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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

LAURA BATTAGLIA

Das memórias narrativas às representações míticas:


arte e desafios na alfabetização

São Paulo
2013
LAURA BATTAGLIA

Das memórias narrativas às representações míticas:

arte e desafios na alfabetização

Tese de Doutorado apresentada à

Faculdade de Educação da

Universidade de São Paulo

Área de concentração:

Linguagem e Educação (EDM)

Orientador:

Claudemir Belintane

(EXEMPLAR REVISADO)

São Paulo

2013

1
2
Nome: BATTAGLIA, Laura
Título: Das memórias narrativas às representações míticas:
arte e desafios na alfabetização.

Tese apresentada à Faculdade de


Educação da Universidade de São Paulo
para obtenção de título de Doutora em
Educação

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. ___________________ Instituição:________________________


Julgamento: _________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. ___________________ Instituição:________________________


Julgamento: _________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. ___________________ Instituição:________________________


Julgamento: _________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. ___________________ Instituição:_______________________


Julgamento: _________________ Assinatura: ____________________

Prof. Dr. __________________ Instituição:________________________


Julgamento: _________________ Assinatura: _____________________

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DEDICATÓRIA

À minha pequena Luisa que me encanta e surpreende com a vivacidade de suas


experimentações: tenho muito orgulho de vê-la brincar, chorar, escrever,
desenhar, ler e falar com a alma infantil que resguarda e compartilha. Ao meu
companheiro Bruno com quem aprendo a comungar histórias tão diversas:
obrigada por se fazer presente todas as vezes em que me desencontro.

Aos dois, que pacientemente acompanharam todos os descaminhos deste meu


percurso: amor eterno simplesmente por existirem.

Ao meu pai Antônio Domingos Battaglia que me levou a experimentar os


Canteiros onde as obras se constituem sempre fascinantemente inacabadas: com
ternura agradeço a autorização a certa deriva, que ainda me faz escutar onde
cantam os pontos de apoio. À minha mãe Luisa Battaglia que me emprestou os
encantos das Línguas Maternas: agradeço com carinho todos os acalantos. A
ambos meu saudoso amor por terem compartilhado as memórias trazidas de tão
longe na alma e por me possibilitarem vivê-las livremente.

Aos meus avós Andrea, Yvonne, Alberto e Lúcia, e à minha tia Gabriella que
mesmo irremediavelmente longe ainda me ensinam a cantar ninas, olhar flores,
entalhar madeiras, bordar tecidos, gostar de guloseimas: obrigada pelos colos,
aconchegos e os cantos que trouxeram de outros lugares.

À irmã Marta Battaglia Custódio que me segredou os amorosos cantos do duelo.


Ao irmão Sérgio Toscano Battaglia que me faz cantar em harmonia.

Às sobrinhas Paula, Flávia, Yolanda e Catarina que estão aprendendo a cantar. Ao


cunhado Sérgio José que me faz resgatar os cantos dos Zés. À cunhada Janie que
faz dos cantos da alma o compromisso com o outro.

Às tias Marina e Ângela que cantam em comunhão. À tia Lourdes que sabe cantar
para muitos desencantados. À prima Lúcia que canta com paixão.

À amiga Alderita que me ensinou a cantar em outra língua.

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REVERÊNCIAS

... todas para Claudemir Belintane cuja dedicação à Educação é


encantadoramente consequente e amorosa. A este amigo que muito mais que
orientar, sabe oferecer, apaziguar, respeitar, cobrar, conversar, escutar e
ponderar: minhas sinceras deferências. Acima de tudo, minhas considerações
por fazer da interlocução com o outro os palcos onde compartilha as récitas,
declamações, cantos, brincadeiras e risos – alimentos para as almas que buscam
na memória a arte de viver.

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AGRADECIMENTOS

Pessoais

Ao Celso Favaretto quem primeiro vislumbrou a possibilidade de uma tese.

À Caterina Koltai e ao Emerson de Pietri que generosamente me ofereceram suas


escutas e compartilharam seus saberes para que esta tese tivesse continuidade.
À Caterina Koltai também por dividir o desfecho do trabalho e aos outros
membros da banca Anderson de Carvalho Pereira, Sheila de Oliveira Lima e
Thomas Massao Fairchild pela atenção e dedicação.

Aos queridos amigos professores regentes e de fato, Kamila Rumi, Natália


Bortolaci, Kátia Arila Nanci, Isadora Rabelo, Paulo Chagas Dalchecco e Carla
Rafaella dos Santos que trilharam comigo e me ensinaram a trilhar todos os
passos desta tese – com muito respeito: obrigada!

Às minhas amigas de sempre, Karyn Bulbarelli e Graziela da Costa Pinto. À amiga


Dercy Mie Akamine, pela maternância indireta.

À Conceição Costa e ao Thomas Massao Fairchild, companheiros dedicados desta


jornada e comprometidos com o trabalho da Pesquisa O desafio de ensinar a
leitura e a escrita no contexto do ensino fundamental de nove anos e da inserção
do laptop na escola pública brasileira (Edital no. 038/2010/CAPES/INEP).

Às companheiras de projeto Veridiana Alves e Tainan Quaresma, pela preciosa


contribuição na coleta de material para realização desta tese.

Aos profissionais e estudantes de São Paulo que participam da Pesquisa O desafio


de ensinar a leitura e a escrita no contexto do ensino fundamental de nove anos e
da inserção do laptop na escola pública brasileira (Edital no.
038/2010/CAPES/INEP), com quem semanalmente convivi durante dois anos e
que contribuíram imensamente para este trabalho.

Aos profissionais e estudantes de Belém e de Pau dos Ferros que participam da


Pesquisa O desafio de ensinar a leitura e a escrita no contexto do ensino
fundamental de nove anos e da inserção do laptop na escola pública brasileira
(Edital no. 038/2010/CAPES/INEP) que, mesmo à distância, colaboraram com
esta tese.

Aos alunos dos 1º. e 2º. Anos do Ensino Fundamental I da Escola de Aplicação da
USP, por expressarem a alegria de aprender; a seus familiares pela confiança no
trabalho e disponibilidade para esta pesquisa.

Aos companheiros de grupo de estudos que dividiram comigo textos e discussões


importantes: Sheila, Mariana, Celeste, Louise, Evandro.

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AGRADECIMENTOS
Institucionais

À Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e ao Instituto


Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais pelo financiamento desta
pesquisa e da Pesquisa O desafio de ensinar a leitura e a escrita no contexto do
ensino fundamental de nove anos e da inserção do laptop na escola pública
brasileira (Edital no. 038/2010/CAPES/INEP), e pelo reconhecimento da
importância de se pesquisar e propor mudanças na Educação Brasileira.

À Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, aos professores e


funcionários pelo acolhimento desta tese de doutorado.

À Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo e seus professores,


funcionários, coordenadores e diretores, que abriram as portas da instituição e
viabilizaram a pesquisa desta tese.

À Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará e à Escola Nila Rego de


Pau dos Ferros que disponibilizaram seus professores, pesquisadores, alunos e
familiares a participarem desta pesquisa.

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Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me
induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo,
desânimos, esforços. Dela me prezo sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém,
um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda
ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do
que seja na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com
que me familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo,
aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?
Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

JOÃO GUIMARÃES ROSA

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RESUMO

BATTAGLIA, Laura – Das memórias narrativas às representações míticas:


arte e desafios na alfabetização. 2013. 433 f. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

Nesta tese procura-se contribuir com o campo da alfabetização através do seu


enredamento com a memória narrativa e a representação mítica, sob as
balizas teóricas da Psicanálise e dos estudos sobre a oralidade. Ao
analisarmos como se deu a alfabetização no Brasil, de seu início com a
catequese indígena, aos dias atuais com (quase) todas as crianças na escola,
constatamos que sua efetivação nunca aconteceu: antes pela exclusão de
parcelas da população e hoje pela ineficiência das diretrizes educacionais
capitaneadas, ou pelas esferas de coordenação postas fora da instituição
escolar, ou pelos modelos pedagógicos estrangeiros à nossa cultura.
Notamos primeiro o esgotamento do saber docente que se faz pelo controle
da produção e do uso dos materiais didáticos; segundo uma prática
pedagógica que não considera a criança em suas particularidades infantis; e
terceiro, consequência das duas primeiras situações, a desconsideração não
só das diversidades, mas das singularidades. No campo dos acontecimentos
pedagógicos voltados à alfabetização, o olhar se dirige prioritariamente aos
processos de escrita (sempre pautados por um tempo de saber-fazer do
aluno), ignorando a importância fundamental da leitura que, sendo
negligenciada, é disponibilizada por meio de materiais simplistas,
homogêneos, que destacam uma leitura pragmática e desinteressante do
mundo, que assim funciona como uma decifração do cotidiano adulto e
atravessado por interesses de mercado. No lugar deste esvaziamento
simbólico do campo pedagógico demonstramos através de elementos do
PROJETO “DESAFIOS” uma alfabetização que acontece sobre três eixos: o
primeiro que contempla o resgate das narrativas de referência e da oralidade
poética com relevos estéticos, por permitirem mais facilmente a assunção de
uma posição leitora, subjetiva, propensa à intertextualidade e à interpretação;
segundo que considera no quadro das heterogeneidades, o trabalho com as
singularidades; e terceiro que não permite o isolamento do professor,
envolvendo-o em uma trama de relações por meio das quais os discursos
sobre a prática de ensino e aprendizagem circulam e se referenciam. Se de
um lado trouxemos a prática alfabetizadora para o lugar onde ela acontece –
relação professores-alunos – de outro apontamos ainda a urgência das
revisões governamentais com relação às políticas públicas em educação, que
devem considerar não só os investimentos financeiros nesta área, mas
também, e principalmente, a representação sobre as repetições discursivas
de exclusão, podendo assim fazer o resgate da história e envolver aspectos
da cultura brasileira em seus parâmetros.

Palavras-chave: alfabetização, oralidade, psicanálise, narrativa, memória e


subjetividade

9
ABSTRACT

BATTAGLIA, Laura – From narrative memories to mythical


representations: art and challenges in literacy. 2013. 433 f. Doctorate
Thesis – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2013.

This thesis aims to contribute to the field of literacy through its entanglement
with narrative memory and mythical representation under the beacons of
Psychoanalytic theory and studies on orality. By analyzing how literacy
occurred in Brazil, from the catechesis of its indigenous people to the present
day, with (almost) all children in school, it was noticed that it has always been
ineffective: formerly caused by the exclusion of portions of the population and
today by the inefficiency of the captained educational guidelines, or by the
coordination spheres, that were placed away from the school institution, or by
the foreign pedagogical models adapted to our culture. It is first noticed the
exhaustion of teaching knowledge, caused by the controlled production and
use of teaching materials; secondly, a pedagogical practice that does not
consider the child in their childhood features, and thirdly, as a consequence of
the first two situations, the disregard not only to the diversity as well as to the
singularities. In the field of pedagogical developments focused on literacy, the
gaze is directed primarily at the processes of writing (always ruled by an
amount of time of the student’s know-how), ignoring the fundamental
importance of reading, that being neglected, is provided through simplistic,
homogeneous materials, which highlight a pragmatic and uninteresting
reading of the world, which works, thus, as a decipherment of the everyday
adult life, crossed by market interests. In place of this symbolic emptying of the
pedagogical field it is demonstrated, through the elements of the
"CHALLENGES" PROJECT, a literacy that happens on three axes: the first
includes the rescue of reference narratives and of poetic orality with aesthetic
reliefs, for easily allowing the assumption of a reader positioning, subjective,
prone to intertextuality and interpretation; the second considers
heterogeneities in the context of the work with the singularities and the third
does not allow teachers isolation, involving them in a net of relationships
through which discourses about the practice of teaching and learning circulate
and reference one another. If, on one hand, literacy practice was brought to
the place where it happens – in the student-teacher relationship – yet, on
another, it is pointed out the urgency of government policies reviews in the field
education, that must consider not only the financial investment in this area, but
also, and especially, the representation of the repetitions discursive exclusion,
in order to allow us to make the rescue of history and involve aspects of
Brazilian culture in its parameters.

Keywords: literacy, orality, psychoanalysis, memory, narratives, subjectivity

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NOMENCLATURAS

AL-I – grupo de crianças alfabetizadas pertencentes a núcleos familiares


intelectualizados

AL-R – grupo de crianças alfabetizadas pertencentes a núcleos familiares


religiosos

ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

DCNEB – Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica

DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and


Statistical Manula of Mental Disorders)

EA-FEUSP – Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de


São Paulo

EA-UFPA – Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição

EFI – Ensino Fundamental I

EFII – Ensino Fundamental II

EI – Educação Infantil

EM – Ensino Médio

EMNR – Escola Municipal Nila Rego, em Pau dos Ferros (Rio Grande do Norte)

FDE – Fundação para o Desenvolvimento da Educação

FE – Faculdade de Educação

FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor

FLCAr – Faculdade de Letras e Ciências de Araraquara

Fundação CASA – Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao


Adolescente

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FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor

GESTAE – Instituto de Pesquisa, Ensino e Ação em Saúde Mental

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

IOP – Instituto de Oncologia Pediátrica, ligado à Universidade Federal de São


Paulo

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

LLA – leucemia linfoide aguda

MEC – Ministério da Educação

NA – grupo de crianças não alfabetizadas

PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais

PNLD – Programa Nacional do Livro Didático

PROJETO “DESAFIOS” – O desafio de ensinar a leitura e a escrita no contexto do


ensino fundamental de nove anos (Edital no. 038/2010/CAPES/INEP)

QI – Quociente de Inteligência

SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

TI – Tecnologia da informação

UCA – Um Computador por Aluno

UERN – Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

UFPA – Universidade Federal do Pará

UNESP – Universidade Estadual Paulista

UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo

USP – Universidade de São Paulo

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Conteúdo
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 1
1. MEMÓRIAS (DES)ENCAMINHADAS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA ......................................... 27
1.1. A COLÔNIA – A EDUCAÇÃO RELIGIOSA DOS ‘PRIMITIVOS’ ......................................... 28
1.2. O IMPÉRIO – A EDUCAÇÃO DA ELITE .......................................................................... 45
1.3. OS MÉTODOS DE ENSINO – NA ESTEIRA DO LIBERALISMO E DO MÉTODO
CIENTÍFICO............................................................................................................................... 50
1.3.1. DUAS CARTILHAS EMBLEMÁTICAS ...................................................................... 51
1.3.2. OS SENTIDOS DA PALAVRA ‘ALFABETIZAR’ ......................................................... 59
1.4. A REPÚBLICA – DOS GRUPOS ESCOLARES À LEI DE DIRETRIZES E BASES (LEI Nº
9.493/96) ................................................................................................................................. 61
1.4.1. A ERA DOS MÉTODOS – A CONTENDA DA SEPARAÇÃO OU UNIÃO DA
LEITURA E ESCRITA .............................................................................................................. 62
1.4.2. A REFERÊNCIA PAULISTA ..................................................................................... 68
1.4.3. UMA PEQUENA DIGRESSÃO SOBRE A INTRODUÇÃO DOS ESPECIALISTAS NA
EDUCAÇÃO .......................................................................................................................... 72
1.4.4. VÁRIOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO E SEUS USOS ........................................ 79
1.4.5. A ESPERA PELA ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO: O SILÊNCIO DO
PENSAMENTO...................................................................................................................... 80
2. CONSTRUTIVISMO – UM MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO? ................................................... 89
2.1. OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAL ............................................................. 90
2.2. O CONSTRUTIVISMO DE EMILIA FERREIRO, ANA TEBEROSKY E COLABORADORES.... 95
2.3. A LECTOESCRITA DO CONSTRUTIVISMO ................................................................... 102
2.4. A COOPERAÇÃO ENTRE PARES .................................................................................. 114
3. NARRATIVAS E SUBJETIVIDADE – REPRESENTAÇÃO E TRANSMISSÃO COMO CONDIÇÃO
DE LEITURA E ESCRITA ............................................................................................................... 129
3.1. TRAMAS DE BERÇO.................................................................................................... 135
3.1.1. REDES TEXTUAIS – O LIVRE TRÂNSITO DAS PALAVRAS ..................................... 138
3.2. MEMÓRIAS ORAIS – O CORPO EM TORNO DO SAGRADO ........................................ 142
3.2.1. MEMÓRIA ORAL E MEMÓRIA ORAL ESCRITA – A SUBVERSÃO DA NARRATIVA 147
3.2.2. MEMÓRIAS EXTRA-CORPO – O REVIRAMENTO HISTÓRICO SOBRE OS
TESTEMUNHOS.................................................................................................................. 153
3.3. MEMÓRIA – LAÇOS DE TRANSMISSÃO ..................................................................... 157
3.3.1. LINGUAGEM E MEMÓRIA – REPETIÇÕES NO CORPO E FENÔMENOS DE FALA 163
3.3.2. DA LETRA À ESCRITA – NASCE UM SUJEITO QUE PERGUNTA ........................... 182
3.4. MITOLOGIA – A FUNDAÇÃO E A FUNÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL................................. 185

13
3.4.1. A INTERTEXTUALIDADE – A MONTAGEM E A DESMONTAGEM DE SENTIDOS
EM UMA CRIAÇÃO MÍTICA ................................................................................................ 196
3.5. INFÂNCIA – O FUNDAMENTO DA EXPERIÊNCIA, DA HISTORICIDADE E DA POESIA.. 202
3.5.1. A POESIA E A INFÂNCIA ..................................................................................... 206
3.5.2. LUDISMOS INFANTIS – O INTERTEXTO NO NONSENSE ..................................... 209
3.6. ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO – MOLA DO CONHECIMENTO ........................................ 212
3.6.1. SEPARAÇÃO – PROCESSO PRIMÁRIO DE LETRAMENTO .................................... 212
3.6.2. ALIENAÇÃO – ENTRADA NO PROCESSO SECUNDÁRIO DE LETRAMENTO ......... 214
3.7. SUBJETIVIDADES NA ALFABETIZAÇÃO – HETEROGENEIDADE NAS SALAS DE AULA . 215
3.8. NARRATIVAS E ENLACES DE LEITURA E ESCRITA ....................................................... 218
3.8.1. ROTINA INFORMATIVA – UMA FORMAÇÃO DESINTERESSANTE ...................... 223
3.8.2. ORALIDADE – ABERTURA AO DESEJO ................................................................ 231
4. TEXTUALIDADES – DA DERIVA À REPRESENTAÇÃO ........................................................... 240
4.1. PROJETO LER E ESCREVER E PROGRAMA BOLSA ALFABETIZAÇÃO – UMA VISÃO
SOBRE AS NARRATIVAS E SOBRE A LEITURA ......................................................................... 244
4.2. A TRANSMISSÃO NARRATIVA E A FUNÇÃO DA EXPERIÊNCIA ................................... 256
4.3. OS MEANDROS DA MODERNIDADE .......................................................................... 268
4.3.1. VOCÊ PRECISA, LOGO VENDO ........................................................................... 280
4.3.2. PELA JANELA ...................................................................................................... 291
4.4. O GOZO VAI À ESCOLA .............................................................................................. 301
4.4.1. O MERCADO DA ALFABETIZAÇÃO ..................................................................... 302
4.4.2. PRATELEIRAS DE NOMES ................................................................................... 305
4.4.3. O LUGAR DA ESCOLA NA EDUCAÇÃO ................................................................ 314
4.5. LEITURA E ESCRITA PARA ALÉM DO PAPEL – A REPRESENTAÇÃO COMO FUNÇÃO
DE LETRAMENTO ................................................................................................................... 320
5. NARRATIVAS – TENSIONAMENTO ENTRE A SINGULARIDADE E A SÓCIO HISTÓRIA ......... 328
5.1. HETEROGENEIDADES EM SALA DE AULA – O TENSIONAMENTO DAS RELAÇÕES..... 330
5.1.1. DIFERENTES ESCUTAS/OLHARES SOBRE O ALUNO E SOBRE A EDUCAÇÃO ...... 332
5.1.2. DIFERENTES ORIGENS........................................................................................ 339
5.2. NÚCLEOS FAMILIARES – QUESTÕES ACERCA DAS NARRATIVAS ............................... 346
5.3. O RESGATE DAS NARRATIVAS E DAS MEMÓRIAS – REPRESENTAÇÕES EM SALA DE
AULA 374
5.3.1. DO LAÇO DE FITA NO CHAPÉU À MENINA ........................................................ 374
5.3.2. O ENTEADO NA TRAMA GENEALÓGICA ............................................................ 383
6. CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 391
7. ANEXOS ............................................................................................................................. 395
7.1. Anexo A ..................................................................................................................... 395
7.2. Anexo B ..................................................................................................................... 398
7.3. Anexo C...................................................................................................................... 404

14
7.4. Anexo D ..................................................................................................................... 412
7.5. Anexo E ...................................................................................................................... 417
8. REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 420

15
INTRODUÇÃO

... PORQUE AINDA É PRECISO FALAR SOBRE ALFABETIZAÇÃO

Ao escrever suas memórias infantis na década de 1940, o escritor Graciliano


Ramos julgou por suas reminiscências que aos nove anos ainda era um menino
‘quase analfabeto’. Embora na passagem do século XIX ao XX já frequentasse escola,
a permanência na sala de aula não passava de uma tortura de efeitos degradantes:

D. Angelina [a professora] resinhava com a filha por questões de namoro e, em caso de


auréola, que surgiu na minha seleta. A moça acertou, mas d. Angelina, debruando um
vestido, julgou auréola equivalente a debrum, estirou o beiço e, depois de hesitar,
misturando baixinho auréola com ourela 1, recomendou-me que, para evitar dúvidas,
dissesse aureóla.

O lugar do estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de
suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho,
entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto. Não há
prisão pior que uma escola primária de interior. A imobilidade e a insensibilidade me
aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me
comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler (RAMOS, 1945: 206).

Esta obra de Graciliano Ramos comporta um trabalho individual e solitário no


plano das narrativas. ‘Infância’ resgata a formação de um sujeito a partir de
memórias recônditas, precoces, de uma meninês que dialoga com relatos e histórias
de um mundo adulto, tanto imediato, quanto atravessado por acontecimentos
sociais mais amplos e distantes. Da reflexão sobre si mesmo termina por compor um
sentido particular para ter-se tornado leitor-escritor, a partir de um universo
inóspito de semi-leitores e pseudolivros, mas – aos nossos olhos – rico em sujeitos
que por diferentes vias lhe transmitiram elementos da oralidade popular. Na
própria escritura vê-se dialeticamente o esforço contínuo de elaboração /
representação de acontecimentos que, mesmo nos momentos de aparente paralisia,
debatia-se ininterruptamente com vários significados sobre ler e escrever.

Se a travessia que leva um sujeito não alfabetizado ao domínio da leitura e da


escrita é um esforço pessoal, de qualquer modo ela não prescinde nem de um agente

1
Ourela – borda espessa de uma peça de tecido.

1
transmissor dos valores sociais deste acontecimento, nem de ações em políticas
públicas que as estabeleça e oriente. Esta tese se organiza em torno destes temas.

A pesquisa que aqui apresento é um trabalho teórico analítico e propositivo


dedicado à alfabetização no Brasil. Mais especificamente, destinada à reflexão sobre
a importância das narrativas no processo de alfabetização, considerando-as sob dois
aspectos intrinsecamente complementares: as narrativas que, como acontecimentos
sócio históricos, são responsáveis pela transmissão geracional e as narrativas que,
por traços de memória, são representadas subjetivamente. Proponho como objetivo
central do trabalho a imbricação destes dois campos representacionais – o sócio
histórico e o subjetivo – de forma a traçar considerações sobre os papéis das
transmissões geracionais, das memórias narrativas e das representações míticas
envolvidas no processo de alfabetização e que permeiam as políticas públicas da
educação básica.

Esta tese aproveita a riqueza da proposta de transformação do modo de


alfabetizar crianças, produzida no projeto ‘O desafio de ensinar a leitura e a escrita
no contexto do ensino fundamental de nove anos’ (Edital no. 038/2010/CAPES
/INEP2, doravante referido como PROJETO “DESAFIOS”3), para buscar no encontro
de diferentes histórias e memórias de agentes educadores, de educandos, de
familiares e de pensadores da educação, onde estão ancoradas as aceitações e
resistências frente a estas possíveis mudanças.

De modo sucinto os objetivos parciais propostos neste trabalho devem ser


buscados nas seguintes indagações:

1. Como a alfabetização brasileira aconteceu nos principais momentos


históricos do país – quais seus objetivos e métodos, a quem era dirigida
e como se dava?

2
CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão vinculado ao
Ministério da Educação (MEC) que tem como atribuições a avaliação da pós-graduação stricto sensu,
acesso e divulgação da produção científica, investimentos na formação de especialistas de alto nível
e promoção da cooperação científica internacional e INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira, autarquia federal vinculada ao MEC, que visa, entre outras, manter e
organizar sistemas de informações e estatísticas educacionais, orientar e coordenar projetos
educacionais, subsidiar políticas públicas em educação.
3
A síntese deste projeto e suas propostas encontram-se no Anexo A desta tese.

2
2. Nas várias mudanças de rumo da alfabetização no Brasil, o que se repetiu
e o que foi elidido nas transmissões geracionais?
3. Como as discursividades estabeleceram o que é permitido saber?
4. Como operar com as narrativas mnêmicas e com as construções míticas
para que seja possível promover mudanças na alfabetização brasileira?
5. Que habilidades narrativas mínimas um professor deve ter e sustentar
para ser um agente alfabetizador efetivo?
6. Em um quadro tão amplo de variáveis, o que é possível propor como
mudança das políticas públicas que reverta em transformações efetivas
para o campo da alfabetização?
Parto de três pressupostos para enunciar a hipótese desta tese. O primeiro é de
que o ser humano não é segmentado em áreas de ação e saber, tampouco que sua
realidade se dissocia em interna e externa (pretendendo um sujeito-social
desarticulado do sujeito-individual), e que por isto, ainda que para efeitos didáticos
a separação destes dois planos facilite teorizá-los, esta divisão no âmbito do
pensamento e das ações educacionais é uma das condições de prejuízo da educação
formal brasileira. O segundo ponto é de que a aprendizagem se dá necessariamente
por meio de relações humanas concretas de ensino / aprendizagem e que estas
comportam lugares desiguais, isto é, alunos e professores (assim como filhos e pais)
ocupam posições sociais e subjetivas diferentes para que a transmissão geracional
aconteça e ambas são determinantes para o processo de aprendizagem. O terceiro
pressuposto é de que está nos enunciados discursivos dos diferentes campos
mnêmicos a possibilidade de se fazer laço social e de compartilhamento dos códigos
da língua, mas o modo como se repetem e são representados é que determina a
transmissão efetiva, ou a repetição alienada e sem sentido.

Dado isto, a tese tem como hipótese a possibilidade de se verificar como as


repetições discursivas sobre alfabetização (as explícitas e as latentes), enunciadas
nos diferentes campos mnêmicos (coletivo e individual), são representadas nos
diferentes processos de alfabetização, levando ao tensionamento de duas situações:
quando estes discursos são representados subjetivamente podem ser elementos
fundamentais para a superação das dificuldades de alfabetização e quando não são
representados podem incidir sobre a alfabetização impedindo mudanças efetivas
nas relações sociais educativas e eficazes nos processos individuais de letramento.

3
O que justifica os esforços desta pesquisa em alfabetização está resumido em
dois fatos: o primeiro relacionado a dados antagônicos fornecidos por órgãos
governamentais, referentes aos índices de melhoria da qualidade de ensino no
Brasil, especialmente da alfabetização; o segundo relacionado a apreciações
cotidianas sobre as habilidades leitoras e escritoras da população brasileira em
geral e à disseminação do que se convencionou chamar de ‘analfabetismo funcional’.

Fôssemos analisar aos olhos de hoje a situação descrita por Graciliano Ramos,
diríamos que fatos como aquele se deram há muito tempo e que tanto as condições
adversas do ensino básico se alteraram, quanto os índices de crianças incapazes de
ler aos nove anos também não são mais os mesmos. Efetivamente, muito se avançou
na escolarização básica no Brasil com a obrigatoriedade de sua universalização, com
a formação de professores, com o aumento significativo do número de escolas e com
a preocupação em torno da elaboração de diferentes materiais didáticos; mas
muitas questões sobre a qualidade e a efetividade da alfabetização continuam em
aberto.

Dados oficiais da educação no Brasil apontam ainda para problemas,


especialmente na esfera da alfabetização eficaz e efetiva. Vejamos.

No ano do primeiro recenseamento, em 1872, a população brasileira era de


aproximadamente 10 milhões de habitantes. Naquele ano a educação básica ainda
não era obrigatória e o índice de analfabetismo ultrapassava a casa dos 80% 4. Em
2010 a realidade era outra: o número de brasileiros saltou para mais de 190 milhões
de pessoas e a educação básica já se tornara obrigatória; o índice de analfabetismo
oficial medido pelo censo foi de menos de 10% – um avanço, portanto.

Todavia, estes números oficiais espelharam parcialmente a realidade, uma vez


que os dados coletados pelo censo são referentes ao número de pessoas que se
declarou alfabetizada e/ou frequentadora da escola mas, até pela natureza
censitária, não aferiam a qualidade da alfabetização. Outras informações, portanto,
precisam complementar aqueles dados, tendo como referência agora o grau de
proficiência na língua pátria. Um destes indicadores é medido pela Prova Brasil5,

4
Maria do Rosário Longo Mortatti, 2004.
5
A Prova Brasil é uma avaliação de âmbito nacional realizada a cada dois anos, pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), com estudantes que estão
concluindo o 5º. Ano do Ensino Fundamental I (EFI) e o 9º. Ano do Ensino Fundamental II (EFII).

4
cujos dados do ano de 2011 apontam para um quadro bem diverso do grau de
instrução mínima para o português. A avaliação aplicada a todos os estudantes das
escolas públicas brasileira que estavam concluindo a 4ª. série primária (atual 5º.
Ano de EFI), mostrou que somente 40,02% dos alunos atingiram índices
satisfatórios de acertos – níveis de 4 a 9 na Tabela 1 – ou seja, quase 60% das
crianças de 9-10 anos não alcançaram a meta mínima de letramento necessária à
aprendizagem subsequente (índices de 0 a 3 da mesma Tabela 1):

Tabela 1 – Prova Brasil 2011: Percentagem de alunos por nível de proficiência em Língua
Portuguesa (leitura) na quarta série/quinto ano do Ensino Fundamental I. O nível 4
corresponde à média mínima estipulada pelo Sistema de Monitoramento do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE) e pela organização não governamental Compromisso de
Todos pela Educação (BRASIL, 2012) necessária ao prosseguimento dos estudos.
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Níveis
6,99 14,49 19,04 19,46 16,44 11,63 7,16 3,32 1,27 0,19
Total Brasil (%)
5,44 11,31 16,04 18,28 18,00 14,59 9,71 4,53 1,81 0,28
São Paulo (%)
9,86 21,62 25,45 20,73 12,12 5,92 2,82 1,14 0,31 0,04
Pará (%)
Rio Grande Norte 12,90 20,61 22,43 18,29 12,29 7,70 3,56 1,62 0,55 0,04
(%)

Fonte: INEP, 2013. http://provabrasil2011.inep.gov.br

Chama atenção na Tabela 1 os índices alarmantes dos Estados do Pará e Rio


Grande do Norte6, nos quais, respectivamente, 89,78% e 86,52% dos alunos do EFI
não conseguiram atingir os níveis mínimos exigidos para continuidade da
escolarização, denunciando que as condições de letramento são ainda mais
comprometedoras nas regiões mais pobres do Brasil.

Já na Tabela 2 vemos que os níveis alcançados pelo conjunto dos alunos de 8ª.
série (atual 9º. Ano EFII), também para proficiência em português medidos pela
Prova Brasil em 2011, mostraram que 55,19% dos alunos de 13-14 anos não
atingiram índices igual ou maior a 6 e que só 44,81% alcançaram a meta:

6
Estes estados compõem a Tabela 1 por compreenderem as cidades de Belém (PA) e Pau dos Ferros
(RN) nas quais se encontram duas das escolas que participam do PROJETO “DESAFIOS”.

5
Tabela 2 – Prova Brasil 2011: Percentagem de alunos por nível de proficiência em Língua
Portuguesa (leitura) na oitava série/nono ano do Ensino Fundamental II. O nível 6 é a
média mínima estipulada pelo PDE e pela ONG Compromisso de Todos pela Educação
(BRASIL, 2012) necessária ao prosseguimento dos estudos nesta faixa de escolarização.

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Níveis
0,32 2,40 6,23 11,20 16,16 18,87 17,86 13,90 8,41 4,64
Total Brasil (%)

Fonte: INEP, 2013. http://provabrasil2011.inep.gov.br

A comparação entre as Tabelas 1 e 2 indicam que no transcurso de quatro anos


de escolarização que separam as duas avaliações, menos de 5% dos estudantes
passaram a integrar o grupo dos que conseguiram superar suas defasagens para
atingirem os níveis de letramento minimamente condizentes com os exigidos para
a continuidade da aprendizagem. Ou seja, menos da metade das crianças e jovens
escolarizados tem aptidão mínima em letramento para frequentar as classes do
Ensino Médio.

Não se quer afirmar com isto que não houve inúmeros esforços para a reversão
do quadro da alfabetização, especialmente ao longo da República neste último
século. No Mapa do Analfabetismo no Brasil, publicado pelo INEP em 2003 há uma
vasta lista desses programas de governo, que aqui reproduzimos, para que se tenha
ideia de que não foram poucos os empenhos. Dentre eles pode-se ver: Campanha de
Educação de Adolescentes e Adultos (1947, Governo Eurico Gaspar Dutra);
Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958, Governo Juscelino
Kubitschek); Movimento de Educação de Base (1961, criado pela Conferência
Nacional de Bispos do Brasil-CNBB); Programa Nacional de Alfabetização, valendo-
se do método Paulo Freire (1964, Governo João Goulart); Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral) (1968-1978, Governos da Ditadura Militar); Fundação
Nacional de Educação de Jovens e Adultos - Educar (1985, Governo José Sarney);
Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania - Pnac (1990, Governo Fernando
Collor de Mello); Declaração Mundial de Educação para Todos (assinada em 1993
pelo Brasil em Jomtien, Tailândia); Plano Decenal de Educação para Todos (1993,
Governo Itamar Franco); o Programa de Alfabetização Solidária (1997, Governo
Fernando Henrique Cardoso); Programa Uma Escola do Tamanho do Brasil (2002,
Governo de Luiz Inácio Lula da Silva). Ainda no Governo de Lula foi lançado outro
programa (Mais Educação, 2007) e o atual Governo de Dilma Roussef que tem

6
continuado os programas do Governo Lula, no início de 2013 acrescentou o Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa.

Mas à revelia de incansáveis diligências, algo parece ainda insistir e


continuamos nos debatendo com a alfabetização, principalmente da população mais
expropriada social e economicamente. Há na transmissão memorável da educação
brasileira alguma coisa que em seu bojo carrega a denegação dela mesma: repetimos
e retransmitimos certo não-fazer, ou repetimos e retransmitimos certo fazer
ineficaz. Há esforços diuturnos em direção à alfabetização, mas ela continua nos
escapando um tanto das mãos; mas, vale lembrar, o acesso à leitura e à escrita são
condições necessárias de nossa civilização, portanto não pode ser negligenciado a
nenhum cidadão.

Também no Ensino Superior encontramos entraves significativos no domínio


da língua escrita, como podemos ver na tese de doutorado de Márcia Celestini Vaz
(2008). Em sua pesquisa a autora trabalha com textos estabelecidos por uma
população escolarizada, de nível superior de uma instituição particular. Analisa
textos de alunos de graduação produzidos em atividades de aula, cujo objetivo era o
aperfeiçoamento discente na língua portuguesa. Como exemplo, extraímos na
íntegra, um destes textos de aluno:

Educação
A educação é muito importante na nossa vida.
Para quando crescermos está muito bem educados porque é os pais que educa os
filhos.
Para educar os mais velhos ter educação não são só nos que precisa ter educação
como todo o mundo, tem gente nesse mundo que os pais não educam seus filhos não
têm respeitos com os mais velhos, com os idosos como moços senhores etc.
É nós sabemos o que é educação esse mundo não [palavra ilegível] educação para
varias gentes tem gente que pega coisas sem pedir dos outros etc.
É educar muitas gentes que vive nas ruas como meninos que chinca seus próprios
pais seus avós etc. (VAZ, 2008: 328).
Observamos em trechos como este que a necessidade de narrar é premente; mas
a possibilidade de fazê-lo é posta à prova.

Uma história contada, uma tese escrita, um caso relatado: quem está livre de
enredar um texto? A uma criança se lhe pede que conte seu dia na escola, ao jovem
que descreva a geografia de um país, ao adulto que reporte ao chefe os resultados

7
de seu trabalho e ao idoso que dirija suas narrativas novamente aos pequenos.
Descrições fantasiosas ou objetivas, criações ficcionais ou retratos de uma
realidade: todos os dias a humanidade conta histórias. Mas, quando pensamos na
dimensão tomada pelo texto (oral ou escrito) no estabelecimento das relações
humanas, percebemos que não é em qualquer medida que é possível falar, escrever,
descrever, contar, narrar para si e para o outro, para embrenhar na cultura. Se de
um lado, pela própria condição humana de ser de linguagem, as palavras nos
escapam, faltam ou se repetem à revelia de nossa vontade, por outro, o que
identificamos – e que aqui é objeto de pesquisa – é que além da falta intrínseca à
linguagem, há uma expropriação do direito a algumas formas de expressão da
linguagem – leitura e escrita – à qual uma parcela significativa da população está
submetida, ao ser semi-alfabetizada.

Como necessidade vital – tanto nos vetores histórico/ontológico, quanto


subjetivo – as narrativas sustentam os pensamentos e valores sociais. Ainda que
historicamente a introdução da escrita, para além dos textos orais, tenha alterado
completamente a estrutura e a função da tessitura ao longo dos tempos, parece que
esses séculos de mudanças mantiveram intacto na criança o interesse pela prática
de contar e ouvir histórias, carregando momentos de fascínio, sideração, candura,
medo que se configuram neste ato relacional. Mesmo aquelas não alfabetizadas
entregam-se ao jogo, embriagam-se com contos de fadas, aventuras heroicas,
pequenas historietas, fábulas, anedotas, brincos, adivinhas, lendas e parlendas. No
entanto, nem todas elas serão no futuro capazes de reproduzir, criar ou transmitir
estes enredos, pois para isto dependem de terem sido alvo subjetivo e afetivo das
narrativas.

Algo relacionado às narrativas parece se interromper no curso das transmissões


geracionais e no curso de cada uma das vidas que não consegue instrumentalizar o
uso da leitura e da escrita em suas relações.

Voltemos a Graciliano. É justamente a partir de uma história oferecida em um


dos poucos momentos de generosidade de seu pai, que ele é levado a descobrir e se
maravilhar com a leitura e com as infinitas possibilidades de escrever. A inquietude
do autor-menino-Ramos é a mesma de toda criança ávida por saber e atenta ao meio,
porém quando o mundo adulto lhe fecha as portas das histórias, a curiosidade

8
recrudesce e o espírito aliena-se nos poucos elementos externamente ofertados pelo
cotidiano. Muitas crianças, mesmo imersas no mundo letrado, não são alvo dessas
contações de histórias. Veem-se assim impedidas de alcançá-lo e não conseguem
aceder ao universo alfabético que o sustenta. São crianças que em idades avançadas
do processo de escolarização conhecem alguns poucos rudimentos da língua escrita
mas não são capazes de participar do código social que lhes permitiria compartilhar
e criar suas próprias histórias.

O convívio cotidiano em salas de aula7 revelou que muitas crianças e jovens


enfrentam dificuldades para o letramento. E muitos discursos em torno das
dificuldades de aprendizagem – incluindo a alfabetização – têm sido elaborados
como fórmulas de solução deste problema. Mas se na aparência os discursos se
mostram divergentes, na sua natureza ideológica apelam para as mesmas matrizes:
de um modo ou de outro, são resoluções imediatas que se dão fora do âmbito escolar.
Assim, ora a dificuldade é tomada como atributo médico-clínico intrínseco à
organicidade do aluno (hipervalorizando precocemente distúrbios neuro
fisiológicos), ora é tomada como atributo pedagógico intrínseco à maturidade
cognitiva do aluno (subvalorizando o tempo de aprendizagem), ora é tomada como
atributo psicológico intrínseco à personalidade do aluno (relevando inadequações
comportamentais e disciplinares), ou ainda é tomada como atributo socioeconômico
intrínseco à estrutura familiar do aluno (desvalorizando sua origem cultural). Estas
representações têm sido identificadas primeiro nas escolas, mas têm sido remetidas
para fora dela, para consultórios clínicos ou atividades de reforço, esferas em que
espera-se que sejam decididas. E quando se esgota um dos argumentos, recorre-se
a qualquer um dos outros três, sem que se atenha ao sentido do conjunto desta obra.

Ora, as dificuldades são inerentes a qualquer aprendizagem, uma vez que


aprender algo novo significa desestabilizar conhecimentos anteriores, enfrentar
novas linguagens, explorar objetos desconhecidos e se fazer representar por outros
conhecimentos. Ou seja, o mau desempenho aparente, ou inicial, não pode ser

7
Refiro-me aqui ao acompanhamento diário de alunos do Ensino Fundamental I e II, e do Ensino
Médio, por mim realizado em escola particular de grande porte na cidade de São Paulo, entre os
anos 2000 e 2003, e depois entre 2008 e 2009, tanto quanto à experiência de consultoria a
Delegacias de Ensino do Estado de São Paulo em 2004 e 2005, à pesquisa realizada em escolas
públicas com crianças com câncer e à atividade como docente de cursos de graduação em instituição
particular, também na cidade de São Paulo, desde 2010.

9
avaliado pelo fato de haver obstáculos à aprendizagem – situação em que se avalia
apressadamente a dificuldade como intransponível – mas precisa ser resolvido
pelos sentidos e representações assumidos por estas dificuldades.

Se diante de uma dificuldade de aprendizagem do aluno, o agente educacional


comparece na relação de ensino com uma discursividade sobre educação, genérica,
absoluta e externa a ele – ao invés de um discurso subjetivo, ainda que faltoso e
incompleto (mas por isto responsabilizado) –, deixa de possibilitar a transmissão de
saberes e mantém o estudante em uma posição de receptáculo de informações
pragmáticas, pouco afeitas ao enlace com a aprendizagem.

É o discurso absoluto e universal que, quando recai sobre o aluno/filho, impede


a inscrição e a validação de elementos da sua memória narrativa, elementos estes
que efetivamente compõem e comportam a aprendizagem singular de cada um. Sem
que possam se representar na continuidade do processo educativo, alunos/filhos
e/ou professores/pais ficam impedidos de mudar de posição e passam a repetir
certo não-fazer pedagógico e também civilizacional.

Acolhemos a ideia de que memória e linguagem são indissociadas. Para a


Análise do Discurso como indica Michel Pêcheux (1983), por exemplo, o
‘acontecimento histórico’ é o elemento descontínuo e exterior em que se dão as
constelações de enunciados, que entretanto se inscrevem na continuidade interna
própria da memória através das produções discursivas repetidas sem significação.
Memória não é a memória psíquica, mental de um sujeito, mas a memória mítica
social e histórica inscrita nas práticas; as condições de inscrição é que determinam
as diversidades de memórias. Para a Psicanálise de Jacques Lacan, o que se evidencia
é a linguagem configurando a ‘realidade psíquica’ ilustrada pela Banda de Moëbius8,
a qual representa a relação da realidade externa com a interna, em que o discurso
coletivo e o subjetivo, assim como o acontecimento consciente e o inconsciente,
irrompem por traços de memória em qualquer ponto da realidade, evidenciando a
impossibilidade dicotômica das representações.

8
Banda de Moëbius é um espaço tridimensional feito com uma tira plana retangular (bidimensional)
que contém inicialmente duas superfícies (avesso e direito) e quatro bordas (duas maiores e duas
menores) que, ao se fecham em suas extremidades menores, depois de aplicar à fita uma
semitorção, resulta em uma única superfície (a face avessa se liga à direita e vice-versa) e uma única
borda (equivalente de um círculo).

10
É preciso fazer confluir estas duas concepções mnêmicas, uma vez que, quando
há a separação dos dois planos de realidade em que os sujeitos estão presentes, há
também a desarticulação do sujeito com o mundo social ou, o que dá no mesmo, sua
total alienação ao meio. Isto é, quando os professores/pais deixam de ser
investigadores que com sua subjetividade vão questionar as dificuldades próprias
daquele aluno/filho, e passam a delegar as respostas para uma esfera supra-relação,
impedem a criança de representar aquela relação onde se dá a aprendizagem/
educação. Quando o professor/pai sai de cena, ele está respaldado por uma
discursividade sobre educação representada histórica e socialmente, mas na qual o
aluno/filho não consegue se representar subjetivamente.

Lacan (1957) expressa a mesma consideração:

Seria perfeitamente descabido cair num sistema do mundo, como se faz com muita
frequência, projetando nosso domínio, de maneira insuficiente e bem pobre, sobre toda
uma série de ordens e campos escalonados da realidade, a pretexto de que eles podem ter
alguma analogia de conjunto com aquilo que fazemos, porque o grande se encontra sempre
no pequeno. Esta projeção não poderia, certamente, esgotar de jeito nenhum a realidade,
tampouco o conjunto dos problemas humanos. Em contrapartida seria aberrante isolar
completamente nosso campo e recusarmo-nos a ver o que, neste, não é análogo, mas sim
diretamente conectado, em comunicação, às voltas com a realidade que nos é acessível de
outras disciplinas, outras ciências humanas. Estabelecer essas conexões me parece
indispensável para bem situar nosso domínio, e mesmo, simplesmente, para que nós o
entendamos melhor (LACAN, 1957: 257-258).

Se aceitássemos a condição de que há dois planos de realidade separados em


que os sujeitos estão presentes – um coletivo e social e outro individual e intrínseco
– precisaríamos assumir também que aquilo que se articula no plano coletivo (as
políticas e ações em educação) não tem nenhuma repercussão no que se passa no
plano subjetivo (acontecer ou não a aprendizagem). É esta desarticulação que se
coloca como elemento intrusivo na aprendizagem de crianças e jovens, deixando-os
muitas vezes na condição de enfrentamento solitário com as dificuldades de
domínio da leitura e da escrita da língua pátria e da aprendizagem geral.

No plano sócio político o educador Paulo Freire (1987 (b)) considera que só há
educação ao se admitir a importância e a função da palavra ‘não’ como
condicionante capital das relações sociais. O ‘não’ é a palavra fundante do gesto
político e, para este pensador, não há educação sem política. Mais ainda, não há

11
educação sem projeto futuro político – e este só se faz respaldado pelo confronto
constante com os entraves que sistematicamente impedem o acesso à educação no
plano social/coletivo. Aponta Freire que uma das formas de se perpetuar a exclusão
do processo educativo é delegá-lo, entregá-lo ao encargo de outrem – e é a esta
tentativa que ele sistematicamente diz ‘não’, levando cada sujeito a assumir sua
posição de educador e educando.

Retomar a memória política de muitos gestos e muitos esforços foi registro, foi
mapeamento da sociabilidade na qual eles vêm se exercendo enquanto pessoas. [...]
criticar é quando, procedendo com jeito, a gente toma nas mãos o pensamento que
tomou conta dos nossos gestos (FREIRE, 1987(b): 10).

Acompanhando Freire, e ponderando o fato de que o quadro da alfabetização


brasileira é em parte preocupante, fica evidente a necessidade de retomarmos a
‘memória política do gesto’. É preciso ver nos interstícios, nos vãos discursivos, onde
se articulam as contradições que incessantemente subvertem o objeto de ação da
educação básica: a alfabetização infantil de cada sujeito. Parece haver certos
entraves no campo da educação no Brasil que remontam a arranjos sócio históricos
que se arrastam há alguns séculos.

Há certa altercação ‘oferecer e tomar de volta’ no campo político educacional,


cujas respostas encontradas são atos de semi-obediência, de oscilação na aceitação
ou não de novas legislações ou proposições. A instabilidade no reconhecimento
simbólico daquilo que é coletivo, alimenta e é alimentada pela maleabilidade do ato.
Desta forma perdemos o parâmetro, por exemplo, de como se estabelecem os
critérios mínimos para a alfabetização – o que a criança deve saber e em que idade
–, ou de quem é a responsabilidade pela alfabetização de um aluno que chega ao 5º.
Ano sem ter domínio mínimo de leitura e escrita – é do professor de 1º. Ano?, é de
todos os professores que se ocuparam de ensiná-lo ao longo do ciclo?, é do método
de ensino?, é da família?, é da instituição de ensino?, é do Estado?

As legislações são adotadas e incorporadas conforme acordos coletivos ou


critérios pessoais, muitas vezes velados – até porque as leis ‘pegam’, ou ‘não pegam’.
Se de um lado esta é uma característica brasileira que permite a seus indivíduos
encontrar saídas criativas e soluções reais para os impasses que enfrenta
cotidianamente – estão aí as inúmeras escolas sertanejas que se fazem sob pés de
ingazeiros, na falta de outro espaço físico – por outro, o problema que se configura
12
nesta situação é a impossibilidade de responsabilização dos sujeitos pelos próprios
atos, ou por aqueles gerados na coletividade.

Assim como o meio social configura o espaço de ação de seus indivíduos, estes
também agem sobre o grupo emprestando suas balizas subjetivas. Faz-se
necessário, portanto, considerar igualmente como as constelações de enunciados se
acomodam, são reproduzidas e podem ser operantes de mudanças pelos sujeitos
agentes da educação – sejam eles professores, pais de alunos, diretores,
coordenadores, estudantes, gestores públicos, teóricos da educação, etc. Estas
marcas são únicas a cada um dos sujeitos que se apropria dos discursos coletivos de
modos diferentes. Os recursos que permitem as diversas e infinitas ponderações
humanas dependem de duas condições interligadas: da posição subjetiva
(compromisso ético) e da memória subjetiva (apropriação discursiva,
representação).

O ser humano é herdeiro da linguagem na qual nasce imerso. Contrário do que


se pode pensar usualmente, a memória não se circunscreve às lembranças
conscientes do passado, mas também faz referência à linguagem particular que
antecede cada sujeito. Como nos alerta Jacques Lacan, todos somos servos da
linguagem e do discurso, no sentido de que o lugar de cada sujeito já está neles
inscrito ao nascer, [...] nem que seja só por seu nome próprio (LACAN, 1957: 498).

A memória é mais que lembrança posto que é elemento vivo, construído e


reconstruído a partir de experiências psíquicas anteriores que permitem rever
práticas e pensamentos atuais, com vislumbres ao porvir. A memória permite o laço
– consequente – entre acontecimentos e garante ao sujeito um conteúdo textual (e
intertextual) que torna possível divisar o futuro, construir a compreensão imediata
dos acontecimentos e as representações de sua existência e, também, reconstruir
permanentemente os sentidos de seu passado. Quando lembramos algo, nunca o
fazemos da mesma maneira, pois ora se apresenta um olhar, ora um gesto, um
cheiro, uma sensação, cada um suscitado pelas diversas demandas que o presente
oferece e que modificam as lembranças anteriores articulando-as a diferentes
representações de palavras. Esses são os alimentos para a maleabilidade e
mobilidade dos textos que, sendo indissociáveis dos sujeitos em qualquer esfera em
que atuem, também incidem sobre a educação e precisam ser a ela incorporados.

13
Antônio José Santana Martins – o cantor, compositor e ator Tom Zé – nos fornece
um exemplo de como memória e alfabetização se articulam. Era filho de um
carismático comerciante do interior baiano, dono de uma oralidade rica, embora
com pouca instrução escolar. Do lado materno, era de família rica e afeita aos
estudos. No programa Olhar Brasileiro da Rádio USP9, descreveu dois momentos
cruciais de seu processo de alfabetização formal, imbricados à memória. Ele e seus
irmãos iniciaram os estudos em torno da mesa de casa, nas recorrentes conversas
que se davam após as refeições. Ali falavam, consideravam, explicavam, discutiam
as ‘coisas da vida’, de modo particular. Quando foi para escola cursar seu primeiro
ano primário, fracassou uma, duas, três vezes, deixando seu pai angustiado e certo
de que a ele e ao filho ‘só restava o abismo’. Diz Tom Zé: O que ele não sabia é que
encontrei no balcão da [sua] loja oito séculos de cultura oral árabe, da invasão da
península Ibérica que fazia dos portugueses e espanhóis povos muito cultos, e isso eu
não encontrava na escola. Seu primeiro vislumbre foi de que toda riqueza de saber,
permeado pela oralidade à qual já tivera acesso, não encontrava ressonância alguma
na instituição escolar. Quando finalmente pode ler na escola pela primeira vez um
texto que falava de uma criança chamada Pedro, sobrevieram outras questões: Será
que todo mundo entendeu que Pedro entrou na sala? Será que todo mundo entendeu o
que eu entendi nesses rabiscos? Será que é assim?

A dúvida de Tom Zé faz pensar naquilo que a escola espera quanto ao uso da
língua e seus sentidos. Os fracassos escolares iniciais que o cantor enfrentou põem
em evidência a dissonância entre os textos fundados na oralidade da tradição
popular e a linguagem estabelecida na instituição escola. Como assinala Claudemir
Belintane (2011), os elementos da tradição oral estão dispostos aos sujeitos antes
de qualquer relação de aprendizagem formal e, como acontecimento vinculado à
fala, está sujeito às vicissitudes da linguagem. Isto é, como temos evidências desde
Sigmund Freud, sabemos que a linguagem, a fala, acontece pelos interstícios do
imprevisto, do equívoco, do esquecimento, e neste ponto é bem diversa da
linguagem matriciada na/pela escola, de cunho essencialmente comunicativo,
pragmático e objetivo, que tenta barrar as intromissões subjetivas da língua.

9
Programa produzido e apresentado semanalmente por Omar Gilbram, que vai ao ar todos os
domingos das 10h00 às 11h00. A referência acima é do dia 15/01/2012 e pode ser acessada pelo site
www.radiousp.br

14
As narrativas orais articulam elementos de história e dos traços da cultura de
cada povo e lugar, ao mesmo tempo que também permitem maleabilidades
vinculadas à subjetividade do orador que é alvo dessas narrativas e repassa-as
adiante. Como, então, a escola incorpora ou rechaça estes aspectos da língua? Como
a alfabetização é, ou não subsidiária das tradições orais?

A alfabetização pode ser compreendida como objeto evolutivo-histórico do


processo de letramento da população de um país; pode, também, ser abordada
desde os aspectos político-regionais, circunscritos no tempo e no espaço, em que se
verificam quais as políticas públicas concebidas e gerenciadas para a alfabetização
de seus indivíduos; pode ser alvo de pesquisas pedagógicas e elaborações teóricas
que verifiquem como se dá sua arte; por fim, restringindo ainda mais o foco, pode
ser tomada desde o ponto de vista da assunção e assujeitamento de uma pessoa ao
processo de leitura e escrita de uma língua. Haveria outras considerações possíveis
para o termo – econômica ou jurídica – e todas elas ajudam a compor os registros
das memórias sociais, históricas e coletivas, e das memórias individuais,
condicionadas e condicionantes das mesmas alfabetizações, que precisam ser
compreendidas em seu conjunto.

Mas, alfabetizar-se não é só saber ler e escrever – isso é dito e redito todos os
dias nas brechas desse país – mas tampouco é aprender só na escola a
operacionalidade da leitura e da escrita úteis ao convívio social e à formação cidadã,
como se pretende atualmente nas orientações curriculares das instituições de
ensino. Alfabetizar-se tem um ‘agora’ e um ‘depois’ em que o sujeito tem que ser
considerado com suas vicissitudes e particularidades anteriores, já que sem elas é
incapaz de fazer o laço social necessário à mínima troca com o outro. Poder falar de
si em toda atividade que se desenlaça – e dentre elas a alfabetização – é condição de
poder situar-se na relação com o outro, de compreender o que o outro deseja e nos
demanda, e medir o quê e quanto dar em troca a esse outro: ‘O que escrevo para que
ele me leia? O que ele escreve para que eu o leia?’

Sigmund Freud (1927) em ‘Futuro de uma ilusão’, estabelece relação entre o


passado, o presente e o futuro como forma de compreender as coisas humanas e
suas decorrências: [...] sem dúvida, quanto menos um sujeito saiba sobre o passado e

15
o presente, tanto mais incerto será o juízo que pronuncie sobre o porvir 10 (FREUD,
1927: 5, tradução minha). Estabelece esta posição a partir dos possíveis
questionamentos do homem frente sua cultura e seus destinos, e destaca três fatores
que agem no sentido contrário de pensá-los. Primeiro porque são poucos os que
conseguem ter uma visão geral e panorâmica das ações humanas e todas suas
ramificações – geralmente transitam por um campo circunscrito dentro delas.
Segundo, porque as expectativas subjetivas exercem um papel preponderante, em
que o julgamento das coisas depende de fatores e experiências pessoais. Por fim, o
fato ‘assombroso’ na sua visão, de que os homens vivenciam seu presente com certa
ingenuidade, sem apreciar seus conteúdos, o que só seria possível tomando-se certa
distância do presente: [...] vale dizer que o presente tem que tornar-se passado para
que se possa obter dele uns pontos de apoio para formular o juízo sobre as coisas
vindouras11 (FREUD, 1927: 5, tradução minha).

Se do ponto de vista sócio histórico mencionamos a proposta de Freire sobre a


apropriação do ‘gesto político’, sobre o segundo plano – o subjetivo – consideramos
que só é possível haver educação de cada um dos sujeitos se ele puder resgatar suas
singularidades mnêmicas, isto é, se puder olhar um tanto para o passado. É pela via
da memória, do testemunho, que se fará ancoragem de saber, ao mesmo tempo em
que se sinalizará para um futuro no qual o sonho de transformação é possível. E por
sonho acolhemos aqui o sentido da orquestração de estímulos de diferentes vozes e
imagens, daqui e de aquém, que resultam em intertextualidades e que preservam e
põem a andar a fantasia criativa que habita o psiquismo. Não se trata de fantasias
harmônicas e coesas, mas daquelas que expõem os antagonismos próprios do
humano: querer / não querer, poder / não poder, fazer / não fazer.

Neste sentido, concordamos com Freud para quem os sonhos comportam em si


as contradições da linguagem humana, com as condensações e deslocamentos, em
mesmos elementos, de opostos e dissemelhantes. Lidar com o fantástico exige
esforço subjetivo (e também coletivo) de suportar as heterogeneidades. Nossa
aposta é de que o esvaziamento mnêmico subjetivo – o esforço mínimo, portanto –

10
[...] sin embargo, mientras menos sepa uno sobre el passado y el presente, tanto más incierto será
el juicio que pronuncie sobre el porvenir (FREUD, 1927: 5).
11
[...] vale decir que el presente tiene que devenir passado si es que han de obtenerse de él unos
puntos de apoyo para formular juicios sobre las cosas venideras (FREUD, 1927: 5).

16
leva ao tolhimento destes sonhos no campo da educação, deixando que emerjam e
se consolidem prioritariamente ações concretas, tarefeiras, utilitárias, engendradas
só por técnicas e métodos. Descartam-se assim a criatividade e a fantasia próprias
dos sonhos, que no entanto não deixam de ser sonhados: estão lá, prontos para
serem buscados e trabalhados.

Nesta tese procurei contribuir para o campo da alfabetização através do seu


enredamento com a memória narrativa e a representação mítica. Para atingir tal
propósito estabeleci uma extensa pesquisa bibliográfica que transita por diferentes
áreas de conhecimento, com a finalidade de compreender no fracionamento
discursivo que cada uma delas comporta, como podem (ou não) se articular em
torno do acontecimento ‘alfabetização’, através das transmissões geracionais do
conhecimento. É uma tarefa complexa por tratar-se não de um, mas de vários
entrelaçamentos considerados pelas diferentes faces assumidas pelos termos
alfabetização, memória narrativa e representação mítica.

Além deste trabalho teórico, também contei com uma pesquisa de campo cujo
material foi cotejado com os elementos das análises bibliográficas. Os dados
empíricos derivam prioritariamente da pesquisa empreendida pelo PROJETO
“DESAFIOS” e comporta atividades de três instituições: da Escola de Aplicação da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em São Paulo-SP (doravante
nomeada EA-FEUSP), Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará, em
Belém-PA (doravante denominada EA-UFPA) e Escola Municipal Nila Rego, em Pau
dos Ferros-RN (doravante denominada EMNR-PF). Esta tese conta com materiais
colhidos prioritariamente em São Paulo, mas não deixa de se valer daqueles
provenientes dos outros dois polos.

A seguir passo a elencar os assuntos e tratamentos dados em cada um dos cinco


capítulos desta tese.

No Capítulo 1 procuro recompor um quadro sócio histórico da alfabetização


brasileira, buscando os sentidos e as marcas discursivas de repetição que
perpassaram os 500 anos de educação no Brasil. Neste percurso identifiquei que a
implementação da alfabetização iniciou-se nos primeiros anos de colonização com
os jesuítas portugueses, cujo único propósito estava relacionado à possibilidade de
civilizar e catequizar os índios. Claramente já percebemos que estes primeiros

17
traços de expropriação cultural de algumas populações paulatinamente se arraigam
na educação, culminando com a teoria do ‘déficit linguístico e cultural’ que se
instalou nas décadas de 1970-80.

Em outra análise, neste mesmo Capítulo 1, veremos como a expropriação de


direitos básicos de educação e cidadania alojou-se no discurso educacional através
da sua negação à população negra escravizada no Brasil Colônia e Império, e como
este fato também se estende aos dias de hoje, com índices menores de instrução da
população de baixa renda – em sua maioria descendentes daquela população.
Também identifico que os elementos culturais dos povos africanos que foram
trazidos para o Brasil, embora tenham se transformado em marcas de identidade do
país – da culinária, aos ritmos musicais – também são desconsiderados no processo
de educação formal.

Paralela a estas observações, procurei identificar como os diferentes métodos


de alfabetização se alternaram ao longo da história brasileira, quais suas origens e
como suas concepções (des)consideravam e/ou (des)qualificavam a posição do
professor-instrutor, permitindo ou não a articulação de suas marcas pessoais e
saberes subjetivos no exercício profissional. Acompanhei ainda algumas mudanças
legislativas com relação à extensão e obrigatoriedade da instrução básica no Brasil.
Por fim, fiz uma breve investigação sobre como algumas áreas de saber – psicologia,
neurologia, sociologia, etc. – foram se instalando no espaço educacional, orientando
conhecimentos e ações principalmente associadas às chamadas dificuldades de
aprendizagem. Encerro esta parte no período em que se dá no Brasil a entrada do
pensamento Construtivista, nas décadas de 1970-80.

Indiquei neste Capítulo 1 como os conteúdos discursivos transmitidos podem


ser concordantes ou dissonantes com as diferentes configurações de educação e
como aportam na educação contemporânea, a depender de as formas de
transmissão mnêmicas serem implícitas, censuradas ou explícitas. Rudimentos
mais, ou menos, longínquos deste conjunto são ainda vislumbrados nas atuais
políticas públicas em educação e nas práticas em sala de aula. Entre outros autores,
contei neste capítulo com os trabalhos de Maria do Rosário Longo Mortatti, Ana
Cecília Oñativia, Maria Helena Souza Patto, Magda Soares e Felipe Eduardo Moreau.

18
O Capítulo 2 dediquei à análise das Leis de Diretrizes e Bases (LDB de 1996) e
de como dispõem sobre a educação básica no Brasil hoje, e à análise dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs de 1996) e de como propõem revisões sobre a
alfabetização no país. Identifiquei nos PCNs uma discursividade em torno do
letramento que se vale de conceitos e termos do Construtivismo, pesquisa
empreendida por Emilia Ferreiro, Ana Teberosky e colaboradores sobre os
processos cognitivos infantis para construção da leitura e da escrita.

Desde este ponto refiz o caminho destes pesquisadores destacando


principalmente quatro aspectos. O primeiro deles analiso neste mesmo Capítulo 2,
com base na análise do discurso de Michel Pêcheux e sobre os seguintes faço uma
investigação rápida, para voltar a aprofundá-los nos Capítulos 3 e 4 desta tese. São
eles: 1) Inicialmente o Construtivismo se colocou criticamente em oposição aos
métodos tradicionais de ensino e, principalmente, aos materiais didáticos
estabelecidos fora da relação de ensino/aprendizagem, mas, à revelia dos autores e
contraditoriamente à ética por trás de suas descobertas, o Construtivismo tem se
configurado como um ‘método’ sacramentado de alfabetização, como identifico nas
legislações e instruções oficiais que regem e organizam a educação no Brasil.
Analiso, então, não somente o sentido deste ‘método’, mas também sua eficácia e os
aspectos da proeminência discursiva do Construtivismo como acontecimento
disseminado e inquestionado, que dificulta outras práticas e concepções
alfabetizadoras. 2) O Construtivismo identifica que a criança, antes de se alfabetizar,
já identifica elementos da escrita no cotidiano e vale-se deles para apoiar suas
hipóteses de letramento, mas também este aspecto vem se deturpando na sua
versão aplicada para a alfabetização, quando leva para dentro das salas de aula
informações rotineiras empobrecidas da linguagem escrita. 3) Para o
Construtivismo o nome próprio da criança é baliza fundamental do letramento
infantil, considerado como elemento central de identificação e apropriação da
escrita. Mas este elemento, desde as práticas alfabetizadoras atuais, vem sendo
esvaziado na sua vertente subjetiva, para transformar-se em ferramenta de uso
técnico e, por isto mesmo, desapropriado de seu valor inicial. 4) Alguns
colaboradores de Ferreiro e Teberosky que enveredaram pelas práticas
Construtivistas em salas de aula, estabeleceram dois eixos fundamentais para a
alfabetização – o tempo de construção da escrita é próprio de cada criança e o sujeito

19
alfabetizador é um mediador deste processo infantil, que se dá prioritariamente
entre pares – situações que em última análise delegam a cada criança a
responsabilização pelo seu processo alfabetizador.

Em função destes tópicos elencados, inicio análise do material didático versão


Manual do Professor, enviado pelo Programa Nacional do Livro Didático do
Ministério da Educação (PNLD/MEC) para a EA-FEUSP12, para as atividades de
‘Letramento e Alfabetização Linguística’ do 1º. Ano EFI, elaborado por Cláudia
Miranda e Eliete Presta, para os anos de 2010 a 2012 – doravante denominado de
‘material didático EA-FEUSP’. Principio também análise de material de campo
colhido na PESQUISA “DESAFIOS”.

No Capítulo 3 estabeleço as bases e as articulações teóricas ao redor do que


sustento ser o letramento, com relevos para aspectos da lida subjetiva com os textos
e dos eixos relacionais que a subsidiam pela via das representações narrativas
mnêmicas. Esta composição é alcançada a partir dos enunciados de Leda Tfouni de
que o letramento tem início na oralidade (em que já se encontram aspectos de
autoria) e complementado pela posição de Claudemir Belintane com relação aos
aspectos linguageiros lúdico-poéticos (em que se pode vislumbrar as derivas do
sujeito com relação ao texto), concepções que se somam às leituras psicanalítica e
filosóficas sobre os mitos narrativos, as experiências com a linguagem e a
constituição do aparelho psíquico de memória.

Dentro desta articulação teórica acompanhamos Belintane, para quem a


oralidade é diferenciada da fala pragmática: a primeira comporta elementos que
brincam, mapeiam, identificam e dão um lugar social à criança e a segunda atem-se
mais às funções informativa, imperativa e comunicativa da língua. Aponto que, se as
instituições escolares priorizam a fala pragmática no processo de alfabetização,
nesta tese admito que entre uma e outra fala há um reviramento como o pressuposto
na Banda de Moëbius, e que portanto o processo de alfabetização ocupa um espaço
fundamentalmente de tensão entre elas. Falo, então, em intertextualidade, isto é, da

12
É importante esclarecer que este material didático, embora tenha sido enviado à escola, deixou de
ser utilizado a partir de 2011, quando o PROJETO ”DESAFIOS” teve início naquela instituição de
ensino.

20
possibilidade de se ir de um modo textual a outro permitindo, nesta passagem, as
emergências da subjetividade: intervalos, faltas, excentricidades.

Para compreender a origem, os sentidos e as possibilidades desta relação entre


oralidade, texto e alfabetização, neste Capítulo 3 proponho uma articulação teórica
destes temas com a narrativa. Estabeleço como a linguagem é condição
determinante para a heterogeneidade entre sujeitos e, por isto mesmo, intrínseca a
qualquer processo de educação formal. Parto da análise das culturas orais primárias
em que destaco elementos de transmissão, identidade, sacralidade e memória,
articulados em torno da função mítica. Em seguida analiso algumas definições de
memória desde os pontos de vista biológico, histórico, filosófico, delimitando a
função de transmissão geracional estabelecida pela linguagem. Dou, então, especial
atenção à função psicanalítica da memória na constituição psíquica do aparelho de
linguagem: vemos que a ideia consensual de que a fala antecede a leitura e a escrita,
inverte-se para dar lugar, antes, ao letramento primário (leitura/escrita no corpo),
depois à fala e só aí ao letramento secundário (leitura/escrita gráficas). Nesta
estrutura identifico o papel primordial das construções narrativas míticas
subjetivas, como aquelas que permitem à criança, a partir do letramento primário,
operar com os textos – antes na oralidade, depois no papel.

A função que as narrativas ocupam na infância é especialmente determinante


do período inicial da alfabetização, pois a criança de cinco, seis anos de idade ainda
está às voltas com a castração; isto é, este aluno encontra-se em fase final de
elaboração psíquica e apropriação subjetiva de questões que envolvem sua
identidade e os significantes com que pode dar sentido às perguntas sobre o
nascimento, a vida e a morte, e sobre eles têm que operar uma representação
singular. Subjetividade é o elemento privilegiado na alfabetização: concebo o termo
como as marcas de experiência de um sujeito ao acolher os traços mnêmicos com
que constituirá seu texto mítico, que se mostram ao outro e são passíveis de enlace
discursivo. Finalmente, ainda no Capítulo 3, ressalvo o papel decisivo da escola neste
processo de alfabetização – contrapondo-me à postura Construtivista sobre o
mesmo assunto – pois é dentro da instituição escolar que se pode dar relevo às
diferentes subjetividades discentes manifestas alternadamente em torno de um
texto comum a todos e aquele que é a expressão própria de cada um. Identifico assim

21
que onde se ancoram as dificuldades de letramento também estão fundamentadas
as dificuldades com relação à autoria dos próprios textos míticos.

Utilizo neste Capítulo 3 textos de autores como Walter Ong, Milmam Parry,
Giorgio Agamben, Claudemir Belintane, Walter Benjamim, Sigmund Freud, Jacques
Lacan, Paul Ricour, Christian Ingo Dunker, entre outros. Dou prosseguimento à
análise do material didático EA-FEUSP e apresento mais alguns dados do material
de campo colhido na PESQUISA “DESAFIOS”. Valho-me de alguns exemplos de uso
da oralidade (como o que estabelece Belintane) e de manifestações da linguagem
que, por sua natureza imprevisível e espontânea, fazem parte de manifestações
cotidianas que não estão registradas de forma que se possa revisitá-las ou consultá-
las, mas que, por este mesmo caráter subjetivo evanescente, são considerados como
materiais relevantes para esta tese, pois revelam o campo privilegiado da leitura que
cada sujeito faz do mundo e de seu lugar nele.

Trato no Capítulo 4 da função e da importância das narrativas. Retorno ao


Construtivismo, desta vez para fazer uma análise crítica à maneira como se instalou
no Brasil como uma prática/metodologia de alfabetização que, de um lado em parte
se distanciou das origens epistemológicas do próprio Construtivismo de Ferreiro e
Teberosky (e em parte a ele aderiu) e, de outro, não dá relevo aos textos, às
narrativas e às funções leitoras dos alunos, levando a prejuízos no letramento.
Identifico que ao afastarem-se das narrativas, as práticas alfabetizadoras ao mesmo
tempo afastam-se das suas funções sócio históricas e subjetivas, para aproximarem-
se de uma versão informativa e comunicativa que privilegia elementos pragmáticos
dos textos que rompem com a linha têmporo-espacial, consolidando-se sempre no
presente.

Inicio o Capítulo 4 com a análise de alguns dados do Programa Bolsa-


Alfabetização14, revelados em três pesquisas acadêmicas realizadas no interior do
Estado de São Paulo e do Projeto Ler e Escrever15. Esta apreciação aponta para a

14
Programa Bolsa-Alfabetização – criado pelo governo do Estado de São Paulo em 2007 (Decreto
51.627) consiste na colaboração de instituições de ensino superior na prática pedagógica em sala de
aula, em que alunos dos cursos de pedagogia e letras apoiam professores das salas de 2º. Ano EFI.
15
Projeto Ler e Escrever – instituído pelo governo do Estado de São Paulo em 2007, [...] é um
conjunto de linhas de ação articuladas que inclui formação, acompanhamento, elaboração e
distribuição de materiais pedagógicos e outros subsídios, constituindo-se dessa forma como uma
política pública para o Ciclo I. Tinha como meta [...] ver plenamente alfabetizadas, até 2010, todas
as crianças com até oito anos de idade (2ª série/3º.ano) matriculadas na rede estadual de ensino,

22
função secundarizada dos textos e do uso dos textos para a alfabetização, sustentada
pelo discurso oficial de orientação educacional e tensionada em sala de aula por
diferentes visões de professores e alunos. Em seguida resgato o que é um narrador
e a importância da função narrativa nas transmissões geracionais. Passo então à
apreciação crítica sobre o declínio das grandes narrativas e da tentativa de
cooptação mercadológica do espaço vazio que aí se abre, com destaque para a
hiperinfluência da televisão como elemento portador das narrativas e do
esvaziamento do papel da escola na transmissão geracional. Em paralelo a isto,
analiso pormenorizadamente o material didático EA-FEUSP, no qual identifico
exatamente a evasão textual para a entrada de elementos de propaganda de
produtos e bens de consumo. Verifico também neste material didático, que o
discurso dirigido aos professores tenta recobrir toda prática de sala de aula, de um
lado desqualificando os profissionais do seu saber sobre os alunos (em parte como
as cartilhas utilizadas desde o Império até a década de 1980) e de outro,
estabelecendo para os alunos conteúdos extremamente repetitivos, formalizados e
esvaziados de relevos estéticos que lhes permita explorar a linguagem. Vamos ver,
por exemplo, que com relação ao gênero poesia, o aluno é convidado a perceber a
forma do texto, mais do que sua riqueza poética. Destaco que não há nenhuma
referência neste material didático, às culturas indígenas e africanas, contradizendo
os preceitos das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica.

Destaco ainda no Capítulo 4 uma pesquisa dirigida ao uso das tecnologias da


informação em sala de aula, por jovens alunos, que revela que a falta de habilidade
mínima de leitura e escrita torna estes sujeitos, já vulneráveis economicamente,
extremamente fragilizados e impotentes frente às demandas sociais de consumo. A
partir de dados desta pesquisa, complementados com elementos teóricos da
psicanálise, estabeleço considerações sobre o uso precoce destas tecnologias – mais
precisamente na alfabetização – antes de o aluno ter domínio mínimo do letramento.
Encerro o capítulo apontando para a necessidade de mudança de posição de
profissionais e instituição-escola, no processo de alfabetização infantil,

bem como garantir recuperação da aprendizagem de leitura e escrita aos alunos das demais
séries/anos do Ciclo I do Ensino Fundamental
(http://lereescrever.fde.sp.gov.br/SysPublic/InternaPrograma.aspx?alkfjlklkjaslkA=260&manudjsns=
0)

23
especialmente no que diz respeito à apropriação subjetiva do professor pelo seu
espaço de trabalho.

Para o desenvolvimento deste Capítulo 4 utilizo autores como Walter


Benjamim, Dany-Robert Dufour, Sigmund Freud e Cláudia Priosti, entre outros.
Também neste capítulo introduzo dados do PROJETO “DESAFIOS”, estabelecendo
comparações entre a proposta alfabetizadora aqui estabelecida e aquelas oriundas
do material didático e das práticas orientadas oficialmente.

Finalmente o Capítulo 5 dedico-o à exposição, discussão e análise do trabalho


com as heterogeneidades dentro de sala de aula. Abordo alguns dos inúmeros dados
do PROJETO “DESAFIOS” relevantes a esta pesquisa, referentes aos trabalhos com
textos narrativos em salas de aula de 1º. Ano do EFI e aos trabalhos de formação de
equipe de professores no que diz respeito à elaboração e discussão sobre o material
didático, à atenção à singularidade dos alunos identificando situações de impasse e
dificuldades para a aprendizagem.

No que tange à imbricação da alfabetização com os temas da memória e das


construções míticas, analiso os pontos de repetição e de inovação, tanto das práticas
alfabetizadoras que não se efetivam, quanto daquelas que lhe dão suporte e
consistência. Os três campos de encontro mnêmico (o histórico-social, o
testemunhal e o subjetivo-individual) são considerados em função da repetição
imposta pela linguagem, nas suas dimensões de reatualização e ressignificação de
um acontecimento, e de seu contrário, a ação que se perpetua sem sentido e em
substituição à representação. Abordo estes pontos não como opostos ou
sobrepostos, mas como marcas de tensões intrínsecas deste encontro. Isto permitiu
vislumbrar as brechas de esquecimentos, contradições, vazios, ausências de
significação nos conteúdos e formas de trabalho, pelos quais pude pensar em outros
sentidos e transformações para a alfabetização.

Os materiais que compõem o objeto de análise empírica deste Capítulo 5 são: 1)


dados levantados de materiais da Educação Infantil dos alunos de 1º. Ano do EFI e
avaliações iniciais de desempenho; 2) registros de atividades de sala de aula
produzidos pelos pesquisadores do PROJETO “DESAFIOS” e materiais de discussões
fruto das reuniões, trocas e encontros ente pesquisadores do PROJETO “DESAFIOS”;
3) material produzido especificamente para esta tese, extraído de entrevistas com

24
12 agentes domiciliares de alunos dos três polos da PESQUISA “DESAFIOS”; 4)
apresentação de materiais de dois alunos que participaram da PESQUISA
“DESAFIOS” e discussão sobre intervenções e resultados de atendimentos
individuais e em pequenos grupos.

Desde este complexo percurso, foi possível conclui que nossa proposta de
trabalho com as narrativas de referência e com a oralidade no processo de
alfabetização possibilita novos caminhos no campo da superação do que se coloca
como dificuldade de letramento.

No resgate histórico que fizemos das discursividades sobre a alfabetização no


Brasil, foi possível vislumbrar que em seus desvãos a exclusão de parcela da
população do processo de educação permanece viva, sendo que hoje é
fundamentada pelo controle das práticas pedagógicas fora das salas de aula (o que
torna o professor desautorizado de seu saber) e pelos desvios didáticos daquilo que
é próprio da infância (tornando o ensino desinteressante e inacessível aos alunos) –
dois campos em que as representações subjetivas são interrompidas. Confirmamos
assim nossa hipótese de que a não representação discursiva faz repetir
acontecimentos que se perpetuam de forma alienada no campo social e também
subjetivo.

Pudemos propor, a partir das elaborações teóricas e da análise de dados do


PROJETO “DESAFIOS”, de um lado que o professor seja instrumentalizado a lidar
com as narrativas de referência e com a oralidade oriunda da tradição, como forma
de reaproximá-lo do saber acumulado pela cultura e de movê-lo do lugar
presentificado e pragmático em que se encontra; e de outro que as políticas públicas
se voltem para resgatar o docente do isolamento em que se encontra em sala de aula,
através de trabalhos que se façam por equipes de professores (lugar simbólico
privilegiado para trocas e construção de saber). Propusemos também que estas
narrativas e a oralidade sejam levadas aos alunos, pelas escolas, como forma de
situá-los como sujeitos leitores (elemento primeiro para o processo de
alfabetização) e de corrigir desvios históricos sociais dos índices de alfabetização
efetiva da população brasileira.

As reflexões propostas em torno das representações míticas e sua articulação


com a alfabetização compõem uma tese nova. Ao abordarmos o processo de

25
letramento a partir da oralidade e das narrativas oriundas da tradição e ao
articularmos estes elementos às elaborações psicanalíticas que estabelecem o
letramento primário como primeiro ponto de constituição subjetiva (que se dá por
meio da inscrição dos traços mnêmicos entre mãe e bebê) o ineditismo desta tese
está na ideia de que o letramento secundário (aquele que se dá no processo formal
de alfabetização infantil) é condição fundamental, não só para a formação de sujeitos
cidadãos, mas para a conclusão da constituição subjetiva. Isto evidencia que a
negação de acesso aos processos educacionais tem reflexos negativos na formação
da sociedade, mas também na de cada sujeito.

Começo então, dando uns passos atrás, propondo uma reconstrução – que não
deixa de ser uma representação – sobre quem somos nós, brasileiros, herdeiros de
uma história riquíssima que precisamos revisitar para operar mudanças no campo
da alfabetização.

26
1. MEMÓRIAS (DES)ENCAMINHADAS DA EDUCAÇÃO
BRASILEIRA
Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas
Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas

Com estes versos Roberto Mendes e José Carlos Capinam encerram a canção Yá
Yá Massemba, relato da peleja dos negros traficados para o trabalho escravo no
Brasil Colônia e Império. Um fim que aponta para saída honrosa e esperançosa para
a condição de povos africanos sequestrados e comercializados; um objetivo ansiado
há tanto tempo e que ainda espera resposta. Os resultados insatisfatórios no que
concerne à capacitação para leitura e escrita de todos os brasileiros (ou ao menos
sua franca maioria) esbarra ainda em questões prosaicas sobre o que é alfabetizar,
ou quem se responsabiliza por seu acontecimento.

A história da alfabetização no Brasil remonta à primeira metade do século XVI,


quando da chegada das primeiras levas de colonizadores portugueses ao país. Essa
longevidade cronológica, no entanto, não significou benefícios escolares
acumulados desde aquela época. Pelo contrário, o que se viu foram séculos de
escolarização insipiente, titubeante e entrecortada pelos interesses régios, guiados
pelos movimentos políticos e econômicos de cada momento histórico e,
principalmente, saqueador de boa parte da memória de cada um dos povos que deu
origem ao brasileiro.

Só em meados do período imperial começou-se a desenhar alguma preocupação


com a instrução da população brasileira – diga-se de passagem, preocupação mais
legal, do que de fato – que entretanto precisaria de mais um século para ser pensada
e estendida a todos. Nos debates que se instalaram pelos primeiros pensadores
efetivos da educação, muito se incomodou com os métodos de alfabetização, que se
alternavam nas carteiras escolares da nossa infância ao sabor dos diversos ideários
sociais.

Essa história de educação social, de tão poucos avanços e muitos recuos, faz das
nossas escolas contemporâneas herdeiras desse passado.

Neste capítulo abordaremos alguns aspectos relevantes com relação à educação


no Brasil, nos principais momentos históricos desde a colônia, destacando discursos
que influenciaram os pensamentos e as práticas de alfabetização em diferentes

27
campos sociais que, no mais das vezes, pendeu para o lado da exclusão de algum
segmento populacional. Assim, ora encontraremos claramente este discurso
afirmado em leis, ora veremos como estão velados em acontecimentos.
Interrompemos as investigações na década de 1980, quando se dá no Brasil a
entrada mais contundente do Construtivismo, assunto que abordaremos
separadamente, no próximo capítulo.

1.1.A COLÔNIA – A EDUCAÇÃO RELIGIOSA DOS ‘PRIMITIVOS’

Ao pensar no processo histórico da escrita no Brasil é quase inevitável


lembrarmo-nos dos quadros que retratam o padre José de Anchieta escrevendo nas
areias da praia com o propósito de catequizar os nativos da terra brasílis. Quando
aportaram no novo mundo, a parir de 1549, os missionários da Igreja Católica
tinham o propósito ‘bastante nobre’ de tornar aqueles pagãos aculturados em
tementes a Deus, menos bárbaros e mais pudicos em seus hábitos culturais. Nessa
empreitada, ao menos uma parcela dos agrupamentos de gentios acedeu aos
ensinamentos jesuíticos e abraçou a nova cultura, aceitando alguns dos preceitos
bíblicos. Segundo Filipe Moreau (2003), para os jesuítas que traziam as palavras
divinas na forma de sermões, [...] poucas letras bastariam aqui, porque tudo é papel
branco, devendo-se escrever à vontade as virtudes mais necessárias (MOREAU, 2003:
189). Assim os habitantes originais de nosso país eram vistos como ‘tábula rasa’ ou
‘papel em branco’, como se sua história, memória e tradição não tivessem nenhuma
consistência humana, ou fossem totalmente desprezíveis. Essa visão jesuíta de
esvaziamento do saber indígena vemos ressoar em nossa sociedade contemporânea,
tão em dívida cultural com esses povos, quanto faz questão de não considerá-los
peça fundamental na composição de quem somos, pensamos ou agimos.

Ainda que se tenha recentemente16 reconhecido a importância dos povos


indígenas para a construção da Nação Brasileira, assistimos amplamente ao
escanteamento cultural destes grupos sociais. As tribos que decidiram permanecer
isoladas dos centros urbanos encontram dificuldades extremas para demarcação ou
garantia da integridade de seu território e de seu povo. Já os grupos que optaram

16
Constituição Brasileira de 1988.

28
pela convivência com outras civilizações penam para manter seus hábitos culturais
ou tê-los reconhecidos.

Pude constatar de perto esta situação. Como o PROJETO “DESAFIOS” tem um de


seus polos de ação em Belém do Pará, por duas ocasiões nos reunimos naquela
cidade com seus pesquisadores17. Belém é uma cidade cujo rosto é indígena: os
traços fisionômicos e a culinária popular não deixam mentir e um passeio por suas
ruas desvelam os olhos amendoados emoldurados pelos cabelos pretos, lisos, de
uma população que exala açaí, tacaca, mandioca e pirarucu. Estes são os pontos de
resistência e permanência identitária. O mesmo já não se pode dizer dos ritmos
musicais que embalam seus corpos. O Carimbó – ritmo local que remonta ao início
do século XX e que mistura elementos da música afro-caribenha com indígenas –
virou atração turística nos barcos de passeio pelos imensos rios da região, ou em um
ou outro restaurante do qual a população nativa não usufrui, mas serve. Indagar aos
comerciantes locais sobre registros de sons originalmente indígenas causa tanto
espanto quanto se lhes perguntasse por gravações de cânticos suecos: ninguém sabe
dizer onde se pode encontrar isto!

Entretanto, a medida desta consideração não se dá só pelo que acontece nas


ruas, mas prioritariamente nas salas de aula. Aí também causa comoção o trato com
a tradição indígena. Um dos pressupostos do PROJETO “DESAFIOS” é referenciar os
currículos escolares de língua portuguesa com tramas linguageiras da tradição oral
e literária. Para isto, buscamos em textos e imagens consagrados elementos
alfabetizadores que contenham riqueza poética e estética e que, de preferência,
sejam subsidiados por narrativas locais. Assim, folclores, lendas, mitos,
brincadeiras, cantigas presentes nos grupos sociais são de extrema valia. Como
destaca Claudemir Belintane (2011):

Nossa hipótese leva em conta que se a tradição oral acumula e filtra determinados tipos
de textos e os mantém como um acervo de todos é porque tais textos se prestam ao
desenvolvimento de determinadas estratégias linguageiras que, entre tantas outras
funções, também preparam a leitura, mesmo quando não há suportes gráficos diante
dos olhos (BELINTANE, 2011: 26)

17
Em setembro de 2011 e abril de 2012.

29
Pois bem, acreditávamos que aspectos da cultura indígena já estivessem
presentes nos textos disponibilizados para as crianças da Escola de Aplicação da
Universidade Federal do Pará, não só por meio das lendas do Açaí, da Mandioca, do
Mapinguari, do Boto, entre outros, mas também das línguas indígenas. Mas, para
espanto, só a duras penas estes aspectos vêm sendo introduzidos aos poucos nas
salas de aula, subsidiados pelo PROJETO “DESAFIOS”. Cabe dizer que a equipe de
pesquisadores do polo de Belém tem se empenhando, entre outras atividades, no
resgate da cultura local como subsídios de suporte da alfabetização. Ainda assim, no
primeiro ano da pesquisa estes elementos não foram trabalhados como parte do
currículo local, mas como ‘exigência do projeto’. Com mais facilidade os professores
lidavam com dados da cultura norte americana (o ‘mundo Disney’) amplamente
disseminada no universo infantil.

Assim, no primeiro ano do PROJETO “DESAFIOS” o seguinte quadro em uma sala


de aula do 1º. Ano EF I da EA-UFPA, sintetizava a prevalência de referências
imagéticas e textuais:

Figura 1: Fotografia tirada de sala de aula do PROJETO ‘DESAFIOS’

Fonte: Laura Battaglia Pires Cavalcanti, 2011

As letrinhas bem bordadinhas em um painel Disney: a preferência não é


privilégio desta escola. Um simples passeio pelas ruas de qualquer cidade brasileira
denuncia estes adornos já na fachada de muitas delas.

Naquele mesmo ano de 2011, toda a riqueza do universo das crianças indígenas
estava presente no espaço escolar, mas como um sub conhecimento, circunscrito a
uma sala junto à coordenação. Ali empenhada, a pesquisadora e educadora

30
Wanderléia Medeiros Leitão18 esforçava-se para manter viva a tradição indígena,
acolhendo alunos da instituição em atividades não curriculares de brincadeiras e
confecção de brinquedos de miriti. A incrível beleza deste patrimônio escondido
contrasta com o material exposto na sala de aula, mais à mão e à memória dos
alunos:

Figura 2: Fotografia de brinquedo e Miriti

Fonte: Kátia Arila, 2011

Figura 3: Fotografia de brinquedo e Miriti

Fonte: Kátia Arila, 2011

18
Professora, coordenadora do Grupo de Estudo, Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Inclusiva
e coordenadora do Grupo de Estudo, Pesquisa e Educação no Campo da Amazônia, da Escola de
Aplicação da UFPA.

31
Vê-se assim que elementos importantes que carregam os traços de civilizações
inteiras estão presentes, mas o olhar não se demora sobre eles. Figuram quase como
relíquias de museu, mais prontos à visitação do que ao manuseio e regozijo.

Retomando o percurso histórico do aculturamento dos índios, um dos fatores


que tornou possível a catequese indígena não foi exatamente a benesse da Igreja,
mas o fascínio que os cerimoniais católicos exerciam sobre os nativos:

[...] o luxo seduzia os índios. Os jesuítas perceberam que imagens devocionais e


elementos decorativos, cálices, sinos, missais, paramentos, vinho, vinagre, cruzes,
lamparinas [...], pedras do altar, hóstias, água batismal e óleo consagrado, toda a
parafernália litúrgica tinha um enorme efeito prático sobre os índios, que adoravam
pompa e solenidade, como demonstram seus próprios rituais (MOREAU, 2003: 187).

Fica claro que os jesuítas não ignoravam a importância dos rituais tradicionais
e seu efeito arrebatador sobre os índios; no entanto não reconheciam os cerimoniais
indígenas, devendo substituí-los por elementos da cultura dominante europeia.

Moreau ressalta que Manoel da Nóbrega em sua primeira carta à Corte


Portuguesa reportava a ‘facilidade’ de ensinar aos habitantes do novo mundo: Já um
dos principais deles aprende a ler e toma lição cada dia com grande cuidado, e em dois
dias soube o A B C todo, e o ensinamos a benzer, tomando tudo com grandes desejos
(NÓBREGA, Carta I, apud MOREAU, 2003: 191).

No entanto quis a conjuntura política da colonização portuguesa no Brasil e a


natureza social dos nativos brasileiros, que a conversão dos índios não fosse nem
tão extensa, nem tão tranquila. Primeiro, crendo que se catequizassem os chefes das
tribos teriam a seu dispor todos os moradores da aldeia, custou aos jesuítas
perceber que a hierarquia indígena em nada coadunava com as europeias
conhecidas. Não só havia o chefe da aldeia, como também havia o chefe da maloca e
o do grupo de aldeias (para as situações de guerra), tornando difícil a cooptação de
todos eles. Além do mais, a liderança, para os agrupamentos indígenas, não
significava ter privilégios econômico ou social, ou ser o mais forte entre os homens;
ela dependia do consentimento de seus seguidores, que só o consideravam chefe
enquanto era o organizador das tarefas diárias do grupo e também sustentáculo das
tradições indígenas. O chefe era aquele que articulava as ações futuras às práticas
passadas e, portanto, ao serem cooptados pelos apelos cristãos, deixavam de

32
perpetuar os conhecimentos e a memória de seu povo, sendo destituídos de seu
papel de líder do grupo social.

Para os povos ágrafos – dentre os quais incluem-se as sociedades indígenas


brasileiras – a identidade e sobrevivência dos grupos se sustentam pela tradição de
cultura oral, reiterada ritual e mnemicamente. O valor dado às tradições grupais não
se resume a apreço gratuito pelo passado, senão que revela o modo particular de
estrutura dos povos de cultura oral primária – aqueles em que a história não é
sustentada pelo registro escrito ou pictografado, mas pela fala. Para Walter Ong
(1998), que junto com Milman Parry (1977), I. G. Gelb (1976) e Eric Havelock
(1996), estudou esses povos ágrafos, o ato de falar é central na transmissão das
narrativas e na conservação do pensamento daquelas sociedades. Sem o apoio da
escrita, toda memória se preserva no e pelos oradores (geralmente identificados
como líderes de suas comunidades), mas também por rituais e outros elementos
ligados aos desenhos, às pinturas. Os arautos têm o papel de transmitir e preservar
a cultura e a tradição do seu povo, portanto fora desse lugar ele deixa de representar
a si e seus pares.

Essa contenda que remonta cinco séculos é ponto importante de consideração.


Ali onde os jesuítas tentavam substituir a tradição indígena pelo ensino da leitura
religiosa, já se evidenciava a tentativa de cooptação do grupo e desqualificação do
papel da oralidade no processo de identificação de um povo. Eliminar a tradição oral
é um dos modos de perder de vista os elementos de identificação e aquilo que cada
cultura tem de singular. E, quando este é o único sustentáculo da civilização, perde-
se o que Ecléa Bosi (1979) destaca como lembranças e escolhas que se perpetuam
na história de vida – o resultado é o aniquilamento do grupo.

O segundo ponto de entrave para o avanço das missões religiosas encontrava-


se entre os próprios colonos portugueses, para quem era necessário manter os
atributos ‘bárbaros e bestiais’ dos índios, que dessa forma eram mais facilmente
tratáveis nas tarefas servis – condição necessária para a lida com as lavouras e com
as demais atividades econômicas da colônia.

Não sendo fácil lidar com os adultos das aldeias, mais possível era educar seus
filhos. Essa, aliás, é para Maria Rosário Mortatti (2004) a primeira forma de
cooptação dos povos indígenas, já que em seus escritos não chega a mencionar a

33
tentativa de lida com os chefes tribais adultos. Para a autora, de início os
missionários católicos criaram as ‘escolas de ler, escrever e contar’, onde se
cristianizava e instruía os índios com o intuito de civilizá-los e onde o ensino
primário convinha somente a sustentação da catequese. Essas escolas eram
destinadas às crianças indígenas, pois acreditavam que elas seriam veículo mais fácil
para a expansão do pensamento religioso entre os pares das aldeias. Ainda segundo
a autora, estrategicamente com o tempo essas instituições passaram a servir
também aos mestiços, aos filhos de colonos e órfãos vindos de Portugal19, já que só
a população indígena seduzida por espelhos ou laçada compulsoriamente não era
suficiente para lotar os bancos escolares. Além dessas escolas, foram fundados os
colégios jesuítas cuja intenção era de formar novos missionários.

Moreau (2003) retrata os aldeamentos ou colégios, como locais em que as


crianças indígenas eram isoladas em comunidades jesuítas. Ali só havia padres ou
‘irmãos’ e os curumins ficavam apartados do convívio com seus pares. Segundo o
autor, para o antropólogo Viveiros de Castro em ‘O mármore a e a murta: sobre a
inconstância da alma selvagem’ e para Roberto Gambini em ‘O espelho índio: os
jesuítas e a destruição da alma indígena’, os jesuítas chegavam à prática de sequestro
dos meninos para que fossem educados longe dos pais e afastados da sua cultura de
origem. Esperavam com isso, que posteriormente influenciassem os outros aldeões
à prática cristã.

Guardadas todas as proporções, essa mesma prática invertida e de eficácia


questionável – de se ensinar os filhos com vistas à educação dos pais – também
aconteceu em outros momentos da história brasileira. Por exemplo, com o ensino
escolar de ‘Educação Moral e Cívica’ durante a ditadura militar (1964-1985), ou
mais recentemente, em fins do século XX, quando as preocupações ecológicas
tomaram corpo e muitas escolas brasileiras incluíram-na em suas atividades
curriculares.

19
A propósito da deportação de órfãos de Portugal para fins de colonização das terras brasileiras,
sugerimos assistir ao filme ‘Desmundo’ (2003), de Alain Fresnot, baseado no romance de Ana
Miranda. Ambientado em 1570, o filme é todo falado em português arcaico e retrata a relação de
poder e troca dos colonos portugueses com os índios locais e com as mulheres (tanto com as
indígenas, quanto com as órfãs para cá enviadas).

34
Apesar do espaçamento no tempo, as mesmas considerações que se faria para
as práticas jesuítas do século XVI, podem ser feitas para estas mais recentes. Faz
parte da instrução das crianças orientá-las a observarem (ou vigiarem?) os hábitos
caseiros e a ensinarem seus pais a terem uma ‘atitude correta’. Estas práticas
educativas revelam três situações. Primeiro, tem claro objetivo de intervir sobre
padrões de comportamento social. Segundo, são práticas cobradas dos alunos e seus
pais, mas não necessariamente cumpridas pelas instituições escolares, como
podemos ver ainda hoje com relação aos assuntos ecológicos, na prática de
desperdício de materiais pelas próprias escolas, ou – mais grave – na falta de
civilidade dos governos militares.

O terceiro ponto de consideração é decorrente do segundo e trata da imposição


discursiva: ainda que nem em todos os casos haja a intenção de desqualificar o saber
social, há um discurso que tenta ordenar os demais. Como aponta Michel Pêcheux
(1988), mais ou menos silenciosamente a materialidade discursiva participa de um
jogo metafórico em torno do enunciado e sobredetermina o acontecimento social.
Às voltas com um mesmo objeto – ecologia, civilidade, cristianismo – o enunciado de
cada época funde os sujeito que acreditam nele, com aqueles que não acreditam. Ou
seja, com relação a um mesmo objeto, produzem-se dois discursos heterogêneos –
um a favor, outro contra – que se tornam estáveis e, aparentemente, independentes
do enunciado. Estes espaços discursivos logicamente estabilizados supõem que
todos os sujeitos sabem do que falam, [...] porque todo enunciado produzido nesses
espaços reflete propriedades estruturais independentes de sua enunciação: essas
propriedades se inscrevem, transparentemente, em uma descrição adequada do
universo (tal que este universo é tomado discursivamente nesses espaços) (PÊCHEUX,
1988: 31). Para o autor a questão se coloca no fato de que a urgência da vida
cotidiana faz com que os homens precisem acreditar na homogeneidade lógica,
portanto, recobrem a heterogeneidades do real natural-social-histórico [...] como se
esta adesão de conjunto devesse, por imperiosas razões, vir a se realizar de um modo
ou de outro (idem: 32). O equívoco está posto ali onde os discursos heterogêneos são
tomados como homogêneos – como se todos falassem da mesma coisa...

Ressalvo que a falácia se estrutura na crença de que os objetos aos quais o


enunciado se referencia, são tomados como os mesmos: no discurso ecológico, de

35
um lado o objeto é ‘reciclar’ e do outro é ‘usufruir’; no discurso cívico, de um lado
está a ‘imposição da ordem’ e de outro a ‘liberdade de expressão’; e, finalmente, no
discurso colonizador, de um lado está ‘Deus’ e do outro a ‘cultura’. Não se fala da
mesma coisa, mas ‘ecologia’, ‘civilidade’ e ‘cristianismo’ se sobrepõem aos discursos
heterogêneos amalgamando-os e, aí, alienando os dois. Segundo Pêcheux isto se dá
em toda parte, em todos os discursos, mas o que chama a atenção nos três casos
citados é o uso da criança como instrumento dos enunciados imperiosos. A condição
de estar ainda em desenvolvimento é aviltada e sobre o pequeno indivíduo recai a
responsabilidade de formar os adultos – os mesmos que deveriam formá-lo –
portanto, de desempenhar um papel que não é seu, mas dos adultos incapazes de
exercê-lo.

E assim, as crianças indígenas passaram a ser o veículo da colonização cristã.


Moreau afirma ainda que Nóbrega [...] ensinava a doutrina e alfabetizava meninos
visando as orações religiosas (NÓBREGA, Carta I, apud MOREAU, 2003: 193). Na Carta
XLI, Manuel da Nóbrega escreve à metrópole:

[...] ensinam aos índios as coisas necessárias à sua salvação, lhes dizem missa e ensinam
a doutrina cristã duas vezes cada dia, e também [...] ensinam aos filhos dos índios a ler,
escrever, contar e falar português, que aprendem bem e falam com graça, ajudam as
missas e desta maneira os fazem polidos e homens (NÓBREGA, Carta XLI, apud
MOREAU, 2003: 197).

Todo propósito educativo servia a um só objetivo: o de disseminar o


pensamento cristão ‘puro’ e fazê-lo substituir toda história impura da tradição
indígena. Acreditavam que a barbárie em que aqueles viviam devia-se ao
desconhecimento das verdades da igreja católica e que, assim que se aproximassem
de tal verdade, imediatamente se renderiam à grandeza do Deus único. Torná-los
homens a qualquer preço – essa era a missão educativa. E para cumprir esse encargo
não faltavam castigos e situações disciplinares degradantes dirigidas aos pequenos
nativos. Para Baêta-Neves as repreensões, reclusões, castigos corporais, privação de
lazer ou descanso retratam que [...] a violência nos Colégios é generalizada [...] e se
liga a uma ideologia eticamente louvada de mortificação do corpo (BAÊTA-NEVES,
1978: 149-52, apud MOREAU, 2003: 198). Essa atitude punitiva, aliás, só encontrou
seu fim em meados do século XX, momento em que as teorias psicológicas

36
começaram a fazer parte do cotidiano escolar, questionando a ineficácia dessa
prática para a aprendizagem.

Uma contradição aparente se colocava desde o início da alfabetização no Brasil:


as artes da leitura e da escrita não se estendiam a todos os colonos portugueses, ao
passo que se visava instruir o maior número possível de selvagens. O ensino da
leitura e da escrita era simplesmente um dos veículos para a ascensão às palavras
divinas e não visava outra coisa senão o controle e poder sobre a crença, os hábitos,
o corpo e a servidão – e a esse controle os portugueses colonos já estavam
submetidos. Tal prática, no entanto, talvez ainda não pudesse ser chamada de
‘alfabetizadora’ – se tomarmos o sentido libertador que hoje tentamos impingir a ela
–, mas de instrutora para as formas de doutrina que essa nova língua e os novos
hábitos culturais impunham. Para Mortatti (2004) existia no Brasil colônia um
grande contingente de pessoas que não tinham a menor proximidade com a língua
escrita, mas ainda assim não se consideravam analfabetas, pois a designação de
iletrados cabia aos índios e outros pagãos. Analfabetos eram os outros! Isso indica
uma posição ideológica clara: importante não era saber ler e escrever, mas
assujeitar-se à cultura dominante que se impunha e, se o caminho para essa
conversão fosse a alfabetização, que se as desse aos pagãos. Pode-se inferir que
‘analfabeto’, ‘não homem’ e ‘gentios’ eram tomados como sinônimos entre si. O
remédio? – o alfabeto que civilizava para o cristianismo!

Toda língua carrega consigo maneiras de pensar e agir que lhe são próprias. O
único propósito da empreitada das Companhias de Jesus era, pela via do ensino da
língua portuguesa, o de modificar a maneira de pensar dos índios, para aceitação
obediente de seu novo papel na Terra: servir aos interesses divinos. ‘Alfabetizava-
se’ para a leitura dos ensinamentos religiosos, sem mais.

Mas não se modifica a estrutura social de um grupo de uma hora a outra. Como
a história mostra, esse é um trabalho de décadas, às vezes de séculos. Diz-nos Sérgio
Buarque de Holanda (1936) que [...] a experiência e a tradição ensinam que toda
cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando
estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida (BUARQUE DE
HOLANDA. 1936: 40). Não se deu diferente com os índios, que resistiram ao

37
aculturamento enquanto era imposto à força, mas cederam a seus ‘encantos’ quando
parte de suas tradições foi incorporada aos hábitos dos colonizadores.

Como meio de se aproximar da cultura local e usá-la a seu favor, Padre José de
Anchieta, um estudioso das línguas, aprendeu o tupi, que era língua indígena mais
falada no território brasileiro. Estabeleceu uma gramática para ela e podemos,
talvez, considerar os esforços de sistematização do tupi como uma espécie de
embrião da ‘língua geral’ (que é uma mistura das línguas portuguesa com o tupi).
Esta ‘língua geral’ passou a ser utilizada na conversão dos índios, a despeito de o
português ser a língua oficial da colônia.

Como forma de se aproximar da população indígena e catequizá-la, Anchieta


também criou peças de teatro em quatro línguas (latim, português, espanhol e tupi)
como o auto ‘Na festa de São Lourenço’, um clássico que compõe o conjunto de obras
‘Autos da catequese’ (BOSI, 1970). Chama a atenção nesse texto, como também em
outros de sua autoria, o fato de Anchieta usar nomes de guerreiros indígenas
(Guaixara, Aimberê e Saraiva – nomes de heróis dos Tamoios) para nomear os
demônios de suas peças, evidenciando mais uma vez a intensão de expandir a
catequese indígena.

Quanto aos autos atribuídos a Anchieta, deve-se insistir na sua menor autonomia estética:
são obra pedagógica, que chega a empregar ora o português, ora o tupi, conforme o
interesse ou o grau de compreensão do público a doutrinar. Formalmente, o teatro
jesuítico, nessa fase missionária inicial, está preso à tradição ibérica dos vilancicos, que se
cantavam por ocasião das festas religiosas mais importantes. [...] Os autos de Anchieta,
como os mistérios e as moralidades da Idade Média, que estendiam até o adro da igreja o
rito litúrgico, materializam nas figuras fixas dos anjos e dos demônios os polos do Bem e do
Mal, da Virtude e do Vício, entre os quais oscilaria o cristão; daí, o seu realismo, que à
primeira vista parece direto e óbvio, ser, no fundo, alegoria (BOSI, 1970: 23-24).

A distância entre a língua portuguesa e aquelas dos nativos e o fato desses


últimos terem que passar da cultura ágrafa, centrada na oralidade, para uma cultura
grafocêntrica, fazia da empreitada de ensinar e aprender tarefas difíceis, mas a
partir da língua geral tornava-se menos árida. O trabalho de catequese e
alfabetização demandava duplo esforço por parte dos índios: a aprendizagem da
escrita alfabética da língua geral, seguida da aprendizagem oral e escrita da segunda
língua, o português.

38
Segundo Ivan Vilela (2011), os jesuítas que traziam a tradição católica barroca
ao Brasil, precisavam de muito dinheiro para manter as escolas e os colégios, e esse
provimento era escasso. Mortatti (2004) corrobora essa visão, esclarecendo que aos
poucos as escolas foram fechadas, permanecendo somente os colégios. Esses
passaram a servir aos filhos dos colonizadores e dos senhores de engenho – mesmo
àqueles sem vocação religiosa – que não dispunham de outro local de instrução onde
pudessem aprender o latim, filosofia e teologia e, ao mesmo tempo, habilitarem-se
para seguir os estudos em universidades portuguesas.

Não havendo provimentos suficientes, catequizavam alguns índios que se


tornavam ‘padres’ e tinham o ofício de também catequizar, rezar missas e fazer levar
aos seus pares a cultura portuguesa religiosa – ainda que o fizessem na língua geral
e não no português. Por um tempo foram as comunidades locais que mantiveram os
ritos católicos e com eles o ensino alfabetizador.

Se de um lado os jesuítas deixaram de marcar terreno nessa colônia luso-ibérica,


de outro a nossa língua portuguesa não parou de sofrer influências mútuas. Para
Buarque de Holanda (1936), embora Padre Vieira tenha se dirigido à Corte
Portuguesa relatando que os índios falavam sua língua materna em casa e que na
escola aprendiam o português, que cada vez mais era a língua usual dos da colônia,
relatos de Pedro Taques, Artur de Sá de Meneses e de Antônio Pais de Sande ainda
reportavam que em São Paulo, nos últimos decênios seiscentista falava-se a língua-
geral, mais do que o português, mesmo entre os colonos aqui aportados, ainda que
se possa atribuir esse costume às camadas ‘mais humildes’ (e mais numerosas), cuja
convivência com os índios era mais constante. Isso porque cabia às mulheres
indígenas o ofício de preservar as tradições nativas e eram elas que, na ausência dos
homens indígenas cooptados para as lavouras ou para acompanhar os bandeirantes,
criavam os filhos. Elas eram [...] o elemento estabilizador e conservador por
excelência, o grande custódio da tradição doméstica (BUARQUE DE HOLANDA, 1936:
124).

Isso levou a que a conformação da língua que se falava em terras paulistas


tivesse uma configuração particular. Pela dificuldade que a Serra do Mar impunha
ao plantio da cana de açúcar e à chegada de víveres e escravos de origem africana,
os paulistas do planalto tinham que dispor dos índios (e praticamente só deles)

39
muito mais do que nas terras do Nordeste onde todos os provimentos necessários
aportavam sem maiores problemas e as lavouras eram tocadas pelos escravos
negros. Isto posto,

[...] sem o índio, os portugueses não poderiam viver no planalto, com ele não poderiam
sobreviver em estado puro. Em outras palavras, teriam de renunciar a muitos dos seus
hábitos hereditários, de suas formas de vida e de convívio, de suas técnicas, de suas
aspirações e, o que é bem mais significativo, de sua linguagem (BUARQUE DE
HOLANDA, 1936: 131-2).

Foi isso que ocorreu nos movimentos bandeirantes: a busca de novas terras
empreendidas, não pelos portugueses ‘puros’, mas por aqueles que tiveram que se
imiscuir aos índios, levou a que se aculturassem um tanto também. A língua geral,
antes falada mais na costa brasileira, se alastrou pelos rincões do país. Sobretudo
aquela falada em São Paulo20 se difundiu para o interior graças aos bandeirantes,
sertanistas e jesuítas, e há indícios de que ela tenha exercido boas influências na
perpetuação de um certo glossário tupi dentro do português, principalmente no que
se refere à nomeação de elementos da natureza21.

Relatos feitos na época colonial sobre os hábitos e a cultura indígena,


intrigavam, causavam espanto e indignações, como lemos na descrição de Pero de
Magalhães Gandavo (Séc. XVI):

A lingua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece das letras – scilicet, não se acha
nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei,
e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente (GANDAVO, século XVI: 52).

Gandavo tomava o F, o L e o R como letras e não como fonemas, caracterizando


um problema para a Metrópole com relação à colonização, já que na sua visão os
índios não poderiam compreender os termos fundamentais da conquista
portuguesa: a Fé, a Lei e o Rei.

Estima-se que a população indígena no Brasil em 1500 era de 10 milhões de


habitantes, de cerca de 1.500 etnias diversas, que falavam em torno de 1.300
idiomas diferentes22. Atualmente o número de índios brasileiros não chega a 900

20
No Norte do Brasil a língua geral era diferente e tinha o nome de Nhengatu.
21
Nomeação de rios (Tamanduateí, Jacareí, Piracicaba, etc.), nomeação da fauna (inhambu, urutu,
jaguatirica, arara, sucuri, etc.) e da flora (araçá, pitanga, umbu, etc.).
22
http://www.funai.gov.br/indios/fr_conteudo.htm Acesso em 23/07/2013.

40
mil, representantes de apenas 305 etnias – menos de 0,5% da população brasileira
atual. No processo de dizimação e aculturamento indígena nos últimos 500 anos,
mais de mil idiomas não são mais falados, restando perto de 274 ainda praticados23.

Consultando as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica - DCNEB,


(BRASIL, 2013) percebemos que as políticas educacionais voltadas especificamente a
esta população só foram instituídas em 199924, fixando normas para o
funcionamento das escolas indígenas de educação básica. Fruto do trabalho coletivo
de diversas esferas governamentais e não governamentais, estas diretrizes foram
estabelecidas [...] com a participação marcante de educadores indígenas, envolvidos
com a promoção da justiça social e a defesa dos direitos do povo indígena na
construção de projetos escolares diferenciados (BRASIL, 2013), com propósitos de
afirmação da identidade étnica e inserção deste grupo populacional na sociedade
brasileira.

Dentre as diretrizes elencadas no documento estão as orientações para:


elaborar, desenvolver e avaliar os projetos educativos; instrumentalizar normas
visando a articulação e a sequência da educação básica; assegurar o
(multi)bilinguismo e os conhecimentos tradicionais; fortalecer a colaboração entre
os sistemas de ensino no âmbito dos territórios etnoeducacionais; normatizar os
meios de comunicação e mecanismos de consulta referentes à educação e às
relações de trabalho indígena; zelar pelo direito à educação diferenciada das
comunidades indígenas. Ressaltamos uma das diretrizes deste documento:

Assegurar que o modelo de organização e gestão das escolas indígenas leve em


consideração as práticas socioculturais e econômicas das respectivas comunidades,
bem como suas formas de produção de conhecimento, processos próprios de ensino e
de aprendizagem e projetos societários (BRASIL, 2013: 356-357).

E notamos também outra diretriz:

Orientar os sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos


Municípios a incluir, tanto nos processos de formação de professores indígenas, quanto
no funcionamento regular da Educação Escolar Indígena, a colaboração e atuação de
especialistas em saberes tradicionais, como os tocadores de instrumentos musicais,

23
http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/08/10/brasil-tem-quase-900-mil-indios-de-305-
etnias-e-274-idiomas Acesso em 23/07/2013.
24
Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Indígena, Parecer CNE/CEB no. 14/99 e Resolução
CNE/CEB no. 3/99.

41
contadores de narrativas míticas, pajés e xamãs, rezadores, raizeiros, parteiras,
organizadores de rituais, conselheiros e outras funções próprias e necessárias ao bem
viver dos povos indígenas (BRASIL, 2013: 357).

Nos parece que a segunda diretriz que destacamos é já uma tentativa de


gerenciamento externo daquilo que é estabelecido na primeira diretriz destacada,
uma vez que os elementos aí elencados dizem respeito exatamente às práticas
socioculturais de cada grupo social indígena.

Mais adiante o documento versa sobre a população indígena que não é


contemplada por escolas especificamente indígenas e precisa frequentar uma escola
regular: Tais estudantes também precisam ter garantido o direito de expressão de suas
diferenças étnico-culturais, de valorização de seus modos tradicionais de
conhecimento, crenças, memórias e demais formas de expressão de suas diferenças
(BRASIL, 2013: 361). Para isto, [...] as escolas não indígenas devem desenvolver
estratégias pedagógicas com o objetivo de promover e valorizar a diversidade cultural,
tendo em vista a presença de ‘diversos outros’ na escola (BRASIL, 2013: 361) e com isto
se quer dizer que a escola deve inserir temáticas indígenas no seu currículo e que a
formação inicial dos professores (estratégias pedagógicas, conhecimento de
materiais didáticos e procedimento de avaliação) devem considerar a [...] realidade
cultural e social destes estudantes com o objetivo de lhes garantir o direito à educação
escolar (BRASIL, 2013: 361).

Observamos nestas diretrizes que a preocupação com a valorização da cultura


indígena fica circunscrita a este estrato populacional, isto é, não há transferência
destes valores para a educação brasileira como um todo, ainda que nossa formação
identitária de Nação não prescinda desta cultura e de suas influências linguísticas,
narrativas, estéticas, de hábito e musicais. As instruções são dadas como se a
intenção com a cultura indígena só pudesse interessar aos índios e não ao conjunto
dos brasileiros.

