, reproduciendo los gestos observados en el adulto: mira con atención los dibujos, sostiene
el libro de determinada manera e incluso puede llegar a relatar lo que ve utilizando ‘marcas’ (de
entonación o lexicales) que indican claramente la intención de diferenciar este acto de otros actos
verbales (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 208).
104
desenhar – em uma criança de classe média, habituada desde pequena a usar os lápis e
papéis que encontra em sua casa, desde meninotes, ou antes até (2 anos e meio ou 3
anos)37 (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 239, tradução minha).
37
Pero, obviamente, el niño es también un produtor de textos, desde temprana edad. En un niño de
clase media, habituado desde pequeno a hacer uso de los lápices y papeles que encuentra en su
casa, pueden registrarse intentos claros de escribir – diferenciados de los intentos de dibujar – desde
la época de los primeiros monigotes o aun antes (2 años y medio o 3 años) (FERREIRO e TEBEROSKY,
1979: 239).
105
construtivos, em que se veem o que a criança quis representar, como e o quê utilizou
para fazer as diferenciações das representações. Ferreiro e Teberosky (1979)
partem de uma pergunta central para iniciar a investigação sobre a escrita infantil:
quando a criança começa a interpretar sua escrita como algo diferente do desenho?
A criança pequena desenha, faz garatujas, riscos e círculos, que pouco a pouco
ganham conformações figurativas. Em determinado momento, até por volta dos 4 ½
anos, ela acrescenta a suas reproduções gráficas um elemento que reproduz algum
traço semelhante ao do desenho, mas que chama de ‘letra’. Com essa designação, no
entanto, o pequeno ainda não significa uma representação, ou seja, a letra não é o
substituto de algo, ela é simplesmente letra, é coisa diferente do desenho, mas ainda
é um objeto como outro qualquer do mundo, que coexiste com a imagem. Ferreiro e
Teberosky descrevem um exemplo no qual uma menina faz dois desenhos e sobre
eles coloca signos:
106
Cada desenho vai acompanhado de um signo. [...] O signo utilizado é uma curva semi
fechada; o notável é que a dimensão da curva é proporcional à da cama: uma curva
grande para uma cama grande e uma pequena para a caminha. O signo mal se separa do
objeto, é próximo ao ideograma, manifestando uma confusão entre o que é significado
pelo signo e o significante mesmo [...] exemplo da dependência em que se encontra o
signo com relação ao desenho38 (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 240, tradução minha).
38
Cada dibujo va acompanhado de un signo. [...] El signo utilizado es una curva semi-cerrada; lo
notable es que la dimensión de esta curva es proporcional a la cama: una curva grande para la cama
grande y una pequeña para la camita. El signo se separa mal del objeto, es próximo al ideograma,
manifestando una confusión entre lo que es significado por el signo y el significante mismo. [...]
ejemplo de la dependencia en la que se encuentra el signo com respecto al debujo (FERREIRO e
TEBEROSKY, 1979: 240).
107
contextualizada e indissociada da figura que acompanha. Vejamos dois exemplos
que Ferreiro fornece desse processo infantil:
Nanis aos 4;1 tenta desenhar um boneco. Logo se lhe pede que coloque algo com letras,
e faz uns círculos que são tanto letras como narizes do boneco. (Dois meses antes o
mesmo Nanis, com figuras recortadas, colocava uma única grafia, porém dentro da
imagem).
Jorge (4;9) prepara os cartazes para a loja de brinquedos. Para os soldados coloca uma
só grafia no cartão.
Ora, é importante perceber que essas ‘letras’ que os pequenos dizem ter feito,
são assim nomeadas quando a pesquisadora pergunta o que são. Há no método da
‘exploração crítica’ intervenção constante do investigador que, para saber o quê e
como a pessoa pensa, precisa questioná-la e assim chegar a entender como o
conhecimento foi pensado e construído. Mas também podemos fazer uma
observação psicanalítica sobre isso, que veremos ter consequências para a
edificação do saber de cada um. A arguição, ao mesmo tempo em que situa o sujeito
em um contexto, é também demanda formulada por aquele que pergunta. Ao
perguntar ‘é letra ou soldado’, o Outro formula uma pergunta que também é um
pedido à criança, em que ‘letra’ tem relevância. Se perguntasse ‘é soldado ou fuzil’, a
chance de a resposta ser ‘é letra’, seria bem menor. Ao ouvir ‘letra’ como opção, a
criança responde antes de qualquer coisa ao pedido do Outro. Estabelece-se uma
relação de troca, condição de entrada na cultura, em que poder-se-ia imaginar a
posição infantil: ‘Ponho letras se é o que queres e se aí me reconheceres’.
A letra já está no mundo e a criança convive com ela desde que nasce, como
dizem Ferreiro e Teberosky. Entretanto o infante só olha para a letra e compreende
o seu sentido se alguém a nomeia e significa, primeiro subjetivamente, depois
108
socialmente. Sozinha a criança não tem acesso a qualquer objeto do mundo,
tampouco a letra.
Pois bem, a criança desenha e põe dentro dele elementos que chama de letra. É
preciso então, que faça a passagem do desenho-letra para a letra em si, para a
representação escrita, distante da imagem ou do objeto que quer designar. O
primeiro passo nessa direção é o infante escrever fora das bordas do desenho (ao
lado ou contornando-o) e introduzir variedades gráficas alternando bolinhas,
pauzinhos, cruzinhas, etc., reconhecendo que as letras se organizam em série no
espaço, uma após a outra. Geralmente nessa fase a quantidade de elementos-letra
que coloca acompanha a quantidade de elementos da imagem: quanto mais detalhes
no desenho, mais letras aparecem; é o espaço figurativo que determina o limite do
que se escreve.
Nessa fase ainda as mesmas letras postas com certa ordenação dizem o nome
da coisa ao lado da qual está, independentemente do objeto retratado: uma
sequência qualquer de grafias (AIO) que ladeie a imagem de uma árvore, quererá
dizer ‘árvore’; estas mesmas letras (AIO), ao lado de um lápis, dirá ‘lápis’. Da mesma
forma, dois conjuntos ordenados de letras distintas (AOR e ALU), postos ao lado da
mesma imagem (por exemplo ‘árvore’), designarão a mesma coisa, isto é, ambas
escrevem árvore.
109
Longe da imagem as letras não querem dizer nada, ou são simplesmente letras.
O primeiro significado da letra é, portanto, associado ao objeto que o acompanha. As
letras dizem o nome do objeto, que a imagem sozinha não diz. Dizer algo nesse caso
é referir-se à figura que o texto acompanha, e só a ela. Ferreiro e Teberoaky (1979)
descrevem um exemplo em que, no nível da fala, a criança diz minha boneca come
‘alfajor39’ (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 246, tradução minha), mas se escreve algo
ao lado da imagem do ‘alfajor’, diz simplesmente ‘alfajor’: segundo as autoras, é um
nome puro, sem representação.
A criança busca uma regra geral para fixar o mínimo e o máximo de letras para
as palavras. Uma vez fixado o número mínimo com que vai escrever, o número
máximo varia, inicialmente, conforme o objeto que se vai nominar seja maior, mais
pesado, com mais detalhes, etc. A criança também pode por uma letra para cada
elemento de imagem (6 gatos na imagem = 6 letras). Até esse momento a criança
está na fase pré-silábica, estágio da construção do conhecimento escrito que já sabe
que as letras representam algo, que é preciso seriá-las e ordená-las de modo que
39
Mi nenê come alfajor (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 246).
110
cada palavra seja diferente da outra. Mas as letras aqui ainda não têm valor sonoro
estável.
A criança tenta, então, novas soluções, para o que a fonetização da escrita (que
se inicia no período silábico) vem acorrer. Busca variações de letras que às vezes se
fazem no eixo qualitativo e às vezes no eixo quantitativo, já que a coordenação dos
dois eixos ao mesmo tempo é ainda muito difícil. Ela começa a atentar às
propriedades sonoras do significante.
[...] é o primeiro exemplo claro de escrita livre de contexto, de escrita cuja interpretação
não depende da imagem que se situa em suas proximidades, ou do objeto que lhe
fornece base material;
[...] provê uma informação segura acerca de que a ordem dos elementos não pode ser
qualquer uma (pelo menos a inicial do nome próprio converte-se rapidamente em ‘a
minha’, ‘a do meu nome’, muito antes de funcionar como primeira sílaba deste);
[...] funcionará como fonte permanente de conflitos, já que as sucessivas hipóteses que
a criança vai elaborando – e muito particularmente a hipótese silábica – não recebem
confirmação ao enfrentar-se com a escrita do nome próprio.
40
El conflito entre la hipótesis silábica y las formas fijas recibidas del médio ambiente se evidencia
com mayor claridade en el caso del nombre próprio (FERREIRO e TEBEROAKY, 1979: 261).
112
(Apontemos aqui que essa questão em torno da escrita do nome próprio, tão
cara ao Construtivismo, também o é para a psicanálise. Mas entre as duas visões há
leituras diferentes, das quais trataremos mais adiante, nos Capítulos 4 e 5).
A criança retira do seu meio as informações que serão efetivas à sua construção
da escrita, mas essas precisam ser integradas a conhecimentos já estabilizados.
113
Essa divisão dos princípios, embora seja didática, não se apresenta à criança
separadamente; ela é convocada a lidar com todas ao mesmo tempo e segundo
Goodman, [...] aparecem num ambiente sócio-cultural complexo e numa ordem
complexa de formas para propósitos complexos (GOODMAN, 1981: 99).
Para verificar a hipótese de que a troca entre alunos pode beneficiar a todos no
avanço do conhecimento e da apropriação da escrita, empreendeu uma pesquisa
com alunos de classe média da cidade de Barcelona, todos bilíngues (falavam
castelhano e catalão). Estabeleceu grupos de 5 ou 6 crianças pré-escolares, em níveis
diferentes de hipóteses da escrita (porém próximos), do qual participavam também
o professor e o pesquisador (este último que só observava e anotava os
acontecimentos e atividades). Nesses grupos os alunos podiam participar
ativamente de várias maneiras: copiando, perguntando, ditando, falando, olhando e
corrigindo o que outras faziam, ou mesmo não se manifestando.
115
Analisou situações em que todas as crianças escreviam a mesma coisa (em folha
ou na lousa), ou só uma escrevia e as outras observavam ou colaboravam, ou em que
cada criança escrevia algo diferente. Os resultados apontaram que a primeira
situação foi a mais frutífera no que diz respeito ao intercâmbio de informações,
colaboração e regulação da própria escrita. Segundo Teberosky [...] os intercâmbios
entre as crianças não são senão instrumentos para socializar o que cada um sabe e
ajudar no sentido de uma construção conjunta (TEBEROSKY, 1981: 128).
116
Sua atitude, produto da convicção de que as crianças podem e sabem escrever (no
sentido psicogenético do termo), permitiu-lhes promover e facilitar as produções sem
interferir com correções e opiniões a respeito dos possíveis ‘erros’ infantis. Para ela
todas as respostas eram válidas, e os membros do grupo resolviam entre diferentes
alternativas. Frente a situações de dúvida ou discussão, a professora não se colocava
como alternativa ‘correta’, mas promovia outros membros do grupo-classe como
consultores, eleitos pelas próprias crianças. Tentava, isto sim, ‘ressaltar’ as opiniões que
permitissem fazer avançar as concepções das crianças. Também ela participava dando
respostas, com a condição de esclarecer o que era que as crianças estavam pensando ou
fazendo. Se fosse o caso de intervir dando sua opinião, apresentava-a como uma dentre
as possíveis frente à situação concreta de trabalho (TEBEROSKY, 1981: 127, grifo meu).
NS [silabando] ‘Ca-di-ra’
JO [considerando] ‘Sim, o de porque está no meu nome’ (assinala seu nome escrito no
avental: Jordi)
Professora [fala para NS] ‘Poria ca-di-pa. Me-ri-txell’ (nome próprio de uma menina
presente no grupo)
117
Será mesmo que essa isenção do adulto que sabe, para tornar-se um semelhante
infantil é assim tão ingênua e inconsequente? Creio que não! Justamente o que
observamos na prática escolar parece apontar para os deslizes dessa ideia. Do
mesmo modo que cada criança já adentra os muros da escola com um saber que não
pode ser desconsiderado, também os mestres estão nessa condição: ‘sabem’ que
devem intervir sem impor seu saber, como pressupõe o Construtivismo. Apontamos
que essa é uma posição determinante e consequente.
Quadro 1: Nível de leitura dos alunos de uma sala de 1º ano EFI (EA FEUSP), meses de fevereiro e março
Fluente 2
Leitura silabada 3
41
Esta sondagem de leitura foi realizada pela Professora Doutora Idméa Seneghini-Siqueira
(professora da FEUSP). As categorias de leitura gráfica foram estabelecidas por ela e, como veremos
a partir do Capítulo 4 desta tese, não são totalmente concordantes com nossa visão de leitura, mas
são aquelas que comumente se aplicam nas escolas, e por isto aproveitamos aqui a título de
informação complementar.
118
Quanto à escrita deste mesmo grupo, a sondagem do mês de fevereiro
mostrou42:
Quadro 2: Nível de escrita dos alunos de uma sala de 1º ano EFI (EA FEUSP), mês de fevereiro
Silábicos 5
Silábicos alfabéticos 6
Alfabéticos 2
O que a prática escolar sugere é que mesmo crianças em fases bem díspares de
alfabetização – usando a descrição de fases do construtivismo, por exemplo uma
pré-silábica e outra já silábica com valor sonoro – são capazes de se ajudar, mas com
frequência é o professor quem as une em carteiras próximas, justamente com o
propósito cooperativo. Espontaneamente, os grupos de alunos se formam por
afinidades outras: brincadeiras, interesses e até conhecimentos, desde que esse
último seja próximo, principalmente depois de um tempo de convívio em que os
pequenos já identificaram o posicionamento de cada um diante do saber. Depende,
portanto de uma intervenção ativa do professor a junção de pares cooperativos; e
isso não se faz de forma isenta de saber e intenção por parte do mestre.
42
É importante ressaltar que não concordamos com esta categorização da escrita tal qual propõe o
Construtivismo, mas inserimos estes dados pelo fato de que até o início do PROJETO “DESAFIOS”
esta era a categoria avaliativa empregada pelos professores alfabetizadores da EA-FEUSP, portanto
no primeiro mês do projeto ainda era sua a base referencial.
119
ver ainda o lugar hierárquico de identificação do saber que se estabelece em sala de
aula. A criança é capaz de rechaçar uma hipótese vinda de outra criança, por julgá-
la errada (ainda que esteja certa), mas será que o faz da mesma forma com relação
àquilo que recebe do professor?
120
pedindo que cada aluno riscasse em suas lições a palavra impressa incorretamente,
corrigindo-a pela palavra que escrevera em seguida. No entanto, a sua correção no
quadro negro continuava omitindo a mesma letra ‘e’ – sem que ele se desse conta,
errara novamente. Os alunos seguiram as instruções e em suas folhas copiaram
exatamente como o professor corrigira, ou seja, ainda faltando uma letra. O aluno
anterior protestou mais uma vez e só então, a letra foi posta em seu lugar, pelo
professor, permitindo que as demais crianças arrumassem suas lições.
121
No que concerne às questões sobre o texto escrito, havia uma pergunta assim
formulada: ‘O que o Saci faz de errado, que as crianças bem educadas não fazem?’
Quem conhece o Saci, sabe que ele dá nó em crina de cavalo, põe o dedo no leite para
azedá-lo, assobia na mata para enganar intrusos, entre outras peraltices. Acontece
que no texto escrito não havia nada disso. Explica, então, o professor: ‘Aqui é para o
aluno escrever que ele [Saci] fuma e bebe’. Ora, mas na história lida pelos alunos, a
referência que se fazia ao fumo e à bebida não era tão evidente. A frase dizia: “Se
quiser que o Saci atenda ao seu pedido, você precisa ter fumo e aguardente para dar a
ele43” (!!) Isto é, a criança – aquela de quem se espera boa educação e que não faça
nada errado – é justamente aquela que tem bebida e fumo para oferecer! O conteúdo
moralizante amparado pelo status quo é tão avidamente perseguido pelo professor,
que não percebe a aporia em que o aluno foi colocado. O modo como a pergunta é
formulada convoca o aluno a se identificar com a criança do texto. A ele restam duas
alternativas, em si contraditórias: ou ele se recusa a ser aquele indivíduo, já que
‘crianças não fazem o que o texto diz para ele fazer’ (ter fumo e bebida) e aí fica sem
poder responder à pergunta proposta e, consequentemente sai do papel de aluno;
ou ele é a criança mal educada que porta fumo e bebida e, de saída, está fora do papel
do aluno esperado: o bem educado.
43
Grifo meu.
122
alunos. Não raro se faz do ensino-aprendizagem uma relação restrita à transferência
e absorção de conteúdos objetivos, ignorando-se que as referências e repertórios de
cada um têm implicações sobre os outros. Mais ainda, a tendência do professor é de
avaliar a incidência dos atos dos alunos sobre seus pares, enquanto as suas
manifestações são consideradas de duas formas: aquelas objetivas e relacionadas
aos conteúdos programáticos da aula devem ser assimiladas por seus alunos,
enquanto que geralmente os efeitos daquelas subjetivas não são sequer atentados
ou, pior, são considerados irrelevantes.
44
Esta pesquisa teve financiamento do Instituto HSBC Solidariedade, com sede em Curitiba (PR).
123
Neste trabalho, no entanto, deparei-me com uma situação bastante instigante,
que orientou os rumos desta tese. Tratava-se do caso de um menino de 10 anos que
não lia nem escrevia, que fazia pela segunda vez o 4º ano do Ensino Fundamental
(antiga 3ª série) em uma escola pública da periferia da cidade de São Paulo. De
família simples, era o único filho da mãe e segundo filho do pai. Entre os seis e os
oito anos fora tratado de leucemia linfoide aguda (LLA), doença da qual estava quase
curado45. Era um menino um tanto apático, que às vezes esboçava um riso no canto
da boca. Vinha aos atendimentos trazido pelo pai amoroso: ‘Meu filho precisa
aprender a ler no ABC como eu aprendi. Ele precisa ser alguém’.
Além de carinhoso, o pai também sabia ser extremamente duro com o filho:
todos os dias exigia do filho, a cada regresso da escola, que lesse. Colocava o texto
sobre a mesa e... nada! Isso invadia as horas lúdicas que a criança poderia ter. Essa
atitude parecia incompatível com a ternura que aquele homem tinha pelo filho.
Certo dia, indignado com o fato de o filho não saber ler, faz para mim um gesto
abrupto de esticar os braços com as mãos abertas, me mostrando as palmas das
mãos e diz: ‘Eu dou a minha Bíblia para ele, mas ele não aprende no ABC’. De
passagem vale dizer que a Bíblia era o único livro da casa e que o pai almejava ser
pastor em uma igreja.
45
O critério médico para cura oncológica não é a simples ausência da patologia, mas a ausência dela
por cinco anos seguidos.
124
pai que não pedisse mais ao filho que lesse para ele. Isso pareceu aliviar a criança
que, embora ainda analfabeta, agora estava mais risonha e solta.
125
Ainda que a proposta original de investigação construtivista não dispense a ação
e a atenção do professor, o uso desse pressuposto teórico no Brasil aponta para
impasses nessa ação quando o aluno não é capaz de passar de uma hipótese de
alfabetização a outra. Na PESQUISA “DESAFIOS” verificamos a dificuldade de
professores em serem ativos nessa transição. Por inúmeras vezes deparamo-nos
com questionamentos do tipo: ‘Como fazer para que uma criança saia da hipótese
silábica e passe à alfabética?’, ‘O que fazer para que o aluno pare de ler silabando?’
Essas perguntas encontram entraves em afirmações magistrais do Construtivismo:
primeiro de que ‘cada criança tem um ritmo de construção da aprendizagem, que
tem que ser respeitado’, para o que nos perguntamos qual o limite dessa espera, se
não raro verificamos crianças que chegam ao terceiro ou até quarto ano do EFI ainda
não alfabetizadas? O Construtivismo parece funcionar bem quando o aluno carrega
consigo recursos socialmente estabelecidos e reconhecidos pela escola e com eles
demonstra que sabe ‘construir’ seu conhecimento, avançando nas hipóteses de
alfabetização. O mesmo não parece ocorrer quando a criança por algum motivo não
faz essa progressão espontaneamente.
126
e AN). Contrariamente aos preceitos do Construtivismo, a prática educadora do
professor fica cindida e ele não pode ‘construir’ saber sobre ela, fora do ‘método’.
O professor também é tomado pelo compasso de espera de que ‘o’ método venha
salvá-lo dos impasses instituídos. Nesta espera angustiante, tem-se posto a buscar
soluções novamente fora da relação professor-aluno, fazendo remissões constantes
às crianças hiperativas, desatentas, disléxicas, autistas46! – diagnósticos cada vez
mais frequentes e disseminados, que invadem os consultórios de neurologia e
esvaziam a aprendizagem nos bancos escolares.
46
Viviane Neves Legnani e Sandra Francesca Conde de Almeida (2008) mostram que dados
estatísticos preconizados pelo discurso médico contemporâneo (e adotado pela Organização
Mundial da Saúde – OMS) apontam para uma incidência de 3% a 6% de crianças e jovens em idade
escolar com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), mas em algumas camadas
populacionais brasileiras este índice salta para 30%. Ainda que aceitássemos este diagnóstico para
qualquer sujeito – o que não é o caso, como se verá no Capítulo 5 desta tese – esta
hiperdiagnosticação revela que há crianças sendo claramente diagnosticadas de modo negligente e
inconsequente.
127
A questão que se fez premente foi sobre a proibição de alguns textos e a
liberação de outros na transmissão geracional: que textos (que discursos) são
vetados a uma criança e como isto interfere na sua apropriação de saber? Estas
questões guiaram os caminhos teóricos desta tese.
128
3. NARRATIVAS E SUBJETIVIDADE – REPRESENTAÇÃO E
TRANSMISSÃO COMO CONDIÇÃO DE LEITURA E ESCRITA
É igual a pamonha!
Aluno 1
47
Belém (PA), por ocasião de encontro de trabalho entre pesquisadores dos três polos da PESQUISA
“DESAFIOS”, em abril de 2012.
48
A capacidade de recontar uma história escutada faz parte das atividades diagnósticas iniciais de
memória e narrativa oral dos alunos que participam do PROJETO “DESAFIOS”. Estes recontos foram
feitos em fevereiro de 2012, em sala de 1º. Ano do EFI da Escola de Aplicação-FE-USP.
129
‘Este é o nome. E como era a história’?
Aluno – Não lembro. (Visivelmente não queria contar, mas esperei). É pra contar a
história toda? Vai demorar muito...
‘É você quem vai contar a história. Vai levar o tempo que você quiser’.
Aluno – O coelho foi lá pegar a cenoura e quando voltou viu um olho brilhante. Não
conseguiu entrar na toca e aí chamou a cabra para ver o Cabra Cabrês.
Aluno – É ele (aponta para o desenho que o professor fizera e colara na parede, junto à
lousa – desenho de uma toca escura em que só se viam dois olhos, sem a feição). Aí ele
falou: ‘Eu sou o Cabra Cabrês. Vai-te embora coelhinho, que de um te faço em três’. (Fala
isto lendo o que o professor colocara sob o desenho da toca). Aí depois chamou o boi.
Aluno – O coelhinho. Aí ele foi lá e falou a mesma coisa e o boi saiu correndo. Aí chamou
o gato. Depois o cachorro e os dois a mesma coisa. Aí depois... depois... o coelhinho
começou a chorar porque não tinha mais a toca. Aí veio o mosquitinho que entrou na
orelha do Cabra Cabrês. Aí depois o Cabra Cabrês saiu correndo. (Olhando para mim,
me inquirindo) Você viu quanta coisa? Viu que demorou?
‘Você viu que você se lembrou da história e que não demorou muito para isso’? Ri e sai.
Aluno 2
Aluno – Não lembro do nome, nem da história... Só lembro que o coelho estava fazendo
uma sopa de cenoura. Aí apareceu o Cobra Cabeça. É só essa parte que eu lembro. Ah,
eu lembro mais uma parte que o Cobra Cabeça falou uma coisa para o coelho. Uma coisa
chata que eu não lembro...: Vai-te embora coelhinho. De um te parto em três.
Aluno – Foi chamar o coelho que fez assim – Ah! Ah! – mas não adiantou nada porque o
Cobra Cabeça disse de novo: Vai-te embora coelhinho. De um te parto em três. Aí ele
chamou os outros amigos (que eu não lembro), até que veio a mosca que entrou no
ouvido e o Cobra Cabeça foi embora. Acabou o coelhinho fazendo a sopa de cenoura.
Aluno 3
130
‘Então me conte como era a história você ouviu’.
Aluno – Era uma vez um coelho. O coelho foi sair e pegar cenouras para fazer uma sopa
de cenouras. Aí viu olhos brilhantes, grandes, na toca. ‘Eu sou o Cabra Cabeça. Vai
embora que de um te parto em três’. Aí o coelhinho foi pedir ajuda.
Aluno – Para o cabrito, que falou: Quem é esse Cabra Cabeça aí? O coelho mostrou para
ele. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O Cabra Cabeça falou: ‘Vai
embora cabrito que de um te parto em três’. Aí foi embora e pediu ajuda para o seu
amigo ovelha. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O Cabra Cabeça
falou: ‘Vai embora ovelha que de um te parto em três’. Aí foi embora e pediu ajuda para
o seu amigo cachorro. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O Cabra
Cabeça falou: ‘Vai embora cachorro que de um te parto em três’. Aí foi embora e pediu
ajuda para o seu amigo gato. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O
Cabra Cabeça falou: ‘Vai embora gato que de um te parto em três’. Aí o mosquito foi,
entrou na toca e entrou no ouvido. O Cabra Cabeça disse: ‘O que é isso!’, e foi embora. O
coelhinho entrou em sua toca, fez a sopa e dividiu com todo mundo.
O terceiro foi além: começou a narrativa com uma expressão formular típica das
histórias infantis – Era uma vez... – que, não estando presente no texto original,
denota a remissão feita a outras histórias escutadas. Ali onde os dois anteriores
fracionaram uma ação – Foi pegar cenoura e Estava fazendo sopa de cenoura – ele a
descreveu por completo, juntando os dois atos; da mesma forma os acontecimentos
tiveram continuidade quando, ao invés de resumir a participação do inseto a atingir
131
o Cabra Cabrês, ele descreveu sua anterior entrada na toca, feito que nenhum outro
animal ousara. Esta ousadia, aliás, aparece como a intromissão de um elemento
particular seu (marca de subjetividade), que se evidencia na apresentação de cada
um dos animais que descreve: Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho!
Isto também não estava no texto original narrado, mas retrata o modo como ele ‘lê’
de forma significativa o sentido dos acontecimentos: é preciso coragem para
enfrentar o desconhecido!
Assim como carregamos nosso corpo por onde quer que andemos, é impossível
deixar nossa subjetividade quieta em um canto, esperando por nossa volta, ainda
que por vezes nos esforcemos para controlar os modos de expressão que nos fazem
únicos. A linguagem não nos permite esta cisão, como já apontou Sigmund Freud ao
construir a Psicanálise e descrever como a fala nos atravessa e se manifesta à revelia
nos atos falhos, nos lapsos, nos chistes, nos esquecimentos e nos sonhos e sintomas.
Portanto, nas salas de aula, professores e alunos estão presentes com o corpo pleno
de linguagem, cuja expressão se manifesta através da fala comunicativa cotidiana –
que tomando de empréstimo de Claudemir Belintane (2011) chamaremos de
49
No campo discursivo o limite desta estrutura poderia ser pensado na manifestação inconsciente
(emergência do significante) que se daria em um lado da banda e que operaria como um furo nesta
armação, mas justamente não o faz porque sua continuidade se dá na interpretação deste
significante no avesso da faixa, onde encontra o objeto causa de desejo.
132
pragmática – tanto quanto pelos discursos subjetivos com os atravessamentos dos
traços mnêmicos. Traço de memória que, como no caso relatado no reconto dos
alunos, também contou com a intervenção do professor: não havia no texto
nenhuma referência a como seria o Cabra Cabrês, além daquela de ter uma voz
assustadora, refletida no tom da frase: ‘Vai-te embora! De um te parto em três!’
Indagado pelos alunos sobre como ele seria, o professor interveio desenhando os
olhos brilhantes no fundo da toca, acrescentando um traço próprio de significação.
Ele poderia ter simplesmente sugerido que cada estudante imaginasse o seu Cabra
Cabrês – ‘Como seria aquele ser assustador?’ – mas preferiu posicionar-se desde a
sua versão figurada do animal.
133
facilidade. A trama de textos orais e os interjogos linguageiros que resultam em boa
leitura não são produto de uma construção consciente [...], resultam dos efeitos da
própria alíngua, efeitos metafóricos e metonímicos. Ou seja, [...] o que não é tão
concreto, material e palpável é o que mais nos interessa. [...] nosso “letramento”, como
o defendido por Tfouni (2001), comporta o oral e, essencialmente, os gêneros que
privilegiam a função poética. Em vez de levar à criança uma cidadania e uma consciência
adultas, privilegiamos o desejo e a fantasia como forma de abrir portas para a cidadania
do mundo, que em vez de comportar a língua e a linguagem do cotidiano imediato (que,
na maioria das vezes, são marcadas pelo mercado), potencializa encontros entre o
regional e o universal (BELINTANE, 2011: 152).
É na subjetividade que encontramos o que sustenta o desejo por aprender e por ensinar.
Subjetividade que significa particularidade e singularidade no universal da cultura, isto
é, o lugar que cada um ocupa na sociedade porque tem uma função social e uma história
de vida particular, enfim, um desejo que lhe é próprio. É o reconhecimento dessa
unicidade que o faz igual, dado que o desejo é universal, e diferente, enquanto é único
134
em seu desejo. Na subjetividade, é o desejo enquanto propriedade universal de todo ser
humano que nos unifica como seres desejantes e, como cada desejo é construído ao
longo de uma história, a inserção do sujeito na cadeia geracional singulariza o desejo,
torna-o único a cada um (IUMATTI e BATTAGLIA, 2004).
3.1.TRAMAS DE BERÇO
50
Tanto o termo Texto, quanto Subjetividade, grafados com letra maiúscula serão usados como
conceitos aqui elaborados, para diferenciá-los do uso comum destas palavras.
135
pessoas – no caso seus pais adotivos. Esse reviramento do texto sobre si mesmo
causa como marca o resgate dos textos de uma vida inteira, em cuja trama passa-se
a encontrar tanto aqueles construídos e proclamados por si, quanto aqueles não
experimentados, porque silenciados na boca de outros. Essa é a sinopse do drama
cinematográfico alemão ‘O dia em que eu não nasci’, de Floriam Cossen, exibido em
circuito comercial nas salas de cinema de São Paulo, em novembro de 2011.
Neste enredo temos uma alegoria que ilustra a função da memória tal qual
adotada nesta tese: o texto mnêmico, herdado e constituído é o que permite ler o
desejo posto nas relações intersubjetivas – portanto, ler o próprio desejo e o do
outro – e também o que permite ler os textos articulados pela cultura nos diferentes
suportes e gêneros (nos livros, nas cantigas, nos jornais, na internet, nos cartazes de
propaganda, etc.), nos quais encontramos as novelas, as poesias, as manchetes, etc.
Todos os povos preservam, ‘desde o berço’, suas cantigas de ninar bebês e nelas
já se pode identificar o enredo, o cenário textual no qual estes pequenos adentram.
Cantigas geralmente povoadas por um certo nonsense e uma pitada de mistério e
temor:
Boi faz careta? Boi pega menina? Que boi pega, o da cantiga de ninar ou o Boi
Bumbá? De que tempo histórico falamos: de um acontecimento presente?, ou de um
período inalcançável que se presentifica? O boi não faz nada disso, mas ainda assim
ele encanta, acalanta e faz tremer de medo e de dúvida; e por este simulacro de
sensações marca o sujeito pelos traços de memória que cria e articula. Este boi
136
depois poderá ser aquele que ‘primeiro voou em Pernambuco51’, ou prosaicamente
o próprio boi do pasto, em quem sempre se procurará uma cara preta uma vez que
na primeira infância o boi cantado pela mãe já anuncia que ao lado da necessidade
de cuidados é preciso um tanto de fantasia.
[...] além de serem ativados por uma intenção outra, que vai além da utilidade
comunicativa são, como diria Manoel de Barros, “desúteis”, ou seja, servem para o “de
brinca”, para o jogo, para o lazer, enfim, expressam emoções. Quando alguém repete
uma parlenda ou canta uma cantiga a uma criança, só espera da criança uma
participação jubilosa, esfuziante, alegre, enfim, propõe um enlace marcado pela
51
Alusão ao feito de Maurício de Nassau que fez sobrevoar um boi atravessado em um fio esticado
sobre as cabeças dos espectadores recifenses, em 1644.
137
afetividade, pela emoção. Para que o adulto possa se envolver de fato, suas memórias
mais primitivas são acionadas. De onde tiramos, por exemplo, uma brincadeira como o
“Serra, serra, serrador” se não de uma memória vivenciada na infância?! Nos ludismos
que se dão entre adulto e criança, o que se vê é o reencontro de uma criança do passado
(na memória do adulto) com a que está no presente. A produção desses textos se vincula
à função poética e eles formam uma rede de memória que já enraíza potencialidades
para o gosto literário, como mostrou Bandeira (BELINTANE, 2011: 31-32).
138
Para Belintane esses textos poéticos que carregam uma estética sonora, rítmica,
e que se reproduzem de tradições longínquas, funcionam sobrepostos à fala
cotidiana, em que jogos metafóricos e metonímicos laboram desde o princípio da
entrada da criança na língua. Crianças de menos de dois anos já passam pelo influxo
cativante desses jogos, que são capazes de produzir relações intertextuais bastante
complexas, por exemplo, um texto completo, uma cantiga de roda, pode ser arrastada
por uma palavra escutada no cotidiano (BELINTANE, 2007: 18).
[...] a menina está batendo em uma tigela com uma colher de pau, a mãe se aproxima
para repreendê-la e sucede o seguinte diálogo:
Uma palavra – tigela – abre o universo de um texto, que por sua vez faz resgatar
na memória todas as vezes em que significativamente mãe e filha entoaram juntas a
cantiga, marcaram um ritmo, riram uma só risada. É com este recurso psíquico de
entrecruzamentos dos vários objetos que o cercam, que o ser humano conta para
construir um lugar singular na relação com outros sujeitos e também na cultura da
qual passa a participar.
139
Em todas as civilizações as crianças são embaladas por brincadeiras que
enlaçam e envolvem seu corpo com jogos linguageiros. ‘Cadê o toicinho que estava
aqui?’, ‘Janela, janelinha’, entre muitos outros, são exemplos destes acontecimentos
lúdicos com a criança, que se deixa encantar pelo ritmo, pela experiência marcada
em seu corpo e pela troca de olhares e gestos com o outro. Aí o adulto mapeia o corpo
infantil, nomeia-o ao mesmo tempo em que o reveste de possibilidades em torno de
uma unidade que chamará de ‘eu’. Os olhos são apontados ali onde estão as órbitas
oculares, mas ganham a fantasia do mundo que se descortina por ‘janelinhas’; os
dedinhos infantis tomam vida no vizinho, no pai-de-todos e no bolo, deliciosamente
pronto para o furo! O corpo se abre a muitos sentidos que não só de sua utilidade
física.
O que vemos na contação de histórias, nos brincos, nas parlendas, nas cantigas,
nas fórmulas de escolha, nas adivinhas, é mais do que compartilhamento lúdico; há
acesso à literatura pela via da oralidade, da escuta e do jogo de corpo. São
brincadeiras e jogos despretensiosos, que envolvem a criança em uma trama
relacional com o outro. Aí vai tomar consciência de si, constituir seu corpo e se
apropriar dos significantes que marcam sua subjetividade. A criança é tomada na
relação terna com o outro que brinca, e com ele se identifica entregando-se às
demandas de amor e troca.
Essa relação intertextual 52 tão importante entre uma palavra ou expressão da fala
cotidiana e um texto completo anteriormente memorizado é bastante comum na vida
das crianças que têm o privilégio de conviver com uma pluralidade de textos – aliás, é
uma operação que abre o traçado de uma subjetividade de entre-textos53, ou seja, um
sujeito efeito das possibilidades de relações que os dois eixos proporcionam. Esse
fenômeno, que no ensino de literatura é conhecido como intertextualidade, é um dos
dispositivos fundamentais do bom leitor (BELINTANE, 2011: 26).
Este percurso feito por cada sujeito, entre-textos, é ao que damos total atenção
como incremento da alfabetização e superação das dificuldades a ela intrínsecas.
52
Conceito que Belintane (2011) emprega como a relação que se dá entre a fala prosaica e fontes
precisas da tradição oral infantil.
53
Conceito que Belintane (2011) forja evocando o intertexto/interdiscurso da Análise do Discurso e a
posição lacaniana de encontrar o sujeito como efeito entre dois significantes. Entre-textos mantém a
ideia de excentricidade do sujeito e sua natureza intervalar.
140
Cabe dizer que no trânsito das palavras que vão do uso cotidiano ao lúdico
poético, e vice-versa, nesta captação de um texto a partir de uma palavra, ou de uma
palavra significante destacada de um texto mais amplo, já está posta a linguagem na
sua atividade metafórica-metonímica, como a que emprega a psicanálise, e que
muitas vezes se trama e se apresenta por sua incidência inconsciente.
Parece que os eruditos árabes, falando do texto, empregam esta expressão admirável:
o corpo certo. Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos fisiologistas;
aquele que a ciência vê ou de que fala; é o texto dos gramáticos, dos críticos, dos
comentadores, filólogos (é o fonotexto). Mas nós temos também um corpo de fruição
54
Todas as vezes que nos referirmos ao sujeito do inconsciente psicanalítico usaremos a palavra com
letra maiúscula - Sujeito – como forma de diferenciá-lo do sujeito indivíduo, pessoa.
141
feito unicamente de relações eróticas, sem qualquer relação com o primeiro: é um outro
corte, uma outra nomeação; do mesmo modo o texto: ele não é senão a lista aberta dos
fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços
vagabundos dispostos no texto como sementes e que substituem vantajosamente para
nós [...] as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia). O texto tem
uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo
erótico. O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical
(fonotextual), como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica (BARTHES,
1973: 25).
142
atividade viva e frenética dos pequenos substratos orgânicos que se agitam em
torno da brincadeira coletiva.
55
O repente é uma modalidade de disputa oral em versos rimados que se faz prioritariamente no
nordeste brasileiro, enquanto o calango acontece com maior frequência no sudeste do país.
143
contado, mas – e principalmente – pela inserção delas em uma rede relacional: a
criança, o contador das histórias e toda fantasia que povoa as narrativas.
Quando a criança é bem pequena – até mais ou menos três, quatro anos – há
uma particularidade na contação de histórias que lhe dirigimos: ao contarmos
novamente uma história, ela tem que ser absolutamente igual à primeira vez! A –
quase – ingênua tentativa de mudança na cor do vestido da princesa, ou a troca do
adereço do herói, é motivo de choro, pedidos desesperados para retornar à
narrativa original. Por um bom tempo, nada de alterações! Nada de tentativas
descabidas de fornecer outros elementos ou suprimi-los. Por um período, crianças
são extremamente conservadoras e precisam da repetição.
