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AULA TEÓRICA

(SEMANA 30/11/2020 A 04/12/2020)

Sumário breve:

A lei mais-que-perfeita.

A lei perfeita.

A lei menos-que-perfeita.

A lei imperfeita.

Remissão como técnica legislativa.

As ficções legais.

As presunções legais e judiciais.

O ónus da prova.

Heterotutela e autotutela: início ao estudo.

Sumário Desenvolvido:

Leges plus quam perfectae, perfectae, minus quam perfectae e imperfectae


Como vimos, para estabelecer relações jurídicas – ou seja, adquirir direitos subjectivos e
assumir obrigações – a observância das normas jurídicas é obrigatória, quer dizer, sem a
utilização de normas jurídicas não é possível criar relações jurídicas. Estas normas
jurídicas podem ser imperativas e, sendo-o, da sua violação resultam sanções. A este
respeito distinguimos em geral entre:

a) leges plus quam perfectae (sanções civis [por via de regra a nulidade] e penais ou
contravencionais [exemplo: artigos 282.º/284.º]);

b) leges perfectae (sanções civis [por via de regra: nulidade; exemplos: os artigos
220.º e 280.º]);

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c) leges minus quam perfectae (apenas sanções contravencionais ou penais [artigo
294.º; exemplo: vendas fora do horário de funcionamento são válidas, mas há
lugar a coimas]);

d) leges imperfectae (não há sanção nenhuma; exemplo: a violação do artigo 1604.º,


alínea f), que proíbe o casamento de quem for pronunciado por conjugicídio não
torna o casamento, celebrado apesar da proibição, inválido).

As normas universais (globais ou nacionais), as normas regionais e as nomas locais


As normas jurídicas podem ainda classificar-se com base no critério da sua aplicabilidade
territorial.

Assim, temos normas jurídicas aplicáveis a todo o território nacional, isto é, a Portugal continental
e suas Regiões Autónomas, Madeira e Açores, pelo que as classificaremos como normas globais,
universais ou nacionais.

Se a norma jurídica apenas se aplicar ao território de uma região autónoma será uma norma
regional, que é o que sucede com os atos legislativos regionais.

Se uma norma jurídica tiver o seu campo de aplicação circunscrito a uma zona delimitada do
território, classificar-se-á de norma local, como é o caso das normas aplicáveis nas autarquias
locais, contudo, uma norma local não se cinge apenas a estas, sendo local toda a norma que tenha
aplicabilidade numa zona delimitada do território, podendo coincidir ou não com uma autarquia
local, ou seja, essa zona de aplicação pode até extrapolar o território de uma autarquia local que
a norma continua a ser local, se não for uma norma nacional ou regional.

Normas autónomas e normas não autónomas


Consoante uma determinada norma jurídica seja capaz de conter um sentido pleno sem
necessidade de recurso ou conjugação com outras normas, poderemos classificar as normas como
autónomas ou não autónomas.

Assim, se a norma jurídica, por si só, não conseguir ter um sentido completo na medida em que
tem de ser articulada com outras para o obter, diremos que essa norma é não autónoma1. De
contrário, quando se consegue retirar um sentido completo após recurso a uma só norma diremos
que ela é completa, autónoma2.

1
Por exemplo, é o caso dos artigos 1485.º, 421.º, n.º2, 1563.º, n.º 2, 1379.º, 679.º, entre outras.
2
É caso por exemplo dos artigos 1690.º, 130.º, 887.º, 847.º, 512.º, entre outras.

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Desta distinção, ressalta a necessidade de certas normas jurídicas terem de ser conjugadas ou
complementadas com outras para poderem conferir um regime jurídico completo para uma
determinada situação jurídica.

O legislador, tendo em conta a unidade sistémica do ordenamento jurídico, pugna pela coerência
e harmonia entre as normas, não se repetindo nem contradizendo. Um bom intérprete da lei saberá,
à partida, que na interpretação da lei deverá sempre ter em conta a unidade do sistema jurídico3.

Desta forma, o legislador dá como firme que os destinatários das normas saberão interpretar
quando devem ou não conjugar as normas jurídicas para obterem um regime completo capaz de
solucionar uma determinada situação e serão capazes de perceber as remissões que o mesmo
efetua entre normas.