Sobre esta questão linguística oriunda das culturas indígenas, faço um enxerto
propositivo do PROJETO “DESAFIOS”. Nos sons das línguas indígenas brasileiras
geralmente a relação consoante/vogal é muito simples, pois para cada consoante há
uma vogal claramente pronunciada na oralidade. Diferente disto, na oralidade da
língua portuguesa sempre há uma vogal da palavra que some: ‘parede’ vira p’rede,

42
‘para’ vira p’ra, (para os portugueses). Nesse sentido, o projeto ressalta o aspecto da
riqueza cultural na utilização de palavras de origem indígena no letramento.
Palavras do léxico indígena – TAPEREBÁ, BURITI, CUIA, TACACÁ, IARA, MACUCO, TAMANDUÁ,
PIPOCA, etc. – são extremamente sonoras e os elementos menores que as compõem
são facilmente apreensíveis por aqueles que estão no processo de alfabetização.
Estes são elementos que, ao mesmo tempo em que aproximam com mais facilidade
o aluno do letramento, também podem servir para avizinhá-lo das inúmeras
narrativas indígenas: lenda do Açaí, do Boto, do Mapinguari, etc.

Feita esta digressão, retomo o processo histórico dos acontecimentos no Brasil


Colônia.

Coube a Marquês de Pombal, inspirado nas ideias Iluministas, o tiro de


misericórdia com relação às missões jesuítas. Almejando organizar a instrução
pública dos indivíduos, agora com vistas ao Estado (português) e não à igreja
católica, em 1759 expulsou das terras portuguesas (Portugal e de suas colônias)
todos os jesuítas. Uma mudança importante no papel da escola e da alfabetização
parecia se configurar, mas não para usufruto universal.

Com o decreto pombalino no século XVIII, a instrução pública ganhou nova


roupagem institucional, mas não deixou de se dirigir somente à elite colonial. Ela
passou a acontecer nas casas dos mestres, que reuniam em uma só sala, alunos de
idades e graus de instrução diversos. Ali ministravam-se as ‘aulas-régias’ e esse
modo de educação brasileira deu-se até o período do Império. A extensão do ensino
público mais abrangente só viria com a Independência do Brasil, quando da criação
do Estado-Nação e da reorganização política e social.

Em 1808, quando a Família Real aportou no Brasil, fugida das investidas


napoleônicas a Portugal, trouxe consigo a Corte e a constatação de que faltavam
provimentos vários que fizessem jus a tão nobres presenças nas terras d’além mar.
Era de se esperar que trouxessem consigo certo interesse educacional para uma
população tão carente de instrução formal. Mas não! Em território tão extenso,
somente as províncias da Bahia e do Rio de Janeiro foram contempladas com algum
incremento cultural. Fizeram-se assim as Academias Militares, as Escolas de Direito
e Medicina, a Biblioteca Real, o Horto Florestal e a Imprensa Régia, que em sua
maioria eram conduzidas por professores vindos de Portugal. Enquanto que nas

43
colônias espanholas as cidades do México e Lima já possuíam Universidades desde
o século XVI, no Brasil, somente na República avançada (1934) inaugurou-se o
primeiro complexo universitário: a Universidade de São Paulo. De qualquer
maneira, enquanto o Brasil foi sede da realeza portuguesa, a educação básica seguiu
na sua condição secundarizada, sem importância.

Poucos registros há sobre a escolarização dos negros no Brasil Colônia.


Relegados à escória desde que foram trazidos à revelia para cá, as notas
historiográficas sobre estes grupos contemplam muito poucos elementos de sua
inserção social. O acesso à realidade por eles vivida resume-se – no mais das vezes
– às ‘ricas contribuições culturais’ com que brindaram a cultura brasileira: os ritmos
musicais, a culinária, incremento do léxico, danças e personagens que compuseram
o folclore. O quanto foram submetidos aos pelourinhos, com que idade começavam
o insano trabalho nas lavouras dos brancos (e até quando suportavam-no sem
sucumbir), sob que condições de higiene e alimentação se amontoavam nas
senzalas, por quais ambientes sociais podiam circular, quando puderam frequentar
as escolas – todas perguntas para as quais as respostas são limitadas pela escassez
de registros.

Segundo Rosimeire Santos (s/d) estudos realizados no campo da história da


educação brasileira reservam um espaço bem restrito quando se trata de falar da
escolarização dos negros, especialmente nos períodos mais remotos; em termos
gerais é abordado de forma indireta a partir de relatos de fatos político-
administrativos.

Têm sido esquecidos os temas e as fontes que poderiam nos ensinar sobre as
experiências educativas alternativas dos negros e afrodescendentes. O estudo, por
exemplo, dos mecanismos de conquista da alfabetização por esse grupo; dos detalhes
sobre a exclusão desses setores das instituições escolares oficiais; dos mecanismos
criados para alcançar a escolarização extra-oficial; as vivências nas primeiras escolas
oficiais que aceitaram negros, são exemplos de temas que têm sido desconsiderados
nos relatos da história oficial da educação e que ainda carece de estudos sistematizados
(SANTOS, s/d: 1).

No século XVIII nascia a burguesia e a cientificidade moderna na Europa; com


elas uma nova visão do Homem configurada pela racionalidade e orquestrada pelo
capitalismo. Desde esta ótica as sociedades indígenas e africanas – denominadas

44
‘primitivas’ – não se enquadravam nos parâmetros racionais, tampouco eram
detentoras dos meios de produção econômica; o que quer dizer que as civilizações
europeias, compostas por pessoas brancas, eram consideradas ‘superiores’. Antes
uma exclusão religiosa e agora uma exclusão econômica científica.

Mais do que estudar, os negros passaram a ser alvo de estudos científicos que
se iniciaram no século XVIII e ganharam corpo nos dois séculos seguintes. Se pelos
preceitos salvadores de almas a Reforma e a Contra Reforma justificavam a
escravidão de índios e africanos, na modernidade o espaço aberto à liberdade do
homem frente a Deus começava a por em questão o trabalho de servidão
compulsória. Era preciso criar outras bases que suportassem a ‘inferioridade desta
gente primitiva’ e a elas veio acudir a racionalidade e o cientificismo.

Uma sanha atávica de usar compasso, régua, balança e outros instrumentos de medida
para peso do cérebro, largura e ângulos da face transformam o ser humano em objeto
de laboratório para justificar preconceitos sociais na segunda metade do século XIX. É
o nascimento das teses raciais. Qual era a raça superior e quais eram as raças inferiores?
Além das justificativas religiosas, geográficas e climáticas, a justificativa do tipo
biológico também aponta o dedo para a inferioridade dos não-brancos, dos negros
(CUSTÓDIO, 2009: 1).

1.2.O IMPÉRIO – A EDUCAÇÃO DA ELITE

O século XIX começa já assolado pelo discurso liberal econômico e político,


capitaneado principalmente pela América do Norte e Inglaterra. Os ideais aí
propalados ameaçavam a ascensão portuguesa sobre o Brasil e, antes que
pudéssemos empreender novas aventuras, continuamos presos à Metrópole
lusitana, à mesma empresa familiar de antes, agora com o status de Império e não
de Colônia.

A Constituição Imperial, outorgada por Dom Pedro I em 1824, já subscrevia a


gratuidade do ensino primário, entretanto só três anos mais tarde, segundo Mortatti
(2004) essa lei foi regulamentada estabelecendo a criação de escolas para população
livre de ambos os sexos. Além da prerrogativa de serem cidadãos livres, a Carta
Magna estabelecia que só teriam direito à escola os cidadãos brasileiros, isto é, os

45
brancos europeus, uma vez que os negros, mesmo libertos e nascidos no Brasil, eram
considerados africanos (SANTOS, s/d).

Segundo Santos (s/d) só em 1854, com a Reforma de Couto Ferraz (Decreto


1.331/1854), acrescentou-se à gratuidades da escolarização também sua
obrigatoriedade para a população com mais de sete anos. Incluia-se nesta população
também os negros libertos, desde que estes fossem provenientes de família com
algum recurso [e de que as crianças não fossem portadoras de] moléstias contagiosas
nem escravas (idem: 2). A exclusão oficial dos ex-escravos, pela via financeira e
social, não parou por aí: pelo Decreto 8.659/1911, a Reforma de Rivadávia Corrêa
instituía taxas de ingresso para o ensino primário. Paralelo aos obstáculos legais,
também os sociais se impunham como elementos dificultadores – para não dizer de
exclusão não declarada – para que a população afrodescendente chegasse às escolas.
O preconceito e a discriminação permeavam qualquer tentativa de aproximação dos
negros com a educação.

Suscitou-se dúvida si erão admitidos á matrículas os escravos, ou indivíduos, sobre cuja


liberdade não havia certeza. Visto que as famílias repugnarão mandar às escholas
públicas seus filhos si essa qualidade de alunos forem aceitas, e attendendo aos perigos
de derramar a instrução pela classe escrava, ordenei que não fossem recebidos nos
estabelecimentos de instrução pública senão os meninos que os professores
reconhecessem como livres, ou que provassem essa qualidade (Relatório do Inspetor
Geral da Instrução Pública da Província de São Paulo, 1855: 48, apud SANTOS, s/d: 4).

Ou, em declaração mais grave, proferida pelo professor José Rhomens:

[...] negrinhos que por ahi andão, filhos de Africanos Livres que matriculão-se mas não
frequentam a escola com assiduidade, que não sendo interessados em instruir-se, só
frequentariam a escola para deixar nela os vícios que se acham contaminados,
ensinando aos outros a prática de actos e usos de expressão abomináveis, que
aprendem ahi por essas espeluncas onde vivem [...] Para esses devião haver escolas a
parte (Relatório do Professor José Rhomens enviado ao Inspetor Geral da Instrução
Pública da Província de São Paulo, 1877, apud SANTOS, s/d: 5).

Animalizados e inferiorizados, os negros eram alvo de dois discursos quase


complementares: um de que não eram dignos do convívio com a população branca
(SANTOS, s/d) e outro de que era preciso ‘branqueá-los’ (CUSTÓDIO, 2009)25. Em um

25
Segundo Sérgio José Custódio (2009), por ocasião do Congresso Mundial das Raças, acontecido em
Londres em 1910, o governo brasileiro apresentou um quadro pintado sob sua encomenda, em que

46
ou outro discurso há clara intenção de não permitir ao negro a existência como
cidadão de direitos no uso do espaço públicos e das instituições. Não é preciso ir
longe para encontrarmos discurso semelhante mesmo hoje. Ainda segundo Custódio
(2009), pesquisas do Instituto Datafolha de 1995 e 2008 indicaram que 90% dos
brasileiros admitiam a existência de racismo no país, embora poucos se assumissem
como representantes deste pensamento ou prática.

Diluído no discurso politicamente correto, o racismo e a exclusão dos negros da


sociedade atual têm outras caras. Embora o censo populacional do IBGE de 2010
registre quase 191 milhões de brasileiros e que deste universo 97 milhões tenham
se declarado negro ou pardo, apenas 25% dos estudantes que chegaram ao nível
superior pertencem a este estrato demográfico (IBGE, 2010). Ou seja, compondo
quase metade declarada da população total do Brasil, o acesso aos níveis mais
elevados da educação são irrisórios para negros e pardos, que vão ficando pelo meio
do caminho ao longo da escolarização. Onde param de estudar? Por que param de
estudar? Quais são as políticas públicas em educação voltadas a esta parcela da
população? Estas parecem ser perguntas para as quais ainda é preciso buscar
respostas e soluções.

Vale lembrar que em 2003 uma das primeiras leis assinadas pelo recém
empossado presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, foi a Lei 10.639/2003, de
09/01/2003, que alterava a Lei 9.394 de 20/12/1996 (que estabeleceu as diretrizes
e bases da educação nacional), acrescentando alguns artigos, como o de número 26
que fixava a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira, nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Diz a Lei nos seus dois parágrafos:

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da


História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira
e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no


âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras (BRASIL, Lei Federal no. 10.639/2003, Art. 26).

se via um avô negro, um filho mestiço e um neto branco. Ao apresentar a obra, o representante
brasileiro conclui em sua fala que ‘em 100 anos o Brasil será branco’.

47
Nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2013) estão
estabelecidas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
visando atender – 10 anos depois! – os propósitos estabelecidos na Lei 10.639/2003
e assegurar [...] o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como
[garantir] igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além
do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros (BRASIL,
2013: 477). As diretrizes orientam para a necessidade de formulação de projetos da
história e da cultura dos afro-brasileiros e dos africanos e que estejam [...]
comprometidos com a [valorização] de educação de relações étnico-raciais positivas,
a que tais conteúdos devem conduzir (BRASIL, 2013: 477).

O documento procura responder às demandas da população afrodescendente


no sentido de estabelecer políticas e ações afirmativas, nas quais se incluem
reparações de reconhecimento e valorização, com intuito de ressarcir os
descendentes de africanos negros dos danos psicológicos, materiais, sociais,
políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, [...] bem como em virtude
das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população (BRASIL, 2013: 478)
estabelecidas por grupos pós-abolição que queriam manter seus privilégios. Para
isto, correções nas distorções pregressas da história e cultura afro-brasileira e
africana devem ser implementadas nas escolas, articulando passado, presente e
futuro circunstanciado à realidade dos povos negros.

Por este parecer o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana devem


ser prioritariamente desenvolvidos no cotidiano escolar e mais especificamente nas
disciplinas de educação artística, literatura e história do Brasil. Estas diretrizes
tocam em pontos que julgamos essenciais para o processo de letramento infantil,
como a inclusão de elementos da tradição cultural de todos os povos que compõem
a nação brasileira. Mas é preciso também apontar que discordamos da proposição
de fazer deste acontecimento atual uma ‘ação reparadora’ dos prejuízos morais e
sociais incalculáveis sofridos pelos afro descendentes no Brasil: é impossível apagar
a história e repara os atores negros e indígenas que sofreram os males causados pela
elite luso descendente. O que é preciso é resgatar os acontecimentos degradantes e
preconceituosos da História de forma a preservá-los na memória coletiva do país e

48
tê-los como balizas para que não se repitam; só desta maneira será possível corrigir
estes erros no presente e no futuro.

Por fim ressaltamos deste documento que a sua implementação exige algumas
alterações na postura educacional frente a elas – com o que também concordamos:

Estes princípios e seus desdobramentos mostram exigências de mudança de


mentalidade, de maneiras de pensar e agir dos indivíduos em particular, assim como
das instituições e de suas tradições culturais (BRASIL, 2013: 485).

Retomo, então, a peleja histórica da população negra com relação à educação.

Algumas poucas ilhas de esperança se instalaram no Brasil Império e no início


da República, onde a população negra era aceita para instrução primária. Entre elas
Santos (s/d) cita o Colégio Perseverança (Cesariano) e o Colégio São Benedito
(ambos da cidade de Campinas – SP), a Escola Primária no Clube Negro de Maio (em
São Carlos - SP), a Escola dos Ferroviários (em Santa Maria - RS). Além destes, há
registro de algumas escolas quilombolas, como a do Quilombo da Fazenda Lagoa-
Amarela (em Chapadinha - MA). Extra oficialmente alguns padres, ainda visando a
instrução religiosa, aceitavam negros em seus seminários; no mais, restava a esta
população imiscuir-se pelas casas grandes e assistir calada às aulas dadas às
sinhazinhas, tentando daí tirar algum proveito.

Para a autora o ideal de modernização que banhava o pensamento político e


econômico do Brasil do século XIX esbarrou primeiro na preocupação com possíveis
insurgências da enorme população negra – aos poucos liberta – que não encontrava
meios de subsistir longe da proteção do senhorio; segundo pelo atraso confiado aos
egressos do cativeiro e seus descendentes (SANTOS, s/d: 3). Na intenção de forjar uma
nação civilizada, os discursos emancipacionistas visavam a escola como o meio mais
propício para disciplinar a população negra com relação ao liberalismo. A escola
idealizada à época deveria instruí-los ao ‘amor pelo trabalho’. Ressalto que mais uma
vez a instituição escolar erige-se sobre a base de que a parcela excluída socialmente
deve ser aí doutrinada para servir a propósitos da elite encastelada. Novamente –
como os colégios jesuítas para os índios – a escola serve a propósitos claros de
alienação a um determinado pensamento/prática – o capitalismo emergente – e não
à emancipação e acesso a direitos civis iguais.

49
1.3.OS MÉTODOS DE ENSINO NA ESTEIRA DO LIBERALISMO E DO
MÉTODO CIENTÍFICO

Ainda sobre a Constituição de 1824 para a conformação do ensino primário


também foram regulamentados os métodos de ensino, a seleção de professores e a
supervisão de suas atividades (Mortatti, 2004). Uma vez que o cientificismo e a
racionalidade vinham substituir os dogmas de fé e as verdades divinas no campo do
conhecimento e das relações sociais, também a educação passou a sofrer influências
dos novos pensamentos. A busca de certezas empíricas e a aproximação com a
realidade objetiva exigiam precisão na forma de produzir saber e, em igual medida,
na forma de transmiti-lo. A necessidade deste gerenciamento fez surgir as cartilhas
e os métodos de ensino sistematizado, estabelecendo direção, modo e conteúdo dos
estudos.

A história da leitura e da escrita é totalmente indissociada daquela das práticas


sociais e suas relações de produção. Segundo Cleonara Schwartz, Eliane Peres e
Isabel Silva Frade (2010), a pesquisa sobre a história da alfabetização vincula-se ao
estudo das diferentes escolas, métodos de ensino e cartilhas escolares que se
disseminaram pelo território brasileiro ao longo dos dois últimos séculos. A
compreensão de como os sujeitos passam a integrar a cultura escrita é mais do que
o estudo de como se sabe ler e escrever: é entender e referir-se à organização e
produção social. Ao nos perguntarmos o quê, como e para quem a língua escrita e
lida é ensinada, deparamo-nos com respostas que exigem a compreensão do grupo
social que utiliza esta língua, isto é, como pensa, como estrutura suas relações, como
inclui e exclui sujeitos, como valida e rechaça novos conhecimentos, como preserva
ou descarta saberes antigos.

O ensino no Império era para os indivíduos ‘livres’, o que excluía toda a


população negra e indígena, mais numerosas. Continuamos assim, pela exclusão,
mais uma etapa da instrução brasileira.

Ainda que a exclusão fosse explícita para alguns, o fato de não haver escolas
suficientes no território brasileiro, tampouco de haver professores para as
instruções, fez com que a concretização do ensino amplo não se desse de modo
satisfatório, deixando de lado também boa parte da população alvo da educação. Foi

50
preciso outro período de mudanças políticas para que se começasse a reverter a
situação de analfabetismo na nação. Para Mortatti (2004), o fato de os escravos
negros serem paulatinamente libertos e de simultaneamente haver forte afluxo de
imigrantes de outras nações diferentes da portuguesa, em nossas terras, pressionou
a discussão sobre a instrução pública elementar e a sua organização efetiva. Foram
parte integrante fundamental dessa contenda, os ‘métodos de ensino’.

Em ampla pesquisa sobre a instrução brasileira nos dois últimos séculos,


Schwartz, Peres e Silva Frade (2010) realizaram e organizaram importantes
apontamentos sobre nossa história de alfabetização, no livro ‘Estudos da história da
alfabetização e da leitura na escola’. Encontramos neste texto registros que
retroagem a meados do século XIX, em diferentes regiões brasileiras: do Amazonas
ao Rio Grande do Sul, do Mato Grosso a Minas Gerais, passando pelo Rio de Janeiro,
pela Bahia, São Paulo, entre outros. São pesquisas aprofundadas cujas fontes
abrangem análise de métodos e cartilhas utilizadas, registros escolares (diários de
classe, avaliações, cadernos, cartas, anotações), legislações que versam sobre
educação, alfabetização e implementação de escolas e grupos escolares e
depoimentos orais de agentes de educação.

1.3.1. DUAS CARTILHAS EMBLEMÁTICAS

Chama a atenção nesse trabalho a análise de material utilizado no Amazonas e


também no Grão-Pará, ainda na metade do século XIX – não que nestes territórios
tenham se passado algo inusitado, mas a riqueza de material ali encontrado pode
ser tomado como exemplo do que se passava em boa parte do Império. Duas
cartilhas disputavam terreno nas instituições de ensino amazonenses: a primeira de
Emilio Achilles Monteverde, importada diretamente de Portugal (Methodo facillimo
para aprender a ler e escrever no mais curto espaço de tempo possível tanto a letra
redonda quanto a letra manuscripta, de 1858, ao que se acrescentou em sua 8ª
edição em 1859 o termo ‘escrever’) e a segunda cartilha, uma produção nacional

51
desenvolvida pelo Abílio César Borges – chamado Barão de Macaúbas26 – (Primeiro
livro de leitura para uso da infância brasileira, de 1867).

O Methodo facillimo de Monteverde de imediato assume posição com relação à


aprendizagem e à alfabetização, que se estampa já no título de seu livro e se estende
pelas páginas iniciais em que apresenta sua obra: [...] o melhor methodo é um
Professor zeloso dos seus deveres; o melhor methodo é aquelle que conduz mais longe
com maior brevidade; finalmente, o melhor methodo é aquelle que fórma os melhores
dicipulos (MONTEVERDE, 1859, apud. CORRÊA e SILVA, 2010: 23). A ‘rapidez’ e a
‘facilidade’ de ensinar e aprender estavam na ordem do dia, apontadas como
condições necessárias à consolidação de uma boa educação: prometia ensinar com
mais brevidade, de maneira mais fácil, sem cansar o aprendiz, por procurar ser
atraente (BOTO, 1997: 553, apud. CORRÊA e SILVA, 2010: 19).

Quanto à forma, a cartilha era organizada em duas partes. A primeira, composta


por lições em que se apresentam rudimentos para o aprendizado da leitura e da
escrita, em cujo conteúdo se poderia ver a apresentação do alfabeto (maiúsculo e
minúsculo), tanto na ordem alfabética, quanto na ‘bagunçada’; separação entre
vogais e consoantes; letras manuscritas e apresentação das famílias silábicas. Sobre
estas últimas, a proposta era de que fossem apresentadas juntamente com palavras
que pudessem ser formadas e lidas pelas crianças, para que aprendessem ‘logo’ o
seu uso. A análise empreendida por Corrêa e Silva revela que esses exercícios de
escrita de palavras se estendiam por muitas páginas do livro. Quanto aos primeiros
rudimentos da escrita, o aluno iniciava fazendo traçados de riscos e ligações, depois
a forma das letras ‘simples’ e depois das ‘difíceis’ – sem esclarecer o que significava
‘simples’ e ‘difícil’ – ressaltando-se sempre que a letra deveria ser legível. Para o
treino grafo-motor recomendava-se que a criança fizesse muitas cópias sobre
pedras de ardósia (que poderiam ser reutilizadas, já que papel era elemento raro).

A segunda parte da cartilha, baseada em textos variados em gênero, tema e


extensão, apresentava lições que subsidiavam a prática da leitura e da escrita. Os
escritos transmitiam conteúdos de história, matemática, ciências naturais, religião,
além de preceitos morais. Iniciava-se a alfabetização pelos textos curtos (fábulas,

26
A cartilha do Barão de Macaúbas é aquela à qual Graciliano Ramos (1945) faz alusão no seu difícil
processo de alfabetização.

52
provérbios, máximas), ao que se seguiam os mais extensos. Em cada texto poder-se-
ia encontrar diferentes tipografias, com as quais as crianças deveriam se
familiarizar.

Todo o método de Monteverde era atravessado por certa preocupação


civilizatória, não no sentido de pensar a educação como meio de levar o sujeito a
participar da sociedade com propriedades de conhecimentos formais, mas no
sentido de sobrepujar a criança e levá-la a ser um aluno bom suficiente para dedicar-
se com esmero ao aprendizado de seus livrinhos. O método também instruía
repetidamente os professores sobre como seus discípulos deveriam segurar
corretamente a pena (ainda que tivessem que ser seguros pela mão), sobre como os
alunos deveriam se comportar (sentar, silenciar) para que se sensibilizassem com
os conteúdos da aprendizagem. Só assim, previamente doutrinados, os alunos
perceberiam a importância de saber ler e escrever.

Disputando espaço com Monteverde nas terras do Amazonas e do Grão-Pará,


estava o método alfabetizador do Barão de Macaúbas (CORRÊA e SILVA, 2010). No
entanto, o uso deste último não se restringia a essa região, tendo sido amplamente
utilizado no território brasileiro. Pedagogo baiano respeitado no período
monárquico, Abílio César Borges era dono de diversas escolas e redigiu em cinco
livros as práticas nelas empregadas, como aponta Silva Frade (SILVA FRADE, 2010).

Segundo Corrêa e Silva, Borges manifestava-se criticamente quanto aos


modelos de ensino que vigoravam na época, nos quais não se encontravam
instruções sobre ‘hábitos de pensar e entender a leitura’, que ao mesmo tempo
permitissem às crianças conhecer os elementos da língua escrita. Propôs um
método:

[...] mais eficiente e menos enfadonho. É opinião minha muito antiga, que si as creanças,
depois de conhecido o alphabeto, deparassem logo, na reunião das letras em syllabas,
com palavras que lhes fossem familiares, combinadas em curtas orações já por elles
usadas no tracto familiar, não só aprenderiam a ler rapidamente, mas aprenderiam com
mais gosto, por encontrarem, nas suas primeiras lecções de leitura, justamente as
palavras e phrases que estavam acostumadas a ouvir e a fallar em suas casas, e cuja
significação, portanto, lhes não seria estranha (BORGES, 1867: 3, apud., CORRÊA e
SILVA, 2010: 34).

53
É possível identificar há quase dois séculos, nas duas cartilhas apresentadas, o
embrião de muitos discursos metodológicos que vigoram nas nossas escolas
contemporâneas. Em primeiro lugar a rapidez, a facilidade, a atração e o pouco
esforço para aprender são elementos perseguidos pelas instituições de ensino e
propagandeados pelo uso de suas apostilas plenas de conteúdos didaticamente
explicados e sintetizados. E quem houve por bem pensar que a aprendizagem é sem
esforço? Por que se criou a ilusão de que as coisas do mundo podem ser apreendidas
e compreendidas sem demora? Quem se pergunta qual é o preço de tal facilidade
pretendida?

A este respeito, analisando a sociedade na década de 1980, Cornelius


Castoriadis (1983) identifica duas alterações sociais preocupantes: a primeira é a
desorientação dos sujeitos na vida, que se manifestam por meio de instabilidades,
depressão, inadaptação; a segunda mudança – homóloga à primeira – é relativa à
desestruturação social pela perda de referenciais e precariedade de caracteres de
comportamento coletivo. Os modelos sociais atuais são ‘rasos’: é verdade que há
modelos propostos pela mídia, pela televisão, pela publicidade. Mas são modelos de
‘sucesso’: funcionam exteriormente, mas não podem ser verdadeiramente
interiorizados, não são valorizáveis, jamais poderiam responder à questão: o que devo
fazer? (CASTORIADIS, 1983: 96). Não se trata, para o autor, de simples crise política
ou governamental que se modificaria com ações substitutivas e paliativas, senão que
dependeria de mudanças nos paradigmas civilizacionais: analisa que isto é fruto da
derrocada da consciência histórica da sociedade, e que esta atitude com relação à
história geral é a mesma daquela com relação à história familiar, que era transmitida
de geração em geração. Hoje, a família nuclear dobrada sobre si mesma, onde quanto
muito se menciona em termos vagos um certo avô e a coisa para por aí, está
perfeitamente de acordo com uma sociedade que vive apenas o momento presente
(idem: 100). É uma sociedade sem representação de futuro e ao mesmo tempo
esvaziada de representações imaginárias que, por consequência, recusa um sentido
para si.

As duas características de mudanças na sociedade são, para Castoriadis,


representadas na família pelo vazio do discurso do pai e, na transmissão geracional
para os filhos, ocorre simultaneamente um

54
[...] desgaste da experiência de realidade para as crianças: não há mais nada de rijo
contra o que chocar-se, não se deve privá-las, frustrá-las, entristecê-las, é preciso
sempre ‘compreendê-las’, [mas] é preciso mostrar de vez em quando a uma criança que
não a ‘compreendemos’. A experiência do fato de que alguém não é necessariamente
‘compreendido’, sequer pelos entes mais chegados, é constitutiva do ser humano
(CASTORIADIS, 1983: 99).

Eis onde isto se encontra com os métodos de ensino enunciados acima, cujos
ecos se fazem presentes – de forma mais contundente e preocupante – nas práticas
escolares de hoje: a escola contemporânea adota aquele modelo ‘facilitador’ e ‘pouco
esforçado’ de ensino, que visa o sucesso rápido e soma a ele o modelo
‘compreensivo’ da criança que não pode sofrer e para quem nunca se diz não. Porém,
desde esta ótica, a instituição escolar mostra objetivos contraditórios de [...] fabricar
em série indivíduos predestinados a ocupar tal ou tal lugar no aparelho de produção,
através de uma seleção mecânica e precoce [dado que a representação está
esvaziada]; e ‘dar livre curso à expressão da criança’ (CASTORIADIS, 1983: 99) de forma
que seja expressão pura sem relação com a realidade coletiva.

Recuando novamente, também estava lá, no início do Império, o apelo à


familiaridade das palavras como estratégia de fazer chegar aos alunos o gosto por
começar a escrever e ler. Atualmente essa preocupação em fornecer aos alunos
elementos da língua já conhecidos apresenta-se com a roupagem dos textos tirados
das manchetes de jornal, ou das receitas da culinária simples da vovó. Mas deixemos
por hora essas questões apontadas, para retornarmos a mais elementos históricos
que podem nos situar diante da alfabetização brasileira contemporânea.

O método que segundo Borges cumpriria a função de encantamento dos alunos


era o da ‘palavração’. Já bastante difundido em países como Inglaterra e Alemanha,
o que se propunha era que os alunos fossem apresentados primeiro às palavras
inteiras e não às sílabas ou famílias silábicas. Começar-se-ia por aquelas
monossilábicas, depois as dissilábicas e finalmente as polissilábicas. Dessa forma os
alunos reconheceriam as palavras, inicialmente, por seu desenho.

O ‘primeiro livrinho’ de Abílio C. Borges é dividido em 18 lições, sendo as três


primeiras voltadas ao ensino do alfabeto e sílabas simples; as nove seguintes
propunham a leitura gradual de palavras monossilábicas (em torno de 20 em cada
lição), seguida da leitura de frases compostas por elas. Nas seis lições que restavam,

55
dava-se o mesmo com palavras di ou polissilábicas. Ao final apresentava 9 textos
para serem lidos direto, dispensando a preparação da leitura por meio da
apresentação das palavras. Só se passaria de uma lição a outra quando houvesse
total compreensão e desenvoltura da criança com relação à precedente.

Curioso é que, com tanto afã sedutor da palavra em detrimento de suas sílabas,
o autor não dispensava a separação silábica das palavras polissilábicas.
Argumentava que no Brasil a eliminação total das sílabas não poderia acontecer de
imediato, pois demandaria ‘talento e vocação dos professores’. Mantinha, portanto,
o espaçamento silábico ao longo de todo o primeiro livro, em franca desqualificação
e declaração de incompetência dos mestres de outrora – a quem também atribuía os
entraves e falhas do uso do método proposto. Tanta explicação ao professor de como
proceder em sala de aula, dando detalhes de como usar o método, ‘ensinando o
docente a ensinar’, também são orientações que verificamos nas apostilas que
atualmente substituíram as cartilhas de outrora.

Hoje os materiais didáticos cercam o fazer do professor em pseudo diálogos


intimistas entre esse e o autor da apostila27, da mesma forma que já fornece
didaticamente trechos de obras literárias ‘mais adequados’ ou ‘mais ilustrativos’ dos
gêneros, das obras e seus autores. O professor não tem que esforçar-se por conhecer
os livros, mas em falar sobre sua ‘importância’.

Os textos oferecidos ao longo do ‘livrinho’ de Borges eram tanto informativos,


quanto formativos, dos quais constavam consignas de como pensar e agir na vida.
Muito semelhantes às recomendações de Monteverde e não muito distantes das
propostas civilizatórias dos jesuítas, embora com ênfase em outros parâmetros
habituais.

27
Isso pode-se verificar às centenas nos materiais confeccionados desde a Educação Infantil até o
Ensino Médio. Em material escolar da Educação Infantil analisado no PROJETO “DESAFIOS”,
deparamo-nos, na própria folha de atividade do aluno, com as seguintes inscrições dirigidas ao
professor: ‘Adaptar à faixa etária: as orelhas podem ser desenhadas com pintura a dedo’, ou ‘Se a
criança for capaz de executar essa tarefa, pode considerar que está na hipótese silábica de
alfabetização’, ou ‘Depois que você ler a historinha, veja se os alunos não estão cansados e se são
capazes de fazer a atividade escrita. Caso precise, desenvolva atividades de jogos antes’, ou ainda,
‘Essa fábula cria na criança o sentimento moral de que é preciso ver o ponto de vista das outras
pessoas’.

56
Mais uma vez recorro a Graciliano Ramos, desta vez mais longamente, para
ilustrar uma infância que se viu às voltas com a cartilha do Barão de Macaúbas:

Um grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas, incontáveis, as


letras fervilhavam, miúdas, e as ilustrações avultavam num papel brilhante como rasto
de lesma ou catarro seco.

Principiei a leitura de má vontade. E logo emperrei na história de um menino vadio que,


dirigindo-se à escola, se retardava a conversar com passarinhos e recebia deles opiniões
sisudas e bons conselhos.

– Passarinho, queres tu brincar comigo?

Forma de perguntar esquisita, pensei. E o animalejo, atarefado na construção de um


ninho, exprimia-se de maneira ainda mais confusa. A ave sabida e imodesta, que se
confessara trabalhadora em excesso e orientava o pequeno vagabundo no caminho do
dever.

Em seguida vinham outros irracionais, igualmente bem-intencionados e bem-falantes.


Havia a moscazinha, que morava na parede de uma chaminé e voava à toa,
desobedecendo às ordens maternas. Tanto voou que afinal caiu no fogo.

Esses dois contos me intrigaram com o barão de Macaúbas. Examinei-lhe o retrato e


assaltaram-me presságios funestos. Um tipo de barbas espessas, como as do mestre
rural visto anos atrás. Carrancudo, cabeludo. E perverso. Perverso com a mosca
inocente e perverso com os leitores. Que levava a personagem barbuda a ingerir-se em
negócios de pássaros, de insetos e de crianças? Nada tinha com esses viventes. O que
ele intentava era elevar as crianças, os insetos e os pássaros ao nível dos professores.

Não me parecia desarrazoado que os brutos se entenderem, brigarem, fazerem as pazes,


narrarem suas aventuras, sem dúvida curiosas. Tinha refletido nisso, admitia que os
sapos do açude da Penha se manifestassem, cantando, coisas ininteligíveis para nós. Os
fracos se queixavam, os fortes gritavam mandando. Constituíam uma sociedade. Sapos
negociantes, sapos vaqueiros, o reverendo sapo João Inácio, o sapo José da Luz, amigo
da distinta farda, sapos traquinas, filhos do cururu Teotoninho Sabiá, o sapo alfaiate
mestre Firmo, a sapa Rosenda lavadeira a tagarelar os mexericos da beira da água. O
nosso mundo exíguo podia alargar-se um pouco, enfeitar-se de sonhos e caraminholas.

Infelizmente um doutor, utilizando bichinhos, impunha-nos a linguagem dos doutores.

– Queres tu brincar comigo? (RAMOS, 1945: 129-130).

Identificamos neste depoimento o divisor de águas entre os que gerenciam


metodicamente o saber e aqueles que devem ser instruídos. Os primeiros – aqui
representados pelo Barão de Macaúbas – esquematizam conteúdos ponderados e

57
tendenciosos que visam, a partir do julgamento do que é uma criança, impor
objetividade e moralidade aos pequenos bárbaros vadios. Percebe-se aqui uma
preocupação menor com o ensino da língua e da alfabetização, e maior com a
modelagem do caráter dos alunos. E quem eram estes estudantes? Eram as crianças
da passagem do século XIX ao XX, filhos de ex-cativos ou da população branca de
baixa renda, incultos contumazes. Além da apreciação de antemão pejorativa das
atitudes dos educandos, chama atenção a leitura objetiva feita do cotidiano infantil,
que tenta instrumentalizar e desqualificar o rico e fantasioso mundo da criança, por
meio de uma visão nebulosa deste universo.

Situação semelhante se passa com as apostilas atuais que também têm o


propósito de engendrar o ‘cotidiano’ da infância nos métodos alfabetizadores. A
diferença é que a moral saiu da pauta para dar lugar aos conteúdos de consumo
(propagandas e logomarcas). A título de exemplo do que será melhor abordado no
Capítulo 4 desta tese, hoje, na visão dos confeccionadores de apostilas, o cotidiano
da criança é o S de ‘Sadia’, ou o F de ‘Frutare’. Lá atrás no tempo, como agora, os
métodos tendiam a esvaziar e distanciar o espaço lúdico infantil, sem atentar que
isto levava a criança a se afastar dos propósitos escolares.

Por fim, mas não menos intrigante, o método de Borges propunha que o prazo
para se ir do começo ao término dessa primeira parte do método deveria ser de dois
meses! Este seria o tempo necessário e suficiente para partir-se ao segundo livro:
afirmo que a intenção apressada e a brevidade na alfabetização também se repetem
hoje, como antes nas cartilhas do império: há crianças sendo alfabetizadas na
Educação Infantil desde os quatro anos de idade e há quem diga que aos três elas já
seriam passíveis de aprender a ler e escrever!

Os pesquisadores dos dois métodos citados não relatam resultados com relação
à proposta alfabetizadora de Monteverde, mas encontraram registros do ano letivo
de 1883-1884 de um professor que utilizou os livros de Borges. Ao longo de seis
meses alguns poucos alunos conseguiram aprender a ler e até compreender o que
liam, mas a grande maioria dos 24 alunos, com idades entre 7 e 12 anos, não.

Essa pequena amostragem não é suficiente para revelar a eficácia dos métodos
utilizados na região amazônica, mas os censos realizados no território brasileiro,
desde 1872 já denunciavam um enorme contingente populacional apartado do

58
acesso à alfabetização. Uma herança colonial que atravessou o Império e adentrou a
República, como pode-se ver na Tabela número 3.

Tabela 3: Taxa de analfabetismo no Brasil em 1872 e 1890

Taxa de analfabetismo
ANO População (população de 5 anos ou mais) População
recenseada analfabeta
1872 9.930.478 82,3 8.172.783,4

1890 14.333.915 82,6 11.839.813,8

1900 17.438.434 _ _

Fonte: MORTATTI, 2004: 14.

Ainda que a esses recenseamentos não se possa atribuir muita confiabilidade,


dadas as condições em que foram realizados e os critérios pouco claros de coleta de
dados, vislumbra-se que já sob a regência de Dom Pedro II contávamos nossos
analfabetos, preocupados com a quantidade de brasileiros apartados da leitura e
escrita. Nos quatro primeiros censos, o levantamento de dados baseava-se na
declaração dos próprios sujeitos de que sabiam ler e escrever o próprio nome. Isso
bastava para ser considerado alfabetizado.

1.3.2. OS SENTIDOS DA PALAVRA ‘ALFABETIZAR’

No entanto, como alerta Mortatti (2004), posições sociais, políticas, econômicas


e culturais brasileiras, distintas a cada período, estabeleceram critérios bem
diferentes sobre o quê a baliza ‘alfabetização’ pudesse denotar. Em seus estudos
analisa, ao longo da história do Brasil, a evolução deste e de outros marcos
correlacionados à aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, termos como
‘analfabetismo’, ‘alfabetizar’, ‘alfabetização’, ‘alfabetizado’, ‘alfabetismo’, ‘letrado’,
‘letramento’, ‘iletrado’ e ‘lectoescrita’ são considerados na evolução sócio temporal.
O verbete ‘analphabeto’, por exemplo, remonta a 1789, quando surgiu no ‘Dicionário
de língua portuguesa’ de Antonio de Moraes Silva com a seguinte significação: s.m. O
ignorante até das lettras do ABC; o idiota, ignorante de lettras, que não sabe nem o a,
b, c. Também adj.: homem analfabeto. Muito ignorante, rude, estúpido, boçal (MORAES
SILVA, 1891, apud, MORTATTI, 2004: 130). Já na última edição, de 1949, mantém essas

59
insígnias e acrescenta: pessoa que não conhece o alfabeto, que não sabe ler nem
escrever; que não conhece as letras; que não tem instrução primária (idem., ibidem.).

As considerações sobre como e o quê avaliar das capacidades de leitura e escrita


sofreram várias alterações, culminando hoje nos termos ‘analfabetismo funcional’ e
‘letramento’, para os quais a autora alerta que não há um consenso conceitual.

No processo de escolarização do período do Império algumas considerações


importantes que denotam a estreita articulação entre o analfabetismo e a
configuração político-social, ainda são necessárias. Se em nossa primeira
Constituição, de 1824 estavam excluídos do direto de voto as mulheres, os
mendigos, os soldados e os membros de ordens religiosas – e os escravos, mas esses
não eram considerados nem cidadãos – o mesmo não se dava com os analfabetos,
homens, para quem esse direito estava garantido. Isso faz todo sentido,
considerando que boa parte dos senhores de engenhos e da nata da sociedade
brasileira eram analfabetos, mas eram também os detentores dos poderes
econômicos e políticos do Brasil. Com a paulatina libertação dos escravos e a
proximidade da República, com a Lei da Câmara do Deputados de 1881 e a Lei
Saraiva de 1882, este direito foi revogado, como uma forma de garantir que as elites
– de qualquer modo, mais instruídas e em muito menor número – permanecessem
no topo das decisões da nação. Se os analfabetos pudessem continuar votando, os
negros agora libertos seriam maioria nas decisões. O que se alegou oficialmente para
esta mudança foi que o analfabeto, não sabendo ler e escrever, seria incapaz de
discernir e escolher adequadamente seus representantes! De um momento para
outro descobriu-se tal incapacidade dos analfabetos! Assim, ao final do século XIX
um golpe duplo foi desferido à Nação brasileira: o analfabeto foi proibido de exercer
seu direito político e os cidadãos negros que durante séculos foram
subcategorizados como gente, deveriam permanecer nesta condição subumana!

Ao longo do século XX questionou-se que, considerando o analfabeto ‘incapaz’,


estava-se praticando discriminação e com isso subjugando essa enorme parcela da
população a acessos sociais, culturais e econômicos, além do político. No entanto, foi
só com a promulgação da atual Constituição, em 1988, que o direito ao voto pelo
analfabeto foi (re)estabelecido. Portanto, grande parcela da população passou mais
um século alijado das decisões do país, pelo fato de não saber ler e escrever!

60
Sobre a forma de ensino ao final do século XIX, a educação acabava dando no
seio da própria família. Entre as poucas instituições de ensino que subsistiam, duas
práticas predominavam: a alfabetização circunscrevia-se basicamente na
aprendizagem rudimentar das letras do alfabeto e o ensino da leitura continuava em
primeiro plano, a despeito de já se haver indicação do ensino simultâneo de ambos
(MORTATTI, 2004). Ler tinha importância mais significativa do que escrever, e com
relação a essa última prática, bastava rabiscar o próprio nome ou exercitar a
caligrafia. Ainda que a leitura que mais frequentemente se empreendia era baseada
na soletração ou na palavração, a autora não analisa essa passagem, mas poder-se-
ia considerar nesse fato os rudimentos da hierarquização do saber que aportou em
nossas escolas, já que o que se lê mecanicamente é sempre elaboração da verdade
do outro, ao passo que escrever pode significar emitir as próprias opiniões de forma
permanente. Há os que sabem e têm a verdade a ser transmitida e há os que não
sabem e precisam repetir o que aprenderam.

1.4.A REPÚBLICA – DOS GRUPOS ESCOLARES À LEI DE DIRETRIZES


E BASES (LEI Nº 9.493/96)

A proclamação da República e seu processo político liberal trazia como ideal a


vontade de reverter o atraso educacional e civilizatório herdados dos tempos da
Colônia e do Império. Antes ainda da mudança de regime de governo, um dos
maiores republicanos e defensores da educação foi o jurista baiano Ruy Barbosa.
Segundo Magda Soares (1989) no início de 1880 Barbosa já havia identificado que
os maiores prejuízos educacionais eram aqueles da maioria da população brasileira,
pobre e submetida a uma situação precária de ensino. Propunha a ampliação do
número de escolas e a melhoria da qualidade do ensino ministrado.

Intentava-se que a implementação dos processos de escolarização não fosse


isolada das práticas culturais da leitura e da escrita, como parte da nova ordem
sócio-política-econômica de esclarecimento das massas. Segundo Mortatti, um
estado de euforia levou o Estado de São Paulo a organizar um ‘aparelho escolar’ de
tal forma que se tornou referência modelar a outros lugares do Brasil.

Sintetizado e institucionalizado na reforma Caetano de Campos, de 1892, esse modelo


se baseava em novas e modernas soluções, dentre as quais: a criação de escolas
normais, para a formação de professores primários; a criação de escolas graduadas

61
(reunião de escolas multisseriadas em grupos escolares), para disciplinarização,
unificação e controle do ensino primário; e a introdução de novos e mais adequados
métodos e processos de ensino, como o método intuitivo e o método analítico para o
ensino da leitura, bem como de material didático para esse fim (MORTATTI, 2004: 55).

Era preciso dar visibilidade à educação e para isso não bastava a implantação
de novas escolas. Fazia-se premente a normatização e a elaboração de métodos de
ensino e a compreensão das funções da leitura e da escrita, que agora passariam ao
serviço dos meios de produção capitalista.

1.4.1. A ERA DOS MÉTODOS – ENSINAR A LEITURA E ESCRITA JUNTAS OU


SEPARADAS?

A discussão sobre os métodos já se dava nos anos finais do Império, segundo


Corrêa e Silva (2010). Na região norte do país outras cartilhas que não só as de
Monteverde e Borges, mas também as de Hilario Ribeiro e Felisberto Carvalho
difundiram-se pelas escolas. Essas tinham uma visão metodológica diversa das que
antes eram largamente utilizadas, pois se valiam do método fônico para a
alfabetização e pregavam a simultaneidade do ensino da leitura e da escrita. Em
termos legais, a discussão sobre os métodos de ensino da leitura e da escrita também
ocupou a cena, levando o Estado do Amazonas a estabelecer em 1892 a possibilidade
de coexistência de diferentes métodos, embora recomendasse o uso do método
fônico. Este método era baseado no ensino dos sons das letras e, segundo Ana Cecília
Oñativia (2009), surgiu em fins do século XVI com educadores alemães e ressurgiu
no final do século XIX, começo do XX. De qualquer forma a legislação ressaltava que
o mais importante era o professor [...] tornar o exercício da leitura amena e aprazível
(Decreto no. 13, de 31/12/1892, Artigo 38, apud. CORRÊA e SILVA, 2010: 44),
oficializando a preocupação com o envolvimento dos alunos no processo de
alfabetização. Como tornar palatável uma tarefa árdua?! Eis a questão que
professores de todos os níveis perseguem ainda hoje!

Também para Mortatti (2004) o início da década de 1890 foi marcado por
disputas de posicionamento com relação a métodos de ensino da leitura e da escrita
e sobre a conveniência de se ensiná-las simultaneamente ou priorizando-se só a
leitura – com vantagens mais amiúde apontadas para essa última. Outra discussão

62
estabeleceu-se entre os métodos sintéticos (de soletração e silabação) e aqueles
analíticos (de sentenciação e historieta) que ganhavam terreno.

Oñativia (2009) estabelece uma breve comparação entre essas duas propostas.
Segundo ela, o método sintético remonta a mais de 2.000 mil anos, tendo se
estendido pela antiguidade até a Idade Média, período em que na maioria dos
recantos da Europa se ensinava antes o Latim depois a língua materna. (Na França,
por exemplo, só no século XVIII, com Jean-Baptiste de la Salle, considerado o
primeiro educador popular, o ensino da língua materna antecedeu ao do Latim). O
método sintético estabelecia uma graduação de aprendizagem em que o aluno
deveria primeiro dominar cada letra por meio da soletração (independentemente
do valor sonoro e de sua grafia), depois conheceria a grafia de cada uma delas; em
seguida passaria às sílabas de forma sistemática e ordenada, daí para palavras
monossilábicas e finalmente para as polissilábicas. Só quando o sujeito já soubesse
ler é que aprenderia a escrever.

A leitura, entretanto, estava relacionada à prática da oratória: ler significava


bem pronunciar as palavras, trabalho alcançado através de exercícios de articulação
– longe, portanto, da compreensão e interpretação de textos. Mas é preciso
considerar o fato de que os textos, na época, não tinham pontuação, as palavras não
eram separadas por espaços, a ortografia não era normatizada e as letras eram
rebuscadas, tornando difícil a tarefa de ler. Por isto, os alunos demoravam muitos
meses (ou anos) para ler um texto completo, quando enfim eram liberados para
escrever. A leitura pressupunha verificação dos aspectos auditivos e visuais
percebidos na língua escrita, tendo como referência a língua oral.

Para adeptos do método fônico sintético, como descreve Oñativia sobre M. de


Laffore (1828), dever-se-ia ensinar os sons das letras, estabelecendo regras (e
exceções a elas) para a correspondência som-grafia. Depois de dominados esses
sons a leitura decorreria da aceleração do ritmo de emissão sonora. O contexto das
teorias sintéticas considera a aprendizagem como [...] o conjunto de respostas
observáveis que são obtidas graças a uma ação precisa e determinada de fornecimento
de estímulos por parte do professor (OÑATIVIA, 2009: 13). Enfim, fragmentos sonoros
emitidos de forma precisa, objetiva, que fazem da alfabetização um trabalho de

63
junção correta dos diferentes harmônicos percebidos. Pobre dos surdos que não
teriam outra saída senão a reclusão analfabeta e silenciosa!

Ao final do século XIX e início do XX pensadores que sofriam influência dos


teóricos da psicologia genética opuseram-se às metodologias sintéticas, alegando
serem formas mecânicas de ensino e aprendizagem que, ademais, desconsideravam
a psicologia infantil.

Sobre os métodos analíticos, Oñativia (2009) descreve que suas bases


remontam ao século XVIII quando Nicolas Adam estabeleceu uma forma de fazer as
crianças reconhecerem palavras antes das letras e sílabas. O professor começaria
escrevendo diversas palavras ‘significativas’, em pedaços de papéis de diferentes
formatos. A criança distinguiria a palavra pelo formato do papel que, depois de bem
conhecidas, seriam escritas pela própria criança até o momento em que conhecesse
as palavras em si. Passo seguinte era escrever frases com estas palavras, quando se
passava à leitura delas. A análise das palavras se daria posteriormente ao domínio
do seu aprendizado escrito.

Essas duas metodologias são também propostas de forma unificada – método


sintético-analítico. Baseado em pedagogos alemães, em 1880, M. Block estabeleceu
o Método Schüler em que, depois de apresentadas as palavras-chave, partir-se-ia à
análise das sílabas e letras. Segundo Oñativia (2009), só no século XX, com o
surgimento da Gestalt (ou da psicologia da forma), foi possível fundamentar os
métodos de Adam e Block e torná-los mais usados e efetivos.

Pois bem, em meio aos argumentos sobre qual seria a melhor forma de ensino
da leitura e da escrita, estavam nossos pensadores liberais da recém criada
República. Aqueles que defendiam o método analítico viam na prática da leitura [...]
uma atividade de pensamento cuja finalidade era comunicar-se com o ‘pensamento de
outrem’ expresso pela escrita (MORTATTI, 2004: 85). O ensino da leitura nas escolas
passou a ser claramente dividido: primeiro aprendia-se a decifrar os signos da
língua escrita, segundo, partia-se para a leitura ‘corrente’, depois para a ‘expressiva’
e finalmente a ‘silenciosa’. O que não é esclarecido no texto é a que diferenças
referem-se cada uma dessas modalidades de leitura. O que se pode deduzir é que
sua aprendizagem ganhava, enfim, o incremento – ainda que rudimentar – da

64
interpretação de textos. Começava-se a abandonar a leitura mecânica da soletração,
indo em direção à compreensão das escrituras.

A autora destaca que em meio a esse movimento efusivo por mudanças, nem
tudo era como parecia. A primeira Constituição republicana de 1891 – que vigorou
até 1930 – trazia entre seus artigos, a permanência da proibição do voto ao
analfabeto (homem, já que as mulheres eram todas privadas desse direito),
argumentando que o veto só poderia servir de incentivo para os analfabetos
(inclusive os escravos recém libertos) se instruírem. Operava-se – como já
mencionei acima, mas agora de outra maneira – uma dupla discriminação em que o
analfabeto era, ao mesmo tempo, responsável por sua condição analfabeta e
responsável por sair dela, já que o Estado omitira-se com relação à garantia da
obrigatoriedade e gratuidade da educação pública primária. Se de um lado a
discussão acirrava-se sobre a necessidade de maior instrução dos brasileiros para a
formação da Nação, por outro, o analfabetismo disseminado não fazia parte da
oratória dos luminares de plantão. Em suma, cada um que se virasse para assegurar
seus direitos de participar e compartilhar das benesses sociais!

Sérgio Buarque De Holanda, em sua obra ‘Raízes do Brasil’ (1936), insiste no


fato de que o modo como fomos colonizados por Portugal é absolutamente relevante
para a forma como os brasileiros se relacionam com suas próprias atitudes e
conhecimentos, e com aqueles dos outros. Diz que para os portugueses, [...] o índice
do valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise
depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste (BUARQUE DE
HOLANDA, 1936: 32) e mais adiante afirma que nós brasileiros de certa forma
herdamos este modo de organização: Em terra onde todos são barões não é possível
acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida
(BUARQUE DE HOLANDA, 1936: 32).

Tal consideração ecoa um dos argumentos centrais que dá início à obra de


Sigmund Freud, ‘Futuro de uma ilusão’ (1927). Neste texto começa questionando
como o homem pondera sua condição de ser um animal gregário e como pensa o
futuro próprio e da civilização. Ali estabelece que a cultura humana é [...] tudo aquilo
no que a vida humana se elevou acima de suas condições animais e se distingue da vida

65
animal28 (FREUD, 1927: 5-6, tradução minha). Estabelece, pelos parâmetros da
psicanálise, que as civilizações erigem-se sobre uma dose de renúncia pulsional
individual, isto é, para conviver com outros homens cada sujeito precisa apartar-se
da satisfação completa de suas pulsões e o que é renunciado para si é o que permite
a construção do que é comum a todos. Com muito poucas chances de sobreviver
isolados, uma vez que a fragilidade física e psíquica não lhes permite enfrentar os
poderes da natureza, tampouco ter autonomia precoce de sobrevivência, os homens
precisam aceitar estas duas condições civilizacionais: compulsão ao trabalho que
constrói o coletivo e renúncia individual à satisfação total da pulsão. Não é fácil esta
renúncia e o esforço laboral, pois são sentidas como sacrifício imposto pela cultura
(o que não deixa de ser verdade), entretanto estas são condições de existência tanto
individual, quanto da própria sociedade. Ainda na abertura do texto Freud analisa
que não são poucos os movimentos humanos que visam criar outras condições
sociais de satisfação que tentam ignorar a necessidade cultural. Estabelece três
parâmetros essenciais: porque a relação entre sujeitos é influenciada pelas
satisfações pulsionais; porque um sujeito pode relacionar-se com outro homem
como um bem seu (tomando-o como força de trabalho ou como objeto sexual); ou
ainda porque o homem é virtualmente inimigo da civilização. Mas alerta: Ainda que
a humanidade tenha logrado contínuos progressos no subjugamento da natureza, e
tem direito a esperar outros mais, não se verifica com certeza um progresso
semelhante na regulação dos assuntos humanos29 (FREUD, 1927: 6-7, tradução
minha).

Se Freud aborda esta natureza antissocial dos homens em geral, e que está
presente em qualquer sociedade, Buarque de Holanda (1936) circunscreve-a como
marca extremamente influente no nascedouro e desenvolvimento da nação
brasileira: negros e índios são considerados ‘pessoas menores’ para quem as
produções sociais (aquelas europeias) não devem chegar, ao mesmo tempo em que
suas próprias produções culturais são desvalorizadas.

28
[...] todo aquello em lo qual la vida humana se há elevado por encima de sus condiciones animales
y se distingue de la vida animal (FREUD, 1927: 5-6).
29
Mientras que la humanidade há logrado contínuos progresos en el sojuzgamiento de la naturaliza,
y tiene derecho a esperar otros mayores, no se verifica con certeza um progreso semejante em la
regulación de los asuntos humanos (FREUD, 1927: 6-7).

66
Buarque de Holanda também descreve como estas relações de poder e
subjugamento influenciaram a produção intelectual brasileira. Denuncia que
enquanto em toda América Espanhola já existiam estabelecimentos gráficos até o
ano de 1747 (sendo que no México isto se deu em 1535), o Brasil inaugurou sua
primeira imprensa também em 1747, no Rio de Janeiro, sendo fechada no mesmo
ano por confisco Real. Milhares de livros circulavam e eram produzidos pelos países
Latino Americanos, menos no nosso, cujos poucos exemplares aportavam vindos da
Europa. Os entraves que ao desenvolvimento intelectual no Brasil opunha a
administração lusitana faziam parte do firme propósito de impedir a circulação de
idéias novas que pudessem pôr em risco a estabilidade de seu domínio (BUARQUE DE
HOLANDA, 1936: 121).

Um dos legados portugueses deixado aos brasileiros, portanto, configura-se


como um elemento de controle e/ou censura incidindo sobre um ‘saber / poder
fazer’ no âmbito educacional.

Na mesma linha de controle do pensamento e ação, dois episódios mais recentes


marcaram profundamente os rumos políticos do Brasil, com reflexos em sua
educação. País recente no uso da democracia e dos direitos plenos estendidos a
todos os cidadãos, há menos de 120 anos ainda éramos um Império escravocrata em
que só a elite – ainda que analfabeta – podia votar. Com a abolição da escravatura,
os analfabetos – em sua esmagadora maioria, negros – perderam o direito ao voto,
reafirmando a condição elitista de comando político. Neste pouco mais de século de
República, enfrentamos duas árduas ditaduras – Vargas de 1937 a 1945 e Militar de
1964 a 1985 – que suspenderam os direitos políticos e sociais de milhões de
brasileiros. Estes direitos só foram plenamente (r)estabelecidos com a promulgação
da Constituição de 1988. Não é sem razão este comentário, uma vez que os
analfabetos só recuperaram seu direito de votar, assim como toda população só
recuperou o direito de livre expressão do pensamento a partir desta data. É evidente
que expropriados do poder da fala, do livre pensamento e da participação política,
estas exclusões deixaram marcas na educação geral do Brasil.

Entretanto, estas não foram as únicas formas de vigilância sobre a produção


teórica e a prática pedagógica. Houve na história do Brasil uma constante migração
deste poder – ora sob domínio da Igreja Católica, ora dos poderes elitistas regionais,

67
ora dos poderes legalizados exercidos pelos órgãos Federal, Estaduais e Municipais
– e este deslocamento foi acompanhado por inúmeras modificações na configuração
da estrutura educacional. Assim, por exemplo, a escolarização básica alterou-se de
dois, para quatro, depois para oito e finalmente para nove anos, e a cada mudança
uma autarquia diferente se responsabilizou por ela. Por vezes, inclusive, o controle
que antes era dos Municípios, passou aos Estados e depois retornou aos Municípios.
O mesmo se deu com as regências de métodos de ensino, ora legislados, ora
delegados ao encargo da escola ou do professor. O quê se controla?, Quem faz o
controle?, Qual a efetividade deste controle?

Quem passou a fazer o controle das instituições escolares e do ensino foi o


capital. O poderio econômico precisava viabilizar seus meios de produção, portanto,
precisava formar seus trabalhadores. Nesta escalada, o Estado de São Paulo saia na
frente por se estar tornando polo industrial e centro das finanças do país.

1.4.2. A REFERÊNCIA PAULISTA

Por muito tempo São Paulo foi o Estado modelo de expansão da instrução
pública elementar. Gradativamente o número de alunos matriculados, bem como a
média de frequência em suas escolas aumentavam, fortemente impulsionados pela
urbanização de sua população e pelo afluxo de imigrantes japoneses, espanhóis e
italianos que traziam consigo a valorização dos estudos. São Paulo saia na vanguarda
da defesa dos métodos analíticos e servia de referência para outras unidades da
federação que buscavam, ali, modelos teóricos e profissionais que pudessem
implementar.

Cancionilda Cardoso e Lázara Amâncio (2010) analisam, por exemplo, que em


1911 o Estado de Mato Grosso chamou dois normalistas formados em São Paulo
(Leowegildo Martins de Mello e Gustavo Khulmann), com o intuito de reativarem a
Escola Normal mato-grossense. Nesse processo foram organizados grupos
escolares, na tentativa de implantar métodos para o ensino da leitura e da escrita.
Como havia muitas diferenças nas cartilhas e métodos que efetivamente os
professores utilizavam, o Governo do Estado do Mato Grosso oficializou, na reforma

68
educacional de 1927, o emprego do método analítico (como o que era utilizado em
São Paulo) com o objetivo de homogeneizar as práticas de alfabetização.

Entretanto, a análise de documentos (cartilhas, diários de classe, cadernos de


alunos, entre outros) revelou que as diretrizes oficiais para o ensino não eram
seguidas. Professores continuavam se valendo dos métodos sintéticos, nas suas
modalidades de soletração, silabação e graduação do ensino de letras, sílabas e
palavras, preocupados com a ‘letra bonita’, a ‘cópia correta’, ou a repetição
infindável do ‘ponto decorado’.

O Regulamento de 1927 também exigia que os professores fossem normalistas,


mas a maioria não tinha mais do que o primário concluído. Registravam-se ainda a
falta de mobiliário para as salas de aulas, de professores, de escolas e material
escolar. Só em 1951, com a Lei Orgânica de Instrução Pública do Mato Grosso que a
especificação sobre os métodos de ensino deixou de ser mencionada (idem).

Mato Grosso é um exemplo, mas não o único que denunciava que, não só a falta
de infraestrutura, mas também de profissionais formados e qualificados à educação
básica era escassa nas primeiras décadas do século XX. Era preciso começar do
princípio na maioria dos rincões brasileiros.

Sem uma política pública nacional sobre o assunto, São Paulo continuava à
frente nos temas da alfabetização. Havia da parte de Oscar Thompson e Antônio de
Sampaio Dória – dois professores que ocuparam a Diretoria Geral da Instrução
Pública do Estado de São Paulo – preocupação declarada em resolver o problema de
ensino dos analphabetos. Segundo Mortatti, em Carta Circular de 1918, Thompson
inaugurou o uso oficial da palavra alphabetização para referir-se ao ensino da leitura
e da escrita. Mais especificamente referiu-se ao termo pela negativa – o insucesso da
alphabetização (MORTATTI, 2004: 60) – ao constatar que havia um índice altíssimo
de crianças reprovadas nas classes de 1º ano primário, por não terem conseguido
aprender a ler e escrever. A resposta a essa carta veio na forma de um plano para
extinção do analfabetismo, proposta por Sampaio Dória, em que reconhecia a
urgência de se levar o ensino a todas as camadas da população, como condição de
‘exercício da cidadania’. Indicava que se deveria oferecer aos alunos três instruções
mínimas: saber ler, escrever e calcular.

69
Cabe lembrar que em contexto bem diverso, essa mesma proposta de se ensinar
a ler, escrever e calcular já havia sido feita pelos jesuítas ao desembarcarem no
Brasil. A insígnia permanecia a mesma, embora os parâmetros sociais, políticos,
econômicos e culturais já haviam sofrido transformações acentuadas: alfabetizar
para servir ao catolicismo, na Colônia; para viver adequadamente sob os princípios
de uma nação independente, no Império; para ser cidadão de direito, na República.
Andávamos em círculos carregando ainda a falência dos mesmos três objetivos; o
que mudava eram os norteadores sociais e políticos dos Estados que geriam a
educação.

Com a reforma do ensino paulista em 1920, Sampaio Dória pretendeu dar


solução à questão do analfabetismo reduzindo de quatro para dois anos a
escolaridade primária, orientando que os professores tinham autonomia didática
para ensinar e que a alfabetização não era dirigida somente às crianças, mas também
a todos os adultos analfabetos. Na visão de Mortatti (2004), a grande contribuição
desse pensador da educação foi trazer ao palco das discussões sobre o ensino da
leitura e da escrita, os termos ‘alphabetizar’, ‘alphabetismo’, ‘analphabeto’ e outros
correlatos, e entender que eram questões a serem tratadas nacionalmente. Ressalta
ainda que os preceitos de Sampaio Dória passaram a ser entendidos como uma força
política nacionalizadora e voltada à educação popular, que deveria ser eficiente.
Entretanto a medida de ‘eficiência’ era dada ainda pelo número de matrículas feitas
e de aprovações no primeiro ano.

Pode-se verificar que é em 1920 que se instala a primeira forma de avaliação de


rendimento escolar, mas que essa é baseada em dois numerários de origens
distintas – número de matrículas e aprovação – que, como se verificará mais tarde,
não será indicador fidedigno do índice de alfabetização. Até hoje, com a baixa
qualidade exigida para leitura e escrita, passar de um ano escolar a outro não é
garantia de aprendizagem, como vimos pelos resultados da Prova Brasil, na
Introdução desta tese. No entanto, o que se deve considerar é que esse foi o primeiro
passo dado em direção a algum controle e reversão do quadro vexatório do baixo
grau de instrução no qual o país estava imerso.

Em 1924 funda-se a Associação Brasileira de Educação e os ideários da Escola


Nova passam a influenciar a educação de boa parte do território nacional. Entram

70
na baila das discussões as propostas de um programa modernizador da sociedade e
a revisão das finalidades e funções da escola, agora não mais pretendidas para mera
erradicação do analfabetismo, mas também para educação das ‘inteligências’,
dentro de uma instituição capaz de refletir o meio em que estava inserida,
proporcionando mudanças culturais e organizacionais do país. Francisco Campos,
um dos escolanovistas importantes, posicionou-se:

Saber ler e escrever não são, porém, títulos suficientes à cidadania digna desse nome.
Não basta, pois, difundir o ensino primário [...] Se este ensino não forma homens, não
orienta a inteligência e não destila o senso comum, que é o eixo em torno do qual se
organiza a personalidade humana, pode fazer eleitores, não terá feito cidadãos (LOPES,
Eliana Marta T.; FARIA FILHO, Luciano M.; VEIGA, Cynthia G. (org.) (2000). 500 anos de
educação no Brasil. Belo Horizonte. Autêntica. apud., MORTATTI, 2004: 63).

A Escola Nova arejava a educação brasileira. Pensadores que atuavam em


diferentes lugares do Brasil uniam suas vozes em prol de uma educação
consequente com os rumos e desenvolvimento do país, como instrumento de
contínua transformação do homem e de seu meio. Assim, Anísio Teixeira atuou na
Bahia (1926) e no Distrito Federal (1931-1935), Lourenço Filho no Ceará (1930-
1931), Francisco Campos em Minas Gerais (1926) e depois como Ministro da
Educação e Saúde (1930-1932), entre outros, até que na década de 1930 buscou-se
dar a essas experiências dispersas entre os Estados do Brasil, unificação de
diretrizes a nível federal. A Constituição de 1934 restabeleceu a gratuidade e
obrigatoriedade do ensino primário (seriado) de quatro anos, para adultos e
crianças de todo território nacional.

A educação é, portanto e antes de tudo, apontada culturalmente. Quem, quando,


onde, como e para quê os indivíduos são educados, está sob o julgo das esferas de
poder social. Mas, se em princípio a educação colonial e imperial formavam os
sujeitos com o fim de que esses servissem adequadamente ao Estado da ocasião, o
que se propõe na República – implantada sob os ideários Iluministas – é o contrário:
que se formem cidadãos que pensem, participem e ajudem a transformar a
sociedade.

Entretanto, ‘transformar’ pode ter inúmeras conotações, que não


necessariamente passam pela melhoria geral de condições de vida de cada um;
educar para transformar a sociedade pode querer dizer, nesse caso, um esforço de

71
todos para aprender a pensar como as elites de plantão, que deixavam de ser só
políticas e econômicas, passando a ser incrementadas pelas intelectuais que
circulavam no Brasil já no final do século XIX.

Os avanços propostos pelo escolanovismo, centrados na concepção do ensino


reflexivo, eram também herdeiros de teorias originais que começavam a se
conformar em torno da infância e suas particularidades. Os alunos passavam a ser o
eixo central em volta do qual o processo de aprendizagem deveria dar-se. Então,
nada mais correto do que bem-conhecer o alvo das políticas instrutivas. A educação
que se abria a todas as crianças deveria cuidar de conhecer racionalmente a essência
dos pequenos, os meandros de seu desenvolvimento e as formas de avaliar suas
capacidades e (in)competências. Para oferecer uma boa educação era apropriado
conhecer – antes – a quem se ensinaria.

Nas décadas de 1920-30 fizeram parte desse movimento os pensamentos


derivados diretamente da psicofisiologia que se ocupavam da racionalização
espaço-temporal e das técnicas de mediação das relações escolares. Essas tarefas
vinham acompanhadas de testes de medição de inteligência e maturidade para
aprendizagem da leitura e da escrita, que desde o século XIX já vinham sendo
formulados na Europa e encontraram terreno fértil para se desenvolver nos Estados
Unidos.

1.4.3. UMA PEQUENA DIGRESSÃO SOBRE A INTRODUÇÃO DOS


ESPECIALISTAS NA EDUCAÇÃO

Em 1895 o oftalmologista escocês James Hinshelwood (HINSHELWOOD, 1917)


encontrou semelhanças entre adultos que tinham perdido a capacidade de leitura
após acidentes vasculares cerebrais, tumores ou traumatismos de crânio, e algumas
crianças consideradas inteligentes, mas que apresentavam dificuldades para
aprendizagem da leitura. Designou essas dificuldades como ‘cegueira verbal
congênita’, recomendando para sua solução que professores empreendessem
esforços didáticos cuidadosos e pacientes em relação ao ensino desses alunos.

Um ano antes o médico francês, também advogado e cientista natural de


formação, pedagogo e psicólogo de atuação, Alfred Binet, interessou-se por questões

72
cognitivas da infância, depois de ter atuado na psiquiatria infantil com crianças
‘anormais’. A pedido do governo francês criou em 1905, junto com Theodore Simon
(também psicólogo francês), a escala métrica Binet-Simon cujo propósito era medir
o desenvolvimento da inteligência de acordo com a idade mental das crianças,
visando alunos com dificuldade de aprendizagem (BINET e SIMON, 1916). Note-se que
essa escala, para Binet, não permitiria definir a inteligência em si, nem estabelecer
comparativos de inteligência entre diferentes sujeitos; postulou apenas uma
classificação e hierarquização das diferentes inteligências medidas na mesma
criança, em momentos distintos. As conclusões de Binet foram mais ou menos na
mesma linha das considerações de Hinshelwood, de que os professores precisariam
intervir de forma mais atenta junto aos alunos com dificuldades, já que todos teriam
habilidades para aprender. E mais, dizia que o treino e o método levariam a uma
melhora da memória, do julgamento e da atenção.

Embora não tivesse a intenção de medir inteligências ou hierarquizá-las entre


diferentes indivíduos, a pesquisa de Binet e Simon serviu de inspiração para
elaboração de outros testes, cujo objetivo era medir o quociente de inteligência (QI)
que, para o uso da aprendizagem, revelou-se um verdadeiro meio de segregação e
exclusão de alunos de muitos bancos escolares.

O primeiro passo nessa direção veio dos trabalhos de Wilhelm Stern (psicólogo
alemão) que propôs em 1912 o QI para representar o nível mental e separar a ‘idade
mental’ da ‘idade cronológica’ dos indivíduos. Ou seja, crianças que em certa idade
não tivessem sido capazes de desempenhar aquilo que outras fariam ‘normalmente’,
deveriam ser consideradas mentalmente mais atrasadas – ou mais desenvolvidas,
se estivessem além dessa normalidade.

O trabalho mais preocupante, no entanto, veio por intermédio do psicólogo


norte-americano Lewis Madison Terman, que em 1915 estabeleceu o teste Stanford-
Binet, propondo várias medições da inteligência por meio de problemas
matemáticos e vocabulares (TERMAN, 1915). Concebia a inteligência geral como
habilidade mental inata, não alterável com nenhum tipo de intervenção e tão
mensurável quanto a altura e o peso dos indivíduos. Testou centena de milhares de
soldados norte-americanos que lutaram na Primeira Guerra Mundial, garantindo
credibilidade para seus estudos. Juntamente com outros eugenistas indicava que o

73
aluno, uma vez identificada sua inteligência, fosse encaminhado ao ‘curso adequado
às suas habilidades’, poupando gastos desnecessários com aqueles que não eram
aptos a aprender. Defendeu a testagem de toda população norte-americana para
determinar os lugares de cada um na sociedade, inclusive daqueles mais capazes a
exercer liderança. Aos que tivessem QI abaixo de 75, preconizava a internação e o
desencorajamento/proibição de procriação! Sua ideia era tornar a nação mais
segura, adequada e eficiente, a partir de suposta e tendenciosa avaliação das
capacidades de aprendizagem!

O enredo desta ideia não foi explicitamente encampado pelo governo norte-
americano da época, mas este filme não terminou de desenrolar-se até hoje. Embora
o modelo social de Therman não tenha sido implantado, seus testes continuaram
sendo usados e aprimorados – e é possível assistir de perto os efeitos de tal
pensamento na crença da sobredeterminação dos mais competentes sobre sujeitos,
culturas, Nações. Esse tipo de pensamento decorre e se retroalimenta dentro do
capitalismo liberal que boa parte do mundo abraçou – inclusive o Brasil republicano.

Por fim, ainda na década de 1930, David Wechsler (psicólogo norte-americano


de origem romena) criou em 1939 o primeiro teste de QI desenvolvido para adultos,
o Wechsler Adults Intelligence Scale (WAIS), abandonando a divisão entre idade
mental e idade cronológica. Os índices destes testes deveriam ser avaliados segundo
os resultados da média da população, com desvio padrão. Em 1949 criou o Wechsler
Intelligence Scale for Children (WISC), o teste individual de inteligência infantil mais
aplicado no mundo, que passou por revisões em 1974, 1991 e em 2003. É
importante dizer que este teste tem entre suas pretensões avaliar subjetivamente
os sujeitos, mas ele opera através de 13 subtestes estratificados em escala verbal e
de execução, que não fornecem a classificação subjetiva ansiada, mas a cognitiva.

Abre-se aqui uma questão epistemológica séria decorrente dos pensamentos de


Therman e Wechsler a respeito da origem das capacidades intelectuais humanas.
Suas afirmações teóricas e empíricas adotam as capacidades intelectuais como
‘decorrentes naturais’ do substrato orgânico inato (caso de Therman), ou de uma
subjetividade não investigada como tal (caso de Wechsler). Esboçam-se nessas
elaborações as tendências biologizantes da cognição e a objetivação dos aspectos
subjetivos, sendo que no primeiro caso há uma clara concordância com as

74
experiências nazistas sobre a supremacia de algumas raças. Ainda hoje assumidos
como discursos descontextualizados da história que lhes deu origem, são
empregados como verdades inquestionáveis, como se pode ver nos enunciados
atuais sobre os Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a
dislexia.

Na esteira de pensamentos como de Therman e Wechsler, na década de 1940


surgiu o termo ‘lesão cerebral mínima’ que abrigava um conjunto de sintomas
considerados prejudiciais para a aprendizagem, quando não, a própria justificativa
da incapacidade de uma criança aprender. Atribuía-se a uma comoção cerebral o
fato do aluno ser desatento, inquieto e indisciplinado. Historicamente, no século XIX,
este transtorno representava problemas de ‘inibição voluntária’ dos movimentos do
corpo, decorrentes de ‘dificuldades do controle moral’. No século XX foi classificado
como hipercinesia, dentro da categoria das lesões cerebrais mínimas. Não se
encontrando, de fato, comprovação empírica para as lesões, na década de 1960
modificou-se a terminologia para ‘disfunção cerebral mínima’. Entretanto a
alteração da nomenclatura não significou questionamento ou mudança de postura
diante dos sintomas manifestos e suas associações com anomalias biológicas. A
explicação médica ganhou um espaço importante junto à educação, especialmente
porque na época oferecia respostas a uma classe média norte-americana, cujos
filhos fracassavam na aprendizagem. Como afirmam Viviane Neves Legnani e Sandra
Francesca Conte De Almeida:

As explicações eram necessárias, pois dentro de um contexto de prosperidade


econômica havia também profundas contradições relacionadas ao modelo econômico
capitalista, demonstradas por vários indicadores, tais como o aumento do número de
suicídios, o crescente uso de psicofármacos, problemas de saúde ocupacionais, estresse,
etc. (LEGNANI e ALMEIDA, 2008: 4).

Segundo as autoras, na época o governo norte-americano chegou a patrocinar


estudos para [...] elaboração de diretrizes diagnósticas para desvios do
comportamento e problemas de aprendizagem de crianças com capacidade intelectual
na média ou acima da média (idem, ibidem). Com isto o diagnóstico de ‘disfunção
cerebral mínima’ foi plenamente aceito pelas famílias de classe média, já que este
era de categoria clínica diferente do retardo mental, com que se diagnosticavam as
crianças das classes sociais mais pobres ou de outras etnias.

75
Psicofármacos começaram a ser largamente receitados, fazendo calar assim
uma série de outras questões disseminadas socialmente por questões humanas
contingentes – contradições do capitalismo – ou intrínsecas – o mal estar inerente à
condição humana falha e finita.

Duas décadas depois (1980, portanto) a ‘disfunção cerebral mínima’ ganhou


nova nomenclatura no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(Diagnostic and Statistical Manula of Mental Disorders – DSM-III, publicado em
1989) e passou a se chamar Déficit de Atenção e Hiperatividade, avaliada
separadamente dos Distúrbios de Aprendizagem (também catalogado pelo DSM-III),
como forma de facilitar a prática investigativa. No final da década de 1990 mudanças
no código das doenças mentais instituiu o DSM-IV (1994) alterando o termo Déficit
de Atenção e Hiperatividade para Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade, cuja ancoragem teórico-clínica não se desvinculou das questões
relacionadas à aprendizagem, como se constata hoje nos milhares de diagnósticos
de TDAH com que se brindam os estudantes brasileiros.

Mudaram a nomenclatura, mas não a abordagem! E, se até a década de 1990


ainda assistíamos a certo posicionamento crítico com relação à introdução dos
padrões orgânicos para se segregar grupos de aprendizes 30, atualmente esta
questão está mais do que disseminada e incorporada, não só pela classe médica, mas
também por pais, professores e até alunos. A investigação do TDAH, que segundo a
própria medicina (DSM), tem que ser feita por equipe multiprofissional, através de
diferentes testagens e investigações, hoje em dia é banalizada por meio da
prescrição medicamentosa da Ritalina ou do Concerta31, feita em uma única consulta
ao neurologista o ao pediatra. Basta que familiares ou agentes escolares se queixem
demasiadamente da falta de atenção ou do descontrole ativo da criança, para saírem
dos consultórios munidos do remédio.

30
Ver Patto, 1986.
31
Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2006) mostram que o consumo de
metilfenidato (princípio ativo da Ritalina e Concerta), saltou de 23 Kg em 2000, para 93 Kg em 2005.
E em notícia divulgada em 18/02/2013, no Boletim de Farmacoepidemiologia da mesma ANVISA,
pode-se ler a seguinte informação: “O consumo do medicamento metilfenidato, utilizado no
tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), aumentou 75% em
crianças com idade de 6 a 16 anos, entre 2009 e 2011, no Brasil”.
http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa (Buscar por ‘metilfenidato’), acesso em 17/07/2013.

76
Segundo Legnani e Almeida (2008), veladamente saímos da subjetividade
respaldada simbolicamente pelos contextos culturais, para adentrarmos na era da
individualidade e da perda de ideais coletivos. Deixa-se de falar na educação para se
tratar do problema que ‘aquele’ familiar (ou professor) tem com ‘aquele’ filho (ou
aluno).

Certo contraponto a essa visão segregacionista já se dava no entre Guerras, na


Europa, por exemplo, pelas mãos da pediatra e psicanalista francesa Françoise
Dolto. Como relata Élisabeth Roudinesco (1986), no início da década de 1930 Dolto
trabalhava no Hôpital d’Enfants Malades e no Hôpital Bretonneau e dava especial
atenção às crianças que apresentavam vários sintomas (entre eles não ir bem na
escola), cujas causas não eram organicamente determinadas. Dispôs-se a atender os
pacientes e seus pais com o intuito de restabelecer os lugares e funções familiares,
já que detectava, a partir de sua escuta, que muitas das questões infantis baseavam-
se na imprecisão de papéis relacionais entre os membros familiares. Em entrevista
concedida a Roudinesco diz: Atendia crianças que iam mal na escola e disfarçavam
sua angústia fingindo-se doentes. Mas, de tanto imitar, elas se apegavam à brincadeira
– quero dizer, à brincadeira dos sintomas – que era levado a sério pelos médicos como
sinal de doença orgânica (ROUDINESCO, 1986: 12). Em 1936 Dolto defendeu a Tese
‘Psicanálise e pediatria’, com o intuito de inaugurar uma nova forma de medicina
infantil, fundando na França a psicanálise de crianças. Recomendava atendimento
psicanalítico para crianças com QI abaixo de 100, mas tinha dessa medição por meio
de testes, particular visão:

Uma criança que se diz com QI fraco pode sê-lo por perturbações afetivas; talvez ela
tenha mesmo uma inteligência fraca, mas é a psicoterapia que permitirá que ela utilize
ao máximo seus dons, para ficar livre na sociedade. Minha ideia era e ainda é a de que
não se tem o direito de não fazer tudo para que um indivíduo obtenha sua autonomia e
viva na sociedade, qualquer que seja seu nível mental em QI. Na época acreditava-se
que a inteligência não mudava no decorrer da vida. Eu sustentava o contrário
(ROUDINESCO, 1986: 16).

No Brasil a psicanálise teve um início desastroso no âmbito escolar, como se


evidencia em fins dos anos 1920 e início dos anos 1930. Carmen Lucia Montechi
Valadares de Oliveira (2005) relata que a partir de 1927, quando Deodato Moraes
lançou o livro ‘A psicanálise na educação’, houve uma tentativa de aproximação

77
entre estas duas áreas de saber, levando a que, no ano seguinte se fizesse no Rio de
Janeiro o ‘Curso de psicanálise aplicado à educação’. Tratava-se de uma série de
conferências, cujo alvo era fazer chegar aos pedagogos os principais conceitos
freudianos. Entretanto a plateia que se formou era basicamente composta pela elite
intelectual, professores universitários e mães que procuravam subsídios para
educar seus filhos.

O psicanalista J.P. Porto-Carrero defendia que a psicanálise oferecia bases


científicas sólidas a tudo o que a pedagogia depreendia empiricamente. Os males
emocionais (base dos conflitos íntimos) poderiam ser prevenidos desde a infância,
[...] por uma educação guiada no sentido de evitar à criança os traumas emocionais
que servem de base futura para perversões sexuais e à neurose (PORTO-CARRERO, 1928:
195, apud MONTECHI VALADARES DE OLIVEIRA, 2005: 116-117). Impressionado com as
propostas de mudança edificadas pela Revolução Russa, chegou a propor que a
psicanálise pudesse subsidiar uma sociedade ideal, sem crime, censura ou punição,
uma vez que se conhecia o trauma sexual das pulsões.

Mas, pela via da educação sexual, a psicanálise não conseguiu avançar no campo
pedagógico da terra brasilis; enfrentou duras críticas no terreno da moral e dos
costumes, por parte de pedagogos, médicos, ou representantes da igreja católica:
nefasta, perigosa, perniciosa eram os adjetivos para a descoberta de Sigmund Freud.

Em contrapartida, a psicologia experimental e a psicologia da aprendizagem


entraram nas escolas brasileiras republicanas (MORTATTI, 2004). Pretendia-se
fechar as portas da escrita mecânica, para abri-las aos interesses da comunicação
escrita e da funcionalidade da aprendizagem, e também se pretendia encerrar o
capítulo da leitura segmentada para dar lugar à interpretação dos pensamentos de
outrem e para a ampliação da experiência mental; concomitantemente a estes
movimentos, assistia-se à sobreposição da pedagogia pelas técnicas psicológicas. Se
não se pode dizer que a educação moderna brasileira foi natimorta, pode-se
aproximá-la do sofrimento pós-parto, assistida de perto pelos técnicos
conhecedores dos problemas de aprendizagem.

Simultaneamente ao provimento escolar de livros e professores formados,


também provia-se os alunos de orientações de ‘bem aprender’. A passos largos as
ciências biopsicológicas ganhavam terreno no conhecimento do organismo. Do alto

78
desse saber orientavam os aspectos psicológicos envolvidos na aprendizagem da
leitura e da escrita, dando especial destaque para os problemas que se pudesse
apresentar nesse processo. Tanto Cardoso e Amâncio (2010), quanto Mortatti
(2004) fazem referência a uma dessas proposições científicas: o ‘sistema muscular’
(ou ‘escrita muscular’) baseado na psicologia da aprendizagem e na fisiologia do
trabalho. Elaborado por Orminda Marques e respaldado em experiências de
Lourenço Filho, esse sistema recomendava o controle do corpo que, bem educado,
seria capaz de traçar bem, rapidamente e legivelmente a sua escrita, além de tornar-
se eficiente na leitura igualmente rápida e sem o acompanhamento dos dedos. O
corpo e seu movimento já eram vistos como interventores e inibidores (ou
‘atrapalhadores’) da aprendizagem. O que se pretendia era sua contenção física por
meio de ordens e de treinamentos. (Muito diferente disso é a proposta desse
trabalho que procura o reposicionamento do corpo por meio de representações).

1.4.4. VÁRIOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO E SEUS USOS

Os métodos de alfabetização utilizados nesse período eram, prioritariamente,


os mistos (sintético-analítico) ou globais, que se espalhavam na forma de diferentes
cartilhas por todos os lados do território nacional. Esses, no entanto, não garantiam
práticas homogêneas entre os professores, em função da diversidade de materiais e
procedimentos utilizados por cada um deles.

Nesse ponto, é preciso considerar o papel efetivo das políticas públicas da


educação no Brasil. De um lado Schwartz, Peres e Silva Frade (2010) avaliam que as
políticas públicas e as práticas pedagógicas são indissociadas. Mortatti (2004)
concorda com esse parecer:

Os novos fins da educação passaram a demandar soluções voltadas para a função


socializadora e adaptadora da alfabetização no âmbito da educação popular, a ser
realizada de maneira rápida, econômica e eficiente [...] visando a uma educação
renovada, centrada na psicologia aplicada à organização da escola e do ensino e
adequada ao projeto político de planificação e racionalização em torno de setores da
sociedade brasileira (MORTATTI, 2004: 66).

De outro lado, como apontam Cardoso e Amâncio, essas práticas decorrentes


das políticas públicas encontram [...] dupla ambivalência: a primeira relacionada com
79
as prescrições oficiais e adoção de livros que, muitas vezes, não coadunam e, a segunda,
com o discurso didático-pedagógico dos professores e as suas efetivas práticas
docentes que, igualmente, são discrepantes (CARDOSO e AMÂNCIO, 2010: 88). Esses dois
acontecimentos apontados pelas autoras fazem referência aos descompassos no uso
dos vários métodos de alfabetização empregados no Estado do Mato Grosso, ao
longo de todo século XX; mas igual observação pôde ser encontrada por Janaína
Lapuente e Eliane Peres (2010) sobre o uso de um único método – o da ‘Abelhinha’
– que por mais de quatro décadas foi aplicado em cidades do Rio Grande do Sul. Há
outros vários casos semelhantes relatados na literatura sobre métodos e
determinações legais sobre alfabetização na história do Brasil (LAPUENTE e PERES,
2010).

Nesses dois entraves à utilização retilínea de métodos de ensino – sejam eles


propostos pelas políticas públicas, ou pelos próprios métodos (cartilhas, apostilas)
– encontram-se os sujeitos que agem e que sofrem a ação de uma prática. Mais do
que das recomendações generalizadas, parece que os atos em educação não se
dissociam da história das instituições em que são efetivadas e dos agentes que as
põem em exercício. Ou, se se pode pensar de outro modo, as políticas públicas em
educação tomam um tempo para se efetivarem no espaço da escola e, enquanto são
paulatinamente absorvidas pela prática cotidiana das salas de aula, são
parcialmente modificadas/conformadas por elas. Eis porque qualquer método
educacional que já se tentou instituir não pôde / pode ser implementado na sua
forma pura, sem alterações: há sempre o professor e sua subjetividade, que se
relaciona com seus pares e com outros tantos alunos e suas subjetividades.

Eis porque um método em educação sofre – necessariamente – alterações: há a


subjetividade que conta e que, como aponta o psicanalista francês Jacques Lacan
(1959-60), determina de forma contundente a inserção da ética onde muitas vezes
só se esperaria a techné.

1.4.5. A ESPERA PELA ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO: O SILÊNCIO


DO PENSAMENTO

80
Avanços de um lado, estagnação e retrocessos de outro. Alfabetizado, até a
década de 1950, era considerado aquele que obtinha êxito ao passar do primeiro
para o segundo ano primário. Depois desse período passou-se a considerar
alfabetizado o sujeito que soubesse ‘ler e escrever um bilhete simples no idioma que
conhecesse’, definição de alfabetização baseada em documentos da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que também passou
a definir indicadores relativos às faixas etárias na contagem da alfabetização: não só
se considerariam os indivíduos com 5 anos ou mais, mas também se definiriam as
faixas etárias de 10 anos ou mais e 15 anos ou mais. Esse padrão foi adotado no
recenseamento brasileiro, conforme se observa na Tabela 4.

Tabela 4: Censo populacional e índice de analfabetismo no Brasil de 1920 a 2010.

ANO População Analfabetismo na Analfabetismo na Analfabetismo na


recenseada população de 5 anos população de 10 anos população de 15 anos
no Brasil ou mais ou mais ou mais

No. % No. % No. %

1920 30.635.605 18.549.085 71,2 _ _ 11.401.715 64,9

1940 41.236.315 21.295.490 61,2 16.452.832 56,7 13.242.172 55,9

1950 51.944.397 24.907.696 57,2 18.812.419 51,5 15.272.632 50,5

1960 70.070.457 27.578.971 46,7 19.378.801 39,7 15.964.852 39,6

1970 93.139.037 30.718.597 38,7 21.638.913 32,9 18.146.977 33,6

1980 119.002.706 32.731.347 31,9 22.393.295 25,5 18.716.847 25,5

1991 146.825.475 31.580.488 24,2 21.330.295 18,9 18.587.446 19,4

2000 169.799.170 25.665.393 16,7 17.552.762 12,8 16.294.889 13,6

2010 190.732.694 -- -- 17.165.942 9,0 18.310.033 9,6

Fonte: MORTATTI, 2004, dos anos 1920 a 2000 e IBGE para o ano de 2010 (dados do censo de 2010,
disponíveis no site: www.ibge.gov.br)
O que se pode notar desses dados é que, embora os índices de analfabetismo
estivessem diminuindo desde que se abraçou a causa da educação, na década de
1920, até 1980 os números brutos da população sem instrução básica mínima
aumentou em 64%.

A década de 1960, a despeito do retrocesso político por que foi acometida com
o Golpe de 64, é incrementada por iniciativas importantes voltadas à educação. Logo
no segundo ano foi promulgada a primeira Lei de Diretrizes e Base Lei nº 4.024/61;

81
seis anos mais tarde, já sob a ditadura militar, a Constituição de 1967 estendia a
gratuidade e obrigatoriedade do ensino para os primeiros oito anos escolares (ao
invés dos quatro anteriormente estabelecidos), criando um período de
escolarização denominado Primeiro Grau. Essas mudanças das políticas públicas
proporcionaram incremento da rede escolar e fizeram aumentar o número de
alunos no ensino básico, mas ainda de forma que a quantidade de instituições não
fosse suficiente para contemplar a todos e fazer valer a Carta Magna.

No que diz respeito à forma de ensino no período da ditadura, cuja reflexão não
era exatamente o que se esperava do alunado (e também de seus mestres), as
perspectivas tecnicistas confluíram para os aspectos comportamentais da
aprendizagem da alfabetização e, em termos linguísticos, centraram-se
prioritariamente na comunicação. As cartilhas de alfabetização eram veículos
principais dessa transmissão de saber bastante pragmático e pouco motivador da
tal leitura crítica do mundo.

Educador sensível e combativo desde a década de 1930, no início dos anos 60 o


pernambucano Paulo Freire pode divulgar suas ideias sobre educação de forma mais
ampliada. Voltadas especialmente aos adultos apartados do conhecimento formal
da língua escrita, compreendia que o analfabetismo alijava-os também dos recursos
que lhes permitiria criticar sua condição sócio cultural – uma dupla exclusão,
portanto. Para ele, a alfabetização não poderia ser restrita à aquisição do código
escrito, devendo ser tomada como ‘leitura do mundo’, cujas bases encontravam-se
no saber cotidiano (político e social) dessa população. Ou seja, na década de 1960
Paulo Freire apontava o fracasso das propostas da Escola Nova de ensinar todos a
ler e escrever e de formar homens cidadãos: as crianças da década de 1920 eram os
adultos analfabetos de 40 anos depois.

Pensadores da educação e educadores como Freire tiveram que se retirar de


cena. Como descreve o ‘Mapa do analfabetismo no Brasil’, publicado pelo INEP em
2003:

O Brasil é um país que, graças à difusão do método criado por Paulo Freire, nas décadas
de 1960 e 1970, ajudou a erradicar o analfabetismo no mundo. Infelizmente, neste
mesmo período, esse educador era proibido de ajudar a combater o analfabetismo no
seu próprio País, exilado que foi pela ditadura militar que via em seu método, um
elemento de subversão da ordem estabelecida (INEP, 2003: 12).

82
Exilados ou calados compulsoriamente, educadores viram o palco ser tomado
pelo ensino ideológico, tecnicista, burocrático, militarista e direitista que se instalou
por quase 20 anos no Brasil. A discussão sobre a educação nos anos 1960 e nas duas
décadas seguintes voltava seus holofotes para a questão do fracasso escolar. Como
aponta Magda Soares (1989), embora o número de instituições escolares pelo Brasil
tivesse aumentado, não havia escolas em quantidade para todos, e as que havia eram
de qualidade questionável – fazendo ressoar, 100 anos depois, as mesmas questões
apontadas por Ruy Barbosa. Mas isso não podia ser pensado alto, pois corria-se o
risco de ter que explicar nos porões do Doicod essa tentativa de desestabilização da
ordem social.

Pois bem, se não se fala das políticas públicas para educação e se também não
se fala dos conteúdos ensinados nas escolas, falar de quê? Ou melhor, de quem?
Sobrou mais uma vez para o elo mais fraco nessa história – os alunos e suas famílias
– ter que justificar os altos índices de analfabetismo imperantes. E neste terreno os
técnicos da psicologia, da pedagogia e da neurologia criaram raízes cujas batatas
colhe-se até hoje.

Mortatti (2004) analisa criticamente aqueles para quem o empecilho para a


extensão da escolarização brasileira encontrava-se no fluxo de crianças oriundas
das camadas sociais menos favorecidas, em quem identificavam incompetências
linguísticas, dentre outros aspectos que contribuíam para o incremento do fracasso
escolar. Para a autora este fracasso era decorrente de aspectos sociais e políticos
mais complexos.

O problema, obviamente, não poderia ser creditado à ‘incompetência linguística’


das crianças que não conseguiam se alfabetizar. Primeiro, não faz o menor sentido
que tivessem que ingressar na instituição escola já com o conhecimento que ali se
fundaria, dado que se pressupõe que no grupo escolar teriam acesso às normas
cultas da língua. Segundo, a escola e todo aparato político que a sustentava
isentavam-se, mais uma vez, de suas responsabilidades e compromissos com a
educação básica deste país. Mas disso à época nada se podia saber. Essa perspectiva,
aliada à repressão ditatorial em que qualquer pensamento inovador era contumaz
repreendido, fez dos anos 60, 70 e parte dos 80 do século XX, um território fértil

83
para a expulsão escolar dos multi repetentes que não eram compreendidos – ou dir-
se-ia hoje, incluídos – nas suas singularidades sócio culturais.

Segundo Maria Helena Souza Patto (1981 e 1986) o discurso ambientalista /


cultural que imperava na década de 1970, nos EUA e depois no Brasil, focava a
origem dos problemas apresentados em idade escolar às deficiências ou carências
culturais de grandes grupos populacionais desprivilegiados. O ambiente familiar era
responsabilizado por não transmitir os padrões culturais necessários ao
desempenho adequado das tarefas e desafios propostos pela escola e pela sociedade
em geral. As crianças dessas classes sociais seriam culturalmente deficientes e não
desenvolveriam o comportamento necessário ao início da educação formal.

Educadores e psicólogos que ao mesmo tempo explicavam tecnicamente essa


exclusão buscavam uma caracterização psicossocial destes grupos para propor
medidas educacionais que pudessem integrá-los cultural e socialmente. Para
corrigir essas carências das crianças, propunha-se a educação compensatória, na
qual se incluía a aquisição de valores, normas, padrões de conduta e habilidades.
Novamente lições de civilidade se faziam necessárias, sobre padrões educativos de
uma elite que as escolhia! Essa postura remete a cinco séculos antes, lá com os
jesuítas: o Brasil repetia a fórmula de que a cultura e o conhecimento extra-escola
deveriam ser ignorados e/ou substituídos no processo de aprendizagem. A cultura
popular e todos os seus traços de conhecimentos acumulados foram paulatinamente
se dissolvendo nos saberes técnicos sobre a educação e a vida.

Só com a abertura política dos anos 1980 novas discussões puderam ser feitas
com relação à alfabetização. Esta deixaria de ser vista só como um problema da
educação escolar e da falta de cultura da população a que servia, passando a ser
encarada como uma dificuldade a ser enfrentada nos âmbitos econômico, social,
político e pedagógico. Terreno fértil às orientações teóricas de pensadores
sociólogos, historiadores, filósofos e pedagogos, embasados em sua maioria pelo
marxismo, tanto tempo represado pelos anos da ditadura.

Críticas mais contundentes e de repercussões mais extensas com relação às


ideologias capitalistas que permeavam a educação brasileira, provieram de Magda
Soares. Em seu texto ‘Linguagem e escola: uma perspectiva social’ (1989) a autora
aponta para a repetição malograda do discurso pela democratização da educação,

84
que atravessou todo século XX, inclusive seus regimes autoritários. Em análise que
faz da escolarização brasileira na década de 1980, destaca o retumbante fracasso da
democratização da escola que, pela Constituição deveria assegurar todas as crianças
de 7 a 14 anos na escola primária, mas que resultava em índices altíssimos de evasão
e repetência escolar. Soares cunha a expressão ‘escola contra o povo’, ao invés de
escola para o povo.

A pesquisadora observa que ora o discurso sobre mudanças na educação


pendeu para o lado da expansão da rede escolar, ora retornou à melhoria da
qualidade do ensino com diferentes métodos educativos e novos investimentos na
formação de professores. Entretanto, o exame que faz da relação entre população/
escola/governo, é de que a expansão do discurso democratizador provém de
demandas da população por mais e melhores instituições de ensino, às quais os
governos tentavam, lentamente, responder.

Tendo como pano de fundo a falácia capitalista de que a divisão de classes é


decorrente de características e aptidões individuais, Soares (1989) aborda as
diferentes ideologias que justificariam o fracasso escolar de crianças oriundas das
camadas desprivilegiadas da população, afirmando que esta divisão de classes
decorreriam da divisão do trabalho e da propriedade dos meios de produção.

Cita a ideologia do ‘dom’ na qual dever-se-ia garantir escola a todos e, desde este
ponto de igualdade, o sucesso ou o fracasso escolar dependeria exclusivamente do
desempenho de cada um. Este pensamento é baseado no discurso pretensamente
científico de que existem desigualdades cognitivas naturais entre os indivíduos
(medidas pelos testes psicológicos de aptidões e desempenho) e, desta forma, as
capacidades de aprendizagem se mostrariam nos resultados escolares. A escola, não
sendo responsável pelo fracasso deveria, no máximo, atender de modo diferente
cada necessidade de sua população, através da adaptação ou ajustamento dos menos
aptos. Não se considera nesta forma de pensar que as diferenças entre os sujeitos
são intrínsecas à própria condição humana; o que se considera são as diferenças
entre grupos de sujeitos: entre grupos economicamente privilegiados e grupos
desfavorecidos. Chegou-se inclusive, a apregoar que as diferenças sócio econômicas
de diferentes camadas da sociedade, decorriam de aptidões diversas de inteligência.

85
(Ao nosso ver, à semelhança dos higienistas norte-americanos das décadas de 1940-
50).

Outro aspecto ideológico citado por Soares (1989) é o discurso da ‘deficiência


cultural’, em que se apregoava que nas classes dominantes haveria um
desenvolvimento superior no que diz respeito à produção cultural;
consequentemente as camadas populares estariam imersas em pobreza, carência ou
privação cultural, com pouca variedade de experiências, estímulos, incentivos e
oportunidades necessários à aprendizagem. Neste contexto, o papel das escolas
deveria ser de provedor/compensador destas deficiências.

Soares (1989) identifica ainda mais um aspecto ideológico que se punha como
justificativa para o fracasso educacional das camadas populares: o discurso das
‘diferenças culturais’. Desde as ciências sociais e da antropologia, tal pensamento
sustentava que não seria possível falar em ‘deficiência/privação cultural’, uma vez
que todo agrupamento humano é amparado por uma cultura de valores, costumes,
hábitos, diferentes de outros grupos e que lhes garante identidade e existência. Uma
vez que todos os grupos têm uma cultura, hierarquizá-las seria, portanto, incorreto.
O que é elidido desta forma de articulação é que em sociedades modernas em que
há confluência de culturas, os padrões culturais das classes dominantes são
sublevados e estabelecidos como legítimos, ao passo que as outras são tomadas
como subculturas. Isto termina por reafirmar o pensamento das ‘deficiências
culturais’.

Desde esta visão a escola estava imersa na relação dialética entre educação e
sociedade. Como qualquer instituição social, também a escola era reprodutora das
ideologias dominantes e das desigualdades da sociedade de classes. Na reversão
desse quadro, portanto, a escola deveria exercer seu papel combativo e encampar a
luta de classes, solucionando os problemas políticos, sociais e culturais. Combatia-
se o escolanovismo identificado como promovedor do tecnicismo e como
instrumento de autoritarismo ditatorial.

Os problemas migravam de mãos. Não sendo mais questão de incompetência


cognitiva gerada no seio das famílias ignorantes das normas cultas, a questão do
analfabetismo passava a ser o próprio provimento cultural, social e econômico mais
amplo que havia sido negado historicamente a essas camadas populares. Faltando-

86
lhes o básico à vida condigna de uma sociedade letrada – serviços de primeiras
necessidades (saneamento, saúde, moradia) e acesso mínimo a bens de consumo
culturais (livros, peças de teatro, filmes, entre outros) – exigia-se da sociedade e do
Estado que cumprissem seus deveres.

A escola ajudava a (re)produzir o fracasso escolar, portanto precisava ser


repensada em suas funções sociais. Pedagogos de filiação marxista criticavam o
ensino ‘tradicional’ que até então imperava, e que precisava ser rechaçado para que
em seu lugar assumisse o ensino politizado da leitura/escrita. Outros modelos
pedagógicos deveriam ser encontrados, portanto, mais democráticos e mais claros
em seus propósitos alfabetizadores.

Neste sentido, o que Soares (1989) destaca em seu texto, que nos interessa
diretamente com relação a esta tese, é a apreciação quanto ao papel da linguagem
para a explicação do fracasso escolar. A autora identifica nos discursos dominantes
sobre educação, que as relações entre linguagem e cultura constituiriam o núcleo
ideológico da carência cultural, no sentido de que estas diferenças ensejam o
conceito de ‘déficit linguístico’. Isto é, a linguagem usual nas camadas mais pobres
da população seria uma linguagem inferior ou deficiente, dificultando ou impedindo
o acesso à linguagem veiculada pela norma culta – esta, a ‘verdadeira’ linguagem.
Contrapondo-se a esta visão, Soares reafirma a necessidade do reconhecimento dos
aspectos políticos e ideológicos na relação entre classes sociais e linguagem, como
determinante para a concepção que se quer dar para a escola e para a educação da
população em geral.

Em primeiro lugar, a análise sociológica das relações entre escola e sociedade e das
relações linguísticas numa sociedade de classes e numa escola que serve a essa
sociedade [...], mostra ser inadmissível deixar de veicular o ensino da língua materna às
condições sociais e econômicas de uma sociedade dividida em classes. É também essa
vinculação que desvenda, nas situações de comunicação pedagógica, as relações de
forças linguísticas, reflexo das relações de forças sociais e econômicas.

[...] Em segundo lugar, é a análise sociolinguística [...] que tem levado à identificação das
diferenças entre dialetos, necessária à construção de uma metodologia de ensino que, a
partir dos contrastes entre dialetos não-padrão e o dialeto-padrão, possa conduzir
eficazmente ao domínio deste; é, neste sentido, grande a contribuição das diferenças
linguísticas para uma reformulação do ensino da língua materna (SOARES, 1989: 78-
79).

87
Isto é, Soares apontava para a necessidade premente do ensino da língua
materna culta a todos os sujeitos, assim como estabelecia o imperativo de que este
ensino precisava ser reformulado, sem desprezar o que chama de dialetos não-
padrão.

Com tantos esforços empreendidos para se refazer a educação básica no Brasil,


pode-se pensar que não é por acaso que só a partir do fim da ditadura, não só os
índices de analfabetismo continuaram caindo, mas que também o número bruto de
analfabetos do país começou a decrescer.

Foi em fins da década de 1980 que teve início a consolidação da democracia, que
contemplava a educação em seu bojo. A Constituição de 1988, vigente até hoje,
manteve a gratuidade do ensino e a obrigatoriedade da educação primária (que
deveria paulatinamente se estender ao Segundo Grau). Tornou o voto do analfabeto
facultativo, devolvendo-lhe o direito de decisão política confiscado um século antes.
Dispôs ainda sobre o esforço de toda a Nação para a erradicação do analfabetismo
no prazo de 10 anos. Ainda na década de 1980 as Universidades (especialmente as
públicas, mas não só) passaram a oferecer formação continuada para os professores
das redes públicas.

Mas, o que podemos apontar já como enunciado do que vimos se repetir neste
capítulo, desde a catequização indígena, até a enunciação da carência cultural, é que
nos diferentes momentos históricos os discursos impostos sobre a alfabetização
foram gerenciados por elites – antes religiosas, depois políticas, econômicas,
culturais e finalmente intelectuais – que de diferentes formas sempre agiu de modo
a excluir parcela da população do processo de alfabetização.

Cabe agora pensarmos se isto ainda ocorre e, se sim, como.

No clima de mudanças e aberturas que se instalou com a democratização


brasileira em finais da década de 1980, a grande reviravolta no campo da
alfabetização brasileira se deu com a introdução das ideias Construtivistas
desenvolvidas por Emilia Ferreiro, Ana Teberosky e colaboradores, cuja
consideração merece um capítulo à parte.

88
2. CONSTRUTIVISMO – UM MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO?

Em curso de especialização para pedagogos, ministrados em instituição


particular de nível superior, muitos professores me indagam se ‘podem’ usar e
mesmo ensinar famílias silábica aos alunos, ou treino motor por meio de cópias e
exercícios repetitivos, entre outros recursos do chamado ensino tradicional.
Apostando em alguma eficácia no uso destes recursos didático-pedagógicos, ou
aplicando-os às escondidas, os professores primários relatam desafiar a própria
sorte quando ousam questionar ou praticar ações ditas mecânicas e atrasadas que
se contrapõem ao método estabelecido hoje na maioria das escolas. Salvo exceções
– quando a instituição escolar declaradamente adota um método de ensino como o
de Montessori, ou Waldorf, entre outros – as escolas brasileiras são adeptas do
‘método’ construtivista. Mas esta adesão tem consequências... e tem uma história...

A década de 1990 assistiu a debates sobre a educação que procuravam


contrapor-se a antigos métodos enrijecidos de ensino, ao mesmo tempo que
buscavam soluções para o enorme contingente de estudantes primários que
abandonavam as salas de aula para ganharem as ruas ou ingressarem precocemente
no mercado de trabalho. As propostas em elaboração, articuladas por estudos e
pesquisas acadêmicas, fomentaram o surgimento da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional de 1996 (LDB), que dispôs sobre a educação básica formada pela
Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. No centro das novas
proposições estava o conceito de educação que deveria contemplar [...] os processos
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho,
nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil e nas manifestações culturais (BRASIL, 1996: Lei 9.394/1996, Art. 1º).
Surgiram no mesmo ano os Parâmetros Curriculares Nacional (PCNs) – publicados
no ano seguinte – que grosso modo propuseram a revisão do ensino da leitura, da
escrita e dos cálculos (BRASIL, 1997).

Esta revisão levou em consideração, prioritariamente, as concepções teóricas e


as observações práticas das pesquisadoras argentinas Emilia Ferreiro e Ana
Teberosky, e de seus colaboradores, responsáveis por conceituar o processo de
aquisição da escrita infantil, chamado de Construtivismo. Como veremos ao longo
deste capítulo, este pensamento influenciou a elaboração de documentos que
89
orientam as políticas públicas brasileiras em educação, tornando-o a maior
referência nacional no ensino alfabetizador nas últimas décadas. Exatamente pela
extensão de seu alcance, coube-nos também abordar neste capítulo como foi
concebida esta maneira de aquisição da escrita.

2.1.OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAL

O texto do PCN (1997) estabelece os indicadores estruturais dos currículos das


instituições de ensino brasileiras, considerando a função da escola, dos professores
e dos materiais didáticos na educação. Inicia com uma carta do então ministro do
Ministério da Educação e do Desporto, Paulo Renato Souza, que apresenta aos
professores o documento. Escreve que um de seus propósitos é [...] apontar metas
de qualidade que ajudem o aluno a enfrentar o mundo atual como cidadão
participativo, reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres (BRASIL,
1997: 4).

Analisemos as intenções do ministro, considerando em primeiro lugar a


expressão ‘cidadão participativo’. Ao propor a formação de um cidadão ativo, não
dependente e informado, sugere que a escola ofereça elementos qualitativos e não
mais, simplesmente, elementos quantitativos contabilizados pelas vagas nas salas
de aula. Este é um aspecto novo e importantíssimo; um divisor de águas com relação
às preocupações anteriores – mais ou menos explícitas – de formar o cidadão para
exercer funções de submissão às elites sociais. Não só na carta de apresentação, mas
ao longo de todo o PCN lê-se que o papel da escola é ‘formar cidadãos’.

Seguindo novamente os passos de Pêcheux (1988), precisamos nos perguntar o


que é cidadão, uma vez que seu uso disseminado e indiscriminado leva a entender
que é um conceito amplamente conhecido e partilhado por todos da mesma forma.
Entretanto, uma análise mais precisa das palavras do Ministro nos leva ao segundo
ponto de atenção: esses cidadãos formados na escola devem ser ‘ajudados a
enfrentar o mundo’. Sutil, mas não sem consequências, enfrentar significa
empreender um combate, estar do lado oposto a alguma coisa e, principalmente,
dissociar-se dela, não fazer parte dessa coisa: de um lado cidadãos, de outro, mundo.
A que categorias distintas pertencem? Quer dizer que fora da escola a cidadania não

90
é ensinada, ou aquela que é transmitida é menos válida para os propósitos da Nação?
Os cidadãos da escola não são formadores da própria cidadania? Como se verá, esta
visão faz da cultura – principalmente a oral – de ‘fora da escola’ uma classe de
acontecimentos que, ou é deixada do lado de lá dos muros da instituição, ou entra,
desde que sofra adaptações que as torne didáticas.

E um terceiro ponto de análise refere-se à afirmativa de que o enfrentamento


do cidadão se dá com relação ao mundo atual: esta é a expressão que corrobora o
centro desta tese: circunscrever os embates sociais e individuais ao presente é
depreciar o papel e a influência do passado que se faz presente! Justamente a posição
reflexiva e autônoma é aquela que sabe buscar as origens dos pensamentos e dos
antagonismos presentificados, e empreende embate que reatualize e ressignifique
as marcas passadas que persistem.

Desta forma, cidadão é o sujeito sem passado que não pertence ao mundo e que
com ele se debate – é por isto que ele precisa ser ajudado. Implicitamente este
cidadão do Ministro é o cidadão incapacitado pelas agruras do mundo que tem que
enfrentar... será que este cidadão é capaz de aprender?, ou será que mais uma vez
caímos na doutrinação como saída possível?

Vejamos mais de perto algumas passagens importantes do documento.

Não se pretende um modelo curricular homogêneo e impositivo, mas uma [...]


proposta flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais (BRASIL, 1997: 9).
Há, portanto, um expresso desejo de que nos diferentes sítios brasileiros busquem-
se as particularidades educacionais, sejam elas nos diferentes Estados e Municípios,
sejam elas nas diferentes escolas e salas de aula, marcando que não só as
diversidades culturais devem ser consideradas, mas também as didáticas de cada
instituição escolar e de seus professores.

Um preâmbulo sobre as condições da educação brasileira é feito, como forma de


situar as diversas coordenadas educacionais que se seguem. Faz considerações
sobre o desempenho acadêmico dos alunos, sobre a formação dos professores e
sobre o que é o exercício da cidadania. Sobre os alunos, levantamento do Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Básica (MEC/SAEB32, 1995) aponta o alto índice

32
SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) é precursor da Prova Brasil.

91
de discrepância série cursada / idade. Pondera que quanto mais velha uma criança
está nas séries iniciais, pior seu rendimento acadêmico e maiores as chances de
evasão escolar. Avaliação de mais de 90 mil alunos de 4ª e 8ª séries, de 3 mil escolas
públicas e privadas de todo o país, constatou que havia um represamento acentuado
de alunos nas séries iniciais do ensino fundamental – 63% tinham idade superior à
faixa correspondente à série – levando à seguinte consideração:

Mesmo os alunos que conseguem completar os oito anos do ensino fundamental


acabam dispondo de menos conhecimento do que se espera de quem concluiu a
escolaridade obrigatória. Aprenderam pouco, e muitas vezes o que aprenderam não
facilita sua inserção e atuação na sociedade. Dentre outras deficiências do processo de
ensino e aprendizagem, são relevantes o desinteresse geral pelo trabalho escolar, a
motivação dos alunos centrada apenas na nota e na promoção, o esquecimento precoce
dos assuntos estudados e os problemas de disciplina (BRASIL, 1997: 24, grifo meu).

Dito de outro modo, há mais de uma década e meia já eram manifestas


preocupações com a existência de elevados contingentes de alunos que ao final do
primeiro período escolar pouco haviam aprendido. Se os objetivos iniciais eram de
garantir escolas e alfabetizar todos os alunos, constatava-se que a disposição dos
espaços físicos (escola) e seu pleno preenchimento não eram suficientes.

Sobre essa questão, uma das medidas resolutivas do PCN estabeleceu que o
ensino nacional dar-se-ia por ciclos e não mais por seriação. Vários Estados
brasileiros já vinham adotando essa forma estrutural de educação, como o de São
Paulo, que em 1983 sob o governo de Mário Covas implantou o Ciclo Básico de
Alfabetização (CB). No CB a instrução de alfabetização acontecia nas duas séries
iniciais do Primeiro Grau (e não só na primeira), portanto não havia retenção dos
alunos na passagem do primeiro ao segundo ano. O propósito inicial dessa prática
era de evitar a evasão escolar por repetência, mas também de respeitar os ritmos e
a diversidade de aprendizagem de cada aluno – questão importante apontada pela
visão construtivista de aquisição do conhecimento, que já era adotada nas escolas
paulistas.

O ciclo escolar foi determinado pelo PCN para acontecer em todo território
nacional, devendo ser adotado ao longo de toda a educação básica, não só nos dois
primeiros anos escolares. Assim aboliu-se a ‘pré-escola’ para dar lugar à Educação
Infantil (EI), eliminou-se o ‘primeiro grau’ composto de ‘primário’ e ‘ginásio’ para

92
dar lugar ao Ensino Fundamental I (EFI) e Ensino Fundamental II (EFII) e,
finalmente, abandonou-se o ‘segundo grau’ (ou ‘colegial’) para se instituir o Ensino
Médio (EM). Achou-se por bem também aumentar em um ano a instrução básica que
antes se dava em quatro anos; assim, o último ano pré escolar foi incorporado ao
EFI33. Todas essas medidas intencionavam aumentar o tempo da aprendizagem
inicial – a alfabetização – considerada de aquisição essencial para todas as outras
aquisições de saber.