Culturas orais primárias são aquelas em que não há nenhum registro escrito ou
pictografado que suporte a fala ou, se há, é irrelevante como forma de transmissão
e perpetuação de pensamento. Para Ong (1998) o ato de falar foi central na
transmissão das histórias e na conservação do pensamento daquelas sociedades. O
status social dos indivíduos – filiação, parentesco, propriedade – era transmitido
oralmente, uma vez que nada repousava sobre a escrita. Tudo era referido à tradição
oral que algumas pessoas – memórias vivas da coletividade – transmitiam e
conservavam no próprio ato de comunicar. Não havia memória de nada que se
colocasse fora da narrativa.
Nas culturas orais as próprias leis são transmitidas por meio da exposição
verbal, portanto por meio da oratória busca-se a maior fidelidade possível aos
relatos anteriores. Este é o meio de os sujeitos rememorarem as histórias e com elas
se identificarem enquanto um povo que partilha elementos comuns. Além dos fatos
cotidianos, transmitem-se também o passado do grupo desde sua origem, suas
crenças e conhecimentos, enfim, tudo o que da tradição precisa ser preservado,
guardado e passado adiante. E quem deveria se encarregar desta transmissão? Em
144
última instância, uma divindade – na cultura grega, Mnemosine, a ‘memória’, mãe das
nove Musas56.
56
Na cultura grega antiga as musas eram responsáveis por inspirar os homens. Cada uma delas tinha
o dom e a responsabilidade pela transmissão de um tipo de memória: Calíope pela memória das
poesias épicas; Clio pela lembrança das histórias; Érato fornecia o dom da poesia romântica; Euterpe
responsabilizava-se pelas músicas; Melpômene permitia a transmissão das tragédias; Polímnia
possibilitava cantar os hinos; Terpsícore levava os homens a dançarem; Tália lembrava das comédias
e, finalmente, Urânia fazia com que os homens olhassem para o céu e todos os seus astros para que
nunca se esquecessem da grandeza do universo.
145
aproximando o distante do presente. A memória não é reconstituição do passado, mas
exploração do invisível57 (VERNANT, 1998: 24, tradução minha).
Parry (1977), por sua vez, verificou que geralmente um cantador precisava de
um tempo, de um intervalo de alguns dias, para assimilar a história escutada e vertê-
la para seus próprios padrões formulares. O corpo era o eixo das práticas
mnemônicas e também da transmissão das narrativas para seus pares. Para serem
capazes de guardar na memória textos significativamente longos, estabeleciam
ritmos corporais que acompanhavam as rimas dos versos. No momento da
reprodução oral utilizava os mesmos rituais rítmicos de gesticulação, respiração,
dança e simetria corporal. Rememoravam a partir de técnicas de controle da
respiração e de ações para purificar a alma e separá-la do corpo como forma de
acessar vidas vividas por ancestrais, reencontrarem o cosmos e, assim, se
submeterem ao divino. O corpo do locutor, nas culturas orais primárias, era
ativamente participativo na relação que estabelecia com o público, assim como
também era receptor das manifestações da plateia, expressas por agitações motoras
de aceitação ou repúdio ao dito.
57
La mémoire n’est pas reconstituction du passé, mais exploration de l’invisible (VERNANT,
1998: 24).
146
É a repetição que nas culturas orais garante a coesão e permanência sociais,
porque ao repetir uma narrativa histórica ela é presentificada e reavivada também
na memória dos interlocutores. Quer o mundo seja concebido sobre o casco de uma
enorme tartaruga, quer seja um grande geoplano fechado por uma abóboda celeste,
por meio das narrativas sacramentam-se a origem mítica da Terra, e dos Homens e
objetos sobre ela.
Para Ong (1998) os analfabetos em geral (e não só os das culturas orais) operam
com situações cotidianas e não fazem deduções formais ou trabalhos mentais
abstratos – para o autor estes seriam próprios do pensamento escrito. Isto não
significa que o pensamento oral seja inferior ao escrito, mas sim que guarda com ele
uma diferença. No pensamento oral seus sujeitos sabem concretamente estabelecer
relações de causa e efeito entre elementos, embora não sistematizem tais relações.
Para o autor a lógica de funcionamento mental é outra.
Ong (1998) faz, portanto, uma clara separação entre cultura oral e cultura
escrita. Ao referir-se à função e formulação da memória e da transmissão da
tradição, estabelece uma dissociação radical entre uma e outra forma de expressão
social. Quando o autor ressalta a importância da memória para a preservação da
tradição oral, o campo em que trabalha é o social e coletivo, no sentido de que a
memória acontece na própria transmissão do texto que dá identidade de grupo e
não se estende a mais do que isto. Não se trata, portanto, da concepção que a
psicanálise tem dela, como se verá adiante, em que o Sujeito é o precipitador da
memória que fala de si e do outro – mais uma vez, como a que se estabelece no
modelo da Banda de Moëbius, uma vez que a memória de cada um depende da ação
de outras memórias.
147
(2011), com quem concordamos, que Ong ignora que há tanto na cultura oral,
quanto na escrita, padrões heterogêneos de expressão: há culturas orais
contaminadas pela escrita, do mesmo modo que nas culturas escritas há padrões da
oralidade que permanecem vivos58.
Tal forma textual pode ser vista na ‘Ilíada’, texto atribuído a Homero, mas que
hoje se acredita ter sido compilado por ele das tradições orais gregas.
faze os Dânaos pagar meu pranto com tuas flechas!’ (HOMERO, s/d: 35-42).
A escrita na tradição oral deve ser compreendida como a versão fiel do texto
declamado: esse é o primórdio da escrita alfabética iniciada na Grécia há cinco
milênios. Como lembra Belintane (2007) os gregos primavam por apuradíssima
estética oral disposta nas epopeias, nos teatros e na retórica; ao adotarem a escrita
consonantal fenícia acrescentaram a ela os símbolos para as vogais permitindo a
acomodação da poesia épica à escrita; os símbolos vocálicos criados ajustavam a
métrica e o ritmo dos textos oriundos da oralidade sem depreciar demasiadamente
58
Embora haja no Brasil muitas tribos indígenas que são de cultura oral primária, são pouquíssimas
aquelas que não se deixaram penetrar pela escrita de alguma forma; de igual monta, em nossa
cultura escrita muitos contadores de causos e repentistas mantêm viva a oralidade com função
semelhante à dos rapsodos.
148
seu valor poético. Aquilo que pertencia à tradição oral pode assim sair do corpo dos
rapsodos e fazer-se memória registrada pela escrita, portátil e aberta ao mundo. Mas
a passagem da oralidade para a escrita deixou uma marca na forma de transmissão:
Então, a visibilidade das vogais entre as consoantes seria apenas uma metonímia de um
universo realmente perdido, o mundo dos bardos, menestréis e sacerdotes das culturas
orais, ou seja, se os símbolos para as vogais foram criados para que a escrita se
adaptasse melhor à leitura em voz alta do texto poético, o acréscimo desse recurso
dispensou de vez o corpo do bardo como portador de texto e emprestou um uso amplo
à voz sem corpo (BELINTANE, 2007: 11).
Ong estabelece diferenças entre os dois modos de lidar com a palavra – oral e
escrito – e descreve-as da seguinte forma: A palavra falada é sempre um
acontecimento, um movimento no tempo completamente desprovido do repouso
coisificante da palavra escrita ou impressa (ONG, 1998: 89). As palavras escritas a
partir das culturas orais impedem o diálogo tanto com o escritor – que está distante
de seu texto – quanto com o rapsodo – que já não é quem o transmite. O autor diz
que pela leitura o entendimento do texto nunca será completo, pois sempre haverá
dúvidas sobre a verdadeira pronúncia e sobre o intervalo entre as palavras. Lamenta
que a precisão verificada no texto escrito não reproduza o texto oral.
149
possível, posto que de rapsodo a rapsodo acontecem variações textuais e ajustes à
memorização rítmica e à corporalidade de cada um.
Para Vernant (1998) esta dimensão sacra das culturas orais é o que extrapola a
rememoração como saber comum ao grupo e passa também às lembranças
individuais. Parece ser este o elemento que faz a articulação entre a memória
coletiva e a dos indivíduos. Podemos extrair desta observação uma consideração
também encontrada em outros autores: o sacro, o misterioso, o mágico é o que faz
entrada na memória individual dos sujeitos, desde a origem dos textos.
150
A audição pode registrar a interioridade sem violá-la. Posso bater numa caixa para
descobrir se está vazia ou cheia, ou numa parede para saber se é oca ou sólida [...].
Todos os sons registram estruturas interiores do que quer que os produza. Um violino
cheio de concreto não soará como um violino vazio. [...] E, acima de tudo, a voz humana
vem do interior do organismo humano, que fornece as ressonâncias vocais.
A vista [do texto escrito] isola; o som [do texto oral] incorpora. A visão situa o
observador fora do que ele vê, a uma distância, ao passo que o som invade o ouvinte.
[...] Na visão não há uma maneira análoga de mergulhar em si mesmo (ONG, 1998: 85-
86).
151
seja, diante da inatividade ou da falta de contexto significativo, o sujeito se angustia!
– embora tenhamos discordado acima dos motivos da passividade/atividade
alegados por Ong, temos que concordar que diante da inação e da falta de sentidos
o sujeito se angustia, mas aí, novamente, isto se dá diante de qualquer suporte
textual.
A escrita é angustiante porque nela algo falta; mas será que o que lhe falta é o
que a contextualiza e lhe dá clareza, é o que pode ser suprido pela oralidade? E por
que julgar que na fala, na oralidade esta angústia é tão menor? Porque na oralidade
primária o texto é relato de todos e a angústia não é sentimento coletivo... já na
escrita que se afasta da natureza mítica começamos a vislumbrar o Sujeito e a função
dessa angústia. A compreensão sobre a função da escrita talvez esteja sintetizada
em Ong da seguinte forma: Mais do que qualquer outra invenção individual, a escrita
transformou a consciência humana (ONG, 1998: 93). Refere-se à mudança radical no
modo humano de pensar e se relacionar a partir da tecnologia da escrita e afirma
que isso não resulta de uma capacidade natural, inata, mas de uma construção.
152
3.2.2. MEMÓRIAS EXTRA-CORPO – O REVIRAMENTO HISTÓRICO SOBRE
OS TESTEMUNHOS
Para este autor a concepção de uma memória humana geral consumada fora do
corpo e reunida em grandes quantidades de textos escritos em um mesmo museu-
biblioteca, como o de Alexandria, causa impacto até hoje. A comoção diante da
grandiosidade dos arquivos leva os indivíduos a quererem interiorizar as memórias
ali dispostas e tomá-las, não mais como saber universal e social, mas como
instrumento do eu-maravilhado na exploração solitária que quer saber à revelia do
grupo. Emerge no indivíduo a vontade pela enquete sobre seu próprio passado.
Consagra-se a dicotomia entre memória coletiva e individual.
153
[...] a memória histórica não pode ignorar, ao lado de documentos ‘objetivos’, a
experiência insubstituível das testemunhas, daqueles que viveram os acontecimentos.
Estas testemunhas, cumprindo seu dever de memória, não poderiam por sua vez,
esquecer essa exigência de verdade que é o cerne do trabalho do historiador; essa Dupla
condição [documental e testemunhal] permite que a memória social cumpra seu
objetivo de ligação com o passado, evitando a mitologia sem cair no esquecimento
(VERNANT, 1998: 27, minha tradução)59.
59
[...] la mémoire historienne ne peut ignorer, à côté des documents ‘objectifs’, l’expérience
irremplaçable ds témoins, de ceux qui ont vécu les événements. Ces témoins, en accomplisant
leur devoir de mémoire, ne sauraient, de leur côté, négliger cette exigence de vérité qui est au
coeur du travail de l’historien; c’est à cette Double condition que la mémoire sociale pourra faire
son travail de rattachement au passe, en évitant la mythologie sans tomber dans l’oubli
(VERNANT, 1998: 27).
60
Já havíamos constatado tal relação entre pensamento mítico e científico (BATTAGLIA, 2001), ao
observarmos na origem da medicina científica que na Grécia clássica Hipócrates verificara que o
corpo humano era composto por quatro humores (fleuma, linfa, bílis negra e bílis amarela), fluidos
que deveriam estar presentes numa certa quantidade ‘natural’ a cada indivíduo e cuja proporção
correta (a temperança) dava a medida justa da saúde – observações às quais podemos atribuir certo
aspecto científico que servirá de base para investigações posteriores. Mas o mesmo médico
acreditava que a natureza dos corpos dependia da classe social em que era considerado: homens
nobres (os cidadãos) de corpos quentes e bem temperados, e as outras ‘categorias’ (as mulheres e
os escravos) de natureza fria. Atualmente encontramos na física empenho maciço para se chegar à
origem de todos os elementos físicos, também chamada de ‘partícula de Deus’.
154
O pensador Paul Ricoeur (1998) analisa que a cultura política estabelece-se
sobre o terreno da verdade que a memória procura estabelecer. Mas a lembrança
como presentificação de um acontecimento passado, ausente e desaparecido, coloca
um paradoxo filosófico concernente à sua confiabilidade e fidelidade. Como um
traço – seja neurobiológico, seja psíquico – a memória impossibilita a detenção
sobre sua materialidade. Ademais, a ausência não se manifesta só pela extinção do
passado, mas também das experiências vividas: a memória é ausência do
acontecimento real e a consequente intromissão do irreal, do fantástico, do
imaginário e do utópico. É porque estas duas ausências se revelam imbricadas, que
a credibilidade da memória é muitas vezes contestada quando proveniente de um
sujeito testemunhal.
61
Si on peut reprocher à la mémoire de n’être pas fiable, ce qui est le cas, c’est précisément parce
que nous attendons d’elle qu’elle le soit; c’est précisément um reproche que nous ne ferons pas à
l’imagination. L’imagination est autorisée à rêvér, la mémoire est invitée à être vraie (RICOEUR,
1998: 29).
155
memória individual à coletiva é legitimada pela linguagem e a memória individual é
prolongada pela memória coletiva através da sua documentação. O documento
nunca deixa de ser a escrita da memória, do testemunho; é a memória coletiva
arquivada, em que se juntam as testemunhas intencionais e as involuntárias. É da
intenção de se guardar traços de memória que os testemunhos são documentados.
Os testemunhos são eventos narrados. Diz Ricoeur (1998) que é certo que existe
uma história que a memória cria, mas também existe uma história das memórias
criadas. A história amplia a memória no espaço, no tempo, nos temas, nos objetos:
assim se distingue uma história política, uma social, uma cultural, uma econômica,
etc., mas o que se produz não é outra coisa senão memória e seu registro.
Thadden (1998) fornece um exemplo recente para ilustrar tal ideia. No pós-
guerra, dentro de quadros políticos diferentes, o trabalho de memória da população
da Alemanha do Leste não foi o mesmo engendrado no Oeste: a Alemanha Oriental
tratou logo de negar a história da Alemanha de Hitler, como forma de fundar a
República Democrática da Alemanha e estabelecer uma mudança de identidade
nacional – um cidadão da RDA não tinha nada a ver com o alemão da década de 30,
não sofria e não se responsabilizava pelo que havia se passado; aliaram-se ao
comunismo que vencera o nazismo. A Alemanha Ocidental suportou o fardo do
nazismo. Uma vez que a Alemanha Federativa se declarou sucessora do governo de
Hitler, herdou (nacional e internacionalmente) o que sobrou do nazismo. Seus
62
Il est illusoire de chercher des faits en dehors de leur perception (THADDEN, 1998: 42).
156
cidadãos rapidamente se viram condenados a conviver com o passado e
impossibilitados de se desvencilhar da identidade nacional.
Com a reunificação das duas Alemanhas, cinquenta anos depois e passadas duas
gerações, a memória que se constituiu a partir daí foi resultado de um debate
contínuo no interior de uma sociedade que ainda (ou de novo) buscava identidade.
A Alemanha de hoje convive com estas duas memórias diferentes, em um trabalho
complexo, mas que é o que permite que a história do Terceiro Reich se totalize. Não
há necessariamente oposição entre elas, mas sobreposição e complementariedade.
157
Até o momento vimos que a memória se faz na tensão-entre: entre fala e corpo,
entre oral e escrito, entre coletivo e individual, entre testemunha e documento, entre
individual-grupal e história. Vimos também que ela é marca do humano, que de uma
forma ou de outra precisa deixar seus rastros para serem reatualizados no futuro e,
lá no futuro, buscados nas distâncias do passado: é assim desde as inscrições
rupestres, de uma época em que o Homem passou a ser nominado como sapiens.
O que vem nos interessar sobre a memória é como ela é capaz de reter
historicamente e transmitir de geração a geração seus conteúdos, de forma a que
alcance o espaço chamado escola, onde se diz que ela é imprescindível para cada
estudante. Se chegamos aqui pelo viés da memória no seu estado geral, compete-nos
agora ver os meandros de sua articulação no indivíduo e como participa do processo
de aquisição e consolidação de leitura e escrita.
José Arrabal:
Quando eu escrevo, eu não tenho uma imagem de infância e da criança em abstrato, mas
sim da criança que eu fui e da minha infância. [...] Tudo o que eu escrevo é
autobiográfico, direta ou indiretamente [...], sentimentos que eu vivi [...] tenho certeza
que está lá dentro da minha lembrança, da minha memória. [...] [A professora] não
ficava ensinado o be-a-bá para a gente, ela passava as aulas lendo histórias. Certa vez
ela leu uma história que aparecia a expressão ‘furtacor de caracol’. Eu comecei a rir
63
José Arrabal, capixaba, jornalista, advogado, professor e escritor. Dentre os inúmeros livros
infantis figura “A princesa Raga-Si” (1985), vencedor do prêmio da Associação Paulista de Críticos de
Arte (APCA) daquele ano.
Roberto Gomes, catarinense, escreveu obras filosóficas como “Crítica da razão tupiniquim” (1977) e
Antes de o teto desabe” (1981), mas também dedicou-se à literatura infanto-juvenil, cujo maior
expoente é “O menino que descobriu o sol” (1982).
158
porque achei muito engraçada essa expressão. Eu tenho a impressão de que essa coisa
de ser escritor está muito ligada à infância remota. Veja você ‘furtacor de caracol’ é um
jogo de sons. Enquanto eu não escrevi um livro colocando essa frase, eu não sosseguei.
Até recentemente, eu dizia que quando eu escrevia para crianças contava histórias
como se eu fosse criança, como se eu me transportasse a uma situação de criança e me
contava essas histórias. Mas hoje, estou percebendo que não é bem assim. Eu acho que
acontece o seguinte: quando eu era criança, era acarinhado com mais facilidade do que
hoje, eu era acarinhado pelas pessoas da família, pelas pessoas amigas, e uma das
formas de me acarinharem era me contando histórias. Minha avó me contava histórias,
meu pai me contava histórias, minha professora me contava histórias, [...] e eu retorno
a eles de outra forma. Quando eu me conto as histórias é como se eu tivesse fazendo
alguma coisa que fizeram carinhosamente comigo no tempo da minha infância
(MONTEIRO, 1993: 27-29, grifo meu).
Roberto Gomes:
Eu acho que a literatura infantil tem esse lado do jogo gratuito, que às vezes desaparece
na literatura do adulto, com a criança você brinca diretamente, você pode fazer
arbitrariedades na história, no enredo, no personagem, fazer jogos de palavras, enfim
uma série de coisas que o próprio universo da criança permite. Esse caráter de jogo, de
gratuidade que faz parte da arte, na literatura infantil isso acaba sendo favorecido. [...]
Quando as crianças me perguntam se o meu avô era igual ao do livro, eu tenho que
responder que não conheci nenhum dos quatro. Eu acho que eu escrevo sobre isso
porque sinto falta, por isso invento um avô para mim, é o avô que eu queria ter tido. A
gente escreve não só sobre aquilo que se viveu, mas do que você careceu naquele
momento, daquilo que você precisava (MONTEIRO, 1993: 38-40, grifos meus).
159
deixaram-se capturar e envolver pelo jogo infantil – um pelo jogo de sons das
palavras e outro pelo jogo gratuito de palavras – com que subsidiaram suas escritas
na vida adulta.
Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançaram fossem semelhantes às idas e
vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para
trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro
calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente
menos do que o dom cheio de zelo que dele se faz.
Quando a criança age assim, não faz mais que desenrolar as idas e vindas de um desejo,
que ela apresenta e representa sem fim. Creio sinceramente que, na origem de um
ensino como este, é preciso que se coloque sempre um fantasma [...], isto é, o corpo
160
humano; foi partindo desse fantasma, ligado nele à ressurreição lírica dos corpos
passados que [...] desvia do lugar em que o esperam, que é o lugar do Pai, sempre morto,
como se sabe; pois só o filho tem fantasmas, só o filho está vivo (BARTHES, 1977: 42-
43).
Acre! Assim foram muitas das palavras que fizeram eco em Graciliano Ramos:
Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça.
Resisti, ele teimou – o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-
me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-
me para a sala de visitas – e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda
poderia dizer alguma coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado,
da largura de quatro dedos (RAMOS, 1945: 111).
[...]
As mãos descansavam na tábua, imóveis. Julgo que estive louco. E amparei-me ansioso
às figurinhas de sonho que me atenuavam a solidão. O mundo feito caixa de brinquedos,
os homens reduzidos ao tamanho de um polegar (RAMOS, 1945: 113).
Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco
e deixou-me. Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha. E as duas letras
161
amansaram. Gaguejei sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniram, formaram
sentenças graves, arrevesadas, que me atordoavam. Certamente meu pai usara um
horrível embuste naquela maldita manhã, inculcando-me a excelência do papel
impresso. Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os
conceitos sisudos: ‘A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras
vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém’.
Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final
da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as linhas em negrita, resumo
da ciência anunciada por meu pai.
Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse um homem.
Talvez fosse. ‘Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém’.
– Não senhora.
Isso me pareceu desarrazoado: exigiam de mim trabalho inútil. Mas obedeci. Obedeci
realmente com satisfação. Aquela brandura, a voz mansa, a consertar-me as
barbaridades, a mão curta, a virar a folha, apontar a linha, o vestido claro e limpo, tudo
me seduzia. Além disso a extraordinária criatura tinha um cheiro agradável. As pessoas
162
comuns exalam odores fortes e excitantes, de fumo, suor, banha de porco, mofo, sangue
[...]
Felizmente d. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo, aí
vivia farejando pequenos mistérios na cartilha. Tinha dúvidas numerosas e admitia a
cooperação dos alunos (RAMOS, 1945: 122-123).
A posição do Outro diante das necessidades da criança é condição para fazer (ou
não) se desdobrar sobre si os sentidos das palavras. O que faz Graciliano ao longo
desta obra é relatar suas experiências com o Outro e com os dois lados da palavra:
os imperativos duros e surdos que aprisionam o sujeito às próprias entranhas e as
modulações sonoras, sussurradas tão brandamente que o suspendem da qualidade
de ‘pedaço de carne’64. Tão bem traduzido em ‘Infância’, este não é um
acontecimento que se dá só com o autor, mas uma condição de todos nós, humanos:
lidamos com os discursos nas suas porções impositivas ou demandantes-desejantes,
(ou, retomando Belintane (2011), nas suas funções pragmáticas ou lúdico-poéticas).
64
Termo que alude à ‘libra de carne’, forjado por Jacques Lacan para designar a criança tomada
como objeto Real, de gozo puro da satisfação de um adulto.
163
que se forma na relação com outro aparelho de linguagem. Essa concepção de
memória, tão importante na teoria freudiana, é epistemologicamente diferente
daquelas que tratamos até agora: aqui ela constitui de maneira única cada aparelho
psíquico, que terá que ascender à escritura e à oralidade; mas, ainda que cada
memória seja uma instância absolutamente única, depende da relação com outro
aparelho de linguagem para se estabelecer. A memória não é um dispositivo
consciente – portanto também não é compartilhável – mas essencialmente
inconsciente e transmissível, como veremos.
65
São quatro as condições da pulsão: o impulso é o motor, a força empreendida para a realização do
trabalho pulsional; a meta é a satisfação, o cancelamento da estimulação na fonte da pulsão; o
objeto é variável e o que permite à pulsão atingir sua meta; por fim, a fonte (que não é única) emana
de partes do corpo ou órgãos – boca, ânus, ouvido e olhos. A pulsão expressa-se de forma parcial
uma vez que deriva de diferentes fontes e que a cada momento uma é privilegiada. Essas fontes são
também chamadas de zonas erógenas, os lugares eleitos para a circulação das excitações.
164
consciência e alucinação; em paralelo apresentava contrações corporais e
desorganização funcional da linguagem, esquecendo-se da gramática, da sintaxe e
das conjugações verbais. Com o agravamento do quadro, em momentos de muita
angústia, perdia a capacidade de falar ou mesclava diversos idiomas; tornava-se
agressiva, deixava de comer e seu campo visual restringia-se bastante, permitindo-
lhe ver apenas partes dos objetos. De fato, a única ‘coisa’ que via e reconhecia por
inteiro era seu analista – enunciava-se aí a transferência66. Durante o tratamento os
relatos de seus devaneios diurnos lhe proporcionavam alívio temporário e a
eliminação de alguns sintomas – especialmente quando recordava-se do fato
traumático que lhes dera origem: na infância, ter sido seduzida por um adulto.
66
Transferência como a conceitua Freud é o vínculo afetivo intenso entre analista e paciente, que
ocorre sem que haja intenção ou controle consciente. O paciente pressupõe no analista um saber
sobre seu sofrimento. A transferência é o lugar de reprodução das tendências psíquicas e das
fantasias (fragmentos de repetição) e ao mesmo tempo o lugar de resistência destas atualizações.
Lacan retoma este conceito e diz que o paciente, ao supor que o analista sabe sobre ele, coloca-o no
lugar do Outro – o lugar onde as palavras são pensadas e proferidas. Desta maneira, ao nos
reportarmos ao Outro, a transferência só pode ser um fenômeno acompanhado do exercício da
palavra.
67
Paralisias acometiam a parte superior de algum membro – braço, por exemplo – mas não a porção
inferior do mesmo órgão (as mãos); ou a visão se turvava para alguns objetos, mas não para outros.
165
associações da paciente destacava-se um grupo de ideias responsáveis pelo
surgimento do sintoma: o evento traumático não era, pois, um fato realmente
acontecido, mas essas ideias do próprio paciente que, ao virem à luz por meio da
fala, tornavam possíveis a dissolução do sintoma. Identificou que em alguns
momentos a paciente se recusava a falar, evitando entrar em contato com o material
que lhe trazia sofrimento. Em outros momentos os relatos condensavam várias
histórias desconexas, que não queriam dizer nada, deixando evidente que o
paciente falava qualquer coisa, para que o conteúdo essencial do material fosse
omitido. Mas neste ponto Freud identificou que o fato de o sujeito precisar manter
a fala tinha a função de enlaçar aquele que o escutava e não a resolução de seu
sofrimento. (Esta constatação nos será importante mais adiante, para pensarmos
na relação professor-aluno).
Inscrição da Memória
166
sinapses – este substrato químico e eletro-físico não é suficiente para explicá-lo em
sua totalidade. Os humanos herdaram dos mamíferos um ‘dispositivo de memória’
que define estrutura particular para as células nervosas que, ademais, no caso da
nossa espécie, derivou em desenvolvimento único da forma, especialmente da
porção do córtex frontal. Já dos ancestrais pré-sapiens e símios, herdamos a
memória genética da sucção e do reconhecimento do rosto, além da ligação afetiva
intensa entre bebê e mãe, que se desdobra na relação com os companheiros de
espécie com quem compartilha atividades de jogo. No entanto, acrescenta Changeux,
o grande diferencial entre os Homens e as outras espécies é que o ser humano dispõe
da linguagem, que compõe a memória herdada geneticamente a milhões de anos.
167
não era um evento da realidade, de fato ocorrido, mas um acontecimento psíquico
vinculado à representação de palavras. Isto é, a comoção orgânica sobre o corpo do
bebê, não encontra na linguagem possibilidades de representação, originando o
trauma.
E como se dá a apreensão dos significados pelo indivíduo? Diz Freud que sobre
o substrato orgânico se dará a ação intrusiva de outro aparelho psíquico, de
linguagem. Diz Lacan: [...] para que o ser vivo não pereça a cada lance, é preciso que
ele receba algum reflexo adequado do mundo externo (LACAN, 1954-55: 140),
justamente aquele que vem do Outro68 aparelho de linguagem e incide sobre os
discursos cotidianos de comandos e ações.
68
O Outro com letra maiúscula (‘Autre’ – A – em francês) é um termo que Lacan retira de Freud e
conceitua como sendo o ‘tesouro dos significantes’; é o lugar terceiro na fala a que todos os Sujeitos
se referem e estão submetidos. Em sua insígnia apresenta-se como completo, mas para se constituir
como Outro para cada Sujeito precisa ser apreendido pela incompletude – pela falta, e só por ela, é
possível indagar o Outro. O Outro tem sua sede no registro Simbólico do psiquismo, ponto de apoio
para que o discurso repouse sobre um fundamento referenciado. Mas a essência do Outro é
Imaginária, portanto seu estatuto é de ficção.
168
e os ludismos linguageiros, que substituem as perdas de objeto da infância e
confortam, através da linguagem, um estado outro de emoções e abrandamento.
Este paralelo não quer dizer que se tem uma fala ou outra, mas que elas se
entrelaçam pela Banda de Moëbius e as crianças – também os adultos – se servem
das duas transitando de uma a outra pelo arrebatamento Subjetivo: uma fala e outra
se convocam e permitem um estado em que ora se está lá, ora cá. O que permite o
trânsito entre as falas é o significante que convoca o Sujeito e seu desejo.
O fingimento real – colocar sal – é compensado pelo gesto da avó – não por sal –
e no engodo ela enlaça uma brecha para o desejo da criança. Ao mesmo tempo a avó
também se apropria do imperativo ‘Não por sal’ e o transforma em ‘Vamos por o
salsinho assim!’; desta maneira, assim diferente, é possível!
A criança posta no mundo demanda amor ao Outro. Mas o que recebe em troca
é outra pergunta: O que queres? É esta pergunta – resposta à demanda – que abre o
Sujeito ao desejo. O desejo não é, portanto, necessidade, mas a busca de
reconhecimento que se faz pela linguagem, tanto materna, quanto da cultura.
69
Extraída da cena em um hospital público da capital paulista onde trabalhamos.
169
Pelo fato de o Homem ser um ser simbólico, de linguagem, recebe seus recém
natos como se já fizessem parte do seu meio e a ele estivessem integrados. Os
significantes antecedem a criança, isto é, já estão dispostos pela cultura e são
guiados pela expectativa dos pais ao seu nascimento; o bebê será imediatamente
capturado por eles. O período de nove meses gestacionais prepara os pais para a
chegada do bebê e faz emergir as esperanças sobre o filho, até então restritas ao
universo imaginário dos genitores. Na menina que ninava suas bonecas, no
adolescente que acompanha o irmão menor na escola ou na fala de uma tia que dizia
que crianças dão trabalho, a ideia do filho vai sendo configurada por meio de
imagens e palavras – positivas e negativas – até o momento em que, planejada ou
inesperadamente, ela se torna realidade com o nascimento.
Quando o bebê nasce – e ainda por muito tempo – é em torno do seu organismo
que se concentram todas as relações de cuidado e atenção. A presença constante de
acolhimento investe esse comércio corporal de satisfação e carinho; assim,
amamentar não é só dar o leite, mas é também aconchegar nos braços, dar banho
não é só lavar, como também é preocupar-se com a temperatura da água, com o
cheiro agradável do sabonete. Os gestos, mas sobretudo as palavras, ofertam o
mundo ao infante apresentando-lhe as coisas, as pessoas e as relações, nomeando o
universo de acontecimentos no corpo do bebê. Para a psicanálise esses episódios
170
compreendem o que se chama de ‘função materna’, que é a leitura de sentidos que o
adulto cuidador faz sobre o corpo da criança, o centro em torno do qual emana,
ainda, todo seu ser.
Mas, nos alerta Freud, uma parte destes afluxos permanece solto no aparelho
psíquico sem sentido e representação71, provocando angústia frente à ausência de
objeto. Isto se dá porque como objeto de satisfação da mãe, a criança nunca será
capaz de preenchê-la completamente; por outro lado, a mãe não conseguirá nunca
70
Simbólico, Real e Imaginário: conceitos psicanalíticos elaborados ao longo de toda a obra de
Jacques Lacan. Três registros psíquicos que, postos de forma entrelaçada e indissociável,
formam uma das três estruturas psíquicas (psicose, neurose e perversão) e dão a dimensão da
constituição do sujeito. A reunião desses três registros articula e dá consistência humana ao que
é da morte, da vida e do corpo. Imaginário: registro do engodo, da identificação à imagem.
Simbólico: registro da linguagem e de suas funções, que eleva a coisa faltante à categoria de
conceito. Real: registro do inapreensível, que está fora do campo da realidade criada pelos
outros registros, mas que se faz marcar aí como não inscrito.
71
Em ‘Além do princípio do prazer’ Freud (1920) designará a incidência do objeto sem representação
como pulsão de morte / libido. Lacan, ao longo de sua obra mais tardia, conceituará como o Real que
irrompe sem cessar e sem se fazer representar.
171
significar todas as demandas de seu filho. Há na dimensão do objeto algo para
sempre perdido, tanto para mãe quanto para seu bebê. Desde o berço o sentido
consensual da linguagem fracassa! Foi o que vimos na cantiga com que a mãe ninava
Lúcia e dizia-lhe ‘– Pega esta menina’, enquanto a criança se mirava no ‘– Pegá, pegá,
pegá’.
Um dos modos de compensar esta perda real, diz Freud, é alucinando o objeto.
Imerso em angústia porque as experiências não o saciam, o pequeno passa a alucinar
a existência do objeto por meio de exercícios primários de prazer com seu corpo.
Rudimentos destes ensaios podem ser vistos nos recém nascidos que
entusiasticamente mamam o nada; esta aparente ‘coisa alguma’ que ele mama, é o
objeto alucinado. Ou seja, o bebê vai freneticamente ao próprio corpo buscar
saciedade para os estímulos que o invadem.
172
repetições em cada uma das diferentes zonas erógenas; de outro, e principalmente,
garante que entre as diferentes pulsões haja intervalo em que as representações
inconscientes podem acontecer. No espaço que se abre entre ser/não ser objeto do
desejo materno, algo permanece sem significação – é uma falta que, segundo Freud
(corroborado por Lacan) será fundamental para a constituição do aparelho psíquico.
Diz Lacan (1957) que em algum momento o objeto alucinado pelo bebê coincide
com a chegada do objeto real oferecido pela mãe. Esta coincidência fará com que a
realidade psíquica (objeto alucinado) não se separe do mundo real dos objeto
comuns (seio da mãe), sendo então manejados como na Banda de Moëbius – o
avesso de um é o direito de outro. Na relação real fundamental mãe-filho constitui-
se uma reciprocidade imaginária com a qual o bebê – ávido por algum conforto – se
identifica. Ele toma o objeto oferecido pela mãe como seu objeto e estabelece a base
em que seu corpo e o de sua mãe se veem entrelaçados, indissociados.
O objeto perdido deixa um rastro atrás de si, chamado por Freud (1921) de
‘traço’. É ele quem se inscreve no aparelho psíquico como traço mnêmico, como um
sinal que permitirá ao sujeito reter algo do objeto e identifica-se com ele. Este traço
173
aludido por Freud não é referente a uma imagem, mas a um som – fonema. Esta
formulação dura pode ser mais facilmente compreendida pela via dos exemplos.
Freud parte da relação imagem-palavra-fonema, cuja decifração não se dá pela
figuração, mas pela representação da palavra. Assim, um sonho com ‘rosa amarela’
não significa a flor de cor amarela, mas pode ser lido como ‘Rosa, amo ela’; ou, como
em uma passagem em que Freud (1898) esquece-se do nome Signorelli e o substitui,
primeiro por Botticelli, depois por Boltraffio, uma vez que Signor (‘senhor’ em
italiano, o termo reprimido) fazia referência a Herr (‘senhor’ em alemão, o termo
recalcado). A passagem descrita pelo autor é extremamente elucidativa e revela os
meandros do esquecimento e os deslocamentos e condensações da linguagem para
se fazer revelar no lugar do olvido. O episódio se passa justamente no trajeto da
Itália para a Bósnia e Herzegovina: ‘Her’ de Herzegovina é dito, mas imediatamente
cai sob a barra do recalque e impede que possa dizer ‘Herr’; ato seguinte, querendo
se lembrar de ‘Signorelli’, vê-se impedido pela condensação Herr-Signor; é então que
operam-se dois deslocamentos que o permitem ‘lembrar’ de ‘Botticelli’ (novamente
como condensação): ‘Bo’ de Bósnia e ‘elli’ de Signorelli72.
Foi exatamente por esta via que se descortinaram os sentidos dos hieróglifos
egípcios, cuja escrita era fonográfica e não imagética como se supunha inicialmente,
como podemos ver na Figura 5: o desenho do ‘sol’ só podia ser lido pelo seu fonema
(Rá) para compor o nome do rei Ransés, junto com mais duas imagens. Quando o
objeto se perde, todo o investimento libidinal dirigido a ele é substituído por uma
identificação (parcial) que retém alguma coisa do objeto – justamente um traço, o
fonema que resta do figurativo apagado pela ação do recalque.
72
No Capítulo 5 desta tese vamos ver um exemplo muito próximo a este, de uma criança de 1º. Ano
EFI no processo de desvendamento de uma narrativa.
174
Figura 5: - Desenho-cópia baseado na Cártula de Ransés
Lacan (1961-62) renomeia este ‘traço’ freudiano como ‘traço unário’ e dá a ele
o status de significante elementar (S1) ao qual o sujeito se identifica. É este
significante que capta o traço do objeto deixado no corpo e, pela via Simbólica,
permite sua transposição para o campo das representações. Isto é, se no corpo o
objeto de satisfação está perdido, este traço permite que na linguagem alguma
representação se articule.
175
representações, fixando-se no psiquismo como traço de memória. O Real está
sempre faltando, mas sempre se inscrevendo no Simbólico como esta falta. Do Real
não se tem apreensão direta, a não ser pelo Simbólico que o recobre. Lacan vale-se
da escrita formal lógica para designar a ‘letra’ como o que não cessa de não se
escrever. O significante instala o Real, mas não o apreende. (Esta escrita que torna
inconsistente a ideia de uma ciência ou de um saber exatos, uma vez que a eleição
dos objetos de investigação e as escolhas metodológicas sempre dependem de
Sujeitos submetidos, portanto, ao Real).
176
de sua mãe: a mãe pode desespera-se e diz ‘Ai! Meu Deus!’, e a criança começa a
chorar. Poderíamos dizer que ela chorou de dor, porém acontece que se essa mesma
mãe reage com tranquilidade e diz em tom suave para a criança se levantar, que
aquilo não foi nada, ela se põe de pé e arrisca os passos novamente. No transitivismo
entre mãe-bebê, a mãe vê o acontecimento no corpo da criança, o lê como se fosse
em si: manifesta-se com dor e a criança sente a mesma dor; manifesta-se como um
acontecimento que faz parte da vida, e a criança reage encarando seus obstáculos. É
um fenômeno que pode criar a realidade no corpo do outro. A nomeação
transitivista da mãe determina a experiência Real no corpo do filho.
Quando uma criança interpreta o que ela sente no seu corpo como prazer ou desprazer,
quando ela descobre coisas novas sobre as sensações, descobre sua mão, por exemplo,
quando ela é tocada, cuidada, erotizada pelos outros, tudo isso se inscreve como o quê?