Assim, e para compreendermos melhor esta técnica legislativa, que consiste em efetuar remissões
entre normas jurídicas, analisemos as diversas remissões legais possíveis.

A remissão enquanto técnica legislativa no âmbito de um “Código”


Antes de analisarmos em que consiste uma remissão legal, vejamos como o legislador
insere as normas jurídicas e as organiza em diferentes contextos legislativos.

Um “código” poderá entender-se como um conjunto de normas jurídicas organizadas que


disciplina de modo fundamental e ordenada todo um ramo de direito4, um sector amplo
da vida social, e revela o culminar de uma evolução científico-jurídica como o resultado
de um plano sistemático elaborado pela ciência jurídica. Um “código” não é, portanto,
uma mera compilação de leis, como sucedeu, por exemplo, com as Ordenações.

Disciplinando um código, de modo fundamental, um ramo de direito, portanto um sector


amplo da vida social, distingue-se dele, por terem uma menor amplitude regulativa, os
estatutos, que visam determinadas atividades profissionais5 e as leis orgânicas6. Existem
ainda os chamados microcódigos, os quais estão centrados em matérias limitadas7.

De acordo com a sua natureza de abarcar um regime abrangente, um código é


regularmente uma lei com uma perspetiva ou finalidade de longo alcance, para vigorar

3
Cfr. Artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil.
4
Por exemplo, o Código Civil regula o essencial dos factos jurídicos que ocorrem na vida de um homem
comum.
5
Por exemplo, o Estatuto da Ordem dos Advogados, o Estatuto da Carreira Docente Universitária, etc.
6
Por exemplo a Lei Orgânica do Ministério Público ou a Lei Orgânica do Banco de Portugal.
7
Por exemplo, o Novo Regime do Arrendamento Urbano – NRAU.

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por muito tempo, o que não significa que, excecionalmente, não possa suceder o contrário
como nos mostra o exemplo do Código do Registo Predial8.

Um código não equivale a um ponto final da evolução, embora constitua sempre um


marco de consolidação; por isso, uma codificação não significa estagnação ou
“cristalização” da matéria codificada, como aconteceu, em parte, com o Corpus Iuris
Civilis que foi elaborado por ordem do imperador Justiniano no Império Romano Oriental
numa altura em que o Império Romano Ocidental já tinha desaparecido (em 476) e que
foi publicado entre 530-533/534.

Um código estabelece um padrão geral, uma conceção geral, assente em princípios e


valores comuns tanto do legislador como dos seus destinatários, orientações legislativas
fundamentadas nas experiências do passado, mas viradas para o futuro; por isso, um
Código está sujeito a atualizações constantes9.

Para preservar a sua longevidade, o tecido normativo de um código pode ser atualizado
por vários procedimentos, escolhidos oportunamente conforme as necessidades da
respetiva época, sendo as atualizações um reflexo das modificações da realidade social
com a qual o código se há-de corresponder. Então, poderemos ter:

a) A substituição de um código por um novo10;

b) Alterações pontuais, “cirúrgicas”, com uma maior ou menor extensão, que


atualizam sucessivamente o texto do Código, respeitando embora a sua
sistematização, lógica e finalidade apesar de, muitas vezes, serem feitas de uma
maneira displicente11. Conforme a “sensibilidade” (ou do melindre) da matéria
codificada em comparação com a evolução social, as alterações afetam um Código
de uma maneira muito diferenciada12;

8
No século passado, houve nada menos do que oito Códigos, dois dos quais só em 1928, e o Código do
Registo Predial de 1983 até acabou por ser revogado sem ter entrado em vigor!
9
Por exemplo, o Código Civil francês, de 1804, que constitui um monumento nacional da França e que, na
altura, inspirou de forma significativa muitas das legislações civis posteriores continua a vigorar até hoje,
embora com as necessárias alterações exigidas pelo percurso do tempo e pelas sucessões de regimes
políticos bem distintos entre si: desde os dois impérios napoleónicos (1804-1815 e 1852-1870), passando
pela monarquia restaurada (1815-1830/1848), pelas II.ª (1848-1852), III.ª (1870-1946), IV.ª (1946-1959) e
V.ª (desde 1958) Repúblicas.
10
Por exemplo, o Código Civil de 1867 - o Código de Seabra - foi substituído pelo atual Código Civil, de
1966, que o revogou ao entrar em vigor em 1 de Junho de 1967.
11
Como mostra, por exemplo, a redação inalterada do artigo 116.º que não acompanhou as evoluções dos
restantes textos legais envolvidos.
12
A este respeito temos como exemplos a última alteração, produzida pela lei n.º 85/2019, de 3 de Setembro,
revogou o instituto do prazo internupcial e a lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, criou o regime jurídico do