Uma vez que no PCN está mencionado o fracasso da alfabetização, ele também
se manifesta a respeito de suas causas. Seu crédito não recaiu somente sobre o corpo
discente, mas também sobre a [...] baixa qualidade do ensino e a incapacidade dos
sistemas educacionais e das escolas de garantir a permanência do aluno (idem,: 23) e
sobre os instrutores. O Censo Educacional realizado em 1994 apontou que 10% dos
professores não haviam sequer concluído o Ensino Fundamental e que 5% dos que
haviam concluído o Ensino Médio ou Nível Superior não tinham formação específica
em magistério. Além da ausência de formação específica, o PCN questiona a
qualidade da formação pedagógica dos milhares de educadores à frente das salas de
aula, apontando a necessidade de se rever seus conteúdos e metodologias e de
investir no desenvolvimento e nas condições de trabalho o professor.

O documento analisa ainda a tradição pedagógica brasileira apontando quatro


grandes tendências – a tradicional, a renovada, a tecnicista e a sócio-política – já
abordadas no Capítulo 1 deste texto. É relevante que o documento aponte que,
qualquer que seja a orientação pedagógica adotada, ela é sempre maculada por
diversos fatores.

A prática de todo professor, mesmo de forma inconsciente, sempre pressupõe uma


concepção de ensino e aprendizagem que determina sua compreensão dos papéis de
professor e aluno, da metodologia, da função social da escola e dos conteúdos a serem
trabalhados. A discussão dessas questões é importante para que se explicitem os
pressupostos pedagógicos que subjazem à atividade de ensino, na busca de coerência
entre o que se pensa estar fazendo e o que realmente se faz. Tais práticas se constituem

33
Regime de Ciclo – embora o aluno curse a cada ano letivo uma série escolar, embora cada série
tenha conteúdos específicos previamente estabelecidos e, embora cada série escolar tenha um
professor regente responsável, ele (o aluno) não é retido ou promovido senão de um ciclo para
outro. Atualmente o primeiro ciclo comporta cinco anos letivos (Ensino Fundamental I), o segundo
ciclo, quatro anos letivos (Ensino Fundamental II) e o terceiro ciclo, três anos letivos (Ensino Médio).

93
a partir das concepções educativas e metodologias de ensino que permearam a
formação educacional e o percurso profissional do professor, aí incluídas suas próprias
experiências escolares, suas experiências de vida, a ideologia compartilhada com seu
grupo social e as tendências pedagógicas que lhe são contemporâneas.

As tendências pedagógicas que se firmam nas escolas brasileiras, públicas e privadas,


na maioria dos casos não aparecem em forma pura, mas com características
particulares, muitas vezes mesclando aspectos de mais de uma linha pedagógica (idem.:
30).

Essa mesma observação diversos pesquisadores que analisaram as formas de


uso de métodos de ensino, também constataram. Lapuente e Peres relatam, por
exemplo, o que observaram sobre o método da ‘Abelhinha’ usado no Rio Grande do
Sul: No uso cotidiano das professoras, o método sofreu várias adaptações para torná-
lo mais próximo à realidade da turma de alunos, facilitar o processo de alfabetização,
organizar melhor o espaço e o tempo em aula e porque cada professor adapta o saber
a seu fazer (LAPUENTE e PERES, 2010: 130). Considero que a possibilidade de o
professor poder adaptar um método de ensino a seu saber fazer não deve ser
exatamente uma exceção, mas uma condição intrínseca às relações de ensino /
aprendizagem. (Análise mais aprofundada sobre este assunto será feita nos
Capítulos 4 e 5 desta tese).

O texto do PCN registra que na década de 1980 surgia o movimento educacional


que pretendia integrar as abordagens de viés psicológico e aquelas de cunho sócio-
políticos, dando origem ao processo de ensino e aprendizagem marcados por
influências da psicologia genética (baseada no pesquisador suíço Jean Piaget). Essa
teria propiciado uma melhor compreensão dos processos de construção do
conhecimento pela criança e, por conseguinte, um melhor entendimento das
relações entre desenvolvimento e aprendizagem, das relações entre cultura e
educação, das relações interpessoais na arte de conhecer, enfim, uma melhor
compreensão de como se constroem as representações internas de conhecimentos
edificados socialmente.

A ampla menção que o PCN faz ao Construtivismo se deve ao fato de que é essa
referência teórica que permeará todas as considerações curriculares ali feitas.
Embora afirme em alguns lugares que o professor e a escola têm total liberdade de
escolha com relação a como trabalhar com seus alunos, o texto do PCN [...] reconhece

94
a importância da participação construtiva do aluno e, ao mesmo tempo, da
intervenção do professor para a aprendizagem de conteúdos específicos que
favoreçam o desenvolvimento das capacidades necessárias à formação do indivíduo
(BRASIL, 1997: 32) e usa termos do jargão construtivista para delinear o que é
aprender, o que é ensinar, o que se espera da aprendizagem do aluno, qual o papel
do professor, qual a função da escola na socialização etc.

Vejamos, então, sob que bases os Parâmetros Curriculares Nacionais foram


erigidos.

2.2.O CONSTRUTIVISMO DE EMILIA FERREIRO, ANA TEBEROSKY E


COLABORADORES

A preocupação em torno da alfabetização não era uma prerrogativa brasileira,


senão que nas décadas de 1970-80 se estendia por boa parte dos países latino-
americanos, principalmente daqueles também submetidos a regimes ditatoriais. Na
busca de perspectivas que pudessem alterar o quadro do fracasso escolar, duas das
maiores expoentes foram Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, que publicaram suas
pesquisas sob o título ‘Los sistemas de escritura en el desarrollo del niño’ (1979).

Na contramão daqueles que procuravam depositar sobre a pobreza cultural dos


alunos e seus familiares a origem da incapacidade de ascender à leitura e escrita,
essas educadoras tampouco procuraram focar suas preocupações nas questões
ideológicas de exclusão social das camadas mais populares da sociedade. Focaram o
olhar sobre esses alunos procurando esmiuçar como se dava (neles) o processo de
aquisição da leitura e da escrita. Operaram uma reviravolta conceitual em que
métodos, testes de prontidão e materiais didáticos para a alfabetização fossem
deixados completamente de lado, uma vez que a partir deles o ensino da leitura e da
escrita traçava uma via de transmissão de mão única – da centralização no professor,
ao aluno – propondo em seu lugar a observação de quais eram recursos cognitivos
já disponíveis às crianças antes de seu ingresso na escola e como elas usavam estes
recursos cognitivos na ‘construção’ do seu conhecimento.

A língua escrita é um objeto de uso social (e não só escolar), portanto as crianças


encontram leitores ativos e textos grafados por toda parte no mundo, sendo que as

95
letras não estão aí ordenadas como no alfabeto, menos ainda escritas com um só tipo
de fonte. Os métodos tradicionais de ensino, além de ignorarem esse aspecto social
da língua escrita, muitas vezes recomendavam aos pais que não interferissem na
forma como a escola ensinava, como se a criança só pudesse obter informações
nesse espaço institucional. Para Ferreiro e Teberosky (1979) é justamente o
contrário disso: no meio a criança recebe informações variadas e, principalmente,
contextualizadas socialmente (ao passo que na escola geralmente eram
descontextualizadas).

Não é casualmente que os pensadores do Construtivismo iniciam a investigação


com crianças fora da escola. Partem da verificação de que o contato com a escrita
antecede qualquer ritual de alfabetização escolar, seja porque historicamente tem
origem fora da escola, seja porque a criança desde que nasce em uma sociedade
letrada está rodeada pela escrita contida em diversos elementos de seu meio
cultural.

Exemplos sobre essa imersão no mundo letrado existem às dezenas. Tomemos


um: Um dia, aos três anos, no Museu da Língua Portuguesa34: ‘Mamãe, eu vi o ‘A’!’.
Olhares surpresos voltam-se sobre a criança, como se estivessem diante de uma
precoce letrada. Tal espanto talvez não fosse o mesmo se dissesse: ‘Mamãe, eu vi o
gato’. Crianças veem gatos e não letras! Isto porque no senso comum no Brasil, ainda
hoje, ascender às escrituras, aos textos, é tarefa penosa, à qual inúmeras crianças
despendem anos até conseguirem um mínimo desempenho na alfabetização e,
dentre essas, muitas ainda terminam por não saber usar efetivamente os
instrumentos da língua.

Nesse caso não se trata de uma criança alfabetizada, senão que é simplesmente
um sujeito que, entre muitos objetos do meio, já teve acesso também às letras e
palavras escritas. É uma criança que vê e faz desenhos, que ouve histórias, que
folheia livros infantis, que reconta-se pequenas historietas, que rabisca nas paredes
e livros, que ouve cantigas, enfim, que está imersa nas palavras faladas e escritas que
há séculos banham o mundo.

34
Museu da Língua Portuguesa, fundado em 2006 na cidade de São Paulo (SP, Brasil), abriga acervo
predominantemente virtual sobre a língua portuguesa, em que em diferentes suportes procura
mostrar a origem, história e evolução contínua da língua.

96
Em termos de reconhecimento, no seu universo, gato e letra ‘A’ são objetos que
identifica. Em termos de significação para a real entrada na leitura-escrita, é preciso
pensar que ainda há um caminho a ser estabelecido, que a levará a distinguir esses
objetos. E sobre esse aspecto, duas abordagens serão consideradas nesse texto: a do
Construtivismo e a da Psicanálise.

Retomemos, então, o pensamento de Ferreiro e Teberosky. Na visão das


pesquisadoras muito se discutia sobre os métodos de alfabetização utilizados
(analítico X sintético; fonético X global), mas nenhum deles considerava a visão da
criança sobre o sistema de escrita. Partiram do princípio de que a criança não é um
vazio sobre o qual se colocam letras e palavras, tampouco que suas dificuldades e
facilidades de aprendizagem medem-se pelos parâmetros do professor (mas pelos
de cada aluno). Ao se aterem aos métodos alfabetizadores da época, verificaram que
os professores (corroborados pelas instituições escolares) eram os únicos
informantes sobre a língua escrita, que se dava por meio de controle de técnicas de
transcrição dos sons das letras e palavras.

Para as autoras o acesso ao conhecimento se dava de outra maneira: toda


criança seria capaz de assimilar as informações que recebe, de integrá-las a seus
esquemas de conhecimento do objeto e posteriormente operar com elas. Na
linguagem piagetiana isto corresponderia, respectivamente, à assimilação,
acomodação e equilibração. Portanto, nenhum método carregaria em si o
conhecimento, senão que caberia a cada criança sua edificação.

Construção de conhecimento ao invés de ensino técnico baseado em métodos –


essa foi a maior reviravolta do Construtivismo, uma mudança epistemológica
empreendida sobre a aprendizagem da língua escrita e lida e não mais um método
de alfabetização. Essa consideração é fundamental pois a despeito de toda
insistência sobre esse aspecto, a esmagadora maioria das escolas e professores que
se valeram desse conhecimento houveram por bem transformá-lo em ‘método de
ensino’ – pior que isto, um ‘método’ que não comporta nenhuma possibilidade de
uso de elementos tradicionais da didática de alfabetização, tais como família silábica,
uso de elementos menores da língua, cópia ou caligrafia, fonemas da língua, etc.,
todos recursos aos quais os professores muitas vezes gostariam de recorrer, mas
não podem! As consequências de tal acontecimento são, no mínimo perturbadoras,

97
para não dizer por vezes desastrosa. Mas deixemos a análise desse acontecimento
para mais adiante (Capítulo 4) e por enquanto voltemos às elaborações de Ferreiro
e Teberosky.

As pesquisadoras também polemizaram com o debate instituído por adeptos de


diferentes métodos de alfabetização, sobre qual a ordem de se introduzir as
atividades de leitura e escrita – se antes a escrita, ou a leitura, ou as duas ao mesmo
tempo. Para Ferreiro (1985) os países norte-americanos tendiam a oferecer a leitura
antes do ensino da escrita; já em países latino-americanos introduziriam as duas
atividades juntas. Mas de forma geral, em qualquer dos casos se esperava que a
criança soubesse ler antes de ser capaz de escrever por si.

O que estava por trás dessas concepções tradicionais de ensino da língua escrita
era a aprendizagem de um código de transcrição; assim, no mais das vezes, o ensino
da leitura e da escrita circunscreviam-se por técnicas diferentes e separadas de
soletração e cópia, respectivamente. Segundo Ferreiro e Teberosky, contrariamente,
para que a criança pudesse compreender a estrutura do sistema escrito deveria
realizar tanto atividades de interpretação, quanto de produção de texto.

A mudança dessas práticas obrigaria [...] a redefinir o papel do professor e a


dinâmica das relações sociais dentro e fora da sala de aula (FERREIRO, 1985: 39), o
professor deveria acompanhar e compreender os problemas que a criança
enfrentaria na aprendizagem e quais processos e esquemas de conhecimento
encontraria para solucioná-los.

Foram inúmeras as implicações na mudança de papel do professor sugeridas


pelo Construtivismo. Ele teria que abdicar do uso de métodos, dado que esses já
viriam prontos e estabeleciam técnicas de ensino que ignoravam a realidade de cada
aluno e professor em sala de aula; sem material pré-estabelecido, o professor seria
obrigado a também construir conhecimento, preparando cada uma de suas aulas de
acordo com o processo de aquisição de conhecimento de seus alunos (mais uma vez,
sem usar conhecimentos de métodos tradicionais criticados por Ferreiro e
Teberosky); o professor precisaria conhecer cada um deles e sua trajetória no
processo de construção do conhecimento; o professor precisa saber quais seriam e
como se estruturariam cada uma das fases de desenvolvimento cognitivo. Uma
tarefa árdua, portanto, era proposta a estes mestres! Retirando-se os manuais, em

98
seu lugar o professor teria que ir ao mundo conhecer o seu objeto – o aluno – e
construir conhecimento junto com ele. E mais, construir seu próprio material
didático, em função do processo de conhecimento de seus alunos.

Cabe aqui um intervalo nas considerações sobre o que é o Construtivismo para


já vermos de perto algumas de suas implicações práticas.

Muitos professores viram-se perdidos com a nova proposta.; não habituados a


produzir o próprio material didático ou a atentarem à singularidade de cada aluno,
mais fácil seria ter tudo pronto e dizer que se o aluno não aprende, certamente tem
algum déficit. Mas se esse tipo de afirmação caiu em desuso, qual a solução?
Ligeiramente ela chegou na forma de apostilas, que começaram a ser confeccionadas
no interior de cada escola como forma de retratar a realidade de cada uma delas.
Muitas vezes foram feitas pelos próprios professores das instituições, mas de forma
fragmentada e distribuída entre cada um deles – um grupo responsável pelos
conteúdos de matemática, outro de linguagem, e assim por diante. Diferente dos
métodos / cartilhas anteriores, as apostilas esmiuçavam os processos de construção
do conhecimento enfrentados pelos infantes e propunham inúmeras atividades a
serem desenvolvidas a cada etapa, pelo professor. O enfoque deixava de ser dado no
conteúdo oferecido e sua graduação e passava a se dar nas etapas de construção do
conhecimento percorridas pela criança.

Não é difícil deduzir que aquilo que não era para ser um método, rapidamente
se transformou em um: o ‘método construtivista’, amplamente alardeado pelas
escolas.

Um exemplo emblemático desta conduta pudemos perceber nos registros de


atividades encontrados no material de Educação Infantil35 de um dos alunos
ingressantes no 1º. Ano do EFI da EA-FEUSP, no ano de 2011. Os pais levaram à
escola todas as atividades desenvolvidas pela criança desde que ela ingressou na
pré-escola, no ano de 2007. Três acontecimentos chamaram a atenção. O primeiro
de que em todas as atividades havia uma observação escrita pela professora – com
maior ou menor detalhe – em que explicava o que estava acontecendo com o

35
Uma das atividades de pesquisa do PROJETO “DESAFIOS” consiste em analisar o registro dos
materiais e atividades desenvolvidos na Educação Infantil pelos alunos ingressantes no 1º. Ano EFI.
Estes materiais são solicitados aos pais antes do ano letivo e permitem um mapeamento prévio da
heterogeneidade de repertório dos alunos.

99
desenho ou a escrita do aluno: ‘Registro de hipóteses sobre experimento’, ‘Registro
de hipótese da roda de conversa sobre o Patinho Feio’ – vale notar que a palavra
‘hipótese’ aparece indiscriminadamente em todas as atividades. Ora, esta é uma
palavra que no Construtivismo é utilizada em larga escala como nomenclatura
referente ao estágio de compreensão e registro das escritas pela criança – hipótese
pré-silábica, hipótese silábica com valor, etc. – mas que aqui são usadas para
referência a qualquer atividade infantil, como se seu universo fosse feito só de
conjecturas, teorias e cálculos e não de espontaneidade, prazer e desejo. O segundo
ponto que chamou atenção diz respeito às inúmeras ‘Folhas Explicativas’ que a
professora endereçava aos familiares, sugerindo atividades de alfabetização com o
filho, em casa. Dentre estes aconselhamentos havia um que dizia como os pais
deveriam ajudar o filho na produção de desenhos, visando a escrita. O terceiro
ponto, registrado em 2007 – portanto quando a criança contava entre 2 e 3 anos de
idade – mostrava uma folha de atividades cujo título era ‘Experiências com registros
espontâneos’; nesta folha uma série de garatujas infantis eram expostas, ladeadas
pela escrita da professora – ‘Registra suas hipóteses’ – sem nenhuma referência ao
que a criança ‘quis registrar’.

Esse processo de metodologização do Construtivismo acirrou-se com as


produções em série das apostilas, já que muitos especialistas viram no desamparo
docente um filão de produção mercadológica de conhecimento. Nesses materiais
veem-se descritos os estágios cognitivos, as atividades apropriadas a cada um deles,
orientações detalhadas de como o professor pode avaliar cada aluno e propor
desafios que os façam avançar em suas ‘hipóteses’ de conhecimento e, por fim,
conteúdos apropriados a cada um dos estágios da criança. Mudou-se o santo, mas o
milagre permaneceu o mesmo. Vejamos um exemplo (Figura 4) extraído do material
didático da EA-FEUSP, para atividades de letramento e alfabetização para alunos de
1º. Ano EFI:

100
Figura 4: Excerto retirado da página 23 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e
Alfabetização Linguística’ do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

É importante notar que as coordenadas dadas ao professor (letras minúsculas


em azul) pressupõem que ele deve ser dirigido minuciosamente em suas ações,
tanto práticas para estruturar sua aula, quanto teóricas sobre o quê e como deve
avaliar o aluno. É claro que o professor tem toda liberdade de seguir ou não as
insígnias do manual, mas também é evidente que de saída ele é tomado como semi-
capaz de compreender e executar sozinho seu ofício. O docente é levado a investigar
o saber prévio dos alunos, mas o seu saber não é considerado. Não encontramos
neste livro didático nenhum momento em que ele é orientado a fazer atividades
correlatas às sugeridas, que provenham de seu cabedal. Esta desapropriação (ou
falta de reconhecimento) do lugar de professor como agente e ativo, que já figurava
nas cartilhas do século retrasado, continuavam, mesmo que subliminarmente,
transpassando os canais oficiais do Estado nos livros didáticos. Esta prática não
passava desapercebida pelo professor que acabava tendo pouca autonomia de ação,
quer no planejamento de suas aulas, quer no contato direto e individualizado com
alunos e familiares.

O que efetivamente se alterou foi a estrutura de dispor o conhecimento e a


forma de avaliar cada conteúdo dado. No entanto os conteúdos continuaram vindo
prontos (ou semi prontos) e de forma igualmente processada, agora sem os
elementos criticados nos métodos anteriores – como já mencionado, sem as famílias
silábicas, os elementos menores da língua, a cópia, o treino motor, etc.

Retomo as propostas originais do Construtivismo.

Por quais práticas a criança seria introduzida à língua escrita e como isso se
apresentaria no contexto escolar?

101
Emilia Ferreiro, Ana Teberosky, Yetta Goodman, Hermine Sinclair, entre outros
teóricos do Construtivismo, propõem novo olhar que priorize a natureza do objeto
de conhecimento – a língua escrita – no processo de alfabetização. Consideram a
questão pela caracterização do sistema de representação alfabética da linguagem e
pelas concepções que aprendizes e ensinantes têm desse objeto.

2.3.A LECTOESCRITA DO CONSTRUTIVISMO

No texto ‘Reflexões sobre a alfabetização’ Ferreiro (1985) considera duas


formas de conceber a escrita – como representação da linguagem, ou como
transcrição gráfica das unidades sonoras – ressaltando que cada uma carrega em
seu bojo consequências distintas, não só à pedagogia mas, e principalmente, à
aprendizagem infantil. Declaradamente a autora é adepta da primeira concepção.

Como todo sistema de representação, a escrita também guarda com relação à


realidade que representa, algumas propriedades e relações intrínsecas a ela e
simultaneamente exclui algumas propriedades e relações que são próprias da
realidade. A representação mantém semelhanças com a realidade e ao mesmo
tempo se diferencia dela. Sem essa distinção não seria representação, mas outra
instância da realidade.

Ferreiro e Teberosky (1979) destacam que essa afinidade pode ser tanto
analógica, em que a representação conserva as relações de propriedade do objeto
da realidade (por exemplo, as linhas de um mapa conservam as relações de
propriedade entre dois pontos, tal qual se verifica na realidade), quanto arbitrária,
em que a representação não tem relação com a realidade (por exemplo, as divisões
das fronteiras políticas de um território, que são postas no mapa, mas que não
existem necessariamente traços correspondentes na realidade). De qualquer modo,
todo sistema representacional resulta de processo histórico de construção e, tanto
a analógica, quanto a arbitrária, não existem de forma pura, mas mesclam-se em
maior ou menor grau.

102
Por outro lado existe o código, que não é representação, mas a transcrição
alternativa baseada em um sistema representativo já instituído, predeterminado
(por exemplo, o código telegráfico com relação à língua).

Diante dessa colocação as autoras não tardam em estabelecer o ponto de partida


com relação à apropriação da escrita: este não é um código, mas a decorrência da
edificação de sistema representacional.

Como as crianças hoje nascem em meio letrado, ou seja, imersas em sistema


representacional já instituído historicamente, poder-se-ia supor que a
aprendizagem da escrita seria o processo de codificação da língua. Mas não: os
usuários que ingressam na escola para apreender os dois sistemas
representacionais (de números e da linguagem) precisam reconstruir para si o
sistema de escrita social, enfrentando as mesmas dificuldades conceituais do
processo que lhe deu origem. Elas ‘reinventam’ o sistema alfabético devendo
entender como se constrói e sob que regras se produz.

Para chegar a compreender o que é a escrita, a criança é obrigada a deparar-se


com a questão – epistemológica – de saber qual a natureza da relação entre a
realidade (a língua falada) e a sua representação (a escrita). Quais são então, os
parâmetros privilegiados na representação da língua escrita que devem ser
enfrentados?

Segundo Ferreiro, [...] a partir dos trabalhos definidores de Ferdinand de Saussure


estamos habituados a conceber o signo linguístico como a união indissolúvel de um
significante com um significado, mas não avaliamos suficientemente o que isto
pressupõe para a construção da escrita como sistema de representação (FERREIRO,
1985: 13). Para ela as escritas alfabética e silábica são sistemas representacionais
em que se veem mais claramente as diferenças entre significantes, ao passo que a
escrita ideográfica representa prioritariamente diferenças entre significados. Mas
de qualquer forma nenhuma escrita é capaz de representar completamente a
natureza bifásica (significante / significado) do signo linguístico; assim como
nenhuma delas é pura e capaz de retratar exclusivamente as diferenças entre
significantes (no sistema alfabético, que também retrata um pouco das diferenças
dos significados nos recursos ortográficos) ou entre significados (no sistema

103
ideográfico, que também retrata um pouco das diferenças dos significantes no uso
de recursos fonéticos).

A apreciação de Ferreiro foi de que a escrita era antes tomada como simples
código de transcrição. Alfabetizar significava converter unidades sonoras em
unidades gráficas, priorizando o exercício e discriminação perceptiva visual e
auditiva. A linguagem era reduzida a sons (contrastes sonoros no nível do
significante) e a escrita a transcrição do som para um signo visual. A aprendizagem
alfabética encerrar-se-ia na aquisição de técnicas.

De seu lado, Ferreiro avalia que embora se possa saber falar adequadamente, ou
discriminar bem elementos visuais e auditivos, essas habilidades não resolvem a
compreensão da construção do sistema representacional da escrita. Só pela via do
uso técnico dos estímulos é impossível perceber, por exemplo, porque alguns
elementos essenciais da língua oral (como a entonação) não estão retidos na
representação, ou porque nela palavras de classes diferentes são tratadas como
equivalentes, entre outras questões.

Ferreiro e Teberosky (1979) observam precocemente nos infantes indicadores


de que compreendem a natureza da leitura:

[...] vemos que desde muito cedo tende (a criança) a imitar os modelos do mundo,
mesmo quando sua função ou sua intenção não lhe sejam transmitidas explicitamente.
[...] Assim também pode fazer ‘como se’ lesse, reproduzindo os gestos observados no
adulto: olha com atenção os desenhos, segura o livro de determinada maneira e
inclusive pode chegar a relatar o que vê utilizando ‘marcas’ (de entonação ou lexicais)
que indicam claramente a intenção de diferenciar este ato de outros atos verbais 36
(FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 208, tradução minha).

As pesquisadoras também observam que as crianças reconhecem a natureza da


escrita:

Mas, obviamente, a criança é também uma produtora de textos, desde muito pequena.
Pode-se encontrar intenções claras de escrever – diferenciadas das intenções de

36
[...] vemos que desde muy temprano tiende [el niño] a imitar los modelos del mundo, aun cuando
su función o su intención no le sean trasmitidas explícitamente. [...] Así también, puede hacer ‘como
si’ leyera, reproduciendo los gestos observados en el adulto: mira con atención los dibujos, sostiene
el libro de determinada manera e incluso puede llegar a relatar lo que ve utilizando ‘marcas’ (de
entonación o lexicales) que indican claramente la intención de diferenciar este acto de otros actos
verbales (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 208).

104
desenhar – em uma criança de classe média, habituada desde pequena a usar os lápis e
papéis que encontra em sua casa, desde meninotes, ou antes até (2 anos e meio ou 3
anos)37 (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 239, tradução minha).

Ainda antes da alfabetização formal as crianças produzem espontaneamente


desenhos sobre os quais colocam ‘conjunto de palavras’ (garatujas ou ‘fingimentos’
de escrita) que elas identificam como grafias que devem ser lidas, interpretadas. A
criança não aprende só quando está diante de um ensino sistemático. Saber algo a
respeito de certo objeto não quer dizer, necessariamente, saber algo socialmente
aceito como ‘conhecimento’. ‘Saber’ quer dizer ter construído uma concepção que
explica certos conjuntos de fenômenos ou de objetos da realidade (FERREIRO, 1985:
17). A afirmativa de Ferreiro é fundamental para o entendimento de como a autora
e Teberosky situam o saber, pois é o que lhes permitirá, por exemplo, ler água ali
onde a criança primeiro escreve A e depois AUA, até que se aproprie da grafia
estabelecida socialmente.

No tempo de construção do conhecimento a criança erra do ponto de vista


formal, mas é só o erro que lhe permitirá compreender e contextualizar
efetivamente o acerto posterior. Entretanto essa não é a única consequência
importante do pensamento construtivista: é também o que permite entrever uma
autoria crítica, revolucionária que propõe mudanças ao conhecimento estabelecido.

Construir um conhecimento significa partir de esquemas conhecidos de causa e


efeito e incorporar a eles novos elementos apreendidos do meio; essas novas
informações modificam o esquema anteriormente conhecido e com ele a forma
como se vai agir no mundo. O indivíduo confronta-se a todo instante com a
adequação de seu conhecimento à realidade, vendo-se obrigado a rever
constantemente seu saber.

As primeiras escritas (grafias) da criança aparecem como linhas onduladas ou


quebradas (zigue-zagues), contínuas ou fragmentadas, ou por elementos repetidos
(linhas verticais ou bolinhas). Mas tradicionalmente sobre esses só se viam os
aspectos gráficos (qualidade e orientação do traço, distribuição espacial) e não os

37
Pero, obviamente, el niño es también un produtor de textos, desde temprana edad. En un niño de
clase media, habituado desde pequeno a hacer uso de los lápices y papeles que encuentra en su
casa, pueden registrarse intentos claros de escribir – diferenciados de los intentos de dibujar – desde
la época de los primeiros monigotes o aun antes (2 años y medio o 3 años) (FERREIRO e TEBEROSKY,
1979: 239).

105
construtivos, em que se veem o que a criança quis representar, como e o quê utilizou
para fazer as diferenciações das representações. Ferreiro e Teberosky (1979)
partem de uma pergunta central para iniciar a investigação sobre a escrita infantil:
quando a criança começa a interpretar sua escrita como algo diferente do desenho?

Discípula do suíço Jean Piaget, Ferreiro se valeu das teorias da psicogênese do


conhecimento para pesquisar como a criança, ainda analfabeta, fazia seu percurso
na aquisição da leitura e escrita. Esse trabalho era dedicado ao período anterior à
escrita convencional – período menos estudado nas teorias de alfabetização de até
então e menos reconhecido socialmente. Ele mostra os processos constitutivos e de
apropriação do conhecimento: busca de regularidade, de princípios gerais, de
hipóteses que inicialmente parecem desordenadas e confusas, mas que não o são.

Ferreiro (1985) aponta a similaridade entre o processo de apropriação da


linguagem escrita e os processos de apropriação dos objetos físicos e lógico-
matemáticos descritos por Piaget. Através do método de exploração crítica de seu
orientador, junto com Teberosky, estudou a fundo centenas de crianças de
diferentes países e línguas e de diferentes classes sociais, em idades anteriores ao
ingresso na alfabetização formal (de 3 a 5 ½ anos). Para o Construtivismo a escrita
evolui de forma regular em diferentes meios culturais, situações educativas e
línguas.

As autoras partem do princípio de que, exposta à escrita, a criança cria hipóteses


para decifrar que classe de objetos carrega essa inscrição. Começam a investigação
sobre a escrita infantil pelos desenhos: para a criança o primeiro problema se coloca
na fronteira entre esses e a escrita.

A criança pequena desenha, faz garatujas, riscos e círculos, que pouco a pouco
ganham conformações figurativas. Em determinado momento, até por volta dos 4 ½
anos, ela acrescenta a suas reproduções gráficas um elemento que reproduz algum
traço semelhante ao do desenho, mas que chama de ‘letra’. Com essa designação, no
entanto, o pequeno ainda não significa uma representação, ou seja, a letra não é o
substituto de algo, ela é simplesmente letra, é coisa diferente do desenho, mas ainda
é um objeto como outro qualquer do mundo, que coexiste com a imagem. Ferreiro e
Teberosky descrevem um exemplo no qual uma menina faz dois desenhos e sobre
eles coloca signos:

106
Cada desenho vai acompanhado de um signo. [...] O signo utilizado é uma curva semi
fechada; o notável é que a dimensão da curva é proporcional à da cama: uma curva
grande para uma cama grande e uma pequena para a caminha. O signo mal se separa do
objeto, é próximo ao ideograma, manifestando uma confusão entre o que é significado
pelo signo e o significante mesmo [...] exemplo da dependência em que se encontra o
signo com relação ao desenho38 (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 240, tradução minha).

As pesquisadoras denominam isso de grafia-desenho, uma ‘letra’ próxima à


forma do desenho. A arbitrariedade das formas e ordenações dos grafismos da
escrita, portanto, são as primeiras características da escrita pré-escolar (ainda que
nessa arbitrariedade a criança use letras convencionadas socialmente, só porque
estão à sua disposição).

As diferenças entre as marcas gráficas figurativas e não figurativas e a


constituição da escrita como objeto substituto (representacional) de outro objeto,
estabelecem-se na dialética da construção do conhecimento. Isto é, a cada estágio
cognitivo a criança se põe questões que a levarão a diferenciar o desenho da ‘sua’
letra (domínio icônico em que as formas do grafismo reproduzem as formas do
objeto), de uma escrita em que as formas do grafismo não reproduzem as formas do
objeto.

Em seguida, o infante passa a registrar ‘suas letras’ com traços diversos


daqueles do desenho, como forma de diferenciação entre ambos, chamados por
Ferreiro e Teberosky de grafia-forma-qualquer.

No princípio tanto essa letra quanto a grafia-desenho a criança as coloca dentro


dos limites do desenho, como uma maneira de assegurar seu pertencimento a ele: A
necessidade de incluir as grafias dentro do desenho responde a uma razão bem
precisa: [...] assim incluídas são apenas ‘letras’ que ainda ‘não dizem’ senão que
guardam uma relação de pertinência tão frágil que se desvaneceria se a inclusão
dentro dos limites da figura não a garantisse (FERREIRO, 1981: 105). É uma escrita

38
Cada dibujo va acompanhado de un signo. [...] El signo utilizado es una curva semi-cerrada; lo
notable es que la dimensión de esta curva es proporcional a la cama: una curva grande para la cama
grande y una pequeña para la camita. El signo se separa mal del objeto, es próximo al ideograma,
manifestando una confusión entre lo que es significado por el signo y el significante mismo. [...]
ejemplo de la dependencia en la que se encuentra el signo com respecto al debujo (FERREIRO e
TEBEROSKY, 1979: 240).

107
contextualizada e indissociada da figura que acompanha. Vejamos dois exemplos
que Ferreiro fornece desse processo infantil:

Nanis aos 4;1 tenta desenhar um boneco. Logo se lhe pede que coloque algo com letras,
e faz uns círculos que são tanto letras como narizes do boneco. (Dois meses antes o
mesmo Nanis, com figuras recortadas, colocava uma única grafia, porém dentro da
imagem).

Jorge (4;9) prepara os cartazes para a loja de brinquedos. Para os soldados coloca uma
só grafia no cartão.

o que colocaste? – ‘soldados’

é um soldado ou uma letra? – ‘é um soldado’

e que diz? – ‘uma letra’ (FERREIRO, 1981: 104).

No início a diferença entre desenho e letra não é dada pela diversidade de


grafias, mas [...] pela intenção de quem as produz, segundo a autora (FERREIRO, 1981:
106).

Ora, é importante perceber que essas ‘letras’ que os pequenos dizem ter feito,
são assim nomeadas quando a pesquisadora pergunta o que são. Há no método da
‘exploração crítica’ intervenção constante do investigador que, para saber o quê e
como a pessoa pensa, precisa questioná-la e assim chegar a entender como o
conhecimento foi pensado e construído. Mas também podemos fazer uma
observação psicanalítica sobre isso, que veremos ter consequências para a
edificação do saber de cada um. A arguição, ao mesmo tempo em que situa o sujeito
em um contexto, é também demanda formulada por aquele que pergunta. Ao
perguntar ‘é letra ou soldado’, o Outro formula uma pergunta que também é um
pedido à criança, em que ‘letra’ tem relevância. Se perguntasse ‘é soldado ou fuzil’, a
chance de a resposta ser ‘é letra’, seria bem menor. Ao ouvir ‘letra’ como opção, a
criança responde antes de qualquer coisa ao pedido do Outro. Estabelece-se uma
relação de troca, condição de entrada na cultura, em que poder-se-ia imaginar a
posição infantil: ‘Ponho letras se é o que queres e se aí me reconheceres’.

A letra já está no mundo e a criança convive com ela desde que nasce, como
dizem Ferreiro e Teberosky. Entretanto o infante só olha para a letra e compreende
o seu sentido se alguém a nomeia e significa, primeiro subjetivamente, depois

108
socialmente. Sozinha a criança não tem acesso a qualquer objeto do mundo,
tampouco a letra.

Essa condição de troca significativa que depende inteiramente da relação que se


estabelece entre dois sujeitos é um elemento do qual as autoras não tratam. Desde
as teorias piagetianas de construção do conhecimento, a criança sozinha explora o
seu meio e o assimila de acordo com o estágio de desenvolvimento cognitivo em que
se encontra: é a interação da criança (e os recursos intelectuais) com o meio (e seus
objetos a serem conhecidos). O professor é aquele que introduz uma questão para a
criança, mas de uma forma supostamente não interventiva. Como se verá mais à
frente, o que é considerado no Construtivismo é a relação de cooperação e
intercâmbio entre pares de crianças – assunto mais abordado por Teberosky do que
por Ferreiro – que se insere na concepção cognitiva, e não na subjetiva como para a
psicanálise. Mas adiemos essa questão para retornarmos à escrita da criança no
Construtivismo.

Pois bem, a criança desenha e põe dentro dele elementos que chama de letra. É
preciso então, que faça a passagem do desenho-letra para a letra em si, para a
representação escrita, distante da imagem ou do objeto que quer designar. O
primeiro passo nessa direção é o infante escrever fora das bordas do desenho (ao
lado ou contornando-o) e introduzir variedades gráficas alternando bolinhas,
pauzinhos, cruzinhas, etc., reconhecendo que as letras se organizam em série no
espaço, uma após a outra. Geralmente nessa fase a quantidade de elementos-letra
que coloca acompanha a quantidade de elementos da imagem: quanto mais detalhes
no desenho, mais letras aparecem; é o espaço figurativo que determina o limite do
que se escreve.

Nessa fase ainda as mesmas letras postas com certa ordenação dizem o nome
da coisa ao lado da qual está, independentemente do objeto retratado: uma
sequência qualquer de grafias (AIO) que ladeie a imagem de uma árvore, quererá
dizer ‘árvore’; estas mesmas letras (AIO), ao lado de um lápis, dirá ‘lápis’. Da mesma
forma, dois conjuntos ordenados de letras distintas (AOR e ALU), postos ao lado da
mesma imagem (por exemplo ‘árvore’), designarão a mesma coisa, isto é, ambas
escrevem árvore.

109
Longe da imagem as letras não querem dizer nada, ou são simplesmente letras.
O primeiro significado da letra é, portanto, associado ao objeto que o acompanha. As
letras dizem o nome do objeto, que a imagem sozinha não diz. Dizer algo nesse caso
é referir-se à figura que o texto acompanha, e só a ela. Ferreiro e Teberoaky (1979)
descrevem um exemplo em que, no nível da fala, a criança diz minha boneca come
‘alfajor39’ (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 246, tradução minha), mas se escreve algo
ao lado da imagem do ‘alfajor’, diz simplesmente ‘alfajor’: segundo as autoras, é um
nome puro, sem representação.

Para que as letras constituam um sistema independente do grafismo-figurado e


passem a ‘dizer algo’ por si só, é preciso que a criança ande mais um pouco. Um dos
indícios de mudança de compreensão da função das letras – quando passam a ser
um elemento substitutivo – se dá aos 4 ½, 5 anos, quando a criança começa a
representar cada imagem-desenho por um caractere-letra, diminuindo
drasticamente o número deles.

Na fase seguinte o nome passa a ser protótipo do escrevível. Quando isso


acontece, não é mais o espaço livre do papel que contém o cem números de letras
com os quais a criança escreve os nomes, mas cada nome será representado por um
número limitado de grafias – deixa de ser uma letra para cada imagem-objeto, para
ganhar um número mínimo de letras com as quais é possível escrever um nome. As
autoras constataram que esse número de grafias gira em torno de três letras (mais
ou menos uma). Mas, ainda que a criança fixe esse número para todas as palavras,
ela varia a sequência das letras, mostrando que percebe a diferença entre os objetos
entre si e as escritas entre si – OIO, ATI, MUO, CGU, etc.

A criança busca uma regra geral para fixar o mínimo e o máximo de letras para
as palavras. Uma vez fixado o número mínimo com que vai escrever, o número
máximo varia, inicialmente, conforme o objeto que se vai nominar seja maior, mais
pesado, com mais detalhes, etc. A criança também pode por uma letra para cada
elemento de imagem (6 gatos na imagem = 6 letras). Até esse momento a criança
está na fase pré-silábica, estágio da construção do conhecimento escrito que já sabe
que as letras representam algo, que é preciso seriá-las e ordená-las de modo que

39
Mi nenê come alfajor (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 246).

110
cada palavra seja diferente da outra. Mas as letras aqui ainda não têm valor sonoro
estável.

Como ajustar a palavra escrita à quantidade de objetos, ou à quantidade de


sílabas da palavra, configura-se como mais um problema para os pequenos. Quando
um signo designa um só objeto, não há problemas. Quando para cinco objetos
colocam-se cinco signos, também a significação é clara (um para cada um). Mas
quando um único objeto é correspondido por três grafias, por exemplo, qual o
sentido de cada uma das letras? A escrita é composta por partes mínimas
necessárias e constatar essa exigência torna também necessária a interpretação
simultânea da escrita.

No instante em que os elementos da escrita são observáveis é que é preciso


compreender sua relação com o todo. A palavra se decompõe em partes (sílabas),
mas a criança ainda não consolidou a atribuição de sentido a cada uma delas.
Inicialmente a ‘hipótese silábica’ serve para controlar a escrita já feita e não para
controlar sua execução, isto é, a criança antes escreve, depois lê silabando e
atribuindo a cada grafia um pedaço da palavra que quer nomear. As letras valem o
que a criança determina que valha: quantidade e variedade. Qualquer letra serve a
qualquer sílaba.

Em seguida, dada a hipótese da quantidade mínima de grafias (3, + ou – 1) a


criança entra em conflito quando se depara com palavras dissilábicas ou
monossilábicas – acredita que precisa por três letras, uma para cada sílaba, e aí,
como fazer com os monossílabos? Além disto, compara o seu escrito com o de
adultos e percebe que aí há mais letras do que as que usou. A escrita não se regula
ainda por diferenças ou semelhanças entre os significantes sonoros – atenção que
se estabelecerá a seguir.

A criança tenta, então, novas soluções, para o que a fonetização da escrita (que
se inicia no período silábico) vem acorrer. Busca variações de letras que às vezes se
fazem no eixo qualitativo e às vezes no eixo quantitativo, já que a coordenação dos
dois eixos ao mesmo tempo é ainda muito difícil. Ela começa a atentar às
propriedades sonoras do significante.

Depois as letras começam a ganhar valores sonoros (silábicos) estáveis e a


criança passa a estabelecer correspondência delas no eixo qualitativo: principia a
111
escrita de partes sonoras semelhantes por letras semelhantes. Progressivamente a
hipótese silábica começa a se desestabilizar: vê-se obrigada a engendrar um novo
processo de equilibração, como apontaria Jean Piaget.

O recorte fonético da palavra será posterior ao recorte silábico. Enquanto as


vogais se estabilizam rapidamente, as consoantes começam assumindo o valor
silábico em função das iniciais das palavras de grafias já conhecidas – geralmente o
nome próprio: M é MA de Maria, R é RI de Ricardo.

As autoras dão especial destaque à questão da escrita do nome próprio pois,


mesmo que a criança não compreenda seu modo de composição, ele é ao mesmo
tempo fonte de informação e de conflito: é elemento para compreender a passagem
de correspondência da lógica infantil (uma letra, qualquer, para cada sílaba) à
correspondência estabilizada da própria escrita. No texto estabelecido por Ferreiro
e Teberosky (1979), lemos: O conflito entre a hipótese silábica e as formas fixas
recebidas do meio ambiente se evidencia com maior clareza no caso do nome próprio40
(FERREIRO e TEBEROSKY, 1979: 261, tradução minha), ao que se seguem vários
exemplos de observação da escrita do nome próprio e de outros elementos que se
conflitam com esta escrita.

Em uma edição brasileira do texto de Ferreiro (1985), esta questão aparece da


seguinte forma:

[...] é o primeiro exemplo claro de escrita livre de contexto, de escrita cuja interpretação
não depende da imagem que se situa em suas proximidades, ou do objeto que lhe
fornece base material;

[...] provê uma informação segura acerca de que a ordem dos elementos não pode ser
qualquer uma (pelo menos a inicial do nome próprio converte-se rapidamente em ‘a
minha’, ‘a do meu nome’, muito antes de funcionar como primeira sílaba deste);

[...] funcionará como fonte permanente de conflitos, já que as sucessivas hipóteses que
a criança vai elaborando – e muito particularmente a hipótese silábica – não recebem
confirmação ao enfrentar-se com a escrita do nome próprio.

Em suma, os processos de construção do nome próprio são em tudo semelhantes aos


processos de construção dos outros nomes, exceto – e nisto reside toda a diferença –
que as letras não são quaisquer (FERREIRO, 1985: 121).

40
El conflito entre la hipótesis silábica y las formas fijas recibidas del médio ambiente se evidencia
com mayor claridade en el caso del nombre próprio (FERREIRO e TEBEROAKY, 1979: 261).

112
(Apontemos aqui que essa questão em torno da escrita do nome próprio, tão
cara ao Construtivismo, também o é para a psicanálise. Mas entre as duas visões há
leituras diferentes, das quais trataremos mais adiante, nos Capítulos 4 e 5).

Na pesquisa empreendida pelas autoras nas décadas de 1970-80, constataram


que tanto crianças de classe média, quanto de classe baixa enfrentavam as mesmas
questões. O que as diferenciava é que as primeiras já entravam na escola
reproduzindo a série de letras do seu nome e as outras só tinham contato com isto
na escola.

A criança retira do seu meio as informações que serão efetivas à sua construção
da escrita, mas essas precisam ser integradas a conhecimentos já estabilizados.

A criança ingressa no esquema silábico-alfabético – esquema transitório entre


o anterior (silábico) que abandonará e o futuro (alfabético), que construirá – em que
começa a constatar que a sílaba é composta por elementos menores (as letras) e por
isto não basta por uma letra para escrever uma sílaba; ao mesmo tempo, percebe
que também não basta repetir a mesma letra para formar uma sílaba (internamente
as sílabas têm letras diferentes e, entre uma sílaba e outra, não há regularidade de
suas grafias, nem quantitativa, nem qualitativamente).

Uma das colaboradoras da pesquisa sobre o Construtivismo – Yetta Goodman


(1981) – considera que são três os princípios do desenvolvimento da escrita:
funcional, linguístico e relacional. O funcional incrementam-se à medida que a
criança usa e vê usar a escrita no cotidiano, significando-o em cada um dos
momentos: observa como se escreve uma carta entusiasmada, como o irmão mais
velho reclama de suas lições, como a mãe faz sua lista de compras, etc. Ao constatar
as diversas atividades de lectoescrita, constrói para si a função de cada uma e cria
hipóteses sobre quem e como se escreve. O princípio linguístico refere-se ao fato de
a criança perceber que a escrita é organizada e tem formas, direção, convenções
ortográficas, pontuação, sintaxe. Por fim , no princípio relacional a criança percebe
que a linguagem (escrita ou oral) é um sistema de símbolos que se relaciona com um
significado ou ideia e com a realidade que cada uma representa; percebe também
que há aspectos da fala e da escrita que se relacionam entre si, mas não como
correspondência direta do som com as letras, senão que é uma relação complexa que
comporta a incidência de vários fatores.

113
Essa divisão dos princípios, embora seja didática, não se apresenta à criança
separadamente; ela é convocada a lidar com todas ao mesmo tempo e segundo
Goodman, [...] aparecem num ambiente sócio-cultural complexo e numa ordem
complexa de formas para propósitos complexos (GOODMAN, 1981: 99).

Ferreiro critica os métodos de alfabetização repetitivos e sem sentido como os


de ‘vovó viu a uva’, que [...] podem existir como formas vazias, repetidas mas não
compreendidas, enquanto que a verdadeira escrita, a que não aparece no quadro-
negro nem nos cadernos escolares, segue seu próprio caminho (FERREIRO, 1981: 122).
Acrescenta ainda:

A construção da escrita na criança não é alheia à epistemologia. Ou concebemos a


escrita como uma marca cuja função se desvela através dos intercâmbios sociais, porém
cuja estrutura permanece opaca, ou supomos que a estrutura do sistema – melhor dito,
sua reconstituição enquanto sistema – é parte necessária do processo de apropriação.
Se compreendemos que o problema da criança não consiste em identificar esta ou
aquela grafia em particular, em recuperar esta ou aquela série de grafias, senão em
compreender a estrutura própria do sistema, a ‘pré-história da escrita’ adquire de
imediato relevos epistemológicos. Quando compreendermos a fundo as implicações
epistemológicas deste processo teremos dado, quem sabe, um passo importante na
compreensão da constituição dos objetos sociais enquanto objetos de conhecimento
(FERREIRO, 1981: 123).

Nenhuma prática pedagógica é neutra – todas têm uma forma de conceber a


aprendizagem e o objeto desta aprendizagem – são essas práticas e não os métodos
em si que têm efeito sobre a aprendizagem. Conforme se coloque a relação entre o
sujeito e o objeto de conhecimento, e conforme se caracterize a ambos, certas práticas
aparecerão como ‘normais’ ou como ‘aberrantes’ (FERREIRO, 1985: 31). É exatamente
por mais essa consideração que Ferreiro não faz do Construtivismo um método de
aprendizagem. Além de toda a crítica que empreende às técnicas e materiais
didáticos tradicionais para a época, na sua visão os métodos acabam engessando a
práxis pedagógica, enquanto preconiza que o conhecimento é construído por cada
um, inclusive pelo professor.

2.4.A COOPERAÇÃO ENTRE PARES

Ana Teberosky, parceira de Ferreiro nos estudos da psicogênese da leitura e da


escrita, propõe-se a abordar a questão considerando as relações grupais dos
114
infantes. Segundo a autora, no percurso de construção da lectoescrita [...] as crianças
pré-escolares podem compartilhar e confrontar com outras crianças suas concepções
acerca do sistema, através da interação com o objeto e entre os sujeitos (TEBEROSKY,
1981: 124-125).

Considera que a aprendizagem não é uma atividade individual, mas depende de


esforço coletivo da humanidade. Isto é, a criança faz uma apropriação individual –
embora não solitária, já que na situação de aula está privilegiadamente inserida em
um grupo – de um fenômeno social. Na escola ela interage com adultos e com seus
pares, com quem pode compartilhar interesses, conhecimentos e necessidades,
dentre os quais está a compreensão da escrita. Em atividades comuns a todos os
alunos, pode estabelecer trocas e ter retorno do andamento de suas tarefas.
Teberosky analisou (no momento em que empreendeu essa análise, nas décadas de
1970 e 1980) que as escolas tendiam a desconsiderar e até a proibir esse tipo de
intercâmbio entre o corpo discente, por acreditarem que o que se propagaria de um
aluno a outro seriam os erros. Na visão da autora deveria se dar justamente o
contrário, ou seja, a estimulação de encontro e troca entre as crianças, para que
pudessem confrontar seus diferentes pontos de vista. Dessa forma poderiam
perceber diferentes aspectos sobre o mesmo assunto e também experimentar
situações de conflito necessárias à busca de novas hipóteses resolutivas. O contexto
de socialização seria propício ao desenvolvimento do duplo movimento de
construção do conhecimento pela criança: a assimilação do objeto a ser apreendido
e a exposição a múltiplas informações fornecidas pelo meio.

Para verificar a hipótese de que a troca entre alunos pode beneficiar a todos no
avanço do conhecimento e da apropriação da escrita, empreendeu uma pesquisa
com alunos de classe média da cidade de Barcelona, todos bilíngues (falavam
castelhano e catalão). Estabeleceu grupos de 5 ou 6 crianças pré-escolares, em níveis
diferentes de hipóteses da escrita (porém próximos), do qual participavam também
o professor e o pesquisador (este último que só observava e anotava os
acontecimentos e atividades). Nesses grupos os alunos podiam participar
ativamente de várias maneiras: copiando, perguntando, ditando, falando, olhando e
corrigindo o que outras faziam, ou mesmo não se manifestando.

115
Analisou situações em que todas as crianças escreviam a mesma coisa (em folha
ou na lousa), ou só uma escrevia e as outras observavam ou colaboravam, ou em que
cada criança escrevia algo diferente. Os resultados apontaram que a primeira
situação foi a mais frutífera no que diz respeito ao intercâmbio de informações,
colaboração e regulação da própria escrita. Segundo Teberosky [...] os intercâmbios
entre as crianças não são senão instrumentos para socializar o que cada um sabe e
ajudar no sentido de uma construção conjunta (TEBEROSKY, 1981: 128).

Os tipos de informações que os alunos partilharam referiam-se a propriedades


físicas da escrita (forma de grafar as letras, ordem e direção da escrita) e a
propriedades convencionais não observáveis (nome e som das letras). As primeiras
informações, para a autora, são apreensíveis pela criança no contato com o objeto
de conhecimento; já as segundas, que carregam o valor social do sistema, não
explícito nos aspectos físicos da escrita, precisam ser mediadas por um ‘informante
usuário da escrita’ (aqui representado pelo professor). Tanto em um caso quanto
em outro, as crianças compartilham informações, mas também participam as
hipóteses de escrita de cada uma delas. Ainda que muitas respostas não sejam
adequadas, todas as crianças tomam parte e sabem o que está acontecendo nas
atividades, pois têm à sua disposição maior número de informações que provêm de
seus pares. Nessa situação de interação os conhecimentos não são transmitidos de
uma a outra criança, mas adquiridos porque são construídos [...] ‘entre elas próprias’.
Não existe alguém que possua o saber para ensiná-lo, todos estão aprendendo
(TEBEROSKY, 1981: 132). Nas suas palavras:

Essa socialização de conhecimentos pode dar-se entre criança e adulto, mas o


compartilhar de hipóteses subjacentes à construção desses conhecimentos somente se
dá entre aqueles que as elaboram contemporaneamente [as crianças]. Essa é uma das
grandes vantagens da situação de interação ente pares (TEBEROSKY, 1981: 131).

O que chama a atenção nesse trabalho é um dos princípios metodológicos que


serviu de base para a organização da experiência e que diz respeito à função do
professor nesses grupos. Segue o que foi estabelecido:

A professora que assumia o papel de adulto ‘escriba’, não promovia ensinamentos em


nenhum momento. Sua tarefa consistia em facilitar intercâmbio entre as crianças,
respondendo às perguntas assegurando-se sempre de que não havia outro membro do
grupo capaz de fazê-lo e, finalmente, propor situações concretas de escritura e leitura.

116
Sua atitude, produto da convicção de que as crianças podem e sabem escrever (no
sentido psicogenético do termo), permitiu-lhes promover e facilitar as produções sem
interferir com correções e opiniões a respeito dos possíveis ‘erros’ infantis. Para ela
todas as respostas eram válidas, e os membros do grupo resolviam entre diferentes
alternativas. Frente a situações de dúvida ou discussão, a professora não se colocava
como alternativa ‘correta’, mas promovia outros membros do grupo-classe como
consultores, eleitos pelas próprias crianças. Tentava, isto sim, ‘ressaltar’ as opiniões que
permitissem fazer avançar as concepções das crianças. Também ela participava dando
respostas, com a condição de esclarecer o que era que as crianças estavam pensando ou
fazendo. Se fosse o caso de intervir dando sua opinião, apresentava-a como uma dentre
as possíveis frente à situação concreta de trabalho (TEBEROSKY, 1981: 127, grifo meu).

Esta posição do professor permeia todo o texto de Teberosky e atravessa toda


experiência com os alunos. Em determinados momentos em que há descrição da
intervenção do professor, chega mesmo a soar como um pedido de desculpas. Um
exemplo desse posicionamento na situação em que uma menina escreve a palavra
‘cadira’ (cadeira, em catalão):

NS (escreveu CA) [e pergunta] ‘Qual é o de?’

JO [responde] ‘Dé?, poria dedo’

NS [silabando] ‘Ca-di-ra’

JO [considerando] ‘Sim, o de porque está no meu nome’ (assinala seu nome escrito no
avental: Jordi)

NS [falando para si] ‘Ra-ra’

ME [fala para NS] ‘Parece-me que é um ele e um a’

NS [retrucando] ‘Não, colocaria LA’

Outra criança [fala para NS] ‘Um pê’

Professora [fala para NS] ‘Poria ca-di-pa. Me-ri-txell’ (nome próprio de uma menina
presente no grupo)

NS [concluindo] ‘Ah! Já sei, às vezes põe ra e outras rra’ (e escreve CADIRA)

[...] a menina que escreve é capaz de aceitar as respostas corretas e rechaçar as


incorretas, mas necessita da informação dos demais para completar sua escrita, que
termina sendo o resultado da colaboração de todos. A professora, neste caso, oferece as
informações do tipo das que poderiam ter oferecido as crianças (e de fato o fazem)
depois de esperar as possíveis respostas do grupo (TEBEROSKY, 1981: 129, grifo meu).

117
Será mesmo que essa isenção do adulto que sabe, para tornar-se um semelhante
infantil é assim tão ingênua e inconsequente? Creio que não! Justamente o que
observamos na prática escolar parece apontar para os deslizes dessa ideia. Do
mesmo modo que cada criança já adentra os muros da escola com um saber que não
pode ser desconsiderado, também os mestres estão nessa condição: ‘sabem’ que
devem intervir sem impor seu saber, como pressupõe o Construtivismo. Apontamos
que essa é uma posição determinante e consequente.

Primeiro é preciso considerar que, fora da situação experimental, as salas de


aula têm um número razoavelmente maior do que 5 ou 6 alunos (sendo bem
otimista, em torno de 25, no Brasil) e que esses não ingressam na escola no mesmo
patamar de hipótese alfabética: contrário, há uma heterogeneidade apreciável de
prontidão para a escrita entre os alunos, o que indica que a colaboração entre eles
não é tão simples.

Sobre este aspecto, dados do PROJETO “DESAFIOS” de 2011 apontam para a


heterogeneidade discente. A sondagem do mês de março para prontidão de leitura
dos 30 alunos ingressantes em uma das salas de 1º. Ano EFI (EA-FEUSP) revelou o
seguinte quadro41:

Quadro 1: Nível de leitura dos alunos de uma sala de 1º ano EFI (EA FEUSP), meses de fevereiro e março

NÍVEL DE LEITURA NO. ALUNOS


Hiperfluente 0

Fluente 2
Leitura silabada 3

Reconhece todas as letras 16


Reconhece algumas letras 8

Não reconhece letras 1

Fonte: Idméa Saneghini-Siqueira, 2011

41
Esta sondagem de leitura foi realizada pela Professora Doutora Idméa Seneghini-Siqueira
(professora da FEUSP). As categorias de leitura gráfica foram estabelecidas por ela e, como veremos
a partir do Capítulo 4 desta tese, não são totalmente concordantes com nossa visão de leitura, mas
são aquelas que comumente se aplicam nas escolas, e por isto aproveitamos aqui a título de
informação complementar.

118
Quanto à escrita deste mesmo grupo, a sondagem do mês de fevereiro
mostrou42:

Quadro 2: Nível de escrita dos alunos de uma sala de 1º ano EFI (EA FEUSP), mês de fevereiro

HIPÓTESES DE ESCRITA NO. ALUNOS


Pré-silábicos 16

Silábicos 5

Silábicos alfabéticos 6

Alfabéticos 2

Fonte: Escola de Aplicação da USP, 2011

Estas categorias de sondagem não são aquelas empregadas pelo PROJETO


“DEAFIOS”, mas aqui apresentamos os dados como eles seriam avaliados pelas
escolas que levam em consideração o Construtivismo, para ilustrarmos a
heterogeneidade desde este ponto de vista metodológico. Acrescentamos também
que este não será nosso entendimento de heterogeneidade, como vamos expor no
próximo capítulo.

O que a prática escolar sugere é que mesmo crianças em fases bem díspares de
alfabetização – usando a descrição de fases do construtivismo, por exemplo uma
pré-silábica e outra já silábica com valor sonoro – são capazes de se ajudar, mas com
frequência é o professor quem as une em carteiras próximas, justamente com o
propósito cooperativo. Espontaneamente, os grupos de alunos se formam por
afinidades outras: brincadeiras, interesses e até conhecimentos, desde que esse
último seja próximo, principalmente depois de um tempo de convívio em que os
pequenos já identificaram o posicionamento de cada um diante do saber. Depende,
portanto de uma intervenção ativa do professor a junção de pares cooperativos; e
isso não se faz de forma isenta de saber e intenção por parte do mestre.

O segundo aspecto ao qual devemos nos ater – e o mais importante – refere-se


ao fato de que, se de um lado as crianças em momentos semelhantes de apropriação
do conhecimento são efetivamente capazes de se respeitar e estabelecer trocas
frutíferas, como demonstra acertivamente Teberosky (1981), por outro, é preciso

42
É importante ressaltar que não concordamos com esta categorização da escrita tal qual propõe o
Construtivismo, mas inserimos estes dados pelo fato de que até o início do PROJETO “DESAFIOS”
esta era a categoria avaliativa empregada pelos professores alfabetizadores da EA-FEUSP, portanto
no primeiro mês do projeto ainda era sua a base referencial.

119
ver ainda o lugar hierárquico de identificação do saber que se estabelece em sala de
aula. A criança é capaz de rechaçar uma hipótese vinda de outra criança, por julgá-
la errada (ainda que esteja certa), mas será que o faz da mesma forma com relação
àquilo que recebe do professor?

Se do ponto de vista cognitivo cada criança confronta seu conhecimento com


aquele de demais crianças, estabelecendo comparações entre objetos de
conhecimento e revendo suas hipóteses alfabéticas, do ponto de vista subjetivo a
comparação não se estabelece entre conhecimentos, mas entre sujeitos: mirar-se no
semelhante, no igual a ele (os alunos, o outro), é uma posição bem diversa daquela
de ser o objeto do olhar do Outro (o professor), cujas consequências são igualmente
díspares. O professor tem expectativas quanto à aprendizagem de cada aluno, coisa
que os alunos entre si não têm, uns com os outros – e é nessa demanda do Outro que
cada sujeito pode enganchar-se. Essa é uma posição que questiona francamente o
sócio-construtivismo e sua tentativa de minimizar a influência do saber do sujeito
professor.

Da mesma forma, quando o professor erra propositalmente para fazer


movimentar o conhecimento de seus alunos, não o faz de qualquer modo – ou como
uma criança faria – ele age intencionalmente esperando de seus pupilos um retorno.
Demanda, essa, que outra criança não teria com seu par!

Vejamos um exemplo. Em uma das salas de aula do 1º Ano EFI, em que o


PROJETO “DESAFIOS” vem sendo realizado, ao final do primeiro semestre de 2011
o professor entregou aos alunos uma folha contendo lição de matemática para ser
feita em casa. No enunciado se lia instrução em que havia certa quantidade de
biscoitos redondos, outra de biscoitos quadrados e outra de biscoitos triangulares
dentro de uma lata. Entre outras coisas, os alunos deveriam identificar quantas
formas diferentes de biscoitos havia no recipiente. No entanto, a palavra diferentes
estava grafada de forma a omitir uma das letras e – DIFERNTES. Um dos alunos
percebeu esse erro e comunicou aos que estavam do seu lado, mas estes não
corrigiram suas lições. Ele, então comunicou ao professor que, percebendo a
omissão, fez a correção na lousa: ele escreveu a forma errada, chamou a atenção dos
alunos para que identificassem em suas folhas o erro que cometera e, uma vez que
o conjunto da classe percebera a omissão, escreveu embaixo a forma correta,

120
pedindo que cada aluno riscasse em suas lições a palavra impressa incorretamente,
corrigindo-a pela palavra que escrevera em seguida. No entanto, a sua correção no
quadro negro continuava omitindo a mesma letra ‘e’ – sem que ele se desse conta,
errara novamente. Os alunos seguiram as instruções e em suas folhas copiaram
exatamente como o professor corrigira, ou seja, ainda faltando uma letra. O aluno
anterior protestou mais uma vez e só então, a letra foi posta em seu lugar, pelo
professor, permitindo que as demais crianças arrumassem suas lições.

Retrato simples do cotidiano escolar, em que o professor – felizmente! –


também está sujeito a erros e correções, entretanto, esta dimensão humana não
pode ser perdida pelo mestre no exercício das suas funções. Os alunos trocam
informações e cooperam uns com os outros, mas o lugar do professor é fundamental
e não é substituível por uma criança: os alunos só corrigiram seus cadernos quando
o professor avalizou a ação e não quando um de seus pares apontou para o erro.

Outro exemplo extraído do PROJETO “DESAFIOS” ilustra a preponderância do


papel do professor, mas agora com consequências mais sérias. Em atividade
diagnóstica para alunos de 3º. Ano, o professor escolheu um tema – o Saci, do
folclore brasileiro – com a intenção de abordá-lo através de dois conteúdos
diferentes e oferecidos em dois suportes diversos (um filme de animação e um texto
escrito). Depois de assistirem ao filme, os estudantes deveriam ler o texto e
responder algumas perguntas elaboradas (só sobre o texto). Aqui já podemos
levantar uma questão importante sobre a dissociação dos materiais. É de se
imaginar que se o filme foi visto, dificilmente o aluno não iria se lembrar dele e usá-
lo no momento em que fosse indagado sobre o texto escrito sobre o Saci – aliás, entre
importantes pressupostos alfabetizadores do PROJETO “DESAFIOS”, está a
intertextualidade, a possibilidade de a criança fazer remissão de uma narrativa a
outra, compondo uma trama textual mais ampla. Retomando a atividade
diagnóstica, a dissociação entre os conteúdos apresentados nos dois suportes
denota intenções diversas para cada um: o filme entra no campo da distração, sem
amarração pedagógica e o texto é sobre o que se deve revelar conhecimento – seja
de capacidade de leitura e interpretação, seja de capacidade de escrita das repostas.
O texto, portanto, já aparece como algo a que o professor dará maior importância,
pois dele resultará um elemento avaliativo concreto.

121
No que concerne às questões sobre o texto escrito, havia uma pergunta assim
formulada: ‘O que o Saci faz de errado, que as crianças bem educadas não fazem?’
Quem conhece o Saci, sabe que ele dá nó em crina de cavalo, põe o dedo no leite para
azedá-lo, assobia na mata para enganar intrusos, entre outras peraltices. Acontece
que no texto escrito não havia nada disso. Explica, então, o professor: ‘Aqui é para o
aluno escrever que ele [Saci] fuma e bebe’. Ora, mas na história lida pelos alunos, a
referência que se fazia ao fumo e à bebida não era tão evidente. A frase dizia: “Se
quiser que o Saci atenda ao seu pedido, você precisa ter fumo e aguardente para dar a
ele43” (!!) Isto é, a criança – aquela de quem se espera boa educação e que não faça
nada errado – é justamente aquela que tem bebida e fumo para oferecer! O conteúdo
moralizante amparado pelo status quo é tão avidamente perseguido pelo professor,
que não percebe a aporia em que o aluno foi colocado. O modo como a pergunta é
formulada convoca o aluno a se identificar com a criança do texto. A ele restam duas
alternativas, em si contraditórias: ou ele se recusa a ser aquele indivíduo, já que
‘crianças não fazem o que o texto diz para ele fazer’ (ter fumo e bebida) e aí fica sem
poder responder à pergunta proposta e, consequentemente sai do papel de aluno;
ou ele é a criança mal educada que porta fumo e bebida e, de saída, está fora do papel
do aluno esperado: o bem educado.

Ocorre aqui o que Pêcheux (1975) chama de ‘apagamento do sujeito’, em que o


paradoxo leva a um efeito de retorno que o detém na posição de espectador passivo:
Quem é o sujeito? Isto se dá, para a Análise do Discurso, porque uma rede
heterogênea de enunciados emerge de diferentes registros discursivos, como se
fossem estabilidades lógicas em que as respostas seriam unívocas (sim / não). Os
objetos discursivos são materializados como se fossem independentes do próprio
discurso que lhe dá suporte.

Na leitura que aqui fazemos, a rede de enunciados criou para as crianças um


‘impossível’, uma vez que elas não conseguem se dar uma saída lógica, sem ferir –
narcisicamente – sua condição de estudante. Ali onde se espera que eles sejam
alunos – ‘bons’ alunos educados –, são convidados a se retirar!

É evidente que também o professor deve comparecer com suas


particularidades, porém é necessário lembrar que elas também têm efeitos sobre os

43
Grifo meu.

122
alunos. Não raro se faz do ensino-aprendizagem uma relação restrita à transferência
e absorção de conteúdos objetivos, ignorando-se que as referências e repertórios de
cada um têm implicações sobre os outros. Mais ainda, a tendência do professor é de
avaliar a incidência dos atos dos alunos sobre seus pares, enquanto as suas
manifestações são consideradas de duas formas: aquelas objetivas e relacionadas
aos conteúdos programáticos da aula devem ser assimiladas por seus alunos,
enquanto que geralmente os efeitos daquelas subjetivas não são sequer atentados
ou, pior, são considerados irrelevantes.

O distanciamento do professor do seu lugar de maestria, ou seja, de referência


central para os alunos, coloca-o em dois arranjos antagônicos e alternantes: ora ele
é um ‘igual’ e não interfere no processo de construção de conhecimento de seus
alunos – fica em compasso de espera de que algo se produza na criança e por ela
mesma – ora ele determina o quê e como os alunos devem resolver seus problemas
acadêmicos, estabelecendo de antemão as respostas que deverão dar – portanto não
espera nenhuma ‘construção’ de saber diferente da que determinou. Em ambos os
casos perde a dimensão de que ele ocupa um ponto central na sala de aula e de que,
como qualquer um de seus alunos, é sempre demandante, tem sempre expectativas
com relação ao outro. Na primeira situação ele perde a autoridade que o lugar
deveria lhe conferir; na segunda, pressupõe correspondência imediata dos
aprendizes às suas convicções (às quais os pequenos nem sempre podem
responder).

Tomemos um caso emblemático para pensarmos esta situação. No ano de 2010


participei de uma pesquisa realizada pela Gestae – Instituto de Pesquisa, Ensino e
Ação em Saúde Mental, em parceria com o Instituto de Oncologia Pediátrica da
Universidade Federal de São Paulo (IOP-UNIFESP)44. Tratava-se de trabalho
investigativo-interventivo sobre a qualidade do aproveitamento pedagógico e da
socialização de crianças que estiveram afastadas da escola durante tratamento para
câncer. Foram acompanhadas 10 crianças, seus familiares e professores durante um
ano letivo e obtivemos como resultado a melhora do desempenho infantil nos dois
aspectos investigados.

44
Esta pesquisa teve financiamento do Instituto HSBC Solidariedade, com sede em Curitiba (PR).

123
Neste trabalho, no entanto, deparei-me com uma situação bastante instigante,
que orientou os rumos desta tese. Tratava-se do caso de um menino de 10 anos que
não lia nem escrevia, que fazia pela segunda vez o 4º ano do Ensino Fundamental
(antiga 3ª série) em uma escola pública da periferia da cidade de São Paulo. De
família simples, era o único filho da mãe e segundo filho do pai. Entre os seis e os
oito anos fora tratado de leucemia linfoide aguda (LLA), doença da qual estava quase
curado45. Era um menino um tanto apático, que às vezes esboçava um riso no canto
da boca. Vinha aos atendimentos trazido pelo pai amoroso: ‘Meu filho precisa
aprender a ler no ABC como eu aprendi. Ele precisa ser alguém’.

Sua professora, extremamente dedicada, já havia dado aulas àquela criança no


ano anterior e insistia que ele era plenamente capaz de aprender a ler e escrever:
‘Parece que está ali preso, pronto pra explodir’. Pedira para permanecer como sua
professora, pois sabia que poderia ajudá-lo neste difícil processo de alfabetização,
como de fato ajudou.

Além de carinhoso, o pai também sabia ser extremamente duro com o filho:
todos os dias exigia do filho, a cada regresso da escola, que lesse. Colocava o texto
sobre a mesa e... nada! Isso invadia as horas lúdicas que a criança poderia ter. Essa
atitude parecia incompatível com a ternura que aquele homem tinha pelo filho.
Certo dia, indignado com o fato de o filho não saber ler, faz para mim um gesto
abrupto de esticar os braços com as mãos abertas, me mostrando as palmas das
mãos e diz: ‘Eu dou a minha Bíblia para ele, mas ele não aprende no ABC’. De
passagem vale dizer que a Bíblia era o único livro da casa e que o pai almejava ser
pastor em uma igreja.

A insistência deste pai com relação ao ‘ABC’ me incomodava há tempos, mas ao


invés de eu indagar sobre ela, segurei-lhe as mãos estendidas e perguntei: ‘Na palma
da mão?’ O pai se desconcertou e respondeu: ‘É, meu pai me ensinava com a
palmatória. Era um tapa para cada letra errada’. Ali certamente estava algo violento
que, guardadas as proporções, era tão torturante quanto ter que se submeter a
passar tardes diante de uma Bíblia da qual não se sabia ler o primeiro B. Sugeri ao

45
O critério médico para cura oncológica não é a simples ausência da patologia, mas a ausência dela
por cinco anos seguidos.

124
pai que não pedisse mais ao filho que lesse para ele. Isso pareceu aliviar a criança
que, embora ainda analfabeta, agora estava mais risonha e solta.

Dias depois o pai entrou cabisbaixo e bastante deprimido na biblioteca da


escola, onde eu estava, dizendo-se ainda preocupado com o filho. Pensativo, já não
parecia mais estar interessado no que as pessoas pudessem lhe dizer; começou a
olhar para os livros, sem tocá-los. O menino entrava atrás do pai e também via as
estantes. Perguntado se queriam levar algum livro para casa, a criança pegou dois
livros de aventuras, cheios de imagens eletrizantes e o pai pegou outro livro e
timidamente perguntou: ‘Será que posso levar este aqui? Sempre quis ler este’, e me
mostra a ‘Branca de Neve’. Fiquei atônita, mas respondi-lhe que poderia levar, com
a condição de que ‘ele’ leria a história para o filho.

Relato o episódio à professora, que começa a contar mais histórias em sala de


aula, focando sua atenção naquele aluno. Não se passam duas semanas e o menino
explodiu risonho em leituras e escritas!

Pensemos antes na postura da professora. Ela escutara em si a certeza de uma


capacidade ainda não manifesta na criança. No seu papel substituto da transferência
parental, autorizou seu aluno a ascender ao desejo de aprender, pois reconhecia-se
responsável e ativa nesta tarefa. Como afirma Alícia Fernández, [...] a pessoa
ensinante, com todas as suas características singulares, além de suas capacidades
pedagógicas, é prioritária, já que mais importante do que o conteúdo ensinado é certo
molde relacional que se vai imprimindo na subjetividade do aprendente (FERNÁNDEZ,
2001: 29). Ela reservou a seu aluno um espaço e um tempo para que o
acontecimento-alfabetização pudesse se dar naquele aparente vazio. Esperou
pacientemente, mas não passivamente, uma vez que em momento algum facilitou a
vida do aluno, exigindo dele dedicação a toda e qualquer atividade que oferecia às
outras crianças da aula. Ao mesmo tempo, revisava e ponderava todas suas atitudes
com relação à criança. Apostou tanto na possibilidade de emergência daquela
subjetividade, quanto no seu papel de educadora.

Diante deste quadro, uma pergunta é necessária: não desqualificando os efeitos


também percebidos a partir do colaboracionismo entre pares, pressuposto pelo
Construtivismo, será que outra criança, no caso deste aluno, faria esse mesmo papel
da professora, que tensiona demanda e desejo?

125
Ainda que a proposta original de investigação construtivista não dispense a ação
e a atenção do professor, o uso desse pressuposto teórico no Brasil aponta para
impasses nessa ação quando o aluno não é capaz de passar de uma hipótese de
alfabetização a outra. Na PESQUISA “DESAFIOS” verificamos a dificuldade de
professores em serem ativos nessa transição. Por inúmeras vezes deparamo-nos
com questionamentos do tipo: ‘Como fazer para que uma criança saia da hipótese
silábica e passe à alfabética?’, ‘O que fazer para que o aluno pare de ler silabando?’
Essas perguntas encontram entraves em afirmações magistrais do Construtivismo:
primeiro de que ‘cada criança tem um ritmo de construção da aprendizagem, que
tem que ser respeitado’, para o que nos perguntamos qual o limite dessa espera, se
não raro verificamos crianças que chegam ao terceiro ou até quarto ano do EFI ainda
não alfabetizadas? O Construtivismo parece funcionar bem quando o aluno carrega
consigo recursos socialmente estabelecidos e reconhecidos pela escola e com eles
demonstra que sabe ‘construir’ seu conhecimento, avançando nas hipóteses de
alfabetização. O mesmo não parece ocorrer quando a criança por algum motivo não
faz essa progressão espontaneamente.

A segunda questão capitaneada pelo Construtivismo e que os professores


adotaram intransigentemente como lei, é o rechaço ao uso de qualquer elemento
dos ‘métodos tradicionais’ de alfabetização. Muitos dos professores que estão em
salas de aula hoje tiveram formação pedagógica no ‘método construtivista’, mas
foram alfabetizados na infância pelos métodos tradicionais. Conhecedores dos dois
modelos, muitas vezes se sentem tentados a lançar mão de um ou outro recurso dos
métodos antigos, mas envergonham-se de fazê-lo, ou inibem tal vontade uma vez
que sofrem condenações por parte de seus pares.

Angustiados pela espera do ‘tempo do aluno’, veem-se engessados pela


instituição de um método que não lhes dá saída, por exemplo, quando se deparam
com uma criança que inicia o 1º. Ano do EFI sem nenhuma habilidade motora (e não
podem lhe oferecer treino de cópia); ou quando observam um aluno preso
indefinidamente às letras de seu próprio nome e não consegue ‘construir’ outras
possibilidades silábicas (e não podem trabalhar com famílias silábicas), ou quando
percebem que a criança não consegue compreender como grafar diferentes matizes
sonoros para a mesma letra (E e [É]), ou grafar diferentemente os mesmos sons (Ã

126
e AN). Contrariamente aos preceitos do Construtivismo, a prática educadora do
professor fica cindida e ele não pode ‘construir’ saber sobre ela, fora do ‘método’.

O professor também é tomado pelo compasso de espera de que ‘o’ método venha
salvá-lo dos impasses instituídos. Nesta espera angustiante, tem-se posto a buscar
soluções novamente fora da relação professor-aluno, fazendo remissões constantes
às crianças hiperativas, desatentas, disléxicas, autistas46! – diagnósticos cada vez
mais frequentes e disseminados, que invadem os consultórios de neurologia e
esvaziam a aprendizagem nos bancos escolares.

Neste impasse, alunos e professores ficam à deriva. O professor porque


paulatinamente vê retirado de si o saber, seja em nome do não uso de práticas que
antes conhecia, seja porque tem antes que esperar que venha da criança o saber, seja
porque a medicalização das questões pedagógicas invadiu sua sala de aula. A criança
porque, sendo responsabilizada pela construção de seu conhecimento, nem sempre
é instrumentalizada pelo professor, mas por um método que se impõe aos dois.
Identificamos neste modelo um novo modo de exclusão no campo da educação, que
se configura pela construção de conhecimento, esvaziado de saber.

Desde o atendimento deste caso acima citado, também perguntei-me pelo


desejo do pai, tão dolorosamente amortecido na história de sua relação com o
próprio pai. Intrigada com relação ao uso e efeito das narrativas junto ao pai e a seu
filho, sobreveio a questão: ao invés do desejo pelas narrativas, não estaria este pai
transmitindo justamente a dor por não ter tido acesso a elas? Não teria restando
como traço de memória viva da leitura e da escrita, só a angústia pela aproximação
da palmatória – semelhante a Graciliano em seu relato –, ao mesmo tempo em que
deixava elidido, proibido e por isto sempre latente, o desejo pela leitura de um
simples texto – ‘Branca de Neve’? Não teria sido o resgate de seu desejo o que
finalmente liberara seu filho para também desejar e mostrar conhecimento?

46
Viviane Neves Legnani e Sandra Francesca Conde de Almeida (2008) mostram que dados
estatísticos preconizados pelo discurso médico contemporâneo (e adotado pela Organização
Mundial da Saúde – OMS) apontam para uma incidência de 3% a 6% de crianças e jovens em idade
escolar com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), mas em algumas camadas
populacionais brasileiras este índice salta para 30%. Ainda que aceitássemos este diagnóstico para
qualquer sujeito – o que não é o caso, como se verá no Capítulo 5 desta tese – esta
hiperdiagnosticação revela que há crianças sendo claramente diagnosticadas de modo negligente e
inconsequente.

127
A questão que se fez premente foi sobre a proibição de alguns textos e a
liberação de outros na transmissão geracional: que textos (que discursos) são
vetados a uma criança e como isto interfere na sua apropriação de saber? Estas
questões guiaram os caminhos teóricos desta tese.

128
3. NARRATIVAS E SUBJETIVIDADE – REPRESENTAÇÃO E
TRANSMISSÃO COMO CONDIÇÃO DE LEITURA E ESCRITA

Sete pessoas encontraram-se para tomar café da manhã em uma palafita


instalada sobre o caudaloso Rio Guamá47. Não eram dali, e por isto mesmo
dispuseram-se a conhecer os encantos do lugar, começando pelas iguarias
arranjadas em uma enorme mesa. Em um dos recipientes um fruto cozido aguardava
a apreciação de todos. As opiniões divergiram quanto a gostar ou não da novidade,
porém o que chamou a atenção não foi isto, mas a leitura que cada uma fez sobre os
sentidos despertados. Eis os depoimentos:

Tem gosto de abóbora.

Achei que parece com pinhão.

Pra mim tem gosto de alcachofra com manteiga.

É igual a pamonha!

Puts! É salgado! Achei que era doce...

Parece mesmo uma batata doce salgada.

Nossa! É uma mandioca ruim!

Era o fruto da pupunha, um coqueiro comum na região norte do Brasil, alimento


tipicamente indígena. Sete opiniões desencontradas, nenhuma referência real à
‘coisa’, entretanto todas muito verdadeiras. Como explicar tal divergência, senão
pelo fato de que diante do inusitado é preciso recorrer a algo já conhecido? A
memória trabalha e faz associações, e para cada sujeito as referências são únicas e
decorrem da própria vivência e constituição subjetiva. Iguais idiossincrasias
encontramos nas crianças. O exemplo do reconto de uma mesma história, feita por
três alunos48, ilustra a observação:

Aluno 1

‘Conte-me como é a história que o professor contou na semana passada’.

Aluno – (prontamente) Cabra Cabrês.

47
Belém (PA), por ocasião de encontro de trabalho entre pesquisadores dos três polos da PESQUISA
“DESAFIOS”, em abril de 2012.
48
A capacidade de recontar uma história escutada faz parte das atividades diagnósticas iniciais de
memória e narrativa oral dos alunos que participam do PROJETO “DESAFIOS”. Estes recontos foram
feitos em fevereiro de 2012, em sala de 1º. Ano do EFI da Escola de Aplicação-FE-USP.

129
‘Este é o nome. E como era a história’?

Aluno – Não lembro. (Visivelmente não queria contar, mas esperei). É pra contar a
história toda? Vai demorar muito...

‘É você quem vai contar a história. Vai levar o tempo que você quiser’.

Aluno – O coelho foi lá pegar a cenoura e quando voltou viu um olho brilhante. Não
conseguiu entrar na toca e aí chamou a cabra para ver o Cabra Cabrês.

‘Quem é o Cabra Cabrês’?

Aluno – É ele (aponta para o desenho que o professor fizera e colara na parede, junto à
lousa – desenho de uma toca escura em que só se viam dois olhos, sem a feição). Aí ele
falou: ‘Eu sou o Cabra Cabrês. Vai-te embora coelhinho, que de um te faço em três’. (Fala
isto lendo o que o professor colocara sob o desenho da toca). Aí depois chamou o boi.

‘Quem chamou o boi’?

Aluno – O coelhinho. Aí ele foi lá e falou a mesma coisa e o boi saiu correndo. Aí chamou
o gato. Depois o cachorro e os dois a mesma coisa. Aí depois... depois... o coelhinho
começou a chorar porque não tinha mais a toca. Aí veio o mosquitinho que entrou na
orelha do Cabra Cabrês. Aí depois o Cabra Cabrês saiu correndo. (Olhando para mim,
me inquirindo) Você viu quanta coisa? Viu que demorou?

‘Você viu que você se lembrou da história e que não demorou muito para isso’? Ri e sai.

Aluno 2

Perguntei se se lembrava da história que o professor contara na semana passada e qual


o seu nome – Ele não escutara a primeira narrativa (faltara no dia); entretanto,
participou do reconto que as outras crianças fizeram em grupo no dia anterior.

Aluno – Não lembro do nome, nem da história... Só lembro que o coelho estava fazendo
uma sopa de cenoura. Aí apareceu o Cobra Cabeça. É só essa parte que eu lembro. Ah,
eu lembro mais uma parte que o Cobra Cabeça falou uma coisa para o coelho. Uma coisa
chata que eu não lembro...: Vai-te embora coelhinho. De um te parto em três.

‘E o que fez o coelho’?

Aluno – Foi chamar o coelho que fez assim – Ah! Ah! – mas não adiantou nada porque o
Cobra Cabeça disse de novo: Vai-te embora coelhinho. De um te parto em três. Aí ele
chamou os outros amigos (que eu não lembro), até que veio a mosca que entrou no
ouvido e o Cobra Cabeça foi embora. Acabou o coelhinho fazendo a sopa de cenoura.

Aluno 3

‘Qual era o nome da história que o professor contou na semana passada’.

Aluno – (Silêncio) Não lembro o nome da história...

130
‘Então me conte como era a história você ouviu’.

Aluno – Era uma vez um coelho. O coelho foi sair e pegar cenouras para fazer uma sopa
de cenouras. Aí viu olhos brilhantes, grandes, na toca. ‘Eu sou o Cabra Cabeça. Vai
embora que de um te parto em três’. Aí o coelhinho foi pedir ajuda.

‘Para quem o coelho pediu ajuda’?

Aluno – Para o cabrito, que falou: Quem é esse Cabra Cabeça aí? O coelho mostrou para
ele. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O Cabra Cabeça falou: ‘Vai
embora cabrito que de um te parto em três’. Aí foi embora e pediu ajuda para o seu
amigo ovelha. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O Cabra Cabeça
falou: ‘Vai embora ovelha que de um te parto em três’. Aí foi embora e pediu ajuda para
o seu amigo cachorro. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O Cabra
Cabeça falou: ‘Vai embora cachorro que de um te parto em três’. Aí foi embora e pediu
ajuda para o seu amigo gato. Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho. O
Cabra Cabeça falou: ‘Vai embora gato que de um te parto em três’. Aí o mosquito foi,
entrou na toca e entrou no ouvido. O Cabra Cabeça disse: ‘O que é isso!’, e foi embora. O
coelhinho entrou em sua toca, fez a sopa e dividiu com todo mundo.

Da mesma forma que diferentes gostos e lembranças foram despertados pela


pupunha, a história mobilizou elementos muito singulares em cada estudante. O
nome do personagem – Cabra Cabrês – ganhou roupagens de ‘cobra cabeça’ e ‘cabra
cabeça’, acomodadas em algo reconhecível pelas crianças, assim como ‘mosquitinho’
também foi retratado como ‘mosca’ e como ‘mosquito’. O primeiro deles fez um
relato apoiado pela imagem desenhada pelo professor, coerente, porém sintético, já
que tinha pressa de outras coisas.

O segundo aluno valeu-se da memória dos outros, responsáveis por lhe


retransmitir a história; aí arriscou uma construção textual com sentido, em que
preservou uma frase importante e repetida no texto original – Vai-te embora
coelhinho. De um te parto em três –, além de entoar de modo particular a terrível voz
imaginada para o animal que enfrentaria o desconhecido: Ah! Ah!

O terceiro foi além: começou a narrativa com uma expressão formular típica das
histórias infantis – Era uma vez... – que, não estando presente no texto original,
denota a remissão feita a outras histórias escutadas. Ali onde os dois anteriores
fracionaram uma ação – Foi pegar cenoura e Estava fazendo sopa de cenoura – ele a
descreveu por completo, juntando os dois atos; da mesma forma os acontecimentos
tiveram continuidade quando, ao invés de resumir a participação do inseto a atingir

131
o Cabra Cabrês, ele descreveu sua anterior entrada na toca, feito que nenhum outro
animal ousara. Esta ousadia, aliás, aparece como a intromissão de um elemento
particular seu (marca de subjetividade), que se evidencia na apresentação de cada
um dos animais que descreve: Ele se encheu de coragem e foi lá e fez o seu barulho!
Isto também não estava no texto original narrado, mas retrata o modo como ele ‘lê’
de forma significativa o sentido dos acontecimentos: é preciso coragem para
enfrentar o desconhecido!

Imagine-se agora que aquelas impressões primeiras sobre a pupunha não


fossem sete comentários descompromissados feitos diante de uma paisagem
bucólica por pessoas diferentes, mas que fossem sete aulas dadas por cada uma,
sobre um mesmo conteúdo. É de se esperar que o assunto não seria tratado de forma
igual, posto que aí – como nos alunos – também incidiriam as referências
particulares de cada uma.

Há na fala cotidiana comunicativa a emergência da subjetividade, com


intromissão de antigas camadas discursivas que levam a compor um sentido sempre
particular, por mais que a matriz discursiva seja a mesma para diferentes falantes.
Acontece com o discurso o que Jacques Lacan caracteriza como a estrutura de uma
borda topológica relacionada à faixa de Moëbius (à qual fizemos referência na
Introdução desta tese), em que o avesso e o direito se fazem por continuidade, sendo
impossível estabelecer seu limite49.

Assim como carregamos nosso corpo por onde quer que andemos, é impossível
deixar nossa subjetividade quieta em um canto, esperando por nossa volta, ainda
que por vezes nos esforcemos para controlar os modos de expressão que nos fazem
únicos. A linguagem não nos permite esta cisão, como já apontou Sigmund Freud ao
construir a Psicanálise e descrever como a fala nos atravessa e se manifesta à revelia
nos atos falhos, nos lapsos, nos chistes, nos esquecimentos e nos sonhos e sintomas.
Portanto, nas salas de aula, professores e alunos estão presentes com o corpo pleno
de linguagem, cuja expressão se manifesta através da fala comunicativa cotidiana –
que tomando de empréstimo de Claudemir Belintane (2011) chamaremos de

49
No campo discursivo o limite desta estrutura poderia ser pensado na manifestação inconsciente
(emergência do significante) que se daria em um lado da banda e que operaria como um furo nesta
armação, mas justamente não o faz porque sua continuidade se dá na interpretação deste
significante no avesso da faixa, onde encontra o objeto causa de desejo.

132
pragmática – tanto quanto pelos discursos subjetivos com os atravessamentos dos
traços mnêmicos. Traço de memória que, como no caso relatado no reconto dos
alunos, também contou com a intervenção do professor: não havia no texto
nenhuma referência a como seria o Cabra Cabrês, além daquela de ter uma voz
assustadora, refletida no tom da frase: ‘Vai-te embora! De um te parto em três!’
Indagado pelos alunos sobre como ele seria, o professor interveio desenhando os
olhos brilhantes no fundo da toca, acrescentando um traço próprio de significação.
Ele poderia ter simplesmente sugerido que cada estudante imaginasse o seu Cabra
Cabrês – ‘Como seria aquele ser assustador?’ – mas preferiu posicionar-se desde a
sua versão figurada do animal.

Nesta descrição, o professor participa ativamente da contação de história e,


como todos, também expressa sua subjetividade. Não desconsidera que suas
referências têm efeito: ao ler os recontos realizados pelos seus alunos, percebeu
como reagiram à sua intromissão e, desde uma postura compromissada, levou em
conta suas intervenções no resultado das atividades dos alunos. Este é um professor
disposto a suportar a influência das diferentes singularidades que se apresentam em
sala de aula – a de cada aluno e sua própria.

De onde provêm estas leituras singulares sobre os acontecimentos? Por que


diante de uma mesma cena as impressões, sensações e reações são tão díspares? É
porque o recorte da realidade que cada indivíduo faz depende de sua subjetividade,
da forma como os traços de memória – próprios e históricos – se enredaram
configurando teias linguageiras únicas.

As malhas tramadas pela subjetividade e que resultam em tessituras discursivas


únicas, são o foco de nossa proposta para pensar a alfabetização. Consideraremos
destes discursos os elementos e as funções de linguagem que, desde a oralidade,
fornecem as bases necessárias à articulação e aquisição da leitura e da escrita.

Aqui prenunciamos a concepção de oralidade como modo de leitura atentando


para a sua função alfabetizadora, tomando de empréstimo a elaboração teórica de
Claudemir Belintane:

[...] quando sondamos ou diagnosticamos a leitura a partir da oralidade, levamos em


conta que, no domínio de textos orais, já se encontram as principais habilidades de
leitura, e que muitas delas não figuram como um conhecimento que se extraia com

133
facilidade. A trama de textos orais e os interjogos linguageiros que resultam em boa
leitura não são produto de uma construção consciente [...], resultam dos efeitos da
própria alíngua, efeitos metafóricos e metonímicos. Ou seja, [...] o que não é tão
concreto, material e palpável é o que mais nos interessa. [...] nosso “letramento”, como
o defendido por Tfouni (2001), comporta o oral e, essencialmente, os gêneros que
privilegiam a função poética. Em vez de levar à criança uma cidadania e uma consciência
adultas, privilegiamos o desejo e a fantasia como forma de abrir portas para a cidadania
do mundo, que em vez de comportar a língua e a linguagem do cotidiano imediato (que,
na maioria das vezes, são marcadas pelo mercado), potencializa encontros entre o
regional e o universal (BELINTANE, 2011: 152).

Belintane abraça a concepção de letramento de Leda Tfouni, que privilegia a


oralidade como acontecimento. Se de um lado Tfouni (2001 e 2008) destaca a
heterogeneidade dos sujeitos neste acontecimento-letramento, de outro a
relevância que dá à oralidade permite-lhe falar em letramento mesmo quando se
trata da produção oral de pessoas não alfabetizadas, posto que, mesmo nestas
condições, sujeitos podem ocupar a posição de autores de seus textos. Belintane
(2011) vai além e diz que a assimilação da escrita e a possibilidade de expressão e
usos da língua dependem de posicionamento subjetivo diante dos diversos tipos de
textos estruturados na tradição, que resgatam procedimentos estético tipicamente
orais (jogos linguageiros). A afinidade que a criança tem com esse universo discursivo
da oralidade expande-se com mais facilidade para o campo da literatura e das artes
do que para os do ambiente imediato de letramento, que exigem posicionamentos e
legitimações outras (BELINTANE, 2011: 56).

Por ora cabe-nos articular o que estamos chamando de subjetividade – e não de


sujeito, embora vamos nos servir dele – e como podemos fazê-la participar do
processo de alfabetização enredando, ao mesmo tempo, o subjetivo e o social, o
pessoal e o histórico.

A título de enunciado, Subjetividade é o que do Sujeito nos será permitido


trabalhar no campo da educação.

É na subjetividade que encontramos o que sustenta o desejo por aprender e por ensinar.
Subjetividade que significa particularidade e singularidade no universal da cultura, isto
é, o lugar que cada um ocupa na sociedade porque tem uma função social e uma história
de vida particular, enfim, um desejo que lhe é próprio. É o reconhecimento dessa
unicidade que o faz igual, dado que o desejo é universal, e diferente, enquanto é único

134
em seu desejo. Na subjetividade, é o desejo enquanto propriedade universal de todo ser
humano que nos unifica como seres desejantes e, como cada desejo é construído ao
longo de uma história, a inserção do sujeito na cadeia geracional singulariza o desejo,
torna-o único a cada um (IUMATTI e BATTAGLIA, 2004).

Sujeito, como termo forjado na clínica psicanalítica é evanescente e está


representado entre dois significantes; como acontecimento do inconsciente é
imprevisível e só passível de ser analisado no setting analítico. O Sujeito não é,
portanto, o indivíduo com o qual a pedagogia lida, nem o centro cognitivo do
Construtivismo. A Subjetividade compreendemos como as marcas de experiência de
um Sujeito, estabelecidas ao acolher os traços mnêmicos com que constituirá seu
Texto.

Este Texto50 a que fazemos referência também será material para a


alfabetização como propomos. Ele consiste na escrita única realizada pelo Sujeito,
no período entre a castração e a sua apropriação, em que a criança constrói as
perguntas sobre o nascimento, vida e morte e responde a elas com a criação de um
enredo mítico, suporte para a apreensão dos textos vindos da cultura.

Tanto o termo Subjetividade, quanto Texto, serão construídos neste capítulo e


resgatados ao final dele, quando falaremos das particularidades do uso das
narrativas na alfabetização.

3.1.TRAMAS DE BERÇO

Uma mulher alemã reconhece, na Argentina, uma canção de ninar em uma


língua que ela supostamente não entende. Engano, pois até os 3 anos vivera imersa
naquela que era sua língua materna. Nascida em Buenos Aires, fora levada por seus
pais adotivos para a Alemanha e disso nada sabia. Um texto até então ‘desconhecido’,
foi reconhecido e desde que soube sua verdadeira origem, a personagem iniciou dois
movimentos inseparáveis e contíguos: o de (re)conhecer uma origem não vivida,
mas real – no caso seus verdadeiros familiares – tentando nela se localizar e atribuir
sentidos, e, ao mesmo tempo, rever suas relações anteriores pautadas por uma
realidade vivida, mas que se revelava um distante palco da verdade de outras

50
Tanto o termo Texto, quanto Subjetividade, grafados com letra maiúscula serão usados como
conceitos aqui elaborados, para diferenciá-los do uso comum destas palavras.

135
pessoas – no caso seus pais adotivos. Esse reviramento do texto sobre si mesmo
causa como marca o resgate dos textos de uma vida inteira, em cuja trama passa-se
a encontrar tanto aqueles construídos e proclamados por si, quanto aqueles não
experimentados, porque silenciados na boca de outros. Essa é a sinopse do drama
cinematográfico alemão ‘O dia em que eu não nasci’, de Floriam Cossen, exibido em
circuito comercial nas salas de cinema de São Paulo, em novembro de 2011.

Neste enredo temos uma alegoria que ilustra a função da memória tal qual
adotada nesta tese: o texto mnêmico, herdado e constituído é o que permite ler o
desejo posto nas relações intersubjetivas – portanto, ler o próprio desejo e o do
outro – e também o que permite ler os textos articulados pela cultura nos diferentes
suportes e gêneros (nos livros, nas cantigas, nos jornais, na internet, nos cartazes de
propaganda, etc.), nos quais encontramos as novelas, as poesias, as manchetes, etc.

O que a textualidade é capaz de movimentar? De onde provêm esses textos? Que


textos são capazes de mobilizar para a leitura e escrita? Como alfabetizar-se desde
os textos propostos? Como a memória e seus textos atravessam gerações? Essas
foram as questões que se arraigaram e que ressoam nessa tese de doutorado.

Todos os povos preservam, ‘desde o berço’, suas cantigas de ninar bebês e nelas
já se pode identificar o enredo, o cenário textual no qual estes pequenos adentram.
Cantigas geralmente povoadas por um certo nonsense e uma pitada de mistério e
temor:

Boi, boi, boi


Boi da cara preta.
Pega esta menina
Que tem medo de careta.
(cantiga popular)

Boi faz careta? Boi pega menina? Que boi pega, o da cantiga de ninar ou o Boi
Bumbá? De que tempo histórico falamos: de um acontecimento presente?, ou de um
período inalcançável que se presentifica? O boi não faz nada disso, mas ainda assim
ele encanta, acalanta e faz tremer de medo e de dúvida; e por este simulacro de
sensações marca o sujeito pelos traços de memória que cria e articula. Este boi

136
depois poderá ser aquele que ‘primeiro voou em Pernambuco51’, ou prosaicamente
o próprio boi do pasto, em quem sempre se procurará uma cara preta uma vez que
na primeira infância o boi cantado pela mãe já anuncia que ao lado da necessidade
de cuidados é preciso um tanto de fantasia.

A criança chega ao mundo escutando a fala de várias pessoas, algumas dirigidas


a ela, outras a terceiros e umas outras tantas a ninguém – ou ao próprio locutor. No
meio do vozerio o bebê é alvo de muitas preleções sobre seu cotidiano – ‘Agora
vamos tomar banho’, ‘A fralda acabou’ – que lhe confere uma rotina, um leque de
acontecimentos que preenchem o espaço sonoro e que poderão vir a ter sentido, ou
não. Estabelecem-se com o bebê (e depois com a criança) conversas cotidianas que
orientam atividades e ações que, aos moldes do que faz Belintane (2011)
chamaremos de ‘textos comunicativos’, ou ‘função pragmática’ da língua.

Ao pararmos para analisar o modo como nos comunicamos cotidianamente


perceberemos prevalência de diálogos entremeados por comandos ou descrições –
‘Vamos fazer’, ‘Comeu batata’, ‘Preciso arrumar’, ‘Faça a lição’, etc. – e suas negativas
– ‘Não pegue’, ‘Não vá’, ‘Não fiz’, etc. Geralmente são discursos que encerram seu
efeito no próprio acontecimento e não se abrem a intervalos de experimentação e
estranhamento, como também não servem muito à exploração de sentidos outros.
As falas coloquiais têm função de situar a criança na repetição pragmática das
relações e em uma rotina que lhe dá segurança – o mundo estará lá amanhã, como
está aqui hoje.

Mas além da arenga cotidiana a criança é o desígnio de atividades linguageiras


que acontecem prioritariamente nesta sua fase da vida. Ela é alvo direto dos brincos,
cantigas, parlendas, advinhas, trava-línguas, narrativas orais populares (fábulas,
lendas, contos infantis) que embalam, ninam e brincam com seu corpo e seu ser e
que, como prossegue Belintane:

[...] além de serem ativados por uma intenção outra, que vai além da utilidade
comunicativa são, como diria Manoel de Barros, “desúteis”, ou seja, servem para o “de
brinca”, para o jogo, para o lazer, enfim, expressam emoções. Quando alguém repete
uma parlenda ou canta uma cantiga a uma criança, só espera da criança uma
participação jubilosa, esfuziante, alegre, enfim, propõe um enlace marcado pela

51
Alusão ao feito de Maurício de Nassau que fez sobrevoar um boi atravessado em um fio esticado
sobre as cabeças dos espectadores recifenses, em 1644.

137
afetividade, pela emoção. Para que o adulto possa se envolver de fato, suas memórias
mais primitivas são acionadas. De onde tiramos, por exemplo, uma brincadeira como o
“Serra, serra, serrador” se não de uma memória vivenciada na infância?! Nos ludismos
que se dão entre adulto e criança, o que se vê é o reencontro de uma criança do passado
(na memória do adulto) com a que está no presente. A produção desses textos se vincula
à função poética e eles formam uma rede de memória que já enraíza potencialidades
para o gosto literário, como mostrou Bandeira (BELINTANE, 2011: 31-32).

O ‘desútil’ da linguagem na infância não tem nada de inútil! É um acontecimento


que se inicia na maternagem e precisamente o que há de mais precioso na acolhida
dos pequenos bebês que aportam na família. Estas palavras que só podem saltar da
boca dos adultos na sua presença, são as que primeiro transmitem algo de
memorável e significativo da relação entre ambos, primeiro porque carregam de
outros tempos uma memória histórica, [...] que a tradição veio peneirando,
formatando e reatualizando a partir da memória dos pais (idem: 31), e segundo,
porque reatualiza nos pais e se presentifica na relação com o filho, um tanto de suas
memórias particulares. É o que Belintane (2011) chama de textos ‘lúdico-poéticos’,
ao que eu acrescentaria que são verdadeiros convites amorosos para brincar com
esta coisa série que se chama vida.

Mesmo naquilo que é fala cotidiana pragmática, podemos encontrar mesclas


desta função poética, uma vez que as mães ao tomarem nos braços seu bebê para
trocá-lo ou amamentá-lo, ‘desutilmente’ modulam sua voz em picos prosódicos,
exagerando a entonação em alguns momentos da fala e abrandando-o em outros, de
um modo que não fariam se se dirigissem a uma criança mais velha ou a um adulto.
É o que os estudiosos da aquisição da linguagem chamam de manhês.

Confluem nas tramas de berço, textos distantes no tempo e no espaço, que se


(em)prestam a novos sentidos que potencialmente podem aparecer na intimidade
de cada aconchego ninado. Os pais se resgatam como filhos e reatualizam a posição
de seus próprios pais para acolher o novo ser que precisará, por sua vez, pertencer
à cultura que começa a se descortinar.

3.1.1. REDES TEXTUAIS – O LIVRE TRÂNSITO DAS PALAVRAS

138
Para Belintane esses textos poéticos que carregam uma estética sonora, rítmica,
e que se reproduzem de tradições longínquas, funcionam sobrepostos à fala
cotidiana, em que jogos metafóricos e metonímicos laboram desde o princípio da
entrada da criança na língua. Crianças de menos de dois anos já passam pelo influxo
cativante desses jogos, que são capazes de produzir relações intertextuais bastante
complexas, por exemplo, um texto completo, uma cantiga de roda, pode ser arrastada
por uma palavra escutada no cotidiano (BELINTANE, 2007: 18).

Segue com o exemplo da menina Luisa de um ano e nove meses:

[...] a menina está batendo em uma tigela com uma colher de pau, a mãe se aproxima
para repreendê-la e sucede o seguinte diálogo:

‘- Filha, você vai quebrar a tigela!’

‘- Mãe, ‘tanta*’ o pato’! [*canta]

Assistimos aí, nesse jogo de alíngua, a emergência de uma habilidade essencial da


leitura e da subjetividade, o efeito metafórico-metonímico em que a palavra ‘tigela’,
vinda do outro, fisga uma canção inteira também procedente do outro: ‘O pato’ de
Vinicius de Morais, através do linque com o verso ‘o pato.... quebrou a tigela’. O mais
interessante é que por detrás do pedido ‘Mãe, canta o pato’ está uma cantiga, um texto
completo e não apenas outra palavra ou frase (BELINTANE, 2007: 18).

Uma palavra – tigela – abre o universo de um texto, que por sua vez faz resgatar
na memória todas as vezes em que significativamente mãe e filha entoaram juntas a
cantiga, marcaram um ritmo, riram uma só risada. É com este recurso psíquico de
entrecruzamentos dos vários objetos que o cercam, que o ser humano conta para
construir um lugar singular na relação com outros sujeitos e também na cultura da
qual passa a participar.

No mesmo sentido, temos o acontecimento inverso: de um texto, o recorte


infantil de uma palavra que depois ganha mobilidade em um gesto que pede
acolhimento. A mãe todas as noites cantava o ‘Boi da cara preta’ para a pequena
Lúcia, que escutava a nina calada e adormecia; até que um dia, por volta de um ano
e meio, com os olhos já cerrados, surpreende com o apelo: ‘Pegá, pegá, pegá’. O tom
choroso e os braços estendidos não deixava dúvida de que não era mais o boi quem
pegava [péga] a menina, mas era ela quem pedia para alguém pegá-la no colo. A
criança não só inverte a posição ‘ser pega’ por ‘fazer-se pegar’, como também muda
foneticamente a palavra: ‘péguestá menina’, para ‘pegá, pegá, pegá’.

139
Em todas as civilizações as crianças são embaladas por brincadeiras que
enlaçam e envolvem seu corpo com jogos linguageiros. ‘Cadê o toicinho que estava
aqui?’, ‘Janela, janelinha’, entre muitos outros, são exemplos destes acontecimentos
lúdicos com a criança, que se deixa encantar pelo ritmo, pela experiência marcada
em seu corpo e pela troca de olhares e gestos com o outro. Aí o adulto mapeia o corpo
infantil, nomeia-o ao mesmo tempo em que o reveste de possibilidades em torno de
uma unidade que chamará de ‘eu’. Os olhos são apontados ali onde estão as órbitas
oculares, mas ganham a fantasia do mundo que se descortina por ‘janelinhas’; os
dedinhos infantis tomam vida no vizinho, no pai-de-todos e no bolo, deliciosamente
pronto para o furo! O corpo se abre a muitos sentidos que não só de sua utilidade
física.

O que vemos na contação de histórias, nos brincos, nas parlendas, nas cantigas,
nas fórmulas de escolha, nas adivinhas, é mais do que compartilhamento lúdico; há
acesso à literatura pela via da oralidade, da escuta e do jogo de corpo. São
brincadeiras e jogos despretensiosos, que envolvem a criança em uma trama
relacional com o outro. Aí vai tomar consciência de si, constituir seu corpo e se
apropriar dos significantes que marcam sua subjetividade. A criança é tomada na
relação terna com o outro que brinca, e com ele se identifica entregando-se às
demandas de amor e troca.

Essa relação intertextual 52 tão importante entre uma palavra ou expressão da fala
cotidiana e um texto completo anteriormente memorizado é bastante comum na vida
das crianças que têm o privilégio de conviver com uma pluralidade de textos – aliás, é
uma operação que abre o traçado de uma subjetividade de entre-textos53, ou seja, um
sujeito efeito das possibilidades de relações que os dois eixos proporcionam. Esse
fenômeno, que no ensino de literatura é conhecido como intertextualidade, é um dos
dispositivos fundamentais do bom leitor (BELINTANE, 2011: 26).

Este percurso feito por cada sujeito, entre-textos, é ao que damos total atenção
como incremento da alfabetização e superação das dificuldades a ela intrínsecas.

52
Conceito que Belintane (2011) emprega como a relação que se dá entre a fala prosaica e fontes
precisas da tradição oral infantil.
53
Conceito que Belintane (2011) forja evocando o intertexto/interdiscurso da Análise do Discurso e a
posição lacaniana de encontrar o sujeito como efeito entre dois significantes. Entre-textos mantém a
ideia de excentricidade do sujeito e sua natureza intervalar.

140
Cabe dizer que no trânsito das palavras que vão do uso cotidiano ao lúdico
poético, e vice-versa, nesta captação de um texto a partir de uma palavra, ou de uma
palavra significante destacada de um texto mais amplo, já está posta a linguagem na
sua atividade metafórica-metonímica, como a que emprega a psicanálise, e que
muitas vezes se trama e se apresenta por sua incidência inconsciente.

Para tratarmos do inconsciente psicanalítico precisamos falar do Sujeito54 deste


inconsciente, como aquele que representa um significante (S2) para outro
significante (S1) e está dado de forma evanescente e imprevisível. Ele é um
acontecimento do qual não se tem controle, portanto ele não é o nosso foco da
educação-alfabetização. Diferente do Sujeito, mas totalmente dependente e
decorrente dele, é a Subjetividade que aqui abordaremos como as marcas da
experiência de um Sujeito, ao acolher e trabalhar com Textos.

O termo ‘texto’ é conceituado de diversas formas conforme se o tome pela


linguística, pela filosofia, ou tantas outras áreas de saber. No dicionário, por
exemplo, encontramos a seguinte descrição: Excerto de língua escrita ou falada, de
qualquer extensão, que constitui um todo unificado; toda e qualquer expressão, ou
conjunto de expressões, que a escrita fixou (FERREIRA, 1999: 1956).

Dany-Robert Dufour (2003), a propósito de diferenciar o texto da imagem,


estabelece que o texto possui as seguintes articulações significantes:

1) o nível da unidade elementar, da ordem do som, reenviado ao fonema; 2) o nível


semiótico da significação, que faz intervir o morfema; 3) o nível da significância, que faz
intervir a frase (o que Benveniste chama de ‘semântico’ para distingui-lo do
‘semiótico’); 4) o nível mitológico que reenvia à narrativa e faz intervir o que Lévi-
Strauss isolou sob o nome de mitema, unidade mínima da narrativa (DUFOUR, 2003:
126).

Tomaremos esta acepção de Dufour para o que chamamos de Texto, mas


faremos incidir sobre ela o sentido do texto expresso por Roland Barthes (1973):

Parece que os eruditos árabes, falando do texto, empregam esta expressão admirável:
o corpo certo. Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos fisiologistas;
aquele que a ciência vê ou de que fala; é o texto dos gramáticos, dos críticos, dos
comentadores, filólogos (é o fonotexto). Mas nós temos também um corpo de fruição

54
Todas as vezes que nos referirmos ao sujeito do inconsciente psicanalítico usaremos a palavra com
letra maiúscula - Sujeito – como forma de diferenciá-lo do sujeito indivíduo, pessoa.

141
feito unicamente de relações eróticas, sem qualquer relação com o primeiro: é um outro
corte, uma outra nomeação; do mesmo modo o texto: ele não é senão a lista aberta dos
fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços
vagabundos dispostos no texto como sementes e que substituem vantajosamente para
nós [...] as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia). O texto tem
uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo
erótico. O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical
(fonotextual), como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica (BARTHES,
1973: 25).

A Subjetividade é o que do Sujeito levaremos em conta para o trabalho de


letramento. E o Texto é a linguagem que, passada pelo corpo e tirando dele
elementos significantes, tece uma narrativa mitológica própria com a qual poderá
estabelecer diálogo com o mundo.

Se estamos supondo que Subjetividade e oralidade estão entremeados para


chegar à alfabetização, é preciso tratarmos de descrevê-las teoricamente antes de
passarmos ao assunto do letramento na escola. Tomo inicialmente o tema da
oralidade, para depois abordar a teoria freudiana sobre o Sujeito, para finalmente
verificar como um e outro disponibilizam conceitos que nos permitem conceber a
passagem da oralidade à escrita, considerando a Subjetividade.

3.2.MEMÓRIAS ORAIS – O CORPO EM TORNO DO SAGRADO

Crianças adoram jogos orais que entrelaçam corpos e palavras declamadas ou


cantadas. Quando pula corda, embala seu corpo ritmicamente com a passada da
corda sob os pés, mas também com récitas melodiosas como ‘Um homem bateu em
minha porta e eu a-bri...’, ou ‘Sal, pimenta, fogo, foguinho’. A infância é o tempo de
criar a arte de embalar o corpo; é por isto que a criança não para de brincar de
‘Balança caixão’, ‘Seu mestre mandou’, ‘Corre cutia’, entre infinitos mais que põem
em ação corpo e fala. Até para escolher o pegador no jogo de ‘Pega-pega’ ou
‘Esconde-esconde’, a criança se vale deste duplo recurso nas fórmulas de escolha –
‘U-ni, du-ne, tê’, ou ‘Mi-nha-mãe-man-dou-ba-ter’. Como na trama em que um fio não
se sustenta sem o outro, jogos orais infantis acompanham e são acompanhados pela

142
atividade viva e frenética dos pequenos substratos orgânicos que se agitam em
torno da brincadeira coletiva.

O evento coletivo, aliás, é imprescindível para que oralidade e corpo se


encontrem. Não se faz jogos de advinha estando sozinho, nem cirandas, tampouco
tem sentido a formulação oral de parlendas para si mesmo – imaginemos a cena
bizarra de alguém se dizendo, e levando a sério, o ‘Vaca amarela’... Também entre
adultos a presença do outro é indispensável para a brincadeira com a oralidade: o
repente e o calango55 só acontecem pela disputa entre dois e, de preferência, diante
de plateia ampla, que é para avaliar e aplaudir os feitos linguageiros de um e de outro
desafiante. Poderíamos citar várias outras modalidades de expressão oral-corporal
provenientes de tradições mais ou menos longínquas: quadrilha, congada, cavalo-
marinho, marujada, canto de lavadeira, etc.

Belintane (2011) considera cada um desses gêneros oriundos da cultura oral


como portadores de importantes elementos estéticos e linguageiros que favorecem
a alfabetização e a leitura significativa. Observa entretanto que esta passagem só se
dá pela retomada performática na oralidade em que uma adivinha deve desafiar
outra pessoa, um conto deve ser recontado, uma cantiga tem que ser cantada, de tal
forma que seja empregado um trabalho de memória para que estes textos sejam
guardados e reavivados quando solicitado, ou quando o próprio Sujeito se vir
inconscientemente recordado por eles.

Em meio a esta riqueza de acontecimentos orais-corporais há as narrativas, os


contos, os causos, as novelas que também agarram, ao menos imaginariamente, os
corpos nas palavras. Desde tempos muito distantes se reúnem pessoas para a
prática da transmissão oral de grandes épicos, cujos enredos carregam elementos
de unidade e identidade grupal. Em torno de fogueiras, nas varadas das casas, no
púlpito ou na Ágora encontravam-se oradores e ouvintes, entregues, cada qual em
uma posição, ao enredo detalhadamente enlevado.