Como um sistema de escrita. É um letramento que está fortemente alimentado pelo
discurso materno, por essa língua que a liga à mãe e que Lacan chamou de lalangue
[alíngua] – reunindo aspectos de Jakobson chamou de lalação, o balbucio da criança e
que alguns autores da fonoaudiologia e da linguística contemporânea chamam de
manhês. O principal traço de linguagem dessa fala primitiva, dessa fala primeira no
bebê é que ela tem uma estrutura de diálogo. Não sei se vocês já se encontraram com
crianças pequenas, mas quando o adulto começa a falar com ela, começam a trocar o
turno e a criança vai respondendo com sorrisos, com gestos, com reações. A tal ponto
de a gente poder dizer que ele está interpretando esse intervalo no qual o adulto fala e
ela responde (DUNKER, 2011).
177
bebê. É preciso intervalo, distância entre uma inscrição e outra, para se ter ideia do
que se insculpiu e para que se possa tomar distância e ver, na aparente
exterioridade, a formação das imagens dos diversos objetos, unificados pela
linguagem. É dos intervalos73 de um traço de inscrição a outro, que se formam as
escrituras do Texto74 psíquico. Sem intervalo não há formação de vias de
representação, senão que só existe uma via de excitação sem parada, sem alívio –
formação em que não há Sujeito do inconsciente, mas pura excitação pulsional.
Situação extremamente angustiante em que a criança fica abandonada à própria
sorte psíquica, ensimesmada sem intermediação ou anteparo de outra pessoa (ou
outro aparelho de linguagem).
A alternância dos signos entre presença e ausência opera mais uma inscrição no
corpo do bebê: registra o saber e o gozo. A psicanálise denomina gozo à troca
sensorial e corporal estabelecida na relação do adulto com a criança e denomina
saber ao trabalho das representações. Há, então, um ponto no corpo que está
marcado por uma ‘letra’. Esta ‘letra’ é recalcada no inconsciente75 para dar lugar à
nomeação significante (S1), mas quando o corpo é reinvestido pela incidência do
Outro, recupera junto a pulsão, a sensação de prazer ou desprazer que o
acompanhou inicialmente. Dito de outra forma:
Por exemplo, quando a gente faz cócegas na barriga de uma criança e ela ri, primeiro
temos que tocar, depois, basta ameaçar o movimento e a criança antecipa e começa a
rir. Todo mundo já fez isso: você brinca com a sua presença e ela responde rindo antes
de ser tocada. Como isso é possível? Tem, de qualquer forma, uma marca no corpo que
ela recupera para poder experimentar essa satisfação que ela teve no encontro anterior
(DUNKER, 2011).
73
Intervalo que também estava presente nas operações de memorização nas culturas orais
primárias, em que um rapsodo precisava de dias para tornar seu um texto ouvido de outro.
74
Aproveitamos a noção lacaniana de sujeito, como aquele que representa um significante para
outro significante, que acontece ‘entre’, para darmos a medida de que, nas diferentes emergências
do sujeito em torno do traço mnêmico constitui um enredo no qual as diferentes posições subjetivas
de desejo e demanda relacionais estão dispostas como em uma trama textual.
75
Letra – seu correspondente pulsional no corpo é o objeto a.
178
de sentidos, por deslocamento e condensação de elementos significantes. Isso
permite que a memória – ou o aparelho psíquico – não seja estática, mas plena de
variações significantes, em que sentidos múltiplos podem se formar em diferentes
momentos. Diz Changeux: O chamado da memória requer um esforço em direção ao
sentido, uma reconstrução do significado, um desafio interior de hipóteses, de objetos
mentais portadores de sentido mas infelizmente também com frequência, um desvio
de sentido76 (CHANGEUX, 1998: 21, minha tradução). Ressalva-se aqui que esses
caminhos mnêmicos não são sobre determinados biologicamente pela espécie – no
modo de certa utilidade vital para a sobrevivência – senão que derivam
principalmente dos incidentes que ocorrem e que dão a medida Real da vida.
É o que Jacques Lacan chama de ‘litoral’, o delineamento não tão claro como uma
fronteira ou uma borda, entre o saber e o gozo. A mobilidade litoral acontece pois
esse outro que interage com a criança, não o faz sempre da mesma forma. A
experiência de troca pode ser prazerosa em um momento e desprazerosa em outro.
Qual o limite em que se vai do riso ao choro?, do suportável ao aflitivo? É a fronteira
que se estabelece entre o carinho e a invasão, em que a escalada de satisfação do
adulto não cessa e atravessa o infante, desconsiderando-o como Sujeito na troca
libidinal. Quando o adulto age incessantemente no corpo do bebê querendo dele
uma reação que já não suporta mais – por exemplo, se ao invés de pequenas ameaças
de fazer cócegas na sua barriga, o adulto manipula-a sem parar – ali onde o bebê
inicialmente sorria, passa a chorar. Nesta condição a criança é assumida como objeto
de puro prazer do outro – ela é o Falo da mãe, aquilo com que a mãe se adorna como
fálica, como não faltante.
Estabelece-se um jogo dialético em que a criança para ser alvo do olhar do Outro
é sempre tomada como objeto – seja ele gerador de prazer ou de dor – porque é este
Outro quem estabelece a medida da intensidade libidinal da relação. O bebê, por sua
vez, identifica-se com este lugar de objeto/Falo. Se além disto, nos intervalos
repetitivos entre os afluxos pulsionais, o Outro permite-se ficar em falta e não
usufruir inteiramente do pequeno, pode-se estabelecer uma relação de nomeação e
76
Le rappel de mémoire engage ‘un effort vers le sens’, une reconstruction signifiante, une mise
à l’épreuve intérieure d’hypothèses, d’objets mentaux porteurs de sens, mais aussi, hélas trop
souvent, un détournement de sens (CHANGEUX, 1998: 21).
179
significação em que o bebê também é situado como Sujeito (e não mais só como
objeto).
Cabe dizer, portanto, que o prazer obtido na repetição não decorre meramente
da satisfação pulsional. Ele também é o que resulta da percepção do objeto
nomeado77, que se torna identidade psíquica da própria criança. Para o prazer, é
propriamente como objeto que ela se coloca e é aí designada como Sujeito.
Retomo então, o menino que pede que se lhe conte reiteradamente a mesma
história. Qualquer criança que se entregou repetidamente a escutar contos de fadas
reconhece uma dose de satisfação nos atos maldosos e nas mazelas que atingem as
personagens. Submeter-se à floresta escura para encontrar a bruxa que come
crianças, em ‘João e Maria’, ou tolerar os insultos e humilhações das enteadas do pai,
em ‘A gata borralheira’ são, sem dúvida, atos de coragem e persistência.
Uma das análises mais importantes sobre a repetição elaborada por Freud,
encontra-se em ‘Além do princípio do prazer’ (1920), em que relata o jogo inaugural
de seu pequeno neto, dentro do berço, que arremessa um carretel atado a um
barbante e puxa-o de volta emitindo o som ‘Fort-Da’, tão logo a mãe se afasta dele.
77
Como a mãe é um ser imerso na cultura, por meio de palavras significantes recolhidas das suas
representações, dá unidade ao corpo disperso e esfacelado do bebê, em torno de um elemento da
linguagem (S1). Da mesma forma que o objeto que S1 nomeia é um objeto perdido (a), S1 também
se perde destacando-se da cadeia de significantes, deixando em seu lugar um vazio, uma falta
fundamental que permitirá a mobilidade substitutiva de todos os outros significantes (S2). É,
portanto, em torno da falta que o organismo do bebê se estrutura enquanto corpo.
180
Jogo simbólico, diz Freud, que elabora a separação obstruindo o efeito de
desaparecimento materno.
Mas chorava com mais terrível sentimento era quando se lembrava daquelas palavras
da Mãe, abraçada com o corpo do Dito, quando estavam pondo dentro da bacia para
lavar: – ‘Olha o inflamado ainda no pezinho dele... Os cabelos bonitos... O narizinho...
Como era bonito o pobrezinho do meu filhinho...’ Essas exclamações não lhe saíam dos
ouvidos, da cabeça, eram no meio de tudo o ponto mais fundo da dor, ah, Mãe não devia
de ter falado aquilo... Mas precisava de ouvir outra vez: – ‘Mãe, que foi que a senhora
disse, dos cabelos, do nariz, do machucadinho no pé, quando eles estavam lavando o
Ditinho?!’ A mãe não se lembrava, não podia repetir as palavras certas, falara na ocasião
qualquer coisa, mas, o que, já não sabia. Ele mesmo, Miguilim, nunca tinha reparado
181
antes nos cabelos, no narizinho do Dito. Então, ia para o paiol, e chorava, chorava.
Depois, repetia, alto, imitando a voz da mãe, aquelas frases. Era ele quem precisava de
guardá-las, decoradas, ressofridas; se não, alguma coisa de muito grave e necessária
para sempre se perdia. – ‘Mãe, o que foi que naquela hora a senhora sentiu? O que foi
que a senhora sentiu?!... (GUIMARÃES ROSA, 1977: 80).
182
tinha estabelecido, acomoda as novas informações às antigas e tornar a equilibrar
seus conhecimentos.
Mas para isso a criança terá de fazer uma inversão na produção da fala. Se antes
ela era falada e o termo ‘você’ era a referência que o outro fazia dela, ao ser
produtora da própria fala, ‘você’ não é mais ela, mas o outro. Igualmente, ‘eu’ deixa
de ser o outro e passa a ser ela própria. É uma operação que exige da criança
mudança de posição subjetiva – ‘eu’ e ‘outro’ não são mais a mesma coisa e não se
definem pelo mesmo saber, como no transitivismo. Essa incorporação de si no
enunciado é a função dêitica, que passa a estabelecer o litoral entre o ‘eu’ e o ‘outro’:
é a função de colocar-se no lugar do outro (e não de confundir-se com ele), de deixar
seu lugar inicial e ver outras coisas sob outros ângulos.
183
conjunto do corpo envolvido em todas atividades e motivado pelos temas afetivos
que a criança organiza suas investigações. É a hora em que a criança se pergunta
sobre si no mundo – ‘De onde vim?’, ‘Para onde vou?’, ‘Que corpo é este que me
acompanha?’, ‘Que nome é este que me deram?’ – que ela se pergunta sobre a sua
existência, que precisará se ressignificar e ganhar novas roupagens. É isso que ela
quer e precisa saber e é isso que buscará no meio em que foi inserida. Ela carrega
consigo as marcas de todos os sentidos que lhe foram atribuídos desde antes de
nascer – os textos escritos em seu corpo – e a partir delas precisa aventura-se no
mundo.
Neste sentido, como a criança é para a mãe mais do que criança – é também seu
falo imaginário – é pela via do simbólico que o infante tem acesso a esta sua condição
e aí pode posicionar-se. É a lei do pai que fornece esta dimensão simbólica e interdita
o usufruto gozoso do bebê pela mãe e, por consequência, todos os outros gozos que
sobre ele venham recair. Subjetivamente a criança vai aprender a ler o seu próprio
desejo e sobre ele falar e escrever.
184
O que funda o Texto psíquico de cada um é a intermitência de tempo entre
excitação e a inscrição de outro aparelho de linguagem – e quem determina esse
intervalo de intromissão é o Outro, aquele que ascende ao aparelho em formação.
Mas ter este Texto inscrito no próprio corpo não significa poder lê-lo de qualquer
forma, ‘naturalmente’. A partir da falta no Outro – também inscrita como discurso,
no bebê – ou seja, a partir dos lapsos entre um e outro significante, é que o Sujeito
pode ler as falhas discursivas do Outro e entrever o desejo que dali emana com
relação a si – posição em que se encontra Miguilim na obra de Guimarães Rosa. Para
poder ler, é preciso poder ler o desejo do Outro, ler na sua presença, a ausência e,
nesta, a presença.
78
Freud já havia se referido a elas em 1905 em ‘Os três ensaios sobre a teoria sexual’.
185
essencialmente, expressa a desarmonia existente entre sujeito e objeto de
satisfação. Não podendo compreender e suportar a incidência da sexualidade adulta
que sofre em seu pequeno organismo a partir da relação de gozo com o Outro, a
criança recalca os impulsos libidinosos vindos desta direção e parte em busca de
significá-los de outra maneira. Para suas perguntas sobre seu corpo e a relação com
o outro, estrutura respostas na forma de fantasias organizadoras das
representações em torno da falta de objeto. Mas, como o corpo infantil é ainda o
centro de todos os acontecimentos, estas fantasias são subtraídas das ações que ele
empreende no mundo.
186
estão associados à sua vida. Em princípio os sintomas deveriam ser atos
desprazerosos e inúteis, uma vez que causam sofrimento e dor. Por que, então, as
pessoas não os consegue interromper? Porque há no sintoma uma nova modalidade
de satisfação pulsional. Como a libido não consegue se satisfazer pela via do
recalcado, ela aceita que um outro objeto venha no lugar daquele frustrado. A libido
empreende um caminho regressivo para satisfazer-se através de uma organização
e um objeto conhecidos, onde um dia a libido se fixou – nas práticas sexuais infantis,
em que os desejos parciais se satisfaziam nos objetos parciais. As representações às
quais a libido se transfere também pertencem ao inconsciente e estão submetidas
ao processo de condensação e deslocamento. Para que um sintoma possa irromper
na consciência, deve cumprir uma exigência: trazer o desejo inconsciente de
maneira desfigurada, a partir da montagem de uma cena fantasiosa conformada por
um engodo com estrutura de realidade, embora essa realidade não seja material. A
representação fantasística é uma reação residual ao trauma psíquico e passivo que
sofreu.
[...] correlata de toda uma série de realizações, no sentido mais amplo, manifestando-se
por ações absolutamente irredutíveis a fins utilitários. Vamos classificar este conjunto
de ações ou atividades sob um termo que talvez não seja o melhor, nem o mais global,
mas que tomo por seu valor expressivo, aquele das atividades não somente cerimoniais,
mas cerimoniosas (LACAN, 1956-57: 257, grifo meu).
Com isto Lacan afirma que as respostas que a criança busca para si não têm
correspondência real, objetiva e concreta no mundo, mas, contrário disto, têm
caráter de representação simbólica. Ou seja, a via de acesso de meninos e meninas
no mundo civilizacional não se dá pela compreensão utilitária dele – saber, por
exemplo, quais são seus direitos e deveres enquanto pequenos cidadãos de um
grupo social – mas pela apreensão cerimoniosa das leis universais que regem as
relações humanas – aquelas que estabelecem a interdição do incesto e do uso
abusivo e perverso do outro como objeto.
187
representações do que se convencionou chamar de material psíquico ‘interno’ ou
‘externo’ não se separam desta forma. Pelo contrário, se conformam mutuamente e
em contiguidade sobre um espaço topológico como o da Banda de Moëbius.
Freud escreveu boa parte de seus textos provocado por questões suscitadas pela
análise direta de seus pacientes na clínica. Outras obras elaborou a partir de
questões emergentes de situações sociais extremas como a discriminação, a
exclusão, a submissão ou a violência de grupos sociais sobre outros. Embora os
pontos de partida destes textos pareçam dar o tom de duas construções teóricas
distintas – uma relativa a aspectos subjetivos/clínicos e outra a aspectos psíquicos
dos agrupamentos humanos – na nossa visão esta dicotomia não existe, uma vez que
a própria concepção sobre o psiquismo freudiano põe em evidência a
impossibilidade desta separação eu-mundo. O conjunto da obra de Freud se
estruturou sobre a urgência psíquica do sujeito provocador e sendo provocado,
criador e sendo criado por seu meio. Este, aliás, é o elemento central que sustenta a
hipótese desta tese.
188
mulheres e escravizava todos os filhos. Justamente por seu caráter despótico foi
assassinado pelo grupo. Culpados por este ato extremo, os homens (filhos)
marcaram o lugar vazio deixado pelo pai, erigindo-lhe um totem. Este marco
totêmico passou a cumprir dois papéis: ao mesmo tempo em que está lá para
lembrar que nenhum outro homem poderia ocupar o lugar do pai (para não ser
tentado a reproduzir seu papel tirânico e ter todas as mulheres), também está lá
para lembrar aos descendentes que o pai foi assassinado por eles, ato que não pode
voltar a se repetir. É o pai morto que subsiste como Lei, como organizador e
regulador das relações humanas: a estrutura social passa, então, da horda primeva
à irmandade totêmica, em que todos têm os mesmos direitos e se ligam pelas
proibições impingidas ao grupo. É deste mito que Lacan extrai a ideia de que o pai
existe essencialmente como função.
Privados da satisfação plena, interditada pela lei que passa a reger o grupo, logo
o descontentamento dos homens com aquela estrutura fraterna deu origem a um
agrupamento social diferente do primevo: as irmandades passaram a reproduzir de
outras formas o estado antigo paternalista – o homem tornou-se novamente o chefe
da família e a mulher passou a ser reconhecida pela sua deidade materna
(sacralização da mãe), mas as restrições em grupo teriam levado o homem a se
separar da massa e assumir o papel do pai em âmbito privado.
Afastado do grupo, diz Freud, este pai opera uma transformação no mito
totêmico: ele inventa o mito heroico, aquele do filho que matou sozinho o pai
tirânico da horda. Se faz o primeiro poeta épico consumando-se, em suas fantasias,
como o herói que substitui o pai monstruoso. Torna-se o Ideal do Eu para seu
próprio filho. Nesta falaciosa transfiguração poética da horda primeva a mulher
passa a ser a sedutora instigadora do assassinato do pai. Para o psicanalista, este
poeta-pai pretende ser o único autor da façanha que a horda perpetrou.
189
O mito é, portanto, aquele passo com que o indivíduo se sai da psicologia de massa. O
primeiro mito foi, com certeza, o psicológico: o mito do herói; o mito explicativo da
natureza deve ter aparecido muito depois. O poeta que deu este passo, e assim se
desprendeu da fantasia da massa, sabe entretanto – segundo outra observação de Rank
– encontrar na realidade o caminho de volta a ela [massa]. Com efeito, apresenta e
refere a esta massa as façanhas do seu herói, inventadas por ele. No fundo, este herói
não é outro senão ele mesmo. Assim baixa à realidade e eleva seus ouvintes até a
fantasia. Pois bem, estes compreendem o poeta, podem se identificar com o herói sobre
a base da mesma referência desejante ao pai primordial79 (FREUD, 1921: 129, minha
tradução).
O mito agora, culmina com o endeusamento do herói, como espaço em que o
lugar do pai se realiza de um modo mais representável pelo filho. Esta passagem da
qual fala Freud – do mito original das massas, para o mito heroico – talvez seja
aquela presente nas culturas orais primárias, cujo ápice se dá no transcurso para a
cultura escrita, em que o herói passa ser tomado no espaço privado como referência
de identificação mítica.
Em ‘Futuro de uma ilusão’ (1927) Freud retoma o assunto dos mitos de forma
indireta. Nesta obra aborda o papel das religiões nas estruturas sociais como
elemento que dá proteção ilusória ao desamparo humano frente à vida. Mais tarde,
em ‘Mal-estar na civilização’ (1930 [1929]), Freud dirá que o homem se depara
permanentemente com três fontes de desprazer: o próprio corpo que entra em
decrepitude; o mundo externo com as forças da natureza; e os vínculos com outros
homens, cujos desejos conflitam com os seus. Sendo assim restrita, a busca pelo
prazer demanda estratégias psíquicas para driblar seus obstáculos, e a religião é
uma delas.
79
El mito es, por tanto, aquel paso con que el individuo se sale de la psicología de masa. El primer
mito fue, con seguridade, el psicológico: el mito del héroe; el mito explicativo de la naturaliza debe
de haber aparecido mucho después. El poeta que dio este paso, y así se desaió de la masa en la
fantasia, sabe empero – segun outra observación de Rank – hallar en la realidad el caminho de
regreso a ella. En efecto, se presenta y refiere a esta masa las hazañas de su héroe, inventadas por
él. En el fondo, este héroe no es outro que él mismo. Así desciende hasta la realidad, y eleva a sus
oyentes hasta la fantasía. Ahora bien, estos comprenden al poeta, pueden identificarse con el héroe
sobre la base de la misma referencia añorante al padre primordial (FREUD, 1921: 129).
190
desde seu nascimento. É, portanto, pela via do infantil que propõe a investigação das
formas como os sujeitos lidam com ele.
O bebê busca apoio na mãe que o alimenta, mas que também o protege dos
perigos frente à angústia; nesta relação estabelece as escolhas de objetos infantis
que fazem com que a libido siga os caminhos das necessidades narcísicas e adira aos
objetos que assegurem satisfação parcial. Mais tarde a mãe é substituída pelo pai,
mais forte, mas com quem a criança mantém uma relação de ambivalência: primeiro
ele ameaça sua relação com a mãe, depois passa a ser admirado, sem deixar de ser
temido. Entretanto o caminho que vai de uma relação a outra não é tranquilo,
precisamente porque não é pela via da compreensão consciente que a criança fará
isto. Freud alude a ela da seguinte forma:
A condição da crença é um ponto importante para Freud, pois dirá que, como a
racionalidade não pode responder aos afluxos apaixonados das pulsões, é pela via
da imposição proibitiva – de assassinar outros homens, por exemplo – que a criança
recebe aquilo que é próprio das relações civilizacionais. Não é a intelecção da
proibição que tem efeito, mas a própria interdição que comunica a verdade histórica.
Dito de outro modo, é pela via da castração que a criança chega aos pressupostos da
cultura, e não é, portanto, pelo trabalho intelectual-racional que sufocará as pulsões
que, para a vida em sociedade, devem ser dominadas/controladas, dirigidas ao
trabalho de efeito social.
80
Son enseñanzas, enunciados sobre echos y constelaciones de la realidad exterior (o interior), que
comunican algo que uno mismo no ha descubierto y demandan creencia. Puesto que nos dan
información sobre lo que más importa e interesa en la vida, se les tiene muy alto aprecio (FREUD,
1927: 25).
191
a ser buscados naquilo que nos referimos anteriormente como as teorias sexuais
infantis identificadas por Freud (1905 e 1923). É a elas que as novas representações
vêm responder.
Sob o império das fantasias, a criança terá que atravessar o efeito da renúncia
forçada da realização pulsional – sair da ignorância, como diz Freud, ou da alienação,
como diz Lacan – e chegar ao mito do pai herói pela sua representação simbólica. Aí
será capaz de advir à cultura como um ser que, não só crê, mas também dela
participa.
Mais adiante Lacan afirma que a criança terá que perceber que para fazer-se
objeto de amor da mãe, não é como seu falo que o conseguirá, mas deslizando para
uma terceira posição: entre o objeto de desejo da mãe e o objeto imaginário falo. A
terceira posição é aquela do pai simbólico – o que dá acesso à cultura e que permite
à criança significar seu lugar como falo no gozo da mãe e também identificar o desejo
materno. Este é o lugar só alcançado por uma construção mítica, isto é, não sendo
representado em parte alguma (diferente do pai real com quem a criança lida o
tempo todo), ele é o significante do qual só se pode falar reencontrando ao mesmo
tempo seu caráter e sua necessidade. Dito de outra maneira, quando há a castração
– a ação do pai simbólico por meio de um significante – não sendo este significante
apreensível em si, a criança precisa de recursos outros para representá-lo e vai
buscar estes recursos no Imaginário, por meio do qual construirá seus mitos
particulares. Embora a castração seja um ato Simbólico, seu sentido é contraído do
Imaginário.
Vou indicar também o problema suscitado pelo fato de que o mito tem, no conjunto, um
caráter de ficção. Mas esta ficção apresenta uma estabilidade que não a torna de modo
algum maleável às modificações que lhe podem ser trazidas, ou, mais exatamente, que
192
implica que toda modificação implica por sua vez, por essa razão, uma outra, sugerindo
invariavelmente a noção de uma estrutura. Por outro lado, essa ficção mantém uma
relação singular com alguma coisa que está sempre implicada por trás dela, e da qual
ela porta, realmente, a mensagem formalmente indicada, a saber, a verdade. Aí está uma
coisa que não pode ser separada do mito (LACAN, 1956-57: 258).
[...]
O que cada criança fará ao ser castrada simbolicamente não é um novo mito para
a civilização, mas uma criação mítica singular que lhe permita formalizar os mitos
civilizacionais, compreendendo o papel dos significantes, isolando os elementos
comparáveis, classificando-os e ordenando-os conforme sua posição subjetiva. Se os
elementos simbólicos do mundo não pertencem a ninguém, de qualquer forma eles
193
devem ser recebidos e representados por cada sujeito, como forma de concernir a
todos.
O que se chama um mito, seja ele religioso ou folclórico, em qualquer etapa de seu
legado que se o considere, apresenta-se como uma narrativa. Pode-se dizer muita coisa
sobre esta narrativa, e tomá-la sob diferentes aspectos estruturais. Pode-se dizer, por
exemplo, que ela tem alguma coisa de atemporal. Pode-se tentar definir sua estrutura
quanto às configurações que ela define. Pode-se tomá-la sob sua forma literária, cujo
parentesco com a criação poética é surpreendente, ao passo que o mito é, ao mesmo
tempo, muito distinto desta, no sentido que mostra certas circunstâncias que não estão
absolutamente submetidas à invenção subjetiva (LACAN, 1956-57: 258, grifo meu).
Lacan, analisando criticamente o caso Hans, destaca o episódio em que seu pai
e Freud conversam com a criança na tentativa de deslindar seus sintomas fóbicos81.
Muito explicativos em suas observações sobre o comportamento de Hans, oferecem-
lhe elementos genéricos sobre como meninos relacionam-se amorosamente com
suas mães e rechaçam o pai, e que isto pode levar a situações desagradáveis como
as dos sintomas que enfrenta. Acrescenta Lacan que pelo viés das palavras que um
e outro apresentam a Hans, não há como o garoto assimilar o que lhe foi dito, só
porque bem explicado. É preciso que o próprio Hans percorra alguns circuitos de
linguagem (metafóricos e metonímicos) e experimente situações reais, para poder
tomar a intromissão simbólica (a letra, o significante S1 da castração) transformá-la
imaginariamente em um Texto que dará acesso ao discurso simbólico (S2). As
explicações sobre seus atos – uma constante na fala moderada do pai – agem
exatamente no sentido inverso das amarrações psíquicas que precisa empreender,
pois o tempo todo intervêm e põem a perder as criações míticas que Hans inicia. O
81
A análise de Hans é feita majoritariamente pelo próprio pai, discípulo de Freud e em constante
contato com seu mestre, para expor o que seu filho apresentava nas suas manifestações diárias e
falar de seus sintomas fóbicos. Em duas ocasiões Hans foi levado ao contato direto com Freud.
194
garoto é seguidamente interrompido pelos engendramentos compreensivos do pai
e por isto não consegue terminar o seu trabalho de forjar suas criações míticas. Diz
Lacan que [...] é preciso que a própria criança experimente a crise do Édipo, de que a
castração é um momento especial (LACAN, 1957: 279) e em seguida acrescenta que,
como os elementos da experiência que darão corpo às narrativas fantasiosas são
significantes que deslizam metaforicamente e metonimicamente pelo discurso, eles
precisam ser vividos pela criança e compreendidos como uma questão de método
de ação. Vale-se da leitura particular que faz sobre a ‘Estrutura do mito’ de Lévi-
Strauss: ali os elementos
[...] estão alinhados de tal modo que, lidos num certo sentido, sejam a sequência do mito.
Mas o retorno dos mesmos elementos, retorno que não é simples, mas ordenado, obriga
a ordená-los, não simplesmente numa só linha, mas numa superposição de linhas que
se dispõem como uma partitura, e vocês podem ver, então, estabelecer-se uma série de
sucessões legíveis tanto horizontal quanto verticalmente. O mito se lê num sentido, mas
seu sentido, ou sua compreensão, surge à superposição dos elementos análogos que
voltam sob formas diversas, a cada vez transformadas, sem dúvida para realizar um
certo percurso que vai, como diria o sr. de la Palice, do ponto de partida ao ponto de
chegada, e que faz com que algo que no começo parecia irredutível se integre no sistema
(LACAN, 1957: 283).
Vimos até aqui que o mito é uma narrativa forjada pelo Homem na cultura para
dar sentidos à sua posição no mundo. Acompanhamos também que cada criança ao
nascer precisará fazer esforço de compreender este lugar social, mas que para isto
terá antes que trabalhar na construção de seu mito particular, por meio das fantasias
representadas em seu corpo; as várias montagens fantasísticas criadas para
representar cada vínculo relacional estabelecerão uma matriz significante por onde
o Sujeito poderá construir sua Subjetividade. Estabeleceremos aqui que esta matriz
195
significante, particular a cada um, é o Texto psíquico, isto é, é uma estrutura
discursiva única a cada sujeito, mas aberta à recepção daquilo que vem da cultura.
Acontece que esta entrada pela via do simbólico não ocorre em um momento
estanque; ela é tecida na experiência repetida das relações da criança com o meio e
suas representações significantes, cuja maior expressão são as brincadeiras infantis
experimentadas de muitas maneiras, até que tomem um corpo e estruturem a
criação mítica de cada uma.
196
tem em momento algum a impressão de uma produção delirante. Tem-se, muito mais,
a nítida impressão de uma produção lúdica (LACAN, 1956-57: 262).
Cabe dizer que, se esta longa atividade depende inteiramente das articulações
da própria criança, o centro desta mobilização está atrelado à sua memória, isto é,
ao resgate de elementos significantes dispostos em seu aparelho de linguagem que,
por sua vez, tiveram origem determinante em Outros aparelhos de linguagem: na
memória familiar que se transmite pelos significantes que a nomeiam e significam
desde antes de nascer. E, da mesma forma que a escolha de significantes advindos
do Outro é própria para referenciar uma criança em particular, este mesmo infante
vai construir um mundo de representações totalmente seu; diferente de qualquer
outro, portanto. Cada trama narrativa terá um caráter único a partir dos recortes
significantes que a criança fará sobre olhares, gestos, palavras, tons de voz,
intervalos de voz, ritmos, cheiros, força muscular, pedaços de objetos – são todos
subsídios dos quais se valerá para construir seus mitos particulares. Estabelece de
saída um jogo intertextual rico em articulações.
197
Ela pergunta: ‘Então, por que olhas assim?
Hans: Só para ver se tu também tens um ‘faz-pipi’.
Ela: Naturalmente. Não o sabias?
Hans: Não; pensei que como és tão grande teria um ‘faz-pipi’ como de um cavalo.
Reparemos nesta expectativa do pequeno Hans: mais tarde cobrará significação82
(FREUD, 1909: 10, tradução minha).
Ora, em toda situação intersubjetiva tal como se estabelece entre mãe e criança, temos
uma questão [...] ela se refere a estes dois termos que empreguei no passado [...] que
articula uma divisão maior da abordagem significante de qualquer realidade num
sujeito, a saber: metáfora e metonímia. [...] Não se trata de substituição real, trata-se de
substituição significante e de saber o que ela significa [...] de saber qual a função da
criança para a mãe, e com referência a esse falo que é o objeto de seu desejo. A questão
anterior é: metáfora ou metonímia? Não é, em absoluto, a mesma coisa o fato da criança
ser, por exemplo, a metáfora de seu [da mãe] amor pelo pai ou metonímia de seu desejo
do falo, que ela não tem e não terá jamais (LACAN, 1957: 248).
82
Ella pregunta: “Pues,¿por qué miras así?”
Hans: “Sólo para ver si tú tambien tienes un hace-pipí.”
Ellas: “Naturalmente. ¿No lo sabias?”
Hans: “No; pensé que como eres tan grande tendrías un hace-pipí como el de un caballo.”
Reparemos en esta expectativa del pequeño Hans; más tarde cobrará significatividad (FREUD, 1909:
10).
198
imaginar e experimentar todas as possibilidades para seu órgão precioso e então
imagina que seu ‘faz-pipi’ está ‘enraizado’: aí faz a fobia.
O corpo enquanto não é falado, fala. Pela via dos afluxos pulsionais, ou dos
sintomas que se instalam nele, nas crianças o corpo age com toda vitalidade. Se a
palavra não vem socorrer o Sujeito que precisa de representações, seu corpo fala no
lugar por meio das pulsões que se exercem desordenadamente dentro-fora do
organismo.
Diz Lacan – a partir do relato de Freud – que primeiro Hans recomeça seu
caminho pela via dos sonhos. Sonha que há ‘duas girafas iguais’, mas uma é grande
e está em um lugar e outra pequena, ali próximo, enrolada como uma bola; ele se
senta sobre a pequena e a grande se põe a gritar. Para mostrar ao pai como é a
pequena girafa-enrolada, amassa uma folha de papel que a representa. O pai ignora
o ato e sai logo interpretando que a girafa grande é o símbolo do pai e a pequena é a
mãe, reagindo à falta do falo – explica novamente e Hans quase se vê sem saída, pois
na verdade está às voltas com os pares significantes ‘grande / pequeno’, ‘está / não
está’, que surgiram quando sua irmã nasceu e a mãe deixou de ser só dele. A mãe lhe
diz, sobre a irmã, que ela ‘ainda não tem dentes’. Hans tem que lidar com três coisas
a partir daí: algo novo (dentes, falo) vai aparecer; o que vai aparecer, vai crescer;
não se sabe o tamanho que atingirá quando crescer.
199
Em princípio as girafas são iguais – como os homens e as mulheres – e Hans faz,
de seu lado, a metonímia da mãe. Mas logo Hans introduz uma imagem no jogo
simbólico e a girafa pequena é amassada. Dias antes o pai lhe desenhara uma girafa,
à qual Hans acrescentara um ‘faz-pipi’, mas como um traço separado do animal. Aí o
desenho que o pai faz (imaginário e não explicativo) estava no caminho do
simbólico, uma vez que o resto é inteiramente desligado dos outros membros da
girafa. Ao mesmo tempo, a girafa pequena é o suporte necessário à veiculação do
significante que se pode segurar e amassar. Na passagem do imaginário ao
simbólico, a criança tem algo em mãos.
Hans vai da mãe, a uma parte de seu corpo e ao corpo da irmã propondo-se
questões relacionais que lhe permitam chegar ao pai. Vale-se de uma variedade
grande de experiências para entrar e sair da fobia: vê a coisa preta na boca do cavalo,
vê o cavalo cair, assiste a saída e a entrada das carroças carregadas em frente de sua
casa, desenha e sonha com girafas, amassa papéis, sonha com bonecas, brinca com
meninas, vê ilustrações de livros infantis, vê os parafusos, assiste as atividades do
bombeiro, entre outros tantos elementos com os quais constrói sua mítica. O que
falta a Hans e que dificulta sobremaneira seu caminho é a quase ausência de
200
narrativas despretensiosas nas quais os pais apareçam como suporte de discurso
imaginário, pleno de signos, imagens e formas de impressões dispostas no mundo
nos quais a criança possa encontrar a imagem do próprio corpo. Ainda assim, Hans
consegue pinçar aqui e ali fragmentos discursivos com que estabelece um intertexto
entre cavalos, girafas e bombeiros, e assim consegue dar-se uma conformação de
sentido.
A partir das questões surgidas em seu próprio corpo e das primeiras relações
de amor estabelecidas na família dá-se a necessidade de a criança buscar
significações para sua existência. Para isto cria seus mitos, que só poderão ser
erigidos através de elementos imaginários dispostos no mundo para
experimentação repetitiva deles. Aumentam, assim, o interesse e a curiosidade
infantil pelos aspectos culturais mais extensos e aí estabelece um movimento
dialético: ao mesmo tempo que suas primeiras criações míticas arremessam-no em
direção ao meio que o cerca, é também por este universo novo que é atravessado
pela linguagem para estabelecê-las. São textos afetivos, fontes para as fabulações da
criança, que darão a medida do discurso que circula fora do Sujeito; por meio das
narrativas a criança chega a exercitar também sua posição social e a usufruir da
201
civilização, aproximando-se, em segundo plano, do compartilhamento da língua
comum a todos. Quando a criança chega à sociedade mais ampla – para além dos
muros familiares – ainda está imersa na heterogeneidade e singularidade das
representações (cujas marcas não se apagarão nunca, cujo resto estrutural estará
sempre lá); depois, com o compartilhamento comum de elementos sociais, a criança
já é capaz de suportar um lugar de homogeneidade, de igualdade com seus pares.
Mas esta entrada, como já dissemos, não é pela via da realidade objetiva, senão
que se dá pelos caminhos da exploração fantasiosa, cerimonial, de aparente falta de
sentido e plena de sensações. Assim que as tramas textuais que cercam a criança têm
enorme importância nas suas experimentações criativas. Inicialmente ela recolhe do
mundo à sua volta os elementos que lhe convém e usa-os conforme assentam às suas
necessidades. Portanto, os sentidos sociais atribuídos às coisas e às palavras não lhe
podem interessar de saída – embora seja um dos pontos de chegada –; o cotidiano
como estabelecido pelos adultos, na sua função pragmática, não responde às
necessidades da criança.
Também Giorgio Agamben (1978) entende que a criança opera por fantasia, por
articulações nonsense (aos olhos do adulto) de objetos e fragmentos de objetos
eleitos, com que estabelece o conhecimento de si e do mundo. Dá especial relevância
à experiência como forma de fazer, compartilhar e transmitir o que é próprio do
humano. A experiência situa-se no sujeito – e não fora dele – e traduz sua capacidade
de existência, [...]porque a experiência tem seu necessário correlato não no
conhecimento [racional e objetivo], mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto
(AGAMBEN, 1978: 22). O conhecimento que a criança estabelece pela via da
experiência é espontâneo, fruto do acaso e, neste sentido, bem diverso daquele
concebido pelas ciências modernas.
A imaginação, tão cara aos povos antigos – e ainda hoje aos primitivos e a todas
as crianças – permitia-lhes, por exemplo, olhar para o céu e tão apropriadamente
nomear de Via Láctea o extraordinário derramamento de leite no etéreo
202
firmamento. Se hoje já sabemos que não se trata de leite, mas de um conjunto de
estrelas, de qualquer forma não deitamos fora toda poesia e herdamos desta
experiência a nomenclatura e a sabedoria de que o agrupamento destes corpos
celestes está lá desde antes de nascermos e ali permanecerão enquanto vivermos. A
imaginação foi eliminada do conhecimento, como sendo irreal. Enquanto mediadora
entre sentido e intelecto, na fantasia a imaginação ocupava o lugar atualmente dado
ao experimento controlado e metrificado. A partir de René Descartes e o nascimento
da ciência moderna, a fantasia é assumida pelo sujeito do conhecimento como se
entre este sujeito (res cogita) e o mundo corpóreo (res extensa) não houvesse
necessidade de mediação. Agamben (1978) posiciona-se diante desta matéria e diz
que a imaginação não é irreal, mas condição da comunicação de conhecimento;
argumenta que, ademais, a experiência sem a fantasia fica apartada do desejo.
203
seu limite na linguagem, mas não fora dela, uma vez que a consciência da psique é o
sujeito de linguagem. Sugere que se substancialize esta in-fância em torno do
silêncio do sujeito, por meio do irrefreável e intangível da linguagem. Para o autor,
isto se traduziria como o monólogo interior que pode [...] ceder o lugar a uma
absolutização mítica da linguagem além de toda ‘experiência vivida’ e de toda
realidade psíquica que a preceda (AGAMBEN, 1978: 59), e identifica este lugar
justamente com o inconsciente freudiano, ou o ‘Es’ (Isso) lacaniano, cuja realidade é
a linguagem.