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c) Leis avulsas ou complementares relativas a matérias que o legislador não quis
inserir na codificação13, matérias cuja inserção posterior no Código Civil sempre
será possível;

d) O recurso a cláusulas gerais e a conceitos jurídicos indeterminados – cujo


“conteúdo aberto” permite atualizações valorativas ou conceptuais – que a própria
codificação, em abstrato, desde logo antecipou ao incluí-los no seu texto. Como
um código não pode estar fechado a mudanças sociais e valorativas, tanto mais
que a qualquer legislador é de todo impossível antever a evolução futura, inclui
tais cláusulas e conceitos que fazem com que uma codificação não seja um sistema
terminado e fechado, mas um “projeto em execução”. Sendo deste modo
indispensáveis para um código como “projeto em execução” encerram, por outro
lado, grandes perigos por causa da sua “fungibilidade ambivalente”, por serem
“movediços”, por darem um grande poder definidor à jurisprudência e, com isso,
envolverem o risco da arbitrariedade. Já referimos estas cláusulas e conceitos no
contexto de, aparentemente, colocarem em causa a necessária segurança jurídica.
Agora vemo-las nas suas funções de atualização e adaptação. E aqui é preciso ter
plena consciência que é estreito o caminho entre a adaptação a modificações
sociais e novos entendimentos de justiça e a (pura) arbitrariedade quando as
cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados são preenchidos e
concretizados com critérios políticos e/ou ideológicos.

Obviamente e essencialmente, uma codificação, dentro da sua lógica e sua perspetiva (ou
finalidade) de vigorar por muito tempo, precisa, como parte de uma ordem jurídica cuja
finalidade é criar certeza e segurança, de assentar em conceitos jurídicos claros e estáveis
com conteúdos definidos. Sem possuir estes conceitos uma codificação não pode cumprir
a sua função. Especialmente quando está em causa a determinação de estados civis, a
atribuição de direitos patrimoniais, a definição de obrigações, os conceitos jurídicos têm
que ser claros e possuir um conteúdo determinado. É neste sentido que a lei dá noções e
define os conteúdos de direitos e obrigações. As pessoas às quais um código se dirige (os

maior acompanhado, e já antes, pela lei n.º 8/2017, ficou modificado o estatuto jurídico dos animais, sendo
a inserção sistemática da alteração no tecido Código mais do que questionável.
13
Como exemplos indica-se o decreto-lei que estabeleceu o regime das cláusulas contratuais gerais,
utilizadas a respeito da celebração de um contrato, cuja finalidade é evitar que com o recurso a tais cláusulas
gerais, em que um predisponente afasta as normas dispositivas do código a seu favor, seja perturbado o
equilíbrio contratual entre os contraentes; o decreto-lei que criou o direito real de habitação periódica; a lei
que adota medidas de protcção das uniões de facto; a lei que instituiu o testamento vital; etc.

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destinatários das suas normas) e que enquadra e orienta as suas condutas precisam de
saber o que vale sob pena de não terem liberdade para agir por não poderem medir os
efeitos das suas decisões face a uma lei imprecisa.