Para pequenas crianças não alfabetizadas as histórias contadas por outros


causam um efeito de arrebatamento, não só pela forma e estrutura daquilo que é

55
O repente é uma modalidade de disputa oral em versos rimados que se faz prioritariamente no
nordeste brasileiro, enquanto o calango acontece com maior frequência no sudeste do país.

143
contado, mas – e principalmente – pela inserção delas em uma rede relacional: a
criança, o contador das histórias e toda fantasia que povoa as narrativas.

Quando a criança é bem pequena – até mais ou menos três, quatro anos – há
uma particularidade na contação de histórias que lhe dirigimos: ao contarmos
novamente uma história, ela tem que ser absolutamente igual à primeira vez! A –
quase – ingênua tentativa de mudança na cor do vestido da princesa, ou a troca do
adereço do herói, é motivo de choro, pedidos desesperados para retornar à
narrativa original. Por um bom tempo, nada de alterações! Nada de tentativas
descabidas de fornecer outros elementos ou suprimi-los. Por um período, crianças
são extremamente conservadoras e precisam da repetição.

Em certo grau este conservadorismo também é identificado por autores como


Milman Parry (1977), Eric Havelock (1996) e Walter Ong (1998) nas culturas orais
primárias que estudaram detalhadamente. Faço, então, uma digressão à histórica
das tradições orais (atentando para as particularidades do uso da memória, da
repetição e do corpo) e sua posterior versão escrita.

Culturas orais primárias são aquelas em que não há nenhum registro escrito ou
pictografado que suporte a fala ou, se há, é irrelevante como forma de transmissão
e perpetuação de pensamento. Para Ong (1998) o ato de falar foi central na
transmissão das histórias e na conservação do pensamento daquelas sociedades. O
status social dos indivíduos – filiação, parentesco, propriedade – era transmitido
oralmente, uma vez que nada repousava sobre a escrita. Tudo era referido à tradição
oral que algumas pessoas – memórias vivas da coletividade – transmitiam e
conservavam no próprio ato de comunicar. Não havia memória de nada que se
colocasse fora da narrativa.

Nas culturas orais as próprias leis são transmitidas por meio da exposição
verbal, portanto por meio da oratória busca-se a maior fidelidade possível aos
relatos anteriores. Este é o meio de os sujeitos rememorarem as histórias e com elas
se identificarem enquanto um povo que partilha elementos comuns. Além dos fatos
cotidianos, transmitem-se também o passado do grupo desde sua origem, suas
crenças e conhecimentos, enfim, tudo o que da tradição precisa ser preservado,
guardado e passado adiante. E quem deveria se encarregar desta transmissão? Em

144
última instância, uma divindade – na cultura grega, Mnemosine, a ‘memória’, mãe das
nove Musas56.

As divindades inspiram, dão o dom da visão, o poder de relembrar e de cooptar


tudo que se refere ao grupo e a seu modo de sobreviver. Os homens responsáveis
pelo contato com estas divindades eram os aedos, ou rapsodos – poetas-cantores –
que recitavam o saber acumulado e orientava a um horizonte comum. Eram os
locutores quem sabiam memoravelmente recordar as complexas narrativas que
davam dimensão da origem e da saga dos povos.

Segundo Parry (1977) e Ong (1998) as culturas orais possuem modos


particulares de pensar (distintos daqueles das culturas escritas). Expressam-se por
meio de padrões mnemônicos prontos à repetição e aí encontram expressões fixas
que não devem ser desmontadas, padrões formulares compostos por grupos de
palavras e frases e por conjuntos temáticos que permitem a memorização de
verdadeiras e longas epopeias.

A própria maneira de contar a história reflete a estrutura de pensamento oral


que segue algumas prerrogativas comuns nas diferentes sociedades em que são
encontradas: são pensamentos mais aditivos que subordinativos; mais agregativos
do que analíticos; os nomes são adjetivados, garantindo a qualidade do objeto; são
redundantes, organizando na repetição a certeza do que é dito; são conservadores,
comprovando os pensamentos já estabelecidos; são próximos das ações cotidianas;
são apelativos preservando a imersão da plateia e do locutor no que é dito; e
guardam um tom agonístico estabelecendo uma clara separação entre o bem e o mal,
o certo e o errado. Nessa ética oral as personagens são fortes, notáveis para
sobreviverem na memória como figuras-tipo, como heróis.

Para Jean-Pierre Vernant (1998) a memória dos povos ágrafos é onisciente: o


grupo social sabe o que foi, o que é e o que será, pela transmissão oral. O papel do
aedo não era de reapresentar o passado, mas de fazer uma efeméride atualizada

56
Na cultura grega antiga as musas eram responsáveis por inspirar os homens. Cada uma delas tinha
o dom e a responsabilidade pela transmissão de um tipo de memória: Calíope pela memória das
poesias épicas; Clio pela lembrança das histórias; Érato fornecia o dom da poesia romântica; Euterpe
responsabilizava-se pelas músicas; Melpômene permitia a transmissão das tragédias; Polímnia
possibilitava cantar os hinos; Terpsícore levava os homens a dançarem; Tália lembrava das comédias
e, finalmente, Urânia fazia com que os homens olhassem para o céu e todos os seus astros para que
nunca se esquecessem da grandeza do universo.

145
aproximando o distante do presente. A memória não é reconstituição do passado, mas
exploração do invisível57 (VERNANT, 1998: 24, tradução minha).

Os enredos da cultura oral primária são situacionais e mantêm em sua estrutura


equilíbrio com as condições presentificadas. Se pode-se verificar pequenas
alterações nas narrativas ao longo do tempo para um mesmo cantador, ou entre
diferentes locutores, estas só se dão pela administração da interlocução com a
plateia que deve ser mantida presa à fala. E, embora a memorização oral esteja
sujeita à pressão dos ouvintes, fazendo com que os padrões formulares possam
deslizar de um canto a outro na narrativa, eles não devem, em si, ser modificados,
pois a repetição é o que garante que a narrativa não se perca no tempo – e com ela a
história e identidade cultural.

O processo de memorização também se dava através de padrões de repetição.


Segundo Vernant (1998) na confraria de aedos gregos os homens eram submetidos
à aprendizagem mnemônica que os permitia compor a trama do canto, em que os
versos (às vezes dezenas deles) eram decorados em partes através do ritmo e das
rimas impressos a eles.

Parry (1977), por sua vez, verificou que geralmente um cantador precisava de
um tempo, de um intervalo de alguns dias, para assimilar a história escutada e vertê-
la para seus próprios padrões formulares. O corpo era o eixo das práticas
mnemônicas e também da transmissão das narrativas para seus pares. Para serem
capazes de guardar na memória textos significativamente longos, estabeleciam
ritmos corporais que acompanhavam as rimas dos versos. No momento da
reprodução oral utilizava os mesmos rituais rítmicos de gesticulação, respiração,
dança e simetria corporal. Rememoravam a partir de técnicas de controle da
respiração e de ações para purificar a alma e separá-la do corpo como forma de
acessar vidas vividas por ancestrais, reencontrarem o cosmos e, assim, se
submeterem ao divino. O corpo do locutor, nas culturas orais primárias, era
ativamente participativo na relação que estabelecia com o público, assim como
também era receptor das manifestações da plateia, expressas por agitações motoras
de aceitação ou repúdio ao dito.

57
La mémoire n’est pas reconstituction du passé, mais exploration de l’invisible (VERNANT,
1998: 24).

146
É a repetição que nas culturas orais garante a coesão e permanência sociais,
porque ao repetir uma narrativa histórica ela é presentificada e reavivada também
na memória dos interlocutores. Quer o mundo seja concebido sobre o casco de uma
enorme tartaruga, quer seja um grande geoplano fechado por uma abóboda celeste,
por meio das narrativas sacramentam-se a origem mítica da Terra, e dos Homens e
objetos sobre ela.

Para Ong (1998) os analfabetos em geral (e não só os das culturas orais) operam
com situações cotidianas e não fazem deduções formais ou trabalhos mentais
abstratos – para o autor estes seriam próprios do pensamento escrito. Isto não
significa que o pensamento oral seja inferior ao escrito, mas sim que guarda com ele
uma diferença. No pensamento oral seus sujeitos sabem concretamente estabelecer
relações de causa e efeito entre elementos, embora não sistematizem tais relações.
Para o autor a lógica de funcionamento mental é outra.

3.2.1. MEMÓRIA ORAL E MEMÓRIA ORAL ESCRITA – A SUBVERSÃO DA


NARRATIVA

Ong (1998) faz, portanto, uma clara separação entre cultura oral e cultura
escrita. Ao referir-se à função e formulação da memória e da transmissão da
tradição, estabelece uma dissociação radical entre uma e outra forma de expressão
social. Quando o autor ressalta a importância da memória para a preservação da
tradição oral, o campo em que trabalha é o social e coletivo, no sentido de que a
memória acontece na própria transmissão do texto que dá identidade de grupo e
não se estende a mais do que isto. Não se trata, portanto, da concepção que a
psicanálise tem dela, como se verá adiante, em que o Sujeito é o precipitador da
memória que fala de si e do outro – mais uma vez, como a que se estabelece no
modelo da Banda de Moëbius, uma vez que a memória de cada um depende da ação
de outras memórias.

Ao afastar-se da cultura oral primária e passar à escrita, para Ong (1998) os


homens começaram a exercer uma oralidade – que chama de secundária – pela via
da comunicação pragmática que dispensa a intermediação corporal, uma vez que
esta se faz por meio de aparatos tecnológicos (como o telefone). Diz Belintane

147
(2011), com quem concordamos, que Ong ignora que há tanto na cultura oral,
quanto na escrita, padrões heterogêneos de expressão: há culturas orais
contaminadas pela escrita, do mesmo modo que nas culturas escritas há padrões da
oralidade que permanecem vivos58.

Vejamos então como Ong separa radicalmente oralidade de escrita.

A compreensão da lógica das primeiras escritas decorre abertamente da


compreensão da lógica oral, ou seja, as primeiras grafias são reproduções diretas
das oratórias dos aedos e continuam tendo claramente função social e implicações
culturais. O que está escrito, neste sentido, continua sendo a extensão da memória
do grupo que se preserva e que deve ser evocada a partir de elementos míticos,
deuses ou ancestrais.

Tal forma textual pode ser vista na ‘Ilíada’, texto atribuído a Homero, mas que
hoje se acredita ter sido compilado por ele das tradições orais gregas.

Depois, já muito longe, ao senhorio de Apolo

orou, ao filho de Latona, belas tranças:

‘Ouve-me, Arcoargênteo, protetor de Crisa

e de Cila sagrada, Esmínteo, rei de Tênedos.

Se o templo que te ergui merece teu favor,

se coxas gordurosas te queimei de touros

e de gordas ovelhas, cumpre meu desejo:

faze os Dânaos pagar meu pranto com tuas flechas!’ (HOMERO, s/d: 35-42).

A escrita na tradição oral deve ser compreendida como a versão fiel do texto
declamado: esse é o primórdio da escrita alfabética iniciada na Grécia há cinco
milênios. Como lembra Belintane (2007) os gregos primavam por apuradíssima
estética oral disposta nas epopeias, nos teatros e na retórica; ao adotarem a escrita
consonantal fenícia acrescentaram a ela os símbolos para as vogais permitindo a
acomodação da poesia épica à escrita; os símbolos vocálicos criados ajustavam a
métrica e o ritmo dos textos oriundos da oralidade sem depreciar demasiadamente

58
Embora haja no Brasil muitas tribos indígenas que são de cultura oral primária, são pouquíssimas
aquelas que não se deixaram penetrar pela escrita de alguma forma; de igual monta, em nossa
cultura escrita muitos contadores de causos e repentistas mantêm viva a oralidade com função
semelhante à dos rapsodos.

148
seu valor poético. Aquilo que pertencia à tradição oral pode assim sair do corpo dos
rapsodos e fazer-se memória registrada pela escrita, portátil e aberta ao mundo. Mas
a passagem da oralidade para a escrita deixou uma marca na forma de transmissão:

Então, a visibilidade das vogais entre as consoantes seria apenas uma metonímia de um
universo realmente perdido, o mundo dos bardos, menestréis e sacerdotes das culturas
orais, ou seja, se os símbolos para as vogais foram criados para que a escrita se
adaptasse melhor à leitura em voz alta do texto poético, o acréscimo desse recurso
dispensou de vez o corpo do bardo como portador de texto e emprestou um uso amplo
à voz sem corpo (BELINTANE, 2007: 11).

A estética da oralidade poética grega subverteu a escrita acrescentando a ela as


vogais e esta (a escrita), por sua vez, corrompeu a oralidade escanteando o poeta de
sua emissão. Com recursos mais apropriados para evocar as possibilidades sonoras
humanas fora do corpo, paulatinamente o texto prescindiu da presença do orador e,
depois, dos próprios textos orais. Isto é, o advento da escrita alfabética permitiu a
expansão do uso da grafia para textos que expressavam outras formas de
pensamentos, que não só os da tradição oral.

Ong estabelece diferenças entre os dois modos de lidar com a palavra – oral e
escrito – e descreve-as da seguinte forma: A palavra falada é sempre um
acontecimento, um movimento no tempo completamente desprovido do repouso
coisificante da palavra escrita ou impressa (ONG, 1998: 89). As palavras escritas a
partir das culturas orais impedem o diálogo tanto com o escritor – que está distante
de seu texto – quanto com o rapsodo – que já não é quem o transmite. O autor diz
que pela leitura o entendimento do texto nunca será completo, pois sempre haverá
dúvidas sobre a verdadeira pronúncia e sobre o intervalo entre as palavras. Lamenta
que a precisão verificada no texto escrito não reproduza o texto oral.

Ressaltamos, entretanto, que a precisão dos sentidos da escrita é impossível,


porque a própria língua como acontecimento que organiza o homem no mundo
esbarra com os fenômenos da linguagem, como se verá adiante. Para ser exata, a
escrita precisaria abarcar todas as palavras, sentidos, gestos, composições,
universos, modulações expressas pela oralidade, ... e também os tropeços da fala. A
exatidão das palavras só pode ser pretendida no universo imaginário. Ademais, o
rigor exaltado por Ong para as palavras na oralidade primária também não parece

149
possível, posto que de rapsodo a rapsodo acontecem variações textuais e ajustes à
memorização rítmica e à corporalidade de cada um.

Vagarosa e imperceptivelmente o tempo se impôs ao que antes se escutava e, o


que se passou a ler das narrativas orais, logo não era mais como em sua origem – já
não se lê Ilíada como antes! Ong considera que a palavra na oralidade é real, no
sentido de que comporta mais do que o verbal entre dois seres vivos, pois anuncia
também gestos e expressões; nos textos escritos, as palavras estão sós, coisificadas,
como só está quem as escreve. Sem a mediação presencial do corpo do rapsodo a
relação com o texto fica desumanizada e, ademais, dessacralizada – e talvez esta seja
a observação mais relevante que podemos destacar de Ong, referente à distância
tomada entre as duas ordens textuais: A força interiorizada do mundo oral tem uma
ligação especial com o sagrado, com as preocupações fundamentais da existência
(ONG, 1998: 88).

Para Vernant (1998) esta dimensão sacra das culturas orais é o que extrapola a
rememoração como saber comum ao grupo e passa também às lembranças
individuais. Parece ser este o elemento que faz a articulação entre a memória
coletiva e a dos indivíduos. Podemos extrair desta observação uma consideração
também encontrada em outros autores: o sacro, o misterioso, o mágico é o que faz
entrada na memória individual dos sujeitos, desde a origem dos textos.

Na sacralidade a relação com o tempo também é outra entre as culturas orais e


escritas. Na oralidade, individual ou coletiva, a memória não restaurava o tempo
passado, mas permitia a própria constituição temporal aproximando Homens e
objetos deste mundo endeusado e misterioso. O tempo na oralidade é
unidimensional e o passado é o acontecimento atualizado na memória coletiva;
depois da escrita o tempo é reflexivo e a anterioridade é retomada e reconsiderada
conforme os acontecimentos e elementos presentes e futuros.

Se na tradição oral o corpo é peça fundamental no ato das transmissões


narrativas, porque dele emana a expressão rítmica e os gestos, e assim agrega
elementos estéticos à poesia, estranhamos que ao tratar da importância do som para
a dinâmica da oralidade, Ong conceba o corpo humano biologizado, composto por
respostas exatas aos estímulos a que está submetido.

150
A audição pode registrar a interioridade sem violá-la. Posso bater numa caixa para
descobrir se está vazia ou cheia, ou numa parede para saber se é oca ou sólida [...].

Todos os sons registram estruturas interiores do que quer que os produza. Um violino
cheio de concreto não soará como um violino vazio. [...] E, acima de tudo, a voz humana
vem do interior do organismo humano, que fornece as ressonâncias vocais.

A vista [do texto escrito] isola; o som [do texto oral] incorpora. A visão situa o
observador fora do que ele vê, a uma distância, ao passo que o som invade o ouvinte.
[...] Na visão não há uma maneira análoga de mergulhar em si mesmo (ONG, 1998: 85-
86).

É uma compreensão sensorialista-cognitivista dos sentidos e de suas relações


com a produção e os efeitos da oralidade. O autor deixa perceber que os sentidos do
corpo se relacionam com a concretude dos objetos do mundo e se traduzem por suas
(dos objetos) propriedades físicas. Faz uma estranha hierarquização entre audição
e visão, que usará para classificar o texto ouvido como superior ao texto lido.
Entretanto parece não considerar esta divisão na oratória, em que também a visão
do corpo do rapsodo conta para compreensão da narrativa. É uma classificação que
vale para a leitura, mas não para a audição do texto.

Extrapolando este entendimento, poderíamos pensar que Ong estabelece uma


dicotomização passivo/ativo para o sujeito diante do texto, desde o suporte textual
e não de sua posição como leitor/ouvinte. É como se necessariamente diante de uma
fala narrativa houvesse sempre interesse dos interlocutores, ao passo que no texto
escrito há sempre alienação. Não concordamos com a forma como estabelece a
divisão ação/alienação, mas ressaltamos que este apontamento vai nos remeter
mais adiante à necessidade de falarmos sobre o posicionamento Subjetivo do leitor
diante de qualquer texto, em qualquer suporte. Ademais, esta hierarquização entre
audição e visão não condiz com um elemento caro a nossa tese: o da
intertextualidade e da possibilidade de se ir de um texto a outro, de um suporte a
outro e de uma forma discursiva a outra.

Mas, ainda seguindo o pensamento de Ong, encontramos outra consideração


importante: ao supor que no texto escrito o escritor está distante de argumento
extratextual que garante sua melhor compreensão, conclui que [...] a falta de um
contexto verificável é o que torna a escrita normalmente uma atividade tão mais
angustiante do que a apresentação oral para um público real (ONG, 1998: 118). Ou

151
seja, diante da inatividade ou da falta de contexto significativo, o sujeito se angustia!
– embora tenhamos discordado acima dos motivos da passividade/atividade
alegados por Ong, temos que concordar que diante da inação e da falta de sentidos
o sujeito se angustia, mas aí, novamente, isto se dá diante de qualquer suporte
textual.

Enfim, a dificuldade de precisar a escrita sobreposta à tradição oral já parece


anunciar o tom subjetivo que a escrita moderna comporta. Se é impossível retratar
por registros gráficos o que está na tradição oral, é porque a escrita se distancia da
oralidade primária – esta a serviço civilizacional e sua organização enquanto grupo
– e, a partir daí, traçará outros caminhos com relação à sua origem.

A escrita é angustiante porque nela algo falta; mas será que o que lhe falta é o
que a contextualiza e lhe dá clareza, é o que pode ser suprido pela oralidade? E por
que julgar que na fala, na oralidade esta angústia é tão menor? Porque na oralidade
primária o texto é relato de todos e a angústia não é sentimento coletivo... já na
escrita que se afasta da natureza mítica começamos a vislumbrar o Sujeito e a função
dessa angústia. A compreensão sobre a função da escrita talvez esteja sintetizada
em Ong da seguinte forma: Mais do que qualquer outra invenção individual, a escrita
transformou a consciência humana (ONG, 1998: 93). Refere-se à mudança radical no
modo humano de pensar e se relacionar a partir da tecnologia da escrita e afirma
que isso não resulta de uma capacidade natural, inata, mas de uma construção.

O pensamento oral das culturas ágrafas é diferente do pensamento escrito que


funda outro modo civilizacional. O Homem precisou construir e valer-se da escrita,
para além do oral. Talvez a estrutura de pensamento, não sendo contemplada só pela
oralidade e pela sua inscrição no coletivo, precisou inventar a escrita. Talvez a
totalidade, a unicidade social compreendida pelas culturas orais primárias, em dado
momento passou a não mais responder por todas as necessidades individuais
subjetivas, levando o Homem criar a escrita.

Mas, de qualquer forma, insistimos em enunciar que não aderimos a esta


separação radical entre oralidade e escrita. Contrário a isto, é justamente da tensão
estabelecida entre ambas que tiramos o estofo para pensarmos sobre os assuntos
da alfabetização.

152
3.2.2. MEMÓRIAS EXTRA-CORPO – O REVIRAMENTO HISTÓRICO SOBRE
OS TESTEMUNHOS

Se na sociedade grega os textos primários eram associados às divindades, a


emergência das polis e o advento da escrita levou as leis a serem registradas e
presentificadas à vista de todos. Com isto, na análise de Vernant (1998), cada
indivíduo passou a se ocupar da conservação de seus arquivos. Todas as
informações eram redigidas, conservadas e transmitidas na forma de papiros e, ao
invés da onisciência dos aedos, procede-se uma nova técnica de memorização com
registros acessíveis a todos, dispostos espacialmente em bibliotecas, classificados,
conservados e consultados. O ‘bibliotecário’ já não acredita na inspiração divina e
reconhece o caráter artificial de sua arte, que perdurará toda a antiguidade grego-
romana, até o Renascimento. Altera-se, com a escrita, o registro e a conservação
mnêmicas.

Para este autor a concepção de uma memória humana geral consumada fora do
corpo e reunida em grandes quantidades de textos escritos em um mesmo museu-
biblioteca, como o de Alexandria, causa impacto até hoje. A comoção diante da
grandiosidade dos arquivos leva os indivíduos a quererem interiorizar as memórias
ali dispostas e tomá-las, não mais como saber universal e social, mas como
instrumento do eu-maravilhado na exploração solitária que quer saber à revelia do
grupo. Emerge no indivíduo a vontade pela enquete sobre seu próprio passado.
Consagra-se a dicotomia entre memória coletiva e individual.

Como causa – ou será como consequência? – o advento da escrita produziu


mudanças no pensamento, nas interrelações humanas, na relação com o tempo e
com o espaço, com a memória e também com a apropriação do saber.

Na visão de Vernant (1998), entretanto, a mudança essencial na forma de


memorização não se restringiu à passagem da memória coletiva à individual. Desta
separação primeira surgiu a memória sócio histórica por meio da qual se
estabeleceu a cientificidade crítica, que busca verdade desinteressada e saber puro.
Fundaram-se a história, a filosofia, a política, entre outros modos de interpretar os
acontecimentos, dando-lhes estatuto causal de longevidade e previsibilidade.

Entre estas três memórias instituiram-se paradoxos:

153
[...] a memória histórica não pode ignorar, ao lado de documentos ‘objetivos’, a
experiência insubstituível das testemunhas, daqueles que viveram os acontecimentos.
Estas testemunhas, cumprindo seu dever de memória, não poderiam por sua vez,
esquecer essa exigência de verdade que é o cerne do trabalho do historiador; essa Dupla
condição [documental e testemunhal] permite que a memória social cumpra seu
objetivo de ligação com o passado, evitando a mitologia sem cair no esquecimento
(VERNANT, 1998: 27, minha tradução)59.

Na passagem da memória coletiva à individual (e a partir delas o advento da


memória sócio histórica) há mudanças epistemológicas na forma de os Homens
conhecerem e se apropriarem de seu universo. A identidade de grupo em torno de
elementos míticos não contempla mais as razões humanas sobre a Terra e parte-se
em busca de outras explicações sobre as relações e a origem dos Homens. Inaugura-
se a política como forma de gerir as relações de poder e de obrigações dos cidadãos
com sua civilização.

Novamente, sem ignorar as mudanças no modo de conceber o conhecimento


humano a partir da criação das ciências, e sem desconhecer que a memória ganha
alguns incrementos fora do corpo já desde o advento da escrita, de qualquer forma
não aderimos totalmente à separação definitiva entre o pensamento mitológico e o
científico, como parece apontar a memória sócio histórica. Mais uma vez propomos
articulação tensionada entre ambos, uma vez que todo pensamento científico é
ancorado em uma aporia, em uma origem primeira não sabida e, por isto mesmo,
imaginada em sua origem – mítica, portanto. E, de mesmo modo, todo pensamento
mítico traz algum elemento de saber que dá suporte às ciências60.

59
[...] la mémoire historienne ne peut ignorer, à côté des documents ‘objectifs’, l’expérience
irremplaçable ds témoins, de ceux qui ont vécu les événements. Ces témoins, en accomplisant
leur devoir de mémoire, ne sauraient, de leur côté, négliger cette exigence de vérité qui est au
coeur du travail de l’historien; c’est à cette Double condition que la mémoire sociale pourra faire
son travail de rattachement au passe, en évitant la mythologie sans tomber dans l’oubli
(VERNANT, 1998: 27).
60
Já havíamos constatado tal relação entre pensamento mítico e científico (BATTAGLIA, 2001), ao
observarmos na origem da medicina científica que na Grécia clássica Hipócrates verificara que o
corpo humano era composto por quatro humores (fleuma, linfa, bílis negra e bílis amarela), fluidos
que deveriam estar presentes numa certa quantidade ‘natural’ a cada indivíduo e cuja proporção
correta (a temperança) dava a medida justa da saúde – observações às quais podemos atribuir certo
aspecto científico que servirá de base para investigações posteriores. Mas o mesmo médico
acreditava que a natureza dos corpos dependia da classe social em que era considerado: homens
nobres (os cidadãos) de corpos quentes e bem temperados, e as outras ‘categorias’ (as mulheres e
os escravos) de natureza fria. Atualmente encontramos na física empenho maciço para se chegar à
origem de todos os elementos físicos, também chamada de ‘partícula de Deus’.

154
O pensador Paul Ricoeur (1998) analisa que a cultura política estabelece-se
sobre o terreno da verdade que a memória procura estabelecer. Mas a lembrança
como presentificação de um acontecimento passado, ausente e desaparecido, coloca
um paradoxo filosófico concernente à sua confiabilidade e fidelidade. Como um
traço – seja neurobiológico, seja psíquico – a memória impossibilita a detenção
sobre sua materialidade. Ademais, a ausência não se manifesta só pela extinção do
passado, mas também das experiências vividas: a memória é ausência do
acontecimento real e a consequente intromissão do irreal, do fantástico, do
imaginário e do utópico. É porque estas duas ausências se revelam imbricadas, que
a credibilidade da memória é muitas vezes contestada quando proveniente de um
sujeito testemunhal.

Apesar das objeções, Ricoeur afirma a necessidade de se manter a ambição –


ainda que latente – de reivindicar confiabilidade à memória dos indivíduos.
Tomando a memória como apresentação fiel do passado ela é passível de verificação
nas referências a algo que não está mais, mas que esteve. Se podemos acusar a
memória de não ser confiável, o que é o caso, é justamente porque esperamos que ela
seja confiável; é precisamente essa crítica que não faremos à imaginação. A
imaginação está autorizada a sonhar, a memória é convidada a ser verdadeira.61
(RICOEUR, 1998: 29, tradução minha). A imaginação deve ser criativa, livre; da
memória se espera que seja verdadeira, fiel ao que se passou.

Como esta aporia repercute no meio histórico? Como verificar a memória,


então? O autor propõe seguir dois caminhos relativos a esta ambição por verdade e
mostrar como ela se prolonga no discurso histórico: o primeiro é o caminho do
testemunho (individual) e o outro do documento (coletivo).

No discurso não há nada melhor do que o testemunho para apresentar a


memória. A testemunha transpõe as coisas vistas e vividas para o dito: revela que
viu, entendeu e aprendeu alguma coisa. E, se estas confissões se prestam a críticas,
é porque sempre há possibilidade de confronto entre diversos depoimentos – é
justamente destes diferentes contrapontos que se faz a história! A passagem da

61
Si on peut reprocher à la mémoire de n’être pas fiable, ce qui est le cas, c’est précisément parce
que nous attendons d’elle qu’elle le soit; c’est précisément um reproche que nous ne ferons pas à
l’imagination. L’imagination est autorisée à rêvér, la mémoire est invitée à être vraie (RICOEUR,
1998: 29).

155
memória individual à coletiva é legitimada pela linguagem e a memória individual é
prolongada pela memória coletiva através da sua documentação. O documento
nunca deixa de ser a escrita da memória, do testemunho; é a memória coletiva
arquivada, em que se juntam as testemunhas intencionais e as involuntárias. É da
intenção de se guardar traços de memória que os testemunhos são documentados.

Os testemunhos são eventos narrados. Diz Ricoeur (1998) que é certo que existe
uma história que a memória cria, mas também existe uma história das memórias
criadas. A história amplia a memória no espaço, no tempo, nos temas, nos objetos:
assim se distingue uma história política, uma social, uma cultural, uma econômica,
etc., mas o que se produz não é outra coisa senão memória e seu registro.

Ainda sobre a imbricação memória-história, Rudolf Von Thadden (1998)


ressalta que duas histórias diferentes sobre o mesmo fato podem coexistir sem que
nenhuma perca seu fundo de verdade. Os fatos são concebidos pela percepção e esta
é tão importante quanto sua facticidade: É ilusório procurar os fatos fora de suas
percepções62 (THADDEN, 1998: 42, tradução minha). Afirma que é preciso maturidade
para aceitar diferentes percepções dos acontecimentos e que, justamente uma
forma de garantir que estas percepções não sejam arbitrárias ou demasiadamente
afastadas da realidade, é confrontá-las desde as concepções da tradição e da cultura,
em seus aspectos individuais e coletivos. É preciso aceitar as divergências de
percepções, respeitando as memórias plurais e renunciando às tentativas de reduzi-
las a força, a uma só memória.

Thadden (1998) fornece um exemplo recente para ilustrar tal ideia. No pós-
guerra, dentro de quadros políticos diferentes, o trabalho de memória da população
da Alemanha do Leste não foi o mesmo engendrado no Oeste: a Alemanha Oriental
tratou logo de negar a história da Alemanha de Hitler, como forma de fundar a
República Democrática da Alemanha e estabelecer uma mudança de identidade
nacional – um cidadão da RDA não tinha nada a ver com o alemão da década de 30,
não sofria e não se responsabilizava pelo que havia se passado; aliaram-se ao
comunismo que vencera o nazismo. A Alemanha Ocidental suportou o fardo do
nazismo. Uma vez que a Alemanha Federativa se declarou sucessora do governo de
Hitler, herdou (nacional e internacionalmente) o que sobrou do nazismo. Seus

62
Il est illusoire de chercher des faits en dehors de leur perception (THADDEN, 1998: 42).

156
cidadãos rapidamente se viram condenados a conviver com o passado e
impossibilitados de se desvencilhar da identidade nacional.

Com a reunificação das duas Alemanhas, cinquenta anos depois e passadas duas
gerações, a memória que se constituiu a partir daí foi resultado de um debate
contínuo no interior de uma sociedade que ainda (ou de novo) buscava identidade.
A Alemanha de hoje convive com estas duas memórias diferentes, em um trabalho
complexo, mas que é o que permite que a história do Terceiro Reich se totalize. Não
há necessariamente oposição entre elas, mas sobreposição e complementariedade.

Sem a documentação por imagens de filmes e fotografias que retrataram as


experiências nazista nos campos de concentração, não teríamos a real dimensão do
que acontecia naqueles confinamentos. Mas também sem o testemunho escrito por
Primo Levi (1958) não teríamos ideia do tamanho da barbárie daquele cotidiano; ou
sem o testemunho de Anne Frank (1947 [1942-1944]) não poderíamos nos reportar
para a angústia do isolamento, nem para as pequenas poesias, em princípio
inimagináveis, que se pode extrair de uma guerra.

Na memória social é evidente que várias percepções é que permitem descrever


uma cena mais ampla sobre os acontecimentos. Assim, os vários testemunhos é que
dão a composição do quadro e, os argumentos que tentam desqualificá-los são em
parte superados pelo fato de que as perguntas formuladas às testemunhas – e
mesmo aos documentos – também derivam de subjetividades. Diz Jacqueline
Romilly (1998) que a história objetiva, em si, não pode ser alcançada, mas as
memórias, estas sim podem se revelar em seu conjunto.

No fundo opera-se um reviramento sobre a relação história-memória em que,


da desconfiança quanto à veracidade das memórias individuais, chega-se à
necessidade de ter que passar por elas novamente, como garantia da recuperação
de traços dos acontecimentos históricos passados, tensionando cada uma das
memórias individuais na relação com outras.

3.3.MEMÓRIA – LAÇOS DE TRANSMISSÃO

157
Até o momento vimos que a memória se faz na tensão-entre: entre fala e corpo,
entre oral e escrito, entre coletivo e individual, entre testemunha e documento, entre
individual-grupal e história. Vimos também que ela é marca do humano, que de uma
forma ou de outra precisa deixar seus rastros para serem reatualizados no futuro e,
lá no futuro, buscados nas distâncias do passado: é assim desde as inscrições
rupestres, de uma época em que o Homem passou a ser nominado como sapiens.

O que vem nos interessar sobre a memória é como ela é capaz de reter
historicamente e transmitir de geração a geração seus conteúdos, de forma a que
alcance o espaço chamado escola, onde se diz que ela é imprescindível para cada
estudante. Se chegamos aqui pelo viés da memória no seu estado geral, compete-nos
agora ver os meandros de sua articulação no indivíduo e como participa do processo
de aquisição e consolidação de leitura e escrita.

Considero nessa visão que chegamos ao ponto em que o escritor/leitor ao


isolar-se não o faz sozinho, como assinalava Ong. Ele é provocado pela relação com
seu universo particular que, necessariamente, conta com a presença de outros
sujeitos, sejam eles concretos ou imaginados.

Na dissertação de mestrado ‘Escritores e suas memórias de infância’, Rita de


Cássia Monteiro (1993) entrevista escritores de livros infantis buscando
compreender quais elementos mnêmicos cada um busca na composição de seus
textos. Entre as entrevistas concedidas encontram-se duas emblemáticas: uma de
José Arrabal e outra de Roberto Gomes63, das quais recortamos alguns trechos.

José Arrabal:

Quando eu escrevo, eu não tenho uma imagem de infância e da criança em abstrato, mas
sim da criança que eu fui e da minha infância. [...] Tudo o que eu escrevo é
autobiográfico, direta ou indiretamente [...], sentimentos que eu vivi [...] tenho certeza
que está lá dentro da minha lembrança, da minha memória. [...] [A professora] não
ficava ensinado o be-a-bá para a gente, ela passava as aulas lendo histórias. Certa vez
ela leu uma história que aparecia a expressão ‘furtacor de caracol’. Eu comecei a rir

63
José Arrabal, capixaba, jornalista, advogado, professor e escritor. Dentre os inúmeros livros
infantis figura “A princesa Raga-Si” (1985), vencedor do prêmio da Associação Paulista de Críticos de
Arte (APCA) daquele ano.
Roberto Gomes, catarinense, escreveu obras filosóficas como “Crítica da razão tupiniquim” (1977) e
Antes de o teto desabe” (1981), mas também dedicou-se à literatura infanto-juvenil, cujo maior
expoente é “O menino que descobriu o sol” (1982).

158
porque achei muito engraçada essa expressão. Eu tenho a impressão de que essa coisa
de ser escritor está muito ligada à infância remota. Veja você ‘furtacor de caracol’ é um
jogo de sons. Enquanto eu não escrevi um livro colocando essa frase, eu não sosseguei.
Até recentemente, eu dizia que quando eu escrevia para crianças contava histórias
como se eu fosse criança, como se eu me transportasse a uma situação de criança e me
contava essas histórias. Mas hoje, estou percebendo que não é bem assim. Eu acho que
acontece o seguinte: quando eu era criança, era acarinhado com mais facilidade do que
hoje, eu era acarinhado pelas pessoas da família, pelas pessoas amigas, e uma das
formas de me acarinharem era me contando histórias. Minha avó me contava histórias,
meu pai me contava histórias, minha professora me contava histórias, [...] e eu retorno
a eles de outra forma. Quando eu me conto as histórias é como se eu tivesse fazendo
alguma coisa que fizeram carinhosamente comigo no tempo da minha infância
(MONTEIRO, 1993: 27-29, grifo meu).

Roberto Gomes:

Eu acho que a literatura infantil tem esse lado do jogo gratuito, que às vezes desaparece
na literatura do adulto, com a criança você brinca diretamente, você pode fazer
arbitrariedades na história, no enredo, no personagem, fazer jogos de palavras, enfim
uma série de coisas que o próprio universo da criança permite. Esse caráter de jogo, de
gratuidade que faz parte da arte, na literatura infantil isso acaba sendo favorecido. [...]
Quando as crianças me perguntam se o meu avô era igual ao do livro, eu tenho que
responder que não conheci nenhum dos quatro. Eu acho que eu escrevo sobre isso
porque sinto falta, por isso invento um avô para mim, é o avô que eu queria ter tido. A
gente escreve não só sobre aquilo que se viveu, mas do que você careceu naquele
momento, daquilo que você precisava (MONTEIRO, 1993: 38-40, grifos meus).

Vemos claramente nessas passagens elementos testemunhais importantes para


a articulação teórica que estamos empreendendo. Primeiro o traço mnêmico
resgatado por uma falta, pela ausência de sentido, quer pela bizarrice desconhecida
do que venha a ser ‘furtacor de caracol’, quer pela ausência dos avós mortos e não
conhecidos. É exatamente pela incidência do vazio, do não sentido, do nonsense, que
o Sujeito é capturado e convocado à elaboração. É exigido dele um sentido para
aquilo que vive no Real. Segundo, o trabalho de elaboração Subjetiva –
engendramento de representações possíveis por deslocamentos metafóricos e
metonímicos – é indissociado do trabalho mnêmico evocado por uma série de
sentidos e significações já marcados na experiência vivida. Terceiro, o jogo gratuito
da língua, a brincadeira com as palavras que encantam as crianças e que lhes parece
mais aprazível do que sua utilidade objetiva. Tanto Arrabal, quanto Gomes,

159
deixaram-se capturar e envolver pelo jogo infantil – um pelo jogo de sons das
palavras e outro pelo jogo gratuito de palavras – com que subsidiaram suas escritas
na vida adulta.

Aproximamo-nos novamente do ‘desútil’ de Manoel de Barros e no trajeto nos


encontramos com Roland Barthes, mais precisamente, com a aula proferida em
1977 no Colégio de França, aos alunos de semiologia literária. Naquela feita mais
uma vez opôs-se aos estereótipos e lugares comuns da linguagem, sugerindo sua
permanente transformação e deslocamento sobre a língua como forma de
contrapor-se a seu acomodamento e à opressão que exerce sobre os sujeitos. A
linguagem não é para ele um instrumento dócil e fácil, mas [...] o objeto em que se
escreve o poder desde toda a eternidade humana (PERRONE-MOISÉS, 2007:63). Para
Barthes a linguagem é uma legislação, a língua é seu código [...] um idioma se define
menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer (BARTHES,
1977: 12); neste sentido, a língua implica em uma relação fatal de alienação, de
assujeitamento. Entretanto também é a linguagem que conserva em si toda
potencialidade de resistência, quando posta em prática, pois aí desloca-se das
palavras de ordem, dos imaginários e dos clichês através dos quais os discursos de
poder engendram o erro e culpabilizam quem os recebe. O autor vê na literatura a
força que faz girar os saberes, pois aí, ente outras coisas, encontra espaço para
representação daquilo que chama de ‘real’, o não representável.

Submetidos necessariamente à linguagem – e dela não podendo prescindir –


Barthes propõe que no modo de pensá-la/agi-la encontremos operações
fundamentais de desprendimento, fragmentação, digressão e ambiguidade que
permitam abrandar o poder opressivo que exerce. E propõe o confronto da
linguagem alienada pela via poética do jogo infantil:

Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançaram fossem semelhantes às idas e
vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para
trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro
calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente
menos do que o dom cheio de zelo que dele se faz.

Quando a criança age assim, não faz mais que desenrolar as idas e vindas de um desejo,
que ela apresenta e representa sem fim. Creio sinceramente que, na origem de um
ensino como este, é preciso que se coloque sempre um fantasma [...], isto é, o corpo

160
humano; foi partindo desse fantasma, ligado nele à ressurreição lírica dos corpos
passados que [...] desvia do lugar em que o esperam, que é o lugar do Pai, sempre morto,
como se sabe; pois só o filho tem fantasmas, só o filho está vivo (BARTHES, 1977: 42-
43).

O desejo assim posto como possibilidade de desmontagem da linguagem


alienada que assujeita, faz pender o fiel da balança ao encantamento que a palavra
pode vir a exercer: deixar flui-la, deslocando-se do lugar onde ela será aprisionada
por um discurso de poder – exercido através da ilusória compreensão plena da
realidade –, para entregar-se ao nonsense, ao aparente sem sentido, ao sabor que
denota ao mesmo tempo gosto e saber. A esse jogo de/com palavras-desejo a criança
está mais facilmente entregue e, ao invés de desfrutarmos com ela dessa posição –
ou de no mínimo a deixarmos usufruir de sua condição – impingimos-lhe a
alfabetização contemporânea, precocemente cheia de formas de objetivação e
explicação crítica do ‘seu’ universo, tentando fazê-la compreender os sentidos das
coisas, antes de experimentá-las.

As crianças não se acomodam tão facilmente às palavras de sentido único e


provocam seu deslocamento. Muitas vezes elas precisam garimpar a palavra no
meio de despropósitos adultos, pois nem sempre ela chega branda como nas
cantigas de ninar; mas de qualquer forma sempre chega atravessando o Sujeito e
questionando-o. São as perguntas que movimentam a criança na busca de sentido
para as narrativas.

Acre! Assim foram muitas das palavras que fizeram eco em Graciliano Ramos:

Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça.
Resisti, ele teimou – o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-
me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-
me para a sala de visitas – e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda
poderia dizer alguma coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado,
da largura de quatro dedos (RAMOS, 1945: 111).

[...]

As mãos descansavam na tábua, imóveis. Julgo que estive louco. E amparei-me ansioso
às figurinhas de sonho que me atenuavam a solidão. O mundo feito caixa de brinquedos,
os homens reduzidos ao tamanho de um polegar (RAMOS, 1945: 113).

Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco
e deixou-me. Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha. E as duas letras

161
amansaram. Gaguejei sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniram, formaram
sentenças graves, arrevesadas, que me atordoavam. Certamente meu pai usara um
horrível embuste naquela maldita manhã, inculcando-me a excelência do papel
impresso. Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os
conceitos sisudos: ‘A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras
vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém’.

Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final
da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as linhas em negrita, resumo
da ciência anunciada por meu pai.

– Mocinha, quem é Terteão?

Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse um homem.
Talvez fosse. ‘Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém’.

– Mocinha, que quer dizer isso?

Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão. E eu fiquei triste,


remoendo a promessa de meu pai, aguardando novas decepções (RAMOS, 1945: 114).

O pai só lhe dirige palavras amargas e exigências de um desempenho sem


condução. Sua presença faz calar – e esta opção ainda é a melhor, já que a segunda
forma de comparecimento é fazer gritar sob a ação da palmatória! Não é exatamente
alguém de quem se possa esperar muita compaixão com as agruras da infância...

Ter-te-ão! Isso fez questão em Graciliano e principiou a abriu-lhe uma porta


para a humanidade: ele não sabia, mas imaginava possibilidades: Terteão, o homem!
Mas a porta que se abre ainda não lhe permite passar. O Outro a quem dirige sua
demanda não responde com o amor que as indagações infantis exigem. Só mais tarde
encontrou respaldo para suas dúvidas, mas o que achou não foram respostas, senão
um Outro que lhe ofereceu um porto seguro em que as intermitências puderam
aparecer. Assim ele retrata d. Maria, sua professora:

– Está cansado? sussurrou a mulher.

– Não senhora.

– Então vamos adiante.

Isso me pareceu desarrazoado: exigiam de mim trabalho inútil. Mas obedeci. Obedeci
realmente com satisfação. Aquela brandura, a voz mansa, a consertar-me as
barbaridades, a mão curta, a virar a folha, apontar a linha, o vestido claro e limpo, tudo
me seduzia. Além disso a extraordinária criatura tinha um cheiro agradável. As pessoas

162
comuns exalam odores fortes e excitantes, de fumo, suor, banha de porco, mofo, sangue
[...]

Felizmente d. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo, aí
vivia farejando pequenos mistérios na cartilha. Tinha dúvidas numerosas e admitia a
cooperação dos alunos (RAMOS, 1945: 122-123).

A posição do Outro diante das necessidades da criança é condição para fazer (ou
não) se desdobrar sobre si os sentidos das palavras. O que faz Graciliano ao longo
desta obra é relatar suas experiências com o Outro e com os dois lados da palavra:
os imperativos duros e surdos que aprisionam o sujeito às próprias entranhas e as
modulações sonoras, sussurradas tão brandamente que o suspendem da qualidade
de ‘pedaço de carne’64. Tão bem traduzido em ‘Infância’, este não é um
acontecimento que se dá só com o autor, mas uma condição de todos nós, humanos:
lidamos com os discursos nas suas porções impositivas ou demandantes-desejantes,
(ou, retomando Belintane (2011), nas suas funções pragmáticas ou lúdico-poéticas).

A possibilidade de enquadrarmos o posicionamento Subjetivo diante destes


dois discursos, vamos enfrentar através de uma teoria do Sujeito. Na psicanálise
encontraremos elementos para pensar como o aparelho psíquico se constitui na
relação de linguagem com o Outro (demarcando o lugar do desejo) e nas tramas das
relações de objeto.

3.3.1. LINGUAGEM E MEMÓRIA – REPETIÇÕES NO CORPO E FENÔMENOS


DE FALA

Freud foi buscar em si o sujeito pego no contrapé das palavras; e em si


encontrou o infantil que se surpreende e é surpreendido pela intromissão da
linguagem.

Na carta 52 que escreve as Wilhelm Fliess (FREUD, [1887-1904] 1896), define


que o aparelho psíquico é fundamentalmente um aparelho de memória. Em ‘Sobre
as afasias’ (1891) já havia descrito que este aparelho psíquico de memória é um
aparelho de linguagem que em nada é natural ou congênito, mas que é uma estrutura

64
Termo que alude à ‘libra de carne’, forjado por Jacques Lacan para designar a criança tomada
como objeto Real, de gozo puro da satisfação de um adulto.

163
que se forma na relação com outro aparelho de linguagem. Essa concepção de
memória, tão importante na teoria freudiana, é epistemologicamente diferente
daquelas que tratamos até agora: aqui ela constitui de maneira única cada aparelho
psíquico, que terá que ascender à escritura e à oralidade; mas, ainda que cada
memória seja uma instância absolutamente única, depende da relação com outro
aparelho de linguagem para se estabelecer. A memória não é um dispositivo
consciente – portanto também não é compartilhável – mas essencialmente
inconsciente e transmissível, como veremos.

Representação de Palavras e Sexualidade

Como neurologista Freud atendia em seu consultório pacientes com sintomas


psíquicos. Ao investigar mais de perto suas queixas, deparou-se com a recorrência
de temas arrolados pela sexualidade, que passou a estudar por diversos ângulos e
modos, inaugurando a Psicanálise como uma discursividade científica.

Ao questionar a natureza da sexualidade humana, Freud vislumbrou que não


havia uma forma normal ou natural com que pudesse ser expressa. A atividade
sexual no homem não estaria necessariamente vinculada à reprodução, também
não se satisfaria tomando como objeto obrigatório um parceiro do sexo oposto,
tampouco se restringeria a ser exercida pelos órgãos genitais, pois outras partes do
corpo também serveriam a esse fim. O conceito de pulsão65 surgiu para permitir
compreender as infinitas possibilidades dadas ao exercício dessa sexualidade
humana, diferente em tudo do instinto reprodutor dos outros animais.

Logo com a primeira paciente submetida ao tratamento psicanalítico (Anna O.,


atendida inicialmente por Josef Breuer e depois pelo próprio Freud) foi possível ver
os meandros pelos quais a mente humana circulava (FREUD, 1893-95). Jovem,
inteligente, poética, bondosa, Anna O. dedicava-se ao cuidado de pobres e enfermos
e nos momentos de solidão entregava-se aos devaneios diurnos a que chamava de
‘teatro privado’. Inicialmente manifestava alterações psíquicas oscilando estado de

65
São quatro as condições da pulsão: o impulso é o motor, a força empreendida para a realização do
trabalho pulsional; a meta é a satisfação, o cancelamento da estimulação na fonte da pulsão; o
objeto é variável e o que permite à pulsão atingir sua meta; por fim, a fonte (que não é única) emana
de partes do corpo ou órgãos – boca, ânus, ouvido e olhos. A pulsão expressa-se de forma parcial
uma vez que deriva de diferentes fontes e que a cada momento uma é privilegiada. Essas fontes são
também chamadas de zonas erógenas, os lugares eleitos para a circulação das excitações.

164
consciência e alucinação; em paralelo apresentava contrações corporais e
desorganização funcional da linguagem, esquecendo-se da gramática, da sintaxe e
das conjugações verbais. Com o agravamento do quadro, em momentos de muita
angústia, perdia a capacidade de falar ou mesclava diversos idiomas; tornava-se
agressiva, deixava de comer e seu campo visual restringia-se bastante, permitindo-
lhe ver apenas partes dos objetos. De fato, a única ‘coisa’ que via e reconhecia por
inteiro era seu analista – enunciava-se aí a transferência66. Durante o tratamento os
relatos de seus devaneios diurnos lhe proporcionavam alívio temporário e a
eliminação de alguns sintomas – especialmente quando recordava-se do fato
traumático que lhes dera origem: na infância, ter sido seduzida por um adulto.

Preocupado com a dissolução do sintoma Freud acreditava que seu


desaparecimento dependia da lembrança do acontecimento traumático esquecido
(não falava ainda em recalque) e das emoções a ele associadas. O trauma era ainda
compreendido como um acontecimento de fato (real) e a histeria era uma neurose
de defesa como resultado da reação, a posteriori, à perversão sedutora do adulto. O
sintoma no corpo era manifesto no lugar de uma representação sexual intolerável,
que se isolava de outras representações. O corpo era palco do teatro histérico e nele
Freud vislumbrou uma anatomia diversa daquela conhecida pela medicina, uma vez
que nos sintomas de conversão instalavam-se patologias que a anátomo-fisiologia
não podia explicar67. A cura até aquele momento se dava pela rememoração
catártica da cena traumática, expressa pela fala.

A partir de outros relatos clínicos, Freud (1893-95) estabeleceu uma teoria


para o aparelho psíquico. No atendimento de Emmy Von N. ele se deu conta de que
não deveria fazer sugestões e perguntas incessantes para que se recordasse de
fatos, pois isto atrapalhava o fluxo de ideias e a associação livre. Ou seja, a memória
não se restabelecia por volição consciente. Freud percebeu que nas diferentes

66
Transferência como a conceitua Freud é o vínculo afetivo intenso entre analista e paciente, que
ocorre sem que haja intenção ou controle consciente. O paciente pressupõe no analista um saber
sobre seu sofrimento. A transferência é o lugar de reprodução das tendências psíquicas e das
fantasias (fragmentos de repetição) e ao mesmo tempo o lugar de resistência destas atualizações.
Lacan retoma este conceito e diz que o paciente, ao supor que o analista sabe sobre ele, coloca-o no
lugar do Outro – o lugar onde as palavras são pensadas e proferidas. Desta maneira, ao nos
reportarmos ao Outro, a transferência só pode ser um fenômeno acompanhado do exercício da
palavra.
67
Paralisias acometiam a parte superior de algum membro – braço, por exemplo – mas não a porção
inferior do mesmo órgão (as mãos); ou a visão se turvava para alguns objetos, mas não para outros.

165
associações da paciente destacava-se um grupo de ideias responsáveis pelo
surgimento do sintoma: o evento traumático não era, pois, um fato realmente
acontecido, mas essas ideias do próprio paciente que, ao virem à luz por meio da
fala, tornavam possíveis a dissolução do sintoma. Identificou que em alguns
momentos a paciente se recusava a falar, evitando entrar em contato com o material
que lhe trazia sofrimento. Em outros momentos os relatos condensavam várias
histórias desconexas, que não queriam dizer nada, deixando evidente que o
paciente falava qualquer coisa, para que o conteúdo essencial do material fosse
omitido. Mas neste ponto Freud identificou que o fato de o sujeito precisar manter
a fala tinha a função de enlaçar aquele que o escutava e não a resolução de seu
sofrimento. (Esta constatação nos será importante mais adiante, para pensarmos
na relação professor-aluno).

Intrigado pela resistência dos pacientes em falar, especialmente nos momentos


em que se aproximavam do núcleo traumático, Freud passou a desvendar os
caprichos da linguagem: pôs-se em vigilância com relação aos sentidos latentes das
palavras trocadas e das omissões de pensamento. Com isto o autor constatou que
os sentidos das palavras não estavam encerrado nelas mesmas, mas nas relações
que mantinham com suas representações.

A partir do texto sobre os sonhos (FREUD, 1900) funda a teoria do inconsciente


e passa a situar todas as manifestações tropeçadas das palavras – lapsos, atos falhos,
sonhos, sintomas e, mais tarde, também os chistes (FREUD, 1905) – como realizações
de desejo. Uma representação sexual, intolerável para o aparelho psíquico é
recalcada, mas o desejo aí inscrito volta a irromper no Sujeito, de forma sempre
dissimulada: como palavras faltosas, efeitos de linguagem.

Desta forma, a memória nos Sujeitos não se restabelece por meio de


lembranças, mas justamente pela intromissão inconsciente da linguagem sobre o
fluxo discursivo consciente.

Inscrição da Memória

Entre as espécies vivas as memórias são bem distintas. Ao definir o aparato


mnêmico humano, em seu aspecto biológico, Jean-Pierre Changeux (1998) inicia
suas considerações ressaltando que apesar da complexidade da máquina cerebral –
com mais de 100 milhões de neurônios e mais de um bilhão de possibilidades de

166
sinapses – este substrato químico e eletro-físico não é suficiente para explicá-lo em
sua totalidade. Os humanos herdaram dos mamíferos um ‘dispositivo de memória’
que define estrutura particular para as células nervosas que, ademais, no caso da
nossa espécie, derivou em desenvolvimento único da forma, especialmente da
porção do córtex frontal. Já dos ancestrais pré-sapiens e símios, herdamos a
memória genética da sucção e do reconhecimento do rosto, além da ligação afetiva
intensa entre bebê e mãe, que se desdobra na relação com os companheiros de
espécie com quem compartilha atividades de jogo. No entanto, acrescenta Changeux,
o grande diferencial entre os Homens e as outras espécies é que o ser humano dispõe
da linguagem, que compõe a memória herdada geneticamente a milhões de anos.

Segundo Mirlene Cernach (2008), precocemente – ainda intra-útero, na 24ª.


semana gestacional – o bebê distingue a voz da mãe e se impregna da língua materna
compartilhada pelo grupo social (plena de convenções simbólicas) e do ritmo de
seus sons. A disposição altruísta de considerarmos o ‘outro como a nós mesmos’,
não está lá, desta forma, geneticamente em nosso cérebro, mas é forjada por meio
da linguagem, como uma inscrição epi-genética que se instala na organização de
conexões e integra o cérebro do bebê marcando-o profundamente de maneira
involuntária.

O filho do Homem nasce ainda prematuro. Incapaz de sobreviver sozinho, seus


sistemas vitais não estão desenvolvidos. Ele é receptáculo de estímulos externos e
internos, mas pela incompletude dos sistemas neurológico e perceptivo a interação
com o meio à sua volta se dá de modo restrito. Essa condição tem um nome –
neotenia – e [...] tem consequências para a formação do que podemos denominar
consciência de si. [...] ele percebe, reage e até mesmo interage com os outros sem
perceber que percebe, sem ter consciência reflexiva (DUNKER, 2008: 15). Para este
pequeno ser não há separação entre seu corpo e o mundo, como também não há
distinção de objetos ou separação de corpos. Isto precisará ser forjado na relação da
criança com o Outro.

Em posição passiva, o bebê recebe um investimento de energia tal que seu


corpo prematuro não consegue reagir. Foi isto que levou Freud reformular
teoricamente a etiologia da neurose histérica, pois ao questionar a veracidade da
cena recorrente de sedução de uma criança por um adulto, concluiu que o trauma

167
não era um evento da realidade, de fato ocorrido, mas um acontecimento psíquico
vinculado à representação de palavras. Isto é, a comoção orgânica sobre o corpo do
bebê, não encontra na linguagem possibilidades de representação, originando o
trauma.

Sem tantos conhecimentos sobre a fisiologia e anatomia cerebral


contemporânea, as investigações freudianas se deram no âmbito da clínica
psicanalítica e de elaborações teóricas. Neste percurso depreendeu o seguinte: que
a fala não é acontecimento natural (embora fundamentalmente humano), assim
como os objetos não são naturalmente percebidos pelo Homem. O simples fato de
estar no mundo não afiança ao indivíduo acesso à percepção dos objetos: nascer
garante ao Homem uma invasão de sensações visuais, táteis, auditivas, gustativas e
olfativas de pura intensidade, de afecções indistintas e sem conteúdo, que precisam
ser conformadas em torno de sentidos. Antes, então, está dada a condição de
organismo invadido por estímulos.

E como se dá a apreensão dos significados pelo indivíduo? Diz Freud que sobre
o substrato orgânico se dará a ação intrusiva de outro aparelho psíquico, de
linguagem. Diz Lacan: [...] para que o ser vivo não pereça a cada lance, é preciso que
ele receba algum reflexo adequado do mundo externo (LACAN, 1954-55: 140),
justamente aquele que vem do Outro68 aparelho de linguagem e incide sobre os
discursos cotidianos de comandos e ações.

Como vimos anteriormente as falas habituais de função pragmática, ao mesmo


tempo em que situam o sujeito no seu cotidiano, não se prestam muito à circulação
de experimentações; no mais das vezes engessam possibilidades e impedem a
superação de dificuldades. Mas pela insistência das fantasias no psiquismo de cada
um sabemos que este discurso não é único e não basta para alimentar a alma
clamante por linguagens dissonantes. Aí entram em paralelo as expressões poéticas

68
O Outro com letra maiúscula (‘Autre’ – A – em francês) é um termo que Lacan retira de Freud e
conceitua como sendo o ‘tesouro dos significantes’; é o lugar terceiro na fala a que todos os Sujeitos
se referem e estão submetidos. Em sua insígnia apresenta-se como completo, mas para se constituir
como Outro para cada Sujeito precisa ser apreendido pela incompletude – pela falta, e só por ela, é
possível indagar o Outro. O Outro tem sua sede no registro Simbólico do psiquismo, ponto de apoio
para que o discurso repouse sobre um fundamento referenciado. Mas a essência do Outro é
Imaginária, portanto seu estatuto é de ficção.

168
e os ludismos linguageiros, que substituem as perdas de objeto da infância e
confortam, através da linguagem, um estado outro de emoções e abrandamento.

Este paralelo não quer dizer que se tem uma fala ou outra, mas que elas se
entrelaçam pela Banda de Moëbius e as crianças – também os adultos – se servem
das duas transitando de uma a outra pelo arrebatamento Subjetivo: uma fala e outra
se convocam e permitem um estado em que ora se está lá, ora cá. O que permite o
trânsito entre as falas é o significante que convoca o Sujeito e seu desejo.

Vejamos um exemplo comovente69. Uma criança de 4 anos, internada para


tratamento oncológico estava em dieta hipossódica. Quando chegou sua refeição,
acompanhou os gestos da avó que pegava o ovo cozido e fazia menção colocar sal
por cima. Alertada pela enfermagem a avó parou o movimento e dirigindo-se à neta
disse: ‘– Coma o ovo, filha’. Mas a criança em sua vivacidade põe-se a chorar
desbragadamente pedindo sal, deixando a avó em dúvida: obedecer a enfermagem
ou atender às súplicas da criança... Novamente foi dito que não poderia por sal e a
criança então aumentou a intensidade do pranto, até chegar ao grito: ‘– Salsinho no
ovinho! Salsinho no ovinho!’. A enfermeira controlava com o olhar a ação da pobre
avó, naquelas alturas, já bastante angustiada. De repente, num gesto de extrema
ternura encontrou a solução: fez sinal de pegar e colocar o sal – sem fazê-lo – e ao
mesmo tempo entoou uma pequena melodia criada ali – Salsinho no ovinho de
fulana! Vamos por o salsinho assim! – e entregou o ovo na mão da neta, que
suspirando de alívio comeu-o com prazer.

O fingimento real – colocar sal – é compensado pelo gesto da avó – não por sal –
e no engodo ela enlaça uma brecha para o desejo da criança. Ao mesmo tempo a avó
também se apropria do imperativo ‘Não por sal’ e o transforma em ‘Vamos por o
salsinho assim!’; desta maneira, assim diferente, é possível!

A criança posta no mundo demanda amor ao Outro. Mas o que recebe em troca
é outra pergunta: O que queres? É esta pergunta – resposta à demanda – que abre o
Sujeito ao desejo. O desejo não é, portanto, necessidade, mas a busca de
reconhecimento que se faz pela linguagem, tanto materna, quanto da cultura.

69
Extraída da cena em um hospital público da capital paulista onde trabalhamos.

169
Pelo fato de o Homem ser um ser simbólico, de linguagem, recebe seus recém
natos como se já fizessem parte do seu meio e a ele estivessem integrados. Os
significantes antecedem a criança, isto é, já estão dispostos pela cultura e são
guiados pela expectativa dos pais ao seu nascimento; o bebê será imediatamente
capturado por eles. O período de nove meses gestacionais prepara os pais para a
chegada do bebê e faz emergir as esperanças sobre o filho, até então restritas ao
universo imaginário dos genitores. Na menina que ninava suas bonecas, no
adolescente que acompanha o irmão menor na escola ou na fala de uma tia que dizia
que crianças dão trabalho, a ideia do filho vai sendo configurada por meio de
imagens e palavras – positivas e negativas – até o momento em que, planejada ou
inesperadamente, ela se torna realidade com o nascimento.

Antecipar-se ao que virá, imaginando o porvir, é próprio dos humanos


submetidos à linguagem. Essa antecipação que os pais fazem de e com seus filhos é
o que permite reconhecê-los como sujeitos, antes que eles próprios sejam capazes
disto. Quando as pequenas crianças nascem os pais falam com elas e interpretam
seus atos como se fossem dotadas de capacidade de dar sentidos e respostas: o
choro, os movimentos, as expressões do bebê, aos olhos de quem os vê são plenos
de intenção. Da mesma forma, quando a mãe se dirige ao bebê presume estar diante
de alguém capaz de compreender seus gestos e falas, ou seja, ela acredita estar
diante de um sujeito capaz de retribuir suas intenções. Os adultos reagem e
interagem repetindo de forma simétrica aquilo que o bebê realiza, mas também o
fazem antecipando sentidos para suas respostas, tal qual um espelho à sua frente:
se ele contorce o rosto, respondemos com caretas, se ele repuxa o canto da boca
sorrimos de volta.

Quando o bebê nasce – e ainda por muito tempo – é em torno do seu organismo
que se concentram todas as relações de cuidado e atenção. A presença constante de
acolhimento investe esse comércio corporal de satisfação e carinho; assim,
amamentar não é só dar o leite, mas é também aconchegar nos braços, dar banho
não é só lavar, como também é preocupar-se com a temperatura da água, com o
cheiro agradável do sabonete. Os gestos, mas sobretudo as palavras, ofertam o
mundo ao infante apresentando-lhe as coisas, as pessoas e as relações, nomeando o
universo de acontecimentos no corpo do bebê. Para a psicanálise esses episódios

170
compreendem o que se chama de ‘função materna’, que é a leitura de sentidos que o
adulto cuidador faz sobre o corpo da criança, o centro em torno do qual emana,
ainda, todo seu ser.

A linguagem está disposta no mundo humano desde sempre e antecede a


chegada de cada bebê que, no entanto, terá que ascender a ela. Portanto, as
impressões de sensações que invadem o seu aparelho psíquico ao nascer,
estabelecem-se como exigência de significação. Esta cobrança sobre o aparelho tem
como um de seus destinos a relação com outro aparelho de linguagem que lhe
confere representações – ao oferecer o seio ao bebê, a mãe também oferece imagens,
palavras, acalantos, olhares que apaziguam seu desterro. Esta suposição antecipada
de Sujeito onde ele ainda não está, é o primeiro acolhimento que abranda as
turbulências no corpo infantil. Ao tomar seu filho nos braços, a mãe o faz como
objeto de satisfação de seus desejos e neste gesto oferece em troca um lugar
Imaginário e um Simbólico70 com os quais a criança se identifica.

O afluxo de estímulos sobre o organismo infantil será, portanto, em parte


contido por meio de representações que lhe conferem uma unidade corporal. Aliás,
é a incidência da linguagem que eleva o substrato orgânico dos humanos à categoria
de corpo constituído: deixamos de ser só uma estrutura anátomo-fisiológica (Real)
para adentrarmos no campo das imagens e das palavras significantes (Imaginário e
Simbólico), e ao mesmo tempo estruturamos o pensamento nas categorias
consciente e inconsciente.

Mas, nos alerta Freud, uma parte destes afluxos permanece solto no aparelho
psíquico sem sentido e representação71, provocando angústia frente à ausência de
objeto. Isto se dá porque como objeto de satisfação da mãe, a criança nunca será
capaz de preenchê-la completamente; por outro lado, a mãe não conseguirá nunca

70
Simbólico, Real e Imaginário: conceitos psicanalíticos elaborados ao longo de toda a obra de
Jacques Lacan. Três registros psíquicos que, postos de forma entrelaçada e indissociável,
formam uma das três estruturas psíquicas (psicose, neurose e perversão) e dão a dimensão da
constituição do sujeito. A reunião desses três registros articula e dá consistência humana ao que
é da morte, da vida e do corpo. Imaginário: registro do engodo, da identificação à imagem.
Simbólico: registro da linguagem e de suas funções, que eleva a coisa faltante à categoria de
conceito. Real: registro do inapreensível, que está fora do campo da realidade criada pelos
outros registros, mas que se faz marcar aí como não inscrito.
71
Em ‘Além do princípio do prazer’ Freud (1920) designará a incidência do objeto sem representação
como pulsão de morte / libido. Lacan, ao longo de sua obra mais tardia, conceituará como o Real que
irrompe sem cessar e sem se fazer representar.

171
significar todas as demandas de seu filho. Há na dimensão do objeto algo para
sempre perdido, tanto para mãe quanto para seu bebê. Desde o berço o sentido
consensual da linguagem fracassa! Foi o que vimos na cantiga com que a mãe ninava
Lúcia e dizia-lhe ‘– Pega esta menina’, enquanto a criança se mirava no ‘– Pegá, pegá,
pegá’.

Como objeto, no momento em que a criança repete a ação satisfatória, encontra


só a marca da redescoberta de uma repetição impossível. Surge um ponto de
dissonância: o objeto não é e não será nunca, o mesmo. A falta do objeto que se abre
aí gera uma tensão fundamental na criança que passa a procurá-lo, mas sempre o
vai encontrar em outros lugares, como objeto substituto, inadequado. Esta é uma
falta que se faz marcar no próprio corpo da criança.

Um dos modos de compensar esta perda real, diz Freud, é alucinando o objeto.
Imerso em angústia porque as experiências não o saciam, o pequeno passa a alucinar
a existência do objeto por meio de exercícios primários de prazer com seu corpo.
Rudimentos destes ensaios podem ser vistos nos recém nascidos que
entusiasticamente mamam o nada; esta aparente ‘coisa alguma’ que ele mama, é o
objeto alucinado. Ou seja, o bebê vai freneticamente ao próprio corpo buscar
saciedade para os estímulos que o invadem.

Aqui encontramos a segunda instância psíquica – a primeira sendo o


Inconsciente – que é o campo pulsional, Real, que se cria em torno do objeto perdido.
Não havendo um objeto único que responda pela saciedade, o corpo faz diversas
incursões em busca de satisfação, mas o faz por partes. De cada zona pulsional
excitada no organismo emana uma pulsão parcial em busca de um objeto que possa
cessar a perturbação em sua fonte. Mas, como o objeto é perdido, o que faz a pulsão
é sair de sua fonte, circulam em torno do vazio e retornar sobre a fonte. Freud
(1905a) fala que o psiquismo humano se articula em torno do objeto perdido.
Refere-se ao objeto estabelecido de modo dialético em que, no exato instante em que
é fundado, se o perde para sempre, sendo só assim (perdido) reencontrado. Não
havendo objeto a alcançar, é no trajeto bordejante que a pulsão se satisfaz
parcialmente, levando-a a que mais tarde volte a se repetir.

Mas o fato de a pulsão circular sempre parcialmente, torna-se um elemento


fundamental para a constituição psíquica. De um lado a parcialidade espaça as

172
repetições em cada uma das diferentes zonas erógenas; de outro, e principalmente,
garante que entre as diferentes pulsões haja intervalo em que as representações
inconscientes podem acontecer. No espaço que se abre entre ser/não ser objeto do
desejo materno, algo permanece sem significação – é uma falta que, segundo Freud
(corroborado por Lacan) será fundamental para a constituição do aparelho psíquico.

Diz Lacan (1957) que em algum momento o objeto alucinado pelo bebê coincide
com a chegada do objeto real oferecido pela mãe. Esta coincidência fará com que a
realidade psíquica (objeto alucinado) não se separe do mundo real dos objeto
comuns (seio da mãe), sendo então manejados como na Banda de Moëbius – o
avesso de um é o direito de outro. Na relação real fundamental mãe-filho constitui-
se uma reciprocidade imaginária com a qual o bebê – ávido por algum conforto – se
identifica. Ele toma o objeto oferecido pela mãe como seu objeto e estabelece a base
em que seu corpo e o de sua mãe se veem entrelaçados, indissociados.

Freud estabelece que a realidade humana é psíquica. Lacan (1956-57) assegura


esta afirmativa esmiuçando que uma maneira legítima de considerá-la é apegar-se
ao que vem antes que o funcionamento Simbólico se exerça na criança. Isto é, propõe
que nos voltemos um tanto para o Real, para vermos o desterro que está dado antes
da ação da linguagem sobre o sujeito. Esta proposta nos convém porque é no Real
que Lacan situa a ‘letra’ aquilo que dará suporte à memória e com que o Sujeito vai
escrever. Memória não é, portanto, lembrança, mas a intromissão inconsciente dos
traços mnêmicos sobre o fluxo discursivo consciente.

Como vimos anteriormente, no campo das representações temos a linguagem


que irrompe sempre faltosa no inconsciente; no campo pulsional encontramos o
corpo às voltas com o objeto perdido. Um espaço não se sobrepõe ao outro,
entretanto eles se entrelaçam moëbianamente: para todo ponto na esfera das
representações há o seu correspondente pulsional. O que articula estes dois campos
é a falta primordial.

Isto posto, Freud trata de engendrar sobre a falta a compreensão desta


articulação. Toma, então, o caminho do vazio deixado pelo objeto.

O objeto perdido deixa um rastro atrás de si, chamado por Freud (1921) de
‘traço’. É ele quem se inscreve no aparelho psíquico como traço mnêmico, como um
sinal que permitirá ao sujeito reter algo do objeto e identifica-se com ele. Este traço
173
aludido por Freud não é referente a uma imagem, mas a um som – fonema. Esta
formulação dura pode ser mais facilmente compreendida pela via dos exemplos.
Freud parte da relação imagem-palavra-fonema, cuja decifração não se dá pela
figuração, mas pela representação da palavra. Assim, um sonho com ‘rosa amarela’
não significa a flor de cor amarela, mas pode ser lido como ‘Rosa, amo ela’; ou, como
em uma passagem em que Freud (1898) esquece-se do nome Signorelli e o substitui,
primeiro por Botticelli, depois por Boltraffio, uma vez que Signor (‘senhor’ em
italiano, o termo reprimido) fazia referência a Herr (‘senhor’ em alemão, o termo
recalcado). A passagem descrita pelo autor é extremamente elucidativa e revela os
meandros do esquecimento e os deslocamentos e condensações da linguagem para
se fazer revelar no lugar do olvido. O episódio se passa justamente no trajeto da
Itália para a Bósnia e Herzegovina: ‘Her’ de Herzegovina é dito, mas imediatamente
cai sob a barra do recalque e impede que possa dizer ‘Herr’; ato seguinte, querendo
se lembrar de ‘Signorelli’, vê-se impedido pela condensação Herr-Signor; é então que
operam-se dois deslocamentos que o permitem ‘lembrar’ de ‘Botticelli’ (novamente
como condensação): ‘Bo’ de Bósnia e ‘elli’ de Signorelli72.

Foi exatamente por esta via que se descortinaram os sentidos dos hieróglifos
egípcios, cuja escrita era fonográfica e não imagética como se supunha inicialmente,
como podemos ver na Figura 5: o desenho do ‘sol’ só podia ser lido pelo seu fonema
(Rá) para compor o nome do rei Ransés, junto com mais duas imagens. Quando o
objeto se perde, todo o investimento libidinal dirigido a ele é substituído por uma
identificação (parcial) que retém alguma coisa do objeto – justamente um traço, o
fonema que resta do figurativo apagado pela ação do recalque.

72
No Capítulo 5 desta tese vamos ver um exemplo muito próximo a este, de uma criança de 1º. Ano
EFI no processo de desvendamento de uma narrativa.

174
Figura 5: - Desenho-cópia baseado na Cártula de Ransés

Fonte: Laura Battaglia, 2013

Lacan (1961-62) renomeia este ‘traço’ freudiano como ‘traço unário’ e dá a ele
o status de significante elementar (S1) ao qual o sujeito se identifica. É este
significante que capta o traço do objeto deixado no corpo e, pela via Simbólica,
permite sua transposição para o campo das representações. Isto é, se no corpo o
objeto de satisfação está perdido, este traço permite que na linguagem alguma
representação se articule.

Todos os outros significantes (S2) da cadeia simbólica farão referência a este


significante elementar (S1), por identificação e também se diferenciarão. O
significante (S1) é sustentado essencialmente pela voz (materialidade corpórea), ele
é um fonema e enquanto tal é localizado em uma estrutura de palavra; mas este
significante primeiro é modulado pela palavra (S2). A palavra (S2) é a unidade
diferencial, enquanto o fonema (S1) é o lugar da identificação.

É no significante (palavra) que está assegurada a estrutura de um fonema. Neste


campo Lacan forja o conceito de ‘letra’, como sendo justamente o que dá suporte
material ao significante, compondo-o foneticamente. A ‘letra’ é o que não está na
ordem simbólica, e sim na Real, mas é o elemento do Real capaz de se instalar no
inconsciente, como elemento vazio. É o que se repete sem significação, mas ao se
repetir deste modo indaga o Simbólico, constituindo-o. A letra é o que se inscreve na
palavra quando o sujeito diz ‘deserdar’, quando queria dizer ‘desertar’. Pelo
simbólico justamente o sujeito vai se pôr na trilha da representação de ‘deserdar’,
ao passo que a intromissão da letra em ‘desertar’ permanece expulsa do campo das

175
representações, fixando-se no psiquismo como traço de memória. O Real está
sempre faltando, mas sempre se inscrevendo no Simbólico como esta falta. Do Real
não se tem apreensão direta, a não ser pelo Simbólico que o recobre. Lacan vale-se
da escrita formal lógica para designar a ‘letra’ como o que não cessa de não se
escrever. O significante instala o Real, mas não o apreende. (Esta escrita que torna
inconsistente a ideia de uma ciência ou de um saber exatos, uma vez que a eleição
dos objetos de investigação e as escolhas metodológicas sempre dependem de
Sujeitos submetidos, portanto, ao Real).

O que se inscreve no aparelho psíquico como resultante da relação com outro


aparelho de linguagem são as palavras, ou melhor, as representações de palavras e
seus traços. Palavras aqui não meramente como fonemas, sons articulados, mas
como representação complexa que confere significados e intenção a elementos
acústicos, mas também visuais e sinestésicos. Mas nestas palavras / representações
estão dispostos os elementos de letra que lhes dão suporte. Qualquer operação de
linguagem pressupõe a associação das diferentes informações perceptivas
relacionadas às representações de palavras que transitam entre o corpo da mãe e
do bebê, mas também pressupõe a falta na representação (a letra). São os
significantes maternos que se inscrevem no aparelho psíquico do bebê como traços
mnêmicos e deixam atrás de si rastros das ‘letras’. Com os significantes a mãe lê o
corpo do bebê, palco prioritário onde se dá o comércio psíquico entre os dois. Para
Lacan (1957) ao atribuir sentidos ao corpo infantil (ao lê-lo) a mãe escreve ‘letras’
sobre ele; letras não como escrita gráfica, mas como traços de semelhanças e
diferenciações que marcam as experiências – agora o choro é de fome, antes era de
frio –, letras como efeito de operação de leitura. Pelas exigências de representação
impostas pelo aparelho psíquico a criança aceita a leitura que a mãe lhe proporciona
e assim identifica-se com a letra, com o significante vindo do Outro – é portanto, pela
via da identificação que as transmissões acontecem.

Há um fenômeno descrito por Henri Wallon (1941) que revela a dimensão da


incidência dessa leitura sobre o corpo do bebê. É o ‘transitivismo’, praticado por
todos que cuidam do infante, que implica em certa indiferenciação, indefinição,
incerteza ou troca de lugares entre o agente e o paciente da ação. Por exemplo, uma
criança que na tentativa dos primeiros passos cai, pode despertar inúmeras reações

176
de sua mãe: a mãe pode desespera-se e diz ‘Ai! Meu Deus!’, e a criança começa a
chorar. Poderíamos dizer que ela chorou de dor, porém acontece que se essa mesma
mãe reage com tranquilidade e diz em tom suave para a criança se levantar, que
aquilo não foi nada, ela se põe de pé e arrisca os passos novamente. No transitivismo
entre mãe-bebê, a mãe vê o acontecimento no corpo da criança, o lê como se fosse
em si: manifesta-se com dor e a criança sente a mesma dor; manifesta-se como um
acontecimento que faz parte da vida, e a criança reage encarando seus obstáculos. É
um fenômeno que pode criar a realidade no corpo do outro. A nomeação
transitivista da mãe determina a experiência Real no corpo do filho.

Se em um primeiro tempo lógico o aparelho psíquico é composto só por


quantidades de excitações sem distinção, a dimensão qualitativa dessas excitações
é alcançada quando o aparelho psíquico se apropria do tempo, da intermitência, dos
diferentes intervalos em que as excitações se produzem por repetição. É preciso,
portanto, haver o recalque daquela primeira inscrição da ‘letra’, para que, pela via
das substituições metafóricas e metonímicas, dê suporte à instalação do
‘significante’. Esse recalque é permitido justamente pela medida temporal que
decorre da alternância com que as excitações se produzem e que um outro aparelho
de linguagem intervém; ele é permitido pelo jogo de presença/ausência da mãe,
criando efeitos significantes. Sobre isto, Christian Ingo Dunker esclarece:

Quando uma criança interpreta o que ela sente no seu corpo como prazer ou desprazer,
quando ela descobre coisas novas sobre as sensações, descobre sua mão, por exemplo,
quando ela é tocada, cuidada, erotizada pelos outros, tudo isso se inscreve como o quê?
Como um sistema de escrita. É um letramento que está fortemente alimentado pelo
discurso materno, por essa língua que a liga à mãe e que Lacan chamou de lalangue
[alíngua] – reunindo aspectos de Jakobson chamou de lalação, o balbucio da criança e
que alguns autores da fonoaudiologia e da linguística contemporânea chamam de
manhês. O principal traço de linguagem dessa fala primitiva, dessa fala primeira no
bebê é que ela tem uma estrutura de diálogo. Não sei se vocês já se encontraram com
crianças pequenas, mas quando o adulto começa a falar com ela, começam a trocar o
turno e a criança vai respondendo com sorrisos, com gestos, com reações. A tal ponto
de a gente poder dizer que ele está interpretando esse intervalo no qual o adulto fala e
ela responde (DUNKER, 2011).

É, portanto, preciso tempo; é preciso que a mãe permita a instalação do diálogo


entre ela e a criança, que se coloque alternadamente e não como todo-saber sobre o

177
bebê. É preciso intervalo, distância entre uma inscrição e outra, para se ter ideia do
que se insculpiu e para que se possa tomar distância e ver, na aparente
exterioridade, a formação das imagens dos diversos objetos, unificados pela
linguagem. É dos intervalos73 de um traço de inscrição a outro, que se formam as
escrituras do Texto74 psíquico. Sem intervalo não há formação de vias de
representação, senão que só existe uma via de excitação sem parada, sem alívio –
formação em que não há Sujeito do inconsciente, mas pura excitação pulsional.
Situação extremamente angustiante em que a criança fica abandonada à própria
sorte psíquica, ensimesmada sem intermediação ou anteparo de outra pessoa (ou
outro aparelho de linguagem).

A alternância dos signos entre presença e ausência opera mais uma inscrição no
corpo do bebê: registra o saber e o gozo. A psicanálise denomina gozo à troca
sensorial e corporal estabelecida na relação do adulto com a criança e denomina
saber ao trabalho das representações. Há, então, um ponto no corpo que está
marcado por uma ‘letra’. Esta ‘letra’ é recalcada no inconsciente75 para dar lugar à
nomeação significante (S1), mas quando o corpo é reinvestido pela incidência do
Outro, recupera junto a pulsão, a sensação de prazer ou desprazer que o
acompanhou inicialmente. Dito de outra forma:

Por exemplo, quando a gente faz cócegas na barriga de uma criança e ela ri, primeiro
temos que tocar, depois, basta ameaçar o movimento e a criança antecipa e começa a
rir. Todo mundo já fez isso: você brinca com a sua presença e ela responde rindo antes
de ser tocada. Como isso é possível? Tem, de qualquer forma, uma marca no corpo que
ela recupera para poder experimentar essa satisfação que ela teve no encontro anterior
(DUNKER, 2011).

Pela via do gozo em seu corpo a criança se apropria do saber: um saber de si e


de seu corpo marcado pelo significante e também um saber antecipado do outro,
decorrente das experiências anteriores com ele. Nessa intrincada relação de
representações, inúmeras vias associativas formam-se possibilitando a mobilidade

73
Intervalo que também estava presente nas operações de memorização nas culturas orais
primárias, em que um rapsodo precisava de dias para tornar seu um texto ouvido de outro.
74
Aproveitamos a noção lacaniana de sujeito, como aquele que representa um significante para
outro significante, que acontece ‘entre’, para darmos a medida de que, nas diferentes emergências
do sujeito em torno do traço mnêmico constitui um enredo no qual as diferentes posições subjetivas
de desejo e demanda relacionais estão dispostas como em uma trama textual.
75
Letra – seu correspondente pulsional no corpo é o objeto a.

178
de sentidos, por deslocamento e condensação de elementos significantes. Isso
permite que a memória – ou o aparelho psíquico – não seja estática, mas plena de
variações significantes, em que sentidos múltiplos podem se formar em diferentes
momentos. Diz Changeux: O chamado da memória requer um esforço em direção ao
sentido, uma reconstrução do significado, um desafio interior de hipóteses, de objetos
mentais portadores de sentido mas infelizmente também com frequência, um desvio
de sentido76 (CHANGEUX, 1998: 21, minha tradução). Ressalva-se aqui que esses
caminhos mnêmicos não são sobre determinados biologicamente pela espécie – no
modo de certa utilidade vital para a sobrevivência – senão que derivam
principalmente dos incidentes que ocorrem e que dão a medida Real da vida.

É o que Jacques Lacan chama de ‘litoral’, o delineamento não tão claro como uma
fronteira ou uma borda, entre o saber e o gozo. A mobilidade litoral acontece pois
esse outro que interage com a criança, não o faz sempre da mesma forma. A
experiência de troca pode ser prazerosa em um momento e desprazerosa em outro.
Qual o limite em que se vai do riso ao choro?, do suportável ao aflitivo? É a fronteira
que se estabelece entre o carinho e a invasão, em que a escalada de satisfação do
adulto não cessa e atravessa o infante, desconsiderando-o como Sujeito na troca
libidinal. Quando o adulto age incessantemente no corpo do bebê querendo dele
uma reação que já não suporta mais – por exemplo, se ao invés de pequenas ameaças
de fazer cócegas na sua barriga, o adulto manipula-a sem parar – ali onde o bebê
inicialmente sorria, passa a chorar. Nesta condição a criança é assumida como objeto
de puro prazer do outro – ela é o Falo da mãe, aquilo com que a mãe se adorna como
fálica, como não faltante.

Estabelece-se um jogo dialético em que a criança para ser alvo do olhar do Outro
é sempre tomada como objeto – seja ele gerador de prazer ou de dor – porque é este
Outro quem estabelece a medida da intensidade libidinal da relação. O bebê, por sua
vez, identifica-se com este lugar de objeto/Falo. Se além disto, nos intervalos
repetitivos entre os afluxos pulsionais, o Outro permite-se ficar em falta e não
usufruir inteiramente do pequeno, pode-se estabelecer uma relação de nomeação e

76
Le rappel de mémoire engage ‘un effort vers le sens’, une reconstruction signifiante, une mise
à l’épreuve intérieure d’hypothèses, d’objets mentaux porteurs de sens, mais aussi, hélas trop
souvent, un détournement de sens (CHANGEUX, 1998: 21).

179
significação em que o bebê também é situado como Sujeito (e não mais só como
objeto).

Cabe dizer, portanto, que o prazer obtido na repetição não decorre meramente
da satisfação pulsional. Ele também é o que resulta da percepção do objeto
nomeado77, que se torna identidade psíquica da própria criança. Para o prazer, é
propriamente como objeto que ela se coloca e é aí designada como Sujeito.

Retomo então, o menino que pede que se lhe conte reiteradamente a mesma
história. Qualquer criança que se entregou repetidamente a escutar contos de fadas
reconhece uma dose de satisfação nos atos maldosos e nas mazelas que atingem as
personagens. Submeter-se à floresta escura para encontrar a bruxa que come
crianças, em ‘João e Maria’, ou tolerar os insultos e humilhações das enteadas do pai,
em ‘A gata borralheira’ são, sem dúvida, atos de coragem e persistência.

Sangue, carniça, excremento, mutilação: quem não se deu à experiência


horrorosa do próprio corpo, ou do corpo do outro, ao longo das narrativas?
Experiência que impacta, que causa nojo, dor, curiosidade e também prazer. Quem
não tapou os ouvidos com as mãos para não escutar, mas entre as frestas dos dedos
se deleitou seguidamente com o perigo e se comprouve com os sons da aflição,
própria e alheia?

Que função cumpre a repetição? O que garante a longevidade dessas histórias?


Já não parece ser só a satisfação que coroa seu final feliz, porque esse pode não
existir, como em Édipo Rei de Sófocles ou na Lenda do Açai, derivada do mito
amazônico. Do ponto de vista subjetivo a psicanálise permite compreendê-la como
mais um elemento de formação psíquica.

Uma das análises mais importantes sobre a repetição elaborada por Freud,
encontra-se em ‘Além do princípio do prazer’ (1920), em que relata o jogo inaugural
de seu pequeno neto, dentro do berço, que arremessa um carretel atado a um
barbante e puxa-o de volta emitindo o som ‘Fort-Da’, tão logo a mãe se afasta dele.

77
Como a mãe é um ser imerso na cultura, por meio de palavras significantes recolhidas das suas
representações, dá unidade ao corpo disperso e esfacelado do bebê, em torno de um elemento da
linguagem (S1). Da mesma forma que o objeto que S1 nomeia é um objeto perdido (a), S1 também
se perde destacando-se da cadeia de significantes, deixando em seu lugar um vazio, uma falta
fundamental que permitirá a mobilidade substitutiva de todos os outros significantes (S2). É,
portanto, em torno da falta que o organismo do bebê se estrutura enquanto corpo.

180
Jogo simbólico, diz Freud, que elabora a separação obstruindo o efeito de
desaparecimento materno.

Lacan analisa o mesmo episódio, entretanto diz que a constatação freudiana é


um efeito secundário. Ele cria a cena em que o bebê não vigia a porta por onde a mãe
saiu, mas o ponto próximo onde ela o deixou/abandonou: a borda do berço. O lugar
agora vago é o epicentro no qual se projeta, não o outro que se ausentou, mas a
expressão do que no bebê [...] se destaca nesta prova, a automutilação [...]. Pois o jogo
do carretel é a resposta do sujeito àquilo que na ausência da mãe veio criar na
fronteira de seu domínio – a borda do seu berço – isto é, um fosso em torno do qual ele
nada mais tem a fazer senão o jogo do salto (LACAN, 1964: 63).

Para Lacan o carretel repetidamente arremessado não é somente a


representação da mãe, senão que é também algo do corpo da criança que
dolorosamente se destaca. Não é o retorno da mãe que a reprodução desse gesto
tem como efeito simbólico e subjetivo, mas é a divisão subjetiva (da criança) causada
pela saída daquela. O incremento da tensão que experimenta pelo abandono instala
o ‘gozo’, faz aumentar a descarga psíquica e a criança repete indefinidamente o
reencontro com o objeto. Esse é o princípio da repetição: puro ato, cuja ação de
descarga pulsional produz o fenômeno alucinatório de percepção do objeto. A
repetição satisfaz o aparelho psíquico (LACAN, 1959-60). Essa satisfação alucinada é
diferente daquela experimentada no reencontro da criança com seu protetor, pois
aí se produz um momento de breve alegria e um longo momento de letargia, de
abandono sonolento e quase mortal.

Um trecho de João Guimarães Rosa ilustra essa necessidade infantil de buscar a


si mesmo na repetição do enredo:

Mas chorava com mais terrível sentimento era quando se lembrava daquelas palavras
da Mãe, abraçada com o corpo do Dito, quando estavam pondo dentro da bacia para
lavar: – ‘Olha o inflamado ainda no pezinho dele... Os cabelos bonitos... O narizinho...
Como era bonito o pobrezinho do meu filhinho...’ Essas exclamações não lhe saíam dos
ouvidos, da cabeça, eram no meio de tudo o ponto mais fundo da dor, ah, Mãe não devia
de ter falado aquilo... Mas precisava de ouvir outra vez: – ‘Mãe, que foi que a senhora
disse, dos cabelos, do nariz, do machucadinho no pé, quando eles estavam lavando o
Ditinho?!’ A mãe não se lembrava, não podia repetir as palavras certas, falara na ocasião
qualquer coisa, mas, o que, já não sabia. Ele mesmo, Miguilim, nunca tinha reparado

181
antes nos cabelos, no narizinho do Dito. Então, ia para o paiol, e chorava, chorava.
Depois, repetia, alto, imitando a voz da mãe, aquelas frases. Era ele quem precisava de
guardá-las, decoradas, ressofridas; se não, alguma coisa de muito grave e necessária
para sempre se perdia. – ‘Mãe, o que foi que naquela hora a senhora sentiu? O que foi
que a senhora sentiu?!... (GUIMARÃES ROSA, 1977: 80).

Ditinho era o irmão presente, o companheiro de Miguilim, mas é na ausência


mortífera daquele que este se pergunta pela sua existência e mais, pela sua
existência no desejo da mãe. O começo e o fim, a presença e a ausência, o som e o
silêncio: díades que se fundam juntas. No intervalo de um, a presença do outro se faz
necessária. Porém essas noções não são dados naturais condicionados à simples
existência do ser. São engendramentos permitidos a partir da estruturação psíquica:
a interdição de um termo (a letra no corpo) é o que funda o Outro (o significante na
cultura).

A alternância repetitiva ente o elemento vindo do corpo, com o elemento vindo


da cultura, é justamente o que permite fazer memória e enlaçar o desejo. A
intermitência entre pulsão e o campo das representações permite a memória.

3.3.2. DA LETRA À ESCRITA – NASCE UM SUJEITO QUE PERGUNTA

A psicanálise, então, inverte o processo de fala, leitura e escrita como concebe o


senso comum em que antes aprendemos a falar, depois a ler-escrever. Para a
psicanálise, primeiro se dá o trabalho de leitura, operada pela mãe sobre o corpo do
filho; aí se escreve a letra (letramento primário) cujo recalque permitirá à criança
ter acesso aos significantes e, por conseguinte, à fala posterior que lhe possibilitará,
finalmente, que seja escritora-leitora em si (letramento secundário). A fala é a
fonetização que decorre da escrita e da leitura primeiro marcadas em seu corpo. A
escrita, a leitura e a fala nas quais um Sujeito é capaz de adentrar, decorrem desse
traço mnêmico inscrito em seu corpo.

No Construtivismo a aproximação da leitura-escrita se faz por acúmulo, por


aquisição e equilibração de conceitos e experiências. O indivíduo constrói seu
conhecimento: assimila novas informações e confronta-as com os esquemas que já

182
tinha estabelecido, acomoda as novas informações às antigas e tornar a equilibrar
seus conhecimentos.

A psicanálise não pensa em construção de saber, mas em constituição do Sujeito


cujo psiquismo implica em saber. A pergunta deixa de ser o que foi
acumulado/assimilado e como, e passa a ser o que se perdeu, o que ficou de fora e
que não pode ser reposto para que o Sujeito se sustente como tal. O que se perde é
a ‘letra’ e com ela parte daquele primeiro corpo infantil letrado pela função materna.

Dos escombros desse apagamento surge a noção de significante para a


psicanálise lacaniana. O significante é aquilo que irrompe na fala sem pedir licença
ao Sujeito, é aquilo que denuncia a sagacidade em um tom de voz, é o que não é
lembrado precisamente no momento em que tinha que aparecer. É o sem-controle,
o boi desembestado que derruba porteiras. Mais ainda, o significante é o que
identifica o apagamento de uma marca – quando se comete um lapso de fala, não é
mais possível desfazê-lo; o dito já foi dito, o leite já foi derramado! E isso é bem
diferente da construção escrita que se faz no papel e depois se apaga e reescreve. Há
na constituição do Sujeito a falta primordial, a perda de sentido do objeto de gozo
que fomos para alguém um dia, em cujo lugar poderemos constituir nossas próprias
nomeações, falas e escrituras secundárias.

Mas para isso a criança terá de fazer uma inversão na produção da fala. Se antes
ela era falada e o termo ‘você’ era a referência que o outro fazia dela, ao ser
produtora da própria fala, ‘você’ não é mais ela, mas o outro. Igualmente, ‘eu’ deixa
de ser o outro e passa a ser ela própria. É uma operação que exige da criança
mudança de posição subjetiva – ‘eu’ e ‘outro’ não são mais a mesma coisa e não se
definem pelo mesmo saber, como no transitivismo. Essa incorporação de si no
enunciado é a função dêitica, que passa a estabelecer o litoral entre o ‘eu’ e o ‘outro’:
é a função de colocar-se no lugar do outro (e não de confundir-se com ele), de deixar
seu lugar inicial e ver outras coisas sob outros ângulos.

E o primeiro objeto que a criança vai em busca de apropriação e compreensão,


é aquele que tem de mais íntimo: seu próprio corpo. Nos textos ‘Três ensaios sobre
a teoria da sexualidade’ (1905) e ‘A organização genital infantil’ (1923) Freud se
deteve mais à miúde sobre o tema das pesquisas que os pequenos empreendem
sobre si e depois sobre o mundo. É em torno da realidade sexual, isto é, sobre o

183
conjunto do corpo envolvido em todas atividades e motivado pelos temas afetivos
que a criança organiza suas investigações. É a hora em que a criança se pergunta
sobre si no mundo – ‘De onde vim?’, ‘Para onde vou?’, ‘Que corpo é este que me
acompanha?’, ‘Que nome é este que me deram?’ – que ela se pergunta sobre a sua
existência, que precisará se ressignificar e ganhar novas roupagens. É isso que ela
quer e precisa saber e é isso que buscará no meio em que foi inserida. Ela carrega
consigo as marcas de todos os sentidos que lhe foram atribuídos desde antes de
nascer – os textos escritos em seu corpo – e a partir delas precisa aventura-se no
mundo.

Este é um trabalho hercúleo! É muito angustiante pois a criança deve


redescobrir tudo, deve [...] requalificar todas as gramáticas de satisfação e
insatisfação, de prazer e de gozo. Não é só crescer, se tornar adulto, entrar no mundo
em um outro nível de reconhecimento como sujeito. É fazer-se sujeito de um novo corpo
(DUNKER, 2011).

Se o significante constitui o discurso fazendo-se marcar na fala por


deslocamentos e condensações de diferentes representações, ele só pode fazê-lo
tomando de empréstimo elementos profundamente ligados ao sujeito: aqueles de
seu corpo. Os significantes foram referidos pelo Outro à estrutura corporal do bebê
e às experiências vividas nele. Isto dá ao corpo o estatuto simbólico regido pelas leis
que regulam as relações humanas. Já o significado é outra coisa: é o que marca a
experiência acontecida entre os sujeitos; é a vontade e são as emoções
experimentadas na relação com os outros sujeitos.

Como discurso, o significante permite suspender ou relativizar tudo o que é


vivido, seja no próprio corpo, seja nas relações com outros corpos. Os significados
estão, então, limitados pelos significantes, que os transforma pela ação simbólica. O
significante permite, portanto, a reflexão do sujeito sobre ele mesmo.

Neste sentido, como a criança é para a mãe mais do que criança – é também seu
falo imaginário – é pela via do simbólico que o infante tem acesso a esta sua condição
e aí pode posicionar-se. É a lei do pai que fornece esta dimensão simbólica e interdita
o usufruto gozoso do bebê pela mãe e, por consequência, todos os outros gozos que
sobre ele venham recair. Subjetivamente a criança vai aprender a ler o seu próprio
desejo e sobre ele falar e escrever.

184
O que funda o Texto psíquico de cada um é a intermitência de tempo entre
excitação e a inscrição de outro aparelho de linguagem – e quem determina esse
intervalo de intromissão é o Outro, aquele que ascende ao aparelho em formação.
Mas ter este Texto inscrito no próprio corpo não significa poder lê-lo de qualquer
forma, ‘naturalmente’. A partir da falta no Outro – também inscrita como discurso,
no bebê – ou seja, a partir dos lapsos entre um e outro significante, é que o Sujeito
pode ler as falhas discursivas do Outro e entrever o desejo que dali emana com
relação a si – posição em que se encontra Miguilim na obra de Guimarães Rosa. Para
poder ler, é preciso poder ler o desejo do Outro, ler na sua presença, a ausência e,
nesta, a presença.

Estabelece-se assim a possibilidade de uma leitura que chamamos de primária,


aquela em que se constitui um Sujeito que, embora não saiba ler e escrever
graficamente – o que se dará na leitura-escrita secundária –, poderá vir a ler e
escrever subjetivamente. Há, portanto, diferença entre estas duas modalidades de
leitura-escrita, que se estabelece pela distância temporal que as separa e pela função
psíquica assumida por cada uma.

A leitura-escrita primária se dá no intervalo entre a castração e sua apropriação


e consolidação por parte da criança. É um período de questionamento e criação de
hipóteses sobre as propriedades e papel do próprio corpo, do Outro e do mundo, e
do estabelecimento de inúmeras respostas que se complementam e se sobrepõem,
formando um enredo complexo e único.

A criança começa este percurso propondo perguntas. Muitas perguntas! É o


tempo de mudança de posição da criança, com vistas a expandir o universo
relacional para além da barra da saia da mãe, inventando bases para a apreensão e
intelecção dos indicadores e sustentáculos sociais mais amplos.

3.4.MITOLOGIA – A FUNDAÇÃO E A FUNÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL

Em ‘A organização genital infantil’ Freud (1923) aclara as teorias sexuais


infantis78 criadas pela criança para tentar dar conta de seu corpo que,

78
Freud já havia se referido a elas em 1905 em ‘Os três ensaios sobre a teoria sexual’.

185
essencialmente, expressa a desarmonia existente entre sujeito e objeto de
satisfação. Não podendo compreender e suportar a incidência da sexualidade adulta
que sofre em seu pequeno organismo a partir da relação de gozo com o Outro, a
criança recalca os impulsos libidinosos vindos desta direção e parte em busca de
significá-los de outra maneira. Para suas perguntas sobre seu corpo e a relação com
o outro, estrutura respostas na forma de fantasias organizadoras das
representações em torno da falta de objeto. Mas, como o corpo infantil é ainda o
centro de todos os acontecimentos, estas fantasias são subtraídas das ações que ele
empreende no mundo.

O conceito de fantasia para Freud é central para o entendimento do psiquismo


humano. Abordada em diferentes textos, dirá que a fantasia é a representação em
torno de um argumento imaginado pelo sujeito, na qual se conforma uma cena como
um enredo: grosso modo há sempre dois sujeitos, um objeto (um elemento destacado
do corpo) em torno do qual a relação entre eles se estabelece e a instauração de um
lugar vazio por onde circula o desejo. É uma cena em que tanto as primeiras
experiências de satisfação infantil estão postas, quanto também aquelas que
suscitam desprazer. A fantasia não é só manifestação dos desejos arcaicos, mas
também matriz dos desejos atuais; desta forma o drama reatualiza as percepções e
recordações originais que, no entanto, pela ação do recalque aparecem dissimuladas
nas condensações e deslocamentos dos elementos da fantasia.

Em ‘Bate-se uma criança’ Freud (1919) aborda esta estrutura fantasmática –


fantasiosa – com especial atenção. Indica que a fantasia como um todo representa o
desejo do sujeito e ao mesmo tempo este sujeito está representado em um ou outro
personagem da cena, sempre de acordo com suas relações narcísicas e transitivas
que envolvem o corpo que é batido, bate, ou se faz bater. Com isto há constantes
trocas e inversões de papéis ao longo do argumento e é este reviramento constante
que dá à criança a dimensão relacional de cada elemento. É, portanto, uma edificação
trabalhosa, forjada ao longo do tempo, e que comporta repetições, deslocamentos e
condensações de sujeitos, objetos e espaços.

Nas ‘Conferências introdutórias à psicanálise’ (Freud, 1916-17) Freud


esclareceu que os sintomas são ricos em sentido para quem os manifesta, pois
através da análise dos sonhos, dos atos falhos, lapsos e chiste pode-se ver como

186
estão associados à sua vida. Em princípio os sintomas deveriam ser atos
desprazerosos e inúteis, uma vez que causam sofrimento e dor. Por que, então, as
pessoas não os consegue interromper? Porque há no sintoma uma nova modalidade
de satisfação pulsional. Como a libido não consegue se satisfazer pela via do
recalcado, ela aceita que um outro objeto venha no lugar daquele frustrado. A libido
empreende um caminho regressivo para satisfazer-se através de uma organização
e um objeto conhecidos, onde um dia a libido se fixou – nas práticas sexuais infantis,
em que os desejos parciais se satisfaziam nos objetos parciais. As representações às
quais a libido se transfere também pertencem ao inconsciente e estão submetidas
ao processo de condensação e deslocamento. Para que um sintoma possa irromper
na consciência, deve cumprir uma exigência: trazer o desejo inconsciente de
maneira desfigurada, a partir da montagem de uma cena fantasiosa conformada por
um engodo com estrutura de realidade, embora essa realidade não seja material. A
representação fantasística é uma reação residual ao trauma psíquico e passivo que
sofreu.

Por sua vez, de modo complementar Lacan dirá que a fantasia é

[...] correlata de toda uma série de realizações, no sentido mais amplo, manifestando-se
por ações absolutamente irredutíveis a fins utilitários. Vamos classificar este conjunto
de ações ou atividades sob um termo que talvez não seja o melhor, nem o mais global,
mas que tomo por seu valor expressivo, aquele das atividades não somente cerimoniais,
mas cerimoniosas (LACAN, 1956-57: 257, grifo meu).

Com isto Lacan afirma que as respostas que a criança busca para si não têm
correspondência real, objetiva e concreta no mundo, mas, contrário disto, têm
caráter de representação simbólica. Ou seja, a via de acesso de meninos e meninas
no mundo civilizacional não se dá pela compreensão utilitária dele – saber, por
exemplo, quais são seus direitos e deveres enquanto pequenos cidadãos de um
grupo social – mas pela apreensão cerimoniosa das leis universais que regem as
relações humanas – aquelas que estabelecem a interdição do incesto e do uso
abusivo e perverso do outro como objeto.

Acrescenta ainda Lacan (1956-57), corroborando afirmativas freudianas, que


toda sociedade comporta cerimoniais porque eles têm uma função civilizacional e
se estruturam em torno da noção de mito. São estes cerimoniais que se recriam em
cada criança. Começamos a perceber, então, que para a psicanálise as

187
representações do que se convencionou chamar de material psíquico ‘interno’ ou
‘externo’ não se separam desta forma. Pelo contrário, se conformam mutuamente e
em contiguidade sobre um espaço topológico como o da Banda de Moëbius.

Antes de prosseguir com a apreciação sobre a importância do mito para o


sujeito-criança, retomo as considerações de Freud sobre a constituição do
psiquismo dos sujeitos e sua relação com a conformação psíquica social humana
relativas às relações, comportamentos, identidades e poder.

Freud escreveu boa parte de seus textos provocado por questões suscitadas pela
análise direta de seus pacientes na clínica. Outras obras elaborou a partir de
questões emergentes de situações sociais extremas como a discriminação, a
exclusão, a submissão ou a violência de grupos sociais sobre outros. Embora os
pontos de partida destes textos pareçam dar o tom de duas construções teóricas
distintas – uma relativa a aspectos subjetivos/clínicos e outra a aspectos psíquicos
dos agrupamentos humanos – na nossa visão esta dicotomia não existe, uma vez que
a própria concepção sobre o psiquismo freudiano põe em evidência a
impossibilidade desta separação eu-mundo. O conjunto da obra de Freud se
estruturou sobre a urgência psíquica do sujeito provocador e sendo provocado,
criador e sendo criado por seu meio. Este, aliás, é o elemento central que sustenta a
hipótese desta tese.

Próximo ao que poderíamos chamar de arqueólogo do comportamento humano,


Freud enveredou por assuntos clínicos e extra-clínicos com igual desenvoltura e
sempre articulando-os de modo a evidenciar que a constituição psíquica de cada um
é única, mas dependente do grupo e influente sobre ele.

Em ‘Totem e tabu’ (1913-14) Freud criou o que poderíamos denominar de único


mito moderno, a partir da necessidade estrutural de encontrar o lugar do Sujeito na
Lei. Forjou este mito para explicar qual o lugar do pai na civilização; partiu do
caráter estritamente mítico adotado por inúmeros grupos sociais que depositavam
suas origens no ‘pai único’, já morto (poderíamos pensar nos cristãos, judeus ou
muçulmanos, entre outros). Como este pai sobrevive na memória do grupo? Onde e
como ele se apresenta? Freud cunhou o pai originário como aquele que engendrou
todos os filhos e lhes servia como um ideal a ser alcançado, reverenciado e também
temido (tabu). Mas este pai era um verdadeiro déspota que usufruía de todas as

188
mulheres e escravizava todos os filhos. Justamente por seu caráter despótico foi
assassinado pelo grupo. Culpados por este ato extremo, os homens (filhos)
marcaram o lugar vazio deixado pelo pai, erigindo-lhe um totem. Este marco
totêmico passou a cumprir dois papéis: ao mesmo tempo em que está lá para
lembrar que nenhum outro homem poderia ocupar o lugar do pai (para não ser
tentado a reproduzir seu papel tirânico e ter todas as mulheres), também está lá
para lembrar aos descendentes que o pai foi assassinado por eles, ato que não pode
voltar a se repetir. É o pai morto que subsiste como Lei, como organizador e
regulador das relações humanas: a estrutura social passa, então, da horda primeva
à irmandade totêmica, em que todos têm os mesmos direitos e se ligam pelas
proibições impingidas ao grupo. É deste mito que Lacan extrai a ideia de que o pai
existe essencialmente como função.

Já no texto ‘Psicologia das massas e análise do eu’ (1921), Freud aborda as


questões do comportamento e do funcionamento psíquico dos homens quando
agrupados em uma massa, centrando seus argumentos em torno da identificação
dos Sujeitos ao objeto, ou ao Ideal do Eu. Entretanto no momento nos interessa
avizinhar das considerações que estabelece no Apêndice B daquele texto, em que
retoma o elemento mítico de ‘Totem e tabu’.

Privados da satisfação plena, interditada pela lei que passa a reger o grupo, logo
o descontentamento dos homens com aquela estrutura fraterna deu origem a um
agrupamento social diferente do primevo: as irmandades passaram a reproduzir de
outras formas o estado antigo paternalista – o homem tornou-se novamente o chefe
da família e a mulher passou a ser reconhecida pela sua deidade materna
(sacralização da mãe), mas as restrições em grupo teriam levado o homem a se
separar da massa e assumir o papel do pai em âmbito privado.
Afastado do grupo, diz Freud, este pai opera uma transformação no mito
totêmico: ele inventa o mito heroico, aquele do filho que matou sozinho o pai
tirânico da horda. Se faz o primeiro poeta épico consumando-se, em suas fantasias,
como o herói que substitui o pai monstruoso. Torna-se o Ideal do Eu para seu
próprio filho. Nesta falaciosa transfiguração poética da horda primeva a mulher
passa a ser a sedutora instigadora do assassinato do pai. Para o psicanalista, este
poeta-pai pretende ser o único autor da façanha que a horda perpetrou.

189
O mito é, portanto, aquele passo com que o indivíduo se sai da psicologia de massa. O
primeiro mito foi, com certeza, o psicológico: o mito do herói; o mito explicativo da
natureza deve ter aparecido muito depois. O poeta que deu este passo, e assim se
desprendeu da fantasia da massa, sabe entretanto – segundo outra observação de Rank
– encontrar na realidade o caminho de volta a ela [massa]. Com efeito, apresenta e
refere a esta massa as façanhas do seu herói, inventadas por ele. No fundo, este herói
não é outro senão ele mesmo. Assim baixa à realidade e eleva seus ouvintes até a
fantasia. Pois bem, estes compreendem o poeta, podem se identificar com o herói sobre
a base da mesma referência desejante ao pai primordial79 (FREUD, 1921: 129, minha
tradução).
O mito agora, culmina com o endeusamento do herói, como espaço em que o
lugar do pai se realiza de um modo mais representável pelo filho. Esta passagem da
qual fala Freud – do mito original das massas, para o mito heroico – talvez seja
aquela presente nas culturas orais primárias, cujo ápice se dá no transcurso para a
cultura escrita, em que o herói passa ser tomado no espaço privado como referência
de identificação mítica.

Em ‘Futuro de uma ilusão’ (1927) Freud retoma o assunto dos mitos de forma
indireta. Nesta obra aborda o papel das religiões nas estruturas sociais como
elemento que dá proteção ilusória ao desamparo humano frente à vida. Mais tarde,
em ‘Mal-estar na civilização’ (1930 [1929]), Freud dirá que o homem se depara
permanentemente com três fontes de desprazer: o próprio corpo que entra em
decrepitude; o mundo externo com as forças da natureza; e os vínculos com outros
homens, cujos desejos conflitam com os seus. Sendo assim restrita, a busca pelo
prazer demanda estratégias psíquicas para driblar seus obstáculos, e a religião é
uma delas.

Na obra de 1927 citada acima, o autor refere ao desamparo da humanidade


como um todo, levando-a a criar as religiões como forma de garantir algum abrigo.
Entretanto este desarrimo geral é, antes de mais nada, sentido por cada criança

79
El mito es, por tanto, aquel paso con que el individuo se sale de la psicología de masa. El primer
mito fue, con seguridade, el psicológico: el mito del héroe; el mito explicativo de la naturaliza debe
de haber aparecido mucho después. El poeta que dio este paso, y así se desaió de la masa en la
fantasia, sabe empero – segun outra observación de Rank – hallar en la realidad el caminho de
regreso a ella. En efecto, se presenta y refiere a esta masa las hazañas de su héroe, inventadas por
él. En el fondo, este héroe no es outro que él mismo. Así desciende hasta la realidad, y eleva a sus
oyentes hasta la fantasía. Ahora bien, estos comprenden al poeta, pueden identificarse con el héroe
sobre la base de la misma referencia añorante al padre primordial (FREUD, 1921: 129).

190
desde seu nascimento. É, portanto, pela via do infantil que propõe a investigação das
formas como os sujeitos lidam com ele.

O bebê busca apoio na mãe que o alimenta, mas que também o protege dos
perigos frente à angústia; nesta relação estabelece as escolhas de objetos infantis
que fazem com que a libido siga os caminhos das necessidades narcísicas e adira aos
objetos que assegurem satisfação parcial. Mais tarde a mãe é substituída pelo pai,
mais forte, mas com quem a criança mantém uma relação de ambivalência: primeiro
ele ameaça sua relação com a mãe, depois passa a ser admirado, sem deixar de ser
temido. Entretanto o caminho que vai de uma relação a outra não é tranquilo,
precisamente porque não é pela via da compreensão consciente que a criança fará
isto. Freud alude a ela da seguinte forma:

São ensinamentos, enunciados sobre feitos e constelações da realidade exterior (ou


interior), que comunicam algo que o sujeito mesmo não descobriu e demandam crença.
Posto que nos dão informação sobre o que mais nos importa e interessa na vida, se lhes
têm muito apreço80 (FREUD, 1927: 25, tradução minha, grifo meu).

A condição da crença é um ponto importante para Freud, pois dirá que, como a
racionalidade não pode responder aos afluxos apaixonados das pulsões, é pela via
da imposição proibitiva – de assassinar outros homens, por exemplo – que a criança
recebe aquilo que é próprio das relações civilizacionais. Não é a intelecção da
proibição que tem efeito, mas a própria interdição que comunica a verdade histórica.
Dito de outro modo, é pela via da castração que a criança chega aos pressupostos da
cultura, e não é, portanto, pelo trabalho intelectual-racional que sufocará as pulsões
que, para a vida em sociedade, devem ser dominadas/controladas, dirigidas ao
trabalho de efeito social.

Entretanto, o fato de a criança aceitar a castração não a detém no lugar de


passividade, pois deverá empreender um longo trabalho de representação desta
posição, para poder com ela se identificar. Pela via simbólica questionará os papéis
desempenhados nas relações e isto lhe permitirá ressignificá-los – constituir seu
corpo, o lugar do pai e o da mãe, e do desejo que circula. Os novos sentidos começam

80
Son enseñanzas, enunciados sobre echos y constelaciones de la realidad exterior (o interior), que
comunican algo que uno mismo no ha descubierto y demandan creencia. Puesto que nos dan
información sobre lo que más importa e interesa en la vida, se les tiene muy alto aprecio (FREUD,
1927: 25).

191
a ser buscados naquilo que nos referimos anteriormente como as teorias sexuais
infantis identificadas por Freud (1905 e 1923). É a elas que as novas representações
vêm responder.

Sob o império das fantasias, a criança terá que atravessar o efeito da renúncia
forçada da realização pulsional – sair da ignorância, como diz Freud, ou da alienação,
como diz Lacan – e chegar ao mito do pai herói pela sua representação simbólica. Aí
será capaz de advir à cultura como um ser que, não só crê, mas também dela
participa.

Lacan (1956-57) aprofunda-se nesta questão dos mitos ao tratar da análise do


pequeno Hans feita por Freud (1905). Dirá que neste difícil percurso feito pela
criança, que vai da relação dual com a mãe, à relação simbólica com o pai, [...] no
momento em que é chamado em socorro para manter a solidariedade essencial
ameaçada pela hiância introduzida pela aparição do falo entre a mãe e a criança, o
elemento que intervém [...] tem um caráter verdadeiramente mítico (LACAN, 1956-57:
58).

Mais adiante Lacan afirma que a criança terá que perceber que para fazer-se
objeto de amor da mãe, não é como seu falo que o conseguirá, mas deslizando para
uma terceira posição: entre o objeto de desejo da mãe e o objeto imaginário falo. A
terceira posição é aquela do pai simbólico – o que dá acesso à cultura e que permite
à criança significar seu lugar como falo no gozo da mãe e também identificar o desejo
materno. Este é o lugar só alcançado por uma construção mítica, isto é, não sendo
representado em parte alguma (diferente do pai real com quem a criança lida o
tempo todo), ele é o significante do qual só se pode falar reencontrando ao mesmo
tempo seu caráter e sua necessidade. Dito de outra maneira, quando há a castração
– a ação do pai simbólico por meio de um significante – não sendo este significante
apreensível em si, a criança precisa de recursos outros para representá-lo e vai
buscar estes recursos no Imaginário, por meio do qual construirá seus mitos
particulares. Embora a castração seja um ato Simbólico, seu sentido é contraído do
Imaginário.