Na ideia de uma infância como uma ‘substância psíquica’ pré-subjetiva revela-se então
um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem
assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e
a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos
procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a
infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede
cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se
na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para
sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás
ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o
homem como sujeito (AGAMBEN, 1978: 59).
Uma tal origem não poderá jamais resolver-se completamente em ‘fatos’ que se possam
supor historicamente acontecidos, mas é algo que ainda não cessou de acontecer.
Poderíamos definir uma tal dimensão como a de uma história transcendental que
constitui, em um certo sentido, o limite e a estrutura a priori de todo conhecimento
histórico.
204
[...]
Pois o próprio fato de que exista uma tal infância, de que exista, portanto, a experiência
enquanto limite transcendental da linguagem, exclui que a linguagem possa ela mesma
apresentar-se como totalidade e verdade. Se não houvesse a experiência, se não
houvesse uma infância do homem, certamente a língua seria um ‘jogo’, cuja verdade
coincidiria com o seu uso concreto segundo regras lógico-gramaticais. Mas, a partir do
momento em que existe uma experiência, que existe uma infância do homem, cuja
expropriação é o sujeito da linguagem, a linguagem coloca-se então como o lugar em
que a experiência deve tornar-se verdade (AGAMBEN, 1978: 61-62).
205
e pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na
linguagem e na palavra. Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da
humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo,
descontinuidade, epoché (AGAMBEN, 1978: 65).
206
dos pressupostos da fantasia que é de ser a realização de um desejo insatisfeito, que
se vai buscar via imaginação. Quando a criança cessa o jogo não perde a dimensão
da realidade efetiva do mundo, pois sabe diferenciá-la da fantasia. À medida que
cresce, a criança deixa de brincar, mas não deixa de fantasiar, como Freud constata
nos relatos de sonhos e devaneios diurnos de seus pacientes de divã.
O poeta como o sonhador diurno que retoma a fantasia em seus três tempos,
reatualiza a infância resgatando desejos e repetindo suas realizações. A insistência
sobre a recordação infantil deriva em premissas que dão nexo às criações poéticas.
Os sonhos diurnos – continuação dos jogos infantis – que os adultos se envergonham
de sonhar, encontram na criação poética a superação daquilo que escandaliza, pois
o poeta insurge-se contra as barreiras do reprimido dissimulando o caráter egoísta
e narcísico dos devaneios por meio de disfarces e encobrimentos que permitem a
realização da fantasia. Posto a público, seus sonhos tornam-se sonhos com os quais
outros podem se identificar. Nas palavras de Freud, ele nos [...] suborna por meio de
uma ganância de prazer puramente formal, vale dizer estética, com que nos brinda na
figuração de suas fantasias (FREUD, 1909: 135) e que nos habilita a desfrutarmos sem
remorso ou vergonha das nossas próprias fantasias.
Aqui se reencontram poeta e criança. O prazer estético que o poeta nos oferece
é o gozo genuíno liberado de tensões internas que, nos diz Freud, deriva de fontes
psíquicas profundas e têm um caráter ‘prévio’. Este ‘prévio’ o autor identifica
207
justamente na infância – e aqui retoma outro texto seu, “O chiste e sua relação com
o inconsciente” (1905) – em que a criança pequena que está começando a falar
maneja o léxico e experimenta um jogo e [...] com este material trama as palavras sem
se atentar para a condição de seu sentido, a fim de alcançar com elas o efeito prazeroso
do ritmo ou da rima83 (FREUD, 1905: 120, minha tradução). Enquanto aprende a
empregar as palavras e tramar seus pensamentos, o jogo aflora na criança e a pulsão
que a compele a exercitar suas capacidades produz efeitos prazerosos de repetição
do semelhante.
Mangueirinha, mangueirinha,
e que a pequena Luisa, na mesma idade em que estava às voltas com a ‘tigela’,
repete sozinha debaixo de uma árvore:
Manguelinha, manguelinha,
ou, rodopia dançando pela sala de casa sua versão de ‘Ciranda, cirandinha’:
Cilanda, cilandinha,
São repetições em que a criança experimenta (sala e dala) e com ele refaz o jogo
sem se atentar para o significado das palavras, tropeçando com efeitos prazerosos
que ela mesma produz e redescobre, além de reatualizar a história que a precede e
atravessa. São gracejos que expressam pensamentos longe de críticas, que desloca
sentidos (ainda que ela não tenha ciência deles).
83
[...] con ese material, y entram alas palavras sin atenerse a la condición del sentido, a fin de
alcanzar con ellas el efecto placentero del ritmo o de la rima (FREUD, 1905: 120).
208
Esclarecendo outros pressupostos de nossa investigação, adotamos não só que
esta experiência infantil é prazerosa, constituinte de sua condição humana, como
também precisa ser cultivada, enlevada, incentivada, pois será a base para aquisição
da leitura e da escrita gráficas no letramento secundário – no qual também
pressupomos intertextualidades, derivações de um texto a outro, de um sentido a
outro.
209
mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno
mundo quando se deseja criar premeditadamente para as crianças e não se prefere
deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento –
encontre por si mesma o caminho até elas (BENAJMIM, 1926-28: 103-4).
Estes pequenos cacos recolhidos são restos humanos, traços de suas obras e
passagens pela Terra. A criança busca a essência do humano aos pedaços e nos
pedaços. O que lhe encanta é o que aparece como fragmento de uma experiência
trabalhada, marcada por (es)histórias. Toda criança gosta de bolo cru, mas não
daquele que vai na forma: ela se delicia é com os vestígios da meleca que sobrou no
fundo da tigela, porque aí há mais coisas a comer do que bolo: ela encontra e se
apropria dos traços da tigela da avó, do ovo da Das Neves, da receita da bisavó, do
cheiro da manteiga no avental da mãe. Um universo de rastros de memória,
significantes, desembarcam na pequena colher que minuciosamente raspa cada
linha do grude adocicado. Assim também é com os pedaços de madeira que se
desprendem do formão que trabalha a caixinha de joias: a criança assiste a confecção
do objeto muito mais para se aproximar primeiro das lascas e delas fazer um
besouro, ou a forração de uma cama de fadas, e só depois para ver o resultado final
do trabalho. O bolo é comido, mas a tigela é deleitada; a caixinha será usada, mas o
besouro terá vida.
A partir destas considerações, não há como não expor aqui nosso total
desagrado com relação às máquinas de brincar que já vêm prontas para falar, andar,
correr, rodar, sem que a pobre criança tenha que fazer esforço maior do que apertar
um botão e assistir aos seus movimentos robotizados e programados.
Do mesmo modo que a fala é atravessada pelos lapsos de linguagem que deixam
palavras soltas no ar, ou intervalos de esquecimentos, também outras atividades do
Homem produzem objetos desprendidos que a criança persegue como pistas em
uma trilha de significantes. Destes fragmentos a criança cria seus mitos e fabrica
sentidos. É o que Miguilim tenta alcançar com os resquícios do irmão:
Depois ele conversou com Mãitina. Mãitina era uma mulher muito imaginada, muito de
constâncias. Ela prezava a bondade do Dito, ensinou que ele vinha em sonhos, acenava
para a gente, aceitava louvor. Sempre que se precisava, Mãitina era pessoa para
qualquer hora falar do Dito e por ele começar a chorar, junto com Miguilim. O que eles
dois fizeram, foi ela quem primeiro pensou. Escondido, escolheram um recanto, debaixo
210
do jenipapeiro, ali abriram um buraco, cova pequena. De em de, camisinha e calça do
Dito furtaram, para enterrar com brinquedos dele. Mas Mãitina foi remexer em seus
guardados, trouxe uns trens: boneco de barro, boneco de pau, penas pretas e brancas,
pedrinhas amarradas com embira fina; e tinha mais uma coisa. – “Que que é isso,
Mãitina?” “– Tomé me deu. Tomé me deu...” Era a figura de jornal, que Miguilim do
Sucuriju aportava, que Mãe tomou da Chica e rasgou, Mãitina salvara de colar com grude
de rasgados, um caco de gamela. Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos. Tudo se
enterrou, reunido com as coisinhas do Dito. Retaparam com terra, depois foram buscar
pedrinhas lavadas do riacho, que cravaram no chão, apertadas, remarcando o lugar;
ficou semelhando um ladrilho redondo. Era mesma coisa se o Dito estivesse depositado
ali, e não no cemiteriozinho longe, no Terentém. Só os dois conheciam o que era aquilo.
Quando chovia, eles vinham olhar; se a chuva era triste, entristeciam. E Miguilim furtava
cachaça para Mãitina (GUIMARÃES ROSA, 1977: 81-82).
Aqui Mãitina é uma mulher sábia, que apresenta em todos seus gestos e falas
sua cultura africana, que encanta e intriga, que consegue escutar a criança e ladeá-
la em suas aflições. Ela participa do jogo de pinçar os pedaços guardados, dispersos
ou esquecidos, que não servem mais posto que Dito está morto e dele ninguém mais
fala. Juntos, ela e Miguilim reconstroem imaginária e simbolicamente um cerimonial
que marca o lugar do irmão querido, que pode ainda ser visitado, cuidado e
pranteado. É um saber estruturado em torno da falta e do sofrimento – da morte
como Real.
211
3.6.ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO – MOLA DO CONHECIMENTO
Começa a ficar claro que qualquer ser humano, desde sua chegada ao mundo,
vê-se enlaçado a dois polos dialeticamente complementares, que o põem no jogo da
alternância demanda-desejo. A primeira – demanda – impõe-se desde o Outro, como
algo que capta o Sujeito e dele faz um objeto alienado; o segundo – desejo – é o que
há de mais próprio, é o que sustenta a vida e suas buscas, e o que responde ao
chamado do Simbólico. Na mesma proporção que a criança precisa se alienar na
demanda do Outro para ser alvo das transmissões geracionais e ver-se constituído
como humano na linguagem, precisa dela separar-se para sustentar-se como um
sujeito, como aquele que também tem o que falar.
212
significante se perdeu; e quando há traço, o objeto acabou de se apagar. E, [...] se o
traço surge do apagamento do objeto, surge como algo que está ali para ser lido como
linguagem quando ainda não há escrita (LACAN, 1961-62, lição 20/12/61); o traço da
origem é essa marca aberta à leitura e aí está impresso algo, talvez um sujeito que
vai falar e escrever. Forma-se um movimento linguageiro repetitivo e, a cada vez que
surge o significante, ele enlaça o objeto por um viés diferente, até dar-lhe tantas
voltas quantas as necessárias para conformá-lo de algum sentido. A somatória deste
reviramento compõe a narrativa da criança – seus Textos – na qual se inscreve o seu
desejo, a imagem corporal unificada e a sua posição como objeto e gozo do Outro.
213
saber ler/escrever está no campo de também não saber ascender à própria voz,
embora possa falar.
Por outro lado, o que concerne a saber ler e escrever no papel – letramento
secundário – é de outra ordem. Alfabetizar-se, alçar a leitura e a escrita gráfica das
letras, palavras, frases e textos, é dispor-se a compartilhar uma língua comum a
todos, em sentidos e significados. A criança chega a isto quando conseguiu aquietar
um tanto das demandas por satisfação interna das pulsões e pode novamente
submeter-se à alienação significante, sendo desta vez referida às representações do
meio social amplo no qual estão depositadas as leis da cultura. Isto se dá no
momento que Freud denomina de latência, em que arrefecem-se as perturbações
internas causadas pela castração e há decentração da libido dirigida ao próprio
corpo: as pulsões convergem agora, em parte, para o meio social, lugar onde também
buscará satisfação.
Da mesma forma que a memória do Outro serviu de alicerce para o bebê enredar
pela linguagem familiar que o nominou e a partir dela poder erigir uma narrativa
mítica própria (seu Texto), é esta última que lhe fornecerá as bases nas quais apoiará
os conhecimentos compartilhados socialmente. É um processo que demanda certa
espontaneidade em que a criança vislumbra na cultura a possibilidade de exercer
sua humanidade, isto é, ela se faz alienar no saber social pois aí pode ser reconhecida
e amada por seus pares.
214
bebê, agora é ele quem alternadamente demanda respostas, mas também oferece
seu desejo ao aluno, para que este possa ler antecipadamente a capacidade de
alcançar o saber social. É assim que a criança aliena-se no saber do Outro-professor
e oferece-lhe rabiscos que chama de escrito, e o mestre vislumbra nesta intenção a
grafia do que virá a ser uma palavra. Reconhecida em seu desejo a criança continua
a produzir seu trabalho de escrita; desejando que a criança aprenda e reconhecendo
a possibilidade do traço no papel vir a ser escrita compartilhável, o professor
suspende seu saber absoluto para conservar o desejo de saber do aluno.
215
duplo movimento de alienação ao saber socialmente estabelecido, para em seguida
dele se afastar pois suas representações guardarão sempre dissonâncias com
relação às do meio. É como no jogo do Fort-Da, ou nas criações míticas em que os
objetos se apresentam e se afastam, mudam de lugar e se reconfiguram a novas
atribuições.
Da mesma forma que a mãe se põe de saída como sabedora das necessidades de
seu bebê e aí ele se aliena em troca de ter uma identidade reconhecível, é o professor
quem estabelece para seu aluno o que ele precisa conhecer e o pequeno se entrega
à relação, como um crente aos dogmas da igreja, uma vez que é neste espaço de
aprendizagem que a cultura estabelece o lugar de reconhecimento social. Logo, há
um saber antecipado que estabelece a relação de autoridade da mãe sobre o bebê e
do professor sobre o aluno.
Entretanto, assim como a mãe se faz castrada para o filho, apresentando-lhe sua
falta essencial como o limite da relação de saber absoluto sobre ele, também o
professor precisa ser faltante para que o saber circule. Este acontecimento inicia-se
– em aparente contradição – pela suspensão do saber por parte do professor. Isto é,
pela suspensão do gozo que antecipa, sobre o outro, um saber absoluto pré-
estabelecido. Suspender o saber não é deixar de saber, mas é abrir brechas nele
despojando-se dos afãs narcísicos sobre si mesmo, para que o outro possa entrar
com seu desejo de saber. No caso da escola, é ao professor que cabe essa fenda.
Mas, é preciso dizer, esta separação não pode se basear – por parte do professor
– em fingimento, em fazer de conta que ele não sabe. Ao invés disto, deve ser a
expressão verdadeira do reconhecimento de que há limites do que sabe sobre seu
216
aluno e sobre a relação que com ele estabeleceu. É saber reconhecer na linguagem
as fronteiras entre as experiências de cada um, uma vez que é justamente aí que se
pode distinguir a verdadeira demanda de conhecimento de seu aluno, ou os entraves
que o impedem de aprender.
Alícia Fernández (2001) diz que ensinamos, mas a criança plena de desejo
aprende sozinha. Ninguém pode aprender por ela, mas sem aquele que ensina –
217
aquele que tem o saber no qual possa se alienar – a criança não é capaz de aceder e
ascender ao conhecimento. Na mesma direção, a autora ainda afirma que o que se
ensina não é o mesmo que se aprende: ensinar a ler não é ler, como ensinar a
escrever não é escrever.
Não é difícil notar que, com tanta bagagem subjetiva, cada criança e cada
professor são únicos, o que faz de uma sala de aula um universo de singularidades e
heterogeneidades que não se iguala a nenhum outro. Ou seja, nas salas de aula dos
primeiros anos de escolaridade temos um conjunto homogêneo de pessoas físicas,
mas um grupo heterogêneo de Sujeitos demandantes e desejosos e nesta
configuração deve-se dar o trabalho de alfabetização.
218
No processo de aprendizagem a criança demanda do Outro um posicionamento
referente – que inicialmente nada mais é do que o acolhimento da sua Subjetividade.
Por isso o lugar relacional que o professor ocupa não pode ser como de uma outra
criança, como um par que estaria na mesma situação de demanda por representação
– como a que vimos no Capítulo 2 desta tese –, nem como detentor de todo saber
que impeça a criança de conhecer – como o pai de Hans ou da criança citada no caso
emblemático exposto também no Capítulo 2. Como afirma Dunker (2011) o pequeno
espera que a verdade lhe seja dita, não só na forma de resposta concreta de como
deve ler e escrever, mas de como pode chegar a outras representações articuladas à
estrutura de ficção sustentada pelo grupo de falante. A criança espera encontrar um
lugar de falta onde possa repousar seu desejo e fazer circular a Subjetividade, mas
não espera de modo algum a ausência total de referentes.
O que a criança traz como bagagem para fazer esta passagem ao mundo
segundamente escrito?
219
Como vimos ela vem com uma mala cheia de acontecimentos experimentados
em seu corpo e engendrados pela linguagem. Ela chega precisamente com a
capacidade de interpretar subjetivamente o sentido das coisas; em uma sociedade
alfabética como a nossa, também traz consigo a noção da escrita gráfica: já sabe que
existem letras, palavras e números, com os quais se pode escrever. Nos anos
precedentes à escola ela trabalhou muito coletando infindáveis fragmentos e restos
significantes com que compôs narrativas (seus Textos) em torno de objetos vazios
de representação. Ela já exercitou bastante seu pequeno corpo em busca de lugares
possíveis e desejados. A criança chega à escola conhecedora das falas cotidianas que
marcaram sua rotina em família, e também sabida daquelas menos prosaicas que
requerem esforço de metaforização e metonimização. Ademais, desembarca com
um repertório de brincadeiras em que todos estes elementos estiveram presentes.
Entretanto, e sobretudo, vem com o corpo ainda vibrante, que sabe ler
primariamente entre-textos, mas precisa expandir suas capacidades leitoras.
A criança fará com a leitura e a escrita gráficas o que já vinha fazendo com suas
brincadeiras, isto é, experimentará de outro modo a mesma Subjetividade. O aluno
precisa receber uma indicação menos cartesiana e mais benjaminiana para arriscar-
se ao letramento secundário.
220
Vejamos: se Ramos acusou que em sua cartilha não havia meios de uma criança
vivaz e curiosa ser acolhida, também generosamente abriu as portas da infância e
convidou a entrar aqueles que sabem escutá-la e brincá-la:
Diante desta interdição do desejo, Graciliano faz remissão a outra vez em que se
vira impedido de satisfazer seus impulsos: um dia que chovia muito, queria estar
nas poças d’água pisando com os pés descalços, ou fazendo correr barquinhos na
enxurrada. Mas não podia...
221
Não se distinguia nenhum ruído fora a cantiga dos sapos do açude da Penha – vozes
agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o berro do sapo-boi, bicho terrível
que morde como cachorro e, se pega um cristão, só larga quando o sino toca. Foi
Rosenda lavadeira quem me explicou isto. Admirável o sino. Como seria o sapo-boi?
Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana (RAMOS, 1945: 63).
Nesta divagação primeira Graciliano estabelece quem são seus sapos e com eles
se identifica. A identificação permite deslocar seu desejo – estar na enxurrada – para
outro lugar: ‘ouvir sapos’, estes sapos que podem gritar, soluçar! Quando ele se vê
diante de uma cartilha cujos textos entram só no campo da proibição do devaneio,
inferimos, deve ter se lembrado do sapo-boi, mas ele novamente vai buscar o esteio
para seu desejo: seus sapos cururus.
Como afirma Ferreiro (1979, 1981 e 1985) e seus colaboradores, a criança que
vai aprender a ler e escrever não chega vazia para esta atividade, pois seu cotidiano
já lhe oferece elementos do letramento – com o que concordamos plenamente. Os
pontos discrepantes – e fundamentalmente diferentes! – se dão ao redor da função
da escrita e deste cotidiano relevante para alfabetização.
Para Ferreiro a escrita cumpre uma função social que deriva para um jogo
objetivante: para o que serve a escrita. Para nós a escrita é a trama textual mais
222
complexa, da qual abre-se uma predisposição para a atividade de textualizar, de
escrever e ler, seja no açude da Penha, seja no caderno. O rumo humano para nós é
fazer letras e não o reconhecimento da função social das letras (este é secundário e
consequente do primeiro).
84
Este material do PNLD foi distribuído à EA-FEUSP no ano de 2010, quando o PROJETO “DESAFIOS”
ainda não estava implantado na escola. Quando este teve início, no ano de 2011, o livro didático foi
substituído por outras metodologias e atividades, como se verá no Capítulo 5 desta tese.
223
Como pude analisar nas páginas precedentes e seguintes deste material, as
atividades encerram-se na cópia de seus títulos e dos nomes dos autores
estampados nas capas mostradas. Não houve preocupação com a exposição mínima
dos conteúdo de cada uma das obras citadas.
Poderíamos, então, objetar que este tipo de visada é dirigida para atividades que
se destinem a ensinar aos alunos como identificar em uma capa de livro algumas
informações básicas. Isto é, pensaríamos que em se tratando de um texto oferecido
na íntegra, algo mais seria oferecido e que o aluno teria alguma liberdade para se
aventurar sobre seu sentido. A este respeito, vejamos na Figura 7 exemplo de um
texto extraídos das páginas 73 e 74 do mesmo material didático e na Figura 8 as
atividades propostas na sequência (página 75):
224
Figura 8: Excerto da página 75 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’ do PNLD/MEC
Neste exemplo há muito o que explorar! A primeira objeção a ser feita refere-se
à ‘versão atualizada de uma fábula’. Fábula é um gênero literário narrativo, de
temática variada (bondade, astúcia, comportamento, etc.) e que revela sempre ao
final um ensinamento moral, portanto, intimamente ligado ao modo cultural de
pensar e lidar com os costumes. Remonta à antiguidade grega com Esopo e é
retomada no Renascimento por Jean de La Fontaine, de quem, aliás, provém o
original da ‘versão’ apresentada pelo livro didático. Mas, ressaltamos também, a
fábula está presente na oralidade popular. Da mesma forma que este segundo autor
se aventurou a compor suas próprias fábulas, depois de tanto tempo de sua origem,
qualquer autor poderia fazê-lo. No entanto, aqui nos encontramos com a
‘atualização’ de uma fábula e não podemos passar por ela sem nos perguntarmos o
que significa ‘atualizar’. Esperaríamos inicialmente encontrar uma outra moral da
225
história, mais condizente com os pensamentos contemporâneos, uma vez que
atualizar é trazer algo para os dias de hoje. Mas não é este o caso. O que efetivamente
ocorre é a modificação da forma de transmissão narrativa: o texto é lido e não
declamado ou recitado; a linguagem é demasiadamente simplificada; e, o pior de
tudo, introduz-se considerações do tipo que aponta Graciliano Ramos em sua
cartilha: um desarrazoado com as coisas da infância: ‘O urso cheirou suas orelhas.
Estariam limpas?’, muito semelhante a: ‘Passarinho queres tu brincar comigo?’
Talvez mais interessante tivesse sido o professor explorar com os alunos esta
mesma fábula, contando-a ao invés de ler, ou recitando-a, para o caso de ter uma
versão em versos, como a que encontramos em Couto Guerreiro (1985). Esta seria
uma maneira de reatualizar as características rítmicas e rimadas da oralidade, que
fazem captar pelo corpo os sentidos da linguagem:
226
O trato com a forma e os elementos de gênero se repetem aos montes ao longo
do livro didático. Também com as poesias a abordagem não vai além, como
vislumbramos nas atividades como propostas na Figura 9 abaixo (página 34):
227
sintetizar o poema – mais ou menos como a ‘moral de história’ das fábulas. E mais
uma vez se abdica de fazer entrar a criança neste mundo magicamente sonoro e rico
que é o das poesias.
Por fim, para não nos estendermos demasiadamente nesta análise aqui85, vamos
expor um último exemplo (Figura 10), agora sobre uma receita, extraído do mesmo
livro didático (página 103):
Figura 10: Excerto da página 103 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’ do PNLD/MEC
85
Trataremos da análise pormenorizada deste livro didático no Capítulo 5 desta tese.
228
palavra que substitui ‘prevaleça a’: ‘Você, professor, que já mostrou outras receitas
a seus alunos, use-as prevalentemente para fins de explorar linguagem, etc.!’. No
segundo texto ‘aproveite para’ parece esconder certo esforço que se fará para que
esta atividade aconteça; parece dirigir-se ao sujeito-pragmático ao qual Pêcheux se
refere como sendo aquele diante das urgências da vida: ‘Professor, se for possível na
sua jornada, aproveite para fazer mais esta atividade...’.
86
Estratégias estas, reforçadas por outras tendências como o sociointeracionismo, as concepções de
gênero de Mikhail Bakhtin, entre outras.
229
Onde podemos encontrar a Subjetividade criativa dos alunos, em meio a estas
listas, formalizações e cópias?
230
3.8.2. ORALIDADE – ABERTURA AO DESEJO
Figura 11: Excerto retirado da página 23 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e
Alfabetização Linguística’ do PNLD/MEC
231
Oralidade formulada desta maneira refere-se a qualquer fala que dê resposta a
uma atividade proposta; fala comunicativa, pragmática, portanto. Belintane
envereda por outros caminhos: o pesquisador cunha o termo ‘oralidade’ de modo
diferente deste emprego da fala comunicativa pragmática. Dirá que ‘oralidade’ é o
conjunto de [...] narrativas míticas, de encantamento, de aventuras e outras, que
instigam o desejo de continuar a saber, aliadas aos gêneros da infância e da tradição
oral (BELINTANE, 2011: 158), e mais adiante clareia sua opção:
A escolha desses gêneros e de seus textos principais tem como referência e inspiração
o inconsciente linguageiro de Freud ou aquela dimensão que Lacan chamou “lalangue”,
de cujas bordas emerge uma língua/linguagem constitutivamente ambígua,
polissêmica, sempre propensa à função poética e ao equívoco (BELINTANE, 2011: 158-
159).
É a esta ‘oralidade’ que se refere quando diz que já nela podemos verificar o
letramento infantil. Vejamos, então, como estes gêneros textuais aparecem como
alfabetizadores. Belintane (2011) procede uma divisão didática de quatro grupos de
textos oriundos da oralidade com os quais se pode trabalhar no processo
alfabetizador. Reproduzimos87 a lista destes gêneros textuais (cujos exemplos
podem ser vistos no Anexo B desta tese), que são:
87
Recomendamos a leitura destes gêneros textuais oriundos da oralidade diretamente no autor,
dada a riqueza de detalhes que expõe, em Belintane 2011.
232
Fórmula de Bola (comandos e coordenação motora); Outros Gêneros
Corporais (melodias que envolvem destacabilidade da palavra na frase,
marcadas pelo corpo); Adivinhas e Enigmas (gênero que possibilita explorar
o campo da leitura a partir da posição subjetiva do leitos diante do enigma).
233
gênero Belintane prioriza aqueles da tradição brasileira88, que o autor deriva em
três sub grupos: Histórias de Bichos (para além das fábulas, identifica aquelas
histórias marcadas pela astúcia e desenvoltura do personagem, e aquelas que
retratam a fauna e a flora brasileira); Lendas Brasileiras (textos fantásticos que
elaboram explicações para acontecimentos ou origem de algum elemento da cultura
geral ou regional); Causos Brasileiros (enredos de assombração ou astúcia, muitos
têm sua origem longínqua nas narrativas medievais, mas foram transfigurados para
embates de mote caipira ou sertanejo).
88
Certamente não descartamos os textos vindos de outras tradições sociais. Oriundos da tradição
oral ou literária, há uma riqueza infindável de textos provenientes dos cinco continentes que podem
e devem ser aproveitados. O que fazemos aqui é não subestimar a riqueza da nossa cultura, além de
priorizar o que todas as culturas consagraram como narrativas centenárias ou milenares.
234
expressa revela elementos que a leitura muitas vezes esconde. É por esta razão, que
uma história contada causa efeitos na criança muito diversos da mesma história lida:
na contação também o corpo do professor está em jogo e pode buscar no olhar e no
tom de voz aquele aluno que está distraído ou fazendo outra atividade. A modulação
vocálica na contação faz toda diferença para a aproximação com o texto e
geralmente o que vemos é que quando o professor lê a história está mais preso à boa
pronúncia daquilo que está escrito, do que às variações de tons de personagem a
personagem, de situação a situação.
235
Ler e interpretar Subjetivamente um texto não é só responder à razão social
dele, mas posicionar-se diante dele e a partir dele. A leitura se torna tão mais
sofisticada à medida que ela enlaça outras leituras e busca a intertextualidade. O
maior número de inferências torna mais possível à criança fazer os recortes
representacionais necessários à sua reelaboração psíquica e, consequentemente, à
sua entrada no mundo da realidade. Ela pode desta forma dialogar com o que
simbolizou do cotidiano.
É assim que esta pesquisa faz todas suas apostas no trabalho textual que resgata
as narrativas épicas, míticas, lendárias que recorrem sempre a elementos distantes
do cotidiano utilitário, elementos misteriosos, fantásticos, mágicos, poéticos, que
brincam com as palavras e seus vários deslocamentos, dissimetrias, intervalos e
atonalidades. Quando bem transmitidas e trabalhadas, estas hiâncias textuais
convidam a criança a participar de seu jogo. Ademais, o texto faltoso também
convoca o professor a colocar-se como desejante, como alguém instigado pelo
nonsense e que também tem que fazer um resgate mnêmico para que possa se
reencontrar.
236
A funcionalidade do texto e sua operacionalidade não se dão exclusivamente,
nem prioritariamente pelo uso de técnicas ou de métodos diferentes, mas
necessariamente pela circulação do desejo por suas entrelinhas lidas e escritas. O
texto do qual a criança se apropria e conhece é aquele em que ela pode entrar e sair,
nele acrescentando e dele extraindo significações elementares.
Até aqui tratamos do indivíduo que nos primórdios de sua constituição psíquica
teve que se haver com a trama histórica em volta de si. Vimos que no entanto este é
um indivíduo que ainda não tem consciência das palavras faladas no seu sentido
social compartilhável – função pragmática – e que ainda usa a língua como a recebeu
na relação de maternagem. Mas, este indivíduo, uma vez pego nas malhas dos
significantes em rede, tornar-se-á Sujeito.
237
Tratamos também do paradoxo sobre qual/quem é o objeto de ação da
aprendizagem: se de um lado não pode ser o Sujeito como o estabelecido pela
psicanálise, uma vez que este é acontecimento evanescente do inconsciente,
também não é o indivíduo de toda consciência, uma vez que o Sujeito sempre estará
lá com suas interferências idiossincráticas que desbancam a razão plena. Apostamos
na educação incidindo sobre e a partir da Subjetividade, termo que tratamos como
o trabalho feito por um indivíduo na aproximação dos textos e memórias vindos do
Outro, a partir dos quais pode retirar elementos para suas próprias produções
textuais – seu Texto.
Assim que, quando estamos diante de um texto, seja ele oral ou escrito, somos
demandados a interpretá-lo, pela própria condição humana de constituídos pela
linguagem; a partir de nossas experiências com a linguagem, conformamos os
sentidos e as representações que se fazem urgentes. Vimos que isto pode ocorrer
pela via de uma fala mais prosaica e cotidiana, ou por aquela extraída dos ludismos
poéticos. Chegamos ao ponto em que a nossa escolha para o processo de
alfabetização recai sobre os ludismos poéticos mais do que sobre a fala
comunicativa.
Freud diz que há muitos ensinamentos acerca das coisas mais variadas do
mundo que os alunos não veem e que por isto tomam como crença. Relata um
episódio acontecido com ele às voltas com a Acrópole: sabia que ela existia em
Atenas (Grécia) e conhecia sua história, entretanto quando esteve pessoalmente no
lugar foi tomado por dois sentimentos arrebatadores: de maravilhamento e espanto.
Então tudo é efetivamente tal qual aprendemos na escola! Quão superficial e débil deve
ter sido, naquele tempo, minha crença na verdade objetiva do escutado, posto que
agora me assombro tanto!89 (FREUD, 1927: 25, minha tradução). A questão para
Freud é seu assombro, que diz ser [...] de natureza inteiramente subjetiva e
relacionada com a particularidade do lugar90 (FREUD, 1927: 26, minha tradução). De
fato, é assombroso o mundo que se abre quando tiramos da sua frente a capa
89
¡Entonces todo es efectivamente tal cual lo aprendimos em la escuela! ¡Cuán superficial y débil
debió de ser en aquel tempo mi creencia en la verdad objetiva de lo escuchado, puesto que ahora
me asombra tanto! (FREUD, 1927: 25).
90
[...] de naturaleza enteramente subjetiva y tiene que ver con la particularidad del lugar (FREUD,
1927: 26).
238
objetiva e informativa que recobre a história e suas marcas e podemos experimentar
a sua existência.
É assim que para chegar a ler e escrever um texto, a criança terá que passar pela
vivência de experimentá-lo desde os primórdios de sua existência, não dando um
passo atrás, mas recuperando os traços de história que se fazem mostrar. A
experiência é necessária para engendrar a narrativa mítica da criança, mas não é só
na palavra que ela alcança a dimensão do Outro, mas necessariamente na prática
das experiências com o Outro.
239
4. TEXTUALIDADES – DA DERIVA À REPRESENTAÇÃO
O escritor João Ubaldo Ribeiro (1995), aos moldes de Graciliano Ramos, relatou
o período de sua vida em que estava às voltas com a alfabetização; mais ainda, com
sua aproximação da leitura. Em seu relato vemos, no capítulo ‘Memória de livros’,
como teve mais sorte que seu companheiro de escrita, uma vez que sua infância foi
repleta de livros e leitores, em ambiente em que todos eram incentivados a se
apropriar dos universos esboçados nas milhares de páginas distribuídas pela casa.
Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que
ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no
banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar
tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade,
se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu
inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de
que entendia nelas o que inventara (RIBEIRO, 1995: 37).
Ao voltar de suas primeiras aulas de alfabetização, aos seis anos, o pai lhe deu
alguns livros para ler, na esperança de que fossem suficientes para início de
conversa:
Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes
cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número
estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a
todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril, às vezes
chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer
porque não me deixavam ler à mesa – e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse
a meu pai que eu estava maluco (RIBEIRO, 1995: 38).
240
Reproduzo aqui esta passagem mágica e ressofrida de Graciliano, pois nela
vamos encontrar elementos para pensar sobre aqueles alunos que nos bancos
escolares arrastam por anos suas dificuldades de leitura e escrita.
O pai de Graciliano tentara instruí-lo na leitura e escrita, mas fazia-o sob a mira
do côvado e de muitos gritos, que o deixavam completamente nauseado e
paralisado. Dias a fio sob a tortura das letras causaram na criança verdadeiro horror
por aprender a ler e escrever. Certa noite, inesperadamente, o pai de Graciliano
mandou que pegasse um livro e o lesse. Desorientado com a ordem, leu
sofregamente mas, surpreendentemente, ao invés de ouvir gritos do genitor, ouviu-
lhe explicações sobre a narrativa e sobre as palavras que para ele não tinham
sentido. Assim, abrandada a sua tensão, pode admirar-se com o enredo. Graciliano
‘animou-se a parolar’: Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas era difícil
conhecer tudo [...] Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar o sentido da
prosa confusa, aventurando-me, às vezes a inquirir. E uma luzinha quase imperceptível
surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito (RAMOS,
1945: 207). Tomado de encantamento pelos mistérios da prosa, não conseguiu se
livrar dos personagens e da curiosidade pelo desenrolar da história, só sossegando
quando pode repetir a experiência nos dois dias consecutivos:
E no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me [o pai] com
um gesto, carrancudo.
Nunca experimentei decepção tão grande. Era como se tivesse descoberto uma coisa
muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos,
depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio
foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza de
que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar (RAMOS,
1945: 208).
Assim podemos ver que a recepção à leitura toma caminhos tão diversos entre
os sujeitos: para uns mais fáceis do que para outros. Entretanto, também
vislumbramos que para além das dificuldades, a magia do texto pode se descortinar
para todos, mesmo para aqueles que experimentaram um dia a sua repulsa. Mas nos
dois casos é preciso que alguém dê referências significativas que despertem o
encantamento infantil; há sempre o momento em que alguém tem que autorizar a
prática da leitura – como, aliás, qualquer prática infantil. A grande questão é passar
241
a barreira da aversão quando ela se pôs primeiro. Por onde ultrapassá-la? Com
Graciliano vimos que o pai, depois de ter desistido dele, depois de tê-lo atraído
novamente para junto dos livros, mais uma vez abandona-o à própria sorte.
Entretanto esta segunda deixada já criara no menino o interesse pelas narrativas
escritas e esta foi a sua salvação. Foi Emília, a prima ‘linda moça’ quem lhe apontou
o definitivo caminho da fascinação:
Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no
céu, percebiam tudo quanto há no céu. Não no céu onde moram Deus Nosso Senhor e a
Virgem Maria. Esse ninguém tinha visto. Mas o outro, o que fica por baixo, o do sol, da
lua e das estrelas, os astrônomos conheciam perfeitamente. Ora, se eles enxergavam
coisas tão distantes, por que não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos
meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras? (RAMOS,
1945: 209).
Matutei na lembrança de Emília. Eu, os astrônomos, que doidice! Ler as coisas do céu,
quem havia de supor? E tomei coragem, fui esconder-me no quintal, como os lobos, o
homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as
folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os
pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a
inteligência espessa. Vagarosamente.
Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria o segredo do céu.
Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos,
mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes (RAMOS, 1945: 209-
210).
242
avizinhadas do lugar de João Ubaldo ou de Graciliano, mas como vimos no Capítulo
1, sabemos que não estão, e mais, sabemos que boa parte da população nunca esteve.
91
Vimos no Capítulo 3 como d. Maria se relaciona com o saber e com a instrução de Graciliano
Ramos e acolhe suas dificuldades. De João Ubaldo Ribeiro temos também um rápido depoimento do
que se passou com ele aos seis anos. Diz o pai: – D. Gilete – disse ele, apresentando-me a senhora de
cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo –, este rapaz já está um homem e ainda não
sabe ler. Aplique as regras (RIBEIRO, 1995: 38). D. Gilete nunca precisou aplicar as regras, isto é,
nunca usou a palmatória com João Ubaldo, porque este facilmente aprendeu a ler.
243
pelos professores e pelos pais? Não nos aventuramos aqui a responder a estas
indagações em larga escala, uma vez que esta pesquisa está circunscrita por dados
de três instituições escolares (e mais profundamente de uma), mas pensamos a
partir de encontros científicos e discussões acadêmicas, e do material didático do
PNLD da EA-FEUSP, conteúdos que exporemos e discutiremos ao longo deste
capítulo, cotejando-os com dados empíricos da pesquisa proporcionada pelo
PROJETO “DESAFIOS”.
92
II Encontro sobre a Linguagem da Criança: Sentido, Corpo e Discurso e I Colóquio sobre
Alfabetização do Núcleo de Ensino de Araraquara, realizado pela Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista, em Araraquara, no mês de novembro 2012.
93
Esta mesa de debates intitulada ‘Diálogos sobre alfabetização I: O projeto Bolsa-Alfabetização’
contou com a participação de Roseli Aparecida Parizzi (UNESP/FLCAr), Marisa Garcia (FDE) e Sandra
Dourado (Diretora de Ensino do Estado de São Paulo, região de Araraquara).
244
considerado um segundo professor em sala, mas ‘aluno-pesquisador’, cujas
atribuições são: apresentar o material do Projeto Ler e Escrever aos alunos
da EFI; fazer investigação didática (registro e aprofundamento da didática
de sala de aula e não a mera observação do professor regente), cujo objetivo
é o conhecimento sobre a natureza da função docente no processo de
alfabetização; dar apoio ao professor da sala de aula, atendendo aos alunos
com menores dificuldades de aprendizagem e assim deixando o professor
regente no atendimento daqueles com maiores dificuldades; conhecer as
situações didáticas e as hipóteses de conhecimento dos alunos em
alfabetização; promover a interação destes alunos com o desenvolvimento,
por meio das leituras de textos teóricos e das análises dos registros do
material de campo. Como a concepção do projeto é Construtivista, o aluno-
pesquisador também deve levantar hipóteses sobre seu conhecimento para
poder construí-lo.