Todavia, quando a sistematização de um código e a redação das suas normas atingem um


alto nível de abstração que já não deixa transparecer os princípios e pressupostos
valorativos e as preocupações sociais em que se baseia, o código, devido à sua qualidade
técnico-jurídica, presta-se a servir ou a ser utilizado em realidades políticas e sociais
nunca imaginadas pelo legislador originário, uma vez que, precisamente devido ao alto
grau da sua abstração, se revelou como fungível, aliás à semelhança dos juristas que,
como meros técnicos legalistas, o aplicavam14, durante regimes tão contrastantes como o
foram o Império Guilhermino [até 1918], a República de Weimar [até 1933], o regime
nacional-socialista [até 1945], a Administração pelas potências vencedoras da 2.ª Grande
Guerra [até 1949], a República Democrática Alemã [até 1975], a República Federal da
Alemanha [até 1990] e por fim na Alemanha reunificada [desde 1990] sob o nome
República Federal da Alemanha). Para que isto fosse possível contribuíram de forma
significativa as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminadas cujos conteúdos
foram “moldados” e aplicados pelos tribunais de acordo com critérios político-
ideológicos, revelando possuir uma grande “elasticidade” ou “plasticidade”
nomeadamente os conceitos da boa fé ou dos bons costumes. Observámos a
“fungibilidade do abstrato”.

Isto posto, torna-se então necessário fazer algumas referências às técnicas legislativas que
são utilizadas para a aplicação prática de um código, tendo em conta que este é ao mesmo
tempo amplo quanto à matéria incluída no seu tecido e conciso na sua redação, ordenação
e concentração.

Em primeiro lugar, temos as ditas “partes gerais” (ou as “disposições gerais”) como
elementos sistemáticos de uma lei ou de uma codificação.

Vemos isto logo na sistematização do Código Civil. O Título II do Livro I é que traduz
verdadeiramente a Parte Geral, contendo regras comuns para os Livros II a V. Por seu
lado, o Título I do Livro I vai para muito além do direito civil, sendo relevante para todo

14
Temos o exemplo – que ultrapassa em muito a adaptabilidade referida do Code civil – do BGB alemão,
uma lei conceitual e linguisticamente destinada a ser entendida e utilizada em primeiro lugar por juristas,
que serviu sucessivamente, embora com alterações significativas em matérias socialmente sensíveis (às
quais pertence quase sempre o direito da família.

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o ordenamento jurídico. Deve ser realçado que a primeira norma com que o Título II,
dividido nos quatro subtítulos que correspondem aos elementos da relação jurídica, abre
o seu articulado é elucidativamente o artigo 66.º que trata do começo da personalidade,
que coloca – como deve ser – o homem à cabeça da codificação. Fica assim manifesta a
orientação do Código Civil na primazia da pessoa humana.

A técnica de antepor disposições gerais às subsequentes normas especiais perpassa todo


o Código Civil. Os respetivos articulados são precedidos, para evitar repetições, por
disposições gerais que antecipam, como colocados “antes dos parênteses”, aspetos
comuns a todos15.

Fora disso, além de manter o Código conciso e praticável, esta técnica serve ainda para
manter a unidade do sistema normativo. De facto, na técnica legislativa utilizada na
ordenação da matéria jurídica do Código Civil, o direito apresenta-se-nos em complexos
normativos diferentes, sistematizados e articulados ou estruturados, mais ou menos
harmoniosamente, entre si16.

Estes complexos normativos não são o resultado de meras opções ou criações


voluntaristas do legislador, mas na sua estrutura respeitam a lógica do real. Neste contexto
o direito chega mesmo a aceitar estruturas ordenadoras que lhe são pré-existentes, não
criadas por ele, como podemos observar no exemplo da realidade multifacetada da
família, sobre as quais a lei constrói o seu regime normativo a condizer com a instituição
“família”, garantindo desta maneira a interação inevitável entre a realidade social
“família” e a lei. Pois é um dado empírico que uma lei que julga poder ignorar (ou até
contrariar) a realidade social, não indo ao seu encontro, acaba por não ser acatada pelos
seus destinatários que perdem o respeito por ela e está votada ao fracasso.