Vou indicar também o problema suscitado pelo fato de que o mito tem, no conjunto, um
caráter de ficção. Mas esta ficção apresenta uma estabilidade que não a torna de modo
algum maleável às modificações que lhe podem ser trazidas, ou, mais exatamente, que

192
implica que toda modificação implica por sua vez, por essa razão, uma outra, sugerindo
invariavelmente a noção de uma estrutura. Por outro lado, essa ficção mantém uma
relação singular com alguma coisa que está sempre implicada por trás dela, e da qual
ela porta, realmente, a mensagem formalmente indicada, a saber, a verdade. Aí está uma
coisa que não pode ser separada do mito (LACAN, 1956-57: 258).

[...]

A necessidade estrutural que é carregada por toda expressão de verdade é justamente


uma estrutura que é a mesma da ficção. A verdade tem uma estrutura, se podemos dizer,
de ficção [...] O mito se apresenta, também em sua visada, com um caráter de
inesgotável. [...] Ele está muito mais próximo da estrutura que de todo conteúdo, e se
reencontra, e se replica, no sentido mais material da palavra, sobre todas as espécies de
dados, com essa eficácia ambígua que o caracteriza (LACAN, 1956-57: 259).

O molde oferecido pela categoria mítica é um tipo de verdade da relação entre


os homens com temas da vida e da morte, da existência e da não-existência, do
nascimento, da aparição. Tratam-se de temas ligados à existência do próprio sujeito.
Ressalta Lacan que os mitos, como se apresentam em sua ficção, não visam a origem
individual do homem, mas a criação do Homem, sua gênese e suas relações
fundamentais, nas quais encontramos as forças secretas, maléficas ou benéficas,
caracterizadas pelo que é sagrado.

Essa potência sacra é uma identidade manifesta com o poder de significação do


seu instrumento significante. É isto que permite ao Homem introduzir na natureza
o que une o próximo e o distante, o que une ele mesmo ao universo, mas também
introduz as suas necessidades e os fatores de transformação. Identificado ao
significante, o sujeito pode intervir nas coisas do mundo e transformá-
las/compreendê-las; por outro lado, identificado ao objeto, o sujeito paralisa suas
representações e põe-se em jogo com o corpo e suas satisfações. Para compartilhar
e pertencer à cultura, mantendo seu desejo, o Sujeito deve alterna-se nas duas
identificações e jamais estagnar em uma só, sem o risco de ser acometido por alguma
patologia psíquica ou física (BATTAGLIA, 2001).

O que cada criança fará ao ser castrada simbolicamente não é um novo mito para
a civilização, mas uma criação mítica singular que lhe permita formalizar os mitos
civilizacionais, compreendendo o papel dos significantes, isolando os elementos
comparáveis, classificando-os e ordenando-os conforme sua posição subjetiva. Se os
elementos simbólicos do mundo não pertencem a ninguém, de qualquer forma eles
193
devem ser recebidos e representados por cada sujeito, como forma de concernir a
todos.

A estrutura mítica persiste nos mitos recriados por apropriação subjetiva e


transformados para se acomodarem às necessidades psíquicas de cada um.

O que se chama um mito, seja ele religioso ou folclórico, em qualquer etapa de seu
legado que se o considere, apresenta-se como uma narrativa. Pode-se dizer muita coisa
sobre esta narrativa, e tomá-la sob diferentes aspectos estruturais. Pode-se dizer, por
exemplo, que ela tem alguma coisa de atemporal. Pode-se tentar definir sua estrutura
quanto às configurações que ela define. Pode-se tomá-la sob sua forma literária, cujo
parentesco com a criação poética é surpreendente, ao passo que o mito é, ao mesmo
tempo, muito distinto desta, no sentido que mostra certas circunstâncias que não estão
absolutamente submetidas à invenção subjetiva (LACAN, 1956-57: 258, grifo meu).

Em resumo, o mito em si como um legado extemporâneo estrutural e


estruturante da civilização, não pode ser modificado pelos sujeitos, mas ele tem um
papel fundamental na constituição subjetiva infantil ao ser retomado nas pequenas
recriações míticas que dão a dimensão do papel do significante – da linguagem –
para cada um.

Lacan, analisando criticamente o caso Hans, destaca o episódio em que seu pai
e Freud conversam com a criança na tentativa de deslindar seus sintomas fóbicos81.
Muito explicativos em suas observações sobre o comportamento de Hans, oferecem-
lhe elementos genéricos sobre como meninos relacionam-se amorosamente com
suas mães e rechaçam o pai, e que isto pode levar a situações desagradáveis como
as dos sintomas que enfrenta. Acrescenta Lacan que pelo viés das palavras que um
e outro apresentam a Hans, não há como o garoto assimilar o que lhe foi dito, só
porque bem explicado. É preciso que o próprio Hans percorra alguns circuitos de
linguagem (metafóricos e metonímicos) e experimente situações reais, para poder
tomar a intromissão simbólica (a letra, o significante S1 da castração) transformá-la
imaginariamente em um Texto que dará acesso ao discurso simbólico (S2). As
explicações sobre seus atos – uma constante na fala moderada do pai – agem
exatamente no sentido inverso das amarrações psíquicas que precisa empreender,
pois o tempo todo intervêm e põem a perder as criações míticas que Hans inicia. O

81
A análise de Hans é feita majoritariamente pelo próprio pai, discípulo de Freud e em constante
contato com seu mestre, para expor o que seu filho apresentava nas suas manifestações diárias e
falar de seus sintomas fóbicos. Em duas ocasiões Hans foi levado ao contato direto com Freud.

194
garoto é seguidamente interrompido pelos engendramentos compreensivos do pai
e por isto não consegue terminar o seu trabalho de forjar suas criações míticas. Diz
Lacan que [...] é preciso que a própria criança experimente a crise do Édipo, de que a
castração é um momento especial (LACAN, 1957: 279) e em seguida acrescenta que,
como os elementos da experiência que darão corpo às narrativas fantasiosas são
significantes que deslizam metaforicamente e metonimicamente pelo discurso, eles
precisam ser vividos pela criança e compreendidos como uma questão de método
de ação. Vale-se da leitura particular que faz sobre a ‘Estrutura do mito’ de Lévi-
Strauss: ali os elementos

[...] estão alinhados de tal modo que, lidos num certo sentido, sejam a sequência do mito.
Mas o retorno dos mesmos elementos, retorno que não é simples, mas ordenado, obriga
a ordená-los, não simplesmente numa só linha, mas numa superposição de linhas que
se dispõem como uma partitura, e vocês podem ver, então, estabelecer-se uma série de
sucessões legíveis tanto horizontal quanto verticalmente. O mito se lê num sentido, mas
seu sentido, ou sua compreensão, surge à superposição dos elementos análogos que
voltam sob formas diversas, a cada vez transformadas, sem dúvida para realizar um
certo percurso que vai, como diria o sr. de la Palice, do ponto de partida ao ponto de
chegada, e que faz com que algo que no começo parecia irredutível se integre no sistema
(LACAN, 1957: 283).

Como as cenas de fantasia são fluidas e se recompõem a cada necessidade de


representação do sujeito, a cada vez os elementos só fazem sentido em relação a
outros elementos significativos, ou seja, das várias conformações fantasiosas não
podemos depreender significações unívocas, mas um tecido em cuja trama se veem
várias configurações diferentes sustentadas pelos significantes. Os subsídios
significantes encontram-se a cada vez em um lugar e em relação a diferentes
sentidos. Ou seja, o discurso desliza no sentido diacrônico e, simultaneamente, no
sentido sincrônico, em que os significantes são representados.

Vimos até aqui que o mito é uma narrativa forjada pelo Homem na cultura para
dar sentidos à sua posição no mundo. Acompanhamos também que cada criança ao
nascer precisará fazer esforço de compreender este lugar social, mas que para isto
terá antes que trabalhar na construção de seu mito particular, por meio das fantasias
representadas em seu corpo; as várias montagens fantasísticas criadas para
representar cada vínculo relacional estabelecerão uma matriz significante por onde
o Sujeito poderá construir sua Subjetividade. Estabeleceremos aqui que esta matriz

195
significante, particular a cada um, é o Texto psíquico, isto é, é uma estrutura
discursiva única a cada sujeito, mas aberta à recepção daquilo que vem da cultura.

Esta tarefa de enredamentos múltiplos que culminam com a configuração de


uma dada criação mítica particular, é o esforço humanizador a que todos estamos
submetidos. É um trabalho de repetição da experimentação dos diferentes sentidos
que se compõem por deslocamento e condensação dos significantes, que a criança
terá que atravessar.

3.4.1. A INTERTEXTUALIDADE – A MONTAGEM E A DESMONTAGEM DE


SENTIDOS EM UMA CRIAÇÃO MÍTICA

A experiência do Fort-Da descrita por Freud (1920) é, antes de tudo, uma


brincadeira, um jogo que se realiza por ele mesmo. Nesse jogo trama-se o modelo de
simbolização em que a criança substitui a mãe pelo carretel – a mãe antes percebida
como um conjunto disperso de cheiros, formas, sons, é agora uma unidade
sintetizada no carretel. É também um jogo de substituições significantes que
permite estabelecer o par de elementos ausência/presença, quando o gesto é
acompanhado de palavras: jogar (Fort) e trazer (Da). Por fim, é uma atividade que
permite à criança sair da posição passiva (ser abandonada) para a ativa
(fazer/deixar o outro ir). Na brincadeira faz-se a passagem da letra ao significante:
apaga-se a ausência e a insatisfação deixadas pela mãe recuperando-as no simbólico.
O jogo simbólico auxilia na solução da função dêitica pois permite à criança
apropriar-se de algo e estabelecer ligações de reciprocidade e oposição.

Acontece que esta entrada pela via do simbólico não ocorre em um momento
estanque; ela é tecida na experiência repetida das relações da criança com o meio e
suas representações significantes, cuja maior expressão são as brincadeiras infantis
experimentadas de muitas maneiras, até que tomem um corpo e estruturem a
criação mítica de cada uma.

Sobre os diferentes momentos de produção mítica de Hans, Lacan faz uma


consideração relevante para os propósitos desta tese: a criança se aproxima e se
apropria dela pelo ludismo, pela forma não utilitária da compreensão do mundo,
mas às custas de muita experimentação do mundo. Quando se trata de Hans, não se

196
tem em momento algum a impressão de uma produção delirante. Tem-se, muito mais,
a nítida impressão de uma produção lúdica (LACAN, 1956-57: 262).

Para a conformação das representações infantis, a criança precisa construir um


enredo que lhe seja próprio e fará isto pela via da repetição da experimentação
lúdica, sem que esta tenha um caráter de adequação objetiva e utilitária com as
coisas da realidade do mundo. Ao contrário, a criança se apropria de modo
particular dos significantes dispostos no meio em que está inserida, tecendo com
eles uma trama – as criações míticas – de aparente nonsense, mas que lhe garante
uma estrutura fantasística em que os elementos relacionais estão potencialmente
dados à representação. A criança recolhe os significantes que o Outro lhe
disponibiliza, desmonta seus sentidos primeiros, para então dar-lhes outra
configuração de significado. É o percurso que vai do neto de Freud a Hans, sendo
que o primeiro, aos quase dois anos de idade, está ingressando nesta atividade
psíquica e o segundo, em torno dos cinco anos, está em vias de concluí-la.

Cabe dizer que, se esta longa atividade depende inteiramente das articulações
da própria criança, o centro desta mobilização está atrelado à sua memória, isto é,
ao resgate de elementos significantes dispostos em seu aparelho de linguagem que,
por sua vez, tiveram origem determinante em Outros aparelhos de linguagem: na
memória familiar que se transmite pelos significantes que a nomeiam e significam
desde antes de nascer. E, da mesma forma que a escolha de significantes advindos
do Outro é própria para referenciar uma criança em particular, este mesmo infante
vai construir um mundo de representações totalmente seu; diferente de qualquer
outro, portanto. Cada trama narrativa terá um caráter único a partir dos recortes
significantes que a criança fará sobre olhares, gestos, palavras, tons de voz,
intervalos de voz, ritmos, cheiros, força muscular, pedaços de objetos – são todos
subsídios dos quais se valerá para construir seus mitos particulares. Estabelece de
saída um jogo intertextual rico em articulações.

É exatamente esta intertextualidade – deslocamento e condensação de


significantes na composição de tramas e representações diversas – que podemos ver
novamente em Hans. Sua fobia original é de cavalos: primeiro de que os cavalos
mordam, depois de que eles caiam. O medo, no entanto, é antecedido por um diálogo
com a mãe em que ele atribui um sentido ao ‘faz-pipi’ dela, e ela não o nega:

197
Ela pergunta: ‘Então, por que olhas assim?
Hans: Só para ver se tu também tens um ‘faz-pipi’.
Ela: Naturalmente. Não o sabias?
Hans: Não; pensei que como és tão grande teria um ‘faz-pipi’ como de um cavalo.
Reparemos nesta expectativa do pequeno Hans: mais tarde cobrará significação82
(FREUD, 1909: 10, tradução minha).

Uma vez que o recalque impõe-lhe a necessidade de novas realizações de


representação, sua trama linguageira precisa ser ampliada, tanto quanto suas
matrizes significantes, para dar conta desta frase tão emblemática. Aí a criança
inaugura sua fase dos ‘por quês’. Hans está às voltas com seu ‘faz-pipi’, cuja
intumescência lhe dá prazer e ele faz questão de exibir. O problema é que sua mãe
responde a seus apelos exibicionistas tomando-o metonimicamente:

Ora, em toda situação intersubjetiva tal como se estabelece entre mãe e criança, temos
uma questão [...] ela se refere a estes dois termos que empreguei no passado [...] que
articula uma divisão maior da abordagem significante de qualquer realidade num
sujeito, a saber: metáfora e metonímia. [...] Não se trata de substituição real, trata-se de
substituição significante e de saber o que ela significa [...] de saber qual a função da
criança para a mãe, e com referência a esse falo que é o objeto de seu desejo. A questão
anterior é: metáfora ou metonímia? Não é, em absoluto, a mesma coisa o fato da criança
ser, por exemplo, a metáfora de seu [da mãe] amor pelo pai ou metonímia de seu desejo
do falo, que ela não tem e não terá jamais (LACAN, 1957: 248).

Para a mãe, Hans é um apêndice indispensável, é a metonímia do falo, e ela não


tem, por isto, consideração pelo falo do menino. A criança é metonímica como
totalidade: é ele inteiro que está em causa para a mãe e não o seu ‘faz-pipi’, tão
valioso e caro, que ele quer saber para que serve. Sem o recorte deste objeto, não há
como significá-lo, como deslocá-lo para outras representações. Seu pai, por outro
lado, também ignora suas aflições e responde-lhe – sempre em tom explicativo e
pela via da insistência da castração simbólica – que as mulheres não têm o falo e que
não adianta procurá-lo. Aí Hans fica sem saída: com a resposta dada ele não pode

82
Ella pregunta: “Pues,¿por qué miras así?”
Hans: “Sólo para ver si tú tambien tienes un hace-pipí.”
Ellas: “Naturalmente. ¿No lo sabias?”
Hans: “No; pensé que como eres tan grande tendrías un hace-pipí como el de un caballo.”
Reparemos en esta expectativa del pequeño Hans; más tarde cobrará significatividad (FREUD, 1909:
10).

198
imaginar e experimentar todas as possibilidades para seu órgão precioso e então
imagina que seu ‘faz-pipi’ está ‘enraizado’: aí faz a fobia.

O corpo enquanto não é falado, fala. Pela via dos afluxos pulsionais, ou dos
sintomas que se instalam nele, nas crianças o corpo age com toda vitalidade. Se a
palavra não vem socorrer o Sujeito que precisa de representações, seu corpo fala no
lugar por meio das pulsões que se exercem desordenadamente dentro-fora do
organismo.

O medo só se resolve quando pode finalmente retomar a via das fantasiações e


criações míticas. (Cabe dizer que o sintoma é fóbico pois há o cavalo como objeto de
medo; do contrário, se Hans fosse só metonímia, desprovido de qualquer outro
objeto onde se agarrar, ficaria imerso em angústia).

Diz Lacan – a partir do relato de Freud – que primeiro Hans recomeça seu
caminho pela via dos sonhos. Sonha que há ‘duas girafas iguais’, mas uma é grande
e está em um lugar e outra pequena, ali próximo, enrolada como uma bola; ele se
senta sobre a pequena e a grande se põe a gritar. Para mostrar ao pai como é a
pequena girafa-enrolada, amassa uma folha de papel que a representa. O pai ignora
o ato e sai logo interpretando que a girafa grande é o símbolo do pai e a pequena é a
mãe, reagindo à falta do falo – explica novamente e Hans quase se vê sem saída, pois
na verdade está às voltas com os pares significantes ‘grande / pequeno’, ‘está / não
está’, que surgiram quando sua irmã nasceu e a mãe deixou de ser só dele. A mãe lhe
diz, sobre a irmã, que ela ‘ainda não tem dentes’. Hans tem que lidar com três coisas
a partir daí: algo novo (dentes, falo) vai aparecer; o que vai aparecer, vai crescer;
não se sabe o tamanho que atingirá quando crescer.

Estes elementos estão em total acordo com as teorias sexuais infantis


enunciadas por Freud, em que a criança primeiro acredita que todos (homens e
mulheres) têm o órgão genital como o masculino, depois constata que a mulher o
tem, mas que ainda é pequeno e vai crescer, e finalmente cede ao fato de que não o
tem, mas tem outra coisa. O falo para Hans é um elemento Imaginário e precisa
tomar valor Simbólico, mas não consegue fazer este caminho sozinho. Se ele tem um
par de significantes à sua disposição (sincronia), estabelecido na relação com a mãe
(mas que o toma como objeto metonímico), falta-lhe o discurso, o sistema de
relações significantes (diacronia) que o levaria a um terceiro termo, metafórico.

199
Em princípio as girafas são iguais – como os homens e as mulheres – e Hans faz,
de seu lado, a metonímia da mãe. Mas logo Hans introduz uma imagem no jogo
simbólico e a girafa pequena é amassada. Dias antes o pai lhe desenhara uma girafa,
à qual Hans acrescentara um ‘faz-pipi’, mas como um traço separado do animal. Aí o
desenho que o pai faz (imaginário e não explicativo) estava no caminho do
simbólico, uma vez que o resto é inteiramente desligado dos outros membros da
girafa. Ao mesmo tempo, a girafa pequena é o suporte necessário à veiculação do
significante que se pode segurar e amassar. Na passagem do imaginário ao
simbólico, a criança tem algo em mãos.

Em seguida, Hans começa a deparar-se com outro significante que insiste:


‘perfurado’. Sonha que ele é perfurado, depois uma boneca e outros objetos mais são
perfurados, transpassados de dentro para fora e vice-versa. Este elemento lhe dá
passagem para o significante metafórico ‘parafuso’, algo que pode ser removido,
bem diferente do ‘faz-pipi enraizado’ da fobia. A solução definitiva para o medo vem
quando observa o bombeiro que vai à sua casa e instala, aparafusa, rosqueia e
desrosqueia os canos: conclui que o bombeiro poderá vir um dia para desparafusar
seu pênis e colocar-lhe um maior.

A introdução desse instrumento lógico, desse tema tomado de empréstimo à sua


pequena experiência de criança, desse elemento mítico, vai trazer a verdadeira
resolução do problema, através da noção de que o falo é também algo tomado no jogo
simbólico, que pode ser combinado, que é fixo quando se o instala, mas que é
mobilizável, que circula, que é um elemento de mediação. É a partir desse momento que
a criança está a caminho de encontrar um primeiro alívio em sua busca frenética de
mitos conciliadores jamais satisfatórios, e que nos levarão à solução definitiva que ela
vai encontrar (LACAN, 1957: 272).

Hans vai da mãe, a uma parte de seu corpo e ao corpo da irmã propondo-se
questões relacionais que lhe permitam chegar ao pai. Vale-se de uma variedade
grande de experiências para entrar e sair da fobia: vê a coisa preta na boca do cavalo,
vê o cavalo cair, assiste a saída e a entrada das carroças carregadas em frente de sua
casa, desenha e sonha com girafas, amassa papéis, sonha com bonecas, brinca com
meninas, vê ilustrações de livros infantis, vê os parafusos, assiste as atividades do
bombeiro, entre outros tantos elementos com os quais constrói sua mítica. O que
falta a Hans e que dificulta sobremaneira seu caminho é a quase ausência de

200
narrativas despretensiosas nas quais os pais apareçam como suporte de discurso
imaginário, pleno de signos, imagens e formas de impressões dispostas no mundo
nos quais a criança possa encontrar a imagem do próprio corpo. Ainda assim, Hans
consegue pinçar aqui e ali fragmentos discursivos com que estabelece um intertexto
entre cavalos, girafas e bombeiros, e assim consegue dar-se uma conformação de
sentido.

Além dos conteúdos pragmáticos do cotidiano, toda criança precisa que o


mundo lhe ofereça despretensiosamente variedade de objetos, lugares, nomes, sons,
gestos – os ludismos poéticos, ou o ‘desútil’ – que possa recolher e tramar sua
história. Como ser de linguagem, o humano precisa visceralmente dela para se
constituir e ascender às relações sociais. Diz Lacan que esta necessidade, mediada
pelos significantes, se faz por duas vias principais: uma que é a nomeação
significante (S1, puramente simbólico) que acolhe o Sujeito e lhe dá segurança
diante do imponderável da vida; e outra é o estabelecimento do discurso significante
(S2, simbólico, mas também imaginário) que lhe confere mobilidade entre outros
humanos. É, portanto, fundamental que na infância a criança possa transitar com
palavras e toda sorte de outras incidências do significante, para que possa se
encontrar no mundo. Mas, como ser que é inicialmente sobredeterminado pela
linguagem, estes significantes precisam chegar até ele: é preciso que o tesouro dos
significantes estejam dispostos ao seu alcance. Assim, poderá brincar com estes
elementos – e este é o trabalho mais sério que a criança desempenha na sua meninês.

A partir das questões surgidas em seu próprio corpo e das primeiras relações
de amor estabelecidas na família dá-se a necessidade de a criança buscar
significações para sua existência. Para isto cria seus mitos, que só poderão ser
erigidos através de elementos imaginários dispostos no mundo para
experimentação repetitiva deles. Aumentam, assim, o interesse e a curiosidade
infantil pelos aspectos culturais mais extensos e aí estabelece um movimento
dialético: ao mesmo tempo que suas primeiras criações míticas arremessam-no em
direção ao meio que o cerca, é também por este universo novo que é atravessado
pela linguagem para estabelecê-las. São textos afetivos, fontes para as fabulações da
criança, que darão a medida do discurso que circula fora do Sujeito; por meio das
narrativas a criança chega a exercitar também sua posição social e a usufruir da

201
civilização, aproximando-se, em segundo plano, do compartilhamento da língua
comum a todos. Quando a criança chega à sociedade mais ampla – para além dos
muros familiares – ainda está imersa na heterogeneidade e singularidade das
representações (cujas marcas não se apagarão nunca, cujo resto estrutural estará
sempre lá); depois, com o compartilhamento comum de elementos sociais, a criança
já é capaz de suportar um lugar de homogeneidade, de igualdade com seus pares.

Mas esta entrada, como já dissemos, não é pela via da realidade objetiva, senão
que se dá pelos caminhos da exploração fantasiosa, cerimonial, de aparente falta de
sentido e plena de sensações. Assim que as tramas textuais que cercam a criança têm
enorme importância nas suas experimentações criativas. Inicialmente ela recolhe do
mundo à sua volta os elementos que lhe convém e usa-os conforme assentam às suas
necessidades. Portanto, os sentidos sociais atribuídos às coisas e às palavras não lhe
podem interessar de saída – embora seja um dos pontos de chegada –; o cotidiano
como estabelecido pelos adultos, na sua função pragmática, não responde às
necessidades da criança.

3.5.INFÂNCIA – O FUNDAMENTO DA EXPERIÊNCIA, DA


HISTORICIDADE E DA POESIA

Também Giorgio Agamben (1978) entende que a criança opera por fantasia, por
articulações nonsense (aos olhos do adulto) de objetos e fragmentos de objetos
eleitos, com que estabelece o conhecimento de si e do mundo. Dá especial relevância
à experiência como forma de fazer, compartilhar e transmitir o que é próprio do
humano. A experiência situa-se no sujeito – e não fora dele – e traduz sua capacidade
de existência, [...]porque a experiência tem seu necessário correlato não no
conhecimento [racional e objetivo], mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto
(AGAMBEN, 1978: 22). O conhecimento que a criança estabelece pela via da
experiência é espontâneo, fruto do acaso e, neste sentido, bem diverso daquele
concebido pelas ciências modernas.

A imaginação, tão cara aos povos antigos – e ainda hoje aos primitivos e a todas
as crianças – permitia-lhes, por exemplo, olhar para o céu e tão apropriadamente
nomear de Via Láctea o extraordinário derramamento de leite no etéreo

202
firmamento. Se hoje já sabemos que não se trata de leite, mas de um conjunto de
estrelas, de qualquer forma não deitamos fora toda poesia e herdamos desta
experiência a nomenclatura e a sabedoria de que o agrupamento destes corpos
celestes está lá desde antes de nascermos e ali permanecerão enquanto vivermos. A
imaginação foi eliminada do conhecimento, como sendo irreal. Enquanto mediadora
entre sentido e intelecto, na fantasia a imaginação ocupava o lugar atualmente dado
ao experimento controlado e metrificado. A partir de René Descartes e o nascimento
da ciência moderna, a fantasia é assumida pelo sujeito do conhecimento como se
entre este sujeito (res cogita) e o mundo corpóreo (res extensa) não houvesse
necessidade de mediação. Agamben (1978) posiciona-se diante desta matéria e diz
que a imaginação não é irreal, mas condição da comunicação de conhecimento;
argumenta que, ademais, a experiência sem a fantasia fica apartada do desejo.

O autor aponta que ao tratar do problema do conhecimento, Immanuel Kant se


vale do modelo matemático – fundado no ‘eu penso’ cartesiano – como aquele que
garante acesso verdadeiro e racional à ciência das coisas. Mas o sujeito da
experiência assim apresentado, torna-se autônomo, como um eu empírico disperso
e sem relação com sua identidade de sujeito. Como o sujeito transcendental kantiano
não pode conhecer um objeto, mas apenas pensá-lo; resulta, então, que ele não pode
conhecer nem a si mesmo. Nesta dimensão só há, portanto, representação simples e
esvaziada do conteúdo ‘eu’; e, em sendo o ‘eu’ também só conhecido pelo
pensamento, sua porção intuitiva fica de fora do conhecimento e o sujeito não pode
ser absolutamente conhecido.

Agamben ressalta que Kant ignorou o aspecto humano fundamental de que, na


origem, a subjetividade transcendental é relacionada à linguagem: como o ‘eu’
(sujeito humano) necessariamente é constituído na, e pela, linguagem, situá-lo como
objeto de conhecimento transcendental é tomá-lo antes desta, antes do ‘eu penso’; a
experiência original, pura, seria a experiência muda acontecida antes da linguagem.
Mas a faculdade do pensamento reside na linguagem, tanto quanto nela está dado o
ponto central dos enganos da razão. Configura-se, então, uma região pantanosa
entre a experiência e o conhecimento transcendental.

A saída para este impasse Agamben (1978) encontra justamente na infância do


Homem – que ele chama de in-fância – cuja experiência, de qualquer forma, percebe

203
seu limite na linguagem, mas não fora dela, uma vez que a consciência da psique é o
sujeito de linguagem. Sugere que se substancialize esta in-fância em torno do
silêncio do sujeito, por meio do irrefreável e intangível da linguagem. Para o autor,
isto se traduziria como o monólogo interior que pode [...] ceder o lugar a uma
absolutização mítica da linguagem além de toda ‘experiência vivida’ e de toda
realidade psíquica que a preceda (AGAMBEN, 1978: 59), e identifica este lugar
justamente com o inconsciente freudiano, ou o ‘Es’ (Isso) lacaniano, cuja realidade é
a linguagem.

Na ideia de uma infância como uma ‘substância psíquica’ pré-subjetiva revela-se então
um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem
assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e
a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos
procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a
infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede
cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se
na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para
sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás
ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o
homem como sujeito (AGAMBEN, 1978: 59).

Não sendo possível encontrar o homem separado da linguagem, nem no ato de


inventá-la, não devemos renunciar à possibilidade de atingir a experiência da
infância, mas abdicar do conceito de origem forjado a partir de modelos das ciências
naturais – de localização cronológica, causa inicial, separada em um tempo antes e
um depois. A linguagem se produz na fratura, na descontinuidade entre diacronismo
e sincronismo, entre estrutura e história.

Novamente o mito é o ponto de interpenetração entre ambos, não como um


conceito abstrato ou hipotético, mas algo que se produz concretamente: o mito não
é uma origem remetida de volta no tempo, mas representado na coincidência entre
diacronia e sincronia.

Uma tal origem não poderá jamais resolver-se completamente em ‘fatos’ que se possam
supor historicamente acontecidos, mas é algo que ainda não cessou de acontecer.
Poderíamos definir uma tal dimensão como a de uma história transcendental que
constitui, em um certo sentido, o limite e a estrutura a priori de todo conhecimento
histórico.

204
[...]

Pois o próprio fato de que exista uma tal infância, de que exista, portanto, a experiência
enquanto limite transcendental da linguagem, exclui que a linguagem possa ela mesma
apresentar-se como totalidade e verdade. Se não houvesse a experiência, se não
houvesse uma infância do homem, certamente a língua seria um ‘jogo’, cuja verdade
coincidiria com o seu uso concreto segundo regras lógico-gramaticais. Mas, a partir do
momento em que existe uma experiência, que existe uma infância do homem, cuja
expropriação é o sujeito da linguagem, a linguagem coloca-se então como o lugar em
que a experiência deve tornar-se verdade (AGAMBEN, 1978: 61-62).

Agamben vai adiante: se só podemos alcançar a infância indo ao encontro da


linguagem, então o problema da experiência é o da origem da linguagem na sua
dupla realidade de língua e fala, isto é, a infância é a instauração da cisão entre língua
e discurso, e a passagem de uma ao outro é justamente o fenômeno da linguagem.
Para chegar a esta articulação, Agamben adota as elaborações teóricas de Emile
Benveniste – em que a infância institui a diferença entre língua (semiótica) e
discurso (semântica) – e não a de Ferdinand Saussure – para quem a língua e fala
diferenciam-se pelo fato de a primeira ser cunhada na coletividade e a segunda na
individualidade da fonação. Desta forma, os animais, por exemplo, não entram na
língua pois estão desde sempre nela, estão unidos à sua natureza e contínuos a ela.
O Homem, na medida em que tem infância, em que não é desde sempre falante, cinde
a língua e apresenta-se como aquele que para falar deve constituir-se como sujeito
da linguagem e dizer ‘eu’.

Recuperamos então, o ponto de partida de Agamben – a essência da experiência


como forma de fazer, compartilhar e transmitir o que é próprio do Homem – para
acompanhá-lo na sua conclusão: justamente porque a linguagem pré existe ao
sujeito, que ele precisa se apropriar dela e aí fundamentar a historicidade do ser
humano. É a infância, a experiência transcendental da diferença entre língua e fala,
que abre espaço para a história, e aí o autor usa uma alegoria para explicar-se: a
infância é o caminho que transforma a pura língua pré-babélica em discurso humano
e a natureza em história; a origem da história é Babel, é a criança pequena que pode
formar todos os fonemas de todas as línguas.

Experienciar significa necessariamente, neste sentido, reentrar na infância como pátria


transcendental da história. O mistério que a infância constitui para o homem pode de
fato ser solucionado somente na história, assim como a experiência, enquanto infância

205
e pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na
linguagem e na palavra. Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da
humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo,
descontinuidade, epoché (AGAMBEN, 1978: 65).

Agamben não toma a história como sequência de fatos identificáveis


cronologicamente, mas situa-a no inconsciente como experiência transcendental da
história em que a descontinuidade da linguagem instaura hiâncias, intervalos e
suspensões.

Arriscaríamos dizer, a partir de Agamben, que linguagem é o espaço social – é o


que recebe o sujeito no mundo – em que a experiência torna-se verdade
precisamente por causa dos intervalos discursivos da própria linguagem. Esta
experiência, fundada na infância do Homem, só é experiência enquanto o possibilita
encontrar a história na descontinuidade da fala de cada um. A linguagem carrega
intrinsecamente a memória, relacionando passado, presente e futuro.

3.5.1. A POESIA E A INFÂNCIA

Pensamento próximo a este podemos encontrar em Freud (1909) no texto


“Escritores criativos e devaneios”, em que discorre sobre o caráter criativo dos
poetas. Parte da indagação sobre como estes escritores são capazes de produzir
prazer e excitação desde situações que, em si, na realidade são desprazerosas ou
incapazes de gerar gozo. Presume que há na criação poética um tanto de irrealidade
para gerar efeito comovedor e/ou excitante. Desta suposição propõe investigar o
que é o ato criativo desde duas vias paralelas: a primeira é de que se busque na
infância as primeiras ações do fazer poético; a segunda, de que se pense no caráter
estrutural e funcional das fantasias, uma vez que identifica tanto no poeta, quanto
na criança o recurso a este funcionamento psíquico.

Observa que a criança tem predileção por ocupar-se de brincadeiras e jogos,


porque leva-os a sério e empresta-lhes intensidade grande de afeto. Situa os objetos
que imagina para brincar no mundo visível e palpável, e com eles fantasia; a cada
fantasia, realiza um desejo, pois estabelece em cada jogo um sistema psíquico
fechado em que uma satisfação tem que ser alcançada. Freud retoma neste texto um

206
dos pressupostos da fantasia que é de ser a realização de um desejo insatisfeito, que
se vai buscar via imaginação. Quando a criança cessa o jogo não perde a dimensão
da realidade efetiva do mundo, pois sabe diferenciá-la da fantasia. À medida que
cresce, a criança deixa de brincar, mas não deixa de fantasiar, como Freud constata
nos relatos de sonhos e devaneios diurnos de seus pacientes de divã.

A criança brinca e fantasia em público, e não se envergonha do que faz; o adulto,


de quem se espera que leve a vida a sério, deixa de jogar e, por ação da repressão,
vê-se compelido a esconder suas divagações. Mas, uma vez que as fantasias estão a
cargo do desejo – que não deixa de se impor ao sujeito –, elas não deixam de ser
produzidas, mas agora aparecem de forma reprimida, inconsciente, desfigurada por
deslocamento e condensação de imagens e palavras.

O trabalho anímico adulto passa a se expressar de modo disfarçado e oscila em


três tempos de representação: retira de uma ocasião presente uma impressão que
despertou-lhe desejo; remonta esta situação a uma recordação vivida anteriormente
– na infância – em que aquele desejo se satisfez; finalmente cria uma referência
futura em que este desejo se cumprirá como fantasia, que abarca tanto o presente,
quanto o passado.

O poeta como o sonhador diurno que retoma a fantasia em seus três tempos,
reatualiza a infância resgatando desejos e repetindo suas realizações. A insistência
sobre a recordação infantil deriva em premissas que dão nexo às criações poéticas.
Os sonhos diurnos – continuação dos jogos infantis – que os adultos se envergonham
de sonhar, encontram na criação poética a superação daquilo que escandaliza, pois
o poeta insurge-se contra as barreiras do reprimido dissimulando o caráter egoísta
e narcísico dos devaneios por meio de disfarces e encobrimentos que permitem a
realização da fantasia. Posto a público, seus sonhos tornam-se sonhos com os quais
outros podem se identificar. Nas palavras de Freud, ele nos [...] suborna por meio de
uma ganância de prazer puramente formal, vale dizer estética, com que nos brinda na
figuração de suas fantasias (FREUD, 1909: 135) e que nos habilita a desfrutarmos sem
remorso ou vergonha das nossas próprias fantasias.

Aqui se reencontram poeta e criança. O prazer estético que o poeta nos oferece
é o gozo genuíno liberado de tensões internas que, nos diz Freud, deriva de fontes
psíquicas profundas e têm um caráter ‘prévio’. Este ‘prévio’ o autor identifica

207
justamente na infância – e aqui retoma outro texto seu, “O chiste e sua relação com
o inconsciente” (1905) – em que a criança pequena que está começando a falar
maneja o léxico e experimenta um jogo e [...] com este material trama as palavras sem
se atentar para a condição de seu sentido, a fim de alcançar com elas o efeito prazeroso
do ritmo ou da rima83 (FREUD, 1905: 120, minha tradução). Enquanto aprende a
empregar as palavras e tramar seus pensamentos, o jogo aflora na criança e a pulsão
que a compele a exercitar suas capacidades produz efeitos prazerosos de repetição
do semelhante.

É assim que um versinho da tradição oral familiar (pernambucana) pode ganhar


outros efeitos de aliteração na declamação infantil. É um versinho entoado e
cirandado ao redor de uma árvore frutífera, que carrega para cada espécie de árvore
a sua designação e expõe o desejo de que ela seja pujante:

Mangueirinha, mangueirinha,

Ponha mangas bem docinhas.

e que a pequena Luisa, na mesma idade em que estava às voltas com a ‘tigela’,
repete sozinha debaixo de uma árvore:

Manguelinha, manguelinha,

Ponha a dôça bem docinha.

ou, rodopia dançando pela sala de casa sua versão de ‘Ciranda, cirandinha’:

Cilanda, cilandinha,

Vamo todos cilandá.

Vamo dala meia volta

Sala meia vamo dá.

São repetições em que a criança experimenta (sala e dala) e com ele refaz o jogo
sem se atentar para o significado das palavras, tropeçando com efeitos prazerosos
que ela mesma produz e redescobre, além de reatualizar a história que a precede e
atravessa. São gracejos que expressam pensamentos longe de críticas, que desloca
sentidos (ainda que ela não tenha ciência deles).

83
[...] con ese material, y entram alas palavras sin atenerse a la condición del sentido, a fin de
alcanzar con ellas el efecto placentero del ritmo o de la rima (FREUD, 1905: 120).

208
Esclarecendo outros pressupostos de nossa investigação, adotamos não só que
esta experiência infantil é prazerosa, constituinte de sua condição humana, como
também precisa ser cultivada, enlevada, incentivada, pois será a base para aquisição
da leitura e da escrita gráficas no letramento secundário – no qual também
pressupomos intertextualidades, derivações de um texto a outro, de um sentido a
outro.

3.5.2. LUDISMOS INFANTIS – O INTERTEXTO NO NONSENSE

Antecessor de Agamben e referência para sua teorização, Walter Benjamim


captou de forma magistral esta essência das atividades e das necessidades infantis.
Redigiu uma série de ensaios sobre a infância em que revelou com extrema
sensibilidade a verdadeira dimensão tomada por brinquedos e brincadeiras na vida
dos pequenos. Deixou entrever com quanta propriedade a criança recorta o
universo que a cerca e se apossa de elementos significativos – e que também nos
remete ao trecho de Barthes (1977) citado anteriormente.

No belíssimo texto ‘Canteiro de Obras’ Benjamin fala da especificidade da busca


infantil pelos objetos no mundo e sobre o papel de que são investidos para a
compreensão deste mesmo espaço. Acrescenta ainda a falta de entendimento da
poética da criança por parte de psicólogos e pedagogos, que massacram-na com
objetos impostos desde a esfera adulta que supõem ser-lhes adequados.

Meditar com pedantismo sobre a produção de objetos – material ilustrado, brinquedos


ou livros – que devam servir às crianças é insensato. Desde o Iluminismo isto é uma das
mais rançosas especulações dos pedagogos. A sua fixação pela psicologia impede-os de
perceber que a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e de ação
das crianças. Objetos dos mais específicos. É que crianças são especialmente inclinadas
a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de
maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da
construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do
marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas
volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em
reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes
materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e
incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo das coisas, um pequeno

209
mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno
mundo quando se deseja criar premeditadamente para as crianças e não se prefere
deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento –
encontre por si mesma o caminho até elas (BENAJMIM, 1926-28: 103-4).

Estes pequenos cacos recolhidos são restos humanos, traços de suas obras e
passagens pela Terra. A criança busca a essência do humano aos pedaços e nos
pedaços. O que lhe encanta é o que aparece como fragmento de uma experiência
trabalhada, marcada por (es)histórias. Toda criança gosta de bolo cru, mas não
daquele que vai na forma: ela se delicia é com os vestígios da meleca que sobrou no
fundo da tigela, porque aí há mais coisas a comer do que bolo: ela encontra e se
apropria dos traços da tigela da avó, do ovo da Das Neves, da receita da bisavó, do
cheiro da manteiga no avental da mãe. Um universo de rastros de memória,
significantes, desembarcam na pequena colher que minuciosamente raspa cada
linha do grude adocicado. Assim também é com os pedaços de madeira que se
desprendem do formão que trabalha a caixinha de joias: a criança assiste a confecção
do objeto muito mais para se aproximar primeiro das lascas e delas fazer um
besouro, ou a forração de uma cama de fadas, e só depois para ver o resultado final
do trabalho. O bolo é comido, mas a tigela é deleitada; a caixinha será usada, mas o
besouro terá vida.

A partir destas considerações, não há como não expor aqui nosso total
desagrado com relação às máquinas de brincar que já vêm prontas para falar, andar,
correr, rodar, sem que a pobre criança tenha que fazer esforço maior do que apertar
um botão e assistir aos seus movimentos robotizados e programados.

Do mesmo modo que a fala é atravessada pelos lapsos de linguagem que deixam
palavras soltas no ar, ou intervalos de esquecimentos, também outras atividades do
Homem produzem objetos desprendidos que a criança persegue como pistas em
uma trilha de significantes. Destes fragmentos a criança cria seus mitos e fabrica
sentidos. É o que Miguilim tenta alcançar com os resquícios do irmão:

Depois ele conversou com Mãitina. Mãitina era uma mulher muito imaginada, muito de
constâncias. Ela prezava a bondade do Dito, ensinou que ele vinha em sonhos, acenava
para a gente, aceitava louvor. Sempre que se precisava, Mãitina era pessoa para
qualquer hora falar do Dito e por ele começar a chorar, junto com Miguilim. O que eles
dois fizeram, foi ela quem primeiro pensou. Escondido, escolheram um recanto, debaixo

210
do jenipapeiro, ali abriram um buraco, cova pequena. De em de, camisinha e calça do
Dito furtaram, para enterrar com brinquedos dele. Mas Mãitina foi remexer em seus
guardados, trouxe uns trens: boneco de barro, boneco de pau, penas pretas e brancas,
pedrinhas amarradas com embira fina; e tinha mais uma coisa. – “Que que é isso,
Mãitina?” “– Tomé me deu. Tomé me deu...” Era a figura de jornal, que Miguilim do
Sucuriju aportava, que Mãe tomou da Chica e rasgou, Mãitina salvara de colar com grude
de rasgados, um caco de gamela. Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos. Tudo se
enterrou, reunido com as coisinhas do Dito. Retaparam com terra, depois foram buscar
pedrinhas lavadas do riacho, que cravaram no chão, apertadas, remarcando o lugar;
ficou semelhando um ladrilho redondo. Era mesma coisa se o Dito estivesse depositado
ali, e não no cemiteriozinho longe, no Terentém. Só os dois conheciam o que era aquilo.
Quando chovia, eles vinham olhar; se a chuva era triste, entristeciam. E Miguilim furtava
cachaça para Mãitina (GUIMARÃES ROSA, 1977: 81-82).

Aqui Mãitina é uma mulher sábia, que apresenta em todos seus gestos e falas
sua cultura africana, que encanta e intriga, que consegue escutar a criança e ladeá-
la em suas aflições. Ela participa do jogo de pinçar os pedaços guardados, dispersos
ou esquecidos, que não servem mais posto que Dito está morto e dele ninguém mais
fala. Juntos, ela e Miguilim reconstroem imaginária e simbolicamente um cerimonial
que marca o lugar do irmão querido, que pode ainda ser visitado, cuidado e
pranteado. É um saber estruturado em torno da falta e do sofrimento – da morte
como Real.

Os objetos recolhidos por Mãitina e Miguilim – roupas, brinquedos, recorte de


jornal, pedrinhas – dispersos e desconexos originalmente, ajudam a resgatar uma
história acontecida e a lançá-la ao futuro como traço de memória a ser preservado.
São objetos que testemunham um acontecimento e, como uma trama intertextual,
resgatam a passagem de Ditinho pela Terra na presença viva do irmão.

Muito diferente desta posição é a substituição dos pequenos restos de coisas


que atraem a criança, por elementos bem estruturados, eleitos pelos adultos (ou
pela ordem das ciências), que atravessam o terreno do jogo e da brincadeira, e
põem-se a regê-los de outra maneira. É o que vimos fazer o pai de Hans que ignora
os mínimos gestos e interesses do filho e assim lhe atrasa a urgência imposta pela
vida.

211
3.6.ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO – MOLA DO CONHECIMENTO

Começa a ficar claro que qualquer ser humano, desde sua chegada ao mundo,
vê-se enlaçado a dois polos dialeticamente complementares, que o põem no jogo da
alternância demanda-desejo. A primeira – demanda – impõe-se desde o Outro, como
algo que capta o Sujeito e dele faz um objeto alienado; o segundo – desejo – é o que
há de mais próprio, é o que sustenta a vida e suas buscas, e o que responde ao
chamado do Simbólico. Na mesma proporção que a criança precisa se alienar na
demanda do Outro para ser alvo das transmissões geracionais e ver-se constituído
como humano na linguagem, precisa dela separar-se para sustentar-se como um
sujeito, como aquele que também tem o que falar.

Se à realidade psíquica fragmentária do bebê soma-se o trabalho de elaboração


simbólica que compensa-a em sua tendência alucinatória, há a possibilidade de se
adentrar no princípio de realidade. A partir daí a cena fantasiosa é necessária pois
toma os fragmentos de objetos como parte de um jogo de substituições e mudanças
de papéis, cujas representações significantes conformam-se como um enredo
narrativo e dão mobilidade ao espetáculo, antes estanque e cristalizado em ato
repetitivo de gozo alienado da demanda da mãe sobre o bebê.

3.6.1. SEPARAÇÃO – PROCESSO PRIMÁRIO DE LETRAMENTO

A cena fantasiosa também se reproduz (e nela os seus objetos), mas a repetição


se dá por deslocamentos e condensações de significantes em torno de um terceiro
lugar – vazio por princípio, pois é a fenda deixada pelo pai simbólico, morto – que
conformam uma tela dissimuladora da função da repetição e por isto demandam o
novo. Este novo é a experimentação lúdica que refreia a dimensão de horror de ser
objeto de uso gozoso do Outro. O que era ameaçador / angustiante se transveste de
criações míticas nas quais as sensações e percepções que falam diretamente do ser
do sujeito passam a mediar seu corpo nas relações entre os humanos.

Há uma passagem lógica, portanto, que vai da inscrição do traço, à inscrição do


significante e dessa à inscrição do objeto na fantasia. Quando há significantes, estes
recobrem o traço, que já não se apresenta mais; quando há prevalência do objeto, o

212
significante se perdeu; e quando há traço, o objeto acabou de se apagar. E, [...] se o
traço surge do apagamento do objeto, surge como algo que está ali para ser lido como
linguagem quando ainda não há escrita (LACAN, 1961-62, lição 20/12/61); o traço da
origem é essa marca aberta à leitura e aí está impresso algo, talvez um sujeito que
vai falar e escrever. Forma-se um movimento linguageiro repetitivo e, a cada vez que
surge o significante, ele enlaça o objeto por um viés diferente, até dar-lhe tantas
voltas quantas as necessárias para conformá-lo de algum sentido. A somatória deste
reviramento compõe a narrativa da criança – seus Textos – na qual se inscreve o seu
desejo, a imagem corporal unificada e a sua posição como objeto e gozo do Outro.

Do ponto de vista simbólico a narrativa mítica engendrada pela criança


estabelece uma estrutura em que os lugares do sujeito, dos objetos e das pulsões
estão demarcados; do ponto de vista imaginário conteúdos diversos que circulam
na cultura ocupam estes lugares configurando textos singulares, tramados
intertextualmente. Isto permitirá ler, na estrutura, as relações humanas que se
conformam a cada momento. É nela que estarão contidos todos os elementos que
permitirão ao sujeito caminhar como um igual entre seus pares.

Saber ler e escrever, do ponto de vista Subjetivo – acontecimento primário – é


deixar-se tomar pelo desejo do Outro e conformar os acontecimentos
experimentados do mundo por meio da estrutura mítica de uma narrativa. É da
ordem de saber trabalhar solitária e introspectivamente na leitura do desejo –
desejo, no entanto, povoado de objetos e outros sujeitos. Ao escrever mantém com
seu texto uma relação nada coisificada com ele, mas subjetivada. O que quer que
escreva é sempre sobre si na relação com o Outro, é sempre um caminho retrilhado,
é repetição deslocada aqui, condensada mais adiante sobre um cenário dissimulado.
O escritor se reescreve e se reelabora. Ao ler, igualmente o faz desde seus próprios
parâmetros mnêmicos. Alçar ou não ao que está no texto demanda um trabalho que
não é de compreensão e exatidão de conteúdo, mas de acomodação ao próprio
desejo. O ato de ler é o ato de não mais aceitar os intervalos textuais do outro, mas
de impor suas próprias pausas sobre a escritura.

Neste sentido subjetivo, escrever é um contínuo da fala, pois se na sua oralidade


é capaz de se (re)posicionar diante do desejo do Outro, também será capaz de fazê-
lo na escrita, inscrevendo seu desejo nas tramas linguageiras. De modo análogo, não

213
saber ler/escrever está no campo de também não saber ascender à própria voz,
embora possa falar.

O processo primário se dá por separação da criança do saber do Outro, ao qual


estava involuntariamente alienada. Este modo de proceder a leitura-escrita estará
sempre presente, permeando a compreensão de todos os textos que se lhe
apresente: sejam eles falados, simplesmente intencionados, escritos, gesticulados,
desenhados.

3.6.2. ALIENAÇÃO – ENTRADA NO PROCESSO SECUNDÁRIO DE


LETRAMENTO

Por outro lado, o que concerne a saber ler e escrever no papel – letramento
secundário – é de outra ordem. Alfabetizar-se, alçar a leitura e a escrita gráfica das
letras, palavras, frases e textos, é dispor-se a compartilhar uma língua comum a
todos, em sentidos e significados. A criança chega a isto quando conseguiu aquietar
um tanto das demandas por satisfação interna das pulsões e pode novamente
submeter-se à alienação significante, sendo desta vez referida às representações do
meio social amplo no qual estão depositadas as leis da cultura. Isto se dá no
momento que Freud denomina de latência, em que arrefecem-se as perturbações
internas causadas pela castração e há decentração da libido dirigida ao próprio
corpo: as pulsões convergem agora, em parte, para o meio social, lugar onde também
buscará satisfação.

Da mesma forma que a memória do Outro serviu de alicerce para o bebê enredar
pela linguagem familiar que o nominou e a partir dela poder erigir uma narrativa
mítica própria (seu Texto), é esta última que lhe fornecerá as bases nas quais apoiará
os conhecimentos compartilhados socialmente. É um processo que demanda certa
espontaneidade em que a criança vislumbra na cultura a possibilidade de exercer
sua humanidade, isto é, ela se faz alienar no saber social pois aí pode ser reconhecida
e amada por seus pares.

No universo social em que a criança é lançada, a escola é o lugar em que


prioritariamente se dará suas novas representações. E dentro da instituição, quem
faz o principal papel de Outro (do saber) é o professor. Tal qual a mãe fez com seu

214
bebê, agora é ele quem alternadamente demanda respostas, mas também oferece
seu desejo ao aluno, para que este possa ler antecipadamente a capacidade de
alcançar o saber social. É assim que a criança aliena-se no saber do Outro-professor
e oferece-lhe rabiscos que chama de escrito, e o mestre vislumbra nesta intenção a
grafia do que virá a ser uma palavra. Reconhecida em seu desejo a criança continua
a produzir seu trabalho de escrita; desejando que a criança aprenda e reconhecendo
a possibilidade do traço no papel vir a ser escrita compartilhável, o professor
suspende seu saber absoluto para conservar o desejo de saber do aluno.

O que Emilia Ferreiro (1979, 1981 e 1985) e seus colaboradores perceberam ao


fundamentar o Construtivismo foi exatamente a necessidade de o professor
suspender o seu saber sobre o outro para deixar emergir o saber discente. Mas o que
não foi contemplado naquela pesquisa foi justamente a questão do desejo... as ações
do professor e do aluno, portanto, ficaram restritas ao conteúdo do conhecimento e
à forma de apresentá-lo, omitindo-se a posição relacional professor-aluno e as
Subjetividades em jogo na aprendizagem.

O desejo de ambos os lados é a mola mestra para que a alfabetização


(letramento secundário) se dê de forma tranquila e satisfatória. Acolhido
subjetivamente, o aluno pode entregar-se ao discurso alfabético e depreender o uso
social dos signos linguísticos.

3.7.SUBJETIVIDADES NA ALFABETIZAÇÃO – HETEROGENEIDADE


NAS SALAS DE AULA

Impulsionado vital e visceralmente pelo desejo e dependente da vida em


sociedade (onde estão depositados os desejos de outros sujeitos), cada ser humano
forja nas suas relações um movimento alternado de deixar-se apreender pelas
demandas do Outro e delas se afastar para sustentar o próprio desejo
(alienação/separação). É no Outro que está contido o conjunto dos significantes que
a criança precisa alcançar, mas o trabalho de significá-los é totalmente seu.

Se para tornar-se Sujeito a criança precisou antes ser tomada irrestritamente


como objeto de gozo e saber do Outro e aí se alienar, para depois deles se separar
constituindo sua própria verdade, também para aprender ela precisa fazer este

215
duplo movimento de alienação ao saber socialmente estabelecido, para em seguida
dele se afastar pois suas representações guardarão sempre dissonâncias com
relação às do meio. É como no jogo do Fort-Da, ou nas criações míticas em que os
objetos se apresentam e se afastam, mudam de lugar e se reconfiguram a novas
atribuições.

Na alternância de presença/ausência que se passa entre dois sujeitos de


constituições absolutamente singulares (que na escola se apresentam como
ensinante/aprendiz, mas que em outras estruturas sociais poderia ser mãe/filho,
analista/analisando, escritor/leitor) é preciso haver um momento de encontro
entre os polos da díade professor-aluno. Um momento evanescente de alienação de
um ao outro, mas um encontro efetivo e consequente em que os desejos se
confundam. Só dessa maneira é possível a transmissão de algo, a circulação de
saberes. Em seguida há desencontro em que não se comunica nada, mas se pode
compreender a relação estabelecida.

Da mesma forma que a mãe se põe de saída como sabedora das necessidades de
seu bebê e aí ele se aliena em troca de ter uma identidade reconhecível, é o professor
quem estabelece para seu aluno o que ele precisa conhecer e o pequeno se entrega
à relação, como um crente aos dogmas da igreja, uma vez que é neste espaço de
aprendizagem que a cultura estabelece o lugar de reconhecimento social. Logo, há
um saber antecipado que estabelece a relação de autoridade da mãe sobre o bebê e
do professor sobre o aluno.

Entretanto, assim como a mãe se faz castrada para o filho, apresentando-lhe sua
falta essencial como o limite da relação de saber absoluto sobre ele, também o
professor precisa ser faltante para que o saber circule. Este acontecimento inicia-se
– em aparente contradição – pela suspensão do saber por parte do professor. Isto é,
pela suspensão do gozo que antecipa, sobre o outro, um saber absoluto pré-
estabelecido. Suspender o saber não é deixar de saber, mas é abrir brechas nele
despojando-se dos afãs narcísicos sobre si mesmo, para que o outro possa entrar
com seu desejo de saber. No caso da escola, é ao professor que cabe essa fenda.

Mas, é preciso dizer, esta separação não pode se basear – por parte do professor
– em fingimento, em fazer de conta que ele não sabe. Ao invés disto, deve ser a
expressão verdadeira do reconhecimento de que há limites do que sabe sobre seu

216
aluno e sobre a relação que com ele estabeleceu. É saber reconhecer na linguagem
as fronteiras entre as experiências de cada um, uma vez que é justamente aí que se
pode distinguir a verdadeira demanda de conhecimento de seu aluno, ou os entraves
que o impedem de aprender.

Nos modelos tradicionais de ensino (antes do Construtivismo) é exatamente


esta segunda posição de separação que não acontece. Neles o professor – ou melhor
dizendo, o método – é soberano a todo conhecimento que se venha produzir.
Conteúdo e forma de ensiná-lo e corrigi-lo são sobredeterminados e a única coisa
que resta aos indivíduos é serem figurantes do enredo estabelecido pelos livrinhos
de ensinar. Aí não aparecem singularmente e o grupo é tomado como uma massa
homogênea que se deve doutrinar da mesma maneira. Quem não se encaixa neste
padrão de ensino é expulso ou cai fora por conta própria – ao menos foi isto que
assistimos até as décadas de 1970-80.

Este saber irrestrito e despótico é paralisante e foi muito bem identificado e


criticado pelo Construtivismo. Especialmente nos primeiros anos de escolarização
e, mais especificamente, no processo de alfabetização, esta disposição ao outro é
fundamental pois a heterogeneidade do grupo de alunos é intrínseca à condição de
Sujeito: eles estão chegando no espaço social, cada qual com seu complexo enredo
mítico forjado nas entranhas de sua Subjetividade. Só assim, despojado de
predeterminação total sobre o aluno que o professor poderá escutá-lo em suas
idiossincrasias e com elas trabalhar.

Esta também é a posição assumida por Thomas Massao Fairchild (2012), um


dos coordenadores regionais do PROJETO “DESAFIOS” (polo Belém – PA):

Uma segunda questão relacionada à heterogeneidade das turmas de alfabetização


reside na consideração de que ela não é um traço incidental, resultante de uma
distorção a ser corrigida pela escola. Acreditamos que essas heterogeneidades não
resultam apenas do fato de as crianças ingressarem na escola em diferentes condições,
mas também que, a partir do ingresso na escola, as heterogeneidades são produzidas
como decorrência das diferentes maneiras como os alunos se posicionam dentro da
instituição e das formas como a escrita é apresentada didaticamente aos alunos
(FAIRCHILD, 2012: 151).

Alícia Fernández (2001) diz que ensinamos, mas a criança plena de desejo
aprende sozinha. Ninguém pode aprender por ela, mas sem aquele que ensina –

217
aquele que tem o saber no qual possa se alienar – a criança não é capaz de aceder e
ascender ao conhecimento. Na mesma direção, a autora ainda afirma que o que se
ensina não é o mesmo que se aprende: ensinar a ler não é ler, como ensinar a
escrever não é escrever.

Há um intervalo entre ensinar e aprender, entre o que se diz e o que o outro


compreende, porque a Subjetividade de cada um – aquela do letramento primário –
está lá, sempre, para fazer o contraponto dos ensinamentos.

Não é difícil notar que, com tanta bagagem subjetiva, cada criança e cada
professor são únicos, o que faz de uma sala de aula um universo de singularidades e
heterogeneidades que não se iguala a nenhum outro. Ou seja, nas salas de aula dos
primeiros anos de escolaridade temos um conjunto homogêneo de pessoas físicas,
mas um grupo heterogêneo de Sujeitos demandantes e desejosos e nesta
configuração deve-se dar o trabalho de alfabetização.

É evidente, por tudo que expusemos anteriormente, que a heterogeneidade não


está presente só nas salas de EFI, mas como estes anos escolares acolhem as crianças
de menor idade, que ainda têm certa urgência por demandas de cuidados e
representações que não são compartilháveis – diferente, por exemplo, dos
adolescentes cujas identificações grupais estão mais estabelecidas – a atenção às
suas necessidades é mais premente. A condição infantil é diversa daquela de jovens
e adultos, pois ainda estão prioritariamente às voltas com suas experimentações e
em busca de conformar um modo de entrar na língua comum a todos; sua
experiência com a linguagem ainda expressa um universo mais subjetivo que social.
Aliás, justamente por esta medida, este é o período escolar ao qual se deveria dar
maior importância e cuidado, pois o modo como se vai proporcionar à criança a
passagem entre estes dois mundos será determinante das condições de apropriação,
uso e contribuição pessoal com os recursos da cultura (e dentro deles os estudos
subsequentes).

3.8.NARRATIVAS E ENLACES DE LEITURA E ESCRITA

218
No processo de aprendizagem a criança demanda do Outro um posicionamento
referente – que inicialmente nada mais é do que o acolhimento da sua Subjetividade.
Por isso o lugar relacional que o professor ocupa não pode ser como de uma outra
criança, como um par que estaria na mesma situação de demanda por representação
– como a que vimos no Capítulo 2 desta tese –, nem como detentor de todo saber
que impeça a criança de conhecer – como o pai de Hans ou da criança citada no caso
emblemático exposto também no Capítulo 2. Como afirma Dunker (2011) o pequeno
espera que a verdade lhe seja dita, não só na forma de resposta concreta de como
deve ler e escrever, mas de como pode chegar a outras representações articuladas à
estrutura de ficção sustentada pelo grupo de falante. A criança espera encontrar um
lugar de falta onde possa repousar seu desejo e fazer circular a Subjetividade, mas
não espera de modo algum a ausência total de referentes.

A posição de professor pressupõe, portanto, atitude de Outro faltante que


abrigue a alienação na qual a criança deliberadamente se deixe entrar; justamente
porque aí encontra um ponto de apoio em que seu discurso possa circular – entre-
textos – ao redor de uma hiância. A falta no Outro abriga o lugar terceiro na fala, isto
é, um espaço em que tanto o aluno, quanto o professor (reais) fazem referência. Isto
obriga cada um deles a repensar a Subjetivação: apressa urgências de
representação.

E quais são as urgências infantis na alfabetização?

Bem, o primeiro passo do letramento escolar é aprender a ler e escrever, uma


vez que estes são os instrumentos condicionais que nossa sociedade dispõe para o
acesso a qualquer outro tipo de conhecimento. Mas este – aparente – acanhado fato,
é extremamente complexo e envolve uma série de sub acontecimentos
entremeados. A criança precisa conhecer as letras em seus aspectos gráficos – as
diferentes fontes e tamanhos – e em suas variantes sonoras; precisa saber dispor
das letras para grafar e ler palavras (e dentro delas as sílabas simples e complexas);
precisa conseguir escrever frases e interpretar os sentidos das frases de outros; e
finalmente precisa chegar a identificar e compor textos de diferentes gêneros.

O que a criança traz como bagagem para fazer esta passagem ao mundo
segundamente escrito?

219
Como vimos ela vem com uma mala cheia de acontecimentos experimentados
em seu corpo e engendrados pela linguagem. Ela chega precisamente com a
capacidade de interpretar subjetivamente o sentido das coisas; em uma sociedade
alfabética como a nossa, também traz consigo a noção da escrita gráfica: já sabe que
existem letras, palavras e números, com os quais se pode escrever. Nos anos
precedentes à escola ela trabalhou muito coletando infindáveis fragmentos e restos
significantes com que compôs narrativas (seus Textos) em torno de objetos vazios
de representação. Ela já exercitou bastante seu pequeno corpo em busca de lugares
possíveis e desejados. A criança chega à escola conhecedora das falas cotidianas que
marcaram sua rotina em família, e também sabida daquelas menos prosaicas que
requerem esforço de metaforização e metonimização. Ademais, desembarca com
um repertório de brincadeiras em que todos estes elementos estiveram presentes.
Entretanto, e sobretudo, vem com o corpo ainda vibrante, que sabe ler
primariamente entre-textos, mas precisa expandir suas capacidades leitoras.

E como permitir o alargamento do horizonte leitor? Vimos no Capítulo 1 que lá


na virada do século XIX para o XX, crianças como Graciliano Ramos já se debatiam
com ‘desarrazoados’ impostos pelo ‘tipo de barba espessa, carrancudo e perverso’
que intentava elevar as crianças ao nível dos mestres, por meio de ações bem-
intencionadas e ordenadas. O que faz Ramos é denunciar o ingerenciamento adulto
no mundo das crianças, para fins da educação. O aluno não precisa que finjam para
ele uma linguagem infantil – esta lhe é própria! – mas que a respeitem. Novamente:

– Passarinho, queres tu brincar comigo?

Forma de perguntar esquisita, pensei. E o animalejo, atarefado na construção de um


ninho, exprimia-se de maneira ainda mais confusa. A ave sabida e imodesta, que se
confessara trabalhadora em excesso e orientava o pequeno vagabundo no caminho do
dever (RAMOS, 1945: 129).

A criança fará com a leitura e a escrita gráficas o que já vinha fazendo com suas
brincadeiras, isto é, experimentará de outro modo a mesma Subjetividade. O aluno
precisa receber uma indicação menos cartesiana e mais benjaminiana para arriscar-
se ao letramento secundário.

220
Vejamos: se Ramos acusou que em sua cartilha não havia meios de uma criança
vivaz e curiosa ser acolhida, também generosamente abriu as portas da infância e
convidou a entrar aqueles que sabem escutá-la e brincá-la:

Não me parecia desarrazoado os brutos se entenderem, brigarem, fazerem as pazes,


narrarem suas aventuras, sem dúvida curiosas. Tinha refletido nisso, admitia que os
sapos do açude da Penha se manifestassem, cantando, coisas ininteligíveis para nós. Os
fracos se queixavam, os fortes gritavam mandando. Constituíam uma sociedade. Sapos
negociantes, sapos vaqueiros, o reverendo sapo João Inácio, o sapo José da Luz, amigo
da distinta farda, sapos traquinas, filhos do cururu Teotoninho Sabiá, o sapo alfaiate
mestre Firmo, a sapa Rosenda lavadeira a tagarelar os mexericos da beira da água. O
nosso mundo exíguo podia alargar-se um pouco, enfeitar-se de sonhos e caraminholas
(RAMOS, 1945: 130).

Belintane (2011) também analisa esta passagem de “Infância” de Ramos e


ressalta que há de um lado o sapo Cururu da cantiga popular, e há de outro lado os
sapos que entram na cadeia associativa de Graciliano tecendo um enredo de sentido
único. Indo além de sua análise, propomos desvelar como a incidência do desejo é
fundamental para o trato com os textos.

O texto da tradição oral é parte pertencente a um espectro mais amplo de


composições folclóricas, lendárias e míticas que, poderíamos dizer, também
representariam textos sócio históricos a que todos têm acesso (o ‘Sapo Cururu’ como
criação coletiva que antecede os sujeito e é igual a todos); de modo complementar
estão lá os Teotoninhos e as Rosendas que derivam de uma Subjetividade às voltas
com um sentido próprio. No exemplo vemos que o reviramento de um texto sobre
outro faz surgir a Subjetividade que manifesta desejo.

Quando Graciliano se põe em embate com a cartilha do Barão de Macaúbas,


questiona a falta de sentido nas páginas lidas, em que estavam registrados
animaizinhos que viam em todo gesto infantil desvios de bom comportamento e
vadiagem: conversar com os bichos e perder-se em divagações era proibido!

Diante desta interdição do desejo, Graciliano faz remissão a outra vez em que se
vira impedido de satisfazer seus impulsos: um dia que chovia muito, queria estar
nas poças d’água pisando com os pés descalços, ou fazendo correr barquinhos na
enxurrada. Mas não podia...

221
Não se distinguia nenhum ruído fora a cantiga dos sapos do açude da Penha – vozes
agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o berro do sapo-boi, bicho terrível
que morde como cachorro e, se pega um cristão, só larga quando o sino toca. Foi
Rosenda lavadeira quem me explicou isto. Admirável o sino. Como seria o sapo-boi?
Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana (RAMOS, 1945: 63).

De onde estava escutava os sapos coaxando na beira do açude. Do sapo-boi tinha


muito medo; quanto aos outros, punha-se a imaginar cada um deles na sua cantilena;
e aí concluiu: Cantiga para embalar crianças. Os cururus do açude choravam com frio,
de muitos modos, gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu também tinha frio
e gostava de ouvir os sapos (RAMOS, 1945: 63).

Nesta divagação primeira Graciliano estabelece quem são seus sapos e com eles
se identifica. A identificação permite deslocar seu desejo – estar na enxurrada – para
outro lugar: ‘ouvir sapos’, estes sapos que podem gritar, soluçar! Quando ele se vê
diante de uma cartilha cujos textos entram só no campo da proibição do devaneio,
inferimos, deve ter se lembrado do sapo-boi, mas ele novamente vai buscar o esteio
para seu desejo: seus sapos cururus.

Os sapos caraminholados por Ramos, os cacos de obra brincados por Benjamim,


a girafa amassada por Hans, as palavras forjadas pelo poeta-criança, a historicidade
experienciada por Agamben, remetem todos à prevalência do ‘desútil’ – de Barros –
e, no acesso à infância, falam de algo mais. São exercícios sobre fragmentos que
permitem montagens e desmontagens de sentidos e evidenciam que nos ludismos-
poéticos de que fala Belintane (2011) encontramos muito mais proximidade com a
infância do que na função pragmática da fala que cerceia desejos e experiências.
Estes ludismos constituíram o psiquismo infantil e por isto enlaçam mais facilmente
os traços mnêmicos.

Como afirma Ferreiro (1979, 1981 e 1985) e seus colaboradores, a criança que
vai aprender a ler e escrever não chega vazia para esta atividade, pois seu cotidiano
já lhe oferece elementos do letramento – com o que concordamos plenamente. Os
pontos discrepantes – e fundamentalmente diferentes! – se dão ao redor da função
da escrita e deste cotidiano relevante para alfabetização.

Para Ferreiro a escrita cumpre uma função social que deriva para um jogo
objetivante: para o que serve a escrita. Para nós a escrita é a trama textual mais

222
complexa, da qual abre-se uma predisposição para a atividade de textualizar, de
escrever e ler, seja no açude da Penha, seja no caderno. O rumo humano para nós é
fazer letras e não o reconhecimento da função social das letras (este é secundário e
consequente do primeiro).

3.8.1. ROTINA INFORMATIVA – UMA FORMAÇÃO DESINTERESSANTE

No Construtivismo considera-se como base para o letramento as influências de


escrita gráfica sofridas pelos pequenos antes da idade escolar. Assim, cartas
enviadas e recebidas (hoje e-mail e mensagens), cartazes de propaganda, placas
diretivas, manchetes de jornal e revista, receitas culinárias, livros e revistinhas
infantis são suportes de escrita e leitura intensamente presentes em suas vidas e
devem ser aproveitados ao máximo para subsidiar o processo de alfabetização.

Desde estas diretrizes, os professores se habituaram a oferecer materiais desta


monta, como podemos ver nos exemplos do material didático do PNLD da EA-
FEUSP84. O primeiro modelo – Figura 6 – expõe a forma como os textos literários são
apresentados aos alunos (página 169):

Figura 6: Reprodução da página 169 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e


Alfabetização Linguística’ do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

84
Este material do PNLD foi distribuído à EA-FEUSP no ano de 2010, quando o PROJETO “DESAFIOS”
ainda não estava implantado na escola. Quando este teve início, no ano de 2011, o livro didático foi
substituído por outras metodologias e atividades, como se verá no Capítulo 5 desta tese.

223
Como pude analisar nas páginas precedentes e seguintes deste material, as
atividades encerram-se na cópia de seus títulos e dos nomes dos autores
estampados nas capas mostradas. Não houve preocupação com a exposição mínima
dos conteúdo de cada uma das obras citadas.

Poderíamos, então, objetar que este tipo de visada é dirigida para atividades que
se destinem a ensinar aos alunos como identificar em uma capa de livro algumas
informações básicas. Isto é, pensaríamos que em se tratando de um texto oferecido
na íntegra, algo mais seria oferecido e que o aluno teria alguma liberdade para se
aventurar sobre seu sentido. A este respeito, vejamos na Figura 7 exemplo de um
texto extraídos das páginas 73 e 74 do mesmo material didático e na Figura 8 as
atividades propostas na sequência (página 75):

Figura 7: Excertos das páginas 73 e 74 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e


Alfabetização Linguística’ do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Preta, 2010-2012

224
Figura 8: Excerto da página 75 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’ do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

Neste exemplo há muito o que explorar! A primeira objeção a ser feita refere-se
à ‘versão atualizada de uma fábula’. Fábula é um gênero literário narrativo, de
temática variada (bondade, astúcia, comportamento, etc.) e que revela sempre ao
final um ensinamento moral, portanto, intimamente ligado ao modo cultural de
pensar e lidar com os costumes. Remonta à antiguidade grega com Esopo e é
retomada no Renascimento por Jean de La Fontaine, de quem, aliás, provém o
original da ‘versão’ apresentada pelo livro didático. Mas, ressaltamos também, a
fábula está presente na oralidade popular. Da mesma forma que este segundo autor
se aventurou a compor suas próprias fábulas, depois de tanto tempo de sua origem,
qualquer autor poderia fazê-lo. No entanto, aqui nos encontramos com a
‘atualização’ de uma fábula e não podemos passar por ela sem nos perguntarmos o
que significa ‘atualizar’. Esperaríamos inicialmente encontrar uma outra moral da

225
história, mais condizente com os pensamentos contemporâneos, uma vez que
atualizar é trazer algo para os dias de hoje. Mas não é este o caso. O que efetivamente
ocorre é a modificação da forma de transmissão narrativa: o texto é lido e não
declamado ou recitado; a linguagem é demasiadamente simplificada; e, o pior de
tudo, introduz-se considerações do tipo que aponta Graciliano Ramos em sua
cartilha: um desarrazoado com as coisas da infância: ‘O urso cheirou suas orelhas.
Estariam limpas?’, muito semelhante a: ‘Passarinho queres tu brincar comigo?’

Em seguida pede-se como atividade sobre o texto que a criança reconte ‘a


história’ e aí podemos vislumbrar alguma subjetividade que possa vir a emergir. Mas
finalmente reencontramos a velha fórmula: título, formato do texto...

Talvez mais interessante tivesse sido o professor explorar com os alunos esta
mesma fábula, contando-a ao invés de ler, ou recitando-a, para o caso de ter uma
versão em versos, como a que encontramos em Couto Guerreiro (1985). Esta seria
uma maneira de reatualizar as características rítmicas e rimadas da oralidade, que
fazem captar pelo corpo os sentidos da linguagem:

OS DOIS AMIGOS E O URSO


Um urso acometeu dois passageiros:
Um deles, que os pés tinha mais ligeiros
Pôs-se em cima duma árvore escondido:
Vendo, o outro, que tinha mau partido,
Estendendo-se em terra nem bulia
Nem respirava: morto se fazia.
Cheirando-o por orelhas e por cara,
O deixa intacto a fera, e se separa.
Dizem que, se encontrou uma pessoa
Que julga estar já morta, lhe perdoa.

O da árvore, já livre do perigo,


Vindo com ar de riso ao seu amigo,
Lhe disse:
“– Que segredo era o que o horrendo
Urso te estava agora aqui dizendo?”
“– Disse-me, responde ele, que em jornadas
Não leve semelhantes camaradas” (GUERREIRO, 1985).

226
O trato com a forma e os elementos de gênero se repetem aos montes ao longo
do livro didático. Também com as poesias a abordagem não vai além, como
vislumbramos nas atividades como propostas na Figura 9 abaixo (página 34):

Figura 9: Excerto da página 34 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização


Linguística’ do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

Pede-se que a criança observe a estrutura de um texto do gênero poesia,


enquanto que a poesia mesma é substituída por NNN NNN! Não há outra indicação
ativa que se ofereça, por exemplo, à exploração dos conteúdos textuais (oral ou
graficamente), nem a seu compartilhamento. Quando se pede que algum sentido seja
depreendido do texto, a retroação se faz sobre uma palavra com a qual se pretende

227
sintetizar o poema – mais ou menos como a ‘moral de história’ das fábulas. E mais
uma vez se abdica de fazer entrar a criança neste mundo magicamente sonoro e rico
que é o das poesias.

Por fim, para não nos estendermos demasiadamente nesta análise aqui85, vamos
expor um último exemplo (Figura 10), agora sobre uma receita, extraído do mesmo
livro didático (página 103):

Figura 10: Excerto da página 103 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’ do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

Desta vez o que chama atenção é que podemos identificar sugestões de


desdobramentos para a lição oferecida – observemos os comandos dados pelas
autoras ao professor, em letras miúdas – estendendo a atividade para outras
situações em que se pode registrar instruções. Ou seja, poemas e literatura em
princípio servem menos a ser esmiuçados do que as receitas... Aqui se diz: Professor,
favoreça a divulgação do texto [...] Por isto traga para sala de aula outros textos
instrucionais e aproveite para explorar sua estrutura, linguagem e função social. Na
versão da fábula citada acima se dizia ao professor: Professor, aproveite para ler para
os alunos um conto ou uma fábula que fale sobre amizade e convivência.

Recorrendo a Pêcheux (1975) podemos ver nestes dois discursos ênfases


diversas dadas à palavra ‘aproveite’. No primeiro texto a prioridade é dada à
divulgação do gênero textual receita e ‘aproveite para’ entra sem resistência como

85
Trataremos da análise pormenorizada deste livro didático no Capítulo 5 desta tese.

228
palavra que substitui ‘prevaleça a’: ‘Você, professor, que já mostrou outras receitas
a seus alunos, use-as prevalentemente para fins de explorar linguagem, etc.!’. No
segundo texto ‘aproveite para’ parece esconder certo esforço que se fará para que
esta atividade aconteça; parece dirigir-se ao sujeito-pragmático ao qual Pêcheux se
refere como sendo aquele diante das urgências da vida: ‘Professor, se for possível na
sua jornada, aproveite para fazer mais esta atividade...’.

Em resumo, é melhor explorar linguagem e função social nas receitas; para a


literatura cabe a síntese prévia da ‘moral da história’, sem grandes atrevimentos dos
alunos sobre sua linguagem.

Aqui começamos a vislumbrar por onde seguem as estratégias alfabetizadoras


a partir do Construtivismo86 que se instalou no Brasil. Há clara predileção pelos
aspectos informativos dos textos, em detrimento de possíveis entradas em seu
sentido, ou à extrapolação deles.

O Construtivismo quer partir do cotidiano infantil para aproveitá-lo à


alfabetização, mas o que faz é construir para a criança um cotidiano de boletins, de
pequenos extratos de definições estabelecidas a priori no mundo adulto. Como
vimos com Freud, Lacan, Benjamin, Agamben, Ramos e Belintane, o cotidiano
infantil comporta estes vieses, mas não é em absoluto o que mais importa à infância.
Ela quer e precisa de outras formas de tratar a linguagem, entretanto o
Construtivismo se aproveita quase que exclusivamente da função pragmática da fala
cotidiana comunicativa, informativa e plena, que entedia as crianças.

Quando se oferece uma receita para a criança ler, copiar ou escrever, o


entusiasmo dela é, eventualmente, pela confecção e degustação do que pode ser
produzido por ela, mas não se entregará, certamente, a nenhum grande
inebriamento pelo texto-receita! Qual entusiasmo a criança pode encontrar em um
texto desta ordem, ou com a estrutura formal de uma poesia? Será que alguma
destas crianças chega dizendo em casa: ‘Mãe, hoje lemos um texto muito legal: uma
receita!’.

86
Estratégias estas, reforçadas por outras tendências como o sociointeracionismo, as concepções de
gênero de Mikhail Bakhtin, entre outras.

229
Onde podemos encontrar a Subjetividade criativa dos alunos, em meio a estas
listas, formalizações e cópias?

Eis aqui uma de nossas críticas a este modo de proceder o letramento. O


cotidiano infantil – impregnado de fantasias – não pode ser desta maneira esvaziado
e disto não decorrer o desencantamento pelas letras! Se a cultura nos oferece tantos
outros textos, ricos em matrizes estéticas e poética, cheios de magias, mistérios e
aventuras, por que a aposta em tão poucos elementos? Ao desencantar
abruptamente a criança de seu universo infantil, não é de se pensar que isto tenha
alguma relação com as dificuldades enfrentadas pelas crianças no processo de
alfabetização contemporânea?

Como vimos no Capítulo 1, muitas foram as formas pelas quais deliberada ou


contingencialmente a alfabetização brasileira deparou-se com entraves e sempre
manteve de fora da educação formal número considerável da população em idade
escolar. Agora praticamente 100% das crianças ingressam na escola na idade certa,
finalmente pagando uma dívida com 500 anos de atraso; mas, também como vimos
pelos índices da Prova Brasil expostos na Introdução desta tese, percebemos que
estar na instituição escolar não garante acesso mínimo necessário para ingressar a
vida social como agente leitor/escritor. Paulatinamente – e desde os primeiros anos
de escolarização básica – estas crianças vão entrando em defasagem com relação às
habilidades leitoras esperadas. Ao final de cada ciclo escolar, quando são avaliadas,
o que se percebe é que ‘falta base’ – para usar um jargão largamente empregado nas
salas de professores – impedindo a aquisição de outros conhecimentos. É nos
primeiros anos escolares, portanto, que identificamos o maior problema da
escolarização brasileira: desinteressados e mal alfabetizados, os alunos enxergam
na instituição escolar poucas motivações para enlaçarem seu desejo de aprender. A
evasão que hoje vislumbramos é de desejo: o corpo infantil está presente, mas sua
alma inventiva busca outros lugares.

É exatamente nisto que acreditamos e que aqui fazemos nossa aposta: há um


universo narrativo disposto nas culturas que é mais afeito ao entusiasmo e à
admiração e que falam mais de perto com a criança às voltas com suas
experimentações linguageiras e corporais. Não há porque a educação não se valer
dele para a alfabetização.

230
3.8.2. ORALIDADE – ABERTURA AO DESEJO

Para além da função pragmática da fala cotidiana (comunicativa, informativa,


imperativa, plena e bastante aproveitada pelo Construtivismo no processo de
alfabetização), vimos que a rotina infantil também dispõe de uma outra ordem
discursiva que revela a emergência do Sujeito pela intromissão do significante e se
mostra como discurso faltante. Vimos também que neste segundo cenário o desejo
pode se expressar pelas brechas de sentido e aí se abrir ao jogo de experimentações
linguageiras envolvendo nomeação e ritmos e rimas corporais, e tangenciando
encantamentos e mistérios ao redor de intervalos e silêncios. Este é o lugar
privilegiado para a prática dos ludismos poéticos, que são as brincadeiras com a
linguagem que decorrem diretamente da oralidade – via pela qual nossa concepção
de letramento envereda.

Recorremos novamente a Belintane para entendermos esta proposta de


letramento.

O termo ‘oral/oralidade’ geralmente é adotado nas escolas para designar uma


atividade que o aluno desenvolva falando e não escrevendo. Assim, uma resposta
dada a uma pergunta, ou o relato de um acontecimento, estão neste campo
conceitual. Podemos ver na Figura 11 um exemplo disto:

Figura 11: Excerto retirado da página 23 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e
Alfabetização Linguística’ do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

Note-se que no ‘objetivo da produção oral’ a estratégia é fazer o aluno ‘contar


oralmente a história de seu nome’, ou seja, de informar, comunicar um
conhecimento.

231
Oralidade formulada desta maneira refere-se a qualquer fala que dê resposta a
uma atividade proposta; fala comunicativa, pragmática, portanto. Belintane
envereda por outros caminhos: o pesquisador cunha o termo ‘oralidade’ de modo
diferente deste emprego da fala comunicativa pragmática. Dirá que ‘oralidade’ é o
conjunto de [...] narrativas míticas, de encantamento, de aventuras e outras, que
instigam o desejo de continuar a saber, aliadas aos gêneros da infância e da tradição
oral (BELINTANE, 2011: 158), e mais adiante clareia sua opção:

A escolha desses gêneros e de seus textos principais tem como referência e inspiração
o inconsciente linguageiro de Freud ou aquela dimensão que Lacan chamou “lalangue”,
de cujas bordas emerge uma língua/linguagem constitutivamente ambígua,
polissêmica, sempre propensa à função poética e ao equívoco (BELINTANE, 2011: 158-
159).

É a esta ‘oralidade’ que se refere quando diz que já nela podemos verificar o
letramento infantil. Vejamos, então, como estes gêneros textuais aparecem como
alfabetizadores. Belintane (2011) procede uma divisão didática de quatro grupos de
textos oriundos da oralidade com os quais se pode trabalhar no processo
alfabetizador. Reproduzimos87 a lista destes gêneros textuais (cujos exemplos
podem ser vistos no Anexo B desta tese), que são:

a) Gêneros poéticos da maternância: Cantigas de Ninar (melodias usadas para


fazer dormir ou acalmar os bebês, cujo traço mnêmico é estabelecido pela
voz harmônica de quem nina; elemento que apresenta diferenças linguísticas
regionais, que indaga a criança sobre os sentidos das palavras e que a
aproxima de temática extemporânea, milenar, que se presentifica em toda
relação mãe-bebê); Parlendas, Brincos e Mnemonias (exploram o prazer do
texto e/ou do corpo por meio da linguagem).

b) Gêneros da infância mais ampla: Cantigas de Roda (inclui a maior parte do


cancioneiro infantil; são brincadeiras que envolvem ritmo corporal, melodia,
memorização da letra e coordenação cooperada, uma vez que se faz com mais
de duas pessoas); Fórmulas de Escolha (próximo à escansão poética,
estabelece paralelismo gesto-corporal com a unidade sonora); Fórmula de
Pular Corda (coordena ritmo corporal e melodia, exige memorização);

87
Recomendamos a leitura destes gêneros textuais oriundos da oralidade diretamente no autor,
dada a riqueza de detalhes que expõe, em Belintane 2011.

232
Fórmula de Bola (comandos e coordenação motora); Outros Gêneros
Corporais (melodias que envolvem destacabilidade da palavra na frase,
marcadas pelo corpo); Adivinhas e Enigmas (gênero que possibilita explorar
o campo da leitura a partir da posição subjetiva do leitos diante do enigma).

c) Outros Ludismos, não necessariamente em verso que contém elementos


desconcertantes com os quais as crianças se divertem e se intrigam: Réplica
(respostas dadas a perguntas sem sentido, ou inoportunas); Linguagem
Secreta, Criptografada (esforço oral e mental que destaca uma unidade
sonora que se repete e refaz a língua); Trava-Línguas (articula memorização
e repetição de elementos silábicos que permitem articulação da fala e da
leitura); Palavras Valises (localização sonora de uma palavra dentro de outra,
operando com a destacabilidade de letras ou sílabas).

d) Narrativas Orais Populares: oriundas da tradição europeia ou brasileira, as


histórias infantis da tradição oral geralmente banham a infância e deixam
matrizes textuais com as quais depois as crianças elaborarão suas próprias
narrativas e, principalmente, poderão ler fluentemente textos mais longos.
Submetidas desde cedo a esta prática, elas se põem ativamente na posição de
ouvintes, depois de contadores de histórias.

Belintane inclui ainda as grandes narrativas no gênero das narrativas orais


populares, porque, assim como a oralidade tem sua origem nas ninas de berço, a
grande literatura também bebe na fonte dos épicos da oralidade.

Partindo de um posicionamento subjetivo inicial que não permite distinguir ficção de


realidade, a criança vai, aos poucos, em geral sob a influência dos adultos, podando suas
expansões e mesclas subjetivas com personagens, fixando a função do discurso
narrativo e distinguindo e situando interlocutor, narrador e personagens (BELINTANE,
2011: 186).
O que o autor destaca como relevante neste processo é a mudança de posição
Subjetiva – ouvinte / contador – e a paulatina distinção do mundo dos familiares
para um universo próprio construído nas narrativas. Acrescenta ainda,
acompanhando Freud, Lacan e Gasset, que há na atividade de ouvir e contra histórias
uma economia de gozo que canaliza a pulsão para o espaço configurado pelas
narrativas, extraindo do corpo o único lugar onde as aventuras podem se dar. Deste

233
gênero Belintane prioriza aqueles da tradição brasileira88, que o autor deriva em
três sub grupos: Histórias de Bichos (para além das fábulas, identifica aquelas
histórias marcadas pela astúcia e desenvoltura do personagem, e aquelas que
retratam a fauna e a flora brasileira); Lendas Brasileiras (textos fantásticos que
elaboram explicações para acontecimentos ou origem de algum elemento da cultura
geral ou regional); Causos Brasileiros (enredos de assombração ou astúcia, muitos
têm sua origem longínqua nas narrativas medievais, mas foram transfigurados para
embates de mote caipira ou sertanejo).

Eis então um panorama desta ‘oralidade’ a que somos também aderentes. Ao


aceitarmos a ‘oralidade’ nos termos propostos, não perdemos de vista que ela
permanece entrelaçada, na vida de cada um, à fala comunicativa. Mas também fica
evidente que conforme se priorize uma ou outra, os textos delas provenientes farão
apelos poéticos bastante distintos para as tramas da Subjetividade. Se o Sujeito pode
surgir pelos lapsos de linguagem em qualquer uma das falas – pragmática, ou da
‘oralidade’ – dos enredamentos desta última decorrem possibilidades mais amplas
de articulação de sentido e representação.

Avançando mais um pouco na proposta de alfabetização que toma a ‘oralidade’


por base, é importante salientar o papel do professor nesta relação – e aqui nos
contrapomos mais uma vez à forma como geralmente os textos são transmitidos. O
que se espera é que estes textos (ou as pequenas experiências com a palavra, como
nos casos das ‘palavras valises’, do ‘revestrés’), sejam trabalhados oralmente e
performaticamente, antes de serem passados à sua escrita e leitura gráficas. Isto se
deve a quatro motivos fundamentais: primeiro porque na oralidade a criança é
desafiada a memorizar o texto antes de atuá-lo, compondo assim uma matriz textual
mnêmica que lhe servirá de base ao letramento no papel; segundo porque
performaticamente a criança marca no corpo a correspondência rítmica dos sons;
terceiro porque na oralidade a criança precisa fazer um esforço não só de retê-lo,
mas também de trabalhá-lo mentalmente; e quarto porque na oralidade se pode
depreender as nuances estéticas da dinâmica linguageira: a sonoridade que entoa e

88
Certamente não descartamos os textos vindos de outras tradições sociais. Oriundos da tradição
oral ou literária, há uma riqueza infindável de textos provenientes dos cinco continentes que podem
e devem ser aproveitados. O que fazemos aqui é não subestimar a riqueza da nossa cultura, além de
priorizar o que todas as culturas consagraram como narrativas centenárias ou milenares.

234
expressa revela elementos que a leitura muitas vezes esconde. É por esta razão, que
uma história contada causa efeitos na criança muito diversos da mesma história lida:
na contação também o corpo do professor está em jogo e pode buscar no olhar e no
tom de voz aquele aluno que está distraído ou fazendo outra atividade. A modulação
vocálica na contação faz toda diferença para a aproximação com o texto e
geralmente o que vemos é que quando o professor lê a história está mais preso à boa
pronúncia daquilo que está escrito, do que às variações de tons de personagem a
personagem, de situação a situação.

Além de terem que ser trabalhados oral e performaticamente, é fundamental


que as atividades com os textos se repitam. Tanto cada um dos gêneros precisa ser
apresentado e reapresentado, quanto os conteúdos específicos precisam acontecer
algumas vezes para que estabeleçam ligações com os traços de memória. Há um
conceito que Lacan aproveita da linguística – point de capiton – para explicar de
outro modo o que Freud já dissera sobre a repetição na fundação do trauma: quando
um evento acontece pela primeira vez, ele faz entrada no psiquismo, mas ainda não
pode ser significado pois não tem nenhuma referência que o avalize; quando o
evento acontece pela segunda vez, ele retroagem sobre a primeira e assim, por
comparação, pode estabelecer uma representação para as duas experiências. Ou
seja, o sentido das coisas e dos conhecimentos só se atinge pela repetição e por um
intervalo entre os dois eventos.

Há na oralidade e nas narrativas que se expandem através da fala e das


contações, as matrizes primeiras da literatura. Ao modo das composições poéticas
apontadas por Freud, estes textos carregam ao mesmo tempo elementos da
realidade e os deslocamentos de sentido pelo nonsense infantil e suas fantasiações.
É assim que continuamos encontrando, oriundos da oralidade, os mitos, as poesias
épicas, os contos de fadas, as lendas, as fábulas, as cantigas conformadas há séculos
– senão a milênios – e que ainda causam arrebatamento nos ouvintes. Édipo Rei,
Aquiles, Ulisses, Saci, Boto, João e Maria, Formiga e Cigarra, Sherazade, Bicho Papão,
Peter Pan, Iara, Pedro Malasartes, Cinderela, entre infinitos mais, exploram o desejo
infantil, suas possibilidades imaginativas, suas experimentações corporais e abrem-
se para a instrumentalização do mistério, do sagrado, do faltoso, do assustador.

235
Ler e interpretar Subjetivamente um texto não é só responder à razão social
dele, mas posicionar-se diante dele e a partir dele. A leitura se torna tão mais
sofisticada à medida que ela enlaça outras leituras e busca a intertextualidade. O
maior número de inferências torna mais possível à criança fazer os recortes
representacionais necessários à sua reelaboração psíquica e, consequentemente, à
sua entrada no mundo da realidade. Ela pode desta forma dialogar com o que
simbolizou do cotidiano.

É assim que esta pesquisa faz todas suas apostas no trabalho textual que resgata
as narrativas épicas, míticas, lendárias que recorrem sempre a elementos distantes
do cotidiano utilitário, elementos misteriosos, fantásticos, mágicos, poéticos, que
brincam com as palavras e seus vários deslocamentos, dissimetrias, intervalos e
atonalidades. Quando bem transmitidas e trabalhadas, estas hiâncias textuais
convidam a criança a participar de seu jogo. Ademais, o texto faltoso também
convoca o professor a colocar-se como desejante, como alguém instigado pelo
nonsense e que também tem que fazer um resgate mnêmico para que possa se
reencontrar.

O texto oriundo da oralidade e as grandes narrativas, por conterem polissemias,


intervalos de sentido, mistério, nonsense, funcionam como o terceiro lugar entre a
criança e a mãe, entre o estudante e o professor. Este é o espaço em que o Outro
sócio histórico pode se constituir e fazer circular o desejo tanto de um, quanto do
outro. É neste ponto que aportamos para tratar da possibilidade (e da necessidade)
de as escolas abordarem a aprendizagem, mesmo a mais elementar em que está
incluída a alfabetização, pelo caminho da Subjetividade e de seus campos social e
histórico.

É no acontecimento (des)encontrado de dois desejos – do aluno e do professor


– suscitado pelo texto, que se pode produzir o intervalo que irá interrogar a ambos
e aí provocar um encontro. É preciso fazer circular Subjetividades e conhecimentos
por meio de palavras, gestos, ilustrações dramáticas, ternas ou chistosas, que ora
aparecem, ora se escondem, mas que de um jeito ou de outro são
(re)experimentadas pelo par professor-aluno, sem fazer pender a balança para um
só lado.

236
A funcionalidade do texto e sua operacionalidade não se dão exclusivamente,
nem prioritariamente pelo uso de técnicas ou de métodos diferentes, mas
necessariamente pela circulação do desejo por suas entrelinhas lidas e escritas. O
texto do qual a criança se apropria e conhece é aquele em que ela pode entrar e sair,
nele acrescentando e dele extraindo significações elementares.

Para se ter a dimensão do que significa pensarmos a alfabetização desde a


oralidade e de considerarmos a heterogeneidade em sua essência mais Subjetiva,
retomemos as três narrativas com as quais demos início a este capítulo. Ali se veem
três recontos distintos em detalhes e uso da linguagem, dispostos em ordem
crescente de qualidade narrativa. Lançamos então a pergunta: ‘Qual das três
crianças estaria melhor preparada para a leitura e a escrita?’ Nossa primeira
tendência seria de afirmar que a última criança estaria mais próxima da
alfabetização que as outras, mas dados de sala de aula revelaram que aquele aluno
no 1º. Ano EFI não conseguia reconhecer nem as letras do próprio nome. De forma
inversa, o reconto mais pobre foi do primeiro aluno, que no entanto já entrara na
escola alfabetizado e escrevendo em letra cursiva.

O que se quer demonstrar é que a aparência só de um lado ou de outro da moeda


– oralidade ou escrita – não pode responder pelo todo do aluno. Quando se pensa
uma sondagem que pressupõe a Subjetividade – e, em decorrência, a
heterogeneidade – é preciso fazer o tempo todo o giro de um a outro lado da Banda
de Moëbius. Como pudemos analisar ao longo do ano letivo de 2012, tanto o
primeiro, quanto o terceiro aluno de quem apresentamos os recontos exigiram olhar
individualizado para que superassem dificuldades com o letramento. O que no
entanto podemos afirmar, é que tanto em um caso, quanto em outro, as narrativas
tiveram papel importante.

Até aqui tratamos do indivíduo que nos primórdios de sua constituição psíquica
teve que se haver com a trama histórica em volta de si. Vimos que no entanto este é
um indivíduo que ainda não tem consciência das palavras faladas no seu sentido
social compartilhável – função pragmática – e que ainda usa a língua como a recebeu
na relação de maternagem. Mas, este indivíduo, uma vez pego nas malhas dos
significantes em rede, tornar-se-á Sujeito.

237
Tratamos também do paradoxo sobre qual/quem é o objeto de ação da
aprendizagem: se de um lado não pode ser o Sujeito como o estabelecido pela
psicanálise, uma vez que este é acontecimento evanescente do inconsciente,
também não é o indivíduo de toda consciência, uma vez que o Sujeito sempre estará
lá com suas interferências idiossincráticas que desbancam a razão plena. Apostamos
na educação incidindo sobre e a partir da Subjetividade, termo que tratamos como
o trabalho feito por um indivíduo na aproximação dos textos e memórias vindos do
Outro, a partir dos quais pode retirar elementos para suas próprias produções
textuais – seu Texto.

Assim que, quando estamos diante de um texto, seja ele oral ou escrito, somos
demandados a interpretá-lo, pela própria condição humana de constituídos pela
linguagem; a partir de nossas experiências com a linguagem, conformamos os
sentidos e as representações que se fazem urgentes. Vimos que isto pode ocorrer
pela via de uma fala mais prosaica e cotidiana, ou por aquela extraída dos ludismos
poéticos. Chegamos ao ponto em que a nossa escolha para o processo de
alfabetização recai sobre os ludismos poéticos mais do que sobre a fala
comunicativa.

Freud diz que há muitos ensinamentos acerca das coisas mais variadas do
mundo que os alunos não veem e que por isto tomam como crença. Relata um
episódio acontecido com ele às voltas com a Acrópole: sabia que ela existia em
Atenas (Grécia) e conhecia sua história, entretanto quando esteve pessoalmente no
lugar foi tomado por dois sentimentos arrebatadores: de maravilhamento e espanto.
Então tudo é efetivamente tal qual aprendemos na escola! Quão superficial e débil deve
ter sido, naquele tempo, minha crença na verdade objetiva do escutado, posto que
agora me assombro tanto!89 (FREUD, 1927: 25, minha tradução). A questão para
Freud é seu assombro, que diz ser [...] de natureza inteiramente subjetiva e
relacionada com a particularidade do lugar90 (FREUD, 1927: 26, minha tradução). De
fato, é assombroso o mundo que se abre quando tiramos da sua frente a capa

89
¡Entonces todo es efectivamente tal cual lo aprendimos em la escuela! ¡Cuán superficial y débil
debió de ser en aquel tempo mi creencia en la verdad objetiva de lo escuchado, puesto que ahora
me asombra tanto! (FREUD, 1927: 25).
90
[...] de naturaleza enteramente subjetiva y tiene que ver con la particularidad del lugar (FREUD,
1927: 26).

238
objetiva e informativa que recobre a história e suas marcas e podemos experimentar
a sua existência.

É assim que para chegar a ler e escrever um texto, a criança terá que passar pela
vivência de experimentá-lo desde os primórdios de sua existência, não dando um
passo atrás, mas recuperando os traços de história que se fazem mostrar. A
experiência é necessária para engendrar a narrativa mítica da criança, mas não é só
na palavra que ela alcança a dimensão do Outro, mas necessariamente na prática
das experiências com o Outro.

239
4. TEXTUALIDADES – DA DERIVA À REPRESENTAÇÃO

O escritor João Ubaldo Ribeiro (1995), aos moldes de Graciliano Ramos, relatou
o período de sua vida em que estava às voltas com a alfabetização; mais ainda, com
sua aproximação da leitura. Em seu relato vemos, no capítulo ‘Memória de livros’,
como teve mais sorte que seu companheiro de escrita, uma vez que sua infância foi
repleta de livros e leitores, em ambiente em que todos eram incentivados a se
apropriar dos universos esboçados nas milhares de páginas distribuídas pela casa.

Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que
ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no
banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar
tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade,
se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu
inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de
que entendia nelas o que inventara (RIBEIRO, 1995: 37).

Ao voltar de suas primeiras aulas de alfabetização, aos seis anos, o pai lhe deu
alguns livros para ler, na esperança de que fossem suficientes para início de
conversa:

Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes
cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número
estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a
todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril, às vezes
chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer
porque não me deixavam ler à mesa – e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse
a meu pai que eu estava maluco (RIBEIRO, 1995: 38).

O relato mostra o ponto de semelhança aberto pelos livros nas infâncias de


Ribeiro e Ramos: um e outro tidos como ‘maluco’: o primeiro porque não conseguia
parar de ler e o segundo porque a dor incomensurável das primeiras lições com o
pai lhe atordoavam: Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por
haver gerado um maluco e deixou-me (RAMOS, 1945: 114). As diferenças ficam
reservadas à forma mais ou menos sofrida com que os livros foram apresentados a
estes dois meninos. O primeiro desfrutou da convivência diária com este suporte
intrigante de letras, palavras e frases, e aí viajou; já o segundo a duras penas
conseguiu extrair do pai um único momento de gozo junto aos livros e à leitura.

240
Reproduzo aqui esta passagem mágica e ressofrida de Graciliano, pois nela
vamos encontrar elementos para pensar sobre aqueles alunos que nos bancos
escolares arrastam por anos suas dificuldades de leitura e escrita.

O pai de Graciliano tentara instruí-lo na leitura e escrita, mas fazia-o sob a mira
do côvado e de muitos gritos, que o deixavam completamente nauseado e
paralisado. Dias a fio sob a tortura das letras causaram na criança verdadeiro horror
por aprender a ler e escrever. Certa noite, inesperadamente, o pai de Graciliano
mandou que pegasse um livro e o lesse. Desorientado com a ordem, leu
sofregamente mas, surpreendentemente, ao invés de ouvir gritos do genitor, ouviu-
lhe explicações sobre a narrativa e sobre as palavras que para ele não tinham
sentido. Assim, abrandada a sua tensão, pode admirar-se com o enredo. Graciliano
‘animou-se a parolar’: Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas era difícil
conhecer tudo [...] Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar o sentido da
prosa confusa, aventurando-me, às vezes a inquirir. E uma luzinha quase imperceptível
surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito (RAMOS,
1945: 207). Tomado de encantamento pelos mistérios da prosa, não conseguiu se
livrar dos personagens e da curiosidade pelo desenrolar da história, só sossegando
quando pode repetir a experiência nos dois dias consecutivos:

E no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me [o pai] com
um gesto, carrancudo.

Nunca experimentei decepção tão grande. Era como se tivesse descoberto uma coisa
muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos,
depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio
foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza de
que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar (RAMOS,
1945: 208).

Assim podemos ver que a recepção à leitura toma caminhos tão diversos entre
os sujeitos: para uns mais fáceis do que para outros. Entretanto, também
vislumbramos que para além das dificuldades, a magia do texto pode se descortinar
para todos, mesmo para aqueles que experimentaram um dia a sua repulsa. Mas nos
dois casos é preciso que alguém dê referências significativas que despertem o
encantamento infantil; há sempre o momento em que alguém tem que autorizar a
prática da leitura – como, aliás, qualquer prática infantil. A grande questão é passar

241
a barreira da aversão quando ela se pôs primeiro. Por onde ultrapassá-la? Com
Graciliano vimos que o pai, depois de ter desistido dele, depois de tê-lo atraído
novamente para junto dos livros, mais uma vez abandona-o à própria sorte.
Entretanto esta segunda deixada já criara no menino o interesse pelas narrativas
escritas e esta foi a sua salvação. Foi Emília, a prima ‘linda moça’ quem lhe apontou
o definitivo caminho da fascinação:

Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no
céu, percebiam tudo quanto há no céu. Não no céu onde moram Deus Nosso Senhor e a
Virgem Maria. Esse ninguém tinha visto. Mas o outro, o que fica por baixo, o do sol, da
lua e das estrelas, os astrônomos conheciam perfeitamente. Ora, se eles enxergavam
coisas tão distantes, por que não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos
meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras? (RAMOS,
1945: 209).

Imaginamos que estas mesmas perguntas ressoam na grande maioria das


escolas brasileiras – ‘não distinguem letras?’, ‘não sabem reuni-las em palavras?’. Às
vezes até sabem, mas não conseguem. E mais, nem sempre encontram Emílias que
podem lhes contar as histórias dos astrônomos e ficam só com os ‘pais’ titubeantes
entre instruir e ralhar, entre convidar e abandonar. Para encerrar a longa jornada
de Graciliano até o encontro com a escrita e os livros, vejamos como em suas
memórias a narrativa apazigua sua inquietude.

Matutei na lembrança de Emília. Eu, os astrônomos, que doidice! Ler as coisas do céu,
quem havia de supor? E tomei coragem, fui esconder-me no quintal, como os lobos, o
homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as
folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os
pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a
inteligência espessa. Vagarosamente.

Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria o segredo do céu.
Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos,
mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes (RAMOS, 1945: 209-
210).

Chegamos ao ponto em que precisamos pensar no acontecimento


contemporâneo que é a aproximação das crianças com os livros, com os textos
impressos, mas também com aqueles da oralidade. Oxalá estivessem todas

242
avizinhadas do lugar de João Ubaldo ou de Graciliano, mas como vimos no Capítulo
1, sabemos que não estão, e mais, sabemos que boa parte da população nunca esteve.

Expusemos no Capítulo 3 o papel fundamental das narrativas, tanto para


conhecimento dos enredos dispostos socialmente, quanto para a constituição
psíquica. Não nos referimos, portanto, simplesmente à função social do texto, mas
articulamos principalmente a necessidade de sermos autores dos nossos textos, de
nos fazermos pelos textos elaborando subjetivamente a condição humana de quem
também representa e transmite cultura.

Neste capítulo trataremos de articular por quais interstícios sócio históricos o


acesso às narrativas e à possibilidade de textualizar são facilitados ou barrados
sistematicamente na sociedade de modo geral e nas escolas de modo específico.
Retomamos nossa discussão sobre o Construtivismo e as tendências
sociointeracionistas – iniciadas no Capítulo 2 – mas desta vez para observarmos
como se firmaram como práticas pragmáticas e objetivantes que confirmam a elisão,
no campo da alfabetização, da função narrativa: instituem em seu espaço o
esvaziamento textual, as concepções de gênero e a fala prosaica no lugar da
oralidade. Veremos que esta cooptação contrapõe-se a alguns pontos enunciados
pelo Construtivismo em sua origem, mas que também neles são fundamentados.

Neste ponto tensionamos a discussão até o seu extremo – da origem da


modernidade e do pensamento racional, até a proposição do fim das grandes
narrativas como fruto da evolução do pensamento moderno – para retomarmos a
possibilidade de outras articulações com os enredos textuais e apontar para
possíveis saídas.

Os problemas de leitura e escrita enfrentados pelos alunos em alfabetização


precisam ser pensados desde o seu início. Através das memórias de Ramos e Ribeiro
temos uma vaga noção do que pensavam seus pais e seus professores91 sobre isto;
mas como são concebidas estas experiências hoje pelos órgãos oficiais de educação,

91
Vimos no Capítulo 3 como d. Maria se relaciona com o saber e com a instrução de Graciliano
Ramos e acolhe suas dificuldades. De João Ubaldo Ribeiro temos também um rápido depoimento do
que se passou com ele aos seis anos. Diz o pai: – D. Gilete – disse ele, apresentando-me a senhora de
cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo –, este rapaz já está um homem e ainda não
sabe ler. Aplique as regras (RIBEIRO, 1995: 38). D. Gilete nunca precisou aplicar as regras, isto é,
nunca usou a palmatória com João Ubaldo, porque este facilmente aprendeu a ler.

243
pelos professores e pelos pais? Não nos aventuramos aqui a responder a estas
indagações em larga escala, uma vez que esta pesquisa está circunscrita por dados
de três instituições escolares (e mais profundamente de uma), mas pensamos a
partir de encontros científicos e discussões acadêmicas, e do material didático do
PNLD da EA-FEUSP, conteúdos que exporemos e discutiremos ao longo deste
capítulo, cotejando-os com dados empíricos da pesquisa proporcionada pelo
PROJETO “DESAFIOS”.

4.1.PROJETO LER E ESCREVER E PROGRAMA BOLSA


ALFABETIZAÇÃO – UMA VISÃO SOBRE AS NARRATIVAS E
SOBRE A LEITURA

Ao final do ano de 2012 aconteceu na cidade de Araraquara (interior paulista)


um encontro científico sobre linguagem e alfabetização92. Na ocasião dois eventos
chamaram a atenção: o primeiro proferido em uma mesa de debates93 sobre o
programa Bolsa-Alfabetização e o segundo, em uma mesa de comunicações
intitulada ‘Sondagens e avaliação da alfabetização’.

A primeira apresentação contou com os seguintes arrazoados:

1) Os alunos que atuam no programa Bolsa-Alfabetização ocupam uma posição


privilegiada com relação àqueles que fazem estágio supervisionado pela
faculdade, uma vez que participam diariamente das atividades de sala de
aula proporcionando-lhes mais conhecimento e propriedade para
argumentar sobre a alfabetização; são graduandos que valorizam mais a
formação dos professores dentro da profissão, dado que vivenciam as
dificuldades enfrentadas por eles em salas de aula.
2) O programa Bolsa-Alfabetização conta com a orientação de Bernardete Gatti
e Telma Weisz (esta última formadora de professores e reconhecida
defensora do Construtivismo). O aluno contemplado com esta bolsa não é

92
II Encontro sobre a Linguagem da Criança: Sentido, Corpo e Discurso e I Colóquio sobre
Alfabetização do Núcleo de Ensino de Araraquara, realizado pela Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista, em Araraquara, no mês de novembro 2012.
93
Esta mesa de debates intitulada ‘Diálogos sobre alfabetização I: O projeto Bolsa-Alfabetização’
contou com a participação de Roseli Aparecida Parizzi (UNESP/FLCAr), Marisa Garcia (FDE) e Sandra
Dourado (Diretora de Ensino do Estado de São Paulo, região de Araraquara).

244
considerado um segundo professor em sala, mas ‘aluno-pesquisador’, cujas
atribuições são: apresentar o material do Projeto Ler e Escrever aos alunos
da EFI; fazer investigação didática (registro e aprofundamento da didática
de sala de aula e não a mera observação do professor regente), cujo objetivo
é o conhecimento sobre a natureza da função docente no processo de
alfabetização; dar apoio ao professor da sala de aula, atendendo aos alunos
com menores dificuldades de aprendizagem e assim deixando o professor
regente no atendimento daqueles com maiores dificuldades; conhecer as
situações didáticas e as hipóteses de conhecimento dos alunos em
alfabetização; promover a interação destes alunos com o desenvolvimento,
por meio das leituras de textos teóricos e das análises dos registros do
material de campo. Como a concepção do projeto é Construtivista, o aluno-
pesquisador também deve levantar hipóteses sobre seu conhecimento para
poder construí-lo.

Sobre estes tópicos temos a considerar três coisas. A primeira é que de fato a
atuação diária em classe oferece uma perspectiva única da dinâmica da aula,
desvelando as dificuldades e facilidades cotidianas enfrentadas pelo professor
regente. Estágios que se propõem à visitação dos graduandos por duas ou três horas
semanais em sala de aula do ciclo básico não oferecem a verdadeira dimensão do
que é o trabalho de professor do EFI. Esta constatação também é nossa, a partir das
atividades desenvolvidas no PROJETO “DESAFIOS”.

Durante dois anos da pesquisa estive presente em sala de aula de 1º. Ano do EFI,
mas de formas distintas: no primeiro de forma mais fragmentada, acompanhando
parte do dia letivo, de três a quatro vezes por semana, mas de modo a raramente
estar presente todo o dia letivo. Já no segundo ano da pesquisa estive presente três
dias letivos inteiros, sendo dois dias seguidos na semana. Efetivamente, a análise
que faço é de que foram duas visões completamente distintas uma da outra, com
relação à demanda de trabalho do professor. Só a presença constante em classe deu
a real grandeza do que é a dinâmica de aula, de como as atividades programadas são,
ou não, possíveis de acontecerem, de como a atenção a um ou outro aluno cabe no
dia letivo, de como as demandas dos alunos fazem pender as aulas para um ou outro
conteúdo programado, ou como a demanda de um único aluno pode interromper o

245
fluxo de aula, levando-a a rumos completamente inesperados. Enfim, acompanhar
uma atividade didática esporadicamente é em tudo diverso de estar presente
ativamente em sala de aula, durante um ano letivo, especialmente se este
acompanhamento se restringe à observação do que faz o professor. Ver e fazer, neste
sentido, são acontecimentos totalmente opostos, ainda que tanto no primeiro,
quanto no segundo ano da pesquisa, as discussões sobre o andamento das
atividades, aproveitamento pedagógico dos alunos e elaborações dos materiais
didáticos tenham acontecido sempre em conjunto entre o professor regente e o
segundo professor – no caso, os bolsistas pesquisadores do PROJETO “DESAFIOS”.

Efetivamente, a maestria decorre de experiência. É bem diverso saber


teoricamente como o conhecimento se constrói – seus processos, quais os
pressupostos que antecedem cada etapa, etc. – e estar diante de uma criança que
resiste ao conhecimento, recusa-se a ele, ou enfrenta dificuldades. Também é
diferente a condição de pensar teoricamente sobre a aprendizagem de um único
aluno e estar sozinho por quatro, cinco horas seguidas diante de uma classe com 30
crianças, cada qual em um momento da formalização do conhecimento. Educar não
é uma tarefa fácil!, e aprender a educar não acontece nos bancos universitários, mas
em sala de aula com crianças.

Defendemos, então, uma primeira proposta: especialmente nos anos iniciais de


alfabetização, é necessária a presença de dois professores, em tempo integral, em
cada sala de aula. Deste ponto de concordância com o programa Bolsa-Alfabetização,
passemos à sua ponderação: não é de qualquer modo que se deve dar a presença dos
dois professores em sala de aula.

Na mesma mesa de apresentação do referido encontro científico, as


debatedoras expuseram alguns resultados práticos do programa: se em princípio os
graduandos estavam em sala de aula para acompanhar os estudantes que tinham
maior facilidade para aprendizagem, para que o professor regente se ocupasse
daqueles que enfrentavam dificuldades, na prática constatava-se o inverso. Os
alunos ainda em formação acadêmica eram levados a se responsabilizar por aquelas
crianças que apresentavam problemas mais sérios no processo de alfabetização.
Naquele encontro científico não foram discutidos os motivos de tal acontecimento,
tampouco foram levantadas soluções para o dilema.

246
Dada a esquiva dos membros da mesa em debater assunto tão sério, foi
inevitável que nos colocássemos na via de pensá-lo. O que denota tal atitude dos
professores de delegar a seus bolsistas tarefas mais árduas?

Como apontamos nos Capítulos 1 e 2, há no caminho daquilo que se chama


‘dificuldade de aprendizagem’, uma tendência das escolas encaminharem seus
alunos para atendimentos com especialistas, de forma exagerada94. Identificamos aí
certo movimento de escape da escola – e de alguns professores – em enfrentar a
evasão mental de seus alunos.

Mais do que falta de vontade ou desinteresse docente, apostamos, em um


primeiro momento95, em entraves teórico-práticos subjacentes ao método
pedagógico prioritariamente usado e como este é entendido e aplicado. A forma
como o Construtivismo se impôs na educação brasileira – e, ao nosso ver, em parte
discordante com a forma como foi concebido por Ferreiro e Teberosky – deixa
transparecer a pouca mobilidade dos professores para agirem a partir de outros
preceitos.