Sobre estes tópicos temos a considerar três coisas. A primeira é que de fato a
atuação diária em classe oferece uma perspectiva única da dinâmica da aula,
desvelando as dificuldades e facilidades cotidianas enfrentadas pelo professor
regente. Estágios que se propõem à visitação dos graduandos por duas ou três horas
semanais em sala de aula do ciclo básico não oferecem a verdadeira dimensão do
que é o trabalho de professor do EFI. Esta constatação também é nossa, a partir das
atividades desenvolvidas no PROJETO “DESAFIOS”.
Durante dois anos da pesquisa estive presente em sala de aula de 1º. Ano do EFI,
mas de formas distintas: no primeiro de forma mais fragmentada, acompanhando
parte do dia letivo, de três a quatro vezes por semana, mas de modo a raramente
estar presente todo o dia letivo. Já no segundo ano da pesquisa estive presente três
dias letivos inteiros, sendo dois dias seguidos na semana. Efetivamente, a análise
que faço é de que foram duas visões completamente distintas uma da outra, com
relação à demanda de trabalho do professor. Só a presença constante em classe deu
a real grandeza do que é a dinâmica de aula, de como as atividades programadas são,
ou não, possíveis de acontecerem, de como a atenção a um ou outro aluno cabe no
dia letivo, de como as demandas dos alunos fazem pender as aulas para um ou outro
conteúdo programado, ou como a demanda de um único aluno pode interromper o
245
fluxo de aula, levando-a a rumos completamente inesperados. Enfim, acompanhar
uma atividade didática esporadicamente é em tudo diverso de estar presente
ativamente em sala de aula, durante um ano letivo, especialmente se este
acompanhamento se restringe à observação do que faz o professor. Ver e fazer, neste
sentido, são acontecimentos totalmente opostos, ainda que tanto no primeiro,
quanto no segundo ano da pesquisa, as discussões sobre o andamento das
atividades, aproveitamento pedagógico dos alunos e elaborações dos materiais
didáticos tenham acontecido sempre em conjunto entre o professor regente e o
segundo professor – no caso, os bolsistas pesquisadores do PROJETO “DESAFIOS”.
246
Dada a esquiva dos membros da mesa em debater assunto tão sério, foi
inevitável que nos colocássemos na via de pensá-lo. O que denota tal atitude dos
professores de delegar a seus bolsistas tarefas mais árduas?
Para começarmos a pensar sobre este assunto, vejamos como se deu o debate
na segunda apresentação que destacamos. O primeiro alerta que fazemos é que, em
se tratando de um mesa de Comunicação, os palestrantes eram em sua maioria
estudantes de graduação e bolsistas do programa Bolsa-Alfabetização; o segundo
alerta é que na plateia estava uma das coordenadoras do Programa Bolsa-
Alfabetização, defensora do Construtivismo e do projeto Ler e Escrever. Foram três
os trabalhos apresentados.
94
Ver nota 30 do Capítulo 1 desta tese.
95
Adiante neste mesmo capítulo trataremos de outros entraves à ação do professor, a partir das
análises que Dufour faz da sociedade.
96
Juliana Ferreira – Análise sobre o impacto do Bolsa Alfabetização na formação de licenciados da
FCL/UNESP/Araraquara.
247
com maior dificuldade de aprendizagem? Novamente a discussão não se estendeu,
primeiro porque a apresentadora constrangeu-se em responder (provavelmente
por que estava diante da coordenadora do programa) e resumiu a situação em uma
frase: ‘Foi difícil’; e segundo, porque a própria coordenadora adiantou-se para dizer
que este assunto estava sendo debatido no âmbito da direção do programa.
Analisamos aqui a insistência na esquiva diante do problema, inclusive porque
levando a discussão a esferas mais altas de poder, destrói-se um dos pressupostos
do Construtivismo – e que também subsidiam o programa Bolsa-Alfabetização – que
é a construção do conhecimento, também por parte de professores e alunos
bolsistas.
Além da rotina cotidiana, o AP [aluno pesquisador], como o próprio nome diz, faz
uma pesquisa de natureza didática na sala de aula em que está atuando, para
acompanhar o avanço dos alunos na leitura e na escrita. Orientado pelo respectivo
professor orientador (PO) da Instituição de Ensino Superior onde estuda, ele
observa e registra as atividades didáticas desenvolvidas em sala de aula,
aprofundando esses procedimentos com estudos sobre os temas desenvolvidos.
Essa investigação feita pelos alunos em sala de aula conta com a supervisão da Profª
Delia Lerner, docente da Universidade de Buenos Aires.
97
http://lereescrever.fde.sp.gov.br/SysPublic/InternaBolsaAlfabetizacao
248
da didática das aulas, embora tenham estabelecido uma rotina diária de convivência
e prática. A frase ‘Foi difícil’, sem complementos, parece expressar esta realidade.
98
Francine Veríssimo e Verônica Leonardo – A seleção de textos para a alfabetização e os interesses
das crianças.
249
algumas perguntas: 1) É correto usar textos para alfabetizar o aluno? 2) Quais os
critérios usados na escolha dos textos para alfabetização? 3) De onde são extraídos
estes textos? 4) Como os textos são usados na alfabetização?
250
1) de responsabilidade da direção do projeto ‘Ler e Escrever’, pretendendo
generalizar a escolha de textos para todas as salas de aula, sem conhecer a realidade
de seus alunos; 2) de responsabilidade dos professores que, ao constatarem este
engano, não fazem esforço para superá-lo.
Podemos verificar nas falas dos professores captadas pela referida pesquisa,
mais uma vez aquilo que Pêcheux (1975) identifica como alienação discursiva: de
um lado a cartilha não serve mais à alfabetização, mas este material de apoio, mesmo
defasado, sim. Nos perguntamos então, qual a diferença? A diferença não está na
prática, mas na adoção de um outro discurso igualmente instituído: antes o ensino
tradicional, e agora uma apropriação do Construtivismo que diz que tudo o que vem
das práticas anteriores não serve à alfabetização, ainda que sejam mesmas práticas.
A diferença que observamos está na disseminação ou retenção do discurso de poder.
Antes as cartilhas eram várias e derivavam de diferentes autorias, e cada autor
defendia o seu modo de conceber e praticar a alfabetização – palavração, silabação,
etc. O embate se dava de escola a escola, de professor a professor, na adoção de um
ou outro discurso, mas nesta diversidade analisamos que há possibilidade de
debate. Os métodos de agora giram todos em volta de um só discurso – um certo
modo de conceber o Construtivismo – que rege todos eles; as exceções são dadas
pelas chamadas ‘escolas alternativas’ que adotam pensamentos e práticas
totalmente diversas, mas isolam-se em ilhas de ensino99.
99
Figuram aí as escolas de método Waldorf, ente outros.
251
professores, estudantes e também pesquisadores brasileiros, que são
constantemente sub relevados em nome de uma teoria estabelecida que se coloca
como absoluta há pelo menos duas décadas. Um dos pressupostos do
Construtivismo é a elaboração, pelos próprios sujeitos, de seu processo de
conhecimento, mas o modo como é praticado no Brasil fecha os olhos a isto e abre
mão de experiências próximas, acreditando que o fazer/pensar do Outro responde
melhor às nossas necessidades.
Desde nosso ponto de vista, como vimos no Capítulo 3, o uso de textos para o
letramento não é uma questão de correção ou adequação, mas de condição
necessária. É impossível formar leitores e escritores ativos sem subsídio daquilo que
lhes dá suporte. O ‘desútil’ a que nos referíamos anteriormente brinca com a
linguagem e interessa pouco aos tratos objetivos e pragmáticos da língua, mas
interessa muito aos sujeitos que lhe prestam cuidados. Aqui, na prática pedagógica
como se institui, parece que o desútil é o trabalho com o texto pois ‘para que a leitura
sirva a se gostar de ler’ é preciso usá-la, experimentá-la, trabalhá-la, tomar certo
tempo com ela. O gesto significante, aquele que chama a atenção para uma ou outra
nuance do texto é necessário para que ele se configure como objeto a ser desejado.
252
vejamos uma situação parecida com a dos professores, no recorte de uma das
entrevistas por mim realizada com familiares de alunos:
Vemos aqui neste relato a clareza do pai com relação a uma boa contação de
história – não só ler, como também inventar, divertir, envolver-se junto com a
criança pelos meandros do texto. Mas percebemos também que a ausência desta
prática turva a noção do tempo: uma hora, uma hora e meia é muito tempo! Quinze,
vinte minutos, meia hora são suficientes para uma boa história; mas só contando-as
para saber... Talvez este também seja o caso do professor que reconhece que o texto
é importante para alfabetizar uma criança, mas não tem referências de como isto
pode ser feito. Quiçá falta-lhe instrumentalização prática. No caso do pai e do
professor estamos no campo da alienação, na crença do impossível imaginado, mas
consagrado.
Bem diferente é o que se estabelece como discurso de poder que apregoa o texto
pelo texto. Estabelece-se aqui diferença radical quanto ao que se entende por
letramento e a forma como ele se dá pelos textos. Retomando nossa posição,
acreditamos que o professor tem que se expressar desde o seu desejo para que o
aluno aprenda, como bem aponta aquele pai: mostrar o que se quer com a narrativa.
Isto é, ao tomar o material-texto nas mãos, não se pode recuar frente ao desejo de
usá-lo! Quando o professor considera este objeto-texto como algo precioso e
importante, já começa a fazer brilhar os olhos de seus alunos, que no gesto do mestre
identificam um mistério primeiro a ser investigado: do que este professor tanto
gosta no livro? Se o professor não é / não pode ser ativo com o material que quer
transmitir, é porque se espera que a relação se dê diretamente entre a criança-aluno
e o objeto de conhecimento (texto). Aí o professor não é um intermediador, mas um
mediador – posição que, como identificamos no Capítulo 2, é adotada pelo
Construtivismo, já em seus primórdios. Como vimos no caso de Graciliano Ramos,
253
faz toda diferença o texto ser apresentado à criança em seus meandros poéticos e
não só em sua função pragmática social.
100
Lucas Henrique da Silva, Maria Caroline Aparecida Portero e Patrícia Fernanda de Souza –
Alfabetizando: o interesse dos alunos pela leitura feita pela professora.
101
A pesquisa ‘Alfabetizando: o interesse dos alunos pela leitura feita pela professora’ apontou que
praticamente só os alunos ‘alfabéticos’ têm interesse pela leitura; as crianças ‘não alfabéticas’
manuseiam livros mas ao não conseguir entendê-los, abandonam a atividade.
254
elaborados, sentidos, reagidos. Elas não conclamam grandes atores, mas alguém que
retire os personagens do papel e faça-os ressoar por outras vozes. Apontamos que
uma diferença fundamental a este respeito estabelece-se entre o ato de ler e o de
contar uma história memorizada.
Neste sentido, não basta só um bom texto! É preciso saber contar o enredo,
saber cativar a criança com os significantes das palavras e dos gestos. Enfim, é
preciso saber transmitir o texto.
Identificamos tanto neste material didático, quanto nos relatos das pesquisas a
que nos referimos acima e nos dados oficias sobre as habilidades leitoras elencados
na Introdução desta tese, que a experiência com o texto é uma prática que tende a
255
desuso. Não por falta de interesse, como apontam as próprias crianças, mas pela
falta de prática ou de incentivo significante dos adultos junto a elas.
Mas, como veremos a seguir, este desinteresse não surgiu agora. Ele tem uma
história que vem se marcando progressiva e paulatinamente: a história dos
narradores e das experiências com as narrativas.
Benjamim identifica o narrador como sendo aquele que traz de longe, de outras
terras, diferentes experiências culturais e que, ao mesmo tempo, recolhe de seu
lugar de origem as histórias tradicionais, operando um intercâmbio entre estes dois
acontecimentos.
256
Aqui estou, então: no fundo do poço. Quando a necessidade aperta, aprende-se em
breve a apagar da nossa mente o passado e o futuro. Quinze dias depois da chegada, já
tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que
faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nosso corpo. [...] alguns de nós
têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro
dias, custamos a reconhecer-nos. [...] Resolvemos encontrar-nos, nós italianos, cada
domingo à noite, num canto do Campo, mas paramos logo com isso; era triste demais
contar-nos, encontrar-nos cada vez em menor número, cada vez mais disformes,
esquálidos. E custava caminhar até lá, por perto que fosse; e, ainda, encontrando-nos,
aconteceria de lembrar, pensar ... melhor não (LEVI, 1958: 35).
Sou consciente dos defeitos estruturais do livro e peço desculpas por eles. Se não de
fato, pelo menos como intenção e concepção o livro nasceu nos dias do Campo. A
necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre
nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de
competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa
necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí seu
caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por
ordem de urgência (LEVI, 1958: 7-8).
257
colocamos que o traçado da memória está cada vez mais fino e apagado, ou que o
texto não é mais tão importante?
Diz o autor que para poder narrar e aconselhar é necessário saber fazê-los
verbalizando uma situação e sendo receptivo às sugestões alheias: O conselho tecido
na substância viva da existência tem um nome: sabedoria, [...] o lado épico da verdade
(BENJAMIM, 1936: 200-201). A narrativa decorre [...] da tradição oral, patrimônio da
poesia épica (idem: 201) e da experiência do narrador que relata aos ouvintes e que
também incorpora às suas narrativas o que ouve. Arriscamos dizer, então, que a
narrativa como coloca Benjamim, é o que aproxima os textos e a memória sócio
históricos daqueles subjetivos.
Podemos pensar que o narrador, para Benjamim, não é mais o rapsodo da Era
Clássica a que nos referimos no Capítulo 3, que presentificava memoravelmente
sempre o mesmo enredo mítico de inspiração divina, como forma de perpetuar a
tradição e as leis do povo, mas é aquele que tem uma experiência vivida
subjetivamente a ser transmitida. Podemos pensar, então, com relação à
alfabetização, que traços dessas experiências com a narrativa e com os textos têm se
apagado. Isto é o que parece evidenciar a atitude do professor que sabe ler, mas que
não vai adiante do texto lido – falta-lhe a experiência do narrador de Benjamim e
falta-lhe a experiência performática narrativa dos aedos; sobra-lhe o texto puro.
258
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as
histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto conta história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido (BENJAMIM, 1936: 205).
O bom narrador é aquele que também sabe escutar. É aquele que se arrisca um
tanto no lugar do Outro, de onde vem as vozes que lhe dizem algo; é aquele que crê
no que ouve com um ouvido e que abre o outro a suas próprias vozes. O bom
narrador/ouvinte é aquele que se divide, que se posiciona Subjetivamente ‘entre’ e
assim estabelece laço do distante ao próximo, da sua experiência com a do outro.
Também, contar uma história ou um causo enquanto se faz outra coisa, é bem
diferente de contar o que está sendo feito. Benjamim põe em paralelo dois
acontecimentos que configuram a narrativa: fazer alguma coisa e
concomitantemente esquecer-se de si no fluxo narrativo.
Esta experiência ‘entre’ está elidida da leitura, quando a única coisa que se tem
que fazer é abrir uma brochura em que estão dispostos textos que outros
escolheram e ler um deles, mesmo que sejam ‘inadequados’. Pensamos diferente,
pois a própria escolha do texto que será lido, contado ou declamado, deve ser
antecedida de trabalho experimentado, quando o que está em jogo é a Subjetividade
do professor e de cada aluno.
259
Vejamos um dado extraído do PROJETO “DESAFIOS”. Havia em uma sala de 1º.
Ano EFI um aluno que chamaremos VI, que apresentava problemas para
acompanhar as aulas. Desde o início do ano debatia-se com as letras para escrever
e ler, mas alcançou progressos até o final do primeiro semestre (passou de ‘pré-
silábico’ a ‘silábico’, no jargão Construtivista). Poderíamos parar nossa preleção aí,
uma vez que no processo de aquisição de escrita de VI estava dentro do esperado
para os padrões estabelecidos para uma classe de 1º. Ano.
Junto com o professor regente, pensávamos por quais vias podíamos tentar
ajudá-lo e assim fizemos atendimentos individuais de jogos, de leitura e escrita,
contação de história em pequenos grupos, mas os efeitos conseguidos eram
momentâneos e sempre retornava a seu padrão comportamental. O incômodo
verdadeiro com relação à sua postura, no entanto, aconteceu no dia em que, tendo
sido recusado pelos companheiros de jogo a brincar de bandido e mocinho, VI
começou a chorar muito. A cena chamou a atenção de todos e precisava de uma
solução para além dos comandos óbvios: ‘não precisa chorar...’, ‘brinque de outra
coisa...’.
Um dia, buscando um poema para trabalhar com outra criança, deparei-me com
este de Cecília Meireles:
O violão e o vilão
260
Havia a viola da vida.
A viola e o violão.
O violão duvidava
da vida, da viola dela.
Foi inevitável relacioná-lo a VI, não só pela associação bandido/vilão, mas pelas
insinuações a seu nome: VI. Ocorreu-me que não custava tentar alguma coisa por ali
– ainda que fosse só mais uma tentativa. Fiz três cópias do poema e levei-as para sala
de aula. Chamei VI e seus dois companheiros de brincadeira para uma atividade
‘secreta e misteriosa’. Sentamos em um canto da sala e contei-lhes que achara um
texto secreto sobre vilões. A curiosidade já se aguçava nos olhos dos três; mostrei-
lhes as folhas com o poema e perguntei se poderiam ajudar-me a entendê-lo.
Imediatamente os dois companheiros puseram-se a ler o poema, enquanto VI, sem
podê-lo, perguntava-me coisas:
– É sobre bandido?
– Muito pior que isto! O vilão é um bandido muito, muito mais poderoso!
– Eu quero saber!
261
– O que mais ele levou?
(‘Ainda’ já era o prenúncio de uma boa coisa. Desejo de ler, portanto, havia).
– Eu te ajudo a ler. Eu leio e você faz um esforço para me acompanhar como quiser.
– Pode.
Em conjunto os três alunos resolveram que leriam o poema para o resto da sala,
mas ainda havia o problema de VI não saber ler. Então sugeri que ele decorasse o
texto. E assim fizemos – ele fez! –: recitei-lhe o poema algumas vezes mais, que ele
repetia em seguida; levou a folha para casa e pediu que o pai o ajudasse. Uma semana
depois ele e os amigos, orgulhosamente, mostraram à classe o trabalho feito. Não foi
de longe uma super declamação/leitura, mas foi um momento importantíssimo para
aquele menino que antes se escondia entre choros e socos, e agora compartilhava
outra identidade sua.
Espontaneamente VI disse que queria escrever ‘todas aquelas palavras’ mas não
sabia como; sugeri que as copiasse, então ele escreveu em uma folha todas as
palavras do poema que começavam com ‘vi’ e conservou-a na sua mochila junto com
o poema. Às vezes vinha falar sobre aquelas palavras.
262
experiências Subjetivas, nos deparamos exatamente com o que há de singular
naquilo que facilita ou dificulta sua aprendizagem. No entanto, chegar aos meandros
do encontro com esta Subjetividade não é nem simples, nem previsível: é preciso
olharmos também para nossa experiência nesta relação. É sempre uma aposta! – já
havíamos tentado outras com VI. Foi só quando nos incomodamos com a insistência
do choro/bandidagem e não soubemos realmente o que fazer com isto, é que
pudemos enxergar seu movimento Subjetivo. Ou seja, foi quando conseguimos usar
seu modo Subjetivo de se colocar, sem ignorá-lo (o bandido tomado de outro modo)
é que pudemos oferecer-lhe algo diferente, uma diversidade com critério estético e
que permitiu à criança experienciar por dentro da linguagem e fora do corpo.
263
Figura 12: Excerto da página 84 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
264
forma como é proposta no papel destaca com seriedade a leitura e a escrita gráficas
e esquece-se da seriedade da memorização, do trabalho mental, da leitura subjetiva
e da brincadeira que supõe um desafio. Como expressa Belintane a este respeito:
A leitura inferencial – a única que de fato interessa – tem na adivinha uma matriz e um
modo de posicionamento subjetivo dos mais caros e importantes para o ensino de
leitura. Infelizmente, sua inserção na prática se dá sem o menor cuidado. Em geral, é
tratada sem levar em conta seu aspecto performático, apenas como escrita. A voz de
esfinge que tira da memória uma adivinha e a atitude do adivinhador que a põe na
memória para analisar suas ciladas linguísticas em geral não são levadas em conta. Mas,
concluindo esse tópico: a adivinha é uma arma contra o mundo parafrástico cotidiano
(BELINTANE, 2011: 178).
265
Quando o foco central desta experiência fica limitado à escrita e leitura gráficas,
os espaços da dúvida e do não saber ficam contidos e delimitados pelas bordas do
papel (especialmente se a resposta também está aí presente), das quais o alunos mal
pode levantar os olhos sem o prejuízo de perder algum acontecimento importante.
Para qualquer confusão de registro gráfico, de leitura ou pensamento, a palavra
‘hipótese’ vem socorrer: a hipótese é o nome para aquilo que ainda não está correto.
Também sobre a experiência com adivinhas em sala de aula, temos o que falar.
Na pesquisa empreendida pelo PROJETO “DESAFIOS” lançamos mão do jogo de
adivinhas com os alunos. Inicialmente propusemos uma ou outra para toda sala;
depois pedindo que os alunos investigassem com seus familiares o repertório
caseiro de adivinhas; em seguida, solicitamos que memorizassem as adivinhas para
desafiar os colegas; e por fim, que escrevessem algumas adivinhas. O ápice da
atividade era a competição de adivinhas, em que a sala era dividida em grupos que
se desafiavam mutuamente. Vale ressaltar que também os professores se colocavam
no desafio de memorizar e responder adivinhas.
Outro desafio proposto a partir deste tema, foi de os alunos criarem as suas
adivinhas. Esta certamente foi a tarefa mais difícil, uma vez que todos partiam de
frases descritivas como ‘O que é o que é, que é branco por dentro e amarelo por fora
e que macaco gosta? (banana)’, ou de um enigma pessoal, sem relevo metafórico
como ‘O que é o que é, eu comprei ontem, começa com L, termina com O e não é de
comer? (livro)’.
266
Ambas apresentavam dificuldades com leitura e concentração e durante um dos
atendimentos em dupla propus a seguinte adivinha:
É varinha de condão
Aluna 1 (de memória) – ‘A varinha que toca na caixinha faz luz na escuridão’.
Aluna 2 (lendo) – ‘É varinha de condão; quando bate na caixinha; faz luz na escuridão’.
Respostas dos alunos: ‘Lanterna’, ‘Vara’, ‘Luz’, ‘Lápis’, ‘O dedo quando encosta no
interruptor’, ‘É o palito de fósforo’ (a resposta certa).
267
Diante de possibilidades tão diversas de efeitos das adivinhas sobre as crianças,
julgamos muito pobre, além de equivocada, a proposta de trabalho do material
didático do PNLD da EA-FEUSP com relação a este tema.
Outro ponto que nos chamou a atenção ao longo deste material didático que
analisamos, foi a quantidade de orientações dadas a professores e alunos, deixando
pouco espaço para a divagação ou exploração de outros conhecimentos, ou modos
de conhecer. Assim como também nos impressionou a opção privilegiada por textos
do tipo revisados, sintéticos, de linguagem simplificada.
102
Retomo aqui considerações já estabelecidas na dissertação de mestrado, BATTAGLIA, 2001.
268
para conhecer verdadeiramente a realidade; desta forma, poderia, ao mesmo tempo,
saber sobre si e sobre as coisas do mundo. Partiu do princípio de que muitas vezes
(ainda que não sempre) o homem se enganava com suas próprias sensações
corporais (táteis, auditivas, etc.), portanto era preciso estabelecer um método que
fosse universal, aplicável a tudo e por todos, e que dissipasse as dívidas vindas do
corpo: o método matemático103.
103
Este método cartesiano estava disposto em quatro regras fundamentais: a evidência (ato racional
em que, na mente atenta, não paire nenhuma dúvida acerca do pensamento); a análise (divisão do
problema na menor parte essencial possível e necessária para ser resolvido); a síntese (condução do
pensamento por ordem, a partir do objeto mais simples e fácil de conhecer) e finalmente a
enumeração (controle da disposição de todos os elementos).
269
pela imaginação104, é o que poderia levar a confusões e conclusões falsas a respeito
das coisas. Neste ponto o pensador retorna ao divino: Deus é bondoso e não se
compraz de enganar os homens; se sei que penso e que o pensamento existe (e nele
o ‘eu’), é porque o Ser Supremo deu este dom aos homens para que dissipassem as
imprecisões naturais de seu pensamento.
É esta consideração final que justifica termos ido tão longe na história do
pensamento em busca de subsídios para esta tese. Analisamos que esta partição da
essência humana, que prioriza a razão no campo da inteligência, é o que dá suporte
aos vieses pragmáticos do ensino contemporâneo, mais objetivo, pragmático e
informativo, desconsiderando o que é próprio das errâncias do Sujeito, de sua
linguagem e memória. É um pensamento que justifica, desde a alfabetização, a
priorização do ensino da compreensão formal dos elementos textuais e não o
contato com o texto e seus relevos estéticos, linguageiros. Este pragmatismo é que
104
Imaginação: faculdade que se utiliza de recursos figurativos (não de conceitos) e, diferente do
pensamento, tem alcance limitado. Como faculdade, não é, ela mesma, substância em si, mas extrai
sua ‘matéria-prima’ das coisas materiais (ABBAGNANO, 1992).
270
está presente na elaboração de materiais didáticos observados por nós tanto no
livro do PNLD da EA-FEUSP, quanto nos encontros científicos105 da área.
105
Refiro-me aqui, não só ao evento analisado anteriormente neste capítulo, como também ao
‘Seminário: Interação e Subjetividade no Ensino de Língua’ (II SISEL), ocorrido em Belém, em
setembro de 2011, no qual tive a oportunidade de assistir a inúmeras apresentações sobre o ensino
da língua priorizando as concepções de gênero de textuais desde as séries inicias da alfabetização.
271
transcendência antes presentes a partir de Deus ou pertencentes a Ele. É a razão que
faz superar o medo e o desconhecido; é ela que através da crítica e do conhecimento
não permite a aceitação incondicional das coisas como se apresentam. A garantia de
que a razão opere como verdade é a constante produção de críticas sobre si mesma.
A liberdade, autonomia e emancipação com relação a Deus expressam-se em termos
individuais e sociais e produzem-se na sua essência e existência. Na ótica do
Iluminismo todas as esferas de ação do Homem desfrutam da razão como meio de
concebê-las e compreendê-las.
Podemos pensar que é exatamente deste ponto em que a crítica deve ser auto
referida, que a modernidade contemporânea começou a declinar de seus preceitos.
Aos poucos a razão foi se dirigindo cada vez mais à compreensão e conhecimento de
elementos específicos do objeto, e os fundamentos dos pensamentos foram sendo
desvinculados de uma visão geral dos acontecimentos para atrelarem-se a seus
fragmentos, cujas causas e consequências encerram-se em si mesmas. Por exemplo,
retomando discussão sobre a medicalização excessiva de alunos, que apontamos no
Capítulo 1 desta tese, ao se tentar circunscrever as dificuldades de aprendizagem a
déficits orgânicos de cada sujeito, perde-se a dimensão das discussões sobre a
expropriação do saber pela escola, sobre a incidência mercadológica das indústrias
farmacêuticas, sobre a biologização do corpo humano, entre outras. Identificamos
que a circunscrição cada vez maior de objetos de conhecimento e ação, guiada
prioritariamente pela razão, turva a possibilidade de dimensionar os
acontecimentos humanos em sua essência e consequência.
272
reproduzido como simulacro do imortal – para Baudelaire só faz sentido se ele se
transpõe para a obra em si. É o compromisso do objeto com o novo e efêmero que
interessa a esta modernidade – oposto, pois, aos preceitos cartesianos.
106
‘Uma carniça’, poema escrito em 48 versos e 12 estrofes, da qual extraímos os versos de 9 a 16,
cuja tradução feita por Ivan Junqueira (1985) é: Ardia o sol naquela pútrida torpeza,/Como a cozê-la
em rubra pira,/E para o cêntuplo volver à Natureza/Tudo o que ali ela reunira;/E o céu olhava do alto
a esplêndida carcaça/Como uma flor a se entreabrir./O fedor era tal que sobre a relva
escassa/Chegaste quase a sucumbir.
273
memória. Esse processo de rememoração, entretanto, não deve ser uma exaltação
do passado e de seus modelos de eficácia, senão que deve ser um processo de
elaboração psíquica das errâncias e fissuras daquilo que do passado não foi
compreendido. Busca-se no novo comportamento moderno uma duração, uma
temporalidade fragmentária e fugidia, como permanente tentativa de conciliar o
eterno e o transitório.
Estes são pontos das considerações de Benjamim que nos interessam para
pensar a educação, em especial a alfabetização, pois vemos na condição faltosa e
evanescente do Homem a possibilidade da experiência que acontece ‘entre’
lembrança e esquecimento, eterno e temporário, passado e presente, todo e parte;
tradição e contemporaneidade. Apropriando-nos de sua concepção de alegoria e
também da análise que faz de Baudelaire, para nós os textos, as narrativas a serem
trabalhadas em sala de aula funcionam como a obra de arte para o artista: nada mais
é o retrato fiel da realidade, que precisa ser apreendida pela experiência cotidiana
de reconstituição do efêmero, do corruptível, do que faz interstício e interroga o
sujeito. A partir da falta implicada em qualquer sujeito e revelada nos processos de
aprendizagem, o trabalho Subjetivo tratará de reconstituir a memória e constituir
estratégias que envolvam habilidades leitoras e de escrita, enredando os textos (e
os Textos).
274
Para Benjamim a produção de aberturas necessárias à alegoria aponta que é
possível pensar em novas subjetividades, pois aquilo que se mostra tem sua
significação sempre em outro lugar – e, diríamos, em Outro lugar. O mesmo se dá
com as relações institucionais e em todas as relações humanas. Significante e
significado não mais se amalgamam e a alegoria não acolhe os significados originais
aparentes, mas trabalha na diversidade. O símbolo eterno e estanque não se
sustenta mais. Abre-se espaço para a temporalidade da memória, para a realização
entre o latente e o mostrado.
275
passado e foram sendo incorporadas pelo cotidiano moderno, até deixarem de
significar o impacto do novo e do diferente – o ponto de perigo ao qual convergimos
hoje – da mesma forma, que as utopias revolucionárias deixaram de ser acreditadas.
A negatividade e a criticidade incluíram-se no coloquial, mas sem fundamento,
diluídas na pura oposição ao antigo, tomado como sinônimo de atrasado. A
racionalidade moderna incorporou aqueles descaminhos vanguardistas,
reformatando-os, reproduzindo-os e abrandando os efeitos do questionamento,
para ficar só com o rechaço ao passado/antigo/obsoleto.
Com o fim da eficácia das vanguardas, aquilo que choca está em suspensão e a
criticidade deixa de ser pensada. Agora ela é agida.
Talvez um dos extremos a que podemos nos referir neste sentido seja o
acontecimento em torno do livro de contos escrito por Moacir Scliar, intitulado ‘Max
e os Felinos’ (1981), cuja principal história é de um homem que, fugindo da
Alemanha nazista, vem para o Brasil, mas vê seu navio afundado e é obrigado a
sobreviver em um bote com um jaguar (também sobrevivente do naufrágio). Vinte
e um anos depois de Scliar ter escrito seu conto, um indivíduo canadense publicou
um livro com o mesmo conteúdo, alterando a nacionalidade do personagem, seu país
de destino e o felino sobre o bote. Cópia clara para muitos, Scliar declinou de
processar o sujeito por não considerar o roubo da ideia um plágio (diferente seria,
para ele, se tivesse havido cópia literal do texto).
276
Mas a questão que queremos retomar, a partir de fala do próprio Scliar, é sobre
os posicionamentos diferentes frente ao texto. Diz o canadense que copiou a ideia
que ele nem leu o texto original, que simplesmente se baseou em uma resenha e
recolheu dela ‘uma boa ideia, estragada por um mal escritor brasileiro107’. Quem lê
a versão do texto ou vê o filme nele baseado108, depara-se com uma narrativa cheia
de explicações sobre porque os fatos aconteceram e se sucederam, que não deixa
dúvidas de que entre animal e homem estabeleceu-se certa harmonia de
convivência. O que Scliar esclarece em entrevista dada à Editora L&PM, é que:
‘Max e os felinos’ é um livro político, escrito durante a ditadura. Na verdade, Max, diante
do jaguar, é o símbolo de como a gente se sentia diante da ditadura. Ou seja, nós
estávamos diante de uma fera, de uma realidade feroz, que nós não entendíamos, que
não queria ser entendida e que a qualquer momento poderia usar da violência contra a
intelectualidade brasileira, como de fato foi usada 109.
107
Fala referida por Scliar ao plagiador, em entrevista dada à Editora L&PM, disponível no site:
http://www.youtube.com/watch?v=jIQitu5oYWw (acesso em 30/07/2013).
108
‘As aventuras de Pi’ produção cinematográfica norte americana dirigida por Ang Lee (2012).
109
Scliar, entrevista à Editora L&PM.
277
a hiperatividade, a desatenção, o pânico, a drogadição e a agressão. De um lado o
Iluminismo pregava o modo de se pensar a felicidade e a liberdade sobre a Terra; de
outro, o desenvolvimento de hoje que se encaminha exatamente para a liberdade,
também impulsiona à destruição do meio e da essência humana que é lidar com a
falta. O progresso e a vaidade humanas possibilitam que tudo seja mexido, mas sem
a devida atenção às consequências disso.
278
incoerência, mistério e indefinição que a mítica comporta; eliminam-se as
incongruências humanas e o seu elemento essencial – a falta – sentida, doída e
muitas vezes insuportável.
Em parte concordamos com esta visão, que será radicalizada por Dany-Robert
Dufour, como veremos mais adiante. Mas também em parte não nos deixamos levar
por análise tão abissal, uma vez que identificamos interstícios nos acontecimentos
sociais que apontam ainda para a intromissão das questões humanas pautadas pela
linguagem e sua constituição psíquica.
Retornemos à educação.
110
Por exemplo, ‘Tróia’ de 2004, dirigido por Wolfgang Petersen, ou ‘Guerra nas Estrelas’, uma saga
em seis episódios dirigidos por George Lucas, cujo lançamento em 1977 deu início à primeira trilogia,
e nos anos 2000 à segunda trilogia.
111
Entre outros, podemos citar as versões em videogames dos mesmos filmes citados acima: Tróia e
Guerra nas Estrelas.
279
4.3.1. VOCÊ PRECISA, LOGO VENDO
Ora, mas a exigência da memória que visamos é outra. Ela exige um material
fluido, entrecortado, atemporal, como qualquer formação do inconsciente. E que
possibilidades aquele modo categorizado de lidar com as narrativas podem oferecer
à criança que está às voltas consigo e suas representações? A repetição da qual a
criança precisa é do afluxo de palavras (de muitas palavras) e não das mesmas
280
palavras. Ela precisa de palavras que digam outras coisas, de outras maneiras e que
acrescentem significações que façam movimentar em diferentes sentidos. Ela
precisa de variedade para poder fazer o jogo intertextual e circular de uma
representação a outra. Ela precisa de material que ponha sua memória para laborar,
que enlace significados novos para ela.
O corpo infantil e o mundo são ainda misteriosos para a criança e ela precisa
trabalhar sobre eles por meio de outras leituras. As mesmas leituras são aquelas que
a prendem novamente ao Outro, ao saber que dela se tem e não a seu saber – isso
seria uma espécie de retorno ao transitivismo infantil. A criança precisa de algo que
fale do mistério, do inapreensível, do efêmero que seu corpo comporta e dos
significantes que possam resgatá-lo, mas também diferenciá-lo do outro.
281
a um terceiro lugar que unifica o sacrifício de todos e referencia as experiências.
Analisa Dufour (2003) que do ponto de vista político este Outro varia de sociedade
a sociedade – é o Rei para a monarquia, Deus para o monoteísmo, o povo para a
república, o mito para os povos primitivos, etc. – e dá suporte às narrativas de
legitimação (religiosas, políticas e de origem). Do ponto de vista simbólico este
Outro é o significante da lei, o terceiro lugar da fala onde repousa o fundamento de
todo discurso. Identifica ainda uma terceira modalidade do Outro, puramente
especulativa, ligado ao Ser. A articulação destes três registros é que dá a noção das
modalidades subjetivas da modernidade, portanto não podem ser separados
quando se vai pensar tanto no Sujeito, quanto na sociedade em que está inserido.
Dufour (2003) destaca sete principais narrativas que figuraram no século XX:
das religiões monoteístas (postulam a origem na existência de Deus e visando o
282
controle enérgico sobre corpos e mentes); dos Estados-Nações (sustentados em dois
referentes – direito à terra e direito de consanguinidade – garantidos por instância
política superior: Rei, Imperador); do povo trabalhador (ideária de um mundo
homogêneo e sem classes, opunha-se às outras narrativas tidas como alienantes);
da natureza (estabelece o fracasso das narrativas anteriores e faz previsões
apocalíticas quanto ao futuro da Terra); da democracia (declara a não dependência
e submissão dos indivíduos aos grandes Sujeitos, buscando autonomia jurídica,
econômica e de referência); do neopaganismo (estabelece a incessante mudança e
flexibilidade de valores, multiplicando e relativizando os referenciais) e das
comunidades (tratam de núcleos de reivindicação de direitos universais que buscam
referenciais dentro da própria comunidade). Analisa nestas narrativas seus pontos
de falência, na tentativa de identificar o que sobrou de cada uma delas e por o quê
foram substituídas no momento em que vivemos hoje, que ele chama de ‘pós-
modernidade’.
283
logomarca e são sempre substituídos por produtos mais novos); fala também das
igrejas agora substituídas pelos templos de compra (shoppings, hipermercados).
Figura 13: Excerto da página 86 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
284
Nesta página extraída do material didático do PNLD da EA-FEUSP temos a
dimensão da entrada impiedosa do mercado no cotidiano escolar de crianças de 1º.
Ano do EFI. Não só vemos substituir no letramento as referências às grandes
narrativas por logomarcas de produtos do mercado, como vemos que não são
produtos quaisquer: são aqueles de apelo infantil que ademais interferem em outra
esfera da constituição subjetiva – o corpo – cada vez mais precocemente alvo do
gozo alimentado pelas indústrias de trans e saturados, para o quê depois se
preconizam dietas e terapias precoces para livrar dos traumas da obesidade, da
ignorância, ou de deformação sedentária e comprometedora112. A perversão deste
sistema está justamente no fato de que este tipo de interferência na educação é
respaldada pelo discurso pedagógico que, no caso do Construtivismo, é dado pelo
uso dos ‘elementos do cotidiano infantil’ como subsídio para o ensinamento da
leitura e da escrita. São estes elementos que se colocam no lugar dos ludismos
poéticos a que nos referimos no capítulo anterior.