15
Vejamos a título de exemplo, o Livro II → Título I (das obrigações em geral) → Capítulo I (disposições
gerais) → Capítulo II → Subsecção I (disposições gerais); Título II (dos contratos em especial); Livro III
→ Título I → Capítulo I (disposições gerais); Livro IV → Título I (disposições gerais); Livro V → Título
I (das sucessões em geral) → Capítulo I (disposições gerais).
16
Temos assim, por exemplo, os regimes (os complexos normativos) dos menores e maiores acompanhados
(artigos 122.º - 156.º) e, dentro deste, o regime da condição dos menores (artigo 122.º - 129.º), as regras a
respeito dos direitos de personalidade (artigos 70.º - 81.º), o regime do negócio jurídico (artigos 217.º -
294.º) e, dentro dele, as normas a respeito de faltas e vícios da vontade e a ordem pela qual são enumeradas
(artigos 240.º - 257.º) ou o regime da invalidade e seus efeitos (artigos 285. – 294.º) ou o Capítulo I
integrado no Título II dos contratos em especial que regula todo o complexo do regime do contrato de
compra e venda (artigos 874.º - 939.º), sendo subdividido em 11 secções.

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Por outro lado, desta técnica legislativa resulta que, para resolvermos um caso, temos que
percorrer vários conjuntos normativos sistemáticos da lei.

Na lógica da técnica “disposições gerais → normas especiais” temos também as


remissões. Estas destinam-se, tal como as disposições gerais, a contribuir para uma
aplicação uniforme das leis e a evitar repetições e, com isso, a racionalizar a aplicação da
lei.

Aqui temos que distinguir:

a) Uma remissão feita para uma previsão ou hipótese legal onde a situação já se
encontra regulada17;

b) Uma remissão feita para uma estatuição já definida nas normas para as quais se
remete18;

c) Dupla remissão (ou remissão à segunda potência)19;

d) Remissões para um instituto subsidiário20;

e) Remissões que estendem um regime-padrão bem definido a outras situações21;

f) Remissões gerais subsidiárias22;

17
Por exemplo, para evitar uma enumeração das causas que justificam a revogação de uma doação por
ingratidão do donatário, o artigo 974.º remete para o elenco das causas da indignidade sucessória feito no
artigo 2034.º; o artigo 251.º não estabelece pressupostos próprios para a relevância de um erro e remete
para o artigo 247.º, última parte.
18
Por exemplo, a remissão feita pelo artigo 253.º, n.º 1, para o artigo 254.º, n.º 1, o efeito do dolo que é a
anulabilidade; a remissão feita pelo artigo 678.º, quanto ao penhor, para as respetivas normas da hipoteca
que passam a ser aplicáveis também ao penhor; ou ainda, estando em causa liberalidades, a remissão feita
pelo artigo 953.º, a respeito de doações em vida não permitidas, para o regime das consequências das
ilegitimidades relativas, reguladas nos artigos 2192.º - 2198.º para disposições mortis causa, que
determinam a sua nulidade.
19
Como por exemplo, os artigos 433.º [quanto aos efeitos da resolução] → remissão para o artigo 289.º
[prevê os efeitos da anulação: restituição (como mostrámos no nosso exemplo sob 6).] → 289.º, n.º 3 [para
o caso da destruição ou perda da coisa a restituir aplicação do regime que vale entre o possuidor e o
proprietário] → 1269.º [critério da boa fé]); quer dizer, no caso da destruição ou perda da coisa que deve
ser restituída a lei, atenta ao critério da boa fé, remete para o artigo 1269.º ao criar deste modo um regime
uniforme para todas as três situações em que há lugar a restituições.
20
Por exemplo, o artigo 913.º, n.º 1, venda de coisas defeituosas → remete para o regime da venda de bens
onerados (defeitos relativos à situação jurídica da coisa).
21
Por exemplo, os artigos 939.º [o regime-padrão do contrato de compra e venda é aplicável a outros
contratos onerosos, nomeadamente quando se trata de uma venda de coisa alheia regulada no artigo 892.º]
e 1156.º [o regime-padrão do mandato (artigos 1154.º e seguintes) é aplicável a contratos de prestação de
serviço não especialmente regulados na lei; neste contexto passa a ser importante o artigo 156.º, n. 2].
Ambos estes regimes-padrão mencionados são da maior importância.
22
Veja-se as seguintes remissões entre códigos: Código Comercial → Código Civil; Código do Processo
de Trabalho → Código do Processo Civil; Leis dos registos de coisas móveis [automóveis, navios,
aeronaves] → Código do Registo Predial).

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g) Remissões para assinalar que existem exceções ou prioridades23;

h) Falta referir as remissões para fora do sistema jurídico