Para começarmos a pensar sobre este assunto, vejamos como se deu o debate
na segunda apresentação que destacamos. O primeiro alerta que fazemos é que, em
se tratando de um mesa de Comunicação, os palestrantes eram em sua maioria
estudantes de graduação e bolsistas do programa Bolsa-Alfabetização; o segundo
alerta é que na plateia estava uma das coordenadoras do Programa Bolsa-
Alfabetização, defensora do Construtivismo e do projeto Ler e Escrever. Foram três
os trabalhos apresentados.

O primeiro trabalho96 considerou a visão dos alunos de letras sobre o Programa


Bolsa-Alfabetização e avaliou que o programa oferece oportunidades práticas muito
mais ricas e formadoras do que o estágio curricular – análise já feita no debate
anterior. Em pergunta da plateia que se seguiu à exposição, foi considerada a
afirmação feita na mesa de debates a que nos referimos anteriormente – como os
alunos do programa lidaram com o fato de terem que se ocupar dos alunos do EFI

94
Ver nota 30 do Capítulo 1 desta tese.
95
Adiante neste mesmo capítulo trataremos de outros entraves à ação do professor, a partir das
análises que Dufour faz da sociedade.
96
Juliana Ferreira – Análise sobre o impacto do Bolsa Alfabetização na formação de licenciados da
FCL/UNESP/Araraquara.

247
com maior dificuldade de aprendizagem? Novamente a discussão não se estendeu,
primeiro porque a apresentadora constrangeu-se em responder (provavelmente
por que estava diante da coordenadora do programa) e resumiu a situação em uma
frase: ‘Foi difícil’; e segundo, porque a própria coordenadora adiantou-se para dizer
que este assunto estava sendo debatido no âmbito da direção do programa.
Analisamos aqui a insistência na esquiva diante do problema, inclusive porque
levando a discussão a esferas mais altas de poder, destrói-se um dos pressupostos
do Construtivismo – e que também subsidiam o programa Bolsa-Alfabetização – que
é a construção do conhecimento, também por parte de professores e alunos
bolsistas.

A segunda pergunta dirigida à expositora indagava quais funções específicas os


alunos do programa tinham em sala de aula, diferentes daquelas dos estagiários: a
resposta foi que alunos-pesquisadores não eram ‘cortadores de papel’, mas não
chegavam a elaborar os materiais didáticos oferecidos em aula (estes a cargo
sempre do professor regente).

De acordo com o site oficial do programa97:

Além da rotina cotidiana, o AP [aluno pesquisador], como o próprio nome diz, faz
uma pesquisa de natureza didática na sala de aula em que está atuando, para
acompanhar o avanço dos alunos na leitura e na escrita. Orientado pelo respectivo
professor orientador (PO) da Instituição de Ensino Superior onde estuda, ele
observa e registra as atividades didáticas desenvolvidas em sala de aula,
aprofundando esses procedimentos com estudos sobre os temas desenvolvidos.
Essa investigação feita pelos alunos em sala de aula conta com a supervisão da Profª
Delia Lerner, docente da Universidade de Buenos Aires.

Nesta descrição de atribuições o aluno pesquisador / aluno bolsista deveria ser


mero observador e elaborador teórico, mas não experimentador ativo dos temas
envolvendo didática. Mas por outro lado, ele é posto sozinho para dar conta dos
alunos com dificuldades de aprendizagem e tem que agir de acordo com a
elaboração didática de outra pessoa – a do professor regente. Ao mesmo tempo, seus
estudos aprofundados sobre didática se dão na esfera da Universidade e não da
escola onde atua. Parece não se dar o diálogo entre professor e bolsista a respeito

97
http://lereescrever.fde.sp.gov.br/SysPublic/InternaBolsaAlfabetizacao

248
da didática das aulas, embora tenham estabelecido uma rotina diária de convivência
e prática. A frase ‘Foi difícil’, sem complementos, parece expressar esta realidade.

Identificamos novamente – como também já apontáramos no Capítulo 1 desta


tese – uma cisão importante entre o discurso que se elabora sobre a criança e o
professor em sala de aula e a prática que acontece neste espaço: os alunos bolsistas
discutem na esfera acadêmica as práticas de sala de aula, mas não participam de sua
elaboração; o professor elabora o material didático, mas não necessariamente o
aplica, já que o bolsista cumpre este papel com os alunos com maiores dificuldades.
Da mesma forma, a coordenação do programa verifica uma inversão dos objetivos
traçados pelos órgãos oficiais, mas não proporciona sua discussão ali onde ela
acontece – na escola – e sim nas esferas superiores de comando do projeto.

Acreditamos que com esta separação perde-se a chance de propor mudanças


efetivas dentro das salas de aula, ali onde as coisas se dão, na hora em que
acontecem. Se a alfabetização no Brasil tem sido alvo de preocupação por causa dos
baixos índices de habilidades leitoras e escritoras dos alunos, é de se pensar, com o
que acabamos de analisar, que esforços têm sido desperdiçados quando se tem a
chance de agir e elaborar conjuntamente sobre problemas. Diante dos entraves de
aprendizagem dos alunos faz toda diferença o professor ter mais uma pessoa com
quem possa dividir não só as tarefas diárias, mas também a responsabilidade por
compreender as adversidades – esta também é uma constatação de nosso trabalho
de pesquisa, uma vez que o segundo professor em salas de aula do EFI tem se
mostrado um diferencial no aproveitamento pedagógico dos alunos, tanto quanto
no melhor posicionamento do professor frente aos alunos e suas atividades. (Sobre
isto falaremos mais no próximo capítulo, quando abordaremos algumas práticas do
PROJETO “DESAFIOS”). Aquilo que poderia ser uma prática conjunta entre professor
e bolsista, torna-se prática co-solitária: de um lado professor e de outro aluno
pesquisador, que compartilham espaço e silêncio, e continuam reproduzindo
mesmas práticas.

A segunda apresentação98 desta mesma mesa de debates propôs investigar


junto aos professores do 2º. Ano EFI, o uso de textos na alfabetização. Elaboraram

98
Francine Veríssimo e Verônica Leonardo – A seleção de textos para a alfabetização e os interesses
das crianças.

249
algumas perguntas: 1) É correto usar textos para alfabetizar o aluno? 2) Quais os
critérios usados na escolha dos textos para alfabetização? 3) De onde são extraídos
estes textos? 4) Como os textos são usados na alfabetização?

Em suas respostas, os professores afirmaram que os textos podem ser utilizados


na alfabetização e a fonte a que mais recorrem, quase com exclusividade, é o material
fornecido pelo projeto ‘Ler e Escrever’. Segundo os professores o que justifica tal
escolha é a qualidade do material e a diversidade de textos e gêneros ali dispostos.
Entretanto os mesmos docentes identificam que os textos do livro do projeto ‘Ler e
Escrever’, dirigidos ao 2º. Ano do EFI, são inferiores às habilidades e conhecimentos
das crianças. A pesquisa também verificou que os professores criticam o uso de
cartilhas na alfabetização.

Para as pesquisadoras os professores apresentam certa incongruência entre as


respostas dadas ao questionário e a prática em sala de aula. Ao se referirem à forma
como usam o material ‘texto’ no processo alfabetizador, os docentes disseram que
leem as histórias mas não desenvolvem nenhuma atividade complementar
relacionada a elas. Concluem os pesquisadores: ‘Os professores leem os textos por
ler. A leitura não é instrumento pedagógico’. Ou seja, os textos podem servir para
alfabetizar, mas não são usados para isto.

As observações da coordenadora do projeto Bolsa-Alfabetização discordaram


desta pesquisa. Para ela não há incongruência no fato apontado, pois, em suas
palavras: ‘Não é preciso fazer nada com os textos depois de lidos. O único objetivo
da leitura é que as crianças gostem de ler’. Ainda em suas considerações, esclarece
que o material distribuído pelo projeto ‘Ler e Escrever’ é só indicativo, cabendo aos
professores a complementação com outros textos mais adequados aos seus alunos.

Aqui nos detemos! De fato parece se confirmar a reprodução, dentro das


propostas pedagógicas, daquilo que na origem do Construtivismo foi alvo de crítica,
ou seja, a instituição prévia de um material didático, que antes se chamava ‘cartilha’
ou ‘método’ e que agora se chama ‘material didático’ ou ‘material de apoio’. Mesmo
aquém das necessidades dos alunos, na visão dos próprios professores, o material
fornecido pelo projeto ‘Ler e Escrever’ é adotado tal qual ele chega às salas de aula
(e não é expandido pelos professores). Na nossa leitura isto se dá porque o material
já vem pronto e não demanda esforço no seu uso. Identificamos aqui dois engodos:

250
1) de responsabilidade da direção do projeto ‘Ler e Escrever’, pretendendo
generalizar a escolha de textos para todas as salas de aula, sem conhecer a realidade
de seus alunos; 2) de responsabilidade dos professores que, ao constatarem este
engano, não fazem esforço para superá-lo.

Podemos verificar nas falas dos professores captadas pela referida pesquisa,
mais uma vez aquilo que Pêcheux (1975) identifica como alienação discursiva: de
um lado a cartilha não serve mais à alfabetização, mas este material de apoio, mesmo
defasado, sim. Nos perguntamos então, qual a diferença? A diferença não está na
prática, mas na adoção de um outro discurso igualmente instituído: antes o ensino
tradicional, e agora uma apropriação do Construtivismo que diz que tudo o que vem
das práticas anteriores não serve à alfabetização, ainda que sejam mesmas práticas.
A diferença que observamos está na disseminação ou retenção do discurso de poder.
Antes as cartilhas eram várias e derivavam de diferentes autorias, e cada autor
defendia o seu modo de conceber e praticar a alfabetização – palavração, silabação,
etc. O embate se dava de escola a escola, de professor a professor, na adoção de um
ou outro discurso, mas nesta diversidade analisamos que há possibilidade de
debate. Os métodos de agora giram todos em volta de um só discurso – um certo
modo de conceber o Construtivismo – que rege todos eles; as exceções são dadas
pelas chamadas ‘escolas alternativas’ que adotam pensamentos e práticas
totalmente diversas, mas isolam-se em ilhas de ensino99.

Ao nosso ver – e sem questionar comparativamente os conteúdos e métodos


difundidos antes pelas cartilhas e agora pelos materiais de apoio – neste ponto
houve um retrocesso no modo de alfabetizar, porque se antes havíamos vários
discursos que permitiam um mínimo de mobilidade entre eles, agora o discurso é
mais centralizado. Este comando único também fica claro nos pressupostos do
programa Bolsa-Alfabetização, cuja supervisão geral é feita por estudiosa argentina
que aporta aqui para supervisionar os que supervisionam.

Sem rodeios, reproduz-se nesta prática a mesma desqualificação dos


profissionais brasileiros que se praticava na época da Colônia e do Império que,
como vimos no Capítulo 1, buscavam além mar os subsídios para educação que aqui
se dava. Há uma infinidade de pensamentos e práticas sendo gestados por

99
Figuram aí as escolas de método Waldorf, ente outros.

251
professores, estudantes e também pesquisadores brasileiros, que são
constantemente sub relevados em nome de uma teoria estabelecida que se coloca
como absoluta há pelo menos duas décadas. Um dos pressupostos do
Construtivismo é a elaboração, pelos próprios sujeitos, de seu processo de
conhecimento, mas o modo como é praticado no Brasil fecha os olhos a isto e abre
mão de experiências próximas, acreditando que o fazer/pensar do Outro responde
melhor às nossas necessidades.

Opomo-nos a isto apostando na riqueza do nosso material cotidiano –


especialmente aquele oriundo das tradições orais – e na possibilidade de que nossos
profissionais da educação aventurem-se nas suas experiências, uma vez que eles
mesmos identificam déficits na condução atual das políticas públicas em educação.

Consideremos também outro aspecto da apresentação que analisávamos: o uso


de textos para alfabetizar crianças. Este é um dos temas de maior desacordo com
relação à prática instituída mas, ressaltamos, talvez não seja de todo injustificado.

Desde nosso ponto de vista, como vimos no Capítulo 3, o uso de textos para o
letramento não é uma questão de correção ou adequação, mas de condição
necessária. É impossível formar leitores e escritores ativos sem subsídio daquilo que
lhes dá suporte. O ‘desútil’ a que nos referíamos anteriormente brinca com a
linguagem e interessa pouco aos tratos objetivos e pragmáticos da língua, mas
interessa muito aos sujeitos que lhe prestam cuidados. Aqui, na prática pedagógica
como se institui, parece que o desútil é o trabalho com o texto pois ‘para que a leitura
sirva a se gostar de ler’ é preciso usá-la, experimentá-la, trabalhá-la, tomar certo
tempo com ela. O gesto significante, aquele que chama a atenção para uma ou outra
nuance do texto é necessário para que ele se configure como objeto a ser desejado.

Os professores reconhecem que os textos são importantes para a alfabetização


dos seus alunos – e esta afirmação não nos parece falaciosa – mas há um abismo que
separa este relevo, da efetiva experiência com os textos. Podemos pensar em três
situações que podem se sobrepor: 1) os professores não são leitores e desconhecem
os textos, 2) os professores leem, mas desconhecem como usar os textos, por falta
de hábito ou traquejo, 3) os professores leem, sabem como trabalhar os textos, mas
são impossibilitados de usá-los como acreditam. Para termos dimensão desta ideia

252
vejamos uma situação parecida com a dos professores, no recorte de uma das
entrevistas por mim realizada com familiares de alunos:

Entrevistador: Você gosta de contar histórias?


Pai 1: Não... bem dizer, não é que eu não gosto; é que eu não tenho tempo!
Entrevistador: E quanto tempo você acredita que leva para contar uma história para
criança?
Pai 1: Pra contar bem contado mesmo – pra se divertir e divertir a criança e não só pra
ler, mas inventar coisas – uma hora, uma hora e meia.

Vemos aqui neste relato a clareza do pai com relação a uma boa contação de
história – não só ler, como também inventar, divertir, envolver-se junto com a
criança pelos meandros do texto. Mas percebemos também que a ausência desta
prática turva a noção do tempo: uma hora, uma hora e meia é muito tempo! Quinze,
vinte minutos, meia hora são suficientes para uma boa história; mas só contando-as
para saber... Talvez este também seja o caso do professor que reconhece que o texto
é importante para alfabetizar uma criança, mas não tem referências de como isto
pode ser feito. Quiçá falta-lhe instrumentalização prática. No caso do pai e do
professor estamos no campo da alienação, na crença do impossível imaginado, mas
consagrado.

Bem diferente é o que se estabelece como discurso de poder que apregoa o texto
pelo texto. Estabelece-se aqui diferença radical quanto ao que se entende por
letramento e a forma como ele se dá pelos textos. Retomando nossa posição,
acreditamos que o professor tem que se expressar desde o seu desejo para que o
aluno aprenda, como bem aponta aquele pai: mostrar o que se quer com a narrativa.
Isto é, ao tomar o material-texto nas mãos, não se pode recuar frente ao desejo de
usá-lo! Quando o professor considera este objeto-texto como algo precioso e
importante, já começa a fazer brilhar os olhos de seus alunos, que no gesto do mestre
identificam um mistério primeiro a ser investigado: do que este professor tanto
gosta no livro? Se o professor não é / não pode ser ativo com o material que quer
transmitir, é porque se espera que a relação se dê diretamente entre a criança-aluno
e o objeto de conhecimento (texto). Aí o professor não é um intermediador, mas um
mediador – posição que, como identificamos no Capítulo 2, é adotada pelo
Construtivismo, já em seus primórdios. Como vimos no caso de Graciliano Ramos,

253
faz toda diferença o texto ser apresentado à criança em seus meandros poéticos e
não só em sua função pragmática social.

É exatamente para este aspecto que aponta a terceira apresentação100 realizada


naquela mesa de debates. A pesquisa se prontificou a verificar porquê os alunos de
2º ano do EFI gostam de ouvir a leitura de histórias pelo professor e o quê gostam
nesta atividade. Constataram que 46% dos estudantes não gostam (ou gostam
pouco) de ler; que 80% leem pouco ou nada101, mas muitos (mais de 50%) gostam
de ouvir o professor contar histórias. Do que eles gostam? 70% gostam quando o
professor imita um dos personagens da história, 27% gostam quando o professor
faz uma voz diferente para contar história e 3% quando o professor veste uma roupa
/ acessório que lembra a história. Enfim, todos os gostares tem a ver com uma
postura ativa do professor com o texto, envolvendo seu corpo. Nas palavras dos
pesquisadores, ‘Os alunos gostam quando há uma certa identidade do professor com
o texto’.

Mais uma vez a interferência da coordenação do programa Bolsa-Alfabetização


foi de oposição a esta constatação. Nesta visão oficial do programa ‘O professor não
tem que fazer performance para o aluno gostar de ler. Ele precisa só de um bom
texto.’ Também não apostamos, necessariamente, na performance encenada, grande
eloquentemente trabalhada, mas não dispensamos de modo algum certa habilidade
pessoal com a narrativa.

As próprias crianças falam do encantamento que sentem nas entonações de voz


ou no gesto significativo e apontam para aquilo que lhes interessa no primeiro
momento: o envolvimento do narrador com o texto, muito semelhante ao que
descrevemos no Capítulo 3 sobre os trabalhos de Ong com as culturas orais
primárias. O professor é convocado por seus alunos ao lugar do rapsodo. Como
ignorar pedido tão legítimo e de marcas tão profunda e ancestralmente arraigadas?

O que as crianças precocemente identificam nas suas primeiras aproximações


com os textos, é que eles não podem ser só lidos; eles precisam ser trabalhados,

100
Lucas Henrique da Silva, Maria Caroline Aparecida Portero e Patrícia Fernanda de Souza –
Alfabetizando: o interesse dos alunos pela leitura feita pela professora.
101
A pesquisa ‘Alfabetizando: o interesse dos alunos pela leitura feita pela professora’ apontou que
praticamente só os alunos ‘alfabéticos’ têm interesse pela leitura; as crianças ‘não alfabéticas’
manuseiam livros mas ao não conseguir entendê-los, abandonam a atividade.

254
elaborados, sentidos, reagidos. Elas não conclamam grandes atores, mas alguém que
retire os personagens do papel e faça-os ressoar por outras vozes. Apontamos que
uma diferença fundamental a este respeito estabelece-se entre o ato de ler e o de
contar uma história memorizada.

Nossa posição é de que a leitura é importante – fundamental – para a


aprendizagem mas, quando estamos diante de crianças ainda pequenas, que iniciam
a educação básica e aí estão se abrindo para o universo dos textos gráficos, um tanto
de ‘narrador’ é preciso aflorar nos professores que as instrui. É preciso dar voz aos
personagens e com ela descrever a ambiência e paisagens, fazer falar suas emoções
e sensações. Para que uma criança chegue a ler um texto sozinha, ela precisa ser
‘apresentada’ aos textos; os textos precisam antes, chegar até ela. Como também
apontamos no Capítulo 3, um texto só se transmite quando ele é marcado por
significantes, quando há um relevo na linguagem que indica um elemento de
representação. Se o professor ler sem despregar os olhos do papel, sem dirigir um
olhar intrigante, duvidoso, alegre, triste, curioso, para seus alunos, correrá o risco
de perder uma das prerrogativas da transmissão textual, que é a modulação da
narrativa à sua plateia – acontecimento fundamental para o estabelecimento da
relação entre contador e ouvinte, como também apontaram Ong e Parry. De algum
modo, além da boca, o corpo do professor também tem que falar para estes
pequenos para quem os próprios corpos ainda expressam boa parte do que sentem.

Neste sentido, não basta só um bom texto! É preciso saber contar o enredo,
saber cativar a criança com os significantes das palavras e dos gestos. Enfim, é
preciso saber transmitir o texto.

No material didático da EA-FEUSP que analisamos, esta diferenciação entre ler


e contar, por exemplo, não aparece. Em todas as páginas em que os textos são
abordados lemos as expressões: ‘Escute a história que o professor vai ler’;
‘Professor, é importante a leitura deste texto’. E leitura nesta concepção, é tratada
como oralidade e como o ato que em si deve marcar o interesse dos alunos.

Identificamos tanto neste material didático, quanto nos relatos das pesquisas a
que nos referimos acima e nos dados oficias sobre as habilidades leitoras elencados
na Introdução desta tese, que a experiência com o texto é uma prática que tende a

255
desuso. Não por falta de interesse, como apontam as próprias crianças, mas pela
falta de prática ou de incentivo significante dos adultos junto a elas.

Mas, como veremos a seguir, este desinteresse não surgiu agora. Ele tem uma
história que vem se marcando progressiva e paulatinamente: a história dos
narradores e das experiências com as narrativas.

4.2.A TRANSMISSÃO NARRATIVA E A FUNÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Em 1936 Walter Benjamim descreveu o que é um narrador e suas funções, e


apontou para o fim das grandes narrativas e suas terríveis implicações para o
enredamento cultural. Indicou que a arte de narrar tem se afastado cada vez mais
das atuais civilizações, revelando uma fratura no universo de transmissões das
experiências e saberes, distanciadas no espaço e no tempo.

Benjamim identifica o narrador como sendo aquele que traz de longe, de outras
terras, diferentes experiências culturais e que, ao mesmo tempo, recolhe de seu
lugar de origem as histórias tradicionais, operando um intercâmbio entre estes dois
acontecimentos.

O narrador tem como fonte de sua arte as experiências transmitidas de pessoa


para pessoa, encontrando assim, nas histórias orais, seus maiores tesouros. Mesmo
com relação aos textos escritos, Benjamim ressalta que aqueles que decorrem das
culturas orais são mais relevantes do que aqueles produzidos no próprio ato de
escrever. A arte de narrar é a arte de intercambiar experiências e se ela tem se
extinguido, é porque as próprias experiências têm perdido valor, ou são tão terríveis
que os sujeitos temem transmiti-las (caso das guerras, por exemplo).

É assim, pois que quando as circunstâncias põem em cheque o presente e o


futuro, imediatamente some de cena a memória e com ela todas as possibilidades
narrativas inscritas no passado. A premência do ‘agora’ desvinculado da
Subjetividade dissipa qualquer lembrança quando não se pode contar com o dia de
amanhã. Podemos ver isso claramente em Primo Levi (1958) que, consternado com
o que encontra ao chegar no campo de concentração, sucumbe:

256
Aqui estou, então: no fundo do poço. Quando a necessidade aperta, aprende-se em
breve a apagar da nossa mente o passado e o futuro. Quinze dias depois da chegada, já
tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que
faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nosso corpo. [...] alguns de nós
têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro
dias, custamos a reconhecer-nos. [...] Resolvemos encontrar-nos, nós italianos, cada
domingo à noite, num canto do Campo, mas paramos logo com isso; era triste demais
contar-nos, encontrar-nos cada vez em menor número, cada vez mais disformes,
esquálidos. E custava caminhar até lá, por perto que fosse; e, ainda, encontrando-nos,
aconteceria de lembrar, pensar ... melhor não (LEVI, 1958: 35).

Lembrar do quê, quando a experiência é irrepresentável? Em casos derradeiros


como este a memória se retira e toda referência ao passado e ao presente aloja-se
no fundo do ser e compromete seu futuro. Sem memória passada não há narrativa
possível. Mas, como também sabemos a partir da psicanálise, a palavra permite
representar também o que é da ordem do abjeto, não para dissipá-lo, mas para
significá-lo de outro modo. Vemos exatamente isto na atitude de Levi com relação à
sua escrita: primeiro com relação a ele mesmo, que tendo sobrevivido a tamanhas
atrocidades, viu-se obrigado a não só lembrá-las, mas escrevê-las; segundo o
enorme legado deixado por seu testemunho do inominável horror, às gerações
futuras.

Sou consciente dos defeitos estruturais do livro e peço desculpas por eles. Se não de
fato, pelo menos como intenção e concepção o livro nasceu nos dias do Campo. A
necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre
nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de
competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa
necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí seu
caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por
ordem de urgência (LEVI, 1958: 7-8).

Este é o retrato do extremo da urgência narrativa – falamos da experiência


inassimilável de passar por humilhações e martírios físicos e psíquicos em um
campo de concentração – que mesmo diante da morte precisou se inscrever
buscando na memória lembranças tão dolorosas. Se, mesmo diante de tantas
adversidades é preciso lembrar e escrever, como então, entender o efeito amnésico
com relação às condições de alfabetização? Qual a situação limite em que nos

257
colocamos que o traçado da memória está cada vez mais fino e apagado, ou que o
texto não é mais tão importante?

Na sua origem, para Benjamim (1936), a narrativa pertence a um discurso vivo


que atribui beleza ao que já desapareceu e ao mesmo tempo é um ato de aconselhar,
no sentido menor de responder a perguntas e maior de sugerir a continuidade da
própria narrativa.

Diz o autor que para poder narrar e aconselhar é necessário saber fazê-los
verbalizando uma situação e sendo receptivo às sugestões alheias: O conselho tecido
na substância viva da existência tem um nome: sabedoria, [...] o lado épico da verdade
(BENJAMIM, 1936: 200-201). A narrativa decorre [...] da tradição oral, patrimônio da
poesia épica (idem: 201) e da experiência do narrador que relata aos ouvintes e que
também incorpora às suas narrativas o que ouve. Arriscamos dizer, então, que a
narrativa como coloca Benjamim, é o que aproxima os textos e a memória sócio
históricos daqueles subjetivos.

Para Benjamim a narrativa floresceu no meio dos artesãos que, enquanto


executavam seu trabalho, contavam e transmitiam a tradição local a seus
aprendizes; estes, por sua vez, geralmente vinham de fora e narravam suas histórias
e diferentes experiências enquanto aprendiam o ofício do mestre.

Podemos pensar que o narrador, para Benjamim, não é mais o rapsodo da Era
Clássica a que nos referimos no Capítulo 3, que presentificava memoravelmente
sempre o mesmo enredo mítico de inspiração divina, como forma de perpetuar a
tradição e as leis do povo, mas é aquele que tem uma experiência vivida
subjetivamente a ser transmitida. Podemos pensar, então, com relação à
alfabetização, que traços dessas experiências com a narrativa e com os textos têm se
apagado. Isto é o que parece evidenciar a atitude do professor que sabe ler, mas que
não vai adiante do texto lido – falta-lhe a experiência do narrador de Benjamim e
falta-lhe a experiência performática narrativa dos aedos; sobra-lhe o texto puro.

Diz Benjamim que geralmente a narrativa começa com a descrição das


circunstâncias em que o fato foi contado ou presenciado, mas nela não interessa que
se transmita, informe ou relate o fato em si, posto que ele emerge da vida do
narrador, que expressa sua marca de linguagem.

258
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as
histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto conta história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido (BENJAMIM, 1936: 205).

O bom narrador é aquele que também sabe escutar. É aquele que se arrisca um
tanto no lugar do Outro, de onde vem as vozes que lhe dizem algo; é aquele que crê
no que ouve com um ouvido e que abre o outro a suas próprias vozes. O bom
narrador/ouvinte é aquele que se divide, que se posiciona Subjetivamente ‘entre’ e
assim estabelece laço do distante ao próximo, da sua experiência com a do outro.

Também, contar uma história ou um causo enquanto se faz outra coisa, é bem
diferente de contar o que está sendo feito. Benjamim põe em paralelo dois
acontecimentos que configuram a narrativa: fazer alguma coisa e
concomitantemente esquecer-se de si no fluxo narrativo.

Benjamim atrela à arte de narrar, a arte da experiência. O que o artesão narra


não é aquilo que faz – a execução de seus artesanatos –, mas o que experimenta de
suas vivências, enquanto seu corpo trabalha – aquilo que busca em outras paragens
como expressão de sentidos. A atividade do corpo é embalada pela oralidade que
trabalha no mesmo ritmo, sendo, mutuamente, uma o algoritmo da outra. E, se
acontece de a oratória ser a reprodução do que faz o artesão, na narrativa ela não
aparece como díade descrição-informação, porém como um enredo também
artesanal, trabalhado liricamente nos meandros dos acontecimentos: a madeira ou
a pedra escolhidas para o entalhe conservam não só as propriedades físicas de seus
veios e formato, mas também a narrativa poética que sobre elas se faz: não se
constrói uma obra de qualquer modo e cada gesto escolhido para talhá-la encerra
uma história.

Esta experiência ‘entre’ está elidida da leitura, quando a única coisa que se tem
que fazer é abrir uma brochura em que estão dispostos textos que outros
escolheram e ler um deles, mesmo que sejam ‘inadequados’. Pensamos diferente,
pois a própria escolha do texto que será lido, contado ou declamado, deve ser
antecedida de trabalho experimentado, quando o que está em jogo é a Subjetividade
do professor e de cada aluno.

259
Vejamos um dado extraído do PROJETO “DESAFIOS”. Havia em uma sala de 1º.
Ano EFI um aluno que chamaremos VI, que apresentava problemas para
acompanhar as aulas. Desde o início do ano debatia-se com as letras para escrever
e ler, mas alcançou progressos até o final do primeiro semestre (passou de ‘pré-
silábico’ a ‘silábico’, no jargão Construtivista). Poderíamos parar nossa preleção aí,
uma vez que no processo de aquisição de escrita de VI estava dentro do esperado
para os padrões estabelecidos para uma classe de 1º. Ano.

No entanto, outras facetas do aluno chamavam atenção. Demorava para


executar as atividades, resistia muito a ouvir histórias (não participava das histórias
quando contadas, ficava circulando pela sala e, quando era chamado a participar,
sentava-se disperso) e suas narrativas eram bastante pobres. Estas atitudes
permaneceram as mesmas do início do ano ao começo do segundo semestre letivo.
Como comportamento apresentava uma aparente dicotomia bem interessante:
chorava muito, babava e chupava incessantemente a manga da camisa, mas nas
brincadeiras só se aventurava em duas coisas: jogar videogame ou brincar de
mocinho e bandido – desde que ele fosse o bandido fortão que roubava, brigava e
matava. Não parecia ter problemas com a compreensão das atividades, mas
recusava-se a elas (‘são chatas’, ‘não quero fazer agora’) e quando era mais
incisivamente solicitado a fazer, chorava. Na sala havia dois alunos que às vezes se
dispunham a brincar com ele de mocinho e bandido.

Junto com o professor regente, pensávamos por quais vias podíamos tentar
ajudá-lo e assim fizemos atendimentos individuais de jogos, de leitura e escrita,
contação de história em pequenos grupos, mas os efeitos conseguidos eram
momentâneos e sempre retornava a seu padrão comportamental. O incômodo
verdadeiro com relação à sua postura, no entanto, aconteceu no dia em que, tendo
sido recusado pelos companheiros de jogo a brincar de bandido e mocinho, VI
começou a chorar muito. A cena chamou a atenção de todos e precisava de uma
solução para além dos comandos óbvios: ‘não precisa chorar...’, ‘brinque de outra
coisa...’.

Um dia, buscando um poema para trabalhar com outra criança, deparei-me com
este de Cecília Meireles:

O violão e o vilão

260
Havia a viola da vida.
A viola e o violão.

Do vilão era a viola.


E da Olívia o violão.

O violão da Olívia dava


vida à vila, à vila dela.

O violão duvidava
da vida, da viola dela.

Não vive Olívia na vila,


na vila, nem na viola.
O vilão levou-lhe a vida,
levando o violão dela.

No vale, a vila de Olívia,


vela a vida
no seu violão vivida
e por um vilão levada.

Vida de Olívia – levada


por um vilão violento.
Violeta violada
pela viola do vento (MEIRELES, 2002: 85).

Foi inevitável relacioná-lo a VI, não só pela associação bandido/vilão, mas pelas
insinuações a seu nome: VI. Ocorreu-me que não custava tentar alguma coisa por ali
– ainda que fosse só mais uma tentativa. Fiz três cópias do poema e levei-as para sala
de aula. Chamei VI e seus dois companheiros de brincadeira para uma atividade
‘secreta e misteriosa’. Sentamos em um canto da sala e contei-lhes que achara um
texto secreto sobre vilões. A curiosidade já se aguçava nos olhos dos três; mostrei-
lhes as folhas com o poema e perguntei se poderiam ajudar-me a entendê-lo.
Imediatamente os dois companheiros puseram-se a ler o poema, enquanto VI, sem
podê-lo, perguntava-me coisas:

– É sobre bandido?

– Muito pior que isto! O vilão é um bandido muito, muito mais poderoso!

– Eu quero saber!

– Ele levou o violão de Olívia e outras coisas junto...

261
– O que mais ele levou?

– Vamos ler para saber?

– ... eu não consigo ler... ainda...

(‘Ainda’ já era o prenúncio de uma boa coisa. Desejo de ler, portanto, havia).

– Eu te ajudo a ler. Eu leio e você faz um esforço para me acompanhar como quiser.

– Pode ser assim com o dedo?

– Pode.

Coloquei a folha entre nós dois e devagar comecei declamando os versos


decorados, depois li um pouco e VI empenhava-se para seguir. Permaneci atenta a
suas demandas. Ao terminarmos pediu que eu repetisse, e mais uma vez. Aconteceu
então alguma coisa inesperada, embora provocada: a cada vez que eu falava ‘vilão’
VI exaltava-se e dizia: ‘Este é meu! Este é meu!’. Instalou-se algo identitário entre ele
e a narrativa.

Em conjunto os três alunos resolveram que leriam o poema para o resto da sala,
mas ainda havia o problema de VI não saber ler. Então sugeri que ele decorasse o
texto. E assim fizemos – ele fez! –: recitei-lhe o poema algumas vezes mais, que ele
repetia em seguida; levou a folha para casa e pediu que o pai o ajudasse. Uma semana
depois ele e os amigos, orgulhosamente, mostraram à classe o trabalho feito. Não foi
de longe uma super declamação/leitura, mas foi um momento importantíssimo para
aquele menino que antes se escondia entre choros e socos, e agora compartilhava
outra identidade sua.

Espontaneamente VI disse que queria escrever ‘todas aquelas palavras’ mas não
sabia como; sugeri que as copiasse, então ele escreveu em uma folha todas as
palavras do poema que começavam com ‘vi’ e conservou-a na sua mochila junto com
o poema. Às vezes vinha falar sobre aquelas palavras.

Depois desta atividade muito mudou da postura de VI em sala de aula, não só


com relação às propostas de escrita, mas principalmente com relação aos choros
(que praticamente sumiram), às narrativas e brincadeiras: permitia-se ouvir as
primeiras e diversificar as segundas.

Ao deixarmos de lado o modo exclusivo de prospecção sobre a escrita do aluno


e suas hipóteses, e tomarmos a criança em todas as manifestações que revelam

262
experiências Subjetivas, nos deparamos exatamente com o que há de singular
naquilo que facilita ou dificulta sua aprendizagem. No entanto, chegar aos meandros
do encontro com esta Subjetividade não é nem simples, nem previsível: é preciso
olharmos também para nossa experiência nesta relação. É sempre uma aposta! – já
havíamos tentado outras com VI. Foi só quando nos incomodamos com a insistência
do choro/bandidagem e não soubemos realmente o que fazer com isto, é que
pudemos enxergar seu movimento Subjetivo. Ou seja, foi quando conseguimos usar
seu modo Subjetivo de se colocar, sem ignorá-lo (o bandido tomado de outro modo)
é que pudemos oferecer-lhe algo diferente, uma diversidade com critério estético e
que permitiu à criança experienciar por dentro da linguagem e fora do corpo.

Vimos no capítulo anterior, nos exemplos extraídos do material didático do


PNLD da EA-FEUSP, como é pobre a proposta de se trabalhar com os textos, que dão
mais relevo às atividades de nomeação de título e autor, ou de exploração da forma
e do gênero textual, do às narrativas em si. Há alguns exemplos de bons textos
expostos naquele mesmo material didático, como um poema de Tatiana Belinky, ou
uma versão adaptada de um conto de Hans Christian Andersen, ou histórias de Eva
Furnari, entre outros, mas em sua grande maioria são textos extraídos do cotidiano
social pragmático, na forma de recortes de noticiários, campanhas públicas, receitas,
enfim, elementos pobres em figuras poéticas e em errâncias narrativas. Pouco são
utilizados os textos clássicos consagrados e quando o são, frequentemente
priorizam-se as ‘versões’ modernas revisadas – como a versão da fábula que
também vimos no Capítulo 3, ou mesmo do conto de Andersen – em que se
eliminaram as palavras difíceis/pouco usuais, as frases longas e subordinadas,
substituindo-as por formas linguísticas mais simples sem muitos relevos estético-
poéticos.

Outro aspecto que chama atenção no material didático é o excesso de recurso


aos elementos iconográficos, usados de maneira a não explorar também a
imaginação infantil. Estes elementos de imagens frequentemente vêm
acompanhados de legendas, explicações demasiadas que saturam de informações e
não permitem brechas por onde a criança possa entrar com seus recursos
fantasísticos. Por exemplo, encontramos na página 84 deste material uma proposta
de atividade com adivinha, como podemos ver na Figura 12:

263
Figura 12: Excerto da página 84 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2012-2010

É interessante notar a pouca energia exigida da criança para decifrar o enigma.


Se ela estiver completamente ausente da atividade, ainda assim terá um terço de
chance de acertar a resposta, dado que ela é estampada como imagem. Mas o engano
desta atividade começa na forma de propô-la por meio de leitura. A adivinha, como
um gênero da oralidade, enreda uma série de trabalhos, tanto do proponente,
quanto do adivinhador, que se perde na sua versão escrita. Assim escrito e lido, o
professor não é obrigado a memorizar a adivinha e manter um repertório destes
jogos de linguagem com o que poderia desafiar seus alunos em diferentes momentos
da aula; também perde a oportunidade de experimentar a brincadeira e vê-la
repercutir em seus alunos como desafios que eles precisam superar.

Ao reforçar nas comandas do exercício a importância de ‘ler para que a criança


acompanhe o registro escrito’, fica claro que a atividade foi elaborada com o
propósito de verificar a capacidade de leitura gráfica, o que põe o aluno no caminho
da decifração dos signos gráficos e não da charada. Na oralidade a criança teria que
se esforçar na direção de uma leitura inferencial para destrinchar o jogo de sentidos
que cada frase da adivinha propõe, e trabalhar retroagindo sobre estes sentidos a
partir das frases seguintes – um esforço mental superior, portanto, seria exigido. A

264
forma como é proposta no papel destaca com seriedade a leitura e a escrita gráficas
e esquece-se da seriedade da memorização, do trabalho mental, da leitura subjetiva
e da brincadeira que supõe um desafio. Como expressa Belintane a este respeito:

A leitura inferencial – a única que de fato interessa – tem na adivinha uma matriz e um
modo de posicionamento subjetivo dos mais caros e importantes para o ensino de
leitura. Infelizmente, sua inserção na prática se dá sem o menor cuidado. Em geral, é
tratada sem levar em conta seu aspecto performático, apenas como escrita. A voz de
esfinge que tira da memória uma adivinha e a atitude do adivinhador que a põe na
memória para analisar suas ciladas linguísticas em geral não são levadas em conta. Mas,
concluindo esse tópico: a adivinha é uma arma contra o mundo parafrástico cotidiano
(BELINTANE, 2011: 178).

Como um dos gêneros textuais oriundos da oralidade (que mencionamos no


Capítulo 3), Belintane retoma no texto de 2011 um artigo seu de 2007 em que
explora a posição Subjetiva do leitor diante das adivinhas e dos enigmas impostos
pelo texto. Estabelece uma divisão entre o leitor-evitador – aquele que desde uma
postura passiva não entra no jogo das palavras e não se arrisca – e o leitor-
adivinhador – aquele que não teme [...] a ameaça de devoração da esfinge, aceita
memorizar o texto proposto e, entre seus fragmentos, deixa correr outros textos
advindos de sua memória linguística e discursiva (BELINTANE, 2011: 168). Este último
é o leitor que enfrenta as metáforas e as metonímias, desmonta nonsenses e
estranhamentos do texto que vem do Outro. O autor propõe que este gênero textual
seja trabalhado didaticamente em sala de aula, da mesma forma como é formulado
na sua origem: oralmente. Desta maneira as matrizes enigmáticas são exploradas
em seus potenciais figurativos e de habilidades linguageiras, sem desconsiderar,
ademais, o esforço mnêmico exigido para decorar as adivinhas com que se propõe o
desafio a outros.

O que vemos em atividades como esta do material didático é que vão na


contramão de nossas propostas, uma vez que são mecanismos que apelam para
perfis objetivos, sem permitir a deriva subjetiva que brinca e se arrisca a um sentido
novo. As atividades que giram somente em torno dos registros gráficos de escrita e
sua leitura desconsideram três instâncias supostas e diretamente implicadas nestas
atividades: o corpo, o desejo e a relação.

265
Quando o foco central desta experiência fica limitado à escrita e leitura gráficas,
os espaços da dúvida e do não saber ficam contidos e delimitados pelas bordas do
papel (especialmente se a resposta também está aí presente), das quais o alunos mal
pode levantar os olhos sem o prejuízo de perder algum acontecimento importante.
Para qualquer confusão de registro gráfico, de leitura ou pensamento, a palavra
‘hipótese’ vem socorrer: a hipótese é o nome para aquilo que ainda não está correto.

Também sobre a experiência com adivinhas em sala de aula, temos o que falar.
Na pesquisa empreendida pelo PROJETO “DESAFIOS” lançamos mão do jogo de
adivinhas com os alunos. Inicialmente propusemos uma ou outra para toda sala;
depois pedindo que os alunos investigassem com seus familiares o repertório
caseiro de adivinhas; em seguida, solicitamos que memorizassem as adivinhas para
desafiar os colegas; e por fim, que escrevessem algumas adivinhas. O ápice da
atividade era a competição de adivinhas, em que a sala era dividida em grupos que
se desafiavam mutuamente. Vale ressaltar que também os professores se colocavam
no desafio de memorizar e responder adivinhas.

Outro desafio proposto a partir deste tema, foi de os alunos criarem as suas
adivinhas. Esta certamente foi a tarefa mais difícil, uma vez que todos partiam de
frases descritivas como ‘O que é o que é, que é branco por dentro e amarelo por fora
e que macaco gosta? (banana)’, ou de um enigma pessoal, sem relevo metafórico
como ‘O que é o que é, eu comprei ontem, começa com L, termina com O e não é de
comer? (livro)’.

Não é fácil compreender imediatamente a estrutura de uma adivinha, nem


esperávamos que os alunos fossem capazes de tal empreitada, mas exercícios desta
ordem agitam o pensamento infantil, que rapidamente passam a identificar quando
estão diante de uma verdadeira adivinha. Na sala de 1º. Ano EFI acompanhada no
ano de 2012, das 20 crianças, só uma apropriou-se parcialmente da compreensão
do que é uma adivinha, sendo que as outras 19 atingiram plenamente o objetivo da
atividade.

A adivinha também serviu-nos para trabalhar individualmente ou em pequenos


grupos com alguns alunos. Destaco aqui um episódio acontecido com duas crianças,
parceiras de muitas brincadeiras que envolviam faz-de-conta com bruxas e fadas.

266
Ambas apresentavam dificuldades com leitura e concentração e durante um dos
atendimentos em dupla propus a seguinte adivinha:

É varinha de condão

Quando bate na caixinha

Faz luz na escuridão

Encantaram-se imediatamente com a visão da varinha de condão. Não foram


capazes de decifrar a adivinha no dia, pois procuravam respostas literais no próprio
texto – ‘É a varinha da fada!’, ‘É caixinha de música!’. Não lhes dei a resposta,
portanto intrigaram-se com a adivinha; dois dias depois uma das meninas
desvendou-a com a ajuda dos pais e contou à outra. Em atividade de desafio que os
alunos se propuseram em sala, estas duas crianças quiseram apresentar a mesma
adivinha:

Aluna 1 (de memória) – ‘A varinha que toca na caixinha faz luz na escuridão’.

Aluna 2 (lendo) – ‘É varinha de condão; quando bate na caixinha; faz luz na escuridão’.

Respostas dos alunos: ‘Lanterna’, ‘Vara’, ‘Luz’, ‘Lápis’, ‘O dedo quando encosta no
interruptor’, ‘É o palito de fósforo’ (a resposta certa).

Diante da resposta correta um aluno complementou ‘Mas o fósforo é muito


pequeno para ser uma varinha de condão’, em clara demonstração de que ainda
estava preso ao sentido pragmático do objeto (como fizeram as duas alunas antes)
e não ao sentido metafórico dele.

Analisamos as diferentes posturas das duas alunas ao exporem a adivinha aos


colegas, em que a primeira, mesmo tendo sintetizado o texto, fez um esforço
mnêmico para retê-lo – prova de que sua desatenção não pode ser generalizada; a
segunda destacou-se pelo esforço de leitura, com a qual se debatia em muitos
momentos. A fascinação das duas meninas expressou-se no que disseram em
seguida: (a primeira) ‘Você viu que eu consegui decorar?’ e (a segunda) ‘Você viu
que eu li?’, conquistas preciosas para ambas.

Observamos neste tipo de atividade aparentemente simples, o envolvimento


prazeroso da criança em cada etapa do acontecimento: arriscar-se a desvendar o
mistério, memorizar e desafiar outros, descobrir uma adivinha que ninguém
conhece, escrever e ler a sua adivinha.

267
Diante de possibilidades tão diversas de efeitos das adivinhas sobre as crianças,
julgamos muito pobre, além de equivocada, a proposta de trabalho do material
didático do PNLD da EA-FEUSP com relação a este tema.

Outro ponto que nos chamou a atenção ao longo deste material didático que
analisamos, foi a quantidade de orientações dadas a professores e alunos, deixando
pouco espaço para a divagação ou exploração de outros conhecimentos, ou modos
de conhecer. Assim como também nos impressionou a opção privilegiada por textos
do tipo revisados, sintéticos, de linguagem simplificada.

Tentamos encontrar justificativas para este tipo de opção textual e


consideramos o fato de que, por trás das versões atualizadas, deve haver uma aposta
nos conceitos ‘novos’ e ‘arrojados’, termos adotados por uma modernidade prática
e tecnicista que quer se ver livre de tudo o que é ‘velho’, ‘antigo’ e ‘complexo’ –
incluídos aí os acontecimentos da oralidade. Mas observamos também que este
movimento deita fora os elementos da tradição e da história, das experiências
passadas em que se ancoram as narrativas, comprometendo a possibilidade da
criança em formação constituir sua essência infantil. Entretanto as consequências
não se encerram aí e são mais sérias que estas. Quando se retira a experiência
propriamente infantil da criança, em seu lugar outra coisa comprometedora é posta.
Mas antes de chegarmos a ela, vejamos sua origem na história.

4.3.OS MEANDROS DA MODERNIDADE

A Era Moderna é datável. Surgiu no século XVI-XVII com a expansão do mundo


europeu para além mares, com a ascensão da burguesia na esfera econômica e com
a decadência do poderio da Igreja Católica. Teve início no intercâmbio mundial de
culturas, víveres e línguas. No âmbito da filosofia René Descartes inaugurou a
modernidade propondo compreender os conceitos de corpo e alma, desde
parâmetros metafísicos102.

As necessidades de compreender o que é próprio do humano e de distinguir o


verdadeiro do falso, levaram este pensador à questão de como o Homem procede

102
Retomo aqui considerações já estabelecidas na dissertação de mestrado, BATTAGLIA, 2001.

268
para conhecer verdadeiramente a realidade; desta forma, poderia, ao mesmo tempo,
saber sobre si e sobre as coisas do mundo. Partiu do princípio de que muitas vezes
(ainda que não sempre) o homem se enganava com suas próprias sensações
corporais (táteis, auditivas, etc.), portanto era preciso estabelecer um método que
fosse universal, aplicável a tudo e por todos, e que dissipasse as dívidas vindas do
corpo: o método matemático103.

Descartes (1641) construiu a sua certeza através da ‘subjetividade racional’,


partindo da crítica radical a todo saber. Duvidou de tudo o que se conhecia até então,
da existência das coisas materiais e da forma como se conhecia. Elevou sua questão
ao ponto em que sobrou uma só certeza (que era o próprio princípio de todo
conhecimento): a de que duvidava. Se esta certeza não pudesse lhe ser dada pelas
sensações do corpo – que poderiam ser falsas acertivas – ela só poderia vir de um
outro lugar: do pensamento. A sua única convicção era de que ao duvidar de tudo,
pensava e seu pensamento, inegavelmente, existia. A afirmação categórica da
existência só seria possível como ‘substância pensante’, pois não duvidava de que
pensava, imaginava e sentia, ainda que duvidasse da veracidade do conteúdo de seus
pensamentos e sentimentos. Com a suspensão do juízo sobre todas as coisas, a única
revelação imediata de existência, seria do ‘eu’ que, pensando, duvida – de onde a
máxima cartesiana: ‘Penso, logo existo’.

À afirmativa de que o pensamento existe, somou-se a de que ele existe em algum


lugar, em um corpo que lhe dá suporte. Tendo duvidado anteriormente da matéria,
agora afirma que sua existência é possível como ‘substância extensa’, cuja qualidade
é dada somente pela extensão em comprimento, largura e profundidade. Esta
substância extensa, contrário da substância pensante, é divisível em partes e, pelo
pensamento, analisável.

De um lado, portanto, a existência pelo pensamento, de outro, a essência pela


matéria e ambas feitas de substâncias distintas que não se confundem. O corpo
divisível, sente; a alma indivisível, pensa. Para Descartes a tentativa de juntá-los,

103
Este método cartesiano estava disposto em quatro regras fundamentais: a evidência (ato racional
em que, na mente atenta, não paire nenhuma dúvida acerca do pensamento); a análise (divisão do
problema na menor parte essencial possível e necessária para ser resolvido); a síntese (condução do
pensamento por ordem, a partir do objeto mais simples e fácil de conhecer) e finalmente a
enumeração (controle da disposição de todos os elementos).

269
pela imaginação104, é o que poderia levar a confusões e conclusões falsas a respeito
das coisas. Neste ponto o pensador retorna ao divino: Deus é bondoso e não se
compraz de enganar os homens; se sei que penso e que o pensamento existe (e nele
o ‘eu’), é porque o Ser Supremo deu este dom aos homens para que dissipassem as
imprecisões naturais de seu pensamento.

A percepção subjetiva do corpo que antes tomava por verdadeiros os


conhecimentos falsos, passou a ser guiado pelo pensamento racional e objetivo,
capaz de dissipar as distorções dos objetos. A partir do método vindo da matemática,
seria possível à razão conhecer a matéria, dividindo e controlando-a de maneira
correta. Sem a interferência das fantasias, das imagens distorcidas e dos
misticismos, e sendo o corpo elevado ao atributo da extensão, a ele poderia ser
conferido o fundamento cartesiano da física mecânica: sujeito às leis da inércia de
repouso, de movimento retilíneo ou da conservação do movimento.

Ao humano ficou reservada a racionalidade como um diferencial em relação aos


outros animais. As emoções, as paixões que vêm do corpo colocam o homem em
posição de subserviência e impedem a distinção entre o bem e o mal, e entre
verdadeiro e falso. Por isto, para o pensamento cartesiano, as paixões precisam ser,
o mais possível, guiadas pela razão. A maior inteligência se sustenta pela maior
capacidade de a razão fazer estas distinções.

É esta consideração final que justifica termos ido tão longe na história do
pensamento em busca de subsídios para esta tese. Analisamos que esta partição da
essência humana, que prioriza a razão no campo da inteligência, é o que dá suporte
aos vieses pragmáticos do ensino contemporâneo, mais objetivo, pragmático e
informativo, desconsiderando o que é próprio das errâncias do Sujeito, de sua
linguagem e memória. É um pensamento que justifica, desde a alfabetização, a
priorização do ensino da compreensão formal dos elementos textuais e não o
contato com o texto e seus relevos estéticos, linguageiros. Este pragmatismo é que

104
Imaginação: faculdade que se utiliza de recursos figurativos (não de conceitos) e, diferente do
pensamento, tem alcance limitado. Como faculdade, não é, ela mesma, substância em si, mas extrai
sua ‘matéria-prima’ das coisas materiais (ABBAGNANO, 1992).

270
está presente na elaboração de materiais didáticos observados por nós tanto no
livro do PNLD da EA-FEUSP, quanto nos encontros científicos105 da área.

Retomamos aqui o modelo da Banda de Moëbius, justamente para recolocar em


continuidade as realidades verdadeira e falsa, objetiva e subjetiva. Como vimos no
Capítulo 3 com o estabelecimento da alternância presença/ausência, aqui também
não há possibilidade de um elemento ser descolado do seu negativo, posto que se
fundam juntos. A modulação que faz pender o braço para um ou outro lado da
balança, depende dos relevos da linguagem que incluem, ao mesmo tempo, a
racionalidade consciente, mas também as incidências do inconsciente. (Que se
esclareça que nossa discordância não se dá com relação à complexa elaboração
teórica de Descartes, posto que para a laboração de seu pensamento ainda não tinha
à sua disposição teorias como as da linguística ou da psicanálise, mas nosso
desacordo se dá com pensamentos atuais que insistem na supremacia da
racionalização e levam-na para dentro das escolas como o único e verdadeiro modo
de pensar e ensinar).

Retomando Descartes, a razão passa, assim, a ser a principal regente do


pensamento e das experiências humanas. Mas se ele ainda era bastante crediário de
Deus, esta referência aos poucos também se dissipa da racionalidade moderna que
se segue.

O texto de Immanuel Kant (1783) ‘Resposta à pergunta: o que é o


esclarecimento?’, inaugura uma atitude e um pensamento de duplo
comprometimento filosófico-social, considerando a razão como seu pano de fundo:
ao mesmo tempo em que se deve procurar entender o presente (que no caso de Kant
é o próprio Iluminismo fundado na modernidade), deve-se verificar os seus limites.
Consagra-se assim o moto-contínuo no qual a modernidade deveria se fazer
permanentemente crítica dela mesma, ressituando o ser moderno a cada instante.

Grosso modo o Iluminismo propõe o desvencilhamento humano da tutela divina,


para exercer livremente suas capacidades de pensar e agir. A razão, agora
subsidiária da produção humana, substitui a universalidade, a verdade e a

105
Refiro-me aqui, não só ao evento analisado anteriormente neste capítulo, como também ao
‘Seminário: Interação e Subjetividade no Ensino de Língua’ (II SISEL), ocorrido em Belém, em
setembro de 2011, no qual tive a oportunidade de assistir a inúmeras apresentações sobre o ensino
da língua priorizando as concepções de gênero de textuais desde as séries inicias da alfabetização.

271
transcendência antes presentes a partir de Deus ou pertencentes a Ele. É a razão que
faz superar o medo e o desconhecido; é ela que através da crítica e do conhecimento
não permite a aceitação incondicional das coisas como se apresentam. A garantia de
que a razão opere como verdade é a constante produção de críticas sobre si mesma.
A liberdade, autonomia e emancipação com relação a Deus expressam-se em termos
individuais e sociais e produzem-se na sua essência e existência. Na ótica do
Iluminismo todas as esferas de ação do Homem desfrutam da razão como meio de
concebê-las e compreendê-las.

Podemos pensar que é exatamente deste ponto em que a crítica deve ser auto
referida, que a modernidade contemporânea começou a declinar de seus preceitos.
Aos poucos a razão foi se dirigindo cada vez mais à compreensão e conhecimento de
elementos específicos do objeto, e os fundamentos dos pensamentos foram sendo
desvinculados de uma visão geral dos acontecimentos para atrelarem-se a seus
fragmentos, cujas causas e consequências encerram-se em si mesmas. Por exemplo,
retomando discussão sobre a medicalização excessiva de alunos, que apontamos no
Capítulo 1 desta tese, ao se tentar circunscrever as dificuldades de aprendizagem a
déficits orgânicos de cada sujeito, perde-se a dimensão das discussões sobre a
expropriação do saber pela escola, sobre a incidência mercadológica das indústrias
farmacêuticas, sobre a biologização do corpo humano, entre outras. Identificamos
que a circunscrição cada vez maior de objetos de conhecimento e ação, guiada
prioritariamente pela razão, turva a possibilidade de dimensionar os
acontecimentos humanos em sua essência e consequência.

Mas, se chegamos a este ponto de supressão da crítica, é porque a modernidade


não finalizou seu trajeto no Iluminismo. A modernidade que se estampava no século
XVIII com o Iluminismo é ainda diversa daquela que se consagra no século seguinte
e que tem como maior expoente o poeta Charles Baudelaire, a quem Benjamin
(1969) dedica estudos aprofundados. Na concepção do filósofo, o artista inaugura
com sua arte uma atitude de modernidade que goza da conquista da experiência
imediata. Essa arte deixa de ser a codificação da experiência sensível transformada
em resultados adequados a princípios e convenções que reproduzem o eterno e o
transcendente, e passa a ser o retrato do corruptível, do efêmero, do passageiro e do
contingente cotidiano. O próprio caráter de eterno – antes tão caro à Igreja,

272
reproduzido como simulacro do imortal – para Baudelaire só faz sentido se ele se
transpõe para a obra em si. É o compromisso do objeto com o novo e efêmero que
interessa a esta modernidade – oposto, pois, aos preceitos cartesianos.

O que significa introduzir o efêmero e o passageiro na modernidade? Para


Benjamim (1969) são duas as decorrências desta intromissão. A primeira ligada ao
que de corruptível é desvelado no cotidiano humano – e que Baudelaire retrata tão
bem em sua arte, como nestes versos do poema ‘Une charogne’.

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,


Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu’ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe


Comme une fleur s’épanouir.
La puanteur était si fort, que sur l’herbe
Vous crûtes vous évanouir (BAUDELAIRE, 1857, 30)106.

Ou seja, vemos em Baudelaire o resgate daquilo que Descartes rechaçou em


princípio – a corruptibilidade do corpo humano – para colocá-lo no centro dos
acontecimentos: esta é a essência humana que deve ser vista de perto.

A segunda decorrência apontada por Benjamim está relacionada à mudança na


forma de se apresentarem as obras humanas – estas também temporárias. A arte
deixa de ser prerrogativa dos museus, ganha as ruas e aos poucos se procede sua
desmontagem: a tela plana ganha adereços tridimensionais; o teatro vira
performance; a sinfonia harmônica fica dissonante; a figura torna-se só cor; o traço
é visto no gesto; a fala transforma-se em grito e o som em silêncio.

Essa mudança é cara a Benjamin (1969) pois o que se transforma radicalmente


é a experiência da / com a obra de arte. Nada mais está ali para ser apreendido como
retrato fiel e eterno da realidade. A realidade precisa ser construída dentro da
experiência cotidiana e claudicante do Homem. O acontecimento efêmero,
transitório, corruptível e finito que se interpõem exige o trabalho reconstitutivo da

106
‘Uma carniça’, poema escrito em 48 versos e 12 estrofes, da qual extraímos os versos de 9 a 16,
cuja tradução feita por Ivan Junqueira (1985) é: Ardia o sol naquela pútrida torpeza,/Como a cozê-la
em rubra pira,/E para o cêntuplo volver à Natureza/Tudo o que ali ela reunira;/E o céu olhava do alto
a esplêndida carcaça/Como uma flor a se entreabrir./O fedor era tal que sobre a relva
escassa/Chegaste quase a sucumbir.

273
memória. Esse processo de rememoração, entretanto, não deve ser uma exaltação
do passado e de seus modelos de eficácia, senão que deve ser um processo de
elaboração psíquica das errâncias e fissuras daquilo que do passado não foi
compreendido. Busca-se no novo comportamento moderno uma duração, uma
temporalidade fragmentária e fugidia, como permanente tentativa de conciliar o
eterno e o transitório.

Fundamental para essa elaboração é o conceito de alegoria de Benjamin (1969).


No cotidiano algo sempre se perde, deixando o Homem em permanente falta. Não
tampar este buraco e reconhecer continuamente a condição lacunar deveria ser
prerrogativa deste Homem moderno – justamente a condição que atualmente
parece estar em cheque. A alegoria é o que se vale da falta e permite o resgate dos
restos dispersos e incompreendidos do passado, para transformá-los em algo novo,
em experiência diversa. No lugar do impossível surge o mundo da representação, da
alegoria, que nos coloca diante do finito, do limite; e o ideal é aquilo que é o possível
no dia-a-dia. A representação condensa fragmentos, alude a algo que não tem
figuração, mas que indica que aquém houve uma omissão a ser resgatada. Alegorizar
é uma ação que não se sabe ao fazer – se podemos ousar, é o trabalho com o ‘desútil’;
é também o que possibilita uma abertura futura que aposta em um sentido fora da
tradição, sem deixar, no entanto, de considerá-la.

Estes são pontos das considerações de Benjamim que nos interessam para
pensar a educação, em especial a alfabetização, pois vemos na condição faltosa e
evanescente do Homem a possibilidade da experiência que acontece ‘entre’
lembrança e esquecimento, eterno e temporário, passado e presente, todo e parte;
tradição e contemporaneidade. Apropriando-nos de sua concepção de alegoria e
também da análise que faz de Baudelaire, para nós os textos, as narrativas a serem
trabalhadas em sala de aula funcionam como a obra de arte para o artista: nada mais
é o retrato fiel da realidade, que precisa ser apreendida pela experiência cotidiana
de reconstituição do efêmero, do corruptível, do que faz interstício e interroga o
sujeito. A partir da falta implicada em qualquer sujeito e revelada nos processos de
aprendizagem, o trabalho Subjetivo tratará de reconstituir a memória e constituir
estratégias que envolvam habilidades leitoras e de escrita, enredando os textos (e
os Textos).

274
Para Benjamim a produção de aberturas necessárias à alegoria aponta que é
possível pensar em novas subjetividades, pois aquilo que se mostra tem sua
significação sempre em outro lugar – e, diríamos, em Outro lugar. O mesmo se dá
com as relações institucionais e em todas as relações humanas. Significante e
significado não mais se amalgamam e a alegoria não acolhe os significados originais
aparentes, mas trabalha na diversidade. O símbolo eterno e estanque não se
sustenta mais. Abre-se espaço para a temporalidade da memória, para a realização
entre o latente e o mostrado.

Boa parte das atividades leitoras desenvolvidas em salas de aulas no PROJETO


“DESAFIOS” tem este pressuposto de aproximar aquilo que é o eterno de Benjamim
(os textos oriundos da oralidade) do que é transitório (as escritas e as leituras
cotidianas cujas representações se modificam a cada dia na busca de
intertextualidades). Reservaremos para o Capítulo 5 a ilustração de como tomamos
estas considerações de Benjamim em atividade de sala de aula; não fazemos o relato
aqui por tratar-se de exposição mais longa, que interromperia o fluxo discursivo
sobre a modernidade e sobre o ponto em que queremos chegar: da alegação do fim
das narrativas e das disposições contrárias que defendemos.

A humanidade produz signos fortes – os que são transmitidos de geração em


geração e que compõem as tradições –, mas como esses não devem ser tomados
como estanques em seus sentidos, faz-se necessário ir além deles e estabelecer a
busca do sentido latente. Existem formações incompreendidas que participam dos
grandes acontecimentos. A possibilidade de representação onírica fundada por
Freud (1900) é o emblema deste trabalho de abertura para uma nova elaboração.

Entretanto esta abertura abriga perigo e ambiguidade. Dentre as grandes


mudanças e elaborações sociais, as vanguardas do final do século XIX e começo do
XX tiveram papel decisivo no comportamento contemporâneo. Elas trabalharam
fundamentadas em pensamentos que questionaram e romperam com o passado da
tradição, redirecionando para novas formas de comportamento mais autônomos
com relação às referências anteriores. Identificadas com pensamentos e ações
revolucionários/inovadores do ponto de vista epistemológico, as vanguardas
tiveram papel decisivo nas áreas das ciências, políticas, artes, entre outras, mas
paulatinamente estes pensamentos-atitudes deixaram de ser questionadores do

275
passado e foram sendo incorporadas pelo cotidiano moderno, até deixarem de
significar o impacto do novo e do diferente – o ponto de perigo ao qual convergimos
hoje – da mesma forma, que as utopias revolucionárias deixaram de ser acreditadas.
A negatividade e a criticidade incluíram-se no coloquial, mas sem fundamento,
diluídas na pura oposição ao antigo, tomado como sinônimo de atrasado. A
racionalidade moderna incorporou aqueles descaminhos vanguardistas,
reformatando-os, reproduzindo-os e abrandando os efeitos do questionamento,
para ficar só com o rechaço ao passado/antigo/obsoleto.

Com o fim da eficácia das vanguardas, aquilo que choca está em suspensão e a
criticidade deixa de ser pensada. Agora ela é agida.

Identificamos na negativação/depreciação dos elementos da tradição, as raízes


de um modo de agir que busca incessantemente as ‘novidades’. Mas não há como
forjar um ‘novo’ a partir de nada; é preciso sempre haver uma história pregressa,
herdeiros que somos da linguagem e da cultura. A questão é que este impasse não é
tomado como um problema, senão que é ignorado através da crença de que basta
não mencionar o velho. A partir daí faz-se um recorte dele, se o transforma em outra
coisa e dá-se a esta coisa a alcunha de novo/inédito. Sob este manto estão as
‘versões’ de textos oferecidas às crianças nas escolas (e fora delas), como a que
vimos no Capítulo 3 com a fábula. A novidade é a simplificação, a eliminação de tudo
que possa gerar dupla interpretação e incômodos: tudo é bem explicado e contido
para não gerar dúvidas.

Talvez um dos extremos a que podemos nos referir neste sentido seja o
acontecimento em torno do livro de contos escrito por Moacir Scliar, intitulado ‘Max
e os Felinos’ (1981), cuja principal história é de um homem que, fugindo da
Alemanha nazista, vem para o Brasil, mas vê seu navio afundado e é obrigado a
sobreviver em um bote com um jaguar (também sobrevivente do naufrágio). Vinte
e um anos depois de Scliar ter escrito seu conto, um indivíduo canadense publicou
um livro com o mesmo conteúdo, alterando a nacionalidade do personagem, seu país
de destino e o felino sobre o bote. Cópia clara para muitos, Scliar declinou de
processar o sujeito por não considerar o roubo da ideia um plágio (diferente seria,
para ele, se tivesse havido cópia literal do texto).

276
Mas a questão que queremos retomar, a partir de fala do próprio Scliar, é sobre
os posicionamentos diferentes frente ao texto. Diz o canadense que copiou a ideia
que ele nem leu o texto original, que simplesmente se baseou em uma resenha e
recolheu dela ‘uma boa ideia, estragada por um mal escritor brasileiro107’. Quem lê
a versão do texto ou vê o filme nele baseado108, depara-se com uma narrativa cheia
de explicações sobre porque os fatos aconteceram e se sucederam, que não deixa
dúvidas de que entre animal e homem estabeleceu-se certa harmonia de
convivência. O que Scliar esclarece em entrevista dada à Editora L&PM, é que:

‘Max e os felinos’ é um livro político, escrito durante a ditadura. Na verdade, Max, diante
do jaguar, é o símbolo de como a gente se sentia diante da ditadura. Ou seja, nós
estávamos diante de uma fera, de uma realidade feroz, que nós não entendíamos, que
não queria ser entendida e que a qualquer momento poderia usar da violência contra a
intelectualidade brasileira, como de fato foi usada 109.

Acrescenta ainda, que o jaguar é a figura ‘imprevisível e enigmática’ com a qual


tem que se deparar. Escrito ainda sob governo militar, Scliar vale-se da alegoria do
nazismo para se referir à violência, ao inexplicável e imponderável. Neste exemplo
vemos como as versões textuais tendem a eliminar exatamente a essência do texto
que revela as tensões humanas, o caráter evanescente das representações, as
fraturas da linguagem que não poderão nunca explicar tudo, conter tudo.

Quando em sala de aula nos pomos na posição deste plagiador e oferecemos à


criança uma narrativa ‘nova’ e ‘melhorada’, mas auto explicativa e sem aberturas
para o devaneio, corremos o risco de impedirmos justamente o seu acesso aos textos
e ao Texto, priorizando o conteúdo explícito que pode até cativar
momentaneamente, mas dificilmente se torna pregnante na memória.

Acompanha este apreço às versões, a tecnicidade e a massificação das


produções humanas, o progresso das ciências e suas práticas, e a
individuação/independência dos sujeitos. O sombrio horizonte do desenvolvimento
ilimitado da ciência vem escoltado pela profunda infelicidade humana – evidenciada
no mal contemporâneo que acomete os corpos em inúmeros sintomas: a depressão,

107
Fala referida por Scliar ao plagiador, em entrevista dada à Editora L&PM, disponível no site:
http://www.youtube.com/watch?v=jIQitu5oYWw (acesso em 30/07/2013).
108
‘As aventuras de Pi’ produção cinematográfica norte americana dirigida por Ang Lee (2012).
109
Scliar, entrevista à Editora L&PM.

277
a hiperatividade, a desatenção, o pânico, a drogadição e a agressão. De um lado o
Iluminismo pregava o modo de se pensar a felicidade e a liberdade sobre a Terra; de
outro, o desenvolvimento de hoje que se encaminha exatamente para a liberdade,
também impulsiona à destruição do meio e da essência humana que é lidar com a
falta. O progresso e a vaidade humanas possibilitam que tudo seja mexido, mas sem
a devida atenção às consequências disso.

Suspendendo-se a criticidade e acabando com a análise sobre comportamentos


e pensamentos, o que sobra do ideário moderno original? O que se questiona hoje
não é a validade da razão, mas a negação de seus limites, isto é, a contemporaneidade
é intolerante ao limite, à perda, à morte, à finitude, à incompletude e ao erro, e isto
tem consequências para a própria fundamentação da humanidade. Ao mesmo tempo
em que os grandes genocídios modernos não cabem mais na razão Iluminista de
felicidade, autonomia e progresso, algo escapa e se repete escancarando as inflexões
e tensões sociais. Hoje – diferente do momento histórico de Descartes –, a razão
humana é subjetiva, inconsciente e isso deveria ser levado em conta, mas não o é em
função de sua deriva em direção ao individualismo potente e narcisismo
exacerbado.

Para Jean-François Lyotard (1987) os comportamentos da modernidade não


produzem mais verdade ética e moral; os consensos não funcionam mais; o
incomensurável que deveria estar na pauta dos acontecimentos e das experiências
também não tem mais lugar; e as grandes narrativas de referência são abandonadas
ou questionadas. A partir dos resíduos do incompreendido, o espaço do
contemporâneo deveria ser de reescrever e reelaborar o inconcluso, entretanto o
que se descortina é sua pura negação. O autor engendra o seu conceito de sublime:
é o que surgiria no limite da experiência como o indeterminado que foge à
categorização, à compreensão; seria uma experiência concreta que não pode ser dita
nem pensada, mas que vitalmente precisa existir no desenrolar dos acontecimentos
humanos.

Análises como estas de Lyotard e Benjamim apontam para o fenômeno


contemporâneo que tende a eliminar tudo aquilo que vem da tradição oral (das
narrativas de referência) em função de ser substituída por elementos do cotidiano
próximo, moderno e novo. Agindo assim apartam-se os Sujeitos dos traços de

278
incoerência, mistério e indefinição que a mítica comporta; eliminam-se as
incongruências humanas e o seu elemento essencial – a falta – sentida, doída e
muitas vezes insuportável.

Porém se é essa ausência de sentidos (estratégica e pontual) que faz do humano,


humano, como perder isto? Não se a perde, mas se a substitui. Entretanto essa troca
tem consequências e também carrega consigo incongruências, já que em seu lugar
colocam-se ações, pensamentos, objetos e falas pragmáticas fáceis e palatáveis, mas
que obturam a falta.

Em parte concordamos com esta visão, que será radicalizada por Dany-Robert
Dufour, como veremos mais adiante. Mas também em parte não nos deixamos levar
por análise tão abissal, uma vez que identificamos interstícios nos acontecimentos
sociais que apontam ainda para a intromissão das questões humanas pautadas pela
linguagem e sua constituição psíquica.

Para enunciarmos um exemplo deste contraponto com relação às grandes


narrativas, como aponta Belintane (2011), é impossível eliminarmos todos os
elementos da oralidade, uma vez que somos seres de linguagem e isto fica
evidenciado no retorno social das produções épicas na forma de filmes110 e jogos
eletrônicos111. Na ausência das práticas das grandes narrativas – da contação de uns
para outros – os Sujeitos têm sede de mitos, de aventuras, de magias, e vão buscá-
los ali onde a contemporaneidade os disponibiliza. A questão, portanto, não se
relaciona exclusivamente com o fim do interesse pelas narrativas da tradição, mas à
forma como a cultura dispõe delas hoje e supõe que possam ser transmitidas. É isto
que trataremos de ver a seguir, para ao final vislumbrarmos por onde podemos
pensar o seu resgate, ainda que pontual, junto às crianças nas escolas.

Retornemos à educação.

110
Por exemplo, ‘Tróia’ de 2004, dirigido por Wolfgang Petersen, ou ‘Guerra nas Estrelas’, uma saga
em seis episódios dirigidos por George Lucas, cujo lançamento em 1977 deu início à primeira trilogia,
e nos anos 2000 à segunda trilogia.
111
Entre outros, podemos citar as versões em videogames dos mesmos filmes citados acima: Tróia e
Guerra nas Estrelas.

279
4.3.1. VOCÊ PRECISA, LOGO VENDO

Na visão tecnicista adotada pelas sociedades contemporâneas, a escola precisou


reproduzir e dar conta do novo sem lacunas, do novo racional, explicado, concreto e
que produz conhecimento útil – receitas, identificação de gêneros literários,
conhecimento do nome de autores e títulos de livros, etc. O moderno que é trazido
para dentro das salas de aula é cercado pela compreensão dos acontecimentos, pela
localização de toda experiência no contexto social e cidadão.

A criança chega à escola plena de dúvidas de si e o que aí se lhe apresentam não


são as representações que poderiam levá-la a ter acesso ao mundo social e seus
códigos; apresenta-se o próprio mundo no seu funcionamento adulto. Apresentam-
se retratos fieis da realidade, plenos de intenções e repetidos à exaustão.

Mas qual o problema destas substituições? Em que isso prejudica ou interfere


na alfabetização? A criança cheia de angústias não precisa encontrar na escola um
ambiente cotidiano que reconheça, para não se sentir desamparada? Ela não precisa
repetir várias vezes uma atividade para poder elaborar seu conhecimento? Ela não
precisa de estruturas frasais mais simples, já que está iniciando sua alfabetização?

Apostamos que não. Apostamos que o encontro com as palavras é um trabalho


extremamente importante e complexo, que deve propiciar à criança a passagem do
seu universo infantil (que clama por representações) à realidade social – e não a
imposição do universo realista que se julga mais adequado a ela. O ensino
objetificante das palavras, circunstanciado pelo cotidiano, cercado de compreensão
e boa interpretação do mundo, não se apresenta como novo para a criança – isso ela
vê, observa no seu dia-a-dia, fora dos muros escolares. Também o resgate mnêmico
dessas simplificações textuais (que a escola chama de textos do cotidiano) acaba por
ser uma tarefa que exige esforço de lembrança de conteúdo, de sequências lógicas
que garantam antes de mais nada cópia fiel e textual do original.

Ora, mas a exigência da memória que visamos é outra. Ela exige um material
fluido, entrecortado, atemporal, como qualquer formação do inconsciente. E que
possibilidades aquele modo categorizado de lidar com as narrativas podem oferecer
à criança que está às voltas consigo e suas representações? A repetição da qual a
criança precisa é do afluxo de palavras (de muitas palavras) e não das mesmas

280
palavras. Ela precisa de palavras que digam outras coisas, de outras maneiras e que
acrescentem significações que façam movimentar em diferentes sentidos. Ela
precisa de variedade para poder fazer o jogo intertextual e circular de uma
representação a outra. Ela precisa de material que ponha sua memória para laborar,
que enlace significados novos para ela.

O corpo infantil e o mundo são ainda misteriosos para a criança e ela precisa
trabalhar sobre eles por meio de outras leituras. As mesmas leituras são aquelas que
a prendem novamente ao Outro, ao saber que dela se tem e não a seu saber – isso
seria uma espécie de retorno ao transitivismo infantil. A criança precisa de algo que
fale do mistério, do inapreensível, do efêmero que seu corpo comporta e dos
significantes que possam resgatá-lo, mas também diferenciá-lo do outro.

Como analisa Benjamin (1969), a arte (que, como dissemos, alegoricamente


substituímos pelo texto) não pode ser retrato fiel da realidade, sob o preço de se
perder a essência humana. O texto deve ter algo de faltoso, de misterioso que assim
exige esforço do sujeito. O desejo só circula pelas brechas da falta, do não-
totalmente-explicado. O todo-saber é aquilo que goza sobre o outro e não lhe
permite subjetivar-se.

No sentido da possibilidade de subjetivação, Dany-Robert Dufour (2003) é mais


contundente em suas críticas à modernidade e seu neoliberalismo. Para este
pensador contemporâneo chegamos no limite em que o capitalismo, herdeiro do
mercantilismo moderno, não consome mais só os corpos dos trabalhadores, mas
labora com afinco a redução de seus pensamentos. O desenvolvimento máximo da
razão instrumental – as técnicas – consolida-se acima de qualquer razão crítica,
destituindo assim o homem kantiano do exame de suas ações, extinguindo as
referências filosóficas que se aventuravam na explicação do sentido de estar no
mundo, desqualificando o sujeito freudiano fundado por uma falta essencial e
fazendo surgir um sujeito dessubordinado à historicidade.

É condição humana que sua existência dependa do Outro para constituí-lo e


para reconhecê-lo. Diante do mal-estar na civilização nos valemos do Outro como
uma montagem fictícia (mas tomado como real) em que se instala o discurso que
assegurem a permanência e a origem humanas distantes do caos. O Outro é o eleito
para suportar o que não suportamos. Sua essência, portanto, está sempre articulada

281
a um terceiro lugar que unifica o sacrifício de todos e referencia as experiências.
Analisa Dufour (2003) que do ponto de vista político este Outro varia de sociedade
a sociedade – é o Rei para a monarquia, Deus para o monoteísmo, o povo para a
república, o mito para os povos primitivos, etc. – e dá suporte às narrativas de
legitimação (religiosas, políticas e de origem). Do ponto de vista simbólico este
Outro é o significante da lei, o terceiro lugar da fala onde repousa o fundamento de
todo discurso. Identifica ainda uma terceira modalidade do Outro, puramente
especulativa, ligado ao Ser. A articulação destes três registros é que dá a noção das
modalidades subjetivas da modernidade, portanto não podem ser separados
quando se vai pensar tanto no Sujeito, quanto na sociedade em que está inserido.

A modernidade é, pois, um espaço em que se encontram os sujeitos como tal submetidos


a vários grandes Sujeitos: aos espíritos e aos deuses, [...] ao Rei, à República, ao Povo, ao
Proletariado à Raça... Todos esses elementos podem ser encontrados na modernidade,
que gosta sobretudo de mudar de uma definição a outra – o que justifica o lado instável,
‘crísico’ e eminentemente crítico da modernidade (DUFOUR, 2003: 49).

Para Dufour a questão da modernidade contemporânea não é ter na razão o seu


Outro, mas a relação que se passou a estabelecer com este lugar. Se o Outro se
apresenta em um primeiro momento sob a insígnia da completude – para o bebê,
inicialmente a mãe é o porto seguro absoluto – é justamente no oposto, no vislumbre
de sua incompletude, que os Sujeitos podem apreendê-lo – só ele sendo faltoso que
podemos nos dirigir a ele e fazer-lhe perguntas. É preciso, portanto, antes nos
alienarmos no Outro (como se ele fosse todo, completo) para depois dele nos
separarmos, resistindo ao seu discurso.

O que Dufour (2003) identifica como mudança radical na condição do homem


contemporâneo é justamente esta relação ao Outro: a fratura na modernidade vem
com o esgotamento das grandes narrativas de legitimação (apontadas por Lyotard
e Benjamim) e com a emancipação dos sujeitos de seus referenciais. Para Benjamim
a 1ª. Grande Guerra é o ponto derradeiro dos referenciais e para Lyotard e Dufour é
a 2ª. Grande Guerra, mais especificamente Auschwitz. Como sustentar qualquer
outro encantamento ao discurso, a partir de leis que legitimavam crimes como a
escravidão de negros, o massacre de índios, ou o extermínio de judeus?

Dufour (2003) destaca sete principais narrativas que figuraram no século XX:
das religiões monoteístas (postulam a origem na existência de Deus e visando o

282
controle enérgico sobre corpos e mentes); dos Estados-Nações (sustentados em dois
referentes – direito à terra e direito de consanguinidade – garantidos por instância
política superior: Rei, Imperador); do povo trabalhador (ideária de um mundo
homogêneo e sem classes, opunha-se às outras narrativas tidas como alienantes);
da natureza (estabelece o fracasso das narrativas anteriores e faz previsões
apocalíticas quanto ao futuro da Terra); da democracia (declara a não dependência
e submissão dos indivíduos aos grandes Sujeitos, buscando autonomia jurídica,
econômica e de referência); do neopaganismo (estabelece a incessante mudança e
flexibilidade de valores, multiplicando e relativizando os referenciais) e das
comunidades (tratam de núcleos de reivindicação de direitos universais que buscam
referenciais dentro da própria comunidade). Analisa nestas narrativas seus pontos
de falência, na tentativa de identificar o que sobrou de cada uma delas e por o quê
foram substituídas no momento em que vivemos hoje, que ele chama de ‘pós-
modernidade’.

Em suas ponderações críticas identifica que passamos a uma Era de glorificação


da mercadoria, elemento que dita e domina qualquer conjuntura contemporânea,
apropriando-se de parte das narrativas precedentes. O mercado relativiza as
narrativas dos Estados-Nações uma vez que as mercadorias podem circular livres
de fronteiras, a partir da gestão dos investimentos e do comércio internacional. Os
discursos democrático e utilitarista, que pregam a satisfação dos desejos dos
sujeitos, abrem-se totalmente à entrada da mercadoria, uma vez que o mercado
dispõe infinitos objetos para satisfação destes desejos; mas, como pela economia
libidinal a pulsão nunca se satisfaz, o mercado estará sempre disposto a criar um
novo objeto, para uma nova demanda – isto quando não se antecipa aos indivíduos
e cria a própria demanda que levará aos objetos. Esta mesma observação vale às
tribos neopagãs e comunitárias, sondadas em seus sentimentos e necessidades
específicos: estes sujeitos todos tem o ‘direito’ de encontrar no mercado produtos
para a ‘sua’ condição e ‘seu’ querer. Quanto à narrativa de emancipação do povo
trabalhador, esta foi totalmente abandonada e imediatamente engolida pelo
mercado. Por fim, a narrativa religiosa, ao entrar em decadência, deixa os espaços
do culto e da sacralidade abertos à infiltração das mercadorias: ou as próprias
igrejas (fundadas a cada esquina, por qualquer um) são pontos de venda de produtos
de salvação (semelhantes às indulgências, mas agora mais sofisticados porque têm

283
logomarca e são sempre substituídos por produtos mais novos); fala também das
igrejas agora substituídas pelos templos de compra (shoppings, hipermercados).

O Mercado, ao preconizar o comércio liberado de toda proibição e promover o


investimento, submergiu, assim, como uma religião conquistadora, o mundo inteiro até
seus inexpugnáveis confins, a ponto de seus mais graves e mais visíveis inconvenientes
(destruição da natureza, aumento da desigualdades, surgimento de um quarto
mundo...) nem mesmo serem percebidos sob a boa palavra incessantemente propagada
(multiplicação miraculosa das riquezas). O Mercado arrasta tudo a ponto de, em todos
os lugares, os grandes Sujeitos terem reconhecido seus erros e terem dito que valia mais
fazer aliança com ele que se atravessar no seu caminho – inclusive os comunistas
chineses (DUFOUR, 2003: 79).

A fúria implacável e desmedida do mercado busca seus consumidores em todos


os lugares, classes sociais e idades. Também nas escolas desde muito cedo se faz
presente, como podemos ver no exemplo exposto na Figura 13:

Figura 13: Excerto da página 86 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

284
Nesta página extraída do material didático do PNLD da EA-FEUSP temos a
dimensão da entrada impiedosa do mercado no cotidiano escolar de crianças de 1º.
Ano do EFI. Não só vemos substituir no letramento as referências às grandes
narrativas por logomarcas de produtos do mercado, como vemos que não são
produtos quaisquer: são aqueles de apelo infantil que ademais interferem em outra
esfera da constituição subjetiva – o corpo – cada vez mais precocemente alvo do
gozo alimentado pelas indústrias de trans e saturados, para o quê depois se
preconizam dietas e terapias precoces para livrar dos traumas da obesidade, da
ignorância, ou de deformação sedentária e comprometedora112. A perversão deste
sistema está justamente no fato de que este tipo de interferência na educação é
respaldada pelo discurso pedagógico que, no caso do Construtivismo, é dado pelo
uso dos ‘elementos do cotidiano infantil’ como subsídio para o ensinamento da
leitura e da escrita. São estes elementos que se colocam no lugar dos ludismos
poéticos a que nos referimos no capítulo anterior.

Se as narrativas de referência não têm mais efeito – e aí descartam-se boa parte


dos elementos da tradição oral e escrita –, nada mais natural do que buscar
‘referências’ em outros lugares: e o mercado se abre a isto feito as casas de
tolerância.

Por todos os lados o sujeito é cercado sem escapatória. Os limites de produção


e de troca de valores no universo mercadológico não existem. Direitos jurídicos e
comerciais sobre ‘produtos’ da natureza ou sobre o genoma humano são adquiridos
e patenteados nas esferas internacionais que registram (mas não regem) o
mercado113. Assim o mercado obedece a duas exigências: não se submete ao controle
de nada nem de ninguém, e passa a controlar as esferas antes regidas pelas relações
dos Sujeitos ao Outro. E, acrescenta Dufour, quando o controle externo é relaxado,

112
Sobre a influência desastrosa dos alimentos industrializados na infância, ver o excelente
documentário ‘Muito além do peso’, dirigido por Estela Renner e produzido por Marcos Nisti.
http://www.muitoalemdopeso.com.br/
113
Em 1998 um grupo japonês achou por bem contrabandear o cupuaçu (fruta originária da
Amazônia) e patenteá-la como propriedade da indústria alimentícia a que pertenciam, exigindo dos
ribeirinhos amazonenses que pagassem royalties pela sua utilização. Só cinco anos depois de
batalhas judiciais internacionais é que a situação foi revertida. Como este, há inúmeros casos em que
animais, frutas, plantas, elementos de culturas tradicionais são registrados e apropriados por
mercados ligados, ou não, à sociedade ou ao lugar de origem.
http://www.horadopovo.com.br/2004/marco/05-03-04/pag2b.htm

285
nada, nenhuma forma social, nem cultural pode se opor ao domínio exclusivo do
Mercado (DUFOUR, 2003: 83).

O mercado atravessa sem cerimonias todas as esferas da vida. Abro aqui um


parênteses na exposição de Dufour para ilustrá-la com um fato observado em nossa
pesquisa de campo, mas que contém também elementos de memória pessoal.
Estudantes da Universidade de São Paulo, na década de 1980, todos os anos no mês
de junho esperavam as festas juninas da universidade. Dentre elas uma das mais
concorridas era aquela que se dava na Escola de Aplicação (EA-FEUSP, onde agora
esta pesquisa é realizada). Já fazia parte de sua tradição a presença de vários
elementos folclóricos vindos do interior caipira paulistano, em que grupos de
catira114, ou jongo115 complementavam a festa das quadrilhas.

Pois este festejo tradicional sofreu transformações bastante comprometedoras


ao longo dos anos. Continua sendo uma festa que se realiza ao final do primeiro
semestre letivo, mas sob outro nome: agora é ‘Festa da Aplicação’ e tem algum
poucos traços da festa junina, mas perdeu sua essência. Em 2011, quando iniciamos
esta pesquisa na Escola de Aplicação da FEUSP, questionamos primeiro a mudança
do nome de uma festa típica do folclore, para uma nomenclatura genérica. A
resposta foi que era uma forma de inovar, para não ser sempre igual116. As mudanças
compreendiam a suspensão das músicas de quadrilha típicas do evento e em seu
lugar as crianças dançavam músicas populares compostas por Vinícius de Moraes,
Raul Seixas, entre outros. A única manifestação folclórica agendada para aquele ano
seria uma apresentação de Jongo, mas que também foi desmarcada porque três pais
de alunos, praticantes de uma determinada religião, haviam visto na internet que
aquela música ‘era coisa de candomblé’ e não queriam expor seus filhos a ela. Diante
de tal manifestação de desagrado, a escola cedeu ao pedido daqueles pais e não
apresentou o Jongo na festa.

114
Catira ou cateretê, é uma dança ritmada pelas batidas de pés e mãos, compostas geralmente por
homens que se dispunham em duas fileiras, uma de frente para outra, acompanhada de violeiros. De
origem africana, indígena e europeia, esta dança era praticada no meio rural.
115
Derivada da cultura africana, esta é uma dança essencialmente rural mas praticada em todo
Brasil, compõe as chamadas ‘danças de umbigada’. É uma dança animada por poetas que se
desafiam por meio de improvisação e de adivinhas, que sempre carregam traços de elementos
mágicos ou sagrados.
116
Depoimento de professores da EA-FEUSP. Dado retirado do registro de reunião semanal entre
todos os pesquisadores do polo de São Paulo do PROJETO “DESAFIOS”, realizada no dia 21/06/2011.

286
Observamos durante a reunião da pesquisa que aquela dança típica não seria
apresentada pela escola como uma manifestação religiosa, mas como uma
manifestação folclórica de origem religiosa, como uma tradição cultural que
determina há séculos a formação do caipira brasileiro. Ademais, como uma escola
laica, não caberia à instituição ceder a pedidos de posição ideológica/religiosa
individuais ou grupais, como a que os familiares traziam. Isto é, em nome do
‘direito/liberdade’ individual de alguns que rejeitam uma parte importante da
história tradicional, a comunidade da escola foi apartada de um elemento de
referência cultural que remonta em sua origem aos povos africanos que compõem a
população brasileira, sem contar que é uma das danças que depois derivou no nosso
samba, disseminado, praticado e marca de identidade do brasileiro.

Os quitutes típicos das festas juninas (bolo de milho, paçoca, canjica, arroz doce,
etc.) ficaram relegados ao que a escola denominava de ‘cantinho tradicional’,
escondido sob uma escadaria; de resto, muitos bolos cheios de cobertura, coxinhas,
e demais doces e salgados que podemos encontrar em qualquer lugar,
cotidianamente. Ao longo da pesquisa não conseguimos ter acesso a quando e
porque houve a mudança de nomenclatura e da estrutura da festa, mas podemos
constatar que no ano de 2011, além da ‘novidade’, esta versão moderna do folguedo
imaginariamente eliminou: 1) as diversidades religiosas – já que retirando-se os
elementos característicos de festa junina (que tradicionalmente homenageia Santo
Antônio, São João e São Pedro), e aquela manifestação ‘demoníaca’ (Jongo) todos
puderam participar dela com ‘liberdade’; 2) a diversidade de idades geracionais dos
pais de alunos – o tema da festa naquele ano foi ‘Anos 60, 70, 80 e 90’, e as músicas
dançadas pelas crianças, foram escolhidas dentro do repertório daquelas décadas (o
que deixaria os pais felizes por reviverem momentos de suas infâncias117),
evidenciando que os códigos culturais não podem mais ser referenciados na
coletividade, como nas quadrilhas, mas em cada um. Note-se que não se está
questionando a qualidade musical das canções selecionadas, nem da oferta culinária
da festa, mas a posição alienada em que coloca os sujeitos que dela participam,

117
Referência a dados da mesma reunião semanal entre todos os pesquisadores do polo de São
Paulo do PROJETO “DESAFIOS”, realizada no dia 21/06/2011.

287
subtraindo-lhes o festejo ritualizado que fornece identidade de grupo, para ofertar-
lhes pinceladas de alusões individuais.

No Brasil muitas festas folclóricas foram perdendo legitimidade simplesmente


pelo fato de não poderem mais acontecer como manifestação pública. A própria festa
junina não pode mais ser promovida fora do âmbito privado (da casa de cada um),
pois as cantigas que entoam as quadrilhas precisam ser pagas ao Escritório Central
de Arrecadação e Distribuição (ECAD), com o ônus da festa ser encerrada ou seus
promotores multados. Bem, se for possível fazer uma festa junina dentro de casa, e
não no espaço público, já 90% de sua essência foi perdida: o céu estrelado, a fogueira
armada, as bandeirolas sacudidas pelo vento no terreiro ficam sem lugar. A
contrapartida é então promover festas pagas, em que o visitante pode assistir de um
camarote às apresentações de danças – como se vem desenvolvendo nas quadrilhas
do nordeste brasileiro118 –, ou visitar as escolas que encerram o primeiro semestre
letivo com este festejo, agora embalado pela música country (esta também paga ao
ECAD, mas seu preço já está embutido no ingresso e compensado pelo fato de ser
‘novidade’). A experimentação desta festa folclórica que antes incluía pedir prendas
nas casas, comprar um sortimento de papéis coloridos, cortá-los e colá-los no
barbante trançado pelo pátio da escola para fazer bandeirinhas ou lanternas,
remendar e adornar uma roupa velha, assistir à confecção de alguma guloseima na
beira do fogão, etc. são práticas que foram perdidas para o mercado: hoje qualquer
comércio popular já vende tudo pronto, padronizado e descartável; basta pagar e
levar.

Vemos que a escola como instituição cede ao Mercado reinventado diariamente


e deixa de ser o lugar do encontro social com a tradição.

Esta racionalidade última derivada do mercado avança pelas esferas ética e


moral. Se há um modelo de celular novo lançado no comércio, é legítimo o filho exigir
que seu pai lhe dê um e é legítimo que o genitor não meça esforços para satisfazer
mais este capricho da prole. Em nome da satisfação imediata se vai longe e com
pressa: para chegar ao seu compromisso (balada ou almoço de negócios) é legítimo

118
O mesmo acontece com a festa do Bumba-Meu-Boi (ou Boi Bumbá) no norte brasileiro,
circunscrito a arenas fechadas, ou com os cortejos carnavalescos contemplados agora pelos
sambódomos ou camarotes de grupos de pagode e axé patrocinados por indústrias de cerveja.

288
que o cidadão avance com seu modelo novo sobre a faixa de pedestres e quase
atropele os transeuntes, uma vez que isto não lhe custará nada; mas este mesmo
indivíduo, devidamente avisado por seu GPS de última geração, será capaz de
diminuir a marcha do carro próximo a um radar de velocidades – a multa certa, neste
caso, pode custar o preço de um produto novo. É um mercado que implanta a
demanda pelas novas canetinhas, mochilas, agendas, roupas e adereços com que os
alunos são instigados a desfilar no espaço escolar, ao preço de serem hostilizados se
não o fizerem.

Este mercado implacável, irresistível, que cada vez mais surpreende com suas
novidades e que se apropriou e desbancou as narrativas de referência, de qualquer
forma, nos alerta Dufour (2003), fracassa em seu cerne: ele não serve a novo grande
Sujeito. (E este é o ponto de abertura a que nos referimos acima, sobre a
impossibilidade do fim das narrativas e que possibilita pensarmos em alternativas
para este quadro, mas veremos isto mais adiante). O autor leva sua análise mais ao
extremo e diz que o mercado, [...] longe de tomar para si a questão da origem, do
fundamento, do elemento primeiro [...] só pode confrontar cada indivíduo com os
tormentos (que certamente não caminham sem novos gozos) da autofundação
(DUFOUR, 2003: 84). Este discurso mercadológico esvazia a economia simbólica e as
referências subjetivas que fundam o eu psíquico; mas não sendo tratada esta
questão da origem, ela retorna na forma de efeitos violentos sobre o Sujeito,
atormentando-o com sintomas de um eu-fracassado que esta modernidade cultiva,
ainda que despreze: aqueles a que nos referimos acima como depressão,
drogradição, etc.

Uma sociedade que prega a automação, a individuação – só possíveis com o


trabalho de uma vida toda – e a autoreferenciação, delega a seus indivíduos um
problema extremamente sério: para que haja autonomia é preciso que o Outro não
seja mais referente. Porém quando ainda se é dependente (como as crianças e os
jovens são), a falta de referência é mortífera, pois o sujeito fica simplesmente
relegado à indefinição. Os jovens vêm se fazendo a si mesmos sem balizas histórico-
geracionais. Se a falta no Outro obriga o Sujeito a repensar sua subjetividade, a
ausência do Outro é a indefinição do Sujeito. Como, com efeito, contar com um si que
não existe ainda? (DUFOUR, 2003: 91).

289
Para Dufour a sociedade dispõe de alguns subterfúgios nos quais crianças e
jovens se miram para tentam remedia a falta do Outro. São eles: o bando (marcado
pelo transitivismo, uma vez que aquilo que acontece a um, é sentido por todos, no
qual se age por métodos expeditivos – ataques, acertos de contas – e, efetivamente,
não garante autonomia aos sujeitos); as seitas (grupo de pessoas que se reúnem
para adoração de uma imagem ou guru que garantem proteção absoluta contra os
males; não enseja a falta, portanto); a adição (inscrição de uma necessidade
compulsiva de consumo de produtos dispostos no mercado; acontecimento que
retira do campo do desejo o traço do objeto, mas que se satisfaz no real puro como
necessidade pulsional); a onipotência (assunção do lugar do Outro poderoso que
decide pela via da violência o direito de vida ou morte; na ausência do Outro, toma
as rédeas do jogo).

Estas quatro formas de agir compreendem um ponto comum que é a prevalência


pulsional na resolução das demandas que se criam, como substituição das
possibilidades simbólicas de representação que chegam muito tênues nos sujeitos.
O autor ressalta que nem todos os jovens e crianças estão acometidos por este modo
de ação,

[...] mas eles constituem, entretanto, uma tendência pesada, muito difundida, que já
mobiliza sequências identificatórias, fascínios difusos e fragmentos de história e de
narração. O que, afinal, compreendeu muito bem e muito rápido o Mercado,
desenvolvendo toda uma indústria do jogo, da música e da imagem violenta, conectada
com os fortes afetos provocados por essa carência (DUFOUR, 2003: 114).

Este comportamento juvenil (que também acomete adultos!) não é, portanto,


um acidente histórico, mas uma apropriação deliberada do mercado daquilo que
tece os laços sociais. O mercado não admite exceção: exige que a mercadoria circule
em todas as esferas das relações humanas, mas aí destrói qualquer instância coletiva
de ação e pensamento.

De um lado o neoliberalismo visa apagar toda e qualquer reflexão crítica dos


sujeitos (aquela constituída no Iluminismo) e de outro, descarta o Sujeito neurótico
fundado no inconsciente e assaltado pela culpa (o sujeito freudiano). Em seu lugar
faz surgir o sujeito cuja única obrigação é estar inteiramente disponível, sem culpa
ou crítica, para as conexões estabelecidas pelo mercado e seu fluxo consumista; é o
sujeito incerto e precário, que encontra nas prateleiras das lojas seus protótipos de

290
identidade, satisfação e individuação. No fundo, é o sujeito ‘esquizo’, fragmentado,
diz Dufour (2003), que se apreende momentaneamente aqui e ali aos pedaços,
sempre com a certeza iludida de que pode se fazer todo, melhor e mais novo, logo
adiante em outro produto.

O que nos preocupa é esta forma de relacionamento social chegar cedo às


escolas – ademais pelas vias de materiais didáticos aprovados pelo Estado –
sustentando o processo de entrada da criança no letramento formal. A respeito do
papel da escola neste mundo livre do mercado, Dufour também faz considerações,
como veremos a seguir.

4.3.2. PELA JANELA

Dois elementos centrais são requeridos por Dufour (2003) para pensar na
formação deste sujeito esquizoide: a televisão e a escola.

Já dissemos, mas retomamos: o homem é um ser de linguagem, simbólico. Sendo


assim, toda nova forma com que a linguagem se apresenta tem efeitos sobre ele,
tanto para as funções simbólicas, quanto para as formas de simbolização. Foi assim
com a introdução dos livros nas culturas e é assim com a disseminação das tele-
visões no último século.

O que o autor destaca sobre a incidência maciça dos aparelhos televisores é o


efeito sobre as crianças, as mais precocemente atingidas por eles. Primeira
constatação: a televisão mantém a criança tranquila enquanto está diante dela e,
portanto, sem demandas de cuidados dirigidas ao adulto. Antes mesmo de
aprenderem a falar, os pequeno já estão submetidos à sua tela e privados de horas
diárias de convívio com outras pessoas, com as brincadeiras ou outros suportes de
linguagem (livros, CDs, rádio, etc.). Segunda constatação: as crianças ficam expostas
a adestramento constante para o consumo, a partir da enxurrada de publicidades
veiculadas. Terceira constatação: as marcas (logomarcas) instalam-se como novas
referências às crianças e simulam seus objetos de desejo. Quarta constatação: a

291
criança diante da televisão está exposta a milhares de cenas de violência a cada ano
(assassinatos, brigas, roubos, etc.119), sem mediação de outros sujeitos.

Concordamos com o autor quando clareia esta questão da violência contida nas
narrativas: pode-se argumentar que as histórias infantis contadas ou lidas em outras
épocas eram igualmente violentas, desfilando acontecimentos trágicos e horrorosos.
Entretanto, ao serem contadas, estas cenas eram integradas ao circuito enunciativo
e – acrescentamos nós – relativizadas na relação afetiva com o contador. A criança
pode manifestar espanto, medo ou indignação, que a contação de histórias comporta
uma modalidade relacional que a televisão não tem: nestas horas a mãe dirige-lhe
um olhar de concordância, o avô faz um carinho aplacador, ou o rapsodo modula sua
história à plateia, dando outros relevos de representação a aquele horror. Também
entre a história contada e a assistida há outra distinção essencial estabelecida entre
a imaginação a que a criança se obriga na primeira (cuja fantasia é composta por
imagens derivadas de sua história pessoal) e o universo tomado como real, na
segunda situação (acontecimento em que o infante não cria nada, mas é aí criado
sem injunção simbólica). Como vimos no Capítulo 3, a transmissão simbólica não se
dá de outra forma senão entre Sujeitos, no simples estabelecimento da fala que
enseja discursos significantes. As imagens-textos televisivos não são capazes,
sozinhos, de transmitir o dom da palavra, isto é, entre criança e máquina não há
constituição psíquica possível, mas só acontecimento de alguma coisa no corpo!

Para Dufour (2003), portanto, não se trata simplesmente de pensarmos na


qualidade do que é veiculado como conteúdo (desenhos e filmes violentos, ou
propagandas), mas também na supressão do tempo de outras formas de
transmissão e educação (menciona especificamente a transmissão geracional e
cultural). Ele se vale da relação milenar estabelecida entre imagem e texto – este
último tomado tanto em seu enunciado oral, quanto escrito – para colocar o primado
do texto em que, desde os povos primitivos, as imagens eram criadas mentalmente
por cada ouvinte/leitor, a partir de textos contados/lidos. Vimos isto também em
Ong, Parry, Havelok, em que o texto funciona como a presentificação do ausente e,
como acrescentam Freud e Lacan (e agora também Dufour), é o que permite a
simbolização da narrativa.

119
O exemplo mais emblemático é do jogo GTA (XXX) lançado desde XXXX

292
A lida com os textos descortina um universo de acontecimentos ficcionalmente
tecidos por cada Sujeito, a partir de seus referenciais sobre os ditos e,
principalmente, também sobre os não-ditos – o trabalho de simbolização
demandado pelo texto (saber) permite entrever os sentidos latentes por ele
portados (gozo). Quando se inverte esta lógica e a imagem é comum a todos e se faz
prevalente, ela pode suspender o texto e toda possibilidade de representá-lo e saber
sobre ele, preservando o gozo puro.

É necessário esclarecer que Dufour (2003) não critica a imagem em si. Pelo
contrário, releva a potencialidade estética que condensa em uma única forma a rede
complexa de sentidos e significações organizados em um texto – pensamos aqui na
‘Guernica’ de Pablo Picasso que retrata o massacre sofrido em 1937 pelo pequeno
povoado espanhol, como manifestação de apoio nazista ao ditador Francisco Franco,
ou na primeira cena do filme clássico de Nelson Pereira dos Santos, lançado em
1963, sobre a obra ‘Vidas secas’ de Graciliano Ramos, na qual os mais de cinco
minutos iniciais de imagem árida e lenta só são rasgados pelo som estridente de um
carro de bois.

[...] não digo que se trata de encontrar o texto que corresponde à imagem; o que é
preciso é um texto que venha suturar a perda aparecida nas malhas de sentido, um texto
que não exclui um ao outro, até mesmo outros textos. A imagem se torna assim situável
numa relação de antes ou de depois do texto (de pré-texto, em todo caso) graças à qual
ela adquire a possibilidade de figurar o que não se pode dizer (DUFOUR, 2003: 127).

Há ainda a imagem da fantasia que, como vimos com Freud, perde o liame com
o texto original, agora recalcado, perdido. Neste caso é preciso reencontrar o texto
correspondente e, no caso da imagem estética, é preciso reencontrar a significação
no processo crítico que interroga a imagem. De qualquer modo, entre estes dois
campos heterogêneos (texto e imagem) é necessário o estabelecimento de um elo,
sendo para isto preciso que o indivíduo seja já um Sujeito constituído e apropriado
de sua castração, na acepção psicanalítica do termo. Aí poderá até brincar e passar
de uma esfera a outra instituindo um jogo prazeroso entre categorias simbólicas,
podendo se valer, inclusive, de uma diversidade de suportes sonoros, imagéticos,
escritos, pictografados (quadros, peças teatrais e de dança, microscópios, livros,
etc.). Acrescentaríamos que para que a imagem possa ser desfrutada em
brincadeiras, ela própria tem que provocar um furo e ensejar uma falta em seu

293
espectador, por onde o texto poderá escoar, se revirar, representar e também furar.
Novamente apelamos ao modelo da Banda de Moëbius em que texto e imagem
compõem o universo da fita, de modo indissociado e complementar.

Não é isto que acontece com aqueles em quem as referências simbólicas não se
estabeleceram (na esquizofrenia, na psicose e no autismo), ou não se sustentam
(fobias ou neuroses graves). Diz Dufour que nestes casos [...]a imagem externa se
torna então uma espécie de conexão mais ou menos colada nas imagens internas, nas
fantasias (frequentemente imagens de onipotência ou de impotência) que povoam o
aparelho psíquico (DUFOUR, 2003: 132). Diríamos mais, que muitas dessas imagens
televisivas encerram em si todas as injunções necessárias a não deixar dúvidas no
telespectador: aí a imagem contém elementos que precisam seu sentido e o texto
que a acompanha é meramente informativo-descritivo, para que nenhum engano
surpreenda o sujeito.

Exemplo da associação imagem-texto, cuja leitura é imediata, estão distribuídos


aos montes no material didático do PNLD da EA-FEUSP, como se pode ver
exemplificado na Figura 14:

Figura 14: Excerto da página 110 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

Este é um dos exemplos claros de uso dos textos do cotidiano no processo de


alfabetização: toma-se um cartaz informativo sobre o qual a criança não precisa
fazer nenhuma inferência. Basta saber ver as imagens e/ou saber ler para chegar a

294
seu sentido. A atividade complementar à observação, resume-se à cópia do que já
está na imagem.

Muito diferentes de atividades desta ordem, são aquelas que se desenvolvem no


PROJETO “DESAFIOS” com alunos de EFI. Um dos trabalhos é o de leitura por rébus,
que consiste em subtrair caracteres fonéticos de imagens figurativas, para com eles
recompor outra palavra. Vejamos na Figura 15, um exemplo:

Figura 15: Imagens de um kiwi, um rio e uma cueca que juntos compõem um rébus

Fonte: Rébus produzido pelos professores de 1º. Ano EFI da Escola de Aplicação da USP, para atividade
pedagógica para alunos, 2011

Este é um dos 24 slides compostos para uma atividade em que a criança era
convidada a dois exercícios simultâneos. O primeiro de recompor com cada conjunto
de imagens, uma palavra e o segundo, com o conjunto das palavras recompor uma
narrativa – que no caso era ‘Kirikú e a feiticeira’, filme de Michel Ocelot120 a que os
alunos tinham assistido. Assim, da primeira imagem do conjunto, se depreende o KI
de ‘kiwi’, na segunda o RI de ‘rio’ e a terceira o CU, de ‘cueca’ (este, que na escrita
alfabética transforma-se em KU), com o que se lê ‘KIRIKÚ’.

Vemos com isto que ao ser obrigado a destacar as imagens sonoras das palavras,
a criança já está na via da inferência, do trabalho analítico que precisa identificar os
elementos menores da língua (letras, sílabas) e do trabalho de síntese, que com estes
elementos menores são reunidos para formar outra palavra. Ou seja, a imagem não
é lida na sua literalidade figurativa, mas como som. Como afirma Belintane [...] o
rébus aqui representa uma espécie de dobradiça entre o oral e o escrito (BELINTANE,
2011: 191), ao mesmo tempo em que funciona como o apagamento da imagem para
a exploração de sua homofonia. Este é o princípio da interpretação dos sonhos de
Freud, em que por trás dos fonemas da imagem, algo latente se condensa e/ou se
desloca para produzir o efeito de rébus.

120
Animação belga produzida em 1998 por Michel Ocelot.

295
Em artigo escrito sobre material produzido pelo PROJETO “DESAFIOS”, do polo
de Belém (PA), Thomas Massao Fairchild (2012) também fala da importância do
rébus como recurso alfabetizador. Apoiado nas elaborações de Lacan, firma que:

Do ponto de vista psicanalítico, o rébus retira a imagem do campo da representação, em


que o princípio de semelhança permite atribuir-lhe um sentido, para o campo da
‘apresentação’, no qual se torna elemento puramente simbólico, diferencial, desprovido
de significado exceto na relação que pode estabelecer com os elementos sistêmicos de
uma língua já dada. Mais do que uma técnica comunicativa ou um artifício para fazer
circular mensagens secretas, o rébus mostra-se sob esse viés como uma forma de
implicação do desejo. [...] A homofonia e o rébus constituem, pois, uma forma de burla
pela qual o objeto perdido na linguagem retorna, na escrita, sob o véu da homofonia
(FAIRCHILD, 2012: 154).

Com isto, segundo o autor, a leitura de uma escrita em rébus permitiria o acesso
a um ‘saber não sabido’, ou seja, ao rejeitar o que a imagem representa, o Sujeito
seria capaz de ler. (Acrescentaríamos que aí o Sujeito seria capaz de ler a mensagem
que vem do Outro, sempre invertida em sua demanda.) Segundo Fairchild (2012) é
sobre esta base que Lacan teria afirmado a antecedência da leitura com relação à
escrita: a invenção da escrita não seria

[...] um processo linear de abstração dos grafismos, impulsionado por um princípio de


economia da escrita – mas que a escrita teria nascido de uma extrojeção do
conhecimento latente que todo falante possui da linguagem, impulsionado pela
descoberta de que, em uma imagem, antes de usá-la para escrever, pode-se ler outro
valor que não o de sua representação (FAIRCHILD, 2012: 155).

Estas imagens seriam, então, alvo de representações subjetivas, no sentido


psicanalítico do termo.

Quando as imagens não entram na cadeia de representações significantes elas


só podem agir em outro campo do psiquismo – o das pulsões.

Em sua tese de doutorado Cláudia Prioste (2013) revela as consequências


desastrosas da imiscuição televisiva e de suas imagens sonoras. Segundo a autora, o
neurocientista Michel Desmurget121 (2012) realizou vasta pesquisa sobre os efeitos

121
A referência que Prioste faz a este autor encontra-se em Desmurget, M. (2012). TV lobotomie: la
verité scientifique sur les effects de la télévision. Paris, Max Milo Éditions. 2012.

296
dos sons e imagens veiculados por televisões, jogos eletrônicos e internet, e concluiu
que:

[...] para captar e manter a atenção da criança, os dispositivos audiovisuais promovem


uma sucessão de estímulos, com cores, sons e movimentos, os quais incitam um
funcionamento neurológico em estado de alerta. Essa excitação cerebral contínua e
duradoura estabeleceria um padrão de funcionamento perceptivo alerta para sons,
cores e movimentos, gerando, com o passar do tempo, dificuldades de concentração em
atividades que não dispusessem de tais dispositivos hiperestimulantes. Assim, a criança
teria dificuldade em se concentrar ao ouvir uma história contada pela professora, bem
como teria diminuída sua capacidade de atenção em leitura. Ele considera ainda que as
crianças mimeticamente tenderiam a aprender os movimentos, reproduzindo-os em
diversos contextos, sugerindo vínculo entre o excesso de televisão e a hiperatividade
(PRIOSTE 2013: 200, grifos meu).

Prioste relata ainda que o pesquisador também constatou o decréscimo de


imaginação infantil para a produção de desenhos e textos, quando expostas em
demasia a estes aparelhos audiovisuais.

O que nos interessa deste excerto é a referência feita à ‘incitação do


funcionamento neurológico em estado de alerta’ da criança e o estabelecimento de
‘um padrão de funcionamento perceptivo alerta’, quando precocemente e
continuamente exposta a estímulos audiovisuais. Vimos no Capítulo 3 que Freud
descreve a entrada do bebê no mundo como receptáculo do afluxo de estímulos
indeterminados, que precisam ser mediados pelas representações desde outro
aparelho de linguagem, sob a ameaça de que o aparelho psíquico infantil não se
constitua e fique à deriva das pulsões puras. Vimos também que este psiquismo que
se constitui precisará sempre da alternância entre pulsões e representações, como
forma de poder posicionar-se Subjetivamente. Ora, o que aqui se descortina é que a
criança diante da televisão permanece em estado de alerta para os estímulos,
mesmo quando estes cessam; estabelece-se um padrão de funcionamento
neurológico que continua excitando seu cérebro mantendo-o demandante de
saciedade destas excitações. Isto nada mais é do que a promoção da exigência
pulsional no corpo, que hiperestimulada ignora qualquer outra forma de lida
psíquica. Cessam assim as possibilidades de representação simbólica da linguagem,
permanecendo a incidência real sobre o corpo. Não restritos, estes estímulos podem
ser lesivos.

297
Apontamento similar já havia feito Freud (1910) em seu texto ‘A perturbação
psicogênica da visão, segundo a psicanálise’, como já analisamos em outra ocasião
(BATTAGLIA, 2001). O sintoma neurótico seria o resultado dos fracassos
empreendidos pelas pulsões sexuais parciais que, não alcançando a meta por causa
da repressão, se fariam representar por formações substitutivas. O conflito que
levaria ao fracasso das pulsões sexuais se daria porque os mesmos órgãos e sistemas
de órgãos que servem à pulsão sexual, servem também à pulsão egóica (a boca, que
serve à alimentação também pode ser beijada) e o sintoma surgiria quando as duas
funções pulsionais estivessem em desacordo. O ego faz de tudo para manter a
repressão: se os olhos quisessem ver por puro um prazer sexual, as funções egóicas
reprimiriam a representação desse ‘querer’. Os olhos e a visão teriam suas funções
desvinculadas – os olhos ficariam assim, sob império só da pulsão sexual pois eles
deixariam de cumprir sua função consciente. O anímico repousa aqui sobre o
orgânico e faz sintoma. Mas Freud vai além e diz que esses sintomas psíquicos,
passíveis de deslocamento, seriam esperados no caso de órgãos que cumprem a
dupla função (sexual e egóica), entretanto, quando se trata de um órgão que não
serve para comportar-se como um genital, mas que ainda assim sofre investimento
maciço da pulsão sexual elevando seu papel erógeno, o mais provável é que esse
órgão sofra alterações tóxicas.

No caso da exposição demasiada à televisão, jogo eletrônico, computador,


tablete, etc. podemos pensar no cérebro tomado pelo estímulo incessante e de
alguns órgãos demandados sem interrupção. Nenhum estímulo que incida sem
intervalo é saudável e, como apontamos no Capítulo 3 a partir de Lacan e Dunker,
faz pender o corpo mais ao gozo do que ao saber e mais ao sofrimento do que ao
prazer. Parte da visão crítica de Dufour sobre as televisões, podemos fazer remontar
a Freud através do alerta ao excesso de excitação contínua; e tanto em um quanto
em outro encontraremos o foco sobre o perigo da falta de possibilidade
representativa.