112
Sobre a influência desastrosa dos alimentos industrializados na infância, ver o excelente
documentário ‘Muito além do peso’, dirigido por Estela Renner e produzido por Marcos Nisti.
http://www.muitoalemdopeso.com.br/
113
Em 1998 um grupo japonês achou por bem contrabandear o cupuaçu (fruta originária da
Amazônia) e patenteá-la como propriedade da indústria alimentícia a que pertenciam, exigindo dos
ribeirinhos amazonenses que pagassem royalties pela sua utilização. Só cinco anos depois de
batalhas judiciais internacionais é que a situação foi revertida. Como este, há inúmeros casos em que
animais, frutas, plantas, elementos de culturas tradicionais são registrados e apropriados por
mercados ligados, ou não, à sociedade ou ao lugar de origem.
http://www.horadopovo.com.br/2004/marco/05-03-04/pag2b.htm
285
nada, nenhuma forma social, nem cultural pode se opor ao domínio exclusivo do
Mercado (DUFOUR, 2003: 83).
114
Catira ou cateretê, é uma dança ritmada pelas batidas de pés e mãos, compostas geralmente por
homens que se dispunham em duas fileiras, uma de frente para outra, acompanhada de violeiros. De
origem africana, indígena e europeia, esta dança era praticada no meio rural.
115
Derivada da cultura africana, esta é uma dança essencialmente rural mas praticada em todo
Brasil, compõe as chamadas ‘danças de umbigada’. É uma dança animada por poetas que se
desafiam por meio de improvisação e de adivinhas, que sempre carregam traços de elementos
mágicos ou sagrados.
116
Depoimento de professores da EA-FEUSP. Dado retirado do registro de reunião semanal entre
todos os pesquisadores do polo de São Paulo do PROJETO “DESAFIOS”, realizada no dia 21/06/2011.
286
Observamos durante a reunião da pesquisa que aquela dança típica não seria
apresentada pela escola como uma manifestação religiosa, mas como uma
manifestação folclórica de origem religiosa, como uma tradição cultural que
determina há séculos a formação do caipira brasileiro. Ademais, como uma escola
laica, não caberia à instituição ceder a pedidos de posição ideológica/religiosa
individuais ou grupais, como a que os familiares traziam. Isto é, em nome do
‘direito/liberdade’ individual de alguns que rejeitam uma parte importante da
história tradicional, a comunidade da escola foi apartada de um elemento de
referência cultural que remonta em sua origem aos povos africanos que compõem a
população brasileira, sem contar que é uma das danças que depois derivou no nosso
samba, disseminado, praticado e marca de identidade do brasileiro.
Os quitutes típicos das festas juninas (bolo de milho, paçoca, canjica, arroz doce,
etc.) ficaram relegados ao que a escola denominava de ‘cantinho tradicional’,
escondido sob uma escadaria; de resto, muitos bolos cheios de cobertura, coxinhas,
e demais doces e salgados que podemos encontrar em qualquer lugar,
cotidianamente. Ao longo da pesquisa não conseguimos ter acesso a quando e
porque houve a mudança de nomenclatura e da estrutura da festa, mas podemos
constatar que no ano de 2011, além da ‘novidade’, esta versão moderna do folguedo
imaginariamente eliminou: 1) as diversidades religiosas – já que retirando-se os
elementos característicos de festa junina (que tradicionalmente homenageia Santo
Antônio, São João e São Pedro), e aquela manifestação ‘demoníaca’ (Jongo) todos
puderam participar dela com ‘liberdade’; 2) a diversidade de idades geracionais dos
pais de alunos – o tema da festa naquele ano foi ‘Anos 60, 70, 80 e 90’, e as músicas
dançadas pelas crianças, foram escolhidas dentro do repertório daquelas décadas (o
que deixaria os pais felizes por reviverem momentos de suas infâncias117),
evidenciando que os códigos culturais não podem mais ser referenciados na
coletividade, como nas quadrilhas, mas em cada um. Note-se que não se está
questionando a qualidade musical das canções selecionadas, nem da oferta culinária
da festa, mas a posição alienada em que coloca os sujeitos que dela participam,
117
Referência a dados da mesma reunião semanal entre todos os pesquisadores do polo de São
Paulo do PROJETO “DESAFIOS”, realizada no dia 21/06/2011.
287
subtraindo-lhes o festejo ritualizado que fornece identidade de grupo, para ofertar-
lhes pinceladas de alusões individuais.
118
O mesmo acontece com a festa do Bumba-Meu-Boi (ou Boi Bumbá) no norte brasileiro,
circunscrito a arenas fechadas, ou com os cortejos carnavalescos contemplados agora pelos
sambódomos ou camarotes de grupos de pagode e axé patrocinados por indústrias de cerveja.
288
que o cidadão avance com seu modelo novo sobre a faixa de pedestres e quase
atropele os transeuntes, uma vez que isto não lhe custará nada; mas este mesmo
indivíduo, devidamente avisado por seu GPS de última geração, será capaz de
diminuir a marcha do carro próximo a um radar de velocidades – a multa certa, neste
caso, pode custar o preço de um produto novo. É um mercado que implanta a
demanda pelas novas canetinhas, mochilas, agendas, roupas e adereços com que os
alunos são instigados a desfilar no espaço escolar, ao preço de serem hostilizados se
não o fizerem.
Este mercado implacável, irresistível, que cada vez mais surpreende com suas
novidades e que se apropriou e desbancou as narrativas de referência, de qualquer
forma, nos alerta Dufour (2003), fracassa em seu cerne: ele não serve a novo grande
Sujeito. (E este é o ponto de abertura a que nos referimos acima, sobre a
impossibilidade do fim das narrativas e que possibilita pensarmos em alternativas
para este quadro, mas veremos isto mais adiante). O autor leva sua análise mais ao
extremo e diz que o mercado, [...] longe de tomar para si a questão da origem, do
fundamento, do elemento primeiro [...] só pode confrontar cada indivíduo com os
tormentos (que certamente não caminham sem novos gozos) da autofundação
(DUFOUR, 2003: 84). Este discurso mercadológico esvazia a economia simbólica e as
referências subjetivas que fundam o eu psíquico; mas não sendo tratada esta
questão da origem, ela retorna na forma de efeitos violentos sobre o Sujeito,
atormentando-o com sintomas de um eu-fracassado que esta modernidade cultiva,
ainda que despreze: aqueles a que nos referimos acima como depressão,
drogradição, etc.
289
Para Dufour a sociedade dispõe de alguns subterfúgios nos quais crianças e
jovens se miram para tentam remedia a falta do Outro. São eles: o bando (marcado
pelo transitivismo, uma vez que aquilo que acontece a um, é sentido por todos, no
qual se age por métodos expeditivos – ataques, acertos de contas – e, efetivamente,
não garante autonomia aos sujeitos); as seitas (grupo de pessoas que se reúnem
para adoração de uma imagem ou guru que garantem proteção absoluta contra os
males; não enseja a falta, portanto); a adição (inscrição de uma necessidade
compulsiva de consumo de produtos dispostos no mercado; acontecimento que
retira do campo do desejo o traço do objeto, mas que se satisfaz no real puro como
necessidade pulsional); a onipotência (assunção do lugar do Outro poderoso que
decide pela via da violência o direito de vida ou morte; na ausência do Outro, toma
as rédeas do jogo).
[...] mas eles constituem, entretanto, uma tendência pesada, muito difundida, que já
mobiliza sequências identificatórias, fascínios difusos e fragmentos de história e de
narração. O que, afinal, compreendeu muito bem e muito rápido o Mercado,
desenvolvendo toda uma indústria do jogo, da música e da imagem violenta, conectada
com os fortes afetos provocados por essa carência (DUFOUR, 2003: 114).
290
identidade, satisfação e individuação. No fundo, é o sujeito ‘esquizo’, fragmentado,
diz Dufour (2003), que se apreende momentaneamente aqui e ali aos pedaços,
sempre com a certeza iludida de que pode se fazer todo, melhor e mais novo, logo
adiante em outro produto.
Dois elementos centrais são requeridos por Dufour (2003) para pensar na
formação deste sujeito esquizoide: a televisão e a escola.
291
criança diante da televisão está exposta a milhares de cenas de violência a cada ano
(assassinatos, brigas, roubos, etc.119), sem mediação de outros sujeitos.
Concordamos com o autor quando clareia esta questão da violência contida nas
narrativas: pode-se argumentar que as histórias infantis contadas ou lidas em outras
épocas eram igualmente violentas, desfilando acontecimentos trágicos e horrorosos.
Entretanto, ao serem contadas, estas cenas eram integradas ao circuito enunciativo
e – acrescentamos nós – relativizadas na relação afetiva com o contador. A criança
pode manifestar espanto, medo ou indignação, que a contação de histórias comporta
uma modalidade relacional que a televisão não tem: nestas horas a mãe dirige-lhe
um olhar de concordância, o avô faz um carinho aplacador, ou o rapsodo modula sua
história à plateia, dando outros relevos de representação a aquele horror. Também
entre a história contada e a assistida há outra distinção essencial estabelecida entre
a imaginação a que a criança se obriga na primeira (cuja fantasia é composta por
imagens derivadas de sua história pessoal) e o universo tomado como real, na
segunda situação (acontecimento em que o infante não cria nada, mas é aí criado
sem injunção simbólica). Como vimos no Capítulo 3, a transmissão simbólica não se
dá de outra forma senão entre Sujeitos, no simples estabelecimento da fala que
enseja discursos significantes. As imagens-textos televisivos não são capazes,
sozinhos, de transmitir o dom da palavra, isto é, entre criança e máquina não há
constituição psíquica possível, mas só acontecimento de alguma coisa no corpo!
119
O exemplo mais emblemático é do jogo GTA (XXX) lançado desde XXXX
292
A lida com os textos descortina um universo de acontecimentos ficcionalmente
tecidos por cada Sujeito, a partir de seus referenciais sobre os ditos e,
principalmente, também sobre os não-ditos – o trabalho de simbolização
demandado pelo texto (saber) permite entrever os sentidos latentes por ele
portados (gozo). Quando se inverte esta lógica e a imagem é comum a todos e se faz
prevalente, ela pode suspender o texto e toda possibilidade de representá-lo e saber
sobre ele, preservando o gozo puro.
É necessário esclarecer que Dufour (2003) não critica a imagem em si. Pelo
contrário, releva a potencialidade estética que condensa em uma única forma a rede
complexa de sentidos e significações organizados em um texto – pensamos aqui na
‘Guernica’ de Pablo Picasso que retrata o massacre sofrido em 1937 pelo pequeno
povoado espanhol, como manifestação de apoio nazista ao ditador Francisco Franco,
ou na primeira cena do filme clássico de Nelson Pereira dos Santos, lançado em
1963, sobre a obra ‘Vidas secas’ de Graciliano Ramos, na qual os mais de cinco
minutos iniciais de imagem árida e lenta só são rasgados pelo som estridente de um
carro de bois.
[...] não digo que se trata de encontrar o texto que corresponde à imagem; o que é
preciso é um texto que venha suturar a perda aparecida nas malhas de sentido, um texto
que não exclui um ao outro, até mesmo outros textos. A imagem se torna assim situável
numa relação de antes ou de depois do texto (de pré-texto, em todo caso) graças à qual
ela adquire a possibilidade de figurar o que não se pode dizer (DUFOUR, 2003: 127).
Há ainda a imagem da fantasia que, como vimos com Freud, perde o liame com
o texto original, agora recalcado, perdido. Neste caso é preciso reencontrar o texto
correspondente e, no caso da imagem estética, é preciso reencontrar a significação
no processo crítico que interroga a imagem. De qualquer modo, entre estes dois
campos heterogêneos (texto e imagem) é necessário o estabelecimento de um elo,
sendo para isto preciso que o indivíduo seja já um Sujeito constituído e apropriado
de sua castração, na acepção psicanalítica do termo. Aí poderá até brincar e passar
de uma esfera a outra instituindo um jogo prazeroso entre categorias simbólicas,
podendo se valer, inclusive, de uma diversidade de suportes sonoros, imagéticos,
escritos, pictografados (quadros, peças teatrais e de dança, microscópios, livros,
etc.). Acrescentaríamos que para que a imagem possa ser desfrutada em
brincadeiras, ela própria tem que provocar um furo e ensejar uma falta em seu
293
espectador, por onde o texto poderá escoar, se revirar, representar e também furar.
Novamente apelamos ao modelo da Banda de Moëbius em que texto e imagem
compõem o universo da fita, de modo indissociado e complementar.
Não é isto que acontece com aqueles em quem as referências simbólicas não se
estabeleceram (na esquizofrenia, na psicose e no autismo), ou não se sustentam
(fobias ou neuroses graves). Diz Dufour que nestes casos [...]a imagem externa se
torna então uma espécie de conexão mais ou menos colada nas imagens internas, nas
fantasias (frequentemente imagens de onipotência ou de impotência) que povoam o
aparelho psíquico (DUFOUR, 2003: 132). Diríamos mais, que muitas dessas imagens
televisivas encerram em si todas as injunções necessárias a não deixar dúvidas no
telespectador: aí a imagem contém elementos que precisam seu sentido e o texto
que a acompanha é meramente informativo-descritivo, para que nenhum engano
surpreenda o sujeito.
Figura 14: Excerto da página 110 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
294
seu sentido. A atividade complementar à observação, resume-se à cópia do que já
está na imagem.
Figura 15: Imagens de um kiwi, um rio e uma cueca que juntos compõem um rébus
Fonte: Rébus produzido pelos professores de 1º. Ano EFI da Escola de Aplicação da USP, para atividade
pedagógica para alunos, 2011
Este é um dos 24 slides compostos para uma atividade em que a criança era
convidada a dois exercícios simultâneos. O primeiro de recompor com cada conjunto
de imagens, uma palavra e o segundo, com o conjunto das palavras recompor uma
narrativa – que no caso era ‘Kirikú e a feiticeira’, filme de Michel Ocelot120 a que os
alunos tinham assistido. Assim, da primeira imagem do conjunto, se depreende o KI
de ‘kiwi’, na segunda o RI de ‘rio’ e a terceira o CU, de ‘cueca’ (este, que na escrita
alfabética transforma-se em KU), com o que se lê ‘KIRIKÚ’.
Vemos com isto que ao ser obrigado a destacar as imagens sonoras das palavras,
a criança já está na via da inferência, do trabalho analítico que precisa identificar os
elementos menores da língua (letras, sílabas) e do trabalho de síntese, que com estes
elementos menores são reunidos para formar outra palavra. Ou seja, a imagem não
é lida na sua literalidade figurativa, mas como som. Como afirma Belintane [...] o
rébus aqui representa uma espécie de dobradiça entre o oral e o escrito (BELINTANE,
2011: 191), ao mesmo tempo em que funciona como o apagamento da imagem para
a exploração de sua homofonia. Este é o princípio da interpretação dos sonhos de
Freud, em que por trás dos fonemas da imagem, algo latente se condensa e/ou se
desloca para produzir o efeito de rébus.
120
Animação belga produzida em 1998 por Michel Ocelot.
295
Em artigo escrito sobre material produzido pelo PROJETO “DESAFIOS”, do polo
de Belém (PA), Thomas Massao Fairchild (2012) também fala da importância do
rébus como recurso alfabetizador. Apoiado nas elaborações de Lacan, firma que:
Com isto, segundo o autor, a leitura de uma escrita em rébus permitiria o acesso
a um ‘saber não sabido’, ou seja, ao rejeitar o que a imagem representa, o Sujeito
seria capaz de ler. (Acrescentaríamos que aí o Sujeito seria capaz de ler a mensagem
que vem do Outro, sempre invertida em sua demanda.) Segundo Fairchild (2012) é
sobre esta base que Lacan teria afirmado a antecedência da leitura com relação à
escrita: a invenção da escrita não seria
121
A referência que Prioste faz a este autor encontra-se em Desmurget, M. (2012). TV lobotomie: la
verité scientifique sur les effects de la télévision. Paris, Max Milo Éditions. 2012.
296
dos sons e imagens veiculados por televisões, jogos eletrônicos e internet, e concluiu
que:
297
Apontamento similar já havia feito Freud (1910) em seu texto ‘A perturbação
psicogênica da visão, segundo a psicanálise’, como já analisamos em outra ocasião
(BATTAGLIA, 2001). O sintoma neurótico seria o resultado dos fracassos
empreendidos pelas pulsões sexuais parciais que, não alcançando a meta por causa
da repressão, se fariam representar por formações substitutivas. O conflito que
levaria ao fracasso das pulsões sexuais se daria porque os mesmos órgãos e sistemas
de órgãos que servem à pulsão sexual, servem também à pulsão egóica (a boca, que
serve à alimentação também pode ser beijada) e o sintoma surgiria quando as duas
funções pulsionais estivessem em desacordo. O ego faz de tudo para manter a
repressão: se os olhos quisessem ver por puro um prazer sexual, as funções egóicas
reprimiriam a representação desse ‘querer’. Os olhos e a visão teriam suas funções
desvinculadas – os olhos ficariam assim, sob império só da pulsão sexual pois eles
deixariam de cumprir sua função consciente. O anímico repousa aqui sobre o
orgânico e faz sintoma. Mas Freud vai além e diz que esses sintomas psíquicos,
passíveis de deslocamento, seriam esperados no caso de órgãos que cumprem a
dupla função (sexual e egóica), entretanto, quando se trata de um órgão que não
serve para comportar-se como um genital, mas que ainda assim sofre investimento
maciço da pulsão sexual elevando seu papel erógeno, o mais provável é que esse
órgão sofra alterações tóxicas.
Dufour chama atenção ainda sobre o papel dos tele-suportes nas sociedades. O
risco mais decisivo é o de ver se desenvolver uma multiplicação considerável das
competências de uns [daqueles que têm suporte simbólico já estabelecido] e o
298
crescimento da confusão nos outros pela perda progressiva da incumbência simbólica
mínima (DUFOUR, 2003: 133).
299
acontecimento que vai na contramão do que é proposto como reparação histórica
de direitos estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
(BRASIL, 2013).
[...] sem a orientação dos adultos, e desprovidos de referências culturais quanto aos
conhecimentos significativos disponíveis na internet, os adolescentes tornam-se mais
vulneráveis aos ‘conhecimentos’ impostos pela indústria cultural interessada apenas
em angariar consumidores. [...] predomina no ambiente virtual um jogo de interesses
comerciais que realiza sim uma hierarquia de conhecimentos, porém não baseados em
critérios de veracidade, valor científico ou relevância social.
300
Ao nosso ver a divisão na esfera social apontada anteriormente por Dufour
(aumento das competências aos que já possuem suporte simbólico e decréscimo aos
que não a possuem) deveria ser encarada como antagônica pela própria sociedade,
e deveria mobilizar esforços no caminho inverso. No entanto a tese de Prioste
(2013) aponta na direção do mercado, para quem esta fragmentação social é
perfeitamente adequada: constata que para que o mercado possa vender
demasiadamente, é preciso haver consumidores ignorantes e passivos.
301
4.4.1. O MERCADO DA ALFABETIZAÇÃO
Figura 16: Excerto da página 62 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
302
Vai-se das relações familiares afetivas, às gôndolas de supermercado, em um
continuum. O conhecimento prévio, cotidiano, que se espera do aluno é sobre a
manipulação de produtos, nomes de produtos, formas de produtos – e não
chamamos a isto de experiência ou experimentação infantil, uma vez que estes
termos reservamos para os sentidos que lhes conferem Agamben ou Benjamim,
como vimos no Capítulo 3.
Começa a ficar mais clara nossa posição. Enquanto o professor não sabe o que
explorar de um texto literário, porque sua formação pessoal ou universitária foi
deficitária neste aspecto e/ou porque as supervisões do exercício da profissão não
consideram este assunto relevante, o neoliberalismo de consumo agradece que em
suas ações e orientações metodológicas saibam bem explorar cada marca e
lançamento novo do mercado.
303
Figura 17: Excerto da página 115 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
Figura 18: Excerto da página 159 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
304
Que desfrute a criança pode tirar de textos ou imagens como estas? Só o desfrute
do corpo físico, uma vez que os pais geralmente cederem a seus pedidos insistentes
de bolachinhas recheadas, ou suquinhos embalados, ou desta ou aquela marca de
combustível ou sabão. E as narrativas se esvaem.
Figura 19: Excerto da página 16 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
305
Figura 20: Excerto da página 17 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC
Emilia Ferreiro é clara neste aspecto: a escrita do nome próprio [...] é o primeiro
exemplo claro de escrita livre de contexto, de escrita cuja interpretação não depende
da imagem que se situa em suas proximidades, ou do objeto que lhe fornece base
material (FERREIRO, 1981: 121), ou seja, é o ‘seu’ nome e não de outra coisa qualquer
e não vem associado a outra coisa, a não ser a ela mesma. As letras iniciais de seu
nome em princípio são [...] ‘a minha’, ‘a do meu nome’ (idem.:121) e não a letra com
que se escreve outra coisa. A pesquisadora afirma que a criança vai sim confrontar
esta escrita com outros nomes, mas ela fará isto dentro de um conflito próprio que
se instale no processo de sucessivas hipóteses de escrita que ela vai criar e neste
aspecto é muito diferente partir de seu nome e reconhecer uma letra ou sílaba
semelhante/parecida em outro lugar, do que ser orientada ‘com ênfase’ a olhar para
outro lugar em que possa reconhecer a ‘sua’ letra, especialmente se este lugar está
mais carregado de elementos de consumo, do que de referências lúdicas textuais.
306
proposição de desafios para o conhecimento. Ao invés de apresentar imagens
estagnadas de logomarcas para estabelecer a comparação nome-escrito/nome-
escrito, porque este professor não pode indagar ao aluno o que mais ele conhece que
se pode escrever com as letras de seu nome, ou que outra coisas se pode escrever
com aquelas letras, ou em que outros lugares pode buscar as letras do nome?
307
professores porque nas rodas de conversa queria falar muito e atravessava a fala de
seus colegas.
Este aluno tinha, no entanto, uma habilidade motora invejável e nos momentos
de parquinho não hesitava em trepar nos brinquedos e ali se balançar, ficar de ponta
cabeça. Também com as mãos era ágil e, sempre que podia, expressava-se batucando
com elas em algum lugar (no chão, nas carteiras, nas portas). Cabe dizer que com
frequência esta sua atitude também perturbava o andamento das atividades da
classe, pois o aluno identificou que podia chamar a atenção para si quando agitava
suas mãos para extrair sons de qualquer lugar. Quando era repreendido com relação
a estas perturbações, respondia indo dormir. Notamos que se punha a batucar
quando não queria ser requisitado a fazer atividades para as quais não estava
pronto, ou para que sua baixa produção acadêmica não fosse evidenciada. Ao
batucar, desviava toda atenção para esta ação: havia alguma coisa de gozo naquele
ritmo impresso ao corpo que precisava ser reconduzido. Certamente este aluno, em
muitas outras escolas, seria diagnosticado com o rótulo de déficit de atenção (o
sono) e hiperatividade (agitação corporal).
Ponderamos que aquela era uma via de expressão muito própria e nos
propusemos a aproveitá-la de alguma forma, em momentos precisos e não só
quando ele queria. Inicialmente estabelecemos que ele mostraria em algumas ‘rodas
de conversa’ a sua performance. Isto adiantou por um tempo, mas não durou muito,
pois logo seus comportamentos voltaram ao padrão anterior: ao invés de atravessar
a fala dos colegas ou do professor com sua própria fala, fazia seus barulhos.
Pensamos em segunda mão que ele poderia ensinar outros alunos que quisessem
aprender a batucar, nas atividades de ‘cantos’; mas também isto teve pouca
pregnância e logo recomeçaram os atritos.
No início do mês de maio ele ainda não tinha domínio da escrita do nome
próprio (ROGGÉRIO122): passou muito tempo escrevendo simplesmente GÉRIO, ou RIO,
e muito raramente escrevia ROGGÉR, ou ROGGÉ (sendo que estes dois últimos casos
aconteciam quando ele copiava de algum lugar a grafia do nome). Quando alguma
122
Nome fictício, mas que conserva dois elementos que foram fundamentais para identificação de
seu nome à escrita dele.
308
criança a seu lado dizia que seu nome estava errado, ele contestava e dizia que não,
que era daquele jeito.
Alguns dias depois, quando o professor contava para a classe o Mito da Fênix,
em dois momentos diferentes da contação Roggério se pôs a repetir algumas
palavras, da mesma forma insistente que fizera com IO de ‘frio’, ‘raio’ e ‘maio’, mas
agora de forma ritmada e com palavras inteiras:
Mais alguns dias e pôs-se a repetir sozinho, em tom quase inaudível, o seu
sobrenome, com relevo a uma letra muda a ele pertencente.
309
pelo CD do grupo Barbatuques123, chamado ‘Corpo do som’. Começaríamos com
atendimento individual e depois, se fosse o caso, faríamos a inserção deste trabalho
em atividades de sala de aula.
A cada música que escutávamos eu escrevia o título em caixa alta no meu papel,
repetindo-o em voz alta: ‘CANTO DA EMA’, ‘ONÇA’, ‘DO MANGUE À MANGA’. Roggério, ainda
sem escrever, acompanhava o que eu fazia e ensaiava seus batuques novos, até que
disse:
Roggério – Hei! Você tem o nome do meu nome! Aqui oh! (Aponta para a letra G). O G de
Roggério!
Eu – O que falta?
Roggério – O R.
Eu – Então vamos procurar uma música que tenha a letra R. (Li) ´Do mangue à manga’,
‘Peixinhos do mar’.
Roggério – Aí oh! Escreve o nome pra mim pegar o R! (E sublinhou a letra R. Em seguida
escreveu no seu papel o seu primeiro nome, com todas as letras: ROGGÉRIO.)
Eu – Nossa!, desta vez você colocou todas as letras do seu nome! (Escrevi em seguida o
nome dele no meu papel: ROGGÉRIO.)
123
CD gravado entre 1999 e 2002, pela gravadora MCD e produzido por Rodrigo Fonseca, é
composto por algumas canções cantadas, mas a melodia rítmica de todas elas é produzida no corpo
dos músicos.
310
Roggério – Roggério [...] Santos Sanctos124. (Ressaltou o som do C do Sanctos).
124
Sobrenome fictício.
125
Gente tem sobrenome: música de Chico Buarque de Hollanda.
126
Informações extraídas do relatório semestral realizado pelo professor regente da sala.
311
aquelas apresentadas pelo material didático do PNLD da EA-FEUSP. A exploração
experimentada através de elementos da oralidade e de textos com apelos poéticos
oferecem recursos mais amplos em que a criança pode enlaçar suas questões e
representar-se Subjetivamente. Não nos interessava, no caso descrito, saber o quê,
ou porquê o aluno não conseguia escrever seu nome – investigação sobre o Sujeito
a que muitos pedagogos, psicopedagogos e psicólogos escolares certamente
dedicariam um tempo ineficaz para os propósitos da educação. O que nos preocupa
e motiva é estabelecer um universo rico em elementos simbólicos e imaginários que
permitam à criança circular por eles e depreender o que a ela faz sentido,
caracterizando um trabalho com a Subjetividade. Como já dissemos a respeito do
outro caso relatado (VI), muitas vezes este caminho é trabalhoso: arriscamos por
diferentes vias que nem sempre funcionam, mas que de qualquer forma não são em
vão, uma vez que podem repercutir mais à frente, por retroação, e fazer sentido.
Ferreiro critica os métodos de alfabetização que [...] podem existir como formas
vazias, repetidas mas não compreendidas, enquanto que a verdadeira escrita, a que
não aparece no quadro-negro nem nos cadernos escolares, segue seu próprio caminho
(FERREIRO, 1981: 122). Identificamos nesta colocação que a escrita que para a autora
não figura no quadro-negro é aquela do processo construtivo da escrita a que a
criança se entrega escrevendo do seu jeito, criando hipóteses, pondo-as à prova,
para depois reescrevê-las.
Para nós o que nos cadernos, nos livros ou nas lousas não figura, é a escrita cuja
representação está sob a barra do recalque, mas que continua reverberando no
Sujeito como sua essência (a letra a que nos referimos no Capítulo 3). O que a criança
manifesta é sempre expressão de sua Subjetividade e quando esta demonstração
aparece na forma de bom comportamento, boas hipóteses, boa leitura e, até, boa
escrita, o professor não tem dificuldades para lidar com ela. A questão surge quando
esta singularidade não está pronta para a forma como a escola programou suas
atividades e conhecimentos, como no caso deste aluno.
Nós apontamos que é justamente aí que a escola deve pensar e repensar suas
práticas, não só no ensinamento da leitura e da escrita, mas também de escuta. Os
alunos que têm respaldo simbólico conseguem com mais facilidade e ‘a seu tempo’
– para não perdermos de vista a metodologia dominante – se apropriarem do
312
letramento secundário que a escola oferece. Justamente os que não têm este suporte
(e que cada vez mais são os que chegam às escolas) são os que precisam ser
escutados em suas singularidades, pois demandam trabalho junto à função
simbólica – o que certamente eles não encontrarão nas caixas de leite ou
achocolatado! Se as ferramentas disponibilizadas ao professor são estas sem
referência significante, é compreensível que – em parte – ele se imobilize junto com
o aluno; de outro lado isto não é aceitável porque ele assumiu um compromisso
social de alfabetizar todos os alunos e cabe a ele buscar outros respaldos teóricos e
práticos para construir saber.
Ferreiro também diz que [...] os processos de construção do nome próprio são em
tudo semelhantes aos processos de construção dos outros nomes, exceto – e nisto reside
toda a diferença – que as letras não são quaisquer (FERREIRO, 1981: 121). As letras
‘não são letras quaisquer’ para Ferreiro, porque a criança não vai, como
anteriormente fazia para outras palavras, usar qualquer letra para escrever um
nome. Mas acrescentamos que isto também se deve ao fato de que, do ponto de vista
do Sujeito, quando a criança recebe um nome, ela não é mais uma Maria ou mais um
João. Ela é a Maria que tem o mesmo nome da virgem, ou da avó querida; ele é João
igual ao tio, forte, honesto e trabalhador, ou como o irmão que morreu
precocemente. Ela pode também ser a Jennypher e ele o Richarlyson, referências
imaginárias a nomes glamorosos de celebridades distantes. Estes sentidos todos
contém elementos que estão sob a barra do recalque, não ditos e não totalmente
significados, fazendo com que algumas crianças tenham problemas sérios para se
encontrar com estes não ditos. Os nomes (e as letras do nome) não são quaisquer
porque carregam consigo representações parentais que remetem à ancestralidade
da família e que ao confluírem em uma determinada criança ofertam-lhe os
primeiros elementos por onde as tramas mnêmicas (as ‘letras’) vão se tecer em
outras escritas, para tentar representar o que não está representado. É por isto que
também escrevemos, e não só falamos.
O nome próprio não é coisa qualquer! Ele é afeto puro, circunscrição primeira
de sentido sobre o qual, infelizmente e irresponsavelmente, o neoliberalismo no
qual se alienam muitos agentes educacionais, vem se alojando. Assim expropria-se
a criança de suas tradições e também de seus traços subjetivos, eliminam-se os
313
textos consagrados e nos perguntamos, por onde se quer que o aluno caminhe na
escola? Quais são os referenciais que se lhe oferece?
314
Uma geração tem que ser responsável pela educação da que a sucede,
respaldada em seu saber-fazer adquirido no passado e visando o futuro dos que
virão (ou estes ficarão à deriva). Delega-se autonomia ao aluno.
4) A escola não se responsabiliza mais por mostrar que é preciso pensar sobre
os objetos de conhecimento e com isto passa a praticar a distração e o salto de
um tema a outro, ao sabor das relações do momento, como se não houvessem
objetos do pensamento e de saber consolidados. Pratica-se uma adaptação ao
estado letárgico em que muitos alunos se encontram, seja por prejuízos no
acesso ao simbólico, seja por isto mais o uso de medicações calmantes ou
antidepressivas.
315
comportamento ao longo de todo ano letivo – e são refeitos a cada crise séria de
indisciplina ou briga que se instale na sala de aula.
Atividades deste tipo tanto não funcionam, que, como observamos na nossa
pesquisa, as salas de aula com maiores incidências de indisciplinas eram as que mais
recorriam a fazer e refazer combinados. Estas mesmas classes instituíram, na
tentativa de controlar a indisciplina discente, a auto-avaliação dos alunos (por meio
de anotações diárias sobre o comportamento e a adequação em sala de aula) e o
auto-controle emocional dos alunos (por meio de exercícios de relaxamento). Da
mesma forma que os combinados, estas atividades também demonstraram poucos
resultados efetivos. Quando o foco pedagógico se dirige prioritariamente à questão
disciplinar/afetiva, é porque a palavra já não se institui como lei e o que evidencia-
se é o corpo em ação.
316
Com relação à prática das ‘rodas de conversa’, pudemos observar
desdobramentos bem importantes para nossa pesquisa, e de efeito inverso ao que
se deu a partir dos ‘combinados’. As ‘rodas de conversa’ consistem em práticas quase
que diárias que se dão no início do dia letivo; nelas dispõem-se os alunos e o
professor em círculo e nele aqueles que quiserem podem fazer relatos pessoais
sobre qualquer assunto, enquanto os outros prestam atenção. Em princípio o que
respalda tal atividade é a necessidade de garantir que toda criança possa se
expressar e que aprenda a escutar o outro. Dois princípios de cidadania, portanto,
que precisam chegar à escola de forma sistematizada.
Observamos, no entanto, que: 1) com raras exceções havia tempo para que todas
as crianças falassem em um mesmo dia; 2) algumas crianças sempre tinham o que
dizer, enquanto outras geralmente permaneciam caladas e, as que falavam, muitas
vezes repetiam assuntos já abordados em dias anteriores; 3) as falas, aliás, não
constituíam ‘conversa’, uma vez que em sua maioria eram relatos de
acontecimentos: ‘Meu dente caiu’, ‘Minha avó chegou hoje de viagem’, ‘Minha mãe
comprou uma boneca nova pra mim’; 4) muitas crianças inscreviam-se para falar,
mas só na hora em que eram convocadas começavam a pensar algo para dizer: ‘É...’,
‘Sabe...’, ‘O que era mesmo...’, e nestas ocasiões, não raro repetiam algo que ela
mesmo já falara, ou algo semelhante ao que o colega acabara de dizer; 5) não havia
respeito com relação à vez de falar e com relação a escutar o que o outro dizia; 6) o
longo tempo de duração das rodas de conversa faziam com que começassem sob a
atenção de todas as crianças, mas não chegavam à sua metade com a dispersão de
todas, menos da que estava falando.
317
É preciso ressaltar que dar voz à criança e a troca entre elas não eram os únicos
propósitos desta prática, como ficou claro nas reuniões semanais do PROJETO
“DESAFIOS”. Quando se questionou sua eficácia pedagógica e disciplinar,
evidenciou-se que as ‘rodas de conversa’ também serviam estrategicamente para o
controle mínimo do professor sobre os alunos, no momento em que as crianças
entravam na sala de aula e se ‘lembravam’ de que não tinham tomado água ou ido
ao banheiro, tumultuando a primeira atividade do dia. Considerava-se, então, o fator
número de alunos/professor – 30 para 1, por sala – e o fator idade dos alunos – seis
anos – como decisivos na escolha das táticas de controle e adaptação ao dia letivo.
318
ludismos poéticos, ou seja, atividades de letramento a partir da oralidade, desde o
primeiro momento de chegada na escola. Com isto, uma a uma as crianças
ingressavam na sala de aula onde o segundo professor estava pronto para
desenvolver uma atividade lúdica coletiva, até que todos entrassem.
O que se verificou com estes dois trabalhos foi exatamente o salto qualitativo
nas habilidades linguageiras e na prontidão das respostas das crianças, tanto quanto
o aumento de repertório vocabular (elementos fundamentais para a textualidade),
além de efetiva troca entre os alunos: à medida que entravam na sala de aula,
punham-se a querer saber qual tinha sido o desafio proposto ao outro e como
respondera. Um certo regozijo se instalou no ambiente, agora muito mais tranquilo.
319
Apostamos nesta segunda posição, em que o aluno só pode existir se no mesmo
instante for fundado um professor.
A maneira atual de olhar para isso vai levar em conta que cada criança tem que aprender
a escrever do seu jeito. Ela já está no processo de letramento e ela, a partir das hipóteses
que vai construindo, entra no sistema de escrita pré-constituído. Já viram a criança se
relacionar com a escrita a partir desse momento em que o adulto ‘sócio-construtivista’
diz para ela, ‘Continue a escrever. Escreva do seu jeito. O seu jeito está certo’. Ela vai em
frente, vai tecendo hipóteses de como é que as palavras se juntam, como as letras se
juntam, o que são frases, etc. Mas ela está às voltas com um Outro que mudou de
estatuto para ela: o Outro que diz para ela ‘Escreve do seu jeito’, ‘Olha, essa é uma
produção que eu valido, que tem sentido, que é o seu jeito’, a criança começa a
demandar do adulto uma coisa que é profundamente chocante do ponto de vista da sua
investigação sobre a sexualidade que é a verdade. Ela quer saber do adulto cada vez
mais qual é a verdade da escrita. E por que essa pergunta é tão forte e tão insidiosa?
Porque diz respeito à verdade da sua própria experiência de satisfação, sobre a verdade
de seu corpo (DUNKER, 2011).
Quando a criança ‘escreve do seu jeito’ a pedido do professor, ela faz traços
incompreensíveis, mas que para ela são legíveis, tanto quanto são suporte de sua
representação como Sujeito. Quando o professor aceita os rabiscos como escrita, ele
opera com a criança como a mãe com seu bebê: antecipa e significa um
acontecimento que ainda não está lá. O aluno responde a isso, ele entrega-se a essa
leitura do Outro, mas aí coloca-se uma outra questão:
O problema dessa antecipação de sentido é: quando é que eu vou poder operar, não com
minha assinatura, mas com o fato de que o outro também tem uma assinatura? E como
é que eu vou distinguir a assinatura do outro da assinatura do um? (DUNKER, 2011).
A questão posta pela criança a si mesma, não é sobre sua capacidade de dispor
de um papel e um lápis e ali marcar suas grafias, objetivamente ‘escrevendo do seu
320
jeito’. A questão é que ao fazê-lo, inscreve as marcas de seu desejo fazendo-se Sujeito
diferente do outro. Ela pode ser capaz de chegar a isso com mais tranquilidade se
subjetivamente já tiver mudado de posição e se apropriado de sua castração. No
entanto, não será capaz deste salto sozinha e, se neste caso o professor ficar
pragmaticamente preso aos preceitos de um método, esperará que entre aluno e
objetos da realidade – leitura e escrita no papel – as coisas se resolvam. Mas aí as
chances de não se resolverem são grandes.
321
Em sua tese, Anderson Carvalho Pereira (2011) discute a reificação da escrita
no processo de letramento. Toma a escrita como um processo inacabado, porque
atravessado pela incompletude imposta pela linguagem, e estabelece que a escrita
ao mesmo tempo em que liberta o sujeito, aprisiona-o.
322
desta separação e estabelecem uma hierarquia entre as duas (com vantagens para a
escrita); e terceiro, porque nesta cisão, também cindem pensamento e linguagem.
O sujeito, no entanto, não está determinado só pela ideologia, mas também pelos
efeitos metafóricos da linguagem, por onde mostra seu desregramento. Ou seja, o
323
sujeito nunca deixará de se relacionar tortuosamente com o que não foi dito, seja na
oralidade, seja na escrita.
Pereira (2011) afirma que o sujeito letrado alfabetizado é mais poderoso que o
sujeito letrado não-alfabetizado. Como a escrita determina o sujeito no processo de
reificação? A escrita recobre contradições sociais e lança o sujeito na opacidade da
linguagem. O discurso científico nega a heterogeneidade constitutiva da linguagem.
Mas, ainda assim, a escrita se mostra processo inacabado, atravessado pela
incompletude da linguagem, visível na oralidade.
324
modernidade, vinculado ao Outro e, como tal, se constitui nas práticas da
modernidade. Se uma destas práticas é a disseminação da escrita e da leitura, é
também neste âmbito que o Sujeito se constitui psiquicamente. Portanto, negar-lhe
o acesso à alfabetização, ao domínio da leitura e da escrita, é negar-lhe o acesso a
parte de sua constituição psíquica que pode questionar o Outro em suas incidências
gozosas e alienantes.
Sabemos que muitas vezes a criança não consegue fazer o traçado de seu
próprio desejo e corpo. Ela fica perdida e o que se passa é a repetição de seu
reencontro com o objeto de horror (com a letra, ou com seu correspondente
numérico, o traço unário) que também a nomeia e significa, mas presa ao gozo. Por
meio do fragmento e do resto a criança repete, na tentativa de se apreender aos
pedaços. Os objetos aos quais se identifica satisfazem a tensão psíquica pela via do
gozo, mas desviam-na do saber e a mantém aprisionada ao objeto-resto. Esta criança
é alvo constante da intermitência significante (posto que é um Sujeito), mas não
consegue operar com ele, retrocedendo ao vazio, a um corpo sem conformação e
ainda preso ao significado alheio.
É por isto que radicalmente nos colocamos na via das narrativas e da oralidade
como concebemos no Capítulo 3, pelas quais as errâncias da linguagem podem vir a
se representar. Desde a posição do professor, nos ludismos-poéticos e nas grandes
narrativas o sujeito-criança pode alienar-se no texto e dele se separar, construindo
uma interpretação sua, mas que justamente porque se respaldou em elementos da
tradição, também vinculada à sócio história.
Nossa posição vai ao encontro daquela já tomada por José Ortega y Gasset
(1920) há quase um século. Ali, pôs-se em embate com Antonio Zozaia, fervoroso
defensor de que nas escolas se ensinassem técnicas e leituras que preparassem a
criança para vida (jornais, manuais e periódicos) e que se abolissem delas os textos
literários, como ‘Dom Quixote’. Ortega y Gasset, criticando Zazoia, inclinava-se à
função poética do texto que instigava a curiosidade infantil levando a criança a
querer saber, a querer descobrir e criar.
O mito, a lenda, as narrativas que tocam nas origens, que enfrentam o mistério da morte
e da ressurreição (como a lenda brasileira do “guaraná” ou a história da “Bela
Adormecida”) também, de alguma forma, são efeitos da função poética e das matrizes
primevas e fundamentais da literatura. A magia, por exemplo, que faz nascer de um
corpo humano enterrado (de uma menina) um pé de vegetal que vai matar a fome de
um povo, não deixa de ser um deslocamento dos elementos da realidade que em geral
são recobertos pela função referencial da linguagem: o corpo simplesmente
apodreceria na terra sob o festim dos vermes – juntamente com ele, não fossem essas
possibilidades de expansão mítica, apodreceria também a vitalidade da linguagem e do
psiquismo infantil. Do mesmo modo, quando a criança bordeja o nonsense, abrindo a
linguagem ao mistério, ao estranhamento, está também revitalizando seu psiquismo,
suas possibilidades de releitura, tanto da vida como da palavra (BELINTANE, 2011:
154).
326
As narrativas, para a alfabetização, precisam disponibilizar para a criança os
elementos significantes, os fragmentos de palavras, os restos de linguagem que são
recolhidos e com eles fazer seus canteiros de obra e construir seus castelos de
palavras.
327
5. NARRATIVAS – TENSIONAMENTO ENTRE A SINGULARIDADE
E A SÓCIO HISTÓRIA
Ao 13 anos foi ‘encontrado’ por Margherit Duvas, uma pedagoga francesa que
em princípio viu no menino um dos sujeitos de sua pesquisa de doutorado, mas que
127
Filme dirigido por Luiz Villaça e produzido por Denise Fraga e Francisco Ramalho Jr., lançado em
2009.
128
A FEBEM é uma instituição pública assistencialista, instituída e controlada por cada um dos
Estados da Nação a partir da Lei Federal 4.513/64 que instituiu a FUNABEM (Fundação Nacional do
Bem-Estar do Menor, responsável no âmbito nacional por formular e implantar as políticas públicas
de assistência ao menor). Inauguradas em plena ditadura militar, a FEBEM sempre tinha trabalhos
dirigidos a menores ‘desamparados’ ou ‘infratores’, cujas ações sócio educativas foram bastante
questionadas pela elite intelectual de esquerda. Desde 2007 foi renomeada como Fundação Centro
de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA) e hoje só atende jovens de 12 a 21
anos infratores e tem a missão primordial de aplicar medidas socioeducativas de acordo com as
diretrizes e normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
129
Entrevista de Roberto Carlos Ramos para o programa de Jô Soares (Rede Globo de televisão), de
onde destacamos as falas do contador de histórias, aqui referenciadas.
http://www.youtube.com/watch?v=WtjvG3aKhSU .
328
terminou por adotá-lo, levando-o para a França, onde permaneceu por oito anos,
período em que estudou. Ao 21 anos ele retornou ao Brasil e graduou-se em
pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Assim Duvas lhe conta histórias de seu cotidiano francês e histórias de livros.
Fala sobre as comidas de sua terra natal, sobre sua língua materna e as bizarrices de
algumas palavras, sobre hábitos, mas não faz destes momentos monólogos prolixos,
senão que indaga o menino sobre o que ele pensa, como são as coisas em sua vida;
questiona-o de maneira que se posicione frente ao mundo. Neste ponto Roberto
Carlos se põe no caminho da alfabetização, formalizando sua leitura do mundo.
130
Anarriê – palavra de origem francesa que indica um passo de dança nas quadrilhas de Festa
Junina.
329
a gravidade de diagnósticos pedagógicos, psicológicos ou médicos que condenam
crianças a não saírem da condição de incapazes ou doentes; a capacidade leitora
instalada desde a oralidade; o desejo pelas narrativas expresso com vigor na
infância; a inadequação de alguns textos oferecidos às crianças; a importância das
narrativas na transmissão geracional; a condição de que a aprendizagem se de
através das relações.
Para isto discutiremos alguns dados produzidos para esta tese e outros
oriundos do PROJETO “DESAFIOS” visando eleger questões que nos parecem
urgentes referentes às práticas alfabetizadores e visando traçar algumas
possibilidades interventivas neste campo pleno de demandas sociais e individuais.
330
considerem todas individualidades em salas com 20, 30 alunos e ao menos um
professor?
331
respostas para seu modos operandi, o professor aliena-se a este discurso e sai da
relação dialética pressuposta em toda educação. Ao unificar todos os
acontecimentos em torno de um só prisma, crê estar facilitando seu trabalho, mas
no fundo está se esquivando dele e se alijando nele. O método – o discurso – passa a
ser soberano e ora é detentor de todo saber, ora é ignorante para responder às
necessidades impostas. Os sujeitos (professores e alunos) saem de cena e ficam
submetidos ao julgo de uma narrativa que lhes é externa.
O que perpassa toda elaboração teórica desta tese, que também se reflete e é
reflexo dos esforços práticos empreendidos no PROJETO “DESAFIOS”, é a
necessidade de que a educação nas escolas se aproxime realmente destas
heterogeneidades que se apresentam como ‘problemas’.
332
Isto pressupõe diálogo constante entre os professores, articulação conjunta das
atividades didáticas – ainda que um execute, os dois pensam sobre ela – a reflexão
sobre as facilidades e dificuldades pontuais de cada aluno e de cada professor.
333
atividade. Os alunos tinham em mãos os desenhos que haviam feito da história após
escutá-la.
Aluno 1, Professor 1
Não lembro da história... [O que foi que você desenhou aí?] O macaco tava com fome, aí
não tinha nada pra comer. Aí, no caminho ele encontrou um grão de milho... aí não sei...
[O macaco estava com fome porque não tinha nada pra comer, aí ele encontrou um grão
de milho...] Aí ele comeu... o grão... o grão de milho foi parar no galho da árvore... [O
macaco comeu o grão de milho, ou o grão foi parar no galho?] O grão caiu na árvore...
não sei. [Que personagens havia na história?] O macaco, esse aqui (aponta para o
desenho do machado) mas eu não sei o nome... [O que faz esse objeto? Pra quê ele
serve?] ... (continua olhando seu desenho) ...o machado, o fogo, o copo de água, o boi, o
caçador e a cotia. Ele chama o machado pra quebrar o galho (dispersa-se com o barulho
dos outros alunos, que estão reunidos fazendo o calendário com o professor) ... ele não
faz nada. Ele chamou o fogo pra queimar o galho, aí o fogo não foi. Aí ele chama o copo
de água pra molhar o galho... e aí ele chamou o boi. [Pra quê ele chamou o boi?] Não sei...
ele chamou o caçador. [Por que ele chamou o caçador?] ... pra atirar no galho, mas ele
não foi, porque ele queria caçar cotia... fim. [E o que aconteceu com o macaco e com o
grão de milho?] Não sei... [O macaco teve de volta o grão de milho?] Sim. [E o que faltou
na história pra ele ter de volta o seu grão?] Faltou a onça e a morte... ai..., não sei... [Você
acha que precisa escutar de novo a história pra se lembrar dela?] Sim.
Aluno 2, Professor 2
Perguntei ao aluno se ele se lembrava que história era aquela que o Sr. Rouba-Letras
tinha que descobrir para escapar do vilão Mesoclício Proparoxítono, e o menino
respondeu: “É fácil... O macaco e o grão de milho!”
Então eu lhe pedi que me contasse a história, mas ele ficou tímido e com um sorrisinho
no rosto. Eu perguntei: “Qual era o nome da história mesmo?”
Aluno: “O macaco e o grão de milho!”
Professor: “E o quê o macaco fez com o grão de milho?”
Aluno começou a contar.
Aluno com entonação de quem está pedindo alguma coisa: “Fooooogo, enferruja o
machado, pra cortar o tronco, que não quer devolver meu grão de milho”.
Depois disse que a água também enferrujaria o machado. Eu o questionei sobre isso, e
o menino respondeu que ambos enferrujariam o machado, água e fogo. Depois, ao
continuar seu reconto, corrigiu a ordem dos personagens. De toda forma, o fogo
continuou enferrujando o machado.
Terminou a história sem a entonação que o clímax pede e eu lhe perguntei: “e o quê o
macaco fez com o grão de milho?”
Aluno: “Ele comeu!”
334
Acredito que eu só tenha sentido essa falta de entonação no clímax porque o menino
colocou entonação nas vozes de todos os personagens e, ao final, deixou essa técnica de
lado.
Recordou-se da sequência e usou os verbos corretamente. O fogo, afinal, pode
enferrujar objetos de metal, oxidá-los. Parece-me ter sido uma observação empírica do
menino.
Fica evidente que a heterogeneidade não está dada só do lado do aluno, mas
necessariamente do lado do professor também e os manejos de sala de aula não
podem prescindir da análise de nenhum deles. O conjunto destes acontecimentos
todos é que compõem parte da realidade da sala de aula e das relações que nela se
estabelecem.
335
especificamente sobre o modo e a forma destes recontos. Esta discussão se estendeu
aos três polos da pesquisa e foram trocados mais de 15 e-mails sobre o tema, mas
aqui faço o recorte de apenas um e-mail de cada localidade da pesquisa:
Polo RN – Olá, estava pensando em alguns critérios que ajudem a refletir sobre os
recontos das crianças, como fruto de uma discussão no grupo de Pau dos Ferros e acabei
elencando alguns que tenho observado, se possível, me ajudem a pensar em outros
critérios: compreensão das etapas presentes na narrativa, incluindo noções de início,
meio e fim; analisar se o aluno traz à tona detalhes importantes da história ou apenas
cenas/palavras marcantes; eixo metonímico: há troca de palavras por expressão
(ferreiro por homem que trabalha com ferro); uso de recursos presentes na história
para lembrar da narrativa (recorrer à músicas, frases fortes/marcantes); como a
narrativa é contada (era uma vez...); os personagens existentes no reconto são os
mesmos que aparecem na narrativa; alguns personagens são implementados e/ou
esquecidos; intertextualidade (o aluno já possui narrativas em sua memória); existe
criatividade no reconto ou o aluno se prende ao texto ouvido/contado; confusão entre
semelhança sonora presente entre palavras.
Polo SP – ..., que legal mesmo essa retomada dos recursos usados pelas crianças, e vc
pensar em forma de critérios. Quando o professor ... aponta para as potencialidades
delas, penso que em cada critério, seu uso pode ser um aspecto positivo ou negativo
dependendo de cada caso. Por exemplo, um aluno ter o poder de síntese pode ser legal,
mas se o pedido foi 'lembre-se dos detalhes do texto', aí a síntese não é legal. Um aluno
muito associativo às vezes se configura numa criatividade, outras vezes numa deriva.
Bem, acho que estamos sempre exercitando a escuta e, nesses casos, penso que entra
em jogo o bom-senso do professor que está escutando, mais do que o mero 'é criativo
porque insere coisas?- sim/não'. No caso dos dados sobre o [nome de um aluno], creio
que isso fica claro, ou sugere algumas reflexões. Ainda mais se as informações sobre
narrativas forem cotejadas junto a outros dados sobre o aluno. Vou 'colar aqui abaixo'
alguns registros, mas acho que o registro da [nome de uma pesquisadora] sobre o
reconto do boi de mamão é mais exemplar, porque na história tem uma 'festa', mas ele
esquece totalmente da história e começa a contar sobre outra festa que em ele deve ter
ido. [Nome de uma pesquisadora], passa pra [nome de uma pesquisadora] quando
puder, please. Por ora é isso, espero que dê pra entender, porque envio o email meio
que 'na correria'.
Polo PA – Olá. Gostei muito das informações partilhadas sobre tais 'CRITÉRIOS DE
RECONTO'. Estou lendo e me informando bastante sobre isso, pois minha pesquisa trata
sobre o papel da biblioteca oral da criança no processo de alfabetização. Defino por
biblioteca oral as matrizes orais e as operações linguísticas que a criança apreende
antes mesmo de ingressar no meio educacional. A atuação da memória para apreensão
336
de tais conhecimentos é importantíssima para que, ao se deparar com atividades de (re)
conto por exemplo, a criança traga à tona tudo aquilo que tem em sua biblioteca oral
com objetivo de atribuir sentido àquele 'conhecimento novo' (escuta de histórias, por
exemplo). Como foi citado não lembro por quem, a criança consegue entender os
elementos de uma narrativa (início, meio e fim) antes mesmo de entrar na escola. Os
critérios citados pela Profª. [nome de uma professora] demarcam bem os passos da
criança no momento em que ela (re) conta narrativas e nos dados que tenho, percebo
muito a questão da intertextualidade, umas verdadeira mistura de histórias que são
lembradas pela criança no momento de seu reconto. Como tenho poucas referências
para a pesquisa, peço aqui algumas sugestões de leitura que possam vir a me ajudar a
focar mais no que pretendo tratar. Aguardo respostas em breve. Que continuemos com
esse compartilhamento de informações. É de grande auxílio a todos.
O que se quer demonstrar com este exemplo é que quando se institui a troca de
informações e de procedimentos entre professores enriquece-se a discussão sobre
cada acontecimento de sala de aula, além de possibilitar revisões sobre práticas que
podem incorrer em vícios tarefeiros e, consequentemente, em prejuízo para os
alunos. Mais uma vez aqui o objetivo é ampliar olhares e proporcionar
reposicionamentos diante das práticas de ensino, considerando a singularidade de
cada um.
É preciso levar para dentro das salas de aula a implementação daquilo que está
decidido nos parâmetros oficiais da educação – avaliação permanente, construção
de conhecimento, olhar voltado ao singular, produção de material didático –
acontecimentos que no nosso entendimento estão imbricados. Esta é mais uma
maneira de fazer coincidir em algum ponto os aspectos subjetivos com aqueles sócio
históricos.
337
Pode-se objetar que a presença do ‘segundo professor’ em sala de aula pode ser
um problema, uma vez que os dois profissionais podem não ter afinidades. Sabemos,
por vivência e depoimentos de situações cotidianas, que as afinidades entre as
pessoas não são iguais e a isto que se chama empatia ou indiferença tem, no conceito
psicanalítico de transferência, a sustentação das relações possíveis entre dois
sujeitos.
As narrativas que se constroem em sala de aula não são só aquelas dos alunos
sobre sua aprendizagem e aproximação dos relevos sociais, mas também aquelas
que os agentes de educação fazem sobre seus alunos. É um encontro que se não for
pensado, um como extensão do outro, recai obrigatoriamente no campo da alienação
– e aí o elo mais fragilizado, a criança, paga o preço.
338
Mas também cada aluno tem expectativas diferentes sobre a aprendizagem.
Como então se apresentam as demandas das crianças na escola?
Livro didático do Sistema Universitário (um por bimestre): Coleção Vila da Criança:
apostila colorida e a criança só tem que completar, colar, etc. Família forneceu apostila
4, cujo tema era: Comunicação e Meios de Comunicação. Trabalho motor: contornar
linhas. Tema: Como o homem se comunica até chegar ao meio de comunicação escrito;
como escrever – ‘é preciso o alfabeto’ – aí iniciam o trabalho de alfabetização. Textos
explicativos sobre comunicação antes da leitura e escrita sobre meios de comunicação:
criança deve registrar programa preferido na TV, um jornal lido em casa. Uso de
alfabeto móvel para escrever palavras: nome de um jornal, de uma revista. Matemática:
sequência numérica; grafia dos números de telefone; agrupamentos de números e
objetos. Identificação de letras em palavras. Quadrinhas escritas para aluno identificar
339
palavras que expressem comunicação: ‘carta’ – outra forma de comunicação. Acesso a
internet – site do Universitário. Trabalho com letras iniciais do alfabeto e alguns
números. Há uma atividade que articula matemática com letras.
Cadernos de desenhos produzidos pela criança, sem comanda, mas com variedade
grande de temas: fundo do mar, bruxas, castelos. Variedade de formas de expressão do
desenho: traços, pontinhos, desenhos menores e maiores, descritivos e livres. Desenhos
em diferentes suportes e materiais. Caderno de classe: identificar letras do nome no
alfabeto completo. Escrever listas: nomes, histórias, personagens, amigos. Matemática:
Trabalho com quadro numérico. Registro de agenda do dia – calendário. Fotos dos
alunos com legenda Relatório anual – trabalharam carnaval (hipóteses de escrita dos
alunos; marchinhas, sambas e autores, origens das máscaras, lendas africanas; atelier
para confecção de instrumentos e abadá; apresentação da ‘Véia Peidorreira’ e sua
música); escolha do nome do grupo (Caranguejo); pesquisa de outros bichos; horta;
coleção de tampinhas (articulado a matemática, arte, ciências e meio ambiente);
construções com objetos; trabalhos sobre Vick Muniz e Eduardo Srur; confecção de
jogos; contos de fadas (‘causos de medo’, sequência de leitura de contos de fadas:
Grimm, Perreau e Andersen; leitura seguida da interpretação de cada aluno, discussão
e relação com outros textos; identificação de características dos personagens: histórias
refletiram nas brincadeiras de pátio e em artes estes elementos começaram a aparecer
nos desenhos; trabalhos bi e tri dimensionais e visita a biblioteca temática – Zona Leste
Andersen).
Folhas impressas para colorir; em todas as folhas há uma frase bíblica com referência a
algum personagem bíblico. Matemática: numerar elementos. Atividades motoras: ligar
pontos, contornar figuras, fazer bolinhas de papel, colagem. Trabalhos com letras do
alfabeto e nome próprio. Longuíssimo trabalho sobre Arca de Noé. Desenhos sobre
temas bíblicos. Carimbo pronto com avaliação do aluno, no qual o professor só ‘vista’
por cima. Escrita do nome próprio na capa.
Atividades de leitura e escrita com letras, sílabas e nome próprio. Referência a trabalhos
com textos em prosa; atividade de escrita do título da história e nome do autor. Escrita
descritiva de uma imagem. Quatro folhas soltas: ordenar letras para formar palavras
com a letra R; separação de sílabas com a letra R. Fazer tantos objetos quantos o número
indica 1 a 15. Escrever palavras com a letra T; ordenar letras para formar palavras
começadas com T. Trabalhos com datas cívicas; completar texto do Hino Nacional.
340
Outros materiais analisados que não expusemos aqui tendem a repetir como
estrutura o ensino apostilado com foco na escrita, pobre em elementos da infância.
Podemos observar nesta pequena amostra que os repertórios didáticos e textuais
são bem diversos e não dependem de a escolar ser pública ou particular, mas
claramente da orientação pedagógica de cada uma.
Com uma diferença bastante grande com relação aos outros materiais, aquele
que apresentamos como ‘Material 2’ é sem sombra de dúvidas o trabalho de melhor
qualidade. Nele encontramos diversidades de textos e de suportes gráficos e
figurativos e, além de expansão nas formas de tratar temas propostos, notamos que
também havia atividades com oralidade e narrativas de referência, exploração de
elementos estéticos e festejos tradicionais, todos trabalhados na perspectiva
infantil. A motricidade infantil parece ser explorada de forma indireta, ou seja, nas
próprias atividades temáticas propostas, não sendo alvo de atividade cujo fim se
encerra em si mesmo.
A preocupação com a escrita também está presente no ‘Material 2’, mas ela não
é o ponto central dos trabalhos, nem vem em substituição a outras atividades
importantes nesta fase da vida. Podemos dizer que dos seis alunos que
frequentaram esta instituição pré-escolar, dois ingressaram o 1º. Ano na ‘hipótese
silábica-alfabética’ e quatro na ‘hipótese alfabética’ de escrita, mas o mais
importante é que revelaram logo no início do ano letivo uma postura interessada
com relação à aprendizagem. Donos de uma oralidade bastante rica, narravam
histórias com propriedade e dramaticidade, estabeleciam relações intertextuais,
tinham um repertório mnêmico rico de cantigas, brincadeiras, contos e poesias,
elementos que se refletiram bastante no aproveitamento pedagógico ao longo do 1º.
Ano.
341
Dentre os 20 alunos só uma criança não fizera Educação Infantil, enquanto
outras haviam frequentado a pré-escola desde os dois anos de idade. Com relação às
habilidades de escrita, quatro alunos ingressaram o 1º. Ano EFI já escrevendo frases
com certa fluência (dois deles escrevendo em letra cursiva), cinco já escrevendo
palavras e arriscando frases curtas, e 11 sem domínio da escrita alfabética (dois
deles não sabiam ainda escrever o próprio nome).
Nos materiais da Educação Infantil não foi possível encontrar dados sobre as
habilidades leitoras das crianças, por isto investigamos este aspecto logo no
primeiro mês de aula.
Quadro 3: Dados de desempenho inicial e final dos alunos de uma sala de 1º. Ano EFI da EA-
FEUSP, no ano de 2012
342
Língua Portuguesa
Leitura de
Produção de
nomes de
Produção de textos
personage
Quadro Alfabeto Acrofonia
Palavra Leitura de Identificação Compreensão
ns e títulos
textos (fragmentos de Hipótese de escrita Hipótese de escrita
Valise Rébus de rimas de adivinhas MARÇO OUTUBRO
(Texto Congregação) de (fragmentos de textos
textos conhecidos conhecidos de
histórias
1o EFI ouvidas
de memória) memória)
M A R ÇO OU T U B R O
Silábico Silábico
Pré Silábico Pré Silábico
MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT PS S NS PS S NS silábico
Silábico com
Alfabético
Alfabético
silábico
Silábico com
Alfabético
Alfabético
valor valor
1 1 1 1 1 1 1 1 1 X 1 X 1 1 1 1 1 1 1
2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
3 1 1 1 1 X X X 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
4 X 1 1 1 1 1 1 1 X 1 1 1 X 1 1 1 1 1
5
6 X 1 X 1 X X 1 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
7 X 1 X 1 X X X 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
8 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
9 X 1 1 1 1 1 1 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
10 X 1 1 1 1 1 X 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
11 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
12 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
13 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
14 1 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
15 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 X X 1 1 1 1 1 1
16 1 1 1 1 1 1 1 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
17 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
18 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
19 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
20 X 1 1 1 1 1 1 1 1 1 X X X 1 1 1 1 1
21 X 1 1 1 1 1 1 1 X X 1 1 X X 1 1 1 1
TOTAL (OK) 11 20 15 20 14 17 14 20 8 19 8 18 8 14 4 5 11 11 8 1 5 0 8 5 3 0 0 0 3 17
TOTAL (não OK) 9 0 5 0 6 3 6 0 12 1 12 2 12 6 16 15 9 9 12 19 15 20 12 15 17 20 20 20 17 3
343
A primeira consideração que gostaríamos de fazer é sobre a diversidade de
relevos com os quais produzimos o diagnóstico de aprendizagem de linguagem. Se
isolarmos os quadros finais onde são mostradas as hipóteses de escrita dos alunos,
dos demais dados, perdemos a dimensão daquilo que é relevante para identificação
de singularidades de aprendizagem e para o consequente direcionamento das
condutas pedagógicas ali onde se fazem necessárias. Se nos guiássemos somente
pela hipótese de escrita, assumiríamos que a criança número 11, que ingressou no
1º. Ano EFI ‘silábica com valor’, não precisaria de nenhum trabalho complementar,
uma vez que atende plenamente as expectativas de letramento para esta fase da
alfabetização, de acordo com o Construtivismo. Mas neste caso perderíamos de vista
que ele não é capaz de fazer acrofonia, identificar palavras valise, ler rébus ou
compreender uma adivinha, elementos que para nós são fundamentais para leitura.
344
música de Vinícius de Morais ao escutar a palavra ‘tigela’ – é [...] uma operação que
abre o traçado de uma subjetividade de entre-textos [...] esse fenômeno que no ensino
da literatura é conhecido como intertextualidade, é dispositivo fundamental do bom
leitor (BELINTANE, 2011: 26).
345
Como veremos a seguir, na análise de dados de entrevistas com agentes
domiciliares de alunos participantes do PROJETO “DESAFIOS”, os familiares têm
expectativas de que a escola seja fomentadora e provedora de narrativas a seus
filhos, tanto quanto lamentam não terem sido, eles mesmos, alvos de trabalhos desta
ordem quando frequentaram suas escolas.
OBJETIVOS
346
hábitos de leitura e contação de histórias; 5) verificar como os sujeitos incluem seus
discursos sobre o que é necessário ao processo de alfabetização de uma criança, nos
discursos sócio históricos sobre o mesmo tema.
O critério inicial de seleção dos núcleos familiares foi seguido em Belém (PA).
Em Pau dos Ferros (RN) o critério de seleção dos núcleos familiares de alunos de 1º.
Ano EFI também foi obedecido, mas uma das famílias tinha dois alunos irmãos na
mesma classe, portanto, continuaram sendo dois os núcleos familiares
entrevistados, mas três alunos. Em São Paulo não foi possível realizar entrevistas
com núcleos familiares de alunos de 2º. Ano com dificuldades de alfabetização, pois
encontramos fortes resistências dos familiares131. Como forma de tentar suprir tal
falta, entrevistamos duas famílias de estudantes de 1º. Ano EFI com dificuldades
para se alfabetizar.
131
Das três famílias contatadas e que se dispuseram inicialmente a participar das entrevistas, uma
declaradamente desistiu, outra sistematicamente desmarcou as quatro entrevistas agendadas e uma
deixou de comparecer sem aviso prévio às três entrevistas agendadas.
347
Sobre a escolha dos alunos e de seus núcleos familiares, propriamente dita, ela
se deu ao final do primeiro semestre letivo de 2012, por meio de observação e
acompanhamento do desempenho pedagógico dos alunos ao longo daquele período.
Para coleta dos dados foram elaborados dois roteiros distintos de entrevistas132
(Anexo D) aplicados com cada um dos núcleos familiares. O primeiro roteiro
consistiu de um questionário semi estruturado, com 14 tópicos versando sobre
hábitos sócio culturais e familiares. As oito primeiras perguntas eram diretas e
poderiam ser respondidas objetivamente – ‘sim’, ‘não’, ‘às vezes’ – e
complementadas com informações simples (por exemplo, o nome de um livro lido,
ou de um programa assistido) solicitadas pelo entrevistador para esclarecer as
respostas.
132
Os questionários foram submetidos ao comitê de ética da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de 2012. No Anexo D pode-se ver o modelo dos
dois questionários aplicados com cada família.
348
discursos, para que estes significantes latentes pudessem ser apreendidos seriam
necessários dois momentos distintos de incidência: o primeiro discurso elidido, não
falado, poderia retornar como segunda incidência no segundo discurso e aí
ressignificar o conteúdo latente. Tínhamos como pressuposto que, como o primeiro
roteiro de entrevista era mais diretivo, facilitaria o fluxo discursivo e o
estabelecimento de transferência – no mínimo imaginária – impondo poucas
resistências. O segundo roteiro, por consistir em uma pergunta aberta, poderia gerar
mais resistências, eventualmente superáveis pela transferência estabelecida na
primeira entrevista.
133
A mesma pergunta complementar era feita com relação aos outros assuntos: ver televisão,
escutar música, etc.
349
significantes verbalizadas e não verbalizadas pelos sujeitos: gestos, olhares, tom de
voz, pausas, etc.
Cores diferentes foram usadas para cada núcleo familiar; quando as cores são
as mesmas é porque se trata de membros diferentes do mesmo núcleo familiar.
350
entrevistados de 1 a 4 são de São Paulo; os entrevistados 5 e 6 são de Belém e os
entrevistados 7 e 8 são de Pau dos Ferros. No segundo quadro ‘Primeiras entrevistas
com núcleos familiares de crianças alfabetizadas’ (Quadros 5), dividido em duas
páginas, os entrevistados 1 a 2 são de São Paulo; os entrevistados 3 e 4 são de Belém
e os entrevistados 5 e 6 são de Pau dos Ferros.
351
Quadro 4: Primeira entrevista com núcleos familiares de crianças com dificuldades de alfabetização
S
2 Todos os Desenhos Só de Aniversário Boneca, esconde- AV gostaria de
S S Samba pagode N N N N S S
SP dias infantis família s esconde, mãe da brincar mais
rua
Esporte
3 Todos os novelas S Foi só com Brincou muito na
S S N N N AV AV N S N
SP dias desenhos Muito escola infância
infantis
Não brinca
Novelas
4 Todos os Acha que Só de mais, mas
S infantis e S MPB, rock N Foi pouco N S N S S
SP dias gosta família gostaria de
notícias
brincar
5 Todos os Só de
S N S horóscopo N N N N N Aniversário AV Queimada boneca S
PA dias família
7 Todos os N teatro
S N S Brega N Sertanejo N S cidade N AV Caiu no poço S
RN dias Show S
352
Sobre o que o familiar conversa com a
Alguém criança?
Gosta de contar Conta histórias Gosta de Do que a
Gosta de contava Sobre o que a criança
Entrevistado Lê? O que lê? histórias para para crianças? Se ouvir criança
ler? histórias na fala em casa?
crianças? não, porquê? histórias? brinca? Pergunta
sua infância? Pergunta direta
indireta
Jornal (esportes), N
1 S Programas de
S AV história infantil S S Só a Sobre a escola Bonecas Trabalho e escola
SP Todas as noites televisão
para crianças televisão
Desenhos da TV
2 Só o Sobre a escola e os Casinha e
S N --- S S S e brincadeiras Escola
SP professor amigos escolinha
de infância
Gostava
Revistas e jornais N Sobre a escola:
3 quando Escola, sobre as
S S (esportes). Não S Porque não tem N atividades feitas, Bonecas Novelas infantis
SP passava na atitudes da criança
gosta de livros tempo histórias escutadas
televisão
N S
Revistas, N
4 Porque não sabe Muito, de Bonecas e
AV AV romances, N Só a Sobre a escola Novelas infantis Novelas infantis
SP contar e não tem pessoas dançar
espíritas televisão
tempo mais velhas
AV
5 Poesia, mas não se Criança não gosta de Brincadeiras e
AV S AV Só quando a N N Bola e correr Comportamento
PA lembra quais falar jogos
criança pede
S
S N Bola vídeo Programas de
6 Desde que Escola e importância
S S Textos científicos S Mas não pode ser Leu mais do Sobre escola e televisão game, TV, peças
PA não seja dos estudos
muito longa que escutou bicicleta teatrais
longa
7 Romances e N Sobre vídeo games e Bola e vídeo Brincadeiras e
AV S N S S Comportamento
RN poesias de amor Não gosta programas de TV games vídeo game
AV Programas de
8 Poesia Mas não se Sobre escola e desenhos Bola e Estudos e
N AV AV Quando tem S bastante N TV e
RN lembra infantis boneca brincadeiras
tempo brincadeiras
353
Quadro 5: Primeira entrevista com núcleos familiares de crianças alfabetizadas
354
Gosta de Sobre o que o familiar conversa com a
Alguém
contar Conta histórias Gosta de Sobre o que Do que a criança?
Gosta contava
Entrevistado Lê? O que lê? histórias para crianças? ouvir a criança fala criança
de ler? histórias na
para Se não, porquê? histórias? em casa? brinca? Pergunta indireta Pergunta direta
sua infância?
crianças?
Todos os Sobre escola,
De ler,
gêneros curiosida Música, filmes,
S descobrir e
1 S principalmente S des e livros, Sobre todos os
Todos os dias S Conta todos os Os pais e avós inventar
SP Muito histórias Muito descobertas, brincadeiras, assuntos
dias coisas,
medievais, mitos jogos e acontecimentos
cabana
e ficção científica amigos
Sobre tudo, é
muito
S De jogos de Leitura, músicas,
2 S Quase todos Machado de S curioso e
S Quase todos os Os pais e avós tabuleiro, brincadeiras, Sobre valores
SP Muito os dias Assis Muito gosta de
dias bola, skate questões sociais
falar
bastante
Literatura S Sobre emoções,
Praticamente
S infantil, S Muitas contos situações
3 Tudo o que sobre tudo,
Muito Todos so dias quadrinhos e S muito Na escola e em S de fadas, Videogame cotidianas e
PA fez no dia especialmente
romances de casa causos e acontecimentos
sobre liberdade
banca de revista assombração passados
S só as da
4 Bíblia e Carinho e Obediência e
S S Só a Bíblia N N Avós Boneca Sobre Deus
PA dos mais respeito Deus
velhos
Sobre estudos,
AV Sobre a Bola
Sobre Deus e brincadeiras
5 especialmente S só as da escola e bonecas
S AV N AV AV na escola histórias da infantis e
RN as histórias Bíblia conta carrinho
Bíblia histórias da
bíblicas histórias videogame
própria criança
N porque
6 Sobre jogos Sobre igreja e
AV AV Não lembra não sabe N S Não se lembra Videogame Sobre Deus
RN eletrônicos Deus
contar
355
ANÁLISE DOS DADOS DA PRIMEIRA ENTREVISTA
Análise comparativa dos dados dos quadros acima aponta para diferenças
importantes entre os dois grupos investigados. Não sendo uma amostra
considerável, não estabeleceremos uma comparação numérica que se possa
estender a outros grupos de sujeitos, mas podemos destacar algumas questões que
nos parecem relevantes com relação à associação entre alfabetização, narrativas e
transmissão geracional.
No que diz respeito à prevalência discursiva, encontramos não dois, mas três
grupos diferentes. No grupo NA, no geral as entrevistas foram mais curtas (exceção
dada a duas delas), com narrativas mais informativas e menos enredadas. Mesmo
quando o entrevistado se referiu a algum acontecimento pregresso, percebemos que
a lembrança era evasiva e pontual (‘não me lembro bem’, ou ‘lembro que eu assistia
desenho, só isso’) e ainda que o entrevistador incitasse o entrevistado a responder
mais, as lembranças não se expandiam. Todas as vezes que se pediu para o
entrevistado falar sobre um texto lido, um programa assistido, uma brincadeira de
infância, etc., que tivessem sido marcantes em sua vida, as respostas referiram-se a
gêneros (‘gosto de ler sobre esporte’, ou ‘gostava de ver a Hebe’, ou ‘gosto de festa
de aniversário’) e não sobre o fato marcante em si (como por exemplo, ‘gostei de
uma entrevista que a Hebe fez com fulano porque aconteceu tal coisa’, ou ‘a festa de
aniversário de cicrano me marcou porque ...’).
356
antemão, que as entrevistas com familiares do grupo AL-I foram mais longas, com
narrativas mais elaboradas e as lembranças mais referenciadas em histórias
passadas e em antecedentes familiares. No grupo AL-R as narrativas foram mais
longas que do grupo NA, mas prolixamente em torno do mesmo assunto: Deus, culto,
religião, bem/mal; também neste grupo encontramos dificuldades dos
entrevistados para se lembrarem de acontecimentos.
Músicas, shows, cinema ou teatro não são objetos de muitas conversas no grupo
NA (aspectos culturais menos praticados) mas no grupo AL-I são bastante
ressaltados como importantes formadores culturais. Quanto a este item
‘Cinema/Teatro/Show*’, é importante ressaltar que os entrevistados de Pau dos
Ferros, disseram nunca terem ido a cinema e teatro porque não há aparelhos
357
culturais destes tipos na cidade134 e em Belém estes lugares culturais são de difícil
acesso. Talvez a falta de disponibilidade destes aparelhos culturais seja um dos
fatores influentes para encontramos um discurso mais religioso nesta regiões do
norte e nordeste brasileiro, nas quais o grupo AL-R foi mais prevalente em nossa
pesquisa.
Sobre isto temos a acrescentar que a prática religiosa (de diferentes credos) se
dá por todas as cidades da região de Pau dos Ferros e é um polo aglutinador de
acontecimentos: missas e cultos ordinários congregam boa parcela da população,
assim como os rituais de casamento e morte, que arrastam os sujeitos para dentro
das casas, uns dos outros e para as ruas, onde o evento é amplamente debatido e
comentado135.
No item relativo às festas a referência maior do grupo NA foi sobre aquelas que
se dão em família, ou comemorações promovidas pela cidade (novamente caso
prevalente em Pau dos Ferros). No grupo AL-I novamente encontramos respostas
mais diversificadas: festas de família, igreja, formatura, carnaval, de amigos.
134
Pau dos Ferros fica no sertão do Nordeste, distante cerca de 400 quilômetros da capital do Rio
Grande do Norte, Natal.
135
Ver sobre este tema, no Anexo C, poema escrito por Maria da Conceição Costa, professora da
UERN, doutoranda da FE-USP e coordenadora do PROJETO “DESAFIOS” em Pau dos Ferros.
358
AL-I ainda brincam e incentivam a prática de brincadeiras criativas e estabelecem
parâmetros de comparação com as práticas atuais de brincadeiras/jogos eletrônicos
(os quais são vistos com ressalvas).
359
leitura se dão em torno da Bíblia; não contam histórias para crianças (e
esporadicamente quando o fazem são histórias bíblicas); um dos sujeitos se lembra
que escutava histórias dos avós, mas não lembra quais e os outros dois escutaram
poucas histórias na escola (mas também não se recordavam delas). Mas novamente
encontramos interesse por histórias: todos eles gostam de ouvir histórias e gostam
quando os padres/pastores falam das histórias da Bíblia; um entrevistado também
gosta de ouvir os mais velhos.
360
Nesta diversidade de dados, podemos identificar um fenômeno relevante para
esta tese. Ainda que as práticas de leitura e de contar histórias não seja unânime, o
desejo por ouvir histórias o é. Sem exceção todos os sujeitos manifestaram gosto
pelas narrativas: com maior entusiasmo para aqueles que tiveram na infância esta
prática muito presente e com maior lamentação dos sujeitos que ouviram poucas
histórias.