Dufour chama atenção ainda sobre o papel dos tele-suportes nas sociedades. O
risco mais decisivo é o de ver se desenvolver uma multiplicação considerável das
competências de uns [daqueles que têm suporte simbólico já estabelecido] e o

298
crescimento da confusão nos outros pela perda progressiva da incumbência simbólica
mínima (DUFOUR, 2003: 133).

Prioste (2013) identifica exatamente esta dicotomia ao longo de em sua tese, ao


analisar dados de jovens alunos de duas escolas, uma pública e outra privada, que
utilizam a internet: os da escola pública usam o ‘ciberespaço’ mais para diversão, do
que como fonte de informação ou ampliação de conhecimento. Os jovens de escolas
particulares reconhecem a importância do professor de informática para instruí-los
no uso das ‘websites’, enquanto que na escola pública estes docentes praticamente
não conseguiam dar suas aulas, uma vez que os alunos imediatamente usavam o
acesso ao computador para navegar pelas salas de bate-papo, jogos eletrônicos,
vídeos de luta ou de pornografia, sites sobre celebridades, sem nenhum
constrangimento.

No questionário que a pesquisadora aplicou junto aos alunos, também percebeu


uma diferença expressiva nas habilidades de leitura e escrita – diversidade
vocabular, expressão de ideias – de um grupo e de outro, com maior prejuízo para
aqueles da escola pública. Esta última diferença, inclusive, viu refletida na
capacidade de realização de pesquisas e navegação dentro da própria internet, uma
vez que a falta de conhecimento prévio, inclusive da língua pátria, impedia-os de
executar as atividades pedagógicas propostas.

A autora cita como exemplo a construção de uma rádio comunitária,


demonstrando incapacidade dos alunos para responderem perguntas simples sobre
o assunto e para buscarem informações na rede que pudessem auxiliá-los na
execução da tarefa. Sobre este aspecto Prioste (2013) revela com espanto o fato de
que o acesso a uma ‘webpage’ que continha instruções sobre como montar uma
rádio comunitária estava bloqueada pelo filtro de controle das redes, enquanto que
o mesmo programa de filtro não era eficaz a acessos a pornografia, lutas, etc.,
deixando os alunos expostos a conteúdos questionáveis e privando-os do acesso ao
que poderia instruí-los.

Vemos aqui um exemplo assustador de controle e acesso à informação, operado


por algumas escolas. Evidencia-se a reprodução velada do que apontamos no
Capítulo 1, sobre o que é conveniente determinadas camadas populacionais saber, e
o que não é (pensamento que tende ao eugenismo). Além do que é também um

299
acontecimento que vai na contramão do que é proposto como reparação histórica
de direitos estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
(BRASIL, 2013).

A contrapartida destes dados, também analisados na pesquisa de Prioste


(2013), diz respeito a algumas manifestações críticas de jovens da escola pública
que identificavam excessos de ‘baboseiras’ e ‘coisas ruins’ nos conteúdos a que
tinham acesso pela internet, e que, acreditavam, os influenciava negativamente.
Ainda que tais apelos fossem concordantes com a política daquela escola pública –
que pretendia ‘incentivar a criatividade discente’ – na prática pedagógica em sala de
aula não eram escutados: estes jovens sentiam-se desvalorizados e ignorantes
porque eram cobrados para tarefas e conteúdos para os quais não tinham
conhecimento prévio, restando-lhes como saída dispersar em outras atividades.
(Posição semelhante à que apontamos no Capítulo 1 sobre os alunos com ‘déficit
linguístico’, expulsos das escolas nas décadas de 1960-70). São jovens que praticam
pouco a leitura e quando o fazem compreendem mal o que leem; são jovens que
foram desde muito pequenos expostos intensa e cotidianamente aos apelos
televisivos, e muito pouco à leitura (quer como leitores ativos, quer como ouvintes).

Longe de estes adolescentes da escola pública poderem ampliar seus


conhecimentos e ganhar autonomia pelo livre acesso à internet, Prioste constata o
inverso:

[...] sem a orientação dos adultos, e desprovidos de referências culturais quanto aos
conhecimentos significativos disponíveis na internet, os adolescentes tornam-se mais
vulneráveis aos ‘conhecimentos’ impostos pela indústria cultural interessada apenas
em angariar consumidores. [...] predomina no ambiente virtual um jogo de interesses
comerciais que realiza sim uma hierarquia de conhecimentos, porém não baseados em
critérios de veracidade, valor científico ou relevância social.

[...] Os critérios hierárquicos de conhecimento difundidos na internet são pragmáticos


e fundamentados no lucro. A oposição aos valores supostamente autoritários da
educação, a recusa da transmissão do mestre e dos valores da cultura, a exaltação da
autonomia sem que se mencione a heteronomia produzida, todo este conjunto de
fatores cria um ambiente ideologicamente favorável à atuação do psicopoder invisível,
deixando os adolescentes à mercê de suas próprias pulsões perverso-polimórficas
exploradas comercialmente na rede (PRIOSTE, 2013: 237).

300
Ao nosso ver a divisão na esfera social apontada anteriormente por Dufour
(aumento das competências aos que já possuem suporte simbólico e decréscimo aos
que não a possuem) deveria ser encarada como antagônica pela própria sociedade,
e deveria mobilizar esforços no caminho inverso. No entanto a tese de Prioste
(2013) aponta na direção do mercado, para quem esta fragmentação social é
perfeitamente adequada: constata que para que o mercado possa vender
demasiadamente, é preciso haver consumidores ignorantes e passivos.

4.4.O GOZO VAI À ESCOLA

Quando o Construtivismo defende a posição de que devemos aproveitar aquilo


que é do cotidiano da criança para alfabetizá-la, estamos de pleno acordo. As
divergências se dão quanto ao que se entende por cotidiano infantil e, neste quesito,
extrapolam a questão dos conteúdos ofertados por este cotidiano e enveredam para
o campo epistemológico: o lugar de onde se extrai o cotidiano da criança.

Para o Construtivismo o cotidiano infantil é externo a ela, dado de fora e que


vem preencher pragmaticamente sua vida. É o que pode ser encontrado nas
informações de registros escritos, dispostos nas capas de livros de uma determinada
editora ou autor, nas embalagens de produtos alimentícios, nas placas diretivas e
informativas, nas manchetes de determinados jornais ou revistas, nos bilhetes e
receitas dispostos no espaço domiciliar, nas logomarcas de brinquedos e roupas, etc.
Portanto, não dizem respeito à experimentação Subjetiva da criança, mas àquilo que
a ela é oferecido que, como vimos com Dufour, é, no mais, regido pelo mercado de
consumo.

Para nós o cotidiano infantil é o que a criança experiencia e mostra


Subjetivamente: o quê e como brinca, o quê e como fala, o quê e como pede, o quê e
como escreve, o quê e como lê, o quê e como canta, o quê e como chora, o quê e como
desenha, o quê e como recusa, o quê e como troca, etc. São acontecimentos da
Subjetividade que se manifestam ‘entre’: entre brincadeiras, entre escritas, entre
histórias, entre falas, entre relacionamentos, e que emergem no acontecimento com
o Outro. É o entre a bandidagem e o choro de VI. É nestes materiais que buscamos a
singularidade de cada cotidiano, e aí respaldamos nosso trabalho com o letramento.

301
4.4.1. O MERCADO DA ALFABETIZAÇÃO

No Construtivismo como enveredou-se nas práticas escolares, o cotidiano é o


inverso disto. É o que há de comum e pragmático do mundo real exposto fora da
escola e incorporado dentro dela. Vejamos mais um exemplo, exposto na Figura 16,
extraído do material didático do PNLD da EA-FEUSP:

Figura 16: Excerto da página 62 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

É interessante notar a passagem direta do exercício que propõe a escrita de


nomes das pessoas próximas à criança – feita por um adulto, e não pelo próprio
aluno –, para o exercício em que ela tem que identificar embalagens de produtos.

302
Vai-se das relações familiares afetivas, às gôndolas de supermercado, em um
continuum. O conhecimento prévio, cotidiano, que se espera do aluno é sobre a
manipulação de produtos, nomes de produtos, formas de produtos – e não
chamamos a isto de experiência ou experimentação infantil, uma vez que estes
termos reservamos para os sentidos que lhes conferem Agamben ou Benjamim,
como vimos no Capítulo 3.

Começa a ficar mais clara nossa posição. Enquanto o professor não sabe o que
explorar de um texto literário, porque sua formação pessoal ou universitária foi
deficitária neste aspecto e/ou porque as supervisões do exercício da profissão não
consideram este assunto relevante, o neoliberalismo de consumo agradece que em
suas ações e orientações metodológicas saibam bem explorar cada marca e
lançamento novo do mercado.

Que a criança tenha conhecimento cotidiano deste universo mercadológico,


parece evidente. Que ela saiba identificar cada elemento destes acima, é provável.
Que ela seja convidada a escrever seus nomes ora ou outra, é um tanto aceitável.
Agora, que se queira investir na sua formação por esta via, em detrimento de um
universo de ‘desutilidades’ que os textos literários orais e escritos oferecem, é
descabido. Canalizar a libido infantil para este tipo de experiência, é desviá-la das
possibilidades de se fazer um Sujeito no mundo, é literalmente desperdiçar a libido
que deveria servir a si e sua contribuição social, para fins mercadológicos e só.

Mesmo para os meios pedagógicos que não levam em consideração a


Subjetividade do aluno, até onde se consegue chegar com a exploração textual ou
vocabular a partir de conteúdo desta ordem? Chega-se sempre a mais logomarcas,
como no exemplo da Figura 17 ...

303
Figura 17: Excerto da página 115 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

... que alimentam a farsa de que uma indústria de exploração e comercialização


de petróleo está minimamente preocupada com o futuro do planeta, de sua água e
de seus habitantes. Ou levam a logomarcas que se incorporam e sobrepõem a textos
clássicos, como na Figura 18 ...

Figura 18: Excerto da página 159 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

304
Que desfrute a criança pode tirar de textos ou imagens como estas? Só o desfrute
do corpo físico, uma vez que os pais geralmente cederem a seus pedidos insistentes
de bolachinhas recheadas, ou suquinhos embalados, ou desta ou aquela marca de
combustível ou sabão. E as narrativas se esvaem.

4.4.2. PRATELEIRAS DE NOMES

O ponto em que se chega com isto invade e ameaça, inclusive, a Subjetividade


infantil. É o caso, por exemplo, da escrita do nome próprio, que tão sensivelmente
Emilia Ferreiro identifica como a baliza por meio da qual a criança vai aprender a
escrever os outros nomes. Inicialmente importante ao Construtivismo, ele também
foi apropriado por este mercado neoliberal para transformar o infante em uma
marca de prateleira. Na Figura 19, extraída da página 16 do material didático do
PNLD da EA-FEUSP se ‘lê’ isto:

Figura 19: Excerto da página 16 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

E na página 17, se lê o que está ilustrado na Figura 20:

305
Figura 20: Excerto da página 17 do Manual do Professor do Livro Didático ‘Letramento e Alfabetização
Linguística’, do PNLD/MEC

Fonte: Cláudia de Miranda e Eliete Presta, 2010-2012

Novamente as instruções vêm para o professor: ‘é importante dar ênfase às


atividades que envolvem a comparação das letras do nome do aluno com [...]
rótulos’.

Emilia Ferreiro é clara neste aspecto: a escrita do nome próprio [...] é o primeiro
exemplo claro de escrita livre de contexto, de escrita cuja interpretação não depende
da imagem que se situa em suas proximidades, ou do objeto que lhe fornece base
material (FERREIRO, 1981: 121), ou seja, é o ‘seu’ nome e não de outra coisa qualquer
e não vem associado a outra coisa, a não ser a ela mesma. As letras iniciais de seu
nome em princípio são [...] ‘a minha’, ‘a do meu nome’ (idem.:121) e não a letra com
que se escreve outra coisa. A pesquisadora afirma que a criança vai sim confrontar
esta escrita com outros nomes, mas ela fará isto dentro de um conflito próprio que
se instale no processo de sucessivas hipóteses de escrita que ela vai criar e neste
aspecto é muito diferente partir de seu nome e reconhecer uma letra ou sílaba
semelhante/parecida em outro lugar, do que ser orientada ‘com ênfase’ a olhar para
outro lugar em que possa reconhecer a ‘sua’ letra, especialmente se este lugar está
mais carregado de elementos de consumo, do que de referências lúdicas textuais.

É uma inversão das próprias propostas de Ferreiro, que identifica na criança um


sujeito ativo na busca de conhecimento, e no professor um sujeito ativo na

306
proposição de desafios para o conhecimento. Ao invés de apresentar imagens
estagnadas de logomarcas para estabelecer a comparação nome-escrito/nome-
escrito, porque este professor não pode indagar ao aluno o que mais ele conhece que
se pode escrever com as letras de seu nome, ou que outra coisas se pode escrever
com aquelas letras, ou em que outros lugares pode buscar as letras do nome?

Vemos no exemplo do material didático a criança sendo diretamente


identificada a uma marca de mercado, corroborando as identidades fugidias e não
referenciadas a que se refere Dufour. Os pequenos são bem capazes de fazer esta
identificação, mas talvez não sejam capazes de sair dela e aventurarem-se nas
esferas simbólicas do texto, especialmente se apresentam alguma questão com a
aprendizagem, vale dizer, alguma questão de simbolização e apropriação subjetiva
do próprio nome.

Em nossa pesquisa na EA-FEUSP nos deparamos com a questão premente dos


alunos de 1º. Ano do EFI às voltas com seu nome próprio e como isto se refletia no
processo cognitivo destas crianças de modo mais ou menos comprometedor. Dentre
os 50 alunos que acompanhamos 14 (oito em 2011 e seis em 2012) ingressaram na
escola sem saber escrever o nome próprio, mas destes, especialmente dois em 2011
e um em 2012 preocupavam-nos, pois não eram capazes nem de reconhecer a
escrita do próprio nome, e assim permaneceram por vários meses. Dos outros 11
alunos, cinco precisaram de atendimentos individuais para chegarem a se apropriar
da escrita de seus nomes e os outros seis atingiram esta meta no curso das
atividades de sala de aula. Descrevo a seguir o atendimento individual feito com um
destes cinco alunos.

Recebemos uma criança com algumas particularidades. Nos dois primeiros


meses de aula dormia com frequência em sala de aula e com isto custava muito a
prestar atenção em atividades que requeriam certa quietude corporal – como ouvir
histórias ou alguma explicação coletiva – pois este era um convite ao sono.
Consequentemente foi se distanciando da maioria dos alunos da sala, tanto do ponto
de vista do aproveitamento pedagógico e execução de atividades, quanto de
relacionamento, já que muitas vezes perdia a hora do recreio para dormir. Os seus
recontos das histórias eram pobres em narrativa, com enredos incompletos ou
invertidos. Muitas vezes se irritava com os alunos da sala e se indispunha com os

307
professores porque nas rodas de conversa queria falar muito e atravessava a fala de
seus colegas.

Este aluno tinha, no entanto, uma habilidade motora invejável e nos momentos
de parquinho não hesitava em trepar nos brinquedos e ali se balançar, ficar de ponta
cabeça. Também com as mãos era ágil e, sempre que podia, expressava-se batucando
com elas em algum lugar (no chão, nas carteiras, nas portas). Cabe dizer que com
frequência esta sua atitude também perturbava o andamento das atividades da
classe, pois o aluno identificou que podia chamar a atenção para si quando agitava
suas mãos para extrair sons de qualquer lugar. Quando era repreendido com relação
a estas perturbações, respondia indo dormir. Notamos que se punha a batucar
quando não queria ser requisitado a fazer atividades para as quais não estava
pronto, ou para que sua baixa produção acadêmica não fosse evidenciada. Ao
batucar, desviava toda atenção para esta ação: havia alguma coisa de gozo naquele
ritmo impresso ao corpo que precisava ser reconduzido. Certamente este aluno, em
muitas outras escolas, seria diagnosticado com o rótulo de déficit de atenção (o
sono) e hiperatividade (agitação corporal).

Ponderamos que aquela era uma via de expressão muito própria e nos
propusemos a aproveitá-la de alguma forma, em momentos precisos e não só
quando ele queria. Inicialmente estabelecemos que ele mostraria em algumas ‘rodas
de conversa’ a sua performance. Isto adiantou por um tempo, mas não durou muito,
pois logo seus comportamentos voltaram ao padrão anterior: ao invés de atravessar
a fala dos colegas ou do professor com sua própria fala, fazia seus barulhos.
Pensamos em segunda mão que ele poderia ensinar outros alunos que quisessem
aprender a batucar, nas atividades de ‘cantos’; mas também isto teve pouca
pregnância e logo recomeçaram os atritos.

No início do mês de maio ele ainda não tinha domínio da escrita do nome
próprio (ROGGÉRIO122): passou muito tempo escrevendo simplesmente GÉRIO, ou RIO,
e muito raramente escrevia ROGGÉR, ou ROGGÉ (sendo que estes dois últimos casos
aconteciam quando ele copiava de algum lugar a grafia do nome). Quando alguma

122
Nome fictício, mas que conserva dois elementos que foram fundamentais para identificação de
seu nome à escrita dele.

308
criança a seu lado dizia que seu nome estava errado, ele contestava e dizia que não,
que era daquele jeito.

Como trabalho de localização temporal, todos os dias fazíamos uma atividade


dirigida ao calendário: identificar com todos os alunos o mês e o ano, o dia da semana
e o dia do mês. Algumas vezes esta atividade era precedida de uma outra, com texto.
Para o mês de ‘maio’ um dos professores fez os seguintes versos:

O coqueiro de tão alto


Joga coco feito raio
Quando chove e faz frio
É porque é o mês de maio

Os alunos escutaram e declamaram a estrofe, depois tentaram lê-la e identificar


as rimas. Enquanto uns se arriscavam a rimar ‘maio’ com ‘raio’ ou com ‘frio’, ou
mesmo com a palavra ‘calendário’, Roggério se pôs a repetir incessantemente: IO, IO,
eu já sabia!, IO, IO, eu já sabia! Naquele dia discutimos esta repetição e percebemos
que estava lá o IO de RoggérIO. Era uma repetição que tinha a ver com seu nome e
que, recuperando observações de aulas precedentes, percebemos que já se
manifestara de forma menos chamativa: ao visualizar as palavras ‘calendário’ e
‘recreio’ também já repetira IO, IO.

Alguns dias depois, quando o professor contava para a classe o Mito da Fênix,
em dois momentos diferentes da contação Roggério se pôs a repetir algumas
palavras, da mesma forma insistente que fizera com IO de ‘frio’, ‘raio’ e ‘maio’, mas
agora de forma ritmada e com palavras inteiras:

‘Garça’ – Garça? Garça? Garça? ...


‘Conselheiros caiam da palmeira’ – Caiu. Caiu. Caiu....

Mais alguns dias e pôs-se a repetir sozinho, em tom quase inaudível, o seu
sobrenome, com relevo a uma letra muda a ele pertencente.

Novamente nos pusemos a matutar em conjunto e arriscamos pensar que na


repetição rítmica, na repetição de palavras e letras do nome, talvez alguma coisa
comum se repetisse.

Sempre apostando em elementos que pudessem expandir as capacidades de


simbolização, decidimos fazer um trabalho com seus batuques rítmicos e optamos

309
pelo CD do grupo Barbatuques123, chamado ‘Corpo do som’. Começaríamos com
atendimento individual e depois, se fosse o caso, faríamos a inserção deste trabalho
em atividades de sala de aula.

Fui com o aluno ao pátio da escola e disse que escutaríamos as músicas do CD


para delas extrair uma atividade de escrita. Assim que as cantigas começaram ele foi
tomado de uma alegria muito grande. No início bastante excitado e inquieto, queria
acompanhar batucando, o ritmo de cada música. Depois percebeu que para poder
acompanhar precisava escutar e aprender ritmos diferentes dos que estava
acostumado a fazer; aquietou-se portanto. Ofereci-lhe papel e peguei uma folha
também para mim.

A cada música que escutávamos eu escrevia o título em caixa alta no meu papel,
repetindo-o em voz alta: ‘CANTO DA EMA’, ‘ONÇA’, ‘DO MANGUE À MANGA’. Roggério, ainda
sem escrever, acompanhava o que eu fazia e ensaiava seus batuques novos, até que
disse:

Roggério – Hei! Você tem o nome do meu nome! Aqui oh! (Aponta para a letra G). O G de
Roggério!

Eu – Puxa! É mesmo! O que mais tem aqui neste papel?

Roggério – (Pegou a caneta e grifou as letras I, O, E e G, enquanto as soletrava.) Mas tá


faltando!

Eu – O que falta?

Roggério – O R.

Eu – Então vamos procurar uma música que tenha a letra R. (Li) ´Do mangue à manga’,
‘Peixinhos do mar’.

Roggério – Aí oh! Escreve o nome pra mim pegar o R! (E sublinhou a letra R. Em seguida
escreveu no seu papel o seu primeiro nome, com todas as letras: ROGGÉRIO.)

Eu – Nossa!, desta vez você colocou todas as letras do seu nome! (Escrevi em seguida o
nome dele no meu papel: ROGGÉRIO.)

Roggério – Mas agora o meu nome tá faltando o sobrenome.

Eu – E qual é o teu sobrenome?

123
CD gravado entre 1999 e 2002, pela gravadora MCD e produzido por Rodrigo Fonseca, é
composto por algumas canções cantadas, mas a melodia rítmica de todas elas é produzida no corpo
dos músicos.

310
Roggério – Roggério [...] Santos Sanctos124. (Ressaltou o som do C do Sanctos).

Eu – Mas tem Santos e Sanctos no teu sobrenome? É repetido?

Roggério – É, Sanctos. Só Sanctos. (Sublinhou as letras do seu sobrenome no meu papel


e escreveu-o no seu: SANCTOS.)

Ao voltarmos para sala de aula, no momento em que o professor trabalhava com


os outros alunos em uma atividade sobre nomes e sobrenomes, baseada na música
cantada por Toquinho, ‘Gente tem sobrenome125’, que já havia sido tocada para a
classe no dia anterior. Roggério, que na véspera havia dispersado, naquele dia
decidira se engajar na tarefa com concentração e envolvimento.

Fizemos ainda outra atividade com texto, agora em atendimento em dupla,


usando o poema ‘O pato’ de Vinícius de Moraes. Apresentei o texto escrito, declamei-
o e propus que fizessem um desenho sobre a narrativa. Roggério fez o desenho e
nele escreveu ‘pato’, ‘caneco’ e o seu nome, agora completo. Ao final, pediu que o
colega de atividade lesse o poema enquanto ele fazia o acompanhamento rítmico.

Encerrou o primeiro semestre realizando as lições com mais autonomia. Na


avaliação do professor: ‘conhecia a ordem alfabética, nomeava e escrevia todas as
letras do alfabeto; lia rébus; identificava palavra valise (uma palavra dentro da
outra); escrevia o nome completo; encaminhava-se para a escrita convencional;
localizava palavras em textos conhecidos; atribuía sentido às palavras lidas;
demonstrava interesse pelas histórias contadas; recontava histórias trabalhadas em
sala de aula; identificava rimas em textos orais e escritos; relatava experiências
pessoalmente significativas, descrevendo objetos, acontecimentos e ações e
expressava seus sentimentos de forma contextualizada e coerente; apropriava-se de
narrativas pessoais de modo a compartilhá-las com seus colegas; apropriara-se da
prática de marcar o calendário; no aspecto motor, mostrava agilidade e domínio de
corpo extremamente bons. Apresentava defasagem ainda na escrita convencional,
mesmo com alguns erros ortográficos e na leitura convencional pouco ágil’126.

Parece-nos que atividades como estas possibilitam a apropriação do nome


próprio de modo mais efetivo e condizente com as necessidades da infância, do que

124
Sobrenome fictício.
125
Gente tem sobrenome: música de Chico Buarque de Hollanda.
126
Informações extraídas do relatório semestral realizado pelo professor regente da sala.

311
aquelas apresentadas pelo material didático do PNLD da EA-FEUSP. A exploração
experimentada através de elementos da oralidade e de textos com apelos poéticos
oferecem recursos mais amplos em que a criança pode enlaçar suas questões e
representar-se Subjetivamente. Não nos interessava, no caso descrito, saber o quê,
ou porquê o aluno não conseguia escrever seu nome – investigação sobre o Sujeito
a que muitos pedagogos, psicopedagogos e psicólogos escolares certamente
dedicariam um tempo ineficaz para os propósitos da educação. O que nos preocupa
e motiva é estabelecer um universo rico em elementos simbólicos e imaginários que
permitam à criança circular por eles e depreender o que a ela faz sentido,
caracterizando um trabalho com a Subjetividade. Como já dissemos a respeito do
outro caso relatado (VI), muitas vezes este caminho é trabalhoso: arriscamos por
diferentes vias que nem sempre funcionam, mas que de qualquer forma não são em
vão, uma vez que podem repercutir mais à frente, por retroação, e fazer sentido.

Ferreiro critica os métodos de alfabetização que [...] podem existir como formas
vazias, repetidas mas não compreendidas, enquanto que a verdadeira escrita, a que
não aparece no quadro-negro nem nos cadernos escolares, segue seu próprio caminho
(FERREIRO, 1981: 122). Identificamos nesta colocação que a escrita que para a autora
não figura no quadro-negro é aquela do processo construtivo da escrita a que a
criança se entrega escrevendo do seu jeito, criando hipóteses, pondo-as à prova,
para depois reescrevê-las.

Para nós o que nos cadernos, nos livros ou nas lousas não figura, é a escrita cuja
representação está sob a barra do recalque, mas que continua reverberando no
Sujeito como sua essência (a letra a que nos referimos no Capítulo 3). O que a criança
manifesta é sempre expressão de sua Subjetividade e quando esta demonstração
aparece na forma de bom comportamento, boas hipóteses, boa leitura e, até, boa
escrita, o professor não tem dificuldades para lidar com ela. A questão surge quando
esta singularidade não está pronta para a forma como a escola programou suas
atividades e conhecimentos, como no caso deste aluno.

Nós apontamos que é justamente aí que a escola deve pensar e repensar suas
práticas, não só no ensinamento da leitura e da escrita, mas também de escuta. Os
alunos que têm respaldo simbólico conseguem com mais facilidade e ‘a seu tempo’
– para não perdermos de vista a metodologia dominante – se apropriarem do

312
letramento secundário que a escola oferece. Justamente os que não têm este suporte
(e que cada vez mais são os que chegam às escolas) são os que precisam ser
escutados em suas singularidades, pois demandam trabalho junto à função
simbólica – o que certamente eles não encontrarão nas caixas de leite ou
achocolatado! Se as ferramentas disponibilizadas ao professor são estas sem
referência significante, é compreensível que – em parte – ele se imobilize junto com
o aluno; de outro lado isto não é aceitável porque ele assumiu um compromisso
social de alfabetizar todos os alunos e cabe a ele buscar outros respaldos teóricos e
práticos para construir saber.

Ferreiro também diz que [...] os processos de construção do nome próprio são em
tudo semelhantes aos processos de construção dos outros nomes, exceto – e nisto reside
toda a diferença – que as letras não são quaisquer (FERREIRO, 1981: 121). As letras
‘não são letras quaisquer’ para Ferreiro, porque a criança não vai, como
anteriormente fazia para outras palavras, usar qualquer letra para escrever um
nome. Mas acrescentamos que isto também se deve ao fato de que, do ponto de vista
do Sujeito, quando a criança recebe um nome, ela não é mais uma Maria ou mais um
João. Ela é a Maria que tem o mesmo nome da virgem, ou da avó querida; ele é João
igual ao tio, forte, honesto e trabalhador, ou como o irmão que morreu
precocemente. Ela pode também ser a Jennypher e ele o Richarlyson, referências
imaginárias a nomes glamorosos de celebridades distantes. Estes sentidos todos
contém elementos que estão sob a barra do recalque, não ditos e não totalmente
significados, fazendo com que algumas crianças tenham problemas sérios para se
encontrar com estes não ditos. Os nomes (e as letras do nome) não são quaisquer
porque carregam consigo representações parentais que remetem à ancestralidade
da família e que ao confluírem em uma determinada criança ofertam-lhe os
primeiros elementos por onde as tramas mnêmicas (as ‘letras’) vão se tecer em
outras escritas, para tentar representar o que não está representado. É por isto que
também escrevemos, e não só falamos.

O nome próprio não é coisa qualquer! Ele é afeto puro, circunscrição primeira
de sentido sobre o qual, infelizmente e irresponsavelmente, o neoliberalismo no
qual se alienam muitos agentes educacionais, vem se alojando. Assim expropria-se
a criança de suas tradições e também de seus traços subjetivos, eliminam-se os

313
textos consagrados e nos perguntamos, por onde se quer que o aluno caminhe na
escola? Quais são os referenciais que se lhe oferece?

4.4.3. O LUGAR DA ESCOLA NA EDUCAÇÃO

Mencionamos acima que Dufour (2003) identificava, além da televisão, a escola


como produtora do sujeito esquizoide. Considera que a escola é hoje lugar em que
chegam prioritariamente as ‘crianças de televisão’, com referências simbólicas
tênues e que, diante delas, a instituição pedagógica evadiu-se de algumas
responsabilidades:

1) A escola não se responsabiliza mais por ser autoridade da palavra e de


assegurá-la aos alunos que [...] sentem a maior dificuldade em se integrar no fio
de um discurso que distribui alternadamente e imperativamente cada um em seu
lugar: aquele que fala e aquele que escuta (DUFOUR, 2003: 134). Acrescenta que
a autoridade é sempre da palavra – é o que é pressuposto no acesso ao
simbólico, onde a lei e o saber se instalam. Em sendo a autoridade personificada,
tende-se sempre a sair do saber simbólico para escorregar pelo gozo da tirania
grotesca e da comicidade cruel: quando a palavra não tem mais valor, o texto, a
escrita não se sustentam mais e todo controle só é possível pela via do ato, da
ação. É por isto que mesmo bem intencionados, muitos professores puseram-se
a substituir os exercícios que os alunos não conseguem mais fazer, por tarefas
mais simplificadas, ou a pagar com o preço do próprio corpo desgastado, para
tentar fazê-los concluir uma atividade. Substitui-se o aprender pelo fazer.

2) A escola não se responsabiliza mais por ser transmissora geracional, isto é,


por receber os alunos e introduzi-los em um mundo que foi pré-estabelecido
pelos próprios adultos. Acrescenta Dufour (2003), respaldado em Hannah
Arendt, que autoridade não é totalitarismo, mas também não é igualdade.
Portanto a escola não pode se pretender democrática (ainda que seu papel seja
conduzir à democracia) e desconsiderar que a transmissão simbólica da palavra
se faz de uma geração a outra. Tudo se passa como se nossa época não chegasse
a distinguir bem a necessidade jurídica da proteção das crianças (contra todas as
formas de abuso) da promoção da indistinção geracional (DUFOUR, 2003: 139).

314
Uma geração tem que ser responsável pela educação da que a sucede,
respaldada em seu saber-fazer adquirido no passado e visando o futuro dos que
virão (ou estes ficarão à deriva). Delega-se autonomia ao aluno.

3) A escola não se responsabiliza mais por promover o ensino com referência às


matérias dadas, pois em seu lugar oferece ao aluno uma série de visões críticas,
sem conteúdo prévio, para que cada um democraticamente dê sua opinião,
como se fosse inaceitável não considerar todos os pontos de vista de todos os
alunos. Mas a ausência de conteúdo e de sentido só pode levar o aluno à
confusão e ao não sentido, uma vez que é convidado a debater sobre algo que
ainda não experienciou. Instaura-se a violência generalizada, dado que o
confronto deixa de ser entre ideias e passa a ser entre indivíduos ou grupos.

4) A escola não se responsabiliza mais por mostrar que é preciso pensar sobre
os objetos de conhecimento e com isto passa a praticar a distração e o salto de
um tema a outro, ao sabor das relações do momento, como se não houvessem
objetos do pensamento e de saber consolidados. Pratica-se uma adaptação ao
estado letárgico em que muitos alunos se encontram, seja por prejuízos no
acesso ao simbólico, seja por isto mais o uso de medicações calmantes ou
antidepressivas.

Em nossa pesquisa também identificamos estes quatro elementos da pedagogia


contemporânea disseminados em diferentes atividades. Três delas foram alvos mais
contundentes de discussões nas reuniões semanais de equipe de pesquisa do
PROJETO “DESAFIOS”, o que as levou paulatinamente a mudanças importantes. A
primeira atividade, chamada ‘roda de conversa’, praticada prioritariamente nas
salas de 1ºs Anos do EFI; a segunda atividade, os ‘combinados de sala de aula’,
disseminados tanto nos 1ºs, quanto nos 2ºs Anos do EFI e a terceira atividade de
auto-controle disciplinar, presente nos 2ºs Anos do EFI.

Os ‘combinados de sala de aula’ consistem nas normas que regem o


comportamento dos alunos enquanto estão sob os cuidados da instituição escolar.
São estabelecidos pelo professor em conjunto com os alunos, têm o estatuto de
serem democráticos e de respeitarem a vontade da maioria. Geralmente são feitos
nos primeiros dias de aula – na esperança de que sirvam de baliza para o

315
comportamento ao longo de todo ano letivo – e são refeitos a cada crise séria de
indisciplina ou briga que se instale na sala de aula.

Concordamos com as críticas de Dufour: ‘combinados’ estabelecidos


democraticamente com os alunos levam fatalmente à indisciplina com relação ao
mesmo combinado. Consideramos sobre isto que quando o conjunto das crianças
participa da escolha de uma regra, algumas crianças vencem em suas propostas,
enquanto outras perdem. Na nossa avaliação, do ponto de vista afetivo, aos olhos da
criança que perdeu, o professor acolheu a demanda de amor do outro aluno e não a
sua, e isto em algum momento reverte-se em embate de uma criança com relação à
outra, pela mesma demanda de amor junto ao professor. Do ponto de vista da
aceitação social desta regra, crianças desta idade ainda fazem e refazem regras,
como quem brinca fantasiosamente; uma vez que ela foi uma das proponentes da
regra (mesmo tendo perdido), julga que esta também pode ser maleável e refeita
como no jogo do faz-de-conta. Não sendo uma lei impessoal, atemporal e universal,
que tem no professor o seu representante, o combinado (pessoal, temporal e local)
permite a escolha de continuar, ou não, participando do seu jogo.

Atividades deste tipo tanto não funcionam, que, como observamos na nossa
pesquisa, as salas de aula com maiores incidências de indisciplinas eram as que mais
recorriam a fazer e refazer combinados. Estas mesmas classes instituíram, na
tentativa de controlar a indisciplina discente, a auto-avaliação dos alunos (por meio
de anotações diárias sobre o comportamento e a adequação em sala de aula) e o
auto-controle emocional dos alunos (por meio de exercícios de relaxamento). Da
mesma forma que os combinados, estas atividades também demonstraram poucos
resultados efetivos. Quando o foco pedagógico se dirige prioritariamente à questão
disciplinar/afetiva, é porque a palavra já não se institui como lei e o que evidencia-
se é o corpo em ação.

Diferente dos combinados, as leis são instituídas a todos e são supra-sujeitos.


Elas independem das relações particulares que se estabelecem e funcionam como
referência a todos. A grande questão é que a lei tem que ser sustentada também
simbolicamente pelo agente responsável pela transmissão geracional educacional –
o professor.

316
Com relação à prática das ‘rodas de conversa’, pudemos observar
desdobramentos bem importantes para nossa pesquisa, e de efeito inverso ao que
se deu a partir dos ‘combinados’. As ‘rodas de conversa’ consistem em práticas quase
que diárias que se dão no início do dia letivo; nelas dispõem-se os alunos e o
professor em círculo e nele aqueles que quiserem podem fazer relatos pessoais
sobre qualquer assunto, enquanto os outros prestam atenção. Em princípio o que
respalda tal atividade é a necessidade de garantir que toda criança possa se
expressar e que aprenda a escutar o outro. Dois princípios de cidadania, portanto,
que precisam chegar à escola de forma sistematizada.

Observamos, no entanto, que: 1) com raras exceções havia tempo para que todas
as crianças falassem em um mesmo dia; 2) algumas crianças sempre tinham o que
dizer, enquanto outras geralmente permaneciam caladas e, as que falavam, muitas
vezes repetiam assuntos já abordados em dias anteriores; 3) as falas, aliás, não
constituíam ‘conversa’, uma vez que em sua maioria eram relatos de
acontecimentos: ‘Meu dente caiu’, ‘Minha avó chegou hoje de viagem’, ‘Minha mãe
comprou uma boneca nova pra mim’; 4) muitas crianças inscreviam-se para falar,
mas só na hora em que eram convocadas começavam a pensar algo para dizer: ‘É...’,
‘Sabe...’, ‘O que era mesmo...’, e nestas ocasiões, não raro repetiam algo que ela
mesmo já falara, ou algo semelhante ao que o colega acabara de dizer; 5) não havia
respeito com relação à vez de falar e com relação a escutar o que o outro dizia; 6) o
longo tempo de duração das rodas de conversa faziam com que começassem sob a
atenção de todas as crianças, mas não chegavam à sua metade com a dispersão de
todas, menos da que estava falando.

Ao analisarmos este acontecimento percebemos que as ‘rodas de conversa’


eram mais desestabilizadoras do que continentes para as crianças. Nelas claramente
as intrigas, provocações e dispersões dos alunos aconteciam com maior frequência.
Identificamos que se esta é uma prática disseminada em nome do ‘respeito’ à
palavra da criança, o que acontece é exatamente o inverso, pois entre as diferentes
falas não há fluxo de sentido, mas exposição de fragmentos de falas ligadas à função
pragmática a que nos referimos no capítulo anterior e que não têm desdobramentos
significativos pedagógicos, nem Subjetivos.

317
É preciso ressaltar que dar voz à criança e a troca entre elas não eram os únicos
propósitos desta prática, como ficou claro nas reuniões semanais do PROJETO
“DESAFIOS”. Quando se questionou sua eficácia pedagógica e disciplinar,
evidenciou-se que as ‘rodas de conversa’ também serviam estrategicamente para o
controle mínimo do professor sobre os alunos, no momento em que as crianças
entravam na sala de aula e se ‘lembravam’ de que não tinham tomado água ou ido
ao banheiro, tumultuando a primeira atividade do dia. Considerava-se, então, o fator
número de alunos/professor – 30 para 1, por sala – e o fator idade dos alunos – seis
anos – como decisivos na escolha das táticas de controle e adaptação ao dia letivo.

O que se discutiu nas reuniões da pesquisa sobre o tema foi a possibilidade de


estabelecer neste tempo propostas de atividades dirigidas com as crianças, sempre
envolvendo uma cantiga, um poema ou um texto com os quais muitas vezes também
era possível brincar com o corpo (‘Batata quente’, ‘Tumbalacatumba’, ‘Bambu
Tirabu’, etc.). Ou seja, este tempo de acomodação na sala deveria ser usado em
atividades que convocassem as brincadeiras com a oralidade infantil, espaço em que
os pequenos poderiam estabelecer relações de infância com a fala e com o outro
semelhante, preservando o primeiro pressuposto das ‘rodas de conversa’.

Além da nova configuração das ‘rodas de conversa’, o tempo dedicado a ela


passou a ser dividido também com outra atividade envolvente para as crianças, que
se chamou ‘senha de entrada’. Esta consistia de dois exercícios diários propostos aos
alunos, um na chegada do dia letivo e o outro no retorno do recreio. Nela os alunos
formavam uma fila junto à porta de entrada da classe e, um a um, eram provocados
pelo professor a responder oralmente a um desafio. A cada entrada o desafio
mudava e, só para citarmos alguns, consistiam em dizer o próprio nome invertido,
descobrir a palavra valise, dizer o nome de uma fruta começada com determinada
letra, dizer uma frase na língua do ‘P’, dizer um trava língua, decifrar uma adivinha,
propor uma adivinha, ler um rébus, completar um verso com uma rima, dizer uma
palavra com mais de três sílabas, etc. Esta atividade desenvolvia-se de forma que a
resposta dada por um aluno não poderia ser repetida por outro (o que os fazia
prestar atenção no que estava acontecendo, segundo pressuposto da ‘roda de
conversa’) e, não acertando a resposta do enigma proposto, a criança voltava ao final
da fila, para mais uma chance de desafio. Propúnhamos desafios de leitura e

318
ludismos poéticos, ou seja, atividades de letramento a partir da oralidade, desde o
primeiro momento de chegada na escola. Com isto, uma a uma as crianças
ingressavam na sala de aula onde o segundo professor estava pronto para
desenvolver uma atividade lúdica coletiva, até que todos entrassem.

O que se verificou com estes dois trabalhos foi exatamente o salto qualitativo
nas habilidades linguageiras e na prontidão das respostas das crianças, tanto quanto
o aumento de repertório vocabular (elementos fundamentais para a textualidade),
além de efetiva troca entre os alunos: à medida que entravam na sala de aula,
punham-se a querer saber qual tinha sido o desafio proposto ao outro e como
respondera. Um certo regozijo se instalou no ambiente, agora muito mais tranquilo.

Ao analisarmos a mesma questão – indisciplina – sob dois parâmetros distintos,


fica evidente que a questão disciplinar não é só intrínseca ao sujeito, mas ela é
fundamentalmente relacional. A ação e o comportamento não são representáveis em
si; o gozo que se instala só pode deixar de se satisfazer no corpo se ele puder ser
deslocado no discurso. Portanto, quando a indisciplina se apresenta em sala de aula,
o professor é convocado a exercer sua função simbólica, e esta não se realiza
mantendo o foco na própria questão comportamental, mas na oferta de outros
elementos textuais e referenciais que deslocam a repetição.

Pode parecer a muitos professores que o comportamento infantil indisciplinado


é uma afronta pessoal, mas é preciso não perder de vista que esta criança que acabou
de deixar a Educação Infantil e tem só seis anos, ainda está em constituição. Ou seja,
parte da formação psíquica destes pequenos se dará obrigatoriamente dentro das
escolas, que precisam se preparar para cumprir com seu papel. Perde-se muito
tempo explicando para os alunos o que é ‘ser cidadão’, mas pouco se permite que a
criança pratique sua cidadania infantil através de narrativas simbólicas, por meio
das quais – somente – ela poderá vir a ser alguém.

Pensamos também, com estas atividades ‘disciplinares’, na chamada ‘postura de


aluno’ a que se referem agentes da educação. Na espera de que a criança se faça
aluno por si só, corre-se o risco de que ele não perceba o que lhe é demandado: ser
aluno é ficar quieto, ser competente, inteligente, bom companheiro e cidadão?, ou
ser aluno é ser convocado a uma relação em que as transmissões de saber se dão?

319
Apostamos nesta segunda posição, em que o aluno só pode existir se no mesmo
instante for fundado um professor.

4.5.LEITURA E ESCRITA PARA ALÉM DO PAPEL – A


REPRESENTAÇÃO COMO FUNÇÃO DE LETRAMENTO

O que se passa atualmente é que ao deixar de lado os métodos de ensino, as


escolas construtivistas adotaram em seu lugar um pré-fazer construtivista que
espera do aluno toda manifestação de saber.

A maneira atual de olhar para isso vai levar em conta que cada criança tem que aprender
a escrever do seu jeito. Ela já está no processo de letramento e ela, a partir das hipóteses
que vai construindo, entra no sistema de escrita pré-constituído. Já viram a criança se
relacionar com a escrita a partir desse momento em que o adulto ‘sócio-construtivista’
diz para ela, ‘Continue a escrever. Escreva do seu jeito. O seu jeito está certo’. Ela vai em
frente, vai tecendo hipóteses de como é que as palavras se juntam, como as letras se
juntam, o que são frases, etc. Mas ela está às voltas com um Outro que mudou de
estatuto para ela: o Outro que diz para ela ‘Escreve do seu jeito’, ‘Olha, essa é uma
produção que eu valido, que tem sentido, que é o seu jeito’, a criança começa a
demandar do adulto uma coisa que é profundamente chocante do ponto de vista da sua
investigação sobre a sexualidade que é a verdade. Ela quer saber do adulto cada vez
mais qual é a verdade da escrita. E por que essa pergunta é tão forte e tão insidiosa?
Porque diz respeito à verdade da sua própria experiência de satisfação, sobre a verdade
de seu corpo (DUNKER, 2011).

Quando a criança ‘escreve do seu jeito’ a pedido do professor, ela faz traços
incompreensíveis, mas que para ela são legíveis, tanto quanto são suporte de sua
representação como Sujeito. Quando o professor aceita os rabiscos como escrita, ele
opera com a criança como a mãe com seu bebê: antecipa e significa um
acontecimento que ainda não está lá. O aluno responde a isso, ele entrega-se a essa
leitura do Outro, mas aí coloca-se uma outra questão:

O problema dessa antecipação de sentido é: quando é que eu vou poder operar, não com
minha assinatura, mas com o fato de que o outro também tem uma assinatura? E como
é que eu vou distinguir a assinatura do outro da assinatura do um? (DUNKER, 2011).

A questão posta pela criança a si mesma, não é sobre sua capacidade de dispor
de um papel e um lápis e ali marcar suas grafias, objetivamente ‘escrevendo do seu

320
jeito’. A questão é que ao fazê-lo, inscreve as marcas de seu desejo fazendo-se Sujeito
diferente do outro. Ela pode ser capaz de chegar a isso com mais tranquilidade se
subjetivamente já tiver mudado de posição e se apropriado de sua castração. No
entanto, não será capaz deste salto sozinha e, se neste caso o professor ficar
pragmaticamente preso aos preceitos de um método, esperará que entre aluno e
objetos da realidade – leitura e escrita no papel – as coisas se resolvam. Mas aí as
chances de não se resolverem são grandes.

O fato de a escrita ser, como diz Ferreiro (1981), a construção de um sistema


representacional e não uma transcrição de código, é porque a escrita gráfica
comporta mais do que o simples acontecimento no papel. Portanto, é preciso olhar
mais de perto e indagar o quê está sendo representado. De onde decorrem os
elementos para esta representação? Eles vêm do cotidiano, dirá um construtivista.
Este cotidiano não é só pragmático, diremos nós.

Se as garatujas da criança – que estão longe de ser uma escrita reconhecível –


são validadas pelos professores, é porque aí se reconhece uma marca de Sujeito. Por
que, então, outras manifestações infantis não são reconhecidas como tal na escola?
Porque os corpos que se agitam em torno de brincadeiras são escanteados e não são
também integrados às atividades de leitura e escrita? Consideramos que o que está
pressuposto neste recorte que só dá relevo à escrita, é a própria escrita como centro
da alfabetização e aí, neste ponto, não cabem os textos narrativos... Cada palavra
escrita é cotejada com outra palavra escrita, e aí torna-se decifração. A palavra para
ser efetiva na alfabetização precisa ser relacionada, associada e representada em
outros textos (orais ou escritos), ou seja, a palavra do texto precisa ser
intertextualizada – ponto em que se pode recuperar as narrativas, tão caras a
Benjamim, Lyotard e outros.

Pelo que já expusemos anteriormente, agora corroborado por Dunker, podemos


estabelecer mais esta diferença com relação os métodos construtivistas: a escrita é
representação do Sujeito (e de tudo o que ele revela em sua Subjetividade) e não
representação da própria escrita, especialmente se esta se erige sobre elementos
que distanciam a criança de seu universo infantil e a aproximam do mundo
mercadológico exposto no cotidiano pragmático.

321
Em sua tese, Anderson Carvalho Pereira (2011) discute a reificação da escrita
no processo de letramento. Toma a escrita como um processo inacabado, porque
atravessado pela incompletude imposta pela linguagem, e estabelece que a escrita
ao mesmo tempo em que liberta o sujeito, aprisiona-o.

Quanto ao aprisionamento, identifica na escrita um mecanismo de influência


ideológica sobre os sujeitos, uma vez que não há linguagem sem sujeito e não há
sujeito sem ideologia. Para o autor, as teorias da escrita fazem crer que se está sob a
transparência da linguagem, uma vez que tomam a escrita como objeto de estudo
isolado do sujeito. O que Pereira (2011) aponta, no entanto, é que a escrita é
cooptada pelo discurso científico que funciona como unidade de verdade, e nesta
pretensa verdade ilude o sujeito e aprisiona-o em suas malhas. Este seria justamente
o lugar de reificação da escrita.

A consciência do discurso científico não permite imprevistos de sentido e


interpretação na escrita, reforçando a assepsia e linearidade na função
comunicativa. Mas, alerta o autor, a escrita não é um objeto neutro, como
ideologicamente requer o discurso científico.

O processo de reificação da escrita se corporifica por essa pretensão de visibilidade da


escrita, como objeto acabado, como coisa, e que vem da circulação, aparentemente clara
a acessível entre os falantes, ancorada tanto no subjetivismo e na ilusão de liberdade
para interpretar (Haroche, 1992), quanto no objetivismo e na cristalização de um
código fechado como se o sujeito se colasse totalmente a ele.

Todavia, como se trata de um processo inacabado, temos a possibilidade de


rompimento, pela consideração do sujeito do letramento, filiado ao paradigma
indiciário que, pela AD [análise do discurso], propõe a proximidade às práticas
cotidianas de linguagem (PEREIRA, 2012: 113).

Propõe-se a investigar a relação tensionada entre reificação e incompletude na


escrita, a partir da relação entre sujeito e interpretação, sustentado teoricamente na
análise do discurso, por meio da qual investiga as implicações da memória do dizer.
Interessa-lhe o que deixou de ser dito, isto é, como a história intervém ocultando o
que poderia ser dito.

Para Pereira (2011) a escrita veiculada pelas teorias científicas estabelece um


discurso dominante. Primeiro porque as ciências da escrita constituem uma
dicotomia entre a linguagem oral e a escrita; segundo porque fazem a cooptação

322
desta separação e estabelecem uma hierarquia entre as duas (com vantagens para a
escrita); e terceiro, porque nesta cisão, também cindem pensamento e linguagem.

A passagem do oral ao escrito é atravessada por evidências ideológicas. Aponta


que há perdas irreparáveis na gradativa extinção do saber oral e de suas práticas. A
escrita é associada, pelo discurso científico, ao desenvolvimento cognitivo e
intelectual e ao progresso social; ela é uma ‘arma simbólica’ porque é privilegiada
no campo cognitivo.

O ato de escrever, portanto, dá ilusão de materialidade do pensamento, mas


inscreve-se no âmbito do esquecimento de que o objeto da escrita não é neutro e de
que a linguagem é sempre incompleta. Isto ocorre principalmente pela redução do
letramento à tecnologia da alfabetização e da apropriação meramente individual da
escrita (PEREIRA, 2012: 23) – elementos que, como destacamos no material didático
do PNLD da EA-FEUSP, são os privilegiados no processo de alfabetização.

A dominância do discurso científico fortalece a noção de que a escrita é o que


garante o controle sobre a interpretação, mas ao aprisionar o sujeito na verdade
científica, impede-o de romper com este discurso e manifestar-se pelas rupturas de
linguagem. Pereira identifica que é isto que ocorre no processo de escolarização.

O que se cala na memória para estes efeitos de dominância e reificação?

Para mostrar o avesso disto, Pereira (2012) se vale do conceito de letramento –


como o concebido por Tfouni e também abraçado por Belintane e por nós – que o
aproxima das práticas cotidianas da oralidade, sendo assim mais do que escrita
gráfica. Questiona a exclusividade da associação das habilidades escritoras à lógica
e à abstração, uma vez que encontra as mesmas habilidades orais em adultos
analfabetos. Mas como os discursos científicos recalcam as concepções teóricas que
inscrevem a posição de sujeito, desconsideram esta concepção de letramento e
admitem a escrita como exclusiva na produção cultural que atravessa os processos
sócio históricos. É isto o que está elidido: o sujeito na oralidade também é produtor
de saber.

O sujeito, no entanto, não está determinado só pela ideologia, mas também pelos
efeitos metafóricos da linguagem, por onde mostra seu desregramento. Ou seja, o

323
sujeito nunca deixará de se relacionar tortuosamente com o que não foi dito, seja na
oralidade, seja na escrita.

A escrita pode ter trazido organização lógica para as necessidades históricas,


mas não garante superioridade no domínio da linguagem, no sentido de que a
postura subjetiva diante da linguagem não é garantida pelo fato de ela ser ou não
escrita. É a possibilidade de interpretação que fornece ao sujeito os caminhos de
questionar a totalidade de qualquer discurso.

Tanto na oralidade, quanto na escrita, há recursos para driblar a polissemia e


controlar as ambiguidades, mas o discurso da escrita (que recalca a oralidade) torna
este controle mais visível e se mostra como negação da incompletude.

Pela análise do discurso e pela noção de sujeito do letramento, vê-se como a


reificação da escrita interfere diretamente na constituição do sujeito como
intérprete.

Mas o ato de reificação na escrita é ambivalente pois, ao mesmo tempo em que


aliena sujeito e objeto, também faz do sujeito – pela própria condição de ser sujeito
de linguagem – um processo inacabado, portanto resistente. O paradigma da escrita,
portanto, é de alienação e resistência. A escrita, aparentemente acessível a todos,
não funciona como um substrato puramente material, mas também à maneira de o
sujeito lidar com a memória discursiva e ser intérprete.

Pereira (2011) afirma que o sujeito letrado alfabetizado é mais poderoso que o
sujeito letrado não-alfabetizado. Como a escrita determina o sujeito no processo de
reificação? A escrita recobre contradições sociais e lança o sujeito na opacidade da
linguagem. O discurso científico nega a heterogeneidade constitutiva da linguagem.
Mas, ainda assim, a escrita se mostra processo inacabado, atravessado pela
incompletude da linguagem, visível na oralidade.

O sujeito da escrita e o do letramento, pelo uso oral e escrito, está imerso no


simbólico, portanto tem – nos dois casos – como lidar com a incompletude da
linguagem. E é a interpretação subjetiva que permite esta lugar libertário com
relação à onipotência da escrita e sua interpretação unívoca.

A partir das análises de Pereira e de tudo o que expusemos até aqui,


consideramos que o sujeito, como estabelece a psicanálise, é Sujeito constituído na

324
modernidade, vinculado ao Outro e, como tal, se constitui nas práticas da
modernidade. Se uma destas práticas é a disseminação da escrita e da leitura, é
também neste âmbito que o Sujeito se constitui psiquicamente. Portanto, negar-lhe
o acesso à alfabetização, ao domínio da leitura e da escrita, é negar-lhe o acesso a
parte de sua constituição psíquica que pode questionar o Outro em suas incidências
gozosas e alienantes.

Sabemos que muitas vezes a criança não consegue fazer o traçado de seu
próprio desejo e corpo. Ela fica perdida e o que se passa é a repetição de seu
reencontro com o objeto de horror (com a letra, ou com seu correspondente
numérico, o traço unário) que também a nomeia e significa, mas presa ao gozo. Por
meio do fragmento e do resto a criança repete, na tentativa de se apreender aos
pedaços. Os objetos aos quais se identifica satisfazem a tensão psíquica pela via do
gozo, mas desviam-na do saber e a mantém aprisionada ao objeto-resto. Esta criança
é alvo constante da intermitência significante (posto que é um Sujeito), mas não
consegue operar com ele, retrocedendo ao vazio, a um corpo sem conformação e
ainda preso ao significado alheio.

Mas, se o processo de letramento formal (secundário, como colocamos no


Capítulo 3) é para nós necessariamente vinculado à possibilidade de interpretação
textual, é porque acreditamos que no âmbito da escola é necessário abrir à criança
– especialmente a esta que apresenta dificuldades – os interstícios das narrativas,
da oralidade, por onde possa vir a se fazer Sujeito de seu próprio Texto.

Como afirma Alícia Fernández: O essencial de aprender é que ao mesmo tempo se


constrói o próprio sujeito (FERNÁNDEZ, 2001: 31). Na nossa visão, não só constrói, mas
também constitui Subjetividade.

É por isto que radicalmente nos colocamos na via das narrativas e da oralidade
como concebemos no Capítulo 3, pelas quais as errâncias da linguagem podem vir a
se representar. Desde a posição do professor, nos ludismos-poéticos e nas grandes
narrativas o sujeito-criança pode alienar-se no texto e dele se separar, construindo
uma interpretação sua, mas que justamente porque se respaldou em elementos da
tradição, também vinculada à sócio história.

Posicionamo-nos também na defesa de que para se alfabetizar não são textos


quaisquer que se deve ofertar à criança, mas necessariamente bons textos: textos
325
diferentes da fala coloquial, textos que não sejam simplificados ao modo de um
cartaz ou uma receita, que não reproduzam só falas prosaicas, que não sejam só
informativos e comunicativos, que não sejam textos que simplesmente gozem do seu
corpo infantil como uma propaganda, que não sejam tecnicistas ou forjados na
cidadania adulta e no pragmatismo. Com bons textos estamos propondo uma
pluralidade de narrativas abertas à intertextualidade, que ofereçam experiências
estéticas e literárias, que sejam vinculadas à função poética, que façam parte da
tradição oral infantil, textos épicos ou míticos, textos que falem da vida e da morte,
textos que remetam à origens e às histórias que intrigam a humanidade. Enfim,
propomos textos que explorem a pujança do desejo infantil e motivem sua
criatividade e curiosidade de saber.

Nossa posição vai ao encontro daquela já tomada por José Ortega y Gasset
(1920) há quase um século. Ali, pôs-se em embate com Antonio Zozaia, fervoroso
defensor de que nas escolas se ensinassem técnicas e leituras que preparassem a
criança para vida (jornais, manuais e periódicos) e que se abolissem delas os textos
literários, como ‘Dom Quixote’. Ortega y Gasset, criticando Zazoia, inclinava-se à
função poética do texto que instigava a curiosidade infantil levando a criança a
querer saber, a querer descobrir e criar.

Nossa posição também é concordante com a de Belintane, para quem o texto


cumpre uma função central e fundamental na educação e em especial na
alfabetização:

O mito, a lenda, as narrativas que tocam nas origens, que enfrentam o mistério da morte
e da ressurreição (como a lenda brasileira do “guaraná” ou a história da “Bela
Adormecida”) também, de alguma forma, são efeitos da função poética e das matrizes
primevas e fundamentais da literatura. A magia, por exemplo, que faz nascer de um
corpo humano enterrado (de uma menina) um pé de vegetal que vai matar a fome de
um povo, não deixa de ser um deslocamento dos elementos da realidade que em geral
são recobertos pela função referencial da linguagem: o corpo simplesmente
apodreceria na terra sob o festim dos vermes – juntamente com ele, não fossem essas
possibilidades de expansão mítica, apodreceria também a vitalidade da linguagem e do
psiquismo infantil. Do mesmo modo, quando a criança bordeja o nonsense, abrindo a
linguagem ao mistério, ao estranhamento, está também revitalizando seu psiquismo,
suas possibilidades de releitura, tanto da vida como da palavra (BELINTANE, 2011:
154).

326
As narrativas, para a alfabetização, precisam disponibilizar para a criança os
elementos significantes, os fragmentos de palavras, os restos de linguagem que são
recolhidos e com eles fazer seus canteiros de obra e construir seus castelos de
palavras.

Construção mais ou menos difícil, mais ou menos elaborada, mas sempre


construção quando ela é mais apartada do pragmatismo da vida adulta, como a que
ilustra Manuel de Barros:

Hoje eu completei oitenta e cinco anos.

O poeta nasceu aos treze. Naquela ocasião escrevi

uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda,

contando que eu já decidira o que queria ser no

meu futuro. Que eu não queria ser doutor.

Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa

nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser

fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a

carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser

fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais

velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota

mantimento em casa? Eu não queria ser doutor,

eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu:

Mas se fraseador não bota mantimento em casa,

nós temos que botar uma enxada na mão desse

menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a

cabeça um pouco mais. O pai continuou meio

vago. Mas não botou enxada (BARROS, 2010: 9).

327
5. NARRATIVAS – TENSIONAMENTO ENTRE A SINGULARIDADE
E A SÓCIO HISTÓRIA

No ano de 2009 foi lançado um filme brasileiro chamado ‘O Contador de


Histórias’127, baseado na vida real de Roberto Carlos Ramos. De família mineira,
pobre, último filho de uma prole de 10, o protagonista da história foi levado pela
mãe aos seis anos de idade para a Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor
(FEBEM128). A genitora, iludida pelas propagandas oficiais sobre a instituição,
veiculadas na década de 1970, acreditava que ali seu filho seria educado e formado
para o trabalho. Nos cinco anos que permaneceu no abrigo Roberto Carlos foi
considerado ‘irrecuperável’: fugiu mais de 100 vezes para ficar nas ruas, não se
alfabetizou e passou a ser usuário de drogas.

Ao oito anos descobriu com seus companheiros de rua/FEBEM que mesmo


analfabetos eles gostavam de ouvir histórias, mas não havia ninguém para lhes
contar. Descobriu também que ‘o bom contador de histórias é aquele que conta as
histórias que as pessoas gostam de ouvir’129. Como seus amigos gostavam de
histórias de briga e de morte – e não das histórias de animaizinhos bonitinhos
contadas na FEBEM – ele lia sobre as figuras de jornal e, inventando histórias
brutais, envolvia os ouvintes. Revela na sua entrevista que quando apareciam alguns
meninos que de fato sabiam ler, mas liam silabando, ‘não sabiam convencer as
pessoas de que eram bons leitores’. Ele era bom leitor, embora analfabeto!

Ao 13 anos foi ‘encontrado’ por Margherit Duvas, uma pedagoga francesa que
em princípio viu no menino um dos sujeitos de sua pesquisa de doutorado, mas que

127
Filme dirigido por Luiz Villaça e produzido por Denise Fraga e Francisco Ramalho Jr., lançado em
2009.
128
A FEBEM é uma instituição pública assistencialista, instituída e controlada por cada um dos
Estados da Nação a partir da Lei Federal 4.513/64 que instituiu a FUNABEM (Fundação Nacional do
Bem-Estar do Menor, responsável no âmbito nacional por formular e implantar as políticas públicas
de assistência ao menor). Inauguradas em plena ditadura militar, a FEBEM sempre tinha trabalhos
dirigidos a menores ‘desamparados’ ou ‘infratores’, cujas ações sócio educativas foram bastante
questionadas pela elite intelectual de esquerda. Desde 2007 foi renomeada como Fundação Centro
de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA) e hoje só atende jovens de 12 a 21
anos infratores e tem a missão primordial de aplicar medidas socioeducativas de acordo com as
diretrizes e normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
129
Entrevista de Roberto Carlos Ramos para o programa de Jô Soares (Rede Globo de televisão), de
onde destacamos as falas do contador de histórias, aqui referenciadas.
http://www.youtube.com/watch?v=WtjvG3aKhSU .

328
terminou por adotá-lo, levando-o para a França, onde permaneceu por oito anos,
período em que estudou. Ao 21 anos ele retornou ao Brasil e graduou-se em
pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Trazemos esta sinopse para falarmos do encontro entre a criança e a pedagoga,


permeado amorosamente pela oralidade e pelas narrativas diversas. Ainda dentro
da FEBEM, Duvas teve o primeiro contato como o menino. Reencontraram-se nas
ruas três dias depois, momento em que a pesquisadora escutou a história de sua
trajetória na instituição socioeducativa e sobre o rótulo de irrecuperável ali
recebido. Indignada, levou-o para sua casa por uma semana – que se converteu em
um ano e depois na adoção.

O que se passou na casa de Duvas desde o primeiro momento foi transmissão


geracional: incomodado com o ‘jeito errado’ da francesa falar, Roberto questionou-
a e então ficou sabendo que do outro lado ‘da Terra redonda, em que as pessoas
andam de cabeça para baixo e é dia enquanto aqui é noite’, que neste lugar, se falava
outra língua. Ele não acreditou nisto, mas disse que também sabia uma língua
diferente, a língua da rua e, ao dizer uma frase naquela língua própria, escutou de
sua interlocutora maravilhada: ‘Fantástico! Você tem 13 anos, não sabe ler nem
escrever, mas você consegue fazer a divisão silábica, truncar a sílaba tônica
inconscientemente e colocar variantes’. Ela se encantou com o anarriê130 de sua fala
e propôs uma troca: ele lhe ensinaria sua língua e ela lhe ensinaria o francês.

Assim Duvas lhe conta histórias de seu cotidiano francês e histórias de livros.
Fala sobre as comidas de sua terra natal, sobre sua língua materna e as bizarrices de
algumas palavras, sobre hábitos, mas não faz destes momentos monólogos prolixos,
senão que indaga o menino sobre o que ele pensa, como são as coisas em sua vida;
questiona-o de maneira que se posicione frente ao mundo. Neste ponto Roberto
Carlos se põe no caminho da alfabetização, formalizando sua leitura do mundo.

A oralidade e a narrativa que fazem laço de representação, que questionam a


posição subjetiva e recupera os intervalos de ternura desta relação se dão pela
recuperação das histórias perdidas e pela possibilidade de representá-las de outros
modos. É uma história que resume diversas questões apontadas até aqui nesta tese:

130
Anarriê – palavra de origem francesa que indica um passo de dança nas quadrilhas de Festa
Junina.

329
a gravidade de diagnósticos pedagógicos, psicológicos ou médicos que condenam
crianças a não saírem da condição de incapazes ou doentes; a capacidade leitora
instalada desde a oralidade; o desejo pelas narrativas expresso com vigor na
infância; a inadequação de alguns textos oferecidos às crianças; a importância das
narrativas na transmissão geracional; a condição de que a aprendizagem se de
através das relações.

O que propomos neste capítulo final é a discussão sobre algumas possibilidades


de trabalho que levem em consideração a ação pedagógica com a oralidade e as
narrativas, mas que não perca de vista as singularidades que demandam atenção e
cuidado, bem como, as discursividades sócio históricas que depositariam sobre
estes sujeitos uma série de explicações que os engessam na mesma posição.

Para isto discutiremos alguns dados produzidos para esta tese e outros
oriundos do PROJETO “DESAFIOS” visando eleger questões que nos parecem
urgentes referentes às práticas alfabetizadores e visando traçar algumas
possibilidades interventivas neste campo pleno de demandas sociais e individuais.

Vamos ver um tanto de perto como se configuram estas demandas tão


heterogêneas, em dados obtidos a partir de quatro diferentes fontes: de registros de
situações de aula e discussões e troca de informações entre professores; de material
da Educação Infantil dos alunos de uma sala de 1º. Ano EFI da EA-FEUSP e o
resultado do primeiro processo diagnóstico destes mesmos alunos; de entrevistas
realizadas para esta tese com alguns núcleos familiares destes alunos; e do
acompanhamento individual de dois estudantes.

5.1.HETEROGENEIDADES EM SALA DE AULA – O TENSIONAMENTO


DAS RELAÇÕES

O primeiro aspecto para pensarmos sobre a heterogeneidade é assumirmos as


condições reais das salas de aula que encerram demandas infantis e adultas tão
diversas quantos são os sujeitos de uma classe. A heterogeneidade é condição da
subjetividade; como, então, atender a cada um? A descrição do caso do contador de
histórias tratava da relação de uma criança para um adulto, condição em que as
diferenças estão marcadas só entre dois indivíduos. Como estabelecer relações que

330
considerem todas individualidades em salas com 20, 30 alunos e ao menos um
professor?

Primeira resposta: em situação alguma se dará conta de todas as questões, de


todas as demandas e relevos individuais e relacionais; a entrada em sala de aula
pressupõe um tanto de falta, um tanto de não saber.

Segunda resposta: se há falta com relação ao saber, este é o espaço de abertura


para o outro – seja este outro um novo olhar sobre a educação, uma nova relação
com um aluno, um outro material didático, uma outra representação sobre si.

Retomando o que vimos no Capítulo 3, se a heterogeneidade subjetiva é


intrínseca a cada sujeito, é também pela via da Subjetividade que os Sujeitos
manifestam suas relações de pertencimento à cultura, e aí desfrutam de
acontecimentos comuns. Se crianças e adultos compartilham alguns acontecimentos
sociais, são capazes de dispor do que é oferecido ao conjunto dos indivíduos e com
este material traçar seus caminhos individuais – ou seja, serão capazes de operar
com as alternâncias de presença/ausência do Outro e de saber/não saber.

Os problemas nas salas de aula começam quando estes relevos subjetivos


atrapalham o rendimento pedagógico de um aluno e/ou do conjunto deles, ou
quando atrapalham o modo de ensinar do professor. Quando uma criança ou um
adulto circula sempre em torno de um mesmo nó representativo e, diríamos, não se
permitem andar sobre a Banda de Moëbius para ver-lhe a contiguidade, aí sim as
heterogeneidades exigem total atenção.

A relação de ensino / aprendizagem é complexa. Na escola o professor é um


modelo de saber para os alunos, especialmente para os pequenos que iniciam seu
percurso na aprendizagem formal. Ele efetivamente detém mais conhecimentos
adquiridos não só pelos estudos, mas pelo seu maior tempo de vida e experiências
consolidadas. Mas também os alunos têm saberes e um percurso de vida marcado
por suas experiências. O que alunos e professores fazem em sala de aula interfere
dialeticamente na relação com os outros, mas é na ação modelar do professor que
encontraremos a posição que permitirá saídas possíveis ali onde algo manca.

Deste modo, ao eleger um sentido único e imutável para o ensino, ou seja, ao


pretender que uma orientação teórico-prática – seja ela qual for – lhe dê todas as

331
respostas para seu modos operandi, o professor aliena-se a este discurso e sai da
relação dialética pressuposta em toda educação. Ao unificar todos os
acontecimentos em torno de um só prisma, crê estar facilitando seu trabalho, mas
no fundo está se esquivando dele e se alijando nele. O método – o discurso – passa a
ser soberano e ora é detentor de todo saber, ora é ignorante para responder às
necessidades impostas. Os sujeitos (professores e alunos) saem de cena e ficam
submetidos ao julgo de uma narrativa que lhes é externa.

O que perpassa toda elaboração teórica desta tese, que também se reflete e é
reflexo dos esforços práticos empreendidos no PROJETO “DESAFIOS”, é a
necessidade de que a educação nas escolas se aproxime realmente destas
heterogeneidades que se apresentam como ‘problemas’.

É preciso estabelecermos antes de mais nada que as heterogeneidades não estão


colocadas só do lado do aluno, mas também do professor. Iniciamos, então, pela
análise destas singularidades docentes.

5.1.1. DIFERENTES ESCUTAS/OLHARES SOBRE O ALUNO E SOBRE A


EDUCAÇÃO

Uma das propostas do PROJETO “DESAFIOS” é fundamentar e instrumentalizar


o papel do ‘segundo professor’ em sala de aula, especialmente nos anos iniciais da
alfabetização. Não tratarei extensamente deste assunto aqui, uma vez que é objeto
de outras pesquisas deste projeto maior, mas retomo aqui o posicionamento de
olhares diferentes sobre a mesma questão.

Como vimos no Capítulo 3, as demandas das crianças de cinco, seis anos de


idade, são bem diversas daquelas de crianças um pouco mais velhas, pois
apresentam duas características convergentes: ainda estão constituindo seu modo
de representar as relações e, neste processo, suas necessidades nem sempre se
mostram de modo claro. A presença de dois professores em sala de aula revelou que
a possibilidade de dois olhares, duas escutas sobre cada criança, é ferramenta que
permite maior e melhor compreensão, não do aluno em si, mas das relações que são
estabelecidas com ele e por ele, no que diz respeito ao conhecimento.

332
Isto pressupõe diálogo constante entre os professores, articulação conjunta das
atividades didáticas – ainda que um execute, os dois pensam sobre ela – a reflexão
sobre as facilidades e dificuldades pontuais de cada aluno e de cada professor.

Quando defendemos dois professores em sala de aula, em hipótese alguma


falamos em divisão de alunos entre professores – como o que vimos acontecer com
o Programa Bolsa-Alfabetização, discutido no Capítulo 4 – porque isto caracterizaria
duas salas de aula dividindo um mesmo espaço físico. A partir do PROJETO
“DESAFIOS” ficou instituído que todos os pesquisadores deveriam atuar em sala de
aula como ‘segundo professor’, a partir de algumas proposições. Destacamos destas
propostas a atividade de registro das atividades e dinâmicas relacionais de sala de
aula, como forma de auxiliar na identificação dos acontecimentos e dos não-
acontecimentos nas relações de ensino e aprendizagem. Com isto buscávamos
observar se no modo de ação dos sujeitos havia repetições de comportamentos
(discentes e docentes) que dificultavam a aprendizagem de alguma criança.

Observações feitas nas situações de atividades de sala de aula – elaboração de


desenhos, trabalho com adivinhas, contação de história, etc. – revelaram que as
formas de registro de cada professor são fontes importantes de pesquisa em
qualquer escola, uma vez que os olhares e as escutas são bastante diversos e é esta
diversidade de visada sobre a aula e sobre cada estudante que dá a dimensão da
Subjetividade dos professores.

Se a aprendizagem é, como já dissemos, acontecimento que se dá na relação, é


evidente que aprendizagens diversas acontecerão em relações diferentes
estabelecidas entre dois professores e um mesmo aluno. Retornamos aqui a
‘pupunha’ do Capítulo 3: sem que se avalie a correção de uma ou outra impressão, o
que está em jogo é a possibilidade de recolher nas diferentes singularidades dos
professores, registros heterogêneos sobre as mesmas situações, pois ao cotejá-los
também se pode repensar as dinâmicas de aula e a construção dos materiais
didáticos.

Abaixo exponho duas formas de registro, realizadas por dois pesquisadores


diferentes, com dois alunos diferentes, mas sobre a mesma atividade em que se
pediu que os estudantes recontassem a história do ‘Macaco e o grão de milho’. Nos
dois casos o pesquisador que perguntou ao aluno foi o mesmo que fez o registro da

333
atividade. Os alunos tinham em mãos os desenhos que haviam feito da história após
escutá-la.

Aluno 1, Professor 1

Não lembro da história... [O que foi que você desenhou aí?] O macaco tava com fome, aí
não tinha nada pra comer. Aí, no caminho ele encontrou um grão de milho... aí não sei...
[O macaco estava com fome porque não tinha nada pra comer, aí ele encontrou um grão
de milho...] Aí ele comeu... o grão... o grão de milho foi parar no galho da árvore... [O
macaco comeu o grão de milho, ou o grão foi parar no galho?] O grão caiu na árvore...
não sei. [Que personagens havia na história?] O macaco, esse aqui (aponta para o
desenho do machado) mas eu não sei o nome... [O que faz esse objeto? Pra quê ele
serve?] ... (continua olhando seu desenho) ...o machado, o fogo, o copo de água, o boi, o
caçador e a cotia. Ele chama o machado pra quebrar o galho (dispersa-se com o barulho
dos outros alunos, que estão reunidos fazendo o calendário com o professor) ... ele não
faz nada. Ele chamou o fogo pra queimar o galho, aí o fogo não foi. Aí ele chama o copo
de água pra molhar o galho... e aí ele chamou o boi. [Pra quê ele chamou o boi?] Não sei...
ele chamou o caçador. [Por que ele chamou o caçador?] ... pra atirar no galho, mas ele
não foi, porque ele queria caçar cotia... fim. [E o que aconteceu com o macaco e com o
grão de milho?] Não sei... [O macaco teve de volta o grão de milho?] Sim. [E o que faltou
na história pra ele ter de volta o seu grão?] Faltou a onça e a morte... ai..., não sei... [Você
acha que precisa escutar de novo a história pra se lembrar dela?] Sim.

Aluno 2, Professor 2
Perguntei ao aluno se ele se lembrava que história era aquela que o Sr. Rouba-Letras
tinha que descobrir para escapar do vilão Mesoclício Proparoxítono, e o menino
respondeu: “É fácil... O macaco e o grão de milho!”
Então eu lhe pedi que me contasse a história, mas ele ficou tímido e com um sorrisinho
no rosto. Eu perguntei: “Qual era o nome da história mesmo?”
Aluno: “O macaco e o grão de milho!”
Professor: “E o quê o macaco fez com o grão de milho?”
Aluno começou a contar.
Aluno com entonação de quem está pedindo alguma coisa: “Fooooogo, enferruja o
machado, pra cortar o tronco, que não quer devolver meu grão de milho”.
Depois disse que a água também enferrujaria o machado. Eu o questionei sobre isso, e
o menino respondeu que ambos enferrujariam o machado, água e fogo. Depois, ao
continuar seu reconto, corrigiu a ordem dos personagens. De toda forma, o fogo
continuou enferrujando o machado.
Terminou a história sem a entonação que o clímax pede e eu lhe perguntei: “e o quê o
macaco fez com o grão de milho?”
Aluno: “Ele comeu!”

334
Acredito que eu só tenha sentido essa falta de entonação no clímax porque o menino
colocou entonação nas vozes de todos os personagens e, ao final, deixou essa técnica de
lado.
Recordou-se da sequência e usou os verbos corretamente. O fogo, afinal, pode
enferrujar objetos de metal, oxidá-los. Parece-me ter sido uma observação empírica do
menino.

É interessante perceber que em atividade tão simples – anotar o reconto de


história – se possa estabelecer tantas diferenças. Elas são fruto direto das
Subjetividades de cada um. Enquanto na primeira anotação vemos a tentativa de
registro literal e direto de perguntas, respostas e acontecimentos, no segundo
notamos que já há interpretação sobre o relato do aluno no momento do registro e
que esta se dá mais sobre a forma narrativa do que sobre os conteúdo narrados. As
demandas de aprendizagem, de exposição do pensamento, de relacionamento sobre
a criança são absolutamente diversas e, no caso da pesquisa, complementares.

Ambas as maneiras de registro são importantes e justamente a comparação


entre elas é que permite a retroação sobre o ato de cada um. Ver o que foi feito na
relação estabelecida, e se ver nas suas ações, é uma maneira de poder repensar as
atividades pedagógicas e modificá-las. Mas para isto é preciso que estes dados
circulem, que sejam discutidos e avaliados pelo conjunto dos professores.

Fica evidente que a heterogeneidade não está dada só do lado do aluno, mas
necessariamente do lado do professor também e os manejos de sala de aula não
podem prescindir da análise de nenhum deles. O conjunto destes acontecimentos
todos é que compõem parte da realidade da sala de aula e das relações que nela se
estabelecem.

É assim que passamos ao segundo ponto sobre o papel do ‘segundo professor’


em sala de aula que gostaríamos de abordar. Todos tinham que participar da troca
de informações e discussões sobre atividades pedagógicas, avaliação de alunos e
professores. Poderíamos ilustrar este tipo de acontecimento com relatos das
reuniões semanais entre todos os pesquisadores e professores do projeto, que
aconteceram em cada polo do PROJETO “DESAFIOS”, mas optamos pelo recorte de
discussão estabelecida via troca de e-mail (portanto plena de frases coloquiais), que
versa sobre o mesmo assunto – narrativas. O objetivo específico desta troca de
informações era estabelecer critérios para avaliar recontos feitos pelos alunos, mais

335
especificamente sobre o modo e a forma destes recontos. Esta discussão se estendeu
aos três polos da pesquisa e foram trocados mais de 15 e-mails sobre o tema, mas
aqui faço o recorte de apenas um e-mail de cada localidade da pesquisa:

Polo RN – Olá, estava pensando em alguns critérios que ajudem a refletir sobre os
recontos das crianças, como fruto de uma discussão no grupo de Pau dos Ferros e acabei
elencando alguns que tenho observado, se possível, me ajudem a pensar em outros
critérios: compreensão das etapas presentes na narrativa, incluindo noções de início,
meio e fim; analisar se o aluno traz à tona detalhes importantes da história ou apenas
cenas/palavras marcantes; eixo metonímico: há troca de palavras por expressão
(ferreiro por homem que trabalha com ferro); uso de recursos presentes na história
para lembrar da narrativa (recorrer à músicas, frases fortes/marcantes); como a
narrativa é contada (era uma vez...); os personagens existentes no reconto são os
mesmos que aparecem na narrativa; alguns personagens são implementados e/ou
esquecidos; intertextualidade (o aluno já possui narrativas em sua memória); existe
criatividade no reconto ou o aluno se prende ao texto ouvido/contado; confusão entre
semelhança sonora presente entre palavras.

Polo SP – ..., que legal mesmo essa retomada dos recursos usados pelas crianças, e vc
pensar em forma de critérios. Quando o professor ... aponta para as potencialidades
delas, penso que em cada critério, seu uso pode ser um aspecto positivo ou negativo
dependendo de cada caso. Por exemplo, um aluno ter o poder de síntese pode ser legal,
mas se o pedido foi 'lembre-se dos detalhes do texto', aí a síntese não é legal. Um aluno
muito associativo às vezes se configura numa criatividade, outras vezes numa deriva.
Bem, acho que estamos sempre exercitando a escuta e, nesses casos, penso que entra
em jogo o bom-senso do professor que está escutando, mais do que o mero 'é criativo
porque insere coisas?- sim/não'. No caso dos dados sobre o [nome de um aluno], creio
que isso fica claro, ou sugere algumas reflexões. Ainda mais se as informações sobre
narrativas forem cotejadas junto a outros dados sobre o aluno. Vou 'colar aqui abaixo'
alguns registros, mas acho que o registro da [nome de uma pesquisadora] sobre o
reconto do boi de mamão é mais exemplar, porque na história tem uma 'festa', mas ele
esquece totalmente da história e começa a contar sobre outra festa que em ele deve ter
ido. [Nome de uma pesquisadora], passa pra [nome de uma pesquisadora] quando
puder, please. Por ora é isso, espero que dê pra entender, porque envio o email meio
que 'na correria'.

Polo PA – Olá. Gostei muito das informações partilhadas sobre tais 'CRITÉRIOS DE
RECONTO'. Estou lendo e me informando bastante sobre isso, pois minha pesquisa trata
sobre o papel da biblioteca oral da criança no processo de alfabetização. Defino por
biblioteca oral as matrizes orais e as operações linguísticas que a criança apreende
antes mesmo de ingressar no meio educacional. A atuação da memória para apreensão

336
de tais conhecimentos é importantíssima para que, ao se deparar com atividades de (re)
conto por exemplo, a criança traga à tona tudo aquilo que tem em sua biblioteca oral
com objetivo de atribuir sentido àquele 'conhecimento novo' (escuta de histórias, por
exemplo). Como foi citado não lembro por quem, a criança consegue entender os
elementos de uma narrativa (início, meio e fim) antes mesmo de entrar na escola. Os
critérios citados pela Profª. [nome de uma professora] demarcam bem os passos da
criança no momento em que ela (re) conta narrativas e nos dados que tenho, percebo
muito a questão da intertextualidade, umas verdadeira mistura de histórias que são
lembradas pela criança no momento de seu reconto. Como tenho poucas referências
para a pesquisa, peço aqui algumas sugestões de leitura que possam vir a me ajudar a
focar mais no que pretendo tratar. Aguardo respostas em breve. Que continuemos com
esse compartilhamento de informações. É de grande auxílio a todos.

O que se quer demonstrar com este exemplo é que quando se institui a troca de
informações e de procedimentos entre professores enriquece-se a discussão sobre
cada acontecimento de sala de aula, além de possibilitar revisões sobre práticas que
podem incorrer em vícios tarefeiros e, consequentemente, em prejuízo para os
alunos. Mais uma vez aqui o objetivo é ampliar olhares e proporcionar
reposicionamentos diante das práticas de ensino, considerando a singularidade de
cada um.

Se expusemos com este exemplo acima uma discussão um tanto específica


dentro da nossa equipe de pesquisa, não é para que esta sirva de modelo de
conteúdo de discussão, mas para que se mostre que é necessário ampliar, trocar
informações, pensar e repensar sobre critérios, objetivos mínimos, porque é isto que
faz verdadeiramente a construção de saber. As trocas têm que se dar ali onde as
questões aparecem; elas não podem ser o tempo todo remetidas a instâncias
superiores cujo papel é avaliar e analisar o que acontece segundo escopo deste ou
daquele modo de ação.

É preciso levar para dentro das salas de aula a implementação daquilo que está
decidido nos parâmetros oficiais da educação – avaliação permanente, construção
de conhecimento, olhar voltado ao singular, produção de material didático –
acontecimentos que no nosso entendimento estão imbricados. Esta é mais uma
maneira de fazer coincidir em algum ponto os aspectos subjetivos com aqueles sócio
históricos.

337
Pode-se objetar que a presença do ‘segundo professor’ em sala de aula pode ser
um problema, uma vez que os dois profissionais podem não ter afinidades. Sabemos,
por vivência e depoimentos de situações cotidianas, que as afinidades entre as
pessoas não são iguais e a isto que se chama empatia ou indiferença tem, no conceito
psicanalítico de transferência, a sustentação das relações possíveis entre dois
sujeitos.

A transferência pode ser pautada pelas demandas imaginárias – gostar/não


gostar – mas aí com facilidade se é levado ao campo das relações que alienam e não
permitem ver o ponto de saída. A transferência pode também se guiar pelo
simbólico, situação em que a palavra é o que faz o elo entre professores ou entre
professor e aluno. Neste sentido, a presença de dois professores em sala de aula
pode funcionar, um com relação ao outro, como um ponto de retorno às próprias
práticas, às próprias palavras, não no sentido da acusação (pois aí se está novamente
no campo imaginário), mas no sentido simbólico do discurso que se desloca. Desta
maneira transferimos o eixo da discussão sobre o aluno ou sobre o professor e
passamos ao eixo das relações, propondo que estas se façam pelo desejo implicado
na escolha profissional e não pelo gostar imaginário.

As narrativas que se constroem em sala de aula não são só aquelas dos alunos
sobre sua aprendizagem e aproximação dos relevos sociais, mas também aquelas
que os agentes de educação fazem sobre seus alunos. É um encontro que se não for
pensado, um como extensão do outro, recai obrigatoriamente no campo da alienação
– e aí o elo mais fragilizado, a criança, paga o preço.

Se há diferenças individuais entre os sujeitos – professores ou alunos – há


também diversidade de papéis que cada segmento da relação de
ensino/aprendizagem deve assumir. Cada professor tem demandas diferentes com
relação ao seu lugar de ensino e a aprendizagem dos alunos. Como o papel do agente
educador é preponderante para o ensino e para a transmissão geracional, suas
expectativas – cumpridas ou frustradas – não podem recair sobre um ou outro aluno,
mas têm que permear de algum modo – e satisfatoriamente – todas as relações de
aprendizagem. Neste sentido, o trabalho em equipe de professores é fundamental
para modular e reorganizar estes focos: por um lado através das trocas que se
estabelecem – diferentes olhares e escutas – e por outro, pela interdição de abusos.

338
Mas também cada aluno tem expectativas diferentes sobre a aprendizagem.
Como então se apresentam as demandas das crianças na escola?

5.1.2. DIFERENTES ORIGENS

Na tentativa de traçar minimamente a heterogeneidade pedagógica dos alunos


de uma mesma sala de aula, antes do início das aulas solicitou-se aos familiares dos
alunos ingressantes no 1º. Ano do EFI da EA-FEUSP, que fornecessem à escola os
materiais de atividades da Educação Infantil, que seriam analisados pela equipe de
professores/pesquisadores responsável pela classe.

Para além da constatação do grau de domínio da escrita de cada aluno,


interessava-nos saber se os estudantes tinham tido contato com narrativas (lidas e
contadas), quais narrativas tinham sido oferecidas e como haviam sido exploradas
(só contada, interpretada, desenhada, discutida, recontada, etc.), em quais suportes
textuais e quais gêneros narrativos tinham sido oferecidos e trabalhados. Ademais
também procurávamos informações sobre atividades com a oralidade e as
brincadeiras: repertórios, formas, etc.

Do total de 20 alunos, 14 disponibilizaram seus materiais. Neste quadro


incompleto já foi possível traçar um panorama da diversidade de propostas
didáticas da pré escola, bem como da variedade de atividades educativas.

Abaixo ordenamos quatro registros feitos pela equipe do PROJETO “DESAFIOS”


sobre estes materiais:

Material 1 (Educação Infantil particular)

Livro didático do Sistema Universitário (um por bimestre): Coleção Vila da Criança:
apostila colorida e a criança só tem que completar, colar, etc. Família forneceu apostila
4, cujo tema era: Comunicação e Meios de Comunicação. Trabalho motor: contornar
linhas. Tema: Como o homem se comunica até chegar ao meio de comunicação escrito;
como escrever – ‘é preciso o alfabeto’ – aí iniciam o trabalho de alfabetização. Textos
explicativos sobre comunicação antes da leitura e escrita sobre meios de comunicação:
criança deve registrar programa preferido na TV, um jornal lido em casa. Uso de
alfabeto móvel para escrever palavras: nome de um jornal, de uma revista. Matemática:
sequência numérica; grafia dos números de telefone; agrupamentos de números e
objetos. Identificação de letras em palavras. Quadrinhas escritas para aluno identificar

339
palavras que expressem comunicação: ‘carta’ – outra forma de comunicação. Acesso a
internet – site do Universitário. Trabalho com letras iniciais do alfabeto e alguns
números. Há uma atividade que articula matemática com letras.

Material 2 (Educação Infantil pública – material comum a seis alunos, oriundos da


mesma instituição)

Cadernos de desenhos produzidos pela criança, sem comanda, mas com variedade
grande de temas: fundo do mar, bruxas, castelos. Variedade de formas de expressão do
desenho: traços, pontinhos, desenhos menores e maiores, descritivos e livres. Desenhos
em diferentes suportes e materiais. Caderno de classe: identificar letras do nome no
alfabeto completo. Escrever listas: nomes, histórias, personagens, amigos. Matemática:
Trabalho com quadro numérico. Registro de agenda do dia – calendário. Fotos dos
alunos com legenda Relatório anual – trabalharam carnaval (hipóteses de escrita dos
alunos; marchinhas, sambas e autores, origens das máscaras, lendas africanas; atelier
para confecção de instrumentos e abadá; apresentação da ‘Véia Peidorreira’ e sua
música); escolha do nome do grupo (Caranguejo); pesquisa de outros bichos; horta;
coleção de tampinhas (articulado a matemática, arte, ciências e meio ambiente);
construções com objetos; trabalhos sobre Vick Muniz e Eduardo Srur; confecção de
jogos; contos de fadas (‘causos de medo’, sequência de leitura de contos de fadas:
Grimm, Perreau e Andersen; leitura seguida da interpretação de cada aluno, discussão
e relação com outros textos; identificação de características dos personagens: histórias
refletiram nas brincadeiras de pátio e em artes estes elementos começaram a aparecer
nos desenhos; trabalhos bi e tri dimensionais e visita a biblioteca temática – Zona Leste
Andersen).

Material 3 (Educação Infantil particular)

Folhas impressas para colorir; em todas as folhas há uma frase bíblica com referência a
algum personagem bíblico. Matemática: numerar elementos. Atividades motoras: ligar
pontos, contornar figuras, fazer bolinhas de papel, colagem. Trabalhos com letras do
alfabeto e nome próprio. Longuíssimo trabalho sobre Arca de Noé. Desenhos sobre
temas bíblicos. Carimbo pronto com avaliação do aluno, no qual o professor só ‘vista’
por cima. Escrita do nome próprio na capa.

Material 4 (Educação Infantil pública)

Atividades de leitura e escrita com letras, sílabas e nome próprio. Referência a trabalhos
com textos em prosa; atividade de escrita do título da história e nome do autor. Escrita
descritiva de uma imagem. Quatro folhas soltas: ordenar letras para formar palavras
com a letra R; separação de sílabas com a letra R. Fazer tantos objetos quantos o número
indica 1 a 15. Escrever palavras com a letra T; ordenar letras para formar palavras
começadas com T. Trabalhos com datas cívicas; completar texto do Hino Nacional.

340
Outros materiais analisados que não expusemos aqui tendem a repetir como
estrutura o ensino apostilado com foco na escrita, pobre em elementos da infância.
Podemos observar nesta pequena amostra que os repertórios didáticos e textuais
são bem diversos e não dependem de a escolar ser pública ou particular, mas
claramente da orientação pedagógica de cada uma.

Com uma diferença bastante grande com relação aos outros materiais, aquele
que apresentamos como ‘Material 2’ é sem sombra de dúvidas o trabalho de melhor
qualidade. Nele encontramos diversidades de textos e de suportes gráficos e
figurativos e, além de expansão nas formas de tratar temas propostos, notamos que
também havia atividades com oralidade e narrativas de referência, exploração de
elementos estéticos e festejos tradicionais, todos trabalhados na perspectiva
infantil. A motricidade infantil parece ser explorada de forma indireta, ou seja, nas
próprias atividades temáticas propostas, não sendo alvo de atividade cujo fim se
encerra em si mesmo.

Nos outros materiais observamos de maneira geral certa pobreza textual ou


mesmo ausência dela, com atividades pragmáticas de identificação de temas, nomes
e autorias, relevo a datas cívicas ou temas religiosos, explorados de maneira a não
permitir muita experimentação da criança: folhas com atividades impressas,
predeterminadas. Notamos nestes materiais certa preocupação com a formalização
da escrita da criança já na Educação Infantil e nenhuma referência a atividades
lúdicas e criativas, espontâneas ou dirigidas.

A preocupação com a escrita também está presente no ‘Material 2’, mas ela não
é o ponto central dos trabalhos, nem vem em substituição a outras atividades
importantes nesta fase da vida. Podemos dizer que dos seis alunos que
frequentaram esta instituição pré-escolar, dois ingressaram o 1º. Ano na ‘hipótese
silábica-alfabética’ e quatro na ‘hipótese alfabética’ de escrita, mas o mais
importante é que revelaram logo no início do ano letivo uma postura interessada
com relação à aprendizagem. Donos de uma oralidade bastante rica, narravam
histórias com propriedade e dramaticidade, estabeleciam relações intertextuais,
tinham um repertório mnêmico rico de cantigas, brincadeiras, contos e poesias,
elementos que se refletiram bastante no aproveitamento pedagógico ao longo do 1º.
Ano.

341
Dentre os 20 alunos só uma criança não fizera Educação Infantil, enquanto
outras haviam frequentado a pré-escola desde os dois anos de idade. Com relação às
habilidades de escrita, quatro alunos ingressaram o 1º. Ano EFI já escrevendo frases
com certa fluência (dois deles escrevendo em letra cursiva), cinco já escrevendo
palavras e arriscando frases curtas, e 11 sem domínio da escrita alfabética (dois
deles não sabiam ainda escrever o próprio nome).

Nos materiais da Educação Infantil não foi possível encontrar dados sobre as
habilidades leitoras das crianças, por isto investigamos este aspecto logo no
primeiro mês de aula.

O Quadro 3 apresentado a seguir mostra as avaliações inicial e final destes


alunos ao longo do ano de 2012, sendo que aqui destacaremos as informações
referentes ao mês de março. O quadro contempla os elementos incluídos em nossa
proposta de avaliação das habilidades de leitura e escrita, mas apresenta ainda
colunas em que se lê ‘Hipótese de escrita’, aos moldes das diretrizes Construtivistas.
Esta não é uma avaliação com a qual concordamos, mas pelo fato de que é ainda uma
referência para os professores que participam do projeto, julgamos que não é
possível, a nenhum trabalho que se pretenda transformador, insistir em mudanças
radicais pela supressão de representações nas quais os sujeitos se referenciam. Até
por uma questão de respeito ao conhecimento destes docentes, este modo de
expressão é ainda mantido em paralelo às atividades do projeto. Cabe ainda dizer
que este quadro foi elaborado pelos professores de 1º. Ano do EFI da EA-FEUSP para
ser apresentado em reunião de Congregação da Faculdade de Educação da USP,
como um dos argumentos para justificar a permanência de dois professores em salas
de aula de séries iniciais do EFI. (Suprimimos do quadro o nome dos alunos).

Quadro 3: Dados de desempenho inicial e final dos alunos de uma sala de 1º. Ano EFI da EA-
FEUSP, no ano de 2012

342
Língua Portuguesa

Leitura de
Produção de
nomes de
Produção de textos
personage
Quadro Alfabeto Acrofonia
Palavra Leitura de Identificação Compreensão
ns e títulos
textos (fragmentos de Hipótese de escrita Hipótese de escrita
Valise Rébus de rimas de adivinhas MARÇO OUTUBRO
(Texto Congregação) de (fragmentos de textos
textos conhecidos conhecidos de
histórias
1o EFI ouvidas
de memória) memória)
M A R ÇO OU T U B R O

Silábico Silábico
Pré Silábico Pré Silábico
MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT MAR OUT PS S NS PS S NS silábico
Silábico com
Alfabético
Alfabético
silábico
Silábico com
Alfabético
Alfabético
valor valor

1 1 1 1 1 1 1 1 1 X 1 X 1 1 1 1 1 1 1
2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
3 1 1 1 1 X X X 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
4 X 1 1 1 1 1 1 1 X 1 1 1 X 1 1 1 1 1
5

6 X 1 X 1 X X 1 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
7 X 1 X 1 X X X 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
8 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
9 X 1 1 1 1 1 1 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
10 X 1 1 1 1 1 X 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
11 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
12 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
13 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
14 1 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 X 1 1 1 1 1
15 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 X X 1 1 1 1 1 1
16 1 1 1 1 1 1 1 1 X 1 X 1 X X 1 1 1 1
17 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
18 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
19 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
20 X 1 1 1 1 1 1 1 1 1 X X X 1 1 1 1 1
21 X 1 1 1 1 1 1 1 X X 1 1 X X 1 1 1 1
TOTAL (OK) 11 20 15 20 14 17 14 20 8 19 8 18 8 14 4 5 11 11 8 1 5 0 8 5 3 0 0 0 3 17
TOTAL (não OK) 9 0 5 0 6 3 6 0 12 1 12 2 12 6 16 15 9 9 12 19 15 20 12 15 17 20 20 20 17 3

343
A primeira consideração que gostaríamos de fazer é sobre a diversidade de
relevos com os quais produzimos o diagnóstico de aprendizagem de linguagem. Se
isolarmos os quadros finais onde são mostradas as hipóteses de escrita dos alunos,
dos demais dados, perdemos a dimensão daquilo que é relevante para identificação
de singularidades de aprendizagem e para o consequente direcionamento das
condutas pedagógicas ali onde se fazem necessárias. Se nos guiássemos somente
pela hipótese de escrita, assumiríamos que a criança número 11, que ingressou no
1º. Ano EFI ‘silábica com valor’, não precisaria de nenhum trabalho complementar,
uma vez que atende plenamente as expectativas de letramento para esta fase da
alfabetização, de acordo com o Construtivismo. Mas neste caso perderíamos de vista
que ele não é capaz de fazer acrofonia, identificar palavras valise, ler rébus ou
compreender uma adivinha, elementos que para nós são fundamentais para leitura.

A maneira como propomos o processo diagnóstico considera os dois polos da


díade da alfabetização – leitura/escrita – e desde o início atribui importância às
narrativas e à oralidade. Por outro lado, identificamos que nas práticas
alfabetizadoras disseminadas nas escolas brasileiras, a ênfase diagnóstica fica
centralizada só na escrita. Como vimos nos Capítulo 3 e 4, a capacidade de leitura é
fundamental e indissociada do processo de letramento, mas é justamente esta
capacidade que é considerada secundária nas propostas didáticas em geral, ou é
centralizada nas informações cotidianas e pragmáticas. Mais uma vez, não
propormos a leitura decodificada dos elementos menores da língua (sons das letras,
sílabas e palavras) que a criança pode até ser capaz de fazer, mas a leitura pregnante
de sentidos com a qual poderá direcionar melhor sua escrita, a interpretação e
construção de textos.

Ampliando o espectro diagnóstico e incluindo nele a leitura, é possível fazer com


mais precisão a avaliação da heterogeneidade da sala e identificamos nestes
materiais e nas ações pontuais com relação a cada elemento, quais alunos
superaram suas dificuldades intrínsecas e quais persistiram em determinados
pontos. Neste sentido, é possível diagnosticar os modos subjetivos de lidar com a
linguagem.

Como destaca Belintane (2011) a relação intertextual entre uma palavra e um


texto completo – como no exemplo citado no Capítulo 3, em que Luisa reporta-se à

344
música de Vinícius de Morais ao escutar a palavra ‘tigela’ – é [...] uma operação que
abre o traçado de uma subjetividade de entre-textos [...] esse fenômeno que no ensino
da literatura é conhecido como intertextualidade, é dispositivo fundamental do bom
leitor (BELINTANE, 2011: 26).

Esta expectativa de que a escola seja, em alguma medida, provedora do universo


narrativo e formadora também de leitores é não só cabível, mas na nossa visão é
ponto de exigência no cumprimento de sua função social. Assim, ao trabalharmos
com uma diversidade de textos orais e escritos, com variedades de músicas, sons,
imagens, filmes, histórias, poemas, contos, lendas, adivinhas, mitos, etc., colocamos
o sujeito-aluno no ponto intervalar – entre ‘um e outro’ – quando então, como
prossegue Belintane, [...] poderemos ter subjetividades de entre-texto, de entre-
discurso ou de entre-meios (é o caso de um posicionamento subjetivo ou de um
impedimento, por exemplo, na passagem do oral (meio fônico) para o escrito (meio
gráfico) ou para o eletrônico) (BELINTANE, 2011, nota nas páginas 26-27).

Nos casos destes ‘impedimentos’, que em outros tempos eram identificados


como ‘carências culturais ou linguísticas’ intransponíveis, aqui são retomados como
pontos centrais do trabalho com a alfabetização. De fato, se a criança é antes de tudo
herdeira dos significantes parentais e de suas articulações com o aparelho de
linguagem e memória, pode se passar aí que um dos pais (ou ambos) seja
atravessado pela inabilidade psíquica de fazer, na transmissão geracional, a
facilitação para a criança de narrativas que permitirão o trabalho de representação
mítica – fato que vimos em Hans no Capítulo 3. Neste caso, trata-se de fazer mover
os enredos que se fixaram em uma cena sintomática, para outros textos.
Acreditamos que no âmbito dos sujeitos neuróticos – a maioria, portanto – este é um
trabalho que a escola pode – e deve – promover. Não queremos dizer, em absoluto,
que a escola terá o papel de clínica terapêutica (junto ao Sujeito), uma vez que o que
constatamos em nossa pesquisa, é que as atividades que envolvem oralidade e
narrativas como aquelas que elencamos nos Capítulo 3 e 4, muitas vezes são
suficientes para colocar o Sujeito-aluno na via dos deslocamentos e condensações
significantes que desfazem alguns nós importantes que travam a aprendizagem
social (campo da Subjetividade).

345
Como veremos a seguir, na análise de dados de entrevistas com agentes
domiciliares de alunos participantes do PROJETO “DESAFIOS”, os familiares têm
expectativas de que a escola seja fomentadora e provedora de narrativas a seus
filhos, tanto quanto lamentam não terem sido, eles mesmos, alvos de trabalhos desta
ordem quando frequentaram suas escolas.

Passamos, então, à apresentação das entrevistas, de seus dados e de sua análise.

5.2.NÚCLEOS FAMILIARES – QUESTÕES ACERCA DAS NARRATIVAS

Com o intuito de verificar como se dão as transmissões orais geracionais nas


famílias e se elas consideram estes elementos relevantes para a alfabetização
infantil, elaboramos o roteiro de duas entrevistas complementares que foram
realizadas com alguns núcleos familiares de alunos de 1º. e 2º. Anos do Ensino
Fundamental I, da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, em São Paulo, no Estado de São Paulo (EA-FEUSP), da Escola de
Aplicação da Universidade Federal do Pará, em Belém, no Estado do Pará (EA-UFPA)
e da Escola Municipal Nila Rego, em Pau dos Ferros, no Estado do Rio Grande do
Norte (EMNR-RN), locais em que o PROJETO “DESAFIOS” é realizado. As entrevistas
foram feitas ao longo do segundo semestre do ano de 2012, portanto, no segundo
ano do PROJETO “DESAFIOS”.

Apresentamos a seguir a forma como as entrevistas foram estruturadas, quais


seus objetivos, sua justificativa, seus dados e análise.

OBJETIVOS

O objetivo principal estabelecido com relação às entrevistas foi de verificar


como os modos de transmissão geracional relacionam-se com a alfabetização da
prole.

Foram cinco os objetivos parciais estabelecidos com relação às entrevistas: 1)


verificar quais são os hábitos sócio culturais familiares dos alunos; 2) verificar como
estes hábitos sócio culturais são transmitidos e/ou compartilhados com o aluno; 3)
verificar onde estão os pontos nodais de interrupção da transmissão geracional; 4)
verificar se há diferenças discursivas entre os dois grupos investigados, quanto aos

346
hábitos de leitura e contação de histórias; 5) verificar como os sujeitos incluem seus
discursos sobre o que é necessário ao processo de alfabetização de uma criança, nos
discursos sócio históricos sobre o mesmo tema.

SUJEITOS DAS ENTREVISTAS

Por se tratar de coleta de dados para análise qualitativa o número de núcleos


familiares entrevistados foi de 12, divididos em dois grupos: seis núcleos familiares
de alunos que enfrentaram algum tipo de dificuldade para se alfabetizar e seis de
alunos que já entraram alfabetizados no 1º. Ano do EFI, ou que não tiveram
dificuldades para o letramento em sala de aula, neste primeiro ano.

Inicialmente foram selecionados quatro núcleos familiares de cada uma das


escolas que participa do PROJETO “DESAFIOS”, sendo dois núcleos familiares de
alunos do 1º. Ano do EFI e dois de alunos do 2º. Ano do EFI, sendo que em ambos os
casos estes alunos tinham que ter participado do PROJETO “DESAFIOS” desde o 1º.
Ano do EFI.

Portanto, em cada polo da pesquisa deveriam ser entrevistados os núcleos


familiares de: um aluno com dificuldades de alfabetização de 1º. Ano do EFI, e um
sem dificuldades, do 1º. Ano do EFI; um aluno com dificuldades de alfabetização do
2º. Ano do EFI e um sem dificuldades, do 2º. Ano do EFI.

O critério inicial de seleção dos núcleos familiares foi seguido em Belém (PA).
Em Pau dos Ferros (RN) o critério de seleção dos núcleos familiares de alunos de 1º.
Ano EFI também foi obedecido, mas uma das famílias tinha dois alunos irmãos na
mesma classe, portanto, continuaram sendo dois os núcleos familiares
entrevistados, mas três alunos. Em São Paulo não foi possível realizar entrevistas
com núcleos familiares de alunos de 2º. Ano com dificuldades de alfabetização, pois
encontramos fortes resistências dos familiares131. Como forma de tentar suprir tal
falta, entrevistamos duas famílias de estudantes de 1º. Ano EFI com dificuldades
para se alfabetizar.

131
Das três famílias contatadas e que se dispuseram inicialmente a participar das entrevistas, uma
declaradamente desistiu, outra sistematicamente desmarcou as quatro entrevistas agendadas e uma
deixou de comparecer sem aviso prévio às três entrevistas agendadas.

347
Sobre a escolha dos alunos e de seus núcleos familiares, propriamente dita, ela
se deu ao final do primeiro semestre letivo de 2012, por meio de observação e
acompanhamento do desempenho pedagógico dos alunos ao longo daquele período.

ROTEIROS DAS ENTREVISTAS

Para coleta dos dados foram elaborados dois roteiros distintos de entrevistas132
(Anexo D) aplicados com cada um dos núcleos familiares. O primeiro roteiro
consistiu de um questionário semi estruturado, com 14 tópicos versando sobre
hábitos sócio culturais e familiares. As oito primeiras perguntas eram diretas e
poderiam ser respondidas objetivamente – ‘sim’, ‘não’, ‘às vezes’ – e
complementadas com informações simples (por exemplo, o nome de um livro lido,
ou de um programa assistido) solicitadas pelo entrevistador para esclarecer as
respostas.

As seis perguntas finais do primeiro roteiro de entrevistas demandavam


respostas discursivas, que também deveriam ser esclarecidas por meio de
perguntas elaboradas na hora pelo entrevistador.

O segundo roteiro consistiu de uma só pergunta aberta: ‘No seu entendimento


o que é necessário para que uma criança se alfabetize?’.

METODOLOGIA PARA REALIZAÇÃO DAS ENTREVISTAS E JUSTIFICATIVA

Os roteiros de entrevista aplicados com os familiares dos três polos de pesquisa


foram os mesmos. Realizei todas as entrevistas de São Paulo e contei com a valiosa
contribuição de Veridiana Alves (aluna bolsista do PROJETO “DESAFIOS”, graduanda
da UERN em Pau dos Ferros – RN) que os aplicou em Pau do Ferros, e de Tainan
Quaresma (aluna bolsista do PROJETO “DESAFIOS”, graduanda da UFPA em Belém
– PA) que os aplicou em Belém.

As entrevistas foram elaboradas para serem aplicadas na ordem acima


estipulada, em dois dias distintos. Este critério foi elencado a partir do pressuposto
psicanalítico de que o material recalcado só se mostra no discurso de uma segunda
vez, por retroação à primeira (o ‘retorno do recalcado’). Como estávamos
particularmente interessados naquilo que aparece como não-dito dentro dos

132
Os questionários foram submetidos ao comitê de ética da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de 2012. No Anexo D pode-se ver o modelo dos
dois questionários aplicados com cada família.

348
discursos, para que estes significantes latentes pudessem ser apreendidos seriam
necessários dois momentos distintos de incidência: o primeiro discurso elidido, não
falado, poderia retornar como segunda incidência no segundo discurso e aí
ressignificar o conteúdo latente. Tínhamos como pressuposto que, como o primeiro
roteiro de entrevista era mais diretivo, facilitaria o fluxo discursivo e o
estabelecimento de transferência – no mínimo imaginária – impondo poucas
resistências. O segundo roteiro, por consistir em uma pergunta aberta, poderia gerar
mais resistências, eventualmente superáveis pela transferência estabelecida na
primeira entrevista.

Ainda que na primeira entrevista as primeiras perguntas pudessem ser


respondidas de forma objetiva, o que nos interessava eram as respostas discursivas
mais longas e as interferências de linguagem no discurso (omissões, esquecimentos,
lapsos). Portanto, um dos critérios para aplicação dos roteiros de entrevista era a
escuta (no sentido psicanalítico) do entrevistador; pressuposto também para a
segunda entrevista. Isto é, esperávamos poder destacar elementos discursivos
significantes e intervir sobre o discurso fazendo os sujeitos ressignificarem tais
elementos na segunda entrevista.

Em cada item perguntado as questões complementares que se seguiram às


respostas objetivas tinham o intuito de verificar a sustentação da primeira resposta,
isto é, se à pergunta ‘você gosta de ler?’, ou ‘você lê?’, a resposta fosse positiva, pedia-
se que o entrevistado citasse e comentasse suas lembranças com relação a três
episódios significativos em sua vida, relativos à leitura. Note-se que não pedíamos
que falasse genericamente sobre o que gostava de ler, mas quais leituras tinham sido
marcantes133, positiva ou negativamente. Com isto queríamos verificar se havia
algum esforço mnêmico de resgate dos conteúdos expostos, mais do que
contradições discursivas.

As respostas dadas pelos sujeitos deveriam ser registradas na íntegra. Em São


Paulo e Belém as entrevistas foram gravas e transcritas; em Pau dos Ferros elas
foram anotadas. Nos três casos também foram registrados relevos das reações

133
A mesma pergunta complementar era feita com relação aos outros assuntos: ver televisão,
escutar música, etc.

349
significantes verbalizadas e não verbalizadas pelos sujeitos: gestos, olhares, tom de
voz, pausas, etc.

PARTICULARIDADES DAS ENTREVISTAS

Dentro dos objetivos estabelecidos para as entrevistas não especificamos qual


membro do núcleo familiar deveria respondê-las, pressupondo que aquele que
respondesse à demanda de participação na pesquisa deveria ter algum interesse na
formação da criança. Desta forma, em São Paulo dois conjuntos de entrevistas foram
feitos com o pai e a mãe do aluno, uma só com o pai e outra só com a mãe (total de
seis pessoas). As entrevistas de Belém e de Pau dos Ferros foram todas realizadas
com as mães dos alunos, com exceção de um núcleo familiar de Pau dos Ferros, cuja
entrevistada foi uma prima da criança. Portanto, foram 14 pessoas entrevistadas no
total.

Nos dois casos em que dois membros da família se dispuseram a participar da


pesquisa, realizamos as entrevistas com os dois sujeitos juntos, uma vez que os dois
teriam incidência sobre o aluno. Este foi também um modo de ver como na dinâmica
familiar os tratamentos frente a determinados assuntos se complementavam ou
conflitavam.

DADOS DA PRIMEIRA ENTREVISTA

Para melhor visualização geral dos dados, sintetizamos nos Quadros 4 e 5 as


respostas dadas. Em seguida discutiremos estes dados, cotejando-os com conteúdos
e formas narrativas das entrevistas que não estão contemplados neste resumo.

Legenda: S = ‘sim’, N = ‘não’ e AV = ‘às vezes’; ‘Comenta’ = aquilo que assiste na


televisão, ouve no rádio, etc., é objeto de conversa com a criança?

Cores diferentes foram usadas para cada núcleo familiar; quando as cores são
as mesmas é porque se trata de membros diferentes do mesmo núcleo familiar.

Subdividimos a última coluna da tabela – ‘Sobre o que o familiar conversa com


a criança’ – em ‘pergunta indireta’ (compreendendo as respostas dadas pelo familiar
ao longo da entrevista, em que as oito primeiras respostas foram dadas) e ‘pergunta
direta’ (compreendendo resposta dada a pergunta direta formulada ao familiar).

No primeiro quadro ‘Primeiras entrevistas com núcleos familiares de crianças


com dificuldades de alfabetização’ (Quadros 4), dividido em duas páginas, os

350
entrevistados de 1 a 4 são de São Paulo; os entrevistados 5 e 6 são de Belém e os
entrevistados 7 e 8 são de Pau dos Ferros. No segundo quadro ‘Primeiras entrevistas
com núcleos familiares de crianças alfabetizadas’ (Quadros 5), dividido em duas
páginas, os entrevistados 1 a 2 são de São Paulo; os entrevistados 3 e 4 são de Belém
e os entrevistados 5 e 6 são de Pau dos Ferros.