Entre aqueles que ouviram histórias na infância, identificamos claramente a
transmissão geracional do modo narrativo, nos hábitos das crianças: são mais
leitoras do que as outras e têm um discurso narrativo também mais presente,
chegando a envolvê-lo nas brincadeiras. Entre os que não escutaram histórias na
infância, ou escutaram pouco, identificamos a falta que sentem desta prática e a
importância que atribuem a ela junto aos filhos, mesmo que não saibam ou consigam
contar histórias. Este dado reaparece nas segundas entrevistas que fizemos, como
se verá adiante.
Outro ponto relevante é que entre os que ouviram poucas histórias, a lembrança
é de que a escola ou a televisão foi o veículo da narrativa. Estes adultos, não sendo
mais frequentadores das escolas e não tendo adquirido o hábito da leitura,
continuam tendo na televisão ou nos cultos religiosos os principais meios de acesso
aos enredos. De qualquer modo nestes caso os sujeitos são passivos
ouvintes/espectadores das narrativas, não sendo capazes de uma discursividade
mais ampla, com relevos de memória e intertextualidade, como as que encontramos
no grupo que tem hábitos que envolvem intensamente e cotidianamente a busca
pelas narrativas através da leitura e das transmissões geracionais. Isto se reflete nas
possibilidades discursivas entre adultos e crianças, uma vez que estes sujeitos com
pouco contato com narrativas estabelecem com seus filhos diálogos em torno de
pragmatismos formais: necessidade de estudo, comportamento, obediência –
discurso restrito também reproduzido pelas crianças.
Sobre a consequência da presença/ausência narrativa nas famílias, com relação
à alfabetização das crianças, podemos inferir o seguinte: no grupo NA as narrativas
são propostas prioritariamente pela televisão, em torno da qual as relações se
estabelecem; no grupo AL as narrativas são amplas, oriundas de diferentes lugares
(AL-I), ou são únicas, mas fundamentadas em referências míticas-bíblicas (AL-R) e,
361
ainda que os sujeitos sejam passivos ouvintes, estão em uma posição relacional com
o Outro (texto ou orientador religioso).
Provisoriamente podemos concluir destas primeiras entrevistas que:
1. O discurso infantil acompanha o discurso familiar: Encontramos uma
discursividade familiar mais fluida, com acesso fácil aos referenciais
mnêmicos e às narrativas de tradição familiar e histórica no grupo AL-I.
Neste grupo os discursos são mais amplos quantitativa e
qualitativamente, as fontes de referências discursivas são mais
diversificadas e os discursos infantis acompanham os dos adultos na
diversidade de repertório e complexidade narrativa, refletindo em
melhor posicionamento subjetivo das crianças no espaço familiar e
escolar, Neste grupo também está mais presente a referência a
elementos lúdicos infantis, que permeiam práticas e discursos. No grupo
AL-R a discursividade é menos fluida do que no grupo anterior, mas
maior e mais referenciada historicamente do que no grupo NA. Não
encontramos muita referência lúdica nas práticas e discursos deste
grupo, cujos conteúdos expressam-se basicamente pela religiosidade e
comportamento. Isto também aparece na Subjetividade das crianças. Por
outro lado a falta ou precariedade de narrativas referenciadas à memória
e às tradições (grupo NA) e mais centradas em pragmatismos cotidianos
revelam um discurso menos fluido e mais presentificado tanto dos
adultos, quanto das crianças, com poucos relevos aos ludismos infantis.
2. Os ludismos infantis ainda causam prazer em todos os adultos
entrevistados e convocam as memórias mais facilmente do que os
assuntos pragmáticos do cotidiano adulto. Mesmo para aqueles que
apresentaram dificuldades no resgate mnêmico das atividades próprias
da infância (brincadeiras, narrativas, etc.) a simples menção a elas
mobilizou o desejo, revelando que estes são temas vivos no Sujeito,
embora adormecidos por questões contingenciais.
362
Os elementos que constam nos quadros abaixo (Quadro 6 e Quadro 7) são
transcrições das primeiras respostas espontâneas dadas à pergunta, sobre as quais
foram pedidos outros esclarecimentos, que não constam dos quadros mas que serão
discutidos em seguida.
1 Investir na educação, uma boa escola, lembrar como a gente foi na escola e
SP aulas de reforço.
2 Leitura, em primeiro lugar. Leitura mesmo.
SP
3 Uma boa escola, pais dedicados, saber estudar e conhecer os problemas e as
SP qualidades do filho.
4 Incentivo, os pais dizerem que é importante estudar e ajudar nos deveres.
SP
5 Mais leitura, né.
PA
6 Ter acesso a diversos tipos de leitura no cotidiano das coisas.
PA
7 Que estude pra aprender. Não sei explicar.
RN
8 Modo de ensinamento da professora, estudar e prestar atenção.
RN
Quadro 7: Segunda entrevista com núcleos familiares de crianças alfabetizadas (AL-I e AL-R)
1 Pela experiência que tenho com meus filhos, é preciso estimular. Tem que
SP oferecer bastante estímulos para entenderem os símbolos das letras.
363
posicionamento esperado dos alunos/crianças, posicionamento esperado dos
pais/responsáveis e posicionamento esperado dos professores/escola.
Não consideramos que esta cisão entre as partes seja reflexo de descaso ou
desconhecimento de como se dá o complexo processo de aprendizagem, uma vez
que esta mesma separação – como observamos ao longo do Capítulo 1 desta tese –
está presente nos pensamentos que subsidiam as teorias e discussões oficiais e
acadêmicas sobre a educação. Na nossa leitura estes familiares incorporam o
discurso que fraciona a aprendizagem e isola elementos que justificam, por exemplo,
teorias como a do fracasso escolar pelo déficit cultural, ou pelo aparecimento de uma
disfunção orgânica, ou pela formação insuficiente dos docentes. São discursos que
364
elegem alguns aspectos para investigação, mas geralmente deixam de fora ao menos
um dos outros elos.
Entrevistador: Mas para ela ser uma criança bem alfabetizada, o que a senhora acha que
é preciso para essa criança?
Familiar: Vamos supor que ela, quando passar para uma série ela conhecer bem as
coisas, ficar bem atualizada, para quando ela ir para aquela série, ela não tiver
dificuldades. Eu acho que é isso... No meu ponto de vista acho que é isso, eu acho né?
Tem muitas crianças que passam para outra série, vamos supor se a minha filha não
tivesse aqui, mas em outras... muitas escolas passam a criança sem saber o que ela tá
fazendo e isso prejudica a criança... Que eu me lembre é só isso.
Fica evidente na aflição desta mãe, que sua preocupação é que aconteça de a
filha ser promovida na escola de qualquer jeito e que chegue ao final dos anos
365
letivos, como tantos outros alunos ‘de outras escolas’, sem saber as coisas que
precisa. É necessário ‘conhecer as letras e as palavras’: ainda que na nossa visão a
alfabetização não se dê só com estes subsídios, o seu temor é que nem isto a filha
saiba. É portanto, um sujeito que com seus poucos anos de estudos (só concluiu o
EFI), deseja algo mais para os filhos e identifica que na escola há um possível entrave
a isto. É uma mãe que procura se atualizar ‘nas palavras de Deus’ e nelas instruir os
filhos (que frequentam a escola dominical), porque acha importante que tenham
valores religiosos, que aprendam o que ‘presta’ e o que ‘não presta’ e que saibam
‘respeitar as outras pessoas’ e aquilo que têm.
Vemos que apesar de ser bem sucinta na sua segunda resposta, no conjunto das
duas entrevistas expressa seus valores e como os transmite aos filhos, como enreda-
os na relação com os estudos e com a escola, o que espera do papel da escola e dos
professores, e o que espera de seus filhos e para eles. Filhos cujo desempenho
escolar é plenamente satisfatório.
Outra análise que podemos fazer dos dados das segundas entrevistas é o relevo
às respostas que mencionaram a necessidade de que a alfabetização aconteça como
fruto de relação entre sujeitos e não como acontecimento espontâneo entre aluno e
366
objeto do saber. Oito entrevistados mencionaram indiretamente esta necessidade:
boa relação, modo de ensinar, dedicação, estimulação, valorização, apoio,
acompanhamento. Seja por meio da escola/professor, ou dos familiares, identificam
que a aprendizagem se dá na relação com o outro, marca que para nós é decisiva e
necessária à alfabetização.
Passo agora à análise dos dados expressos por quatro familiares que disseram
que a leitura é o ponto central para que uma criança se alfabetize. No cotejamento
com as respostas dadas nas primeiras entrevistas e com dados complementares
destas segundas entrevistas, veremos os relevos destes pensamentos.
367
Entrevistado 6 (grupo NA):
Ter acesso a diversos tipos de leitura no cotidiano das coisas é uma frase talvez
inusual para um indivíduo se referir à alfabetização do filho, mas não a um estudioso
do processo de aquisição da escrita. Esta é uma mãe que se pós-graduou em
pedagogia e que centra suas leituras em textos científicos e acadêmicos que versam
sobre a psicogênese da escrita, ciências da cognição e transtornos de aprendizagem.
Identifica que tanto ela, quanto o filho, são portadores de TDAH e por isto estuda
muito o assunto; talvez atribua a este transtorno o motivo pelo qual as histórias que
conta e escuta não possam ser longas. Ela assiste desenho infantil com o filho pois é
uma forma de ficar com a criança. Um dos programas a que assistem juntos é ‘Agente
urso’, [...] porque é um desenho que ensina e é preciso que a criança aprenda
ludicamente.
Como complemento da pergunta sobre o que é preciso para que uma criança se
alfabetize, diz:
Ele tem que visualizar um pouquinho a questão da leitura, do quadrinho, das placas, é
uma questão cotidiana para mim. A leitura tem que estar inserida no dia a dia da
criança, nem que seja na plaquinha do pedestre, na placa de sinalização. Todas as coisas
estão envolvendo a leitura para mim, primordialmente é esse o estimulo a essa leitura...
Não só a leitura da palavra, mas a leitura do cotidiano, leitura da realidade dela. Pode
ser num detalhe, um bilhete, é um desenho que ela te explique, são coisas que às vezes
a gente acha irrelevante, mas são pequenas coisas que fazem com que a criança
visualize a vida dela, entre aspas, porque é a rua, é o ar-condicionado, é o parquinho:
tudo ela tá vendo e tá tendo uma leitura. Até as pessoas, né? Às vezes a gente lê as
pessoas sem conhecê-las, né? A gente vê o jeito das pessoas, tipo jeito, andar e você
percebe como as pessoas são... nem sempre é o correto, mas a gente tem aquela leitura
querendo ou não, entendestes?
368
Aqui claramente as narrativas não fluem, a transmissão geracional fica
interrompida por um saber supra relação, que eleva o filho ao status de
experimentação teórica. Todo compartilhamento, do televisivo às brincadeiras, é
envolvido em intenção e pela expectativa de se verem realizar os acontecimentos
‘leitura do cotidiano’ e compreensão das regras. Como afirma Belintane, subsidiado
por Tfouni, [...] o fenômeno da dispersão pode se dar tanto na produção oral como na
escrita, e que nem sempre o grau de escolaridade é suficiente para indicar maior ou
menor propensão à autoria (BELINTANE, 2011: 93).
A entrevistada 1 gosta de ler, mas não lê; gosta de ouvir histórias, mas na
infância só escutou algumas histórias contadas por professores. Ainda assim, conta
histórias para a criança. A gente lê bastante coisas pra ela – e... é, leitura mesmo. Só
369
leitura mesmo! Bastante leitura. Quando indagada sobre como a leitura pode ajudar
na alfabetização, esta entrevistada respondeu que seria [...] um jeito de conhecer as
palavras e a história. Para ela a alfabetização compreende mais do que saber
palavras, uma vez que dá importância também às narrativas.
Questionada sobre como a criança seria uma leitora se em casa os adultos não
liam, respondeu: Ah... ela gosta, né, de... dá pra ver que ela gosta de vê revista, gosta
de... pede pra gente ler... Então eu acho que ela vai continuar, porque ela gosta muito
de personagem... eu acho que... vamo vê, né... não sei...
A mãe faz uma aposta inicial calcada no desejo puro de que a filha prossiga na
leitura, mas não tem elementos para subsidiar este desejo. A própria vivência
empobrecida que tivera com textos ao longo da vida e a consciência tardia de que
fizera falta, parece pesar no incentivo que dá à filha para que continue a ser leitora.
Em sua fala reconhece a importância da leitura e do prazer que tivera com ela na
infância, mas a fragilidade desta experiência converte este encantamento em um
discurso alienado que não permite amparar este mesmo desejo junto à filha.
De qualquer modo, o cônjuge que dissera ler histórias para a criança todas as
noites, mas que também não tinha escutado muitas histórias na infância e parara de
ler precocemente, pôde posicionar-se de outro modo diante da indagação da
entrevistadora:
Na verdade nóis tem que se readaptá, né. Voltá a lê, né, pra ajudar ela. Vamo ter que...
na verdade é isso: vamo ter que participar junto! Se a gente desacostumar... não ler mais,
vai ter que passar a ler. Tanto é que esses gibis que eu compro pra ela agora – esse
Mônica Jovem, esse almanaque novo aí – a gente lê pra ela, a gente... são história contada
e ela gosta que lê. Mesmo ela sabendo, ela qué que lê e vamo ter que lê, né. Eu
370
principalmente, no meu caso que chego... quando ela chega da escola sempre a gente tá
lendo... Tô me readaptando, reacostumando...
Gosto porque vejo que ela gosta muito quando eu conto... Ela pergunta quando não
entende alguma coisa, e fica ouvindo, prestando atenção. Tem as história que eu leio
pra ela... Toda noite, quase, a gente lê, né filha? Acho importante, porque de noite... a
mãe dela não tá em casa porque trabalha até tarde, então eu preciso fazê alguma coisa
que ela gosta e aproveitar esse tempo que a gente tem junto, né? Eu leio as histórias aí...
ela adora história de princesa... tem a Rapunzel, a Branca de Neve... essas...
Por outro lado este mesmo pai acredita que aula de reforço é uma das vias de
alfabetização infantil, pois a sua própria alfabetização se deu por intermédio de uma
professora particular que dava ‘reforço’:
Minha alfabetização foi... foi tranquila porque, assim, na primeira série tinha uma
professora que ela era ... ela era rigorozinha. Ela era..., só que ela ensinava bem e minha
mãe pagou um reforço pra mim – por isso que eu tentei com a [criança] e depois a gente
viu que nem precisava... O reforço pra mim foi ótimo: quando eu fui pra segunda série,
eu tava alfabetizado. Eu lembro quando eu fui pra segunda série eu já tava alfabetizado.
Entrevistador: Você acha que a tua alfabetização deveu-se mais ao reforço do que à
escola?
Reforço!, reforço!, porque a escola – 45 alunos, por exemplo, tinha dentro da sala –
quase que não tinha lugar pra sentar na sala, então era difícil alguém sair alfabetizado
de uma sala de primeira série. Aquilo era um negócio meio sério, e o reforço ajudou
muito! Tinha uma senhora que dava reforço e minha mãe colocou eu. Era eu e meu
primo na época, quando a gente... ele não tava nem na primeira série quando ele fazia
esse reforço e quando ele foi pra primeira série, ele já foi lendo. É como se fosse uma
creche, né, no caso, porque no nosso tempo não tinha... nóis não fez creche: eu entrei
direto na primeira! Não fiz creche. Não tive prezinho, esses negócio.
371
se a soluções extra classe (aulas de reforço). Assim, de maneira alienada, os cuidados
educacionais são buscados em espaços fora da escola.
Propomos, então, a discussão de como isto pode se dar em sala de aula, através
de atividades focadas nos alunos. Apresentamos a seguir dois casos entre tantos
atendidos ao longo de dois anos do PROJETO “DESAFIOS”.
373
5.3.O RESGATE DAS NARRATIVAS E DAS MEMÓRIAS –
REPRESENTAÇÕES EM SALA DE AULA
Retomo, então, a criança que gosta de narrativas de bruxas (na Tabela Avaliação
Diagnóstica da página 343 desta tese é a criança 13 e nos Quadros de Entrevistas 4
e 6 corresponde aos familiares 1 e 2).
136
Acrofonia é a identificação do som das extremidades de uma palavra. No projeto usamos como a
identificação do som inicial de uma palavra (primeira sílaba), palavra esta nomeada inicialmente a
partir de uma imagem e depois acompanhada da sua grafia.
137
Leitura de rébus como expusemos no Capítulo 4 desta tese.
138
Novamente, expomos esta nomenclatura por ainda ser uma referência ao corpo docente das
escolas em que o PROJETO “DESAFIOS” vem sendo realizado.
374
Bastante falante, em alguns momentos desligava-se completamente da aula e
ficava quieta, pensativa – geralmente nos momentos de atividades individuais de
escrita ou leitura em sala de aula. Às vezes era bastante coerente nos recontos que
fazia das histórias, mas em outros momentos dispersava-se e não era capaz de
recontá-las.
Este foi o caso do primeiro desenho pedido no início do ano como parte da
avaliação diagnóstica, feito sobre a história do ‘Zé Bocoió’. Pediu-se que as crianças
fizessem um desenho retratando três cenas da história e que depois descrevessem
as cenas. A aluna faz a seguinte descrição, nesta ordem:
Aqui é onde eu vou fazer as crianças brincando. Aqui as crianças caíram na água e aqui
é a igreja.
Aqui é o açougue.
De fato, as três cenas descritas faziam parte do enredo, embora em outra ordem
de acontecimentos (casa, açougue e igreja)139, mas chamou a atenção que pelo
desenho apresentado não era possível identificarmos os elementos relatados como
‘igreja’, ‘água’ ou ‘açougue’ – só soubemos disto porque ela falou. Na primeira parte
do desenho – correspondente à igreja – fizera duas árvores e cinco figuras humanas
(uma delas a menina de laço no chapéu), com nuvens e sol. Na segunda parte –
correspondente à casa – fizera uma casa com portas e janelas (com algumas partes
139
Para esta atividade não consideramos este aspecto cronológico, uma vez que não especificáramos
isto na sua comanda.
375
destas pintadas) e mais um elemento ao lado que parecia outra casa, mas sem portas
ou janelas. Na terceira parte – o açougue – havia duas figuras humanas bem menos
elaboradas que na primeira parte, e um elemento pontiagudo que não dava para
identificar o que era. A igreja e o açougue apareceram no relato, mas não no desenho.
Ao longo do primeiro semestre de aula às vezes lia uma palavra inteira posta na
lousa e em outros momentos não identificava sílabas simples constantes destas
mesmas palavras. Esta situação persistiu até o segundo semestre, como se pode ver
em episódio registrado no mês de agosto, em que precisava ler simplesmente ‘sala
de aula’ em um bilhete entregue por um amigo. Ela conversa com outra aluna:
Aluna: É o S e o A. É SA.
Amiga: Você não leu direito. Tá faltando coisa. Cê só falô essas duas aqui.
Aluna: D e E, DE
(Aluna olha longamente, mas não toma a iniciativa de ler, nem ao menos de soletrar as
letras).
Aluna: A e U... É A!
376
Aluna: AU. (Olha para o LA e diz: LA, mas na hora de unir as palavras, lê: Escola de
Aplicação?)
Antes deste episódio, no mês de maio pediu-se outro desenho sobre história.
Tratava-se de um conto acumulativo – ‘O macaco e o grão de milho’. A aluna fez dois
desenhos complementares, como se vê abaixo na Figura 21 e Figura 22:
377
Figura 22: Desenho realizado por aluna do 1º. Ano EFI
Dois dias depois pedimos individualmente que cada aluno recontasse a história,
tendo como suporte, se quisessem, os desenhos que haviam feito. O reconto da aluna
segue abaixo.
É a história do macaco e o ... esqueci... não sei... [Como é esta história?] Tinha um macaco,
uma árvore, aqui tem um grão de milho, um machado, o sol – eu fiz, né, o sol – aqui atrás
(na parte de trás da folha, onde continuara seu desenho) a onça, e a água tomando
banho. O macaco encontrou o grão de milho aí o macaco pegou e subiu na árvore e o
grão de milho caiu e o macaco falou assim: ‘Árvore, devolve o meu grão de milho!’ –
como não falava, não devolveu nada – aí o macaco falou pro machado cortar o tronco.
Já que o machado não foi cortar, ele foi chamar o fogo – iii, eu não fiz o fogo! – o fogo
claro que não falava, e não falou; aí foi chamar a água, que claro que não falava e não foi.
Aí ele chamou a cotia, mas ela não falava e não foi. O macaco chamou a onça – que não
foi – e aí o macaco foi chamar o homi lá – eu não sei o nome dele, aquele que... que... ah!
378
ele caça! – ah, o caçador, esse aqui com chapéu! O caçador que tava atrás daquela cotia
ali (aponta para o mural da sala), aí o macaco foi chamar a morte, que disse que ia matar
todo mundo e acabou. [Acabou?, mas e o macaco conseguiu o seu grão de milho de
volta?] Sim. [Como?] Ele devolveu com medo da morte.
Uma das estratégias adotadas com esta aluna desde o primeiro semestre letivo
tinha sido de semanalmente contar-lhe histórias individualmente ou em pequenos
grupos de alunos. Geralmente nestes momentos escolhia histórias de bruxa, uma
insistência que a dado momento pareceu-nos excessiva, como a intromissão da
menina do laço no chapéu.
140
História retirado de um livro com contos de diversas regiões da África, selecionados por Nelson
Mandela: OELKE, Julius.
379
aos encantos da ave. Restaram as crianças, que finalmente exterminaram a ave
derrubando a enorme árvore em que se abrigava.
Eu: Quem?
Mais adiante li: – Cortem a árvore! Essa é a solução! – ele comandou. Neste
momento ela comentou:
Expliquei para ela o que é tribo, resgatando o filme do Kirikú que assistira na
sala, e expliquei o que é um chefe tribal. Em seguida, depois que eu li A canção era
tão fascinante que os machados e os facões foram escorregando um a um das mãos dos
homens, ela desenhou um arco com flecha, apontados para cima, e comentou:
Aluna: No chão.
Eu: Quem?
380
Aluna: As crianças.
Aluna: Ah! Eu não sei fazer menino pequeno. Só sei fazer menina.
Iniciamos com a análise do desenho, mas cabe dizer que não se trata de análise
como se faria na clínica psicanalítica ou psicológica, já que é uma investigação que
se faz no campo da educação (como a que acreditamos). O desenho é tomado como
mais um elemento de intertextualidade, isto é, a expressão gráfica da criança a partir
de uma narrativa ou acontecimento mostra elementos de compreensão dos enredos.
381
A confusão entre os termos e conceitos que expressou ao longo da atividade
reflete bem as confusões com as palavras, sílabas e letras que apresentava nas
atividades de sala de aula. Como ilustração, retomamos uma lição em que se pediu
para os alunos identificarem em um texto a rima de algumas palavras, atividade já
bastante trabalhada em sala de aula. Ao pedirmos que rimasse ‘galinha’ com outra
palavra, insistentemente dizia É asa! É asa! É evidente a capacidade metonímica que
a aluna expressa na linguagem ao destacar um elemento do objeto para representá-
lo na totalidade da coisa, essencial para conduzir uma boa leitura e interpretação de
textos. A questão que se apresenta para a aluna, no entanto, é que seus enunciados
metonímicos aparecem frequentemente na fala como um elemento incoerente aos
ouvidos alheios, interrompendo os diálogos que se estabelecem em uma sala de
aula; irrompem como o inconsciente, impedindo que muitas vezes o outro
compreenda o que quer dizer. Esta inadequação social é o que se mostra como
elemento que dificulta sua alfabetização, uma vez que se intromete na fala cotidiana
deixando a criança à deriva da linguagem.
382
Neste atendimento retomei com ela as interferências figurativas que
apresentava antes e como isto dificultava para os outros a compreensão do que ela
queria dizer; analisei com ela a diferença entre o desenho do ‘homem’ e o da ‘menina’
e, principalmente, o daquela menina ali (criação/identidade dela) com a menina que
fazia antes por repetição (imitação por identificação a outra aluna). Analiso que a
interdição inicial feita sobre a imagem que sempre copiava foi um fator decisivo para
poder iniciar a busca de um traço próprio de identificação.
Ao final desta tarefa a resposta primeira da aluna foi uma manifestação de alívio
e felicidade. Mais do que uma lição escolar terminada, com a atividade narrativa que
desenvolvemos juntas pode começar a dar um contorno a divagações subjetivas que
interferiam na sua representação de mundo.
O segundo caso que trazemos para análise teve início no 1º. Ano EFI em 2011. A
avaliação de ingresso do aluno, realizada pela coordenação da escola antes do início
das aulas, mostrou que ele reconhecia poucas letras e números mas, principalmente,
que tinha poucos repertórios de linguagem: confundia elementos como cor, nome
383
brinquedos e brincadeiras, lugares, etc., não sabia as posições relacionais e de
grandeza dos objetos.
141
Síntese da avaliação do 1º. Ano EFI realizada pela professora regente, ao final do ano letivo de
2011.
384
Leitura: acompanhar leitura em voz alta 0%, leitura de imagens 50%,
leitura de sequência de quadrinhos sem palavras 50%, leitura de
palavras simples 0%, leitura de palavras complexas 0%, agilidade para
ler e compreender frases 0%, leitura fluente de textos de pequena
extensão 0%.
Manejo da escrita: escreve o nome completo a partir da memória 100%,
copia texto com agilidade 25%, adequação da letra ao espaço da linha
75%, transcrição de um texto 0%.
Figura 24: Desenho realizado sobre a Lenda da Iara, por aluno do 1º. Ano EFI
385
Figura 25: Desenho realizado por aluno de 1º. Ano EFI sobre o tema ‘O que gosta de fazer’.
Uma, depois outra, expliquei-lhe o sentido das palavras e a partir daí a criança
pôs-se a falar sobre sua família e as relações de parentesco: Minha mãe já se separou
do meu pai quando eu ainda não tinha nascido; explicou que tinha um pai ‘que não
era seu pai’, uma mãe e uma irmã. Perguntei-lhe, então, se a irmã também era filha
de seu pai, ou do padrasto e neste momento começaram a aparecer as confusões de
que era alvo. No diálogo que se estabeleceu ficou claro que ele não sabia como eram
as relações de parentesco com as pessoas que moravam em seu núcleo familiar (oito
pessoas ao todo), uma vez que os avós dividiam o mesmo espaço físico e eram
chamados pelos próprios pais de ‘pai’ e ‘mãe’, assim como um tio que ele não sabia
se era irmão do pai ou da mãe.
386
Na semana seguinte, em outra atividade, pediu que lesse uma história para ele.
Quando tomei o texto nas mãos ele tentou ler o título do conto:
142
Este nome, como os que seguem na exposição de dados são fictícios, mas conservam as
propriedades que queremos analisar.
387
Nos atendimentos seguintes e também em sala de aula, a partir da visualização
da árvore genealógica, a criança começou a fascinar-se com descobertas sobre quem
era quem em sua casa e, principalmente, com a descoberta de que cada membro da
família das gerações seguintes tinham ‘nomes iguais’ (os sobrenomes) aos de seus
pais e avós. Com esta atividade ficou sabendo os nomes do tio, da mãe, dos avós e
descobriu que o nome do pai/padrasto não era Gilberto...
Podemos ver nestes dois casos relatados e naqueles que expusemos ao longo
dos capítulos anteriores desta tese, como as atividades com a oralidade e as
narrativas podem permitir, com mais propriedade do que o trabalho com textos
pragmáticos do cotidiano, as representações de lugares geracionais e/ou
identidades e/ou relações intersubjetivas, condições fundamentais para o acesso às
representações que se dão por contiguidade nas relações sócio histórias que situam
o sujeito nas relações sociais e culturais.
Enunciamos como hipótese desta tese a possibilidade de fazer confluir, pela via
das narrativas, o resgate mnêmico e as construções míticas infantil, com a
perspectiva de incidir sobre as repetições discursivas das práticas educacionais que
não se efetivam, levando-as a se modificarem. Para isto apontamos três campos por
onde estas práticas educacionais deveriam ser entrelaçadas: o sócio histórico, o
testemunhal e o subjetivo.
389
escolarização, como forma, inclusive, de suprir eventuais demandas onde elas são
carentes socialmente, ou de suprir o estabelecimento de representações que
vinculem estas narrativas subjetivas aos espaços dos acontecimentos sociais,
corrigindo erros históricos de exclusão dos sujeitos, não só na cultura, mas no uso e
experimentação participativa e criativa delas. Mais e melhores leitores
reposicionam o grupo social com relação aos provimentos oficiais oferecidos no
campo da educação.
390
6. CONCLUSÃO
Se nos fosse dado pensar em uma alegoria na qual pudéssemos condensar o que
expusemos sobre a alfabetização ao longo deste trabalho, recorreríamos a um conto
acumulativo: aquele que para ser compreendido em suas complexidade precisa
fazer um caminho de resgate mnêmico até onde se tensionam as demandas, para
então refazer o percurso de volta ao ponto em que a necessidade deve ser atendida
ou, no nosso caso, um Sujeito possa ler e escrever. Conto cuja representação e busca
de sentido ficam dificultadas se se elimina um dos elos.
O que fizemos foi indagar o campo da educação focando sobre os efeitos desta
prática e aí percebemos certa inconclusão em seus resultados, expressos por uma
legião de crianças e jovens que, embora alfabéticos, mal conseguem exercer suas
habilidades de letramento. Partimos, então, em busca de elementos que
justificassem tal enunciação.
391
e suas potencialidades de representação, das experimentações subjetivas (de alunos
e professores). O discurso oficial alfabetizador que se instalou hoje, vai na
contramão deste mesmo discurso que em sua origem preconizava a participação
ativa de professores e estudantes na construção de conhecimento singular em sala
de aula. Emergiu em seu lugar um controle oferecido pela produção de materiais
didáticos que iguala as aulas disseminando práticas que objetivam o cotidiano por
meio de sua decifração e não de sua interpretação, focando as atividades sobre uma
escrita homogênea e isolada de incidências subjetivas, substituindo a leitura e os
textos pela ‘leitura do mundo cotidiano’, adulto e pragmático.
392
em sua cultura familiar – o que na nossa alegoria seria levar o texto só na direção da
constatação da demanda – expusemos nos Capítulos 4 e 5 o que consideramos ser
diretrizes mínimas para um posicionamento ético e responsável diante da
alfabetização, lançando o olhar para dentro da escola.
393
longo das gerações e concluímos que textos simplificados, explicativos, descritivos
e informativos não formam bons leitores: no máximo produzem decodificadores e
consumidores.
Chegando ao ponto em que nosso conto se encaminha para o fim – que foi
também seu lugar de partida – a história da alfabetização brasileira mostra que ela
nunca se efetivou de forma plena, como uma prática de boa qualidade e ao mesmo
tempo estendida a todos. A alfabetização existe enquanto intenção política
governamental que financia a formação de professores, a confecção de materiais
didáticos, a construção de mais escolas, e de outras estruturas escolares, mas
sempre crediária de um saber construído fora do país. Falta às esferas
governamentais um reviramento tal sobre a história, que reconheça o que é a escola
brasileira e aí estabeleça um projeto sobre outros parâmetros – ponto em que se
deveria construir uma trama de escolas (nossas escolas!) onde se dariam os
trabalhos com o resgate da nossa cultura, da nossa história, onde caberia o
reconhecimento dos nossos gêneros da oralidade e nossas narrativas tão ricas e,
finalmente, onde estivesse resguardado o olhar não só para as diversidades, mas
também para as singularidades.
394
7. ANEXOS
7.1.Anexo A
143
A rotatividade dos bolsistas foi prevista no projeto de pesquisa que se estende verticalmente
pelos cinco anos do EFI. A proposta inicial era de que no ano de 2011 houvesse a participação dos
professores de 1º. e 2º. Anos, em 2012 os de 2º. e 3º. Anos, em 2013 os de 3º. e 4º Anos e em 2014
os de 4º. e 5º. Anos. Este planejamento foi alterado já ao final de 2011 quando constatou-se a
necessidade da manutenção do trabalho nos dois anos iniciais (1º. e 2º. Anos), uma vez que foi
395
O PROJETO “DESAFIOS” contempla estudos no eixo temático “Educação Básica”
(elencado pela CAPES / INEP) e articula sua proposta em torno da alfabetização
desde uma perspectiva interdisciplinar. Inclui, entre os pontos principais de
discussão teórica e aplicação prática, os temas oralidade, leitura e escrita e
linguagens dos suportes eletrônicos e dos meios contemporâneos (internet, cinema,
televisão). Focaliza seus tópicos, mais especificamente, nos processos de transição
da Educação Infantil para o Ensino Fundamental I (séries iniciais) e no fluxo escolar
dos Ensinos Fundamental I e Fundamental II. Tem como preocupação a disparidade
nível/série, como a que se verifica nas avaliações do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Brasileira (SAEB) / Prova Brasil dos quintos anos das escolas
brasileiras (antigas quartas séries144).
necessário um ano inteiro para estruturação, compreensão e ajustes importantes na pesquisa para
que pudesse ser melhor consolidada. No ano de 2012, a Escola de Aplicação da USP passou a ter três
salas de 1º. Ano, ao invés de duas como em 2011, passando de quatro para cinco professores-
bolsistas. Os mestrandos e doutorandos permaneceram no projeto enquanto suas pesquisas
pessoais estiveram em andamento. Os graduandos deixaram a pesquisa após o término do curso.
Outros desligamentos ocorreram por razões extraordinárias – caso da mudança de coordenação do
polo de Pau dos Ferros, ocorrida no meio do ano de 2011.
144
A Lei Federal no.11.274/2006 alterou de oito para nove anos a escolaridade do Ensino
Fundamental passando a incluir o último ano da Educação Infantil no ciclo. Já a Lei Federal no.
9.394/1996 apontava para a necessidade desta mudança, que se deu efetivamente só 10 anos
depois.
396
leitura e escrita em contexto escolar. Tal ação relaciona-se diretamente com a
discussão dos instrumentos de avaliação e indicadores de qualidade do ensino
instituídos pelos governos federal, estaduais e municipais e a elaboração de
propostas alternativas. (4) ‘Fatores determinantes na qualidade do ensino’,
considerando a relação entre a formação inicial de professores nas Licenciaturas em
Pedagogia e Letras e o trabalho docente no ano final da Educação Infantil e ao longo
do Ensino Fundamental. Trata de verificar, também, como as avaliações
governamentais, a situação escolar dos alunos e outros diagnósticos, bem como
bibliografia pertinente, são incorporados aos programas de disciplinas das
licenciaturas, em especial aquelas que reúnem os conhecimentos das áreas de
Linguagens e aquelas do campo do Ensino.
397
7.2. Anexo B
João Curututu
De trás do murundu
Vem pegá nenê
Que está com calundu
398
- Parlenda: declamação do texto, mesmo quando não tem sentido,
pois encadeia as palavras em uma coesão rítmica e rimada:
Mindinho
Seu vizinho
Pai de todos
Fura bolo
Mata piolho
Cadê o toucinho que tava aqui?
Rato comeu!
Cadê o rato?
Fugiu do gato!
Cadê o gato?
Foi por aqui...
399
Pra tocar seu vi-o-lão
Bã-rã-rã-bam-bão
Vem de lá seu de-le-ga-a-do
Pai Francisco foi pra pri-são.
Lá em ci-ma do pi-a-no
Tem um co-po de ve-ne-no
Quem be-beu
Mor-reu.
Ordem
No seu lugar
Sem rir
Sem falar
Um pé
O outro
Uma mão
A outra...
400
de Jó’ – e às vezes comandos que ademais se prestam à memorização
de rimas, sequência numérica – ‘Tumbalacatumba’.
Lindos castelos,
Belos penachos,
Água nas cuias
Flores nos cachos.
Resposta: Coqueiro (metáfora – castelos, penachos; metonímia – água nas
cuias, flores nos cachos).
401
a) Réplica: respostas dadas a perguntas sem sentido, ou inoportunas:
Vá lamber sabão!
Vá catar coquinho!
– Deixa eu vê. – Não vai chovê!
– Tô com fome! – Mata um home e come!
- Encontros consonantais:
O peito do pé
Do padre Pedro
É preto.
d) Palavra valises: permite a localização sonora de uma palavra dentro
da outra e a destacabilidade de letras ou sílabas:
402
assim como a oralidade tem sua origem nas ninas de berço, a grande
literatura também bebe na fonte dos épicos da oralidade.
145
Certamente não descartamos os textos vindos de outras tradições sociais. Oriundos da tradição
oral ou literária, há uma riqueza infindável de textos provenientes da Europa, Ásia, África e América
que podem e devem ser aproveitados. O que fazemos aqui é não subestimar a riqueza da nossa
cultura, além de priorizar o que todas as culturas consagraram como narrativas centenárias ou
milenares.
403
7.3.Anexo C
146
Antigo nome da cidade Rafael Fernandes (RN).
404
Algo que tanto me marcou
Foi uma história contada
Que uma figura narrou
De uma morte esperada
Que embora já meditada
Agonia provocou.
405
Grita logo, sem noção
Pedindo a intervenção
De mais uma parente.
406
Olhe que coisa engraçada
Como a cultura é coisa forte
O padre já tinha autoridade
Pra interferir naquela morte
Conforme a extremunção
Um sacramento, uma oração
Que do cristão é passaporte.
Passaporte só da ida
Porque volta não acontece
A aeromoça é Margarida
E o destino não se esclarece
Avião de um só passageiro
Que aterrissa no estrangeiro
Terra que chega quem falece.
407
O povo todo vai embora
Depois de tudo presenciar
O ritual foi duplicado
Além do padre já ter rezado
Margarida estava a arrematar.
408
Tudo que o defunto pôde ser
Na missa de sétimo dia.
Imagine a grande cena
Que é um vivente morrer
De uma morte esperada
Da qual não pode correr
Com um bando de gente do lado
Olhando quem ta prostrado
Sem ao menos poder socorrer.
409
Na minha terra existe
Tem uma senhora sofrida
Com uma carinha de triste
Que se ninguém se candidatar
A fazer o povo chorar
Ela chora, nem resiste.
Lá na minha cidade
Um defunto faz chorar
Não somente seus parentes
Mas de quem dele se lembrar
Por muitos será lembrado
Só é deixado de lado
Quando outro toma seu lugar.
410
Pois mesmo estando distante
Não me desvinculo um só instante
Do que compõe meu passado.
411
7.4.Anexo D
412
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
413
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
414
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
415
11) Você gosta de contar histórias? Quais e para quem?
Livre – Gostaria de falar alguma outra coisa que não tenha sido perguntado?
416
7.5. Anexo E
OELKE, Julius (2002). Meus contos africanos, São Paulo, Martins Fontes
Editora, 2002, Tradução de Luciana Garcia.
417
mãos dos homens. Estes caíram de joelhos, olhando fixamente para cima,
envolvidos e atraídos pelo pássaro que cantava para eles com todo seu radiante
esplendor colorido.
418
sentir o golpe do machado, a frondosa copa se abriu e o pássaro apareceu
exatamente como antes – ofuscantemente lindo. Mas as crianças não olharam
para cima. Os olhos delas estavam fixos nos machados e nos facões em suas mãos.
E continuaram a cortar e cortar e cortar no ritmo de sua própria música.
Naquela noite, o chefe tribal anunciou uma grande festa para recompensar as
crianças por seu feito.
(As frases por mim grifadas no texto marcam os pontos significativos em que a
aluna se deteve sobre a narrativa).
419
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