351
Quadro 4: Primeira entrevista com núcleos familiares de crianças com dificuldades de alfabetização

Televisão Música/Rádio Cinema /Teatro/Show* Festas Jogos/Brincadeiras


Entre-
vistado
Brinca com
Gosta Assiste Comenta Gosta Ouve Comenta Gosta Vai Comenta Gosta Vai Comenta Gosta Jogou/brincou
criança

1 Todos os Política, novela Samba pagode Aniversário


S S N S N N S Família S S N
SP dias e ídolos notícias s

S
2 Todos os Desenhos Só de Aniversário Boneca, esconde- AV gostaria de
S S Samba pagode N N N N S S
SP dias infantis família s esconde, mãe da brincar mais
rua

Esporte
3 Todos os novelas S Foi só com Brincou muito na
S S N N N AV AV N S N
SP dias desenhos Muito escola infância
infantis

Não brinca
Novelas
4 Todos os Acha que Só de mais, mas
S infantis e S MPB, rock N Foi pouco N S N S S
SP dias gosta família gostaria de
notícias
brincar

5 Todos os Só de
S N S horóscopo N N N N N Aniversário AV Queimada boneca S
PA dias família

6 Desenhos S Família e Própria Ensina regras


AV AV AV Nada especial N S Peça infantil AV S Xadrez elástico
PA infantis Peças infantis escola formatura de jogos

7 Todos os N teatro
S N S Brega N Sertanejo N S cidade N AV Caiu no poço S
RN dias Show S

Mortes (por Patati-


8 Todos os Não se lembra AV Mímica, boneca,
S violência) e S N Sertanejo N S Patatá, S S S
RN dias Show roda, bola
ídolos cidade

352
Sobre o que o familiar conversa com a
Alguém criança?
Gosta de contar Conta histórias Gosta de Do que a
Gosta de contava Sobre o que a criança
Entrevistado Lê? O que lê? histórias para para crianças? Se ouvir criança
ler? histórias na fala em casa?
crianças? não, porquê? histórias? brinca? Pergunta
sua infância? Pergunta direta
indireta
Jornal (esportes), N
1 S Programas de
S AV história infantil S S Só a Sobre a escola Bonecas Trabalho e escola
SP Todas as noites televisão
para crianças televisão
Desenhos da TV
2 Só o Sobre a escola e os Casinha e
S N --- S S S e brincadeiras Escola
SP professor amigos escolinha
de infância
Gostava
Revistas e jornais N Sobre a escola:
3 quando Escola, sobre as
S S (esportes). Não S Porque não tem N atividades feitas, Bonecas Novelas infantis
SP passava na atitudes da criança
gosta de livros tempo histórias escutadas
televisão
N S
Revistas, N
4 Porque não sabe Muito, de Bonecas e
AV AV romances, N Só a Sobre a escola Novelas infantis Novelas infantis
SP contar e não tem pessoas dançar
espíritas televisão
tempo mais velhas
AV
5 Poesia, mas não se Criança não gosta de Brincadeiras e
AV S AV Só quando a N N Bola e correr Comportamento
PA lembra quais falar jogos
criança pede
S
S N Bola vídeo Programas de
6 Desde que Escola e importância
S S Textos científicos S Mas não pode ser Leu mais do Sobre escola e televisão game, TV, peças
PA não seja dos estudos
muito longa que escutou bicicleta teatrais
longa
7 Romances e N Sobre vídeo games e Bola e vídeo Brincadeiras e
AV S N S S Comportamento
RN poesias de amor Não gosta programas de TV games vídeo game
AV Programas de
8 Poesia Mas não se Sobre escola e desenhos Bola e Estudos e
N AV AV Quando tem S bastante N TV e
RN lembra infantis boneca brincadeiras
tempo brincadeiras

353
Quadro 5: Primeira entrevista com núcleos familiares de crianças alfabetizadas

Entre- Televisão Música/Rádio Cinema /Teatro/Show* Festas Jogos/Brincadeiras


vista-
do Jogou/brin Brinca com
Gosta Assiste Comenta Gosta Ouve Comenta Gosta Vai Comenta Gosta Vai Comenta Gosta
cou criança
Muito, jogos
Bastante, Documen S Família, Brincadei
Rock e S Sempre de tabuleiro,
1 diariamente tários de Filho faz Peças amigos e ras infantis
S S música S Já fez S leva os S cabana,
SP Gosta de séries ficção aulas de infantis eventos atuais e
clássica teatro filhos esconde-
documentários científica violino sociais antigas
esconde
Fala muito
N Conversam sobre
S Jogos de
2 Só S muito Teatro brincadei
N N Muito S Sempre AV AV N S tabuleiro e
SP documentários Muito sobre as infantil ras e
que pode skate, bola
e noticiários músicas modos de
brincar
Novela e
S para Porque S Mostra
Diariamente músicas
mostrar filhos têm Formatu Filhos Queimada, brincadei
novela de (samba,
3 como não direito de ra, 15 devem pira esconde ras
S época, notícias AV brega e S S AV S S
PA havia saber anos e sentir e contação diferentes
sensacionalis sertane
malícia sobre vida carnaval mesmas de causos das
tas ja)
antes dos pais emoções eletrônicas
supletivo
Orientar S porque
N As
Cultos e filhos a Só nas é impor
Só shows briincadei
4 músicas não que a tante
N Raramente N S S religio S S AV N ras de hoje
PA religio escutarem igreja para
sos são
sas rádios promove forma
malignas
ruins ção
S porque Congres
Para
filhos têm so de Pular corda,
Diariamente Show incenti N
5 que obreiras esconde-
S entretenimen N N N N S musical S var a S Ensina a
RN caminhar e esconde e
to e culinária na igreja desenvol brincar
na linha do aniversá futebol
ver
Senhor rio igreja
Gostam Não sabe
S porque
Show de Só de brincar
6 Cultos fala da Só por Não se
S S S sertane N N quando é palhaços N porque N
RN religiosos palavra de acaso lembra
jos na igreja e carrea brincou
Deus
tas pouco

354
Gosta de Sobre o que o familiar conversa com a
Alguém
contar Conta histórias Gosta de Sobre o que Do que a criança?
Gosta contava
Entrevistado Lê? O que lê? histórias para crianças? ouvir a criança fala criança
de ler? histórias na
para Se não, porquê? histórias? em casa? brinca? Pergunta indireta Pergunta direta
sua infância?
crianças?
Todos os Sobre escola,
De ler,
gêneros curiosida Música, filmes,
S descobrir e
1 S principalmente S des e livros, Sobre todos os
Todos os dias S Conta todos os Os pais e avós inventar
SP Muito histórias Muito descobertas, brincadeiras, assuntos
dias coisas,
medievais, mitos jogos e acontecimentos
cabana
e ficção científica amigos
Sobre tudo, é
muito
S De jogos de Leitura, músicas,
2 S Quase todos Machado de S curioso e
S Quase todos os Os pais e avós tabuleiro, brincadeiras, Sobre valores
SP Muito os dias Assis Muito gosta de
dias bola, skate questões sociais
falar
bastante
Literatura S Sobre emoções,
Praticamente
S infantil, S Muitas contos situações
3 Tudo o que sobre tudo,
Muito Todos so dias quadrinhos e S muito Na escola e em S de fadas, Videogame cotidianas e
PA fez no dia especialmente
romances de casa causos e acontecimentos
sobre liberdade
banca de revista assombração passados
S só as da
4 Bíblia e Carinho e Obediência e
S S Só a Bíblia N N Avós Boneca Sobre Deus
PA dos mais respeito Deus
velhos
Sobre estudos,
AV Sobre a Bola
Sobre Deus e brincadeiras
5 especialmente S só as da escola e bonecas
S AV N AV AV na escola histórias da infantis e
RN as histórias Bíblia conta carrinho
Bíblia histórias da
bíblicas histórias videogame
própria criança
N porque
6 Sobre jogos Sobre igreja e
AV AV Não lembra não sabe N S Não se lembra Videogame Sobre Deus
RN eletrônicos Deus
contar

355
ANÁLISE DOS DADOS DA PRIMEIRA ENTREVISTA

Análise comparativa dos dados dos quadros acima aponta para diferenças
importantes entre os dois grupos investigados. Não sendo uma amostra
considerável, não estabeleceremos uma comparação numérica que se possa
estender a outros grupos de sujeitos, mas podemos destacar algumas questões que
nos parecem relevantes com relação à associação entre alfabetização, narrativas e
transmissão geracional.

Para melhor fluxo da leitura estabeleceremos a nomenclatura NA para os


familiares de alunos com dificuldades de alfabetização e AL para os familiares de
alunos alfabetizados.

Sobre o grau de escolarização dos entrevistados, no grupo AL um tem só o


Ensino Fundamental I, dois o Ensino Médio completo e os outros três têm pós-
graduação; no grupo NA sete pararam os estudos no Ensino Médio, sendo que dois
não o concluíram e um parou no meio do Ensino Fundamental II. Estes dados
indicam um grau maior de escolarização dos familiares das crianças do grupo AL, do
que o do grupo NA.

No que diz respeito à prevalência discursiva, encontramos não dois, mas três
grupos diferentes. No grupo NA, no geral as entrevistas foram mais curtas (exceção
dada a duas delas), com narrativas mais informativas e menos enredadas. Mesmo
quando o entrevistado se referiu a algum acontecimento pregresso, percebemos que
a lembrança era evasiva e pontual (‘não me lembro bem’, ou ‘lembro que eu assistia
desenho, só isso’) e ainda que o entrevistador incitasse o entrevistado a responder
mais, as lembranças não se expandiam. Todas as vezes que se pediu para o
entrevistado falar sobre um texto lido, um programa assistido, uma brincadeira de
infância, etc., que tivessem sido marcantes em sua vida, as respostas referiram-se a
gêneros (‘gosto de ler sobre esporte’, ou ‘gostava de ver a Hebe’, ou ‘gosto de festa
de aniversário’) e não sobre o fato marcante em si (como por exemplo, ‘gostei de
uma entrevista que a Hebe fez com fulano porque aconteceu tal coisa’, ou ‘a festa de
aniversário de cicrano me marcou porque ...’).

Já no grupo AL encontramos duas formas discursivas: em uma parte a presença


do discurso religioso (que chamaremos agora de AL-R) e na outra de um discurso
mais intelectualizado e politizado (que chamaremos de AL-I). Cabe dizer de

356
antemão, que as entrevistas com familiares do grupo AL-I foram mais longas, com
narrativas mais elaboradas e as lembranças mais referenciadas em histórias
passadas e em antecedentes familiares. No grupo AL-R as narrativas foram mais
longas que do grupo NA, mas prolixamente em torno do mesmo assunto: Deus, culto,
religião, bem/mal; também neste grupo encontramos dificuldades dos
entrevistados para se lembrarem de acontecimentos.

Observamos que de maneira geral todos entrevistados manifestaram interesse


por atividades culturais, mas os interesses entre NA, AL-R e AL-I são diferentes. No
grupo NA evidenciou-se a prevalência pela prática de assistir à televisão – mesmo o
sujeito que respondeu inicialmente que gostava só às vezes, em resposta
complementar disse que diariamente assiste alguns programas; novelas, desenhos
infantis, programas de auditório e notícias (incluindo as sensacionalistas) são os
programas mais assistidos. No grupo AL-R praticamente todos os acontecimentos
culturais giram em torno da religião e dos cultos religiosos. No grupo AL-I os
interesses são mais amplos, mesmo entre aqueles que dizem assistir televisão todos
os dias.

Os programas de televisão são os assuntos sobre os quais o grupo NA mais


conversam com a criança. Notamos em dois dos casos que os familiares chegam a
assistir aos desenhos infantis junto com a criança, pois esta é a oportunidade de
estar com ela. A televisão é, portanto, ponto central dos acontecimentos destes
familiares, que permeia os diálogos e promove convivência entre adultos e criança.
As práticas religiosas e seus preceitos são os assuntos que guiam praticamente todas
as trocas discursivas entre adultos e crianças no grupo AL-R. Já no grupo AL-I
notamos entre adultos e criança um espectro mais amplo de assuntos, não sendo
possível circunscrever só um.

Músicas, shows, cinema ou teatro não são objetos de muitas conversas no grupo
NA (aspectos culturais menos praticados) mas no grupo AL-I são bastante
ressaltados como importantes formadores culturais. Quanto a este item
‘Cinema/Teatro/Show*’, é importante ressaltar que os entrevistados de Pau dos
Ferros, disseram nunca terem ido a cinema e teatro porque não há aparelhos

357
culturais destes tipos na cidade134 e em Belém estes lugares culturais são de difícil
acesso. Talvez a falta de disponibilidade destes aparelhos culturais seja um dos
fatores influentes para encontramos um discurso mais religioso nesta regiões do
norte e nordeste brasileiro, nas quais o grupo AL-R foi mais prevalente em nossa
pesquisa.

Sobre isto temos a acrescentar que a prática religiosa (de diferentes credos) se
dá por todas as cidades da região de Pau dos Ferros e é um polo aglutinador de
acontecimentos: missas e cultos ordinários congregam boa parcela da população,
assim como os rituais de casamento e morte, que arrastam os sujeitos para dentro
das casas, uns dos outros e para as ruas, onde o evento é amplamente debatido e
comentado135.

No item relativo às festas a referência maior do grupo NA foi sobre aquelas que
se dão em família, ou comemorações promovidas pela cidade (novamente caso
prevalente em Pau dos Ferros). No grupo AL-I novamente encontramos respostas
mais diversificadas: festas de família, igreja, formatura, carnaval, de amigos.

No que concerne ao envolvimento dos entrevistados com brincadeiras


praticadas na própria infância, nos grupos NA e AL-I há referências afetivas a elas.
Dos dois sujeitos que disseram não ter brincado (ou brincado pouco), ambos
pertencem ao grupo AL-R e um deles lamentou profundamente esta falta (é o mesmo
sujeito que descreve com encantamento as peripécias dos palhaços quando vão à
cidade fazer apresentações). Ou seja, de maneira geral as brincadeiras foram um dos
alvos das reminiscências mais significativas de todos os sujeitos que, quando não
expressaram verbalmente suas emoções, demonstraram com gestos e olhares o
prazer das lembranças lúdicas infantis.

Sobre as relações de brincadeiras estabelecidas entre o entrevistado e a criança,


mais uma vez observamos três situações diferentes. No grupo NA encontramos
alguns familiares que ainda brincam junto com seus filhos e outros que não. No
grupo AL-R nenhum dos sujeito brinca com as crianças (um único diz que ensina as
regras para que a criança brinque sozinha). Contrário a este último grupo, todos do

134
Pau dos Ferros fica no sertão do Nordeste, distante cerca de 400 quilômetros da capital do Rio
Grande do Norte, Natal.
135
Ver sobre este tema, no Anexo C, poema escrito por Maria da Conceição Costa, professora da
UERN, doutoranda da FE-USP e coordenadora do PROJETO “DESAFIOS” em Pau dos Ferros.

358
AL-I ainda brincam e incentivam a prática de brincadeiras criativas e estabelecem
parâmetros de comparação com as práticas atuais de brincadeiras/jogos eletrônicos
(os quais são vistos com ressalvas).

Referente aos hábitos de leituras notamos que no grupo NA só um entrevistado


disse claramente que não gosta de ler, mas quando observamos se os que dizem que
gostam de ler, leem de fato, percebemos que a incidência diminui. Sobre
esclarecimentos com relação à leitura, as citações foram genéricas: ‘caderno de
esportes do jornal’, ‘romances’, ‘poesias’. Dos que leem nenhum deles se lembrava
do que havia lido, com ressalva para um entrevistado de Belém (único deste grupo
com ensino superior completo), que se referiu à leitura de ‘Psicogênese da língua
escrita’ de Emilia Ferreiro, de um artigo da revista Scientific American sobre ciência
cognitiva e do livro ‘Mentes ansiosas’ de Ana Beatriz Barbosa Silva (assuntos que
interessam a este familiar por causa de sua formação profissional e por causa do
filho que tem dificuldades para se alfabetizar).

Dentre os entrevistados do grupo NA que gostam de ler e leem, todos disseram


gostar de contar histórias a seus filhos, mas só dois o fazem sempre: um não conta
por falta de tempo e o outro conta só se a história não for longa. Sobre os
entrevistados que não gostam de ler, dois às vezes contam histórias. Mas todos
reconhecem a importância de contar histórias para as crianças.

Com relação à pergunta se gostam de ouvir histórias, do grupo NA, só um


entrevistado disse que não e todos que disseram gostar de ouvir histórias teceram
comentários positivos sobre isto: ‘Gosto muito’, ‘Gosto bastante, especialmente
histórias dos mais velhos’. Mas, apesar de gostarem de ouvir histórias, à exceção de
um, nenhum deles foi sujeito de contações de histórias na infância, ou foram muito
pouco, por intermédio de algum professor, ou da televisão. Estes entrevistados
expressaram claramente, ou indiretamente pelo tom de voz e gestos, seus
descontentamentos com relação a não terem escutado muitas histórias na infância.
Este é um dos dados mais importantes encontrados nestas entrevistas, uma vez que
notadamente mobilizou os sujeitos, mesmo aqueles resistentes a um discurso mais
amplo e respaldado nas memórias.

No grupo AL novamente uma divisão radical foi encontrada com relação a


hábitos de leitura e contação de histórias. No grupo AL-R, as poucas práticas de

359
leitura se dão em torno da Bíblia; não contam histórias para crianças (e
esporadicamente quando o fazem são histórias bíblicas); um dos sujeitos se lembra
que escutava histórias dos avós, mas não lembra quais e os outros dois escutaram
poucas histórias na escola (mas também não se recordavam delas). Mas novamente
encontramos interesse por histórias: todos eles gostam de ouvir histórias e gostam
quando os padres/pastores falam das histórias da Bíblia; um entrevistado também
gosta de ouvir os mais velhos.

Entre os entrevistados do grupo AL-I todos têm prática diária de leitura, de


gosto diversificado e manifestam entusiasticamente interesse por ler. Dão
relevância ao ato de ler. Gostam muito de ouvir histórias e de contá-las. Foram
sujeitos que na infância escutaram muitas histórias, lidas e contadas.

Quando perguntados sobre o que a criança conversa em casa com os familiares,


no grupo NA a resposta quase que unânime foi: sobre a escola e os programas
infantis da televisão. E, perguntados sobre o que os familiares conversam com a
criança em casa, todas as respostas referiram-se à escola/estudos,
comportamentos/disciplina infantil e desenhos animados passados na televisão. Só
três dizem falar, também, sobre brincadeiras. Foram poucas as referências a
conversas sobre histórias familiares passadas e, quando estas foram mencionadas
os conteúdos eram incompletos pela falta de lembrança ou de conhecimento por
parte do entrevistado.

No grupo AL-R as conversas das crianças giram em torno de assuntos


diferentes: respeito, comportamento, escola, jogos eletrônicos e histórias; mas
unanimemente os adultos conversam com as crianças sobre obediência, sobre
assuntos religiosos e estudos. Um deles também fez referências a brincadeiras de
sua infância.

O universo discursivo das crianças e familiares do grupo AL-I é bastante mais


amplo: além da variedade de assuntos, estes sujeitos também falam de
relacionamentos, descobertas, emoções, curiosidades. Nas entrevistas os sujeitos
referem-se a várias histórias familiares pregressas que são alvo de conversas e
expressam claramente que é importante relatar acontecimentos familiares
passados e transmitir histórias familiares.

360
Nesta diversidade de dados, podemos identificar um fenômeno relevante para
esta tese. Ainda que as práticas de leitura e de contar histórias não seja unânime, o
desejo por ouvir histórias o é. Sem exceção todos os sujeitos manifestaram gosto
pelas narrativas: com maior entusiasmo para aqueles que tiveram na infância esta
prática muito presente e com maior lamentação dos sujeitos que ouviram poucas
histórias.
Entre aqueles que ouviram histórias na infância, identificamos claramente a
transmissão geracional do modo narrativo, nos hábitos das crianças: são mais
leitoras do que as outras e têm um discurso narrativo também mais presente,
chegando a envolvê-lo nas brincadeiras. Entre os que não escutaram histórias na
infância, ou escutaram pouco, identificamos a falta que sentem desta prática e a
importância que atribuem a ela junto aos filhos, mesmo que não saibam ou consigam
contar histórias. Este dado reaparece nas segundas entrevistas que fizemos, como
se verá adiante.
Outro ponto relevante é que entre os que ouviram poucas histórias, a lembrança
é de que a escola ou a televisão foi o veículo da narrativa. Estes adultos, não sendo
mais frequentadores das escolas e não tendo adquirido o hábito da leitura,
continuam tendo na televisão ou nos cultos religiosos os principais meios de acesso
aos enredos. De qualquer modo nestes caso os sujeitos são passivos
ouvintes/espectadores das narrativas, não sendo capazes de uma discursividade
mais ampla, com relevos de memória e intertextualidade, como as que encontramos
no grupo que tem hábitos que envolvem intensamente e cotidianamente a busca
pelas narrativas através da leitura e das transmissões geracionais. Isto se reflete nas
possibilidades discursivas entre adultos e crianças, uma vez que estes sujeitos com
pouco contato com narrativas estabelecem com seus filhos diálogos em torno de
pragmatismos formais: necessidade de estudo, comportamento, obediência –
discurso restrito também reproduzido pelas crianças.
Sobre a consequência da presença/ausência narrativa nas famílias, com relação
à alfabetização das crianças, podemos inferir o seguinte: no grupo NA as narrativas
são propostas prioritariamente pela televisão, em torno da qual as relações se
estabelecem; no grupo AL as narrativas são amplas, oriundas de diferentes lugares
(AL-I), ou são únicas, mas fundamentadas em referências míticas-bíblicas (AL-R) e,

361
ainda que os sujeitos sejam passivos ouvintes, estão em uma posição relacional com
o Outro (texto ou orientador religioso).
Provisoriamente podemos concluir destas primeiras entrevistas que:
1. O discurso infantil acompanha o discurso familiar: Encontramos uma
discursividade familiar mais fluida, com acesso fácil aos referenciais
mnêmicos e às narrativas de tradição familiar e histórica no grupo AL-I.
Neste grupo os discursos são mais amplos quantitativa e
qualitativamente, as fontes de referências discursivas são mais
diversificadas e os discursos infantis acompanham os dos adultos na
diversidade de repertório e complexidade narrativa, refletindo em
melhor posicionamento subjetivo das crianças no espaço familiar e
escolar, Neste grupo também está mais presente a referência a
elementos lúdicos infantis, que permeiam práticas e discursos. No grupo
AL-R a discursividade é menos fluida do que no grupo anterior, mas
maior e mais referenciada historicamente do que no grupo NA. Não
encontramos muita referência lúdica nas práticas e discursos deste
grupo, cujos conteúdos expressam-se basicamente pela religiosidade e
comportamento. Isto também aparece na Subjetividade das crianças. Por
outro lado a falta ou precariedade de narrativas referenciadas à memória
e às tradições (grupo NA) e mais centradas em pragmatismos cotidianos
revelam um discurso menos fluido e mais presentificado tanto dos
adultos, quanto das crianças, com poucos relevos aos ludismos infantis.
2. Os ludismos infantis ainda causam prazer em todos os adultos
entrevistados e convocam as memórias mais facilmente do que os
assuntos pragmáticos do cotidiano adulto. Mesmo para aqueles que
apresentaram dificuldades no resgate mnêmico das atividades próprias
da infância (brincadeiras, narrativas, etc.) a simples menção a elas
mobilizou o desejo, revelando que estes são temas vivos no Sujeito,
embora adormecidos por questões contingenciais.

DADOS DA SEGUNDA ENTREVISTA

A segunda entrevista se deu em torno de uma pergunta central, comum a todos


os entrevistados: ‘Na sua visão o que é necessário para que uma criança se
alfabetize’.

362
Os elementos que constam nos quadros abaixo (Quadro 6 e Quadro 7) são
transcrições das primeiras respostas espontâneas dadas à pergunta, sobre as quais
foram pedidos outros esclarecimentos, que não constam dos quadros mas que serão
discutidos em seguida.

Quadro 6: Segunda entrevista com núcleos familiares de crianças com dificuldades de


alfabetização (NA)
Entrevistado O que é preciso para que uma criança se alfabetize?

1 Investir na educação, uma boa escola, lembrar como a gente foi na escola e
SP aulas de reforço.
2 Leitura, em primeiro lugar. Leitura mesmo.
SP
3 Uma boa escola, pais dedicados, saber estudar e conhecer os problemas e as
SP qualidades do filho.
4 Incentivo, os pais dizerem que é importante estudar e ajudar nos deveres.
SP
5 Mais leitura, né.
PA
6 Ter acesso a diversos tipos de leitura no cotidiano das coisas.
PA
7 Que estude pra aprender. Não sei explicar.
RN
8 Modo de ensinamento da professora, estudar e prestar atenção.
RN

Quadro 7: Segunda entrevista com núcleos familiares de crianças alfabetizadas (AL-I e AL-R)

Entrevistado O que é preciso para que uma criança se alfabetize?

1 Pela experiência que tenho com meus filhos, é preciso estimular. Tem que
SP oferecer bastante estímulos para entenderem os símbolos das letras.

2 Um bom professor, a criança ter prazer em aprender e pais que valorizem o


SP professor.

3 Conhecer as coisas do cotidiano. Saber identificar onde estão escritas as


PA coisas.
4 Ela[criança] conhecer bem as coisas.
PA
5 Uma boa educação, um bom professor, leitura e apoio da família.
RN
6 Um bom professor e o acompanhamento dos pais.
RN

ANÁLISE DOS DADOS DA SEGUNDA ENTREVISTA

Identificamos uma diversidade de respostas entre os entrevistados, sobre as


quais não foi possível estabelecer parâmetros comuns. Propomos, então, a análise
destes dados a partir do agrupamento das respostas em três campos:

363
posicionamento esperado dos alunos/crianças, posicionamento esperado dos
pais/responsáveis e posicionamento esperado dos professores/escola.

Procedendo assim, teremos as seguintes determinações para cada um:

 Alunos/Crianças – devem saber estudar, devem ler bastante, devem


estudar bastante, devem ter prazer em aprender, devem valorizar o
professor, devem conhecer bem as coisas;
 Pais/Responsáveis – devem acompanhar com dedicação os estudos dos
filhos, devem conhecer os problemas e qualidades dos filhos, devem se
lembrar da própria trajetória de aprendizagem, devem ajudar os filhos,
devem estimular os filhos, devem valorizar o professor, devem
acompanhar a aprendizagem dos filhos;
 Escola/Professores – escola deve ser boa e oferecer aulas de reforço, os
professores devem ser bons, devem ter um bom modo de ensinar, devem
oferecer diversidades de leitura cotidiana, devem estimular as crianças.

De forma geral todos estes apontamentos são legítimos e envolvem situações


necessárias à alfabetização. Fazemos exceção aos itens em que se espera que a
criança ‘saiba bem as coisas’ e à proposição de ‘aulas de reforço’, sobre os quais
falaremos após análise geral dos dados. Na nossa visão, de qualquer modo, estas
características apontadas não deveriam ser isoladas, uma vez que a participação das
três instâncias de sujeitos/instituição são necessárias à alfabetização e à
aprendizagem em geral. Observamos que só três sujeitos se referiram a elas juntas
e que os outros 11 entrevistados mencionaram isoladamente um ou dois polos da
tríade.

Não consideramos que esta cisão entre as partes seja reflexo de descaso ou
desconhecimento de como se dá o complexo processo de aprendizagem, uma vez
que esta mesma separação – como observamos ao longo do Capítulo 1 desta tese –
está presente nos pensamentos que subsidiam as teorias e discussões oficiais e
acadêmicas sobre a educação. Na nossa leitura estes familiares incorporam o
discurso que fraciona a aprendizagem e isola elementos que justificam, por exemplo,
teorias como a do fracasso escolar pelo déficit cultural, ou pelo aparecimento de uma
disfunção orgânica, ou pela formação insuficiente dos docentes. São discursos que

364
elegem alguns aspectos para investigação, mas geralmente deixam de fora ao menos
um dos outros elos.

Isto fica evidente justamente na segunda entrevista do sujeito que disse


inicialmente ser necessário, para alfabetizar uma criança, que ela ‘conheça bem as
coisas’.

Entrevistado 4 (grupo AL-R):

No primeiro momento também vemos a reprodução de um discurso que exige


da criança um conhecimento prévio que não lhe foi dado – semelhante, novamente,
ao pensamento que estabelecia que os alunos com carências culturais desconheciam
a língua difundida na elite social, e por isto fracassavam na escola. Em parte esta fala
do familiar faz ressoar ainda aquele discurso, mas quando o entrevistado
complementa sua resposta, percebemos que no fundo o ponto central da discussão
está em outro lugar:

Familiar: (Silêncio) É, ela conhecer bem as coisas, né?

Entrevistador: Que coisas?

Familiar: É a alfabetização..., ser uma criança bem alfabetizada.

Entrevistador: Mas para ela ser uma criança bem alfabetizada, o que a senhora acha que
é preciso para essa criança?

Familiar: Ela conhecer?

Entrevistador: Conhecer o que?

Familiar: As letras, né? Palavras. (Silêncio...)

Entrevistador: Tem algo mais que queira falar?

Familiar: Ela desenvolver bem, né?

Entrevistador: Desenvolver bem o que?

Familiar: Vamos supor que ela, quando passar para uma série ela conhecer bem as
coisas, ficar bem atualizada, para quando ela ir para aquela série, ela não tiver
dificuldades. Eu acho que é isso... No meu ponto de vista acho que é isso, eu acho né?
Tem muitas crianças que passam para outra série, vamos supor se a minha filha não
tivesse aqui, mas em outras... muitas escolas passam a criança sem saber o que ela tá
fazendo e isso prejudica a criança... Que eu me lembre é só isso.

Fica evidente na aflição desta mãe, que sua preocupação é que aconteça de a
filha ser promovida na escola de qualquer jeito e que chegue ao final dos anos
365
letivos, como tantos outros alunos ‘de outras escolas’, sem saber as coisas que
precisa. É necessário ‘conhecer as letras e as palavras’: ainda que na nossa visão a
alfabetização não se dê só com estes subsídios, o seu temor é que nem isto a filha
saiba. É portanto, um sujeito que com seus poucos anos de estudos (só concluiu o
EFI), deseja algo mais para os filhos e identifica que na escola há um possível entrave
a isto. É uma mãe que procura se atualizar ‘nas palavras de Deus’ e nelas instruir os
filhos (que frequentam a escola dominical), porque acha importante que tenham
valores religiosos, que aprendam o que ‘presta’ e o que ‘não presta’ e que saibam
‘respeitar as outras pessoas’ e aquilo que têm.

Vemos que apesar de ser bem sucinta na sua segunda resposta, no conjunto das
duas entrevistas expressa seus valores e como os transmite aos filhos, como enreda-
os na relação com os estudos e com a escola, o que espera do papel da escola e dos
professores, e o que espera de seus filhos e para eles. Filhos cujo desempenho
escolar é plenamente satisfatório.

Este entrelaçamento necessário entre família/criança/escola, podemos ilustrar


mais uma vez retomando os episódios que relatamos nos capítulos anteriores sobre
Graciliano Ramos. Ou seja, vimos uma ação violenta do pai que incidiu sobre o desejo
emergente do filho aprender e isto o afastou dos estudos; vimos que a cartilha da
escola também funcionou como elemento distanciador, uma vez que subvertia a
ordem de saber e da curiosidade infantil; mas vimos também que na escola uma
professora foi capaz de escutar e acompanhar seu aluno nos pontos de dificuldade e
não saber e abrandar a sua aflição; vimos que a prima (e também o pai,
pontualmente) mostraram à criança os caminhos até as narrativas dos livros; vimos
que na oralidade ricamente disposta na cultura local Graciliano encontrou os
recursos para se aproximar dos trabalhos de representação, expressando suas
dúvidas e curiosidades, elementos chave para ‘ler’ o mundo. Todos estes
acontecimentos não são lineares, não são estanques, mas cada um deles se enreda
aos outros e determina o conjunto do que leva a uma configuração final: conseguir
ascender ao letramento.

Outra análise que podemos fazer dos dados das segundas entrevistas é o relevo
às respostas que mencionaram a necessidade de que a alfabetização aconteça como
fruto de relação entre sujeitos e não como acontecimento espontâneo entre aluno e

366
objeto do saber. Oito entrevistados mencionaram indiretamente esta necessidade:
boa relação, modo de ensinar, dedicação, estimulação, valorização, apoio,
acompanhamento. Seja por meio da escola/professor, ou dos familiares, identificam
que a aprendizagem se dá na relação com o outro, marca que para nós é decisiva e
necessária à alfabetização.

Passo agora à análise dos dados expressos por quatro familiares que disseram
que a leitura é o ponto central para que uma criança se alfabetize. No cotejamento
com as respostas dadas nas primeiras entrevistas e com dados complementares
destas segundas entrevistas, veremos os relevos destes pensamentos.

Entrevistado 5 (grupo NA):

A entrevistadora precisou perguntar duas vezes antes que o entrevistado


pudesse responder, de maneira insegura e bem sintética, o que acreditava ser
necessário à alfabetização infantil: Mais leitura, né. Não foi capaz de complementar
sua resposta além de dizer: Nos livros, né? A família poderia colaborar.

O pouco desenvolvimento de suas respostas pode também ser verificado na


primeira entrevista. O sujeito lê às vezes, mas não se lembra do que leu; conversa
pouco com a criança porque se acha ‘mal informada para falar’; gosta de música
sertaneja porque acha as ‘frases bonitas’, mas não se lembra delas.
Espontaneamente disse que só sabe falar sobre suas brincadeiras infantis, porque
foi um momento feliz de sua vida. Não ouvia histórias na infância e só sabe contar
algumas histórias; só conta histórias para o filho quando ele pede.

Vemos na dificuldade narrativa deste sujeito relevos de falta: conversa pouco,


até com os filhos, fala baixo, não se estende nos diálogos porque é mal informada,
não saia de casa quando pequena porque era acanhada. Esconde-se, envergonha-se
por não se lembrar das coisas. Escutou poucas histórias, portanto não se arrisca a
contá-las e falar sobre elas. Mas ainda assim é um sujeito que consegue expressar
que na leitura está o caminho para o letramento; é por aí que poderia, também ele,
chegar à ‘boniteza’ das frases, guardadas nos livros, que ela escuta aqui e ali, mas
que não consegue se lembrar: expressão de um desejo que não se cumpre neste
sujeito, e que, na nossa leitura, se estende ao filho que tem dificuldades na escola,
que ‘é agitado e não senta para ouvir’, que não gosta de conselhos e briga.

367
Entrevistado 6 (grupo NA):

Ter acesso a diversos tipos de leitura no cotidiano das coisas é uma frase talvez
inusual para um indivíduo se referir à alfabetização do filho, mas não a um estudioso
do processo de aquisição da escrita. Esta é uma mãe que se pós-graduou em
pedagogia e que centra suas leituras em textos científicos e acadêmicos que versam
sobre a psicogênese da escrita, ciências da cognição e transtornos de aprendizagem.
Identifica que tanto ela, quanto o filho, são portadores de TDAH e por isto estuda
muito o assunto; talvez atribua a este transtorno o motivo pelo qual as histórias que
conta e escuta não possam ser longas. Ela assiste desenho infantil com o filho pois é
uma forma de ficar com a criança. Um dos programas a que assistem juntos é ‘Agente
urso’, [...] porque é um desenho que ensina e é preciso que a criança aprenda
ludicamente.

Como complemento da pergunta sobre o que é preciso para que uma criança se
alfabetize, diz:

Ele tem que visualizar um pouquinho a questão da leitura, do quadrinho, das placas, é
uma questão cotidiana para mim. A leitura tem que estar inserida no dia a dia da
criança, nem que seja na plaquinha do pedestre, na placa de sinalização. Todas as coisas
estão envolvendo a leitura para mim, primordialmente é esse o estimulo a essa leitura...
Não só a leitura da palavra, mas a leitura do cotidiano, leitura da realidade dela. Pode
ser num detalhe, um bilhete, é um desenho que ela te explique, são coisas que às vezes
a gente acha irrelevante, mas são pequenas coisas que fazem com que a criança
visualize a vida dela, entre aspas, porque é a rua, é o ar-condicionado, é o parquinho:
tudo ela tá vendo e tá tendo uma leitura. Até as pessoas, né? Às vezes a gente lê as
pessoas sem conhecê-las, né? A gente vê o jeito das pessoas, tipo jeito, andar e você
percebe como as pessoas são... nem sempre é o correto, mas a gente tem aquela leitura
querendo ou não, entendestes?

A criança desta família enfrenta dificuldades com a alfabetização e uma das


características apresentadas na escrita é a reprodução de desenhos sobre as letras.
Curiosamente parece operar uma inversão a um dos preceitos do Construtivismo
para a escrita (como vimos no Capítulo 2 desta tese), isto é, ao invés de partir do
desenho e sobre ele colocar elementos aos quais chamará ‘letra’, desenha sobre as
letras que escreve. Na nossa análise a criança estabelece assim seu limite ao
pragmatismo imposto.

368
Aqui claramente as narrativas não fluem, a transmissão geracional fica
interrompida por um saber supra relação, que eleva o filho ao status de
experimentação teórica. Todo compartilhamento, do televisivo às brincadeiras, é
envolvido em intenção e pela expectativa de se verem realizar os acontecimentos
‘leitura do cotidiano’ e compreensão das regras. Como afirma Belintane, subsidiado
por Tfouni, [...] o fenômeno da dispersão pode se dar tanto na produção oral como na
escrita, e que nem sempre o grau de escolaridade é suficiente para indicar maior ou
menor propensão à autoria (BELINTANE, 2011: 93).

Acompanhamos na ação desta mãe a tentativa de aplicar seus conhecimentos


teóricos sobre alfabetização, aproximando todas as esferas da vida do filho do
‘mundo cotidiano letrado’. Entretanto persegue as práticas Construtivistas pelos
padrões alienados, pragmáticos e objetivos deste cotidiano, dispensando as
narrativas próprias da infância (da sua e da do filho).

Entrevistado 5 (grupo AL-R):

É um sujeito que tem referências na escola, na religião e na família. Constrói seu


discurso em torno destas instituições que no seu entendimento transmitem os
valores essenciais à vida e convivência. Identifica a escola como um espaço
privilegiado para ‘dar livros e contar histórias para as crianças’. Como complemento
à resposta inicial dada, diz: Precisa de uma boa educação, uma escola de qualidade
que se preocupe do bem-estar das crianças... professores qualificados que se dedica a
ensinar e gosta do que faz.

Claramente este é um familiar que identifica nas relações entre os sujeitos a


forma de transmissão do conhecimento e do estabelecimento do ensino-
aprendizagem, e mais, que aposta no posicionamento subjetivo do professor
envolvido pelo prazer de sua prática.

Entrevistados 1 e 2 (grupo NA): (Apesar de só um dos familiares ter se referido


espontaneamente à leitura, na segunda entrevista, o cônjuge que também estava
sendo entrevistado passou a falar sobre o assunto).

A entrevistada 1 gosta de ler, mas não lê; gosta de ouvir histórias, mas na
infância só escutou algumas histórias contadas por professores. Ainda assim, conta
histórias para a criança. A gente lê bastante coisas pra ela – e... é, leitura mesmo. Só

369
leitura mesmo! Bastante leitura. Quando indagada sobre como a leitura pode ajudar
na alfabetização, esta entrevistada respondeu que seria [...] um jeito de conhecer as
palavras e a história. Para ela a alfabetização compreende mais do que saber
palavras, uma vez que dá importância também às narrativas.

Este é um sujeito que se lembrava muito pouco da própria trajetória de


alfabetização; recordava-se de que fora bastante difícil se alfabetizar, mas ao final
da 3ª. Série já sabia ler e escrever. Sobre as leituras que fizera na própria infância,
referiu-se aos gibis que a escola disponibilizava, dos quais gostava muito. Não se
lembrava da leitura de nenhum outro gênero literário, além dos gibis e dos [...] livros
pras matérias da escola. Não se recordava bem, mas achava que tinha parado de ler
entre a 6ª. e a 7ª. Série, ainda que tivesse estudado até parte do Ensino Médio.
Lamentou ter parado os estudos para ter que trabalhar.

Questionada sobre como a criança seria uma leitora se em casa os adultos não
liam, respondeu: Ah... ela gosta, né, de... dá pra ver que ela gosta de vê revista, gosta
de... pede pra gente ler... Então eu acho que ela vai continuar, porque ela gosta muito
de personagem... eu acho que... vamo vê, né... não sei...

A mãe faz uma aposta inicial calcada no desejo puro de que a filha prossiga na
leitura, mas não tem elementos para subsidiar este desejo. A própria vivência
empobrecida que tivera com textos ao longo da vida e a consciência tardia de que
fizera falta, parece pesar no incentivo que dá à filha para que continue a ser leitora.
Em sua fala reconhece a importância da leitura e do prazer que tivera com ela na
infância, mas a fragilidade desta experiência converte este encantamento em um
discurso alienado que não permite amparar este mesmo desejo junto à filha.

De qualquer modo, o cônjuge que dissera ler histórias para a criança todas as
noites, mas que também não tinha escutado muitas histórias na infância e parara de
ler precocemente, pôde posicionar-se de outro modo diante da indagação da
entrevistadora:

Na verdade nóis tem que se readaptá, né. Voltá a lê, né, pra ajudar ela. Vamo ter que...
na verdade é isso: vamo ter que participar junto! Se a gente desacostumar... não ler mais,
vai ter que passar a ler. Tanto é que esses gibis que eu compro pra ela agora – esse
Mônica Jovem, esse almanaque novo aí – a gente lê pra ela, a gente... são história contada
e ela gosta que lê. Mesmo ela sabendo, ela qué que lê e vamo ter que lê, né. Eu

370
principalmente, no meu caso que chego... quando ela chega da escola sempre a gente tá
lendo... Tô me readaptando, reacostumando...

O pai reconheceu a importância do papel do Outro neste processo de


apresentação e acesso à leitura junto à criança. Ele também lamentou não ter
escutado histórias na infância – gostava e queria ter escutado mais – mas pôde ver
na filha os traços deste desejo quando lhe perguntamos: ‘Você gosta de contar
histórias?’

Gosto porque vejo que ela gosta muito quando eu conto... Ela pergunta quando não
entende alguma coisa, e fica ouvindo, prestando atenção. Tem as história que eu leio
pra ela... Toda noite, quase, a gente lê, né filha? Acho importante, porque de noite... a
mãe dela não tá em casa porque trabalha até tarde, então eu preciso fazê alguma coisa
que ela gosta e aproveitar esse tempo que a gente tem junto, né? Eu leio as histórias aí...
ela adora história de princesa... tem a Rapunzel, a Branca de Neve... essas...

Por outro lado este mesmo pai acredita que aula de reforço é uma das vias de
alfabetização infantil, pois a sua própria alfabetização se deu por intermédio de uma
professora particular que dava ‘reforço’:

Minha alfabetização foi... foi tranquila porque, assim, na primeira série tinha uma
professora que ela era ... ela era rigorozinha. Ela era..., só que ela ensinava bem e minha
mãe pagou um reforço pra mim – por isso que eu tentei com a [criança] e depois a gente
viu que nem precisava... O reforço pra mim foi ótimo: quando eu fui pra segunda série,
eu tava alfabetizado. Eu lembro quando eu fui pra segunda série eu já tava alfabetizado.

Entrevistador: Você acha que a tua alfabetização deveu-se mais ao reforço do que à
escola?

Reforço!, reforço!, porque a escola – 45 alunos, por exemplo, tinha dentro da sala –
quase que não tinha lugar pra sentar na sala, então era difícil alguém sair alfabetizado
de uma sala de primeira série. Aquilo era um negócio meio sério, e o reforço ajudou
muito! Tinha uma senhora que dava reforço e minha mãe colocou eu. Era eu e meu
primo na época, quando a gente... ele não tava nem na primeira série quando ele fazia
esse reforço e quando ele foi pra primeira série, ele já foi lendo. É como se fosse uma
creche, né, no caso, porque no nosso tempo não tinha... nóis não fez creche: eu entrei
direto na primeira! Não fiz creche. Não tive prezinho, esses negócio.

Aqui também vemos a emergência de um discurso que acompanha


acontecimentos sócio históricos sobre os provimentos educacionais: na evidência
da exclusão do sistema educacional (classes abarrotadas, professor rígido), recorre-

371
se a soluções extra classe (aulas de reforço). Assim, de maneira alienada, os cuidados
educacionais são buscados em espaços fora da escola.

Há nestes pais um esforço nítido de ir ao encontro do desejo da filha: dispendem


energia com os recursos de que dispõem e apostam nas narrativas como uma das
ferramentas fundamentais. Apesar das dificuldades iniciais e um tanto persistentes
da filha se alfabetizar, a menina se encanta com histórias e foi justamente pela via
das narrativas que superou suas dificuldades, corroborando nossa tese. Esta é uma
das crianças à qual nos referimos no Capítulo 4 que adora narrativas de bruxas e
fadas e que com orgulho conseguiu decorar a adivinha sobre ‘a varinha de condão’.
Discutiremos mais adiante o momento do ponto de virada no seu processo de
alfabetização.

ANÁLISE GERAL DAS ENTREVISTAS

Como conclusão da análise dos dados das entrevistas elencamos alguns


aspectos importantes, discutidos a seguir.

Todas as famílias expressam interesse por acontecimentos culturais e dentre


aqueles que têm pouco ou nenhum acesso a aparelhos diversificados de cultura,
todos lamentam a falta de algum deles. Identificamos com isto, que a ausência de
incentivo e acesso à cultura é um fenômeno a ser pensado e vencido, no âmbito
social.

O item que foi unânime entre todos os familiares entrevistados foi a


manifestação de desejo é por ‘ouvir histórias’, evidenciando claramente que nas
famílias nas quais este hábito não foi cultivado, deixou um espaço aberto cuja
carência é preenchida pela televisão e/ou pelas narrativas religiosas. Portanto, se
formulações teóricas como a que vimos em Dufour apontam para o fim das grandes
narrativas, encontramos nestes dados pequenos indícios de que o desejo por elas
não se esgotou (avaliação também feita por Belintane, como apontamos no Capítulo
4). Nas famílias de crianças com dificuldade de alfabetização o papel preponderante
de transmissão narrativa é exercido pela televisão, que conduz a forma relacional e
os conteúdos comunicados entre as gerações, substituindo o desejo latente por
ouvir e contar histórias. Ou seja, ainda que de modo geral a televisão seja um
instrumento de alienação, ela vem suprir uma carência narrativa aberta e
identificada.
372
As famílias que não têm por hábito contar histórias e/ou ler, identificam na
escola a possibilidade de acesso de seus filhos a estas práticas, evidenciando a
necessidade e a urgência de que esta instituição assuma minimamente o papel de
provedora e fomentadora de narrativas e trabalhos com textos.

Há evidente associação, nas famílias que têm hábito frequente e diversificado


de leitura, entre as reminiscências narrativas familiares e culturais mais amplas,
com os elementos que são alvo de transmissão geracional. Isto se reflete em
discursividades que não deixam de fora a preocupação com os estudos e a
escolarização, mas que os inclui no rol dos elementos que são formadores da
subjetividade própria e relacional.

A escola e os estudos são referências importantes para todas as famílias (alvo


de conversas diárias), mas para aquelas cujas crianças enfrentam questões com a
alfabetização, a discursividade reflete uma preocupação prosaica, criada em torno
de um modo repetitivo e alienado de expressão que desvincula os acontecimentos
da educação formal e da constituição social e subjetiva. Atribuímos este modo de
ação à falta de acesso a outras formas narrativas.

Os discursos subjetivos sobre o que é preciso para a alfabetização infantil,


especialmente entre as famílias de crianças com dificuldades de alfabetização, de um
modo ou de outro ancoram-se em algum discurso sócio histórico de exclusão
educacional. Mas quando fazemos surgir as representações latentes, eles refletem
preocupação justamente com a exclusão da prole dos meios educacionais formais,
reconhecendo a importância e a necessidade dos estudos.

Vemos nestes dois últimos pontos as marcas das tensões intrínsecas do


encontro permanente entre o discurso sócio histórico sobre educação e o discurso
subjetivo, mas também vemos que este último muitas vezes se coloca como
impotente – ‘não lembro’, ‘não sei mais’ – impossibilitado assim que se faça ouvir.
Nossa proposta de trabalho dirige-se exatamente a este ponto: escutar nas salas de
aula onde as Subjetividades infantis não se expressam, mas que sempre estão lá,
latentes.

Propomos, então, a discussão de como isto pode se dar em sala de aula, através
de atividades focadas nos alunos. Apresentamos a seguir dois casos entre tantos
atendidos ao longo de dois anos do PROJETO “DESAFIOS”.
373
5.3.O RESGATE DAS NARRATIVAS E DAS MEMÓRIAS –
REPRESENTAÇÕES EM SALA DE AULA

É importante ressaltarmos, antes de mais nada, que os atendimentos individuais


que descreveremos a seguir são resultados também do trabalho em equipe, no qual
se identificou dificuldades pontuais dos alunos e se traçou estratégias de ação. Não
se trata, portanto, do esforço de um ou outro sujeito isolado, ainda que os
atendimentos em si tenham sido feitos por uma única pessoa.

Retomo, então, a criança que gosta de narrativas de bruxas (na Tabela Avaliação
Diagnóstica da página 343 desta tese é a criança 13 e nos Quadros de Entrevistas 4
e 6 corresponde aos familiares 1 e 2).

5.3.1. DO LAÇO DE FITA NO CHAPÉU À MENINA

Trata-se do atendimento de uma menina que apresentava algumas dificuldades


importantes com a escrita e leitura convencionais. Com relação à leitura sua
primeira avaliação diagnóstica mostrou que não conhecia todas as letras do alfabeto,
não era capaz de fazer acrofonia136, de identificar palavras valise, de ler rébus137, de
compreender uma adivinha, ou de identificar rimas, e na avaliação de escrita, estava
na hipótese pré silábica138.

Gostava muito de histórias, prestava atenção a todas com interesse e toda


semana levava livros da biblioteca para casa e às vezes pedia livros ‘extra’. Tinha
uma memória bastante boa para músicas, histórias, brincadeiras cantadas,
acontecimentos, mas curiosamente sua memória estava mais aberta às lembranças
espontâneas, do que para responder a perguntas diretas feitas por alguém. Portanto,
apesar de ouvir muitas histórias, nem sempre se lembrava delas.

136
Acrofonia é a identificação do som das extremidades de uma palavra. No projeto usamos como a
identificação do som inicial de uma palavra (primeira sílaba), palavra esta nomeada inicialmente a
partir de uma imagem e depois acompanhada da sua grafia.
137
Leitura de rébus como expusemos no Capítulo 4 desta tese.
138
Novamente, expomos esta nomenclatura por ainda ser uma referência ao corpo docente das
escolas em que o PROJETO “DESAFIOS” vem sendo realizado.

374
Bastante falante, em alguns momentos desligava-se completamente da aula e
ficava quieta, pensativa – geralmente nos momentos de atividades individuais de
escrita ou leitura em sala de aula. Às vezes era bastante coerente nos recontos que
fazia das histórias, mas em outros momentos dispersava-se e não era capaz de
recontá-las.

Sobre jogos de cartas e tabuleiro compreendia bem as regras, mas geralmente


nas disputas a dois perdia porque demonstrava um tempo de reação menor do que
dos adversários.

Sobre seus desenhos, uma particularidade: sempre havia uma menina de


chapéu com laço, um sol e uma nuvem, independentemente do que se pedia. Por
vezes, quando se pediu um desenho de história contada, escutada, os elementos
figurativos da narrativa não apareciam, mas a menina, sol e a nuvem, sim. Cabe dizer,
que a maneira como retratava esta menina em seus desenhos, tinha sido copiado de
outra aluna, mas tornara-se marca sua: enquanto a outra aluna variava suas
imagens, esta repetia-as.

Este foi o caso do primeiro desenho pedido no início do ano como parte da
avaliação diagnóstica, feito sobre a história do ‘Zé Bocoió’. Pediu-se que as crianças
fizessem um desenho retratando três cenas da história e que depois descrevessem
as cenas. A aluna faz a seguinte descrição, nesta ordem:

Aqui é onde eu vou fazer as crianças brincando. Aqui as crianças caíram na água e aqui
é a igreja.

Aqui é a casa dele.

Aqui é o açougue.

De fato, as três cenas descritas faziam parte do enredo, embora em outra ordem
de acontecimentos (casa, açougue e igreja)139, mas chamou a atenção que pelo
desenho apresentado não era possível identificarmos os elementos relatados como
‘igreja’, ‘água’ ou ‘açougue’ – só soubemos disto porque ela falou. Na primeira parte
do desenho – correspondente à igreja – fizera duas árvores e cinco figuras humanas
(uma delas a menina de laço no chapéu), com nuvens e sol. Na segunda parte –
correspondente à casa – fizera uma casa com portas e janelas (com algumas partes

139
Para esta atividade não consideramos este aspecto cronológico, uma vez que não especificáramos
isto na sua comanda.

375
destas pintadas) e mais um elemento ao lado que parecia outra casa, mas sem portas
ou janelas. Na terceira parte – o açougue – havia duas figuras humanas bem menos
elaboradas que na primeira parte, e um elemento pontiagudo que não dava para
identificar o que era. A igreja e o açougue apareceram no relato, mas não no desenho.

Havia, portanto, memória sobre a história, mas seus elementos narrativos e


figurativos pareciam fora de lugar.

Ao longo do primeiro semestre de aula às vezes lia uma palavra inteira posta na
lousa e em outros momentos não identificava sílabas simples constantes destas
mesmas palavras. Esta situação persistiu até o segundo semestre, como se pode ver
em episódio registrado no mês de agosto, em que precisava ler simplesmente ‘sala
de aula’ em um bilhete entregue por um amigo. Ela conversa com outra aluna:

Aluna: Lê pra mim que eu não sei ler.

Amiga: Não. Eu te ajudo. Que letras tão nessa palavra?

Aluna: É o S e o A. É SA.

Amiga: Você não leu direito. Tá faltando coisa. Cê só falô essas duas aqui.

Aluna: É o L e o A. LA. (fica olhando para a amiga).

Amiga: Você só fala em pedaço?

Aluna: SA... LA. SALA

(Amiga já com cara cansada)

Aluna: D e E, DE

Amiga: Ah! Agora só tá faltando a última

(Aluna olha longamente, mas não toma a iniciativa de ler, nem ao menos de soletrar as
letras).

Amiga: Vamo logo que a prô tá chamando

(Aluna continua olhando para o papel)

Amiga: Fala as letra.

Aluna: A e U... É A!

Amiga: Não! Você disse duas letras – A e U

Aluna: A?’ KA?... A?

(Passa outra aluna que diz AU).

376
Aluna: AU. (Olha para o LA e diz: LA, mas na hora de unir as palavras, lê: Escola de
Aplicação?)

O que percebemos neste relato é que se efetivamente a aluna consegue com


dificuldade identificar as letras e até as sílabas, mas não consegue transformá-las em
palavras, este aparente impedimento mostra na sua última frase que leu o sentido
do que estava escrito: ‘sala de aula’ transforma-se em ‘escola de aplicação’. É uma
leitura que expressa semelhança de sentido, mas que pelo atravessamento
metonímico, elide o sentido efetivo. As capacidades leitoras se mostram pelo fato de
que já consegue identificar palavras valise, de ler rébus, identificar rimas, mas algo
ainda resiste.

Antes deste episódio, no mês de maio pediu-se outro desenho sobre história.
Tratava-se de um conto acumulativo – ‘O macaco e o grão de milho’. A aluna fez dois
desenhos complementares, como se vê abaixo na Figura 21 e Figura 22:

Figura 21: Desenho realizado por aluna do 1º. Ano EFI

Fonte: Escola de Aplicação FE-USP, 2012.

377
Figura 22: Desenho realizado por aluna do 1º. Ano EFI

Fonte: Escola de Aplicação FE-USP, 2012.

Mais uma vez os desenhos da menina e do sol estavam presentes, deixando de


fora alguns elementos pertencentes à história. Neste dia perguntei por que aquelas
figuras estavam ali se não faziam parte da história original. Não esperava com isto
que a criança soubesse responder, mas queria destacar, marcar a repetição de uma
acontecimento que se intrometia nas suas atividades.

Dois dias depois pedimos individualmente que cada aluno recontasse a história,
tendo como suporte, se quisessem, os desenhos que haviam feito. O reconto da aluna
segue abaixo.

É a história do macaco e o ... esqueci... não sei... [Como é esta história?] Tinha um macaco,
uma árvore, aqui tem um grão de milho, um machado, o sol – eu fiz, né, o sol – aqui atrás
(na parte de trás da folha, onde continuara seu desenho) a onça, e a água tomando
banho. O macaco encontrou o grão de milho aí o macaco pegou e subiu na árvore e o
grão de milho caiu e o macaco falou assim: ‘Árvore, devolve o meu grão de milho!’ –
como não falava, não devolveu nada – aí o macaco falou pro machado cortar o tronco.
Já que o machado não foi cortar, ele foi chamar o fogo – iii, eu não fiz o fogo! – o fogo
claro que não falava, e não falou; aí foi chamar a água, que claro que não falava e não foi.
Aí ele chamou a cotia, mas ela não falava e não foi. O macaco chamou a onça – que não
foi – e aí o macaco foi chamar o homi lá – eu não sei o nome dele, aquele que... que... ah!

378
ele caça! – ah, o caçador, esse aqui com chapéu! O caçador que tava atrás daquela cotia
ali (aponta para o mural da sala), aí o macaco foi chamar a morte, que disse que ia matar
todo mundo e acabou. [Acabou?, mas e o macaco conseguiu o seu grão de milho de
volta?] Sim. [Como?] Ele devolveu com medo da morte.

Notamos neste reconto alguns movimentos diferentes da aluna. Ela começou


descrevendo seu desenho e os personagens da história, quando se deu conta de que
fizera um sol que não deveria ter feito. Não falou nada a respeito da menina de laço
no chapéu, mas percebemos no fluxo de seu reconto que a menina de chapéu na
verdade é o caçador. Lembrou-se também de um elemento que não estava entre as
figuras desenhadas, o fogo. Quanto ao enredo no geral, como se tratava de um conto
acumulativo, ela contou só metade da história – faz o movimento de ida, mas não de
volta da narrativa – o que lhe deu um desfecho abrupto e inconcluso. No meio da sua
história fez um movimento de intertextualidade ao referir-se ‘àquela cotia ali’,
pertencente à história sobre a ‘A Árvore de Tamoromu’, cuja imagem estava no
mural da sala.

Uma das estratégias adotadas com esta aluna desde o primeiro semestre letivo
tinha sido de semanalmente contar-lhe histórias individualmente ou em pequenos
grupos de alunos. Geralmente nestes momentos escolhia histórias de bruxa, uma
insistência que a dado momento pareceu-nos excessiva, como a intromissão da
menina do laço no chapéu.

Depois de algumas tentativas de mobilizá-la para elementos diferentes, no mês


de outubro escolhemos um livro de textos africanos, sem fadas e bruxas, do qual
extraímos o conto ‘A encantadora canção do pássaro mágico’140. Li o conto para a
aluna e pedi que, enquanto eu lesse, desenhasse a história sem a menina com laço
no chapéu, o que a deixou bastante espantada.

A narrativa (Anexo E) versava sobre um pássaro encantador, de asas


multicoloridas que rapinava todos os víveres de uma aldeia. O chefe tribal, furioso
com o acontecimento, ordenara que os velhos da aldeia acabassem com a ave. Uma
vez que estes não conseguiram porque se deixaram encantar pela melodia do
animal, o chefe enviou os jovens para a mesma tarefa. Também estes sucumbiram

140
História retirado de um livro com contos de diversas regiões da África, selecionados por Nelson
Mandela: OELKE, Julius.

379
aos encantos da ave. Restaram as crianças, que finalmente exterminaram a ave
derrubando a enorme árvore em que se abrigava.

A aluna começou escutando a história sem nada desenhar. No meio do primeiro


parágrafo, na frase: A cada manhã havia menos e menos carneiros e bodes e galinhas,
começou a desenhar o pássaro. Continuei lendo e dois parágrafos adiante li O chefe
tribal da aldeia [...] e ela começou a desenhar uma figura humana e perguntou:

Aluna: É um homem ou uma mulher?

Eu: Quem?

Aluna: O chefe tribal.

Eu: Parece ser um homem: ‘o’ chefe tribal.

Mais adiante li: – Cortem a árvore! Essa é a solução! – ele comandou. Neste
momento ela comentou:

Aluna: Nossa!, fiz parecendo um cavalo.

Eu: E era para ser o quê?

Aluna: Era pra ser o ‘shorts’ da tribo.

Eu: Ah! O ‘shorts’ da tribo!... E o que é uma tribo?

Aluna: É o comandante, oras!

Expliquei para ela o que é tribo, resgatando o filme do Kirikú que assistira na
sala, e expliquei o que é um chefe tribal. Em seguida, depois que eu li A canção era
tão fascinante que os machados e os facões foram escorregando um a um das mãos dos
homens, ela desenhou um arco com flecha, apontados para cima, e comentou:

Aluna: Tá caindo o machado... quer dizer, a flecha

Eu: A flecha está caindo?

Aluna: No chão.

Eu: E há flechas na história?

Aluna: (em dúvida) É... o machado...

Desenhou um árvore. Quando li: Na manhã seguinte, o chefe tribal e as crianças


da tribo foram até a árvore onde o estranho pássaro descansava, ela perguntou:

Aluna: É homem ou mulher?

Eu: Quem?

380
Aluna: As crianças.

Eu: Acho que os dois. Existem crianças meninos e crianças meninas.

Aluna: Ah! Eu não sei fazer menino pequeno. Só sei fazer menina.

E desenhou uma menina, como podemos ver na Figura 23.

Figura 23: Desenho realizado por aluna do 1º. Ano EFI

Fonte: Escola de Aplicação, FE-USP, 2012.

Iniciamos com a análise do desenho, mas cabe dizer que não se trata de análise
como se faria na clínica psicanalítica ou psicológica, já que é uma investigação que
se faz no campo da educação (como a que acreditamos). O desenho é tomado como
mais um elemento de intertextualidade, isto é, a expressão gráfica da criança a partir
de uma narrativa ou acontecimento mostra elementos de compreensão dos enredos.

Percebemos que este desenho apresentado na Figura 23 aparece mais


estruturado do que o anterior – cabe dizer, inclusive, que é mais estruturado do que
qualquer outro desenho que tinha feito até então. A aluna ateve-se aos elementos da
narrativa, à exceção da ‘flecha’ confundida com o machado. A imagem da menina
desenhada é completamente diferente das figurações anteriores que antes
persistiam.

381
A confusão entre os termos e conceitos que expressou ao longo da atividade
reflete bem as confusões com as palavras, sílabas e letras que apresentava nas
atividades de sala de aula. Como ilustração, retomamos uma lição em que se pediu
para os alunos identificarem em um texto a rima de algumas palavras, atividade já
bastante trabalhada em sala de aula. Ao pedirmos que rimasse ‘galinha’ com outra
palavra, insistentemente dizia É asa! É asa! É evidente a capacidade metonímica que
a aluna expressa na linguagem ao destacar um elemento do objeto para representá-
lo na totalidade da coisa, essencial para conduzir uma boa leitura e interpretação de
textos. A questão que se apresenta para a aluna, no entanto, é que seus enunciados
metonímicos aparecem frequentemente na fala como um elemento incoerente aos
ouvidos alheios, interrompendo os diálogos que se estabelecem em uma sala de
aula; irrompem como o inconsciente, impedindo que muitas vezes o outro
compreenda o que quer dizer. Esta inadequação social é o que se mostra como
elemento que dificulta sua alfabetização, uma vez que se intromete na fala cotidiana
deixando a criança à deriva da linguagem.

No entanto, ao analisamos detalhadamente seu movimento com o texto do


pássaro, percebemos o início de uma mudança com relação a esta inadequação. Aqui
brilhantemente aparecem em suas representações os relevos metafóricos e
metonímicos a respeito de meninos e meninas, que começa com a primeira
pergunta: ‘o chefe tribal é homem ou mulher’? Parte do ponto do que para ela é um
nonsense – a palavra ‘tribal’ – e aí começa a trabalhar na tentativa de tecer algo em
torno de um sentido. Surgem as metáforas: ‘ele comandou’ ela desloca para
‘comandante’ e ‘tribo’ desloca para ‘tribal’. Isto, por sua vez, produz metonímia e faz
condensar ‘comandante’ em ‘o chefe tribal’. Neste duplo movimento de condensação
e deslocamento de palavras e imagens, faz surgir a identidade primeira: homens
usam shorts.

Em seguida aparece o seu ponto de identificação: ‘não sei sobre meninos, só


sobre meninas’. É isto que nos permite ver que nas suas oscilações em sala de aula
muitas vezes se depara com a questão sexual. Ela ainda está às voltas com a
representação de sua identidade, por isto a insistência da menina de laço no chapéu,
que neste último desenho aparece de outra forma, mas que nos anteriores podia
substituir caçadores e outras figuras humanas.

382
Neste atendimento retomei com ela as interferências figurativas que
apresentava antes e como isto dificultava para os outros a compreensão do que ela
queria dizer; analisei com ela a diferença entre o desenho do ‘homem’ e o da ‘menina’
e, principalmente, o daquela menina ali (criação/identidade dela) com a menina que
fazia antes por repetição (imitação por identificação a outra aluna). Analiso que a
interdição inicial feita sobre a imagem que sempre copiava foi um fator decisivo para
poder iniciar a busca de um traço próprio de identificação.

Ao final desta tarefa a resposta primeira da aluna foi uma manifestação de alívio
e felicidade. Mais do que uma lição escolar terminada, com a atividade narrativa que
desenvolvemos juntas pode começar a dar um contorno a divagações subjetivas que
interferiam na sua representação de mundo.

Depois deste trabalho a aluna começou a se colocar de outra maneira em sala de


aula, por meio de intervenções mais precisas e inteligível aos outros, ou seja,
começou a compartilhar falas e se fazer entender, onde antes apareciam expressões
como o ‘shorts da tribo’. Para ilustrarmos estas mudanças, ao começarem uma
atividade em sala de aula, cujo tema era um trem, ela começou a entoar ‘O trem
maluco, quando sai de Pernambuco...’, em clara intertextualidade. Em outro episódio
relatou a uma amiga que identificara que as palavras ‘bode’ e ‘bigode’ só eram
diferentes por causa das letras I e G. E em um terceiro momento em que fazia uma
lição sozinha, escrevia as palavras soletrando-as corretamente.

Esta criança, como também a que analisaremos a seguir, apresentou progressos


em sua alfabetização. Por motivos de encerramento desta tese deixei de atendê-los,
mas seguem em acompanhamento pela equipe de professores e bolsistas do
PROJETO “DESAFIOS”.

5.3.2. O ENTEADO NA TRAMA GENEALÓGICA

O segundo caso que trazemos para análise teve início no 1º. Ano EFI em 2011. A
avaliação de ingresso do aluno, realizada pela coordenação da escola antes do início
das aulas, mostrou que ele reconhecia poucas letras e números mas, principalmente,
que tinha poucos repertórios de linguagem: confundia elementos como cor, nome

383
brinquedos e brincadeiras, lugares, etc., não sabia as posições relacionais e de
grandeza dos objetos.

Na primeira avaliação diagnóstica feita em sala de aula, um mês depois do início


das aulas, apresentou dificuldades bastante significativas com rébus, associação
imagem palavra, palavra valise, compreensão de adivinhas, identificação de rimas,
etc. Trabalhos individuais e em pequenos grupos foram sistematicamente
realizados e se somaram àqueles de sala de aula com jogos, narrativas, desenhos,
músicas, etc. No entanto seu avanço era muito lento, ainda que timidamente se
esforçasse bastante e não se recusasse a nenhuma tarefa.

Tentativas de ampliação de repertório, por exemplo, não se sustentavam de um


dia para o outro: só se lembrava de uma história contada no mesmo dia e ainda
assim, com muita dificuldade; listas de diferentes frutas, objetos, cores, etc.
trabalhadas por meio de jogos, desenhos, histórias e músicas também não
perduravam na memória: tempos depois tudo era ‘fruta’, ‘coisa’, ‘de comer’, ‘de
brincar’.

Encerrou o ano letivo com o seguinte quadro diagnóstico, exposto abaixo em


índices de aproveitamento141:

 Narrativas: ouvir histórias 75%, recontar história usando recurso de


imagem 25%, recontar história sem uso de imagem 25%, recontar conto
acumulativo 25%, retomar história a partir de uma de suas partes 25%,
estabelecer relações intertextuais 25%, repertório de histórias na
memória 25%.
 Textos em verso: escuta e participa de brincadeiras orais 100%,
memorização de texto em verso 50%, identificação de rimas 25%,
retomar estruturas repetitivas de textos em verso 25%, memorizar e
responder adivinhas 50%.
 Elementos menores: acrofonia 75%, leitura de rébus 25%, palavra valise
25%, domínio do alfabeto 25%, domínio de sílabas simples 0%, domínio
de sílabas complexas 0%, agilidade de leitura e reconhecimento de
palavras polissílabas 0%.

141
Síntese da avaliação do 1º. Ano EFI realizada pela professora regente, ao final do ano letivo de
2011.

384
 Leitura: acompanhar leitura em voz alta 0%, leitura de imagens 50%,
leitura de sequência de quadrinhos sem palavras 50%, leitura de
palavras simples 0%, leitura de palavras complexas 0%, agilidade para
ler e compreender frases 0%, leitura fluente de textos de pequena
extensão 0%.
 Manejo da escrita: escreve o nome completo a partir da memória 100%,
copia texto com agilidade 25%, adequação da letra ao espaço da linha
75%, transcrição de um texto 0%.

A produção de desenhos também era bastante pobre, como se pode ver na


Figura 24 e na Figura 25.

Figura 24: Desenho realizado sobre a Lenda da Iara, por aluno do 1º. Ano EFI

Fonte: Escola de Aplicação FE-USP, 2011.

385
Figura 25: Desenho realizado por aluno de 1º. Ano EFI sobre o tema ‘O que gosta de fazer’.

Fonte: Escola de Aplicação FE-USP, 2011.

Decidimos continuar o trabalho sistemático de acompanhamento desde o início


do 2º. Ano EFI e uma das primeiras atividades desenvolvidas foi a narrativa de um
conto dos irmãos Grimm (1970), ‘Os três anões do bosque’. Geralmente o menino
escutava as histórias calado, mas neste dia, logo no início da contação, começou a
fazer perguntas. Mais especificamente, perguntou pelo significado de duas palavras:
primeiro ‘viúvos’ e em seguida ‘enteada’.

Uma, depois outra, expliquei-lhe o sentido das palavras e a partir daí a criança
pôs-se a falar sobre sua família e as relações de parentesco: Minha mãe já se separou
do meu pai quando eu ainda não tinha nascido; explicou que tinha um pai ‘que não
era seu pai’, uma mãe e uma irmã. Perguntei-lhe, então, se a irmã também era filha
de seu pai, ou do padrasto e neste momento começaram a aparecer as confusões de
que era alvo. No diálogo que se estabeleceu ficou claro que ele não sabia como eram
as relações de parentesco com as pessoas que moravam em seu núcleo familiar (oito
pessoas ao todo), uma vez que os avós dividiam o mesmo espaço físico e eram
chamados pelos próprios pais de ‘pai’ e ‘mãe’, assim como um tio que ele não sabia
se era irmão do pai ou da mãe.

386
Na semana seguinte, em outra atividade, pediu que lesse uma história para ele.
Quando tomei o texto nas mãos ele tentou ler o título do conto:

Aluno: L tem no nome da minha irmã.


Eu: Qual é o nome dela?
Aluno: É Gabriella, com dois Ls142.
Eu: Escreva aqui o nome dela [dei-lhe uma folha de papel].
Aluno: Escreve GABRIEA e depois põe um L entre o E e o A. Em seguida escreve o
seu nome corretamente.
EU: Mas você não disse que Gabriella tem dois Ls?
Aluno: [Ri sem graça sem responder à pergunta]: Eu tenho um tio que chama Mio
[escreve HBO e depois põe um L entre o B e o O, fazendo HBLO].
Eu: Mas que nome é este, Mio?
Aluno: O nome do meu tio [Ri sem graça de novo].
Eu: E o nome da sua mãe?
Aluno: [Escreve CICICIA]: Ela chama ‘Cicília’.
Eu: Leia o que escreveu.
Aluno: ‘Cicília’ [Olha meio incrédulo para mim].
Eu: Está estranho?
Aluno: [Não muito convencido] Não.
Eu: E o seu pai, como chama?
Aluno: Beto. [Escreve, espontaneamente, BETO].
Eu: Beto é apelido. Qual será o nome dele: Alberto, Roberto, Gilberto...
Aluno: É este! Acho que é Gilberto!
Eu: Escreve aqui.
Aluno: Não sei... [põe o B de novo]. Como é?
Ajudo-o a escrever, mas ele apaga mal o B que fizera e, na frente, escreve GILBERTO.
Em seguida escreve espontaneamente, várias vezes, a sequência ABCD.
Pergunto a ele, ainda neste atendimento, quais eram os nomes dos avós e ele
novamente só sabia seus apelidos. Começava a aparecer que, além das relações de
parentesco não serem muito claras, os nomes das pessoas do núcleo familiar
também não eram. A partir daí, junto com o professor de classe, criamos atividades
extra que o aluno deveria fazer em casa com a família. Eram tarefas que envolviam
os nomes, sobrenomes e idades das pessoas do núcleo familiar, a montagem da
árvore genealógica com as relações de parentesco e as atividades que cada um
desenvolvia.

142
Este nome, como os que seguem na exposição de dados são fictícios, mas conservam as
propriedades que queremos analisar.

387
Nos atendimentos seguintes e também em sala de aula, a partir da visualização
da árvore genealógica, a criança começou a fascinar-se com descobertas sobre quem
era quem em sua casa e, principalmente, com a descoberta de que cada membro da
família das gerações seguintes tinham ‘nomes iguais’ (os sobrenomes) aos de seus
pais e avós. Com esta atividade ficou sabendo os nomes do tio, da mãe, dos avós e
descobriu que o nome do pai/padrasto não era Gilberto...

A reconstrução destas representações colocou o aluno em outra relação com o


conhecimento, muito mais interessado e ativo, cujos resultados apareceram em sua
aprendizagem subsequente, especialmente com relação às atividades que
demandavam relevos de memória e a categorização, classificação e seriação dos
elementos.

As confusões e a apatia diante de conjunto de objetos, aspectos de objetos ou de


pessoas, fundamentadas na desordem encontrada nas referências familiares, foram
se desfazendo e permitiram a elaboração de representações de lugares onde
pudesse encontrar sua identificação como membro de uma família, alvo de
transmissões geracionais mais claras. A possibilidade de reestruturar seu próprio
enredo narrativo abriu-lhe portas para poder se posicionar subjetivamente frente à
aprendizagem, sem ter que se alienar em generalidades vazias de sentido. Antes ele
não conseguia sequer compartilhar um jogo infantil com outras crianças, pois não
distinguia os elementos da brincadeira e suas regras: qualquer jogo era igualmente
confuso, como eram as relações entre seus parentes.

Podemos ver nestes dois casos relatados e naqueles que expusemos ao longo
dos capítulos anteriores desta tese, como as atividades com a oralidade e as
narrativas podem permitir, com mais propriedade do que o trabalho com textos
pragmáticos do cotidiano, as representações de lugares geracionais e/ou
identidades e/ou relações intersubjetivas, condições fundamentais para o acesso às
representações que se dão por contiguidade nas relações sócio histórias que situam
o sujeito nas relações sociais e culturais.

Observamos também como a direção do olhar e da escuta, voltados às


singularidades, que dão relevo às heterogeneidades, permitem a emergência das
Subjetividades por onde circulam as relações entre pessoas, condição que, como
388
apontamos nos Capítulo 3 e 4, são fundamentais à aprendizagem, especialmente no
início da educação básica com o processo de alfabetização. Notamos que para isto é
preciso esforço coletivo de construção do saber e do espaço da relação de ensino e
aprendizagem.

Enunciamos como hipótese desta tese a possibilidade de fazer confluir, pela via
das narrativas, o resgate mnêmico e as construções míticas infantil, com a
perspectiva de incidir sobre as repetições discursivas das práticas educacionais que
não se efetivam, levando-as a se modificarem. Para isto apontamos três campos por
onde estas práticas educacionais deveriam ser entrelaçadas: o sócio histórico, o
testemunhal e o subjetivo.

Vemos claramente no primeiro caso que relatamos acima – o da menina com o


laço no chapéu – como isto se deu. No campo sócio histórico identificamos no relato
de seus pais sobre os próprios processos educativos, a submissão a escolas públicas
de qualidade questionável, com muitos alunos em sala de aula, com práticas
pedagógicas repetitivas e pouco interessantes, que culmina com o apelo a
alternativas fora da escola para a efetivação da alfabetização – as aulas de reforço.
No campo testemunhal identificamos a consciência dos pais de que para a
alfabetização é preciso volume e variedade de textos narrativos e a consciência de
que não tiveram acesso a estes recursos nos próprios processos de educação e como
isto os torna pouco próximos dos textos narrativos. No campo subjetivo percebemos
o movimento de revisão dos pais com relação às suas práticas leitoras e a
transmissão geracional à filha e, do ponto de vista da criança analisamos como a
possibilidade de acesso às narrativas na escola podem auxiliar no reposicionamento
subjetivo frente à aprendizagem.

No segundo caso descrito (que também aparece no primeiro), retomamos com


as narrativas questões pragmáticas que compõem o cotidiano social – ser filho de
quem, ser menino ou menina – mas que são fundamentalmente problemas postos
ao sujeito em suas singularidades. Recuperamos assim a função da Banda de
Möebius em que se vai de um ponto a outro da fala – da prosaica à subjetiva – bem
como de uma realidade a outra – da externa à interna.

Estes dados confirmam nossa hipótese sobre a obrigatoriedade de a escola ser


provedora de trabalhos com textos, especialmente nos anos iniciais de

389
escolarização, como forma, inclusive, de suprir eventuais demandas onde elas são
carentes socialmente, ou de suprir o estabelecimento de representações que
vinculem estas narrativas subjetivas aos espaços dos acontecimentos sociais,
corrigindo erros históricos de exclusão dos sujeitos, não só na cultura, mas no uso e
experimentação participativa e criativa delas. Mais e melhores leitores
reposicionam o grupo social com relação aos provimentos oficiais oferecidos no
campo da educação.

390
6. CONCLUSÃO

Se nos fosse dado pensar em uma alegoria na qual pudéssemos condensar o que
expusemos sobre a alfabetização ao longo deste trabalho, recorreríamos a um conto
acumulativo: aquele que para ser compreendido em suas complexidade precisa
fazer um caminho de resgate mnêmico até onde se tensionam as demandas, para
então refazer o percurso de volta ao ponto em que a necessidade deve ser atendida
ou, no nosso caso, um Sujeito possa ler e escrever. Conto cuja representação e busca
de sentido ficam dificultadas se se elimina um dos elos.

O que fizemos foi indagar o campo da educação focando sobre os efeitos desta
prática e aí percebemos certa inconclusão em seus resultados, expressos por uma
legião de crianças e jovens que, embora alfabéticos, mal conseguem exercer suas
habilidades de letramento. Partimos, então, em busca de elementos que
justificassem tal enunciação.

Percebemos, a cada passo atrás, a insistência da exclusão de estudantes do


processo de ensino. Constatamos que se de fato a supressão não se faz mais pelo
âmbito da negação ao acesso, ou pela evasão escolar, (como vimos acontecer no
Capítulo 1, com a exclusão de índios, negros e pobres) ela se tem feito pela via do
esvaziamento significante das práticas alfabetizadoras (como traçamos nos
Capítulos 2 e 4, com o pragmatismo construtivista e com a intromissão do
neoliberalismo e das medicações nas escolas) que de um lado esgota o saber docente
e de outro expropria a criança de elementos da infância. De qualquer modo,
expropriações que se manifestam permanentemente por meio de discursos oficiais
e se fazem escutar nas transmissões geracionais e nos sujeitos: inicia-se com os
jesuítas e seu discurso religioso, passa pelos discursos mercantilistas e capitalistas
das elites econômicas, atravessa o discurso político de direitos e culmina hoje com
o discurso pragmático sobre o cidadão.

Vimos sobressair nesta exclusão contemporânea a discursividade que separa os


sujeitos de sua linguagem e a relação de ensino e aprendizagem do campo das
relações, em uma espécie de processo de aculturamento geral que isola as narrativas

391
e suas potencialidades de representação, das experimentações subjetivas (de alunos
e professores). O discurso oficial alfabetizador que se instalou hoje, vai na
contramão deste mesmo discurso que em sua origem preconizava a participação
ativa de professores e estudantes na construção de conhecimento singular em sala
de aula. Emergiu em seu lugar um controle oferecido pela produção de materiais
didáticos que iguala as aulas disseminando práticas que objetivam o cotidiano por
meio de sua decifração e não de sua interpretação, focando as atividades sobre uma
escrita homogênea e isolada de incidências subjetivas, substituindo a leitura e os
textos pela ‘leitura do mundo cotidiano’, adulto e pragmático.

Focamos nossa proposta alfabetizadora em outro lugar: no resgate das


narrativas de referência e na oralidade poética e de relevos estéticos, por assumirem
nas transmissões geracionais o papel primeiro de letramento e em cuja linguagem
encontramos as brechas daquilo que Belintane (2011) nomeia como entre-textos:
escanções por onde os sujeitos assumem uma posição leitora que não se intimida
diante dos enigmas textuais, procurando na intertextualidade o espaço do
deslocamento e da interpretação. Ao sugerirmos tal trabalho de recuperação textual,
no Capítulo 3, estabelecemos uma necessidade alfabetizadora que não é só de
caráter social (onde pudesse ser útil), mas principalmente de caráter subjetivo, uma
vez que a linguagem, como se configurou na cultura humana, hoje pressupõe o
letramento. Assumimos junto à prática alfabetizadora também o papel de
constituinte das subjetividades.

Ao considerarmos os sujeitos em seu caráter de dispersão e heterogeneidade,


trouxemos ao palco das discussões, no Capítulo 3, proposições de trabalho com
narrativas de referência que possibilitam à criança pequena que ingressa a
aprendizagem formal sob demandas bastante específicas, estabelecer com os textos
uma relação de representação subjetiva que lhe permite ter acesso a uma estrutura
mítica textual, com o que poderá alcançar o distante e o próximo, o real e o
fantástico, o cultural e o subjetivo, em uma continuidade na qual será expressa pela
cultura e nela se expressará.

Contrapondo-nos, de um lado a certo conformismo que se contenta em


constatar o fim das narrativas, e de outro a uma prática alfabetizadora que ainda
divide as crianças em capazes e incapazes e que vê os limites do letramento nela ou

392
em sua cultura familiar – o que na nossa alegoria seria levar o texto só na direção da
constatação da demanda – expusemos nos Capítulos 4 e 5 o que consideramos ser
diretrizes mínimas para um posicionamento ético e responsável diante da
alfabetização, lançando o olhar para dentro da escola.

Começamos levando os discurso das diretrizes didáticas a um tensionamento


tal que questionamos um ponto fundamental: não é possível mais separar o discurso
oficial sobre alfabetização das práticas equivocadas ocorridas em sala de aula.
Enquanto esferas governamentais continuarem condicionando as práticas didáticas
a situações que enquadram o saber do professor e que não permitem o desvio do
olhar sobre o método, professores e alunos permanecerão na posição de
reprodutores de um cotidiano muito pouco interessante, esvaziando o elemento
chave para o ensino e a aprendizagem, que é a relação entre sujeitos. Sem atenção
às demandas da subjetividade a alfabetização não ocorre em alunos que ainda
precisam deste olhar e desta escuta; sem o questionamento e a revisão sobre as
práticas, sem a mediação da palavra e do discurso, resta ao professor continuar
dividindo seus alunos em alfabetizados e não alfabetizados, e remeter estes últimos
a soluções que se dão fora da escola – posição que aplaca possíveis embates entre
escola/professor e esferas governamentais, mas que fazem perpetuar o discurso do
fracasso.

Fazendo o caminho de volta em nosso texto alegórico, buscamos interferir neste


acontecimento por meio de um trabalho permanente que se dá em equipe. Uma vez
que cada sujeito é posto entre-olhares e entre-escutas, pode modular sua ação por
acontecimentos que se dão pela via do discurso, pela troca simbólica que se
estabelece quando é preciso representação e reposicionamento. Elencamos alguns
exemplos desta prática a partir de materiais de pesquisa do PROJETO “DESAFIOS”,
em que demonstramos como a responsabilização pela alfabetização se dá pela trama
de relações.

O segundo ponto que abordamos e questionamos sobre as mesmas orientações


didáticas atuais, é aquele que desconsidera os desejos próprios da infância.
Indagamos as práticas que apostam na aplicação literal de fórmulas que só dão
importância à escrita, e que retiram do âmbito escolar tudo o que é do campo
narrativo e mnêmico que permitiria a transmissão de conhecimentos e valores ao

393
longo das gerações e concluímos que textos simplificados, explicativos, descritivos
e informativos não formam bons leitores: no máximo produzem decodificadores e
consumidores.

Neste sentido fizemos ver que encontramos justamente nas memórias


narrativas, nos textos da oralidade, a possibilidade de tomar o sujeito pelo contrapé
do maravilhamento que se faz também estranheza, que permite experimentar em si
o gosto da história (que traz sempre um tanto de História), que permite
experimentar a prática com o Outro e o vislumbre da origem na presentificação da
linguagem. No campo das narrativas encontramos elementos que asseguram
identidades, lugares e relações, elementos fundamentais às manifestações da
subjetividade. Afirmamos que o papel fundamental da escola, especialmente no
campo da formação primeira – o da alfabetização – obriga-a a ser provedora destas
narrativas, quer pela função social que ocupa, quer por seu compromisso com os
sujeitos alunos, crianças ainda.

Chegando ao ponto em que nosso conto se encaminha para o fim – que foi
também seu lugar de partida – a história da alfabetização brasileira mostra que ela
nunca se efetivou de forma plena, como uma prática de boa qualidade e ao mesmo
tempo estendida a todos. A alfabetização existe enquanto intenção política
governamental que financia a formação de professores, a confecção de materiais
didáticos, a construção de mais escolas, e de outras estruturas escolares, mas
sempre crediária de um saber construído fora do país. Falta às esferas
governamentais um reviramento tal sobre a história, que reconheça o que é a escola
brasileira e aí estabeleça um projeto sobre outros parâmetros – ponto em que se
deveria construir uma trama de escolas (nossas escolas!) onde se dariam os
trabalhos com o resgate da nossa cultura, da nossa história, onde caberia o
reconhecimento dos nossos gêneros da oralidade e nossas narrativas tão ricas e,
finalmente, onde estivesse resguardado o olhar não só para as diversidades, mas
também para as singularidades.

394
7. ANEXOS

7.1.Anexo A

A localização desta tese no projeto ‘O desafio de ensinar a leitura e a escrita no


contexto do ensino fundamental de nove anos’ (Edital no. 038/2010/CAPES/INEP)

Esta tese de doutorado é fruto de um trabalho realizado junto à linha de


pesquisa Educação e Linguagem, do Departamento de Didática e Metodologia da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Estabelece um dos recortes
possíveis do projeto de pesquisa mais amplo ‘O desafio de ensinar a leitura e a
escrita no contexto do ensino fundamental de nove anos’ (Edital no.
038/2010/CAPES/INEP, referido na tese como PROJETO “DESAFIOS”), que se
realiza no Ensino Fundamental I de três escolas da rede pública, a saber: Escola de
Aplicação da Faculdade de Educação da USP, em São Paulo (SP), Escola de Aplicação
da Universidade Federal do Pará, em Belém (PA) e Escola Municipal Nila Rego, em
Pau dos Ferros (RN).

Ao final do ano de 2010 o PROJETO “DESAFIOS” foi aprovado pela Comissão de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), vinculados ao Ministério
da Educação (MEC), para ter início em janeiro de 2011 e se estender até dezembro
de 2014. O projeto sob coordenação geral do Professor Livre Docente Claudemir
Belintane (FE-USP) é realizado em rede e conta com as parcerias da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Pará e da Universidade Estadual do Rio Grande
do Norte. Envolve um contingente grande de pesquisadores-bolsistas, alguns deles
rotativos a cada ano143; na média o número de pesquisadores distribuídos entre os
três polos da pesquisa oscilou entre 50 e 60.

143
A rotatividade dos bolsistas foi prevista no projeto de pesquisa que se estende verticalmente
pelos cinco anos do EFI. A proposta inicial era de que no ano de 2011 houvesse a participação dos
professores de 1º. e 2º. Anos, em 2012 os de 2º. e 3º. Anos, em 2013 os de 3º. e 4º Anos e em 2014
os de 4º. e 5º. Anos. Este planejamento foi alterado já ao final de 2011 quando constatou-se a
necessidade da manutenção do trabalho nos dois anos iniciais (1º. e 2º. Anos), uma vez que foi

395
O PROJETO “DESAFIOS” contempla estudos no eixo temático “Educação Básica”
(elencado pela CAPES / INEP) e articula sua proposta em torno da alfabetização
desde uma perspectiva interdisciplinar. Inclui, entre os pontos principais de
discussão teórica e aplicação prática, os temas oralidade, leitura e escrita e
linguagens dos suportes eletrônicos e dos meios contemporâneos (internet, cinema,
televisão). Focaliza seus tópicos, mais especificamente, nos processos de transição
da Educação Infantil para o Ensino Fundamental I (séries iniciais) e no fluxo escolar
dos Ensinos Fundamental I e Fundamental II. Tem como preocupação a disparidade
nível/série, como a que se verifica nas avaliações do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Brasileira (SAEB) / Prova Brasil dos quintos anos das escolas
brasileiras (antigas quartas séries144).

São quatro as áreas de investigação incluídas no eixo temático “Educação Básica” do


PROJETO “DESAFIOS”: (1) ‘Alfabetização, letramento, oralidade, leitura e escrita’,
que contempla os sistemas notacionais das ciências e da matemática que constituem
a base para a leitura de textos didáticos (leitura em perspectiva interdisciplinar), na
forma de pesquisa aplicada em educação. (2) ‘Enfrentamento de dificuldades de
aprendizagem no campo da linguagem em situações contextualizadas’, atuando
dentro da escola a partir da heterogeneidade que se constata já no início do Ensino
Fundamental I. Compreende-se aqui o estudo e a aplicação de diagnósticos
preventivos como forma de instruir programas didáticos que levem em conta a
heterogeneidade na sala de aula, bem como o estudo das avaliações governamentais
(SAEB / Prova Brasil, Provinha Brasil, Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar
do Estado de São Paulo (SARESP), Prova São Paulo). (3) ‘Novas possibilidades de
diagnósticos preventivos e produção de materiais didáticos’, que considera o uso de
novas tecnologias no desenvolvimento do letramento, numeramento, oralidade,

necessário um ano inteiro para estruturação, compreensão e ajustes importantes na pesquisa para
que pudesse ser melhor consolidada. No ano de 2012, a Escola de Aplicação da USP passou a ter três
salas de 1º. Ano, ao invés de duas como em 2011, passando de quatro para cinco professores-
bolsistas. Os mestrandos e doutorandos permaneceram no projeto enquanto suas pesquisas
pessoais estiveram em andamento. Os graduandos deixaram a pesquisa após o término do curso.
Outros desligamentos ocorreram por razões extraordinárias – caso da mudança de coordenação do
polo de Pau dos Ferros, ocorrida no meio do ano de 2011.
144
A Lei Federal no.11.274/2006 alterou de oito para nove anos a escolaridade do Ensino
Fundamental passando a incluir o último ano da Educação Infantil no ciclo. Já a Lei Federal no.
9.394/1996 apontava para a necessidade desta mudança, que se deu efetivamente só 10 anos
depois.

396
leitura e escrita em contexto escolar. Tal ação relaciona-se diretamente com a
discussão dos instrumentos de avaliação e indicadores de qualidade do ensino
instituídos pelos governos federal, estaduais e municipais e a elaboração de
propostas alternativas. (4) ‘Fatores determinantes na qualidade do ensino’,
considerando a relação entre a formação inicial de professores nas Licenciaturas em
Pedagogia e Letras e o trabalho docente no ano final da Educação Infantil e ao longo
do Ensino Fundamental. Trata de verificar, também, como as avaliações
governamentais, a situação escolar dos alunos e outros diagnósticos, bem como
bibliografia pertinente, são incorporados aos programas de disciplinas das
licenciaturas, em especial aquelas que reúnem os conhecimentos das áreas de
Linguagens e aquelas do campo do Ensino.

397
7.2. Anexo B

Gêneros textuais oriundos da oralidade estabelecidos por Claudemir Belintane


(2011) como elementos alfabetizadores.

Retomamos a divisão estabelecida por Belintane (2011) procedendo a uma síntese


da análise que faz de cada gênero textual, bem como do seu emprego em sala de aula.
Quanto aos exemplos aqui expostos, alguns provêm do próprio autor e outros foram
substituídos por aqueles que me são mais próximos. Recomendamos que a leitura
completa destes gêneros textuais seja feita diretamente no autor. São eles:

I) Gêneros poéticos da maternância:

a) Cantigas de ninar – melodias usadas para fazer dormir ou acalmar os


bebês. A voz harmônica é o que fica como traço mnêmico e faz laço
da criança com seu entorno quando se vê abandonada no berço. São
cantigas às quais compositores como Chico Buarque, Dorival Caymmi
ou Antônio Nóbrega recorrem e que Belintane propõe que sejam
resgatadas em sala de aula de um modo a:

- Mostrar diferenças linguísticas regionais:

Boi, boi, boi Boi, boi, boi


Boi da cara preta Boi, boi do Piauí
Pega esta menina Pega esta menina
Que tem medo de careta Que não quer dormir

- Indagar a criança sobre sentidos: ‘O que é calundu?

João Curututu
De trás do murundu
Vem pegá nenê
Que está com calundu

- Aproximar a criança de temática extemporânea, milenar, que se


presentifica em toda relação mãe-bebê.

b) Parlendas, brincos e mnemonias – exploram o prazer do texto e/ou


do corpo por meio da linguagem:

398
- Parlenda: declamação do texto, mesmo quando não tem sentido,
pois encadeia as palavras em uma coesão rítmica e rimada:

O macaco foi à feira


Não sabia o que comprar
Comprou uma cadeira
Pra comadre se sentar
A comadre se sentou
A cadeira esborrachou
Coitadinha da comadre
Foi parar no corredor.

- Brinco: parlenda que envolve o corpo da criança, ou embalando-a


enquanto é recitada (‘Serra, serra’), ou demarcando seu contorno
(‘Janela, janelinha’):

Mindinho
Seu vizinho
Pai de todos
Fura bolo
Mata piolho
Cadê o toucinho que tava aqui?
Rato comeu!
Cadê o rato?
Fugiu do gato!
Cadê o gato?
Foi por aqui...

- Mnemonias: auxiliar de memória para decorar listas ou fórmulas:

Sete e sete são catorze


Com mais sete vinte e um
Tenho sete namorados
Mas não gosto de nenhum.

II) Gêneros da infância mais ampla:

a) Cantigas de roda: estão incluídos neste gênero oral a maior parte do


cancioneiro infantil. São brincadeiras que envolvem ritmo corporal,
melodia, memorização da letra e coordenação cooperada, uma vez
que se faz com mais de duas pessoas:

Pai Francisco entrou na ro-o-da

399
Pra tocar seu vi-o-lão
Bã-rã-rã-bam-bão
Vem de lá seu de-le-ga-a-do
Pai Francisco foi pra pri-são.

b) Fórmulas de escolha: próximo à escansão de um poema em suas


sílabas poéticas, pois ao fazer o paralelismo gesto-corporal com a
unidade sonora, a criança já estabelece a noção dos elementos
menores silábicos encontrados nas palavras:

Lá em ci-ma do pi-a-no
Tem um co-po de ve-ne-no
Quem be-beu
Mor-reu.

c) Fórmula de pular corda: além da habilidade corporal, este gênero


coordena ritmo e melodia; às vezes também comporta a
memorização de sequência de letras, por exemplo ‘Suco gelado’:

Um homem bateu em minha porta


E eu a-bri
Senhoras e senhores, ponham a mão no chão
Senhoras e senhores, pulem num pé só
Senhoras e senhores, dêem uma rodadinha
E vão
Pro meio
Da rua.

d) Fórmula de bola: emprega comandos e coordenação motora:

Ordem
No seu lugar
Sem rir
Sem falar
Um pé
O outro
Uma mão
A outra...

e) Outros gêneros corporais: há uma série de melodias que envolvem


destacabilidade da palavra na frase, marcada pelo corpo – ‘Escravos

400
de Jó’ – e às vezes comandos que ademais se prestam à memorização
de rimas, sequência numérica – ‘Tumbalacatumba’.

f) Adivinhas e enigmas: gênero que possibilita explorar o campo da


leitura a partir da oralidade. Aqui Belintane retoma um artigo seu
(2007) em que explora a posição Subjetiva do leitor diante das
adivinhas e dos enigmas impostos pelo texto. Estabelece uma divisão
entre o leitor-evitador – aquele que desde uma postura passiva não
entra no jogo das palavras e não se arrisca – e o leitor-adivinhador –
aquele que não teme a ameaça de devoração da esfinge, aceita
memorizar o texto proposto e, entre seus fragmentos, deixa correr
outros textos advindos de sua memória linguística e discursiva
(BELINTANE, 2011: 168). Este último é o leitor que enfrenta as
metáforas e as metonímias, desmonta nonsenses e estranhamentos
do texto que vem do Outro. Propõe como forma didática de trabalhar
o gênero em sala de aula, duas matrizes enigmáticas para explorar os
potenciais figurativos e as habilidades linguageiras, que muitas vezes
se sobrepõem:

- relevo da camada significante (efeito sonoro):

Qual a diferença entre um ventilador parado e um velho cansado?


Resposta: Trinta: um ventilador parado não venta (= noventa) e um velho
cansado se senta (= sessenta).
- relevo nas figuras de linguagem (metáforas, metonímias, paradoxos,
etc.) na exploração estética (advinhas em verso com ritmo e rima):

Lindos castelos,
Belos penachos,
Água nas cuias
Flores nos cachos.
Resposta: Coqueiro (metáfora – castelos, penachos; metonímia – água nas
cuias, flores nos cachos).

Cai de pé e corre deitado.


Resposta: Chuva (Paradoxo).

III) Outros ludismos, não necessariamente em verso: contém elementos


desconcertantes com os quais as crianças se divertem e se intrigam:

401
a) Réplica: respostas dadas a perguntas sem sentido, ou inoportunas:

Vá lamber sabão!
Vá catar coquinho!
– Deixa eu vê. – Não vai chovê!
– Tô com fome! – Mata um home e come!

b) Linguagem secreta, criptografada: a criança faz oral e mentalmente o


destaque da unidade sonora. Ainda que no início encontre
dificuldades, depois de um tempo ela identifica a matriz repetitiva:

Língua do ‘P’: pevo pecê pevai pelá?


Inversão de sílabas (‘revestrés’): pisla = lápis, vroli = livro.

c) Trava-línguas: permite trabalhar tanto a articulação da fala, quanto a


leitura:

- Fonemas quase iguais, distintos por um só traço:


Não sei se é fato ou se é fita
Não sei se é fita ou se é fato
Só sei que ela me fita
Me fita mesmo de fato.

- Encontros consonantais:
O peito do pé
Do padre Pedro
É preto.
d) Palavra valises: permite a localização sonora de uma palavra dentro
da outra e a destacabilidade de letras ou sílabas:

Sapato = sapa, pato


Carambola = cara, bola
Repolho = olho

IV) Narrativas orais populares: oriundas da tradução europeia ou brasileira,


as histórias infantis da tradição oral geralmente banham a infância e
deixam matrizes textuais com as quais depois as crianças elaborarão
suas próprias narrativas e, principalmente, poderão ler fluentemente
textos mais longos. Submetidas desde cedo a esta prática, elas se põem
ativamente na posição de ouvinte, depois na de contador de histórias.
Belintane inclui também as grandes narrativas neste gênero porque,

402
assim como a oralidade tem sua origem nas ninas de berço, a grande
literatura também bebe na fonte dos épicos da oralidade.

Partindo de um posicionamento subjetivo inicial que não permite distinguir


ficção de realidade, a criança vai, aos poucos, em geral sob a influência dos
adultos, podando suas expansões e mesclas subjetivas com personagens,
fixando a função do discurso narrativo e distinguindo e situando interlocutor,
narrador e personagens. (BELINTANE, 2011: 186).
O que o autor destaca como relevante neste processo é a mudança de
posição Subjetiva – ouvinte / contador – e a paulatina distinção do
mundo dos familiares para um universo próprio construído nas
narrativas. Acrescenta ainda, acompanhando Freud, Lacan e Gasset, que
há na atividade de ouvir e contra histórias uma economia de gozo que
canaliza a pulsão para o espaço configurado pelas narrativas, extraindo
do corpo o único lugar onde as aventuras podem se dar. Deste gênero
Belintane prioriza aqueles da tradição brasileira145, que deriva três sub
grupos:
- Histórias de bichos: para além das fábulas, identifica aquelas histórias
marcadas pela astúcia e desenvoltura do personagem (‘O macaco e a velha’,
‘O nome da fruta’), e daquelas que retratam a fauna e a flora brasileira
(‘Árvore de Tamorumu’, ‘Cabra Cabrês’).
- Lendas brasileiras: textos fantásticos que elaboram explicações para
acontecimentos ou origem de algum elemento: ‘Iara’, ‘Mandioca’, ‘Cobra
Norato’, ‘Mapinguari’, ‘Saci’.
- Causos brasileiros: enredos de assombração ou astúcia, muitos têm sua
origem longínqua nas narrativas medievais, mas foram transfiguradas para
embates de mote caipira ou sertanejo (‘Pedro Malasartes’).

145
Certamente não descartamos os textos vindos de outras tradições sociais. Oriundos da tradição
oral ou literária, há uma riqueza infindável de textos provenientes da Europa, Ásia, África e América
que podem e devem ser aproveitados. O que fazemos aqui é não subestimar a riqueza da nossa
cultura, além de priorizar o que todas as culturas consagraram como narrativas centenárias ou
milenares.

403
7.3.Anexo C

UM DEFUNTO BEM RECOMENDADO


Poema de Maria da Conceição Costa, Coordenadora do PROJETO “DESAFIOS” no polo
de Pau dos Ferros (RN), Doutoranda da FE-USP, Professora da Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte (UERN).

Permita-me algumas linhas


Pra que eu possa descrever
A vivência de um povo
Que se bulir com você
Te deixa de olho abuticado
E com o juízo aperriado
Mas a intenção é entreter.

É da Varzinha146 que falarei


Lá no Rio Grande do Norte
Que herda da religião
Ritual até pra morte
E aqui venho relatar
O que daquele lugar
Tenho uma herança forte.

Lá conheço gente humilde


Que nos ensina noite e dia
Lembro com muita saudade
Dos versos de Dona Maria
No seu cantinho, acuada
Com cada história arretada
Que é pura sabedoria.

Mas aqui vou relatar

146
Antigo nome da cidade Rafael Fernandes (RN).

404
Algo que tanto me marcou
Foi uma história contada
Que uma figura narrou
De uma morte esperada
Que embora já meditada
Agonia provocou.

Chega um inocente aflito


Lá em casa aperriado
Chamando o padre, depressa
Para te dar um recado
Para dar extremunção
A um danado de um cristão
Que estava meio prostrado.

O padre sai avexado


Assumindo sua missão
Mas acabou levando junto
Uma beata pra oração
Pensando que iria ajudar
A marmota que ela fez lá
Gerou grande confusão.

Chegando lá uma vela


Botaram logo na mão
Da candidata à defunta
Como se faz no sertão
A coitada endurecida
Estava meio desfalecida
Diante de tanta aflição.

Já estava tudo perfeito


Padre, vela e muita gente
Mas a agonia da figura
Que ali estava à frente

405
Grita logo, sem noção
Pedindo a intervenção
De mais uma parente.

E sai gritando aos berros


Chamem logo Margarida
Para que a mulher não morra
Sem a sua despedida
Falta as palavras que dela sai
Enviando para o pai
A nossa ente querida.

Margarida era a mulher


De tão grande experiência
Que o defunto recomendava
Cantando logo uma excelência
Uma mulher respeitada
Que nunca foi contestada
Sua vida, sua crença.

O padre sem entender


A cena diz: Se comporte
Não ta vendo que eu já dei
A essa defunta um norte
Já encaminhei a mulher
Agora se Deus quiser
Terá uma boa morte.

As palavras são assim:


Jesus, Maria e José
E ainda tem um arremate
Essa alma vossa é
O povo só acredita
Quando Margarida dita
Orando com muita fé.

406
Olhe que coisa engraçada
Como a cultura é coisa forte
O padre já tinha autoridade
Pra interferir naquela morte
Conforme a extremunção
Um sacramento, uma oração
Que do cristão é passaporte.

Passaporte só da ida
Porque volta não acontece
A aeromoça é Margarida
E o destino não se esclarece
Avião de um só passageiro
Que aterrissa no estrangeiro
Terra que chega quem falece.

Sem Margarida o povo pensa


Que a morte não aparece
É como se o rito purificasse
A alma em nome da prece
Se o doente a vela não pega
A família não sossega
E acima de tudo, padece.

Não é que o povo quisesse


Da inocente se livrar
A que estava prostrada
Numa cama a se estribuchar
É que a crença vale mais
Do que explicações banais
Que sentido à vida não dá.

A mulher então desfalece


E Margarida estava lá

407
O povo todo vai embora
Depois de tudo presenciar
O ritual foi duplicado
Além do padre já ter rezado
Margarida estava a arrematar.

A notícia logo se espalha


Por toda aquela cidadela
O povo logo diz rápido:
Deus se lembre da alma dela
Mas se os defuntos contar
Um cachorro aparecerá
No meio da conta dela.

Vou explicar melhor


Pra não haver confusão
Dizem que aquele que conta
Quem já entrou num caixão
É o próximo a morrer
Nem adianta se valer
Dos santos e da oração.

Depois de tanto aperreio


De uma morte presenciar
Recheada da cultura
Que a varzinha tem por lá
Parece que a nossa gente
Transforma vizinho em parente
Quando tenta a dor acalmar.

Veja bem que interessante


Depois de toda essa agonia
Lembram da figura alvoroçada
Que para o padre foi a guia
Ainda se põe a descrever

408
Tudo que o defunto pôde ser
Na missa de sétimo dia.
Imagine a grande cena
Que é um vivente morrer
De uma morte esperada
Da qual não pode correr
Com um bando de gente do lado
Olhando quem ta prostrado
Sem ao menos poder socorrer.

Mas aqui eu não podia


Deixar só na memória
Um caso desse que demarca
De um povo a sua história
Mostra que a comunidade
Tem sua própria verdade
Na angústia e na glória.

Sim, também quero lembrar


Que lá no meu interior
Quando morre um conhecido
Pode ser rico ou sem valor
Vão logo fazer um chá
Comida, café, tem por lá
É bucho cheio em meio à dor.

Não precisa nem ser


Alguém tão arricussado
Os vereadores se aprochegam
O prefeito pula do lado
E assim qualquer autoridade
Que mora naquela cidade
Já viu um defunto acamado.

Até gente pra chorar

409
Na minha terra existe
Tem uma senhora sofrida
Com uma carinha de triste
Que se ninguém se candidatar
A fazer o povo chorar
Ela chora, nem resiste.

E não existe pagamento


Se chora por consideração
É tudo de bom agrado
Como se diz no sertão
Como todo mundo se conhece
A comunidade entristece
O sino é só badalação.

E já que de sino falo


Por mais barulhento que seja
Anuncia logo o ocorrido
Conforme o povo deseja
O toque é diferenciado
Conforme o sexo do coitado
Que passará na igreja.

Lá na minha cidade
Um defunto faz chorar
Não somente seus parentes
Mas de quem dele se lembrar
Por muitos será lembrado
Só é deixado de lado
Quando outro toma seu lugar.

Por fim, vou esclarecer


Como me foi repassado
Esse fato de aflição
Foi todo muito bem narrado

410
Pois mesmo estando distante
Não me desvinculo um só instante
Do que compõe meu passado.

411
7.4.Anexo D

ROTEIRO PARA ENTREVISTA 1 ___/___/____, local: __________________

Aluno ____________________________________ idade _____ série escolar ________


Relação de parentesco com o aluno __________________________, idade _____,
escolaridade ______________________________, natural de (Estado) ____________

1) Gosta de ler? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes


Lê? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
(Se ‘sim’ ou ‘às vezes’) Relação com a leitura:
Frequência de leitura __________________________
Gênero de leitura: ( ) jornal ( ) revista científica ( ) revista de
entretenimento ( ) revista informativa ( ) livro técnico ( ) literatura ( )
poesia ( ) documento de trabalho ( ) crônica ( ) cordel ( ) quadrinhos ( )
outros _____________________________
Cite três leituras que foram importantes / marcantes / relevantes na sua vida:
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?

2) Gosta de ver televisão? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes


Assiste televisão? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
(Se ‘sim’ ou ‘às vezes’) Relação com a televisão:
Frequência de acesso __________________________
Gênero de programas: ( ) notícia ( ) novela ( ) esporte ( ) de auditório (
) religioso ( ) infantil ( ) documentário ( ) filme ( ) entrevista ( ) culinária
( ) outros _____________________________
Cite três programas de televisão que foram importantes / marcantes / relevantes
na sua vida:
I-

412
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?

3) Gosta de ouvir rádio? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes


Ouve rádio? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
(Se ‘sim’ ou ‘às vezes’) Relação com o rádio:
Frequência de acesso __________________________
Gênero de programas: ( ) notícia ( ) novela ( ) esporte ( ) religioso ( )
entrevista ( ) música, qual(is) ________________________________________ ( )
outros _____________________________
Cite três programas de rádio que foram importantes / marcantes / relevantes na
sua vida:
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?

4) Gosta de cinema e/ou peças teatrais? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes


Assiste teatro? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
(Se ‘sim’ ou ‘às vezes’) Relação com o teatro:
Frequência de acesso __________________________
Gênero de programas: ( ) drama ( ) comédia ( ) stand-up ( ) musical ( )
infantil ( ) outros _____________________________
Cite três peças de teatro/filmes que foram importantes / marcantes / relevantes
na sua vida:

413
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?

5) Gosta de show de música? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes


Assiste a show de música? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
(Se ‘sim’ ou ‘às vezes’) Relação com show de música:
Frequência de acesso __________________________
Gênero musical: ( ) rock nacional ( ) rock internacional ( ) mpb ( ) téchno
( ) samba ( ) pop nacional ( ) pop internacional ( ) axé ( ) sertanejo ( )
jazz ( ) clássico ( ) outros _____________________________
Cite três músicas que foram importantes / marcantes / relevantes na sua vida:
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?

6) Gosta de festas? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes


Vai a festas? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
(Se ‘sim’ ou ‘às vezes’) Relação com festas:
Frequência de acesso __________________________
Gênero festivo: ( ) familiar adulto ( ) familiar infantil ( ) infantil de outras
crianças ( ) adultos amigos ( ) casamento ( ) religioso ( ) folclórico
brasileiro ( ) folclórico internacional ( ) outros _____________________________
Cite três festas que foram importantes / marcantes / relevantes na sua vida:

414
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?

7) Gosta de brincar/jogar? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes


Brinca? ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
(Se ‘sim’ ou ‘às vezes’) Relação com brincadeiras:
Frequência de acesso __________________________
Gênero de brincadeiras: ( ) roda ( ) mímica ( ) adivinhação ( ) bola ( )
boneca ( ) casinha ( ) super-herói ( ) de imitação, qual(is)
_______________________ ( ) de atividade, qual(is)
____________________________________ ( ) outros _____________________________
Cite três brincadeiras que foram importantes / marcantes / relevantes na sua
vida:
I-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
II-
Por que foi importante?
Do que se lembra?
III-
Por que foi importante?
Do que se lembra?

8) Sobre que assuntos conversa com a criança em casa?

9) Sobre o que a criança fala em casa com os adultos?

10) De quê a criança brinca?

415
11) Você gosta de contar histórias? Quais e para quem?

12) Você gosta de escutar histórias? Quais e de quem?

13) Você escutava histórias na infância? Quais e de quem? Do que se lembra?

Livre – Gostaria de falar alguma outra coisa que não tenha sido perguntado?

ROTEIRO PARA ENTREVISTA 2 ___/___/____, local: __________________

Aluno ____________________________________ idade _____ série escolar ________


Relação de parentesco com o aluno __________________________, idade _____,
escolaridade ______________________________, natural de (Estado) ____________

NO SEU ENTENDIMENTO, O QUE É PRECISO PARA QUE UMA CRIANÇA SE ALFABETIZE?

416
7.5. Anexo E

A ENCANTADORA CANÇÃO DO PÁSSARO MÁGICO

OELKE, Julius (2002). Meus contos africanos, São Paulo, Martins Fontes
Editora, 2002, Tradução de Luciana Garcia.

Certo dia um estranho pássaro chegou a um aldeia que se aninhava entre


baixas colinas. Daquele momento em diante nada mais estava seguro. Tudo o que
os habitantes plantavam nos canteiros desaparecia da noite para o dia. A cada
manhã havia menos e menos carneiros e bodes e galinhas. Até mesmo durante o
dia, enquanto as pessoas trabalhavam nas terras, o gigantesco pássaro vinha e
arrombava os depósitos e celeiros arrancado deles todo o estoque de comida que
mantinham para o inverno.

Os aldeões ficaram arruinados. Havia miséria naquelas terras – por todos os


lados soavam lamentações e rangeres de dentes. Ninguém – nem mesmo o mais
valente herói da aldeia – conseguia pôr as mãos no pássaro. A ave era rápida
demais para eles. Na verdade, quase não podiam vê-la: apenas ouviam o farfalhar
de suas enormes asas conforme ela pousava no topo de uma antiga mogabagôba
sob a densa copa.

O chefe tribal da aldeia arrancava seus cabelos de tanta frustração. Um dia,


depois de o pássaro saquear sua própria criação de animais e os suprimentos que
guardava para o inverno, ele ordenou que todos os homens mais velhos afiassem
seus machados e facões e atacassem o pássaro.

– Cortem a árvore! Essa é a solução! – ele comandou.

Com os machados e os facões de lâminas cintilantes, os homens se


aproximaram da grande árvore. O primeiro atingiu a madeira com força,
penetrando com profundidade o tronco. A árvore estremeceu e, das grossas e
emaranhadas folhas de sua copa, o estranho e misterioso pássaro surgiu. Uma
doce canção ecoou de sua garganta. Ele tocou diretamente no coração dos
homens, falando de coisas fabulosas e distantes que nunca retornariam. A canção
era tão fascinante que os machados e os facões foram escorregando um a um das

417
mãos dos homens. Estes caíram de joelhos, olhando fixamente para cima,
envolvidos e atraídos pelo pássaro que cantava para eles com todo seu radiante
esplendor colorido.

As mãos dos homens se enfraqueceram. O coração deles suavizou. ‘Não’, eles


pensaram, ‘um pássaro tão lindo jamais poderia ter causado tal estrago e
destruição’, E, quando o sol desceu vermelho no oeste, eles se arrastaram como
sonâmbulos em direção ao chefe tribal e lhes disseram que não fariam nada,
absolutamente nada, que pudesse ferir o pássaro.

O chefe tribal ficou muito irritado!

– Se assim é, os jovens rapazes da tribo terão de me ajudar – ele afirmou. –


Deixem que os mais jovens destruam o poder do pássaro.

Na manhã seguinte os jovens tomaram seus machados e facões cintilantes e


tomaram o caminho da árvore. A primeira investida novamente atingiu com força
a madeira, penetrando o tronco profundamente. E, assim como antes, a copa
verde da árvore se abriu, permitindo que o estranho pássaro surgisse enfeitado
com suas exuberantes penas multicoloridas. Novamente a mais linda melodia
ecoou entre as montanhas. Os jovens da aldeia ouviram encantados, a canção que
falava de amor e de coragem, e de atos heroicos que esperavam por eles. ‘Esse
pássaro não pode ser perverso!’ Os braços dos jovens rapazes tornaram-se fracos,
os machados e facões caíram de suas mãos e eles se ajoelharam do mesmo modo
como havia acontecido com os velhos homens antes deles, ouvindo em transe a
canção do pássaro.

Quando caiu a noite eles cambalearam, desnorteados, de volta ao chefe tribal.


Em seu ouvido ainda soava a encantadora canção do pássaro misteriosos. ‘É
impossível’, disse o líder do grupo. ‘Ninguém é capaz de enfrentar o poder mágico
desse pássaro!’

O chefe da tribo ficou furioso.

– Só restam as crianças – ele disse. – As crianças ouvem verdadeiramente e


os olhos delas são límpidos. Eu as guiarei contra o pássaro.

Na manhã seguinte o chefe tribal e as crianças da tribo foram até a árvore


onde o estranho pássaro descansava. Assim que as crianças fizeram o pássaro

418
sentir o golpe do machado, a frondosa copa se abriu e o pássaro apareceu
exatamente como antes – ofuscantemente lindo. Mas as crianças não olharam
para cima. Os olhos delas estavam fixos nos machados e nos facões em suas mãos.
E continuaram a cortar e cortar e cortar no ritmo de sua própria música.

O pássaro começou a cantar. O chefe da tribo podia ouvir a canção linda e


inigualável e sentiu a fraqueza em suas mãos. Mas os ouvidos das crianças podiam
ouvir apenas o som repetitivo e corriqueiro de seus machados e facões. E, não
importava quão encantadoramente o pássaro cantasse, e elas continuavam a
cortar e a cortar e a cortar.

O tronco rangeu e partiu-se ao meio. Finalmente, a árvore desabou no chão e,


com ela, veio junto o estranho e misterioso pássaro. O chefe encontrou-o caído,
morto e esmagado pelo peso dos galhos.

As pessoas chegavam de todos os cantos. Os velhos homens endurecidos e os


vigorosos jovens não podiam acreditar que aquelas crianças, com seus braços
fininhos, haviam conseguido cumprir a tarefa!

Naquela noite, o chefe tribal anunciou uma grande festa para recompensar as
crianças por seu feito.

– Vocês são as únicas que ouvem verdadeiramente e enxergam com clareza –


ele disse – Vocês são os olhos e os ouvidos da nossa tribo.

(As frases por mim grifadas no texto marcam os pontos significativos em que a
aluna se deteve sobre a narrativa).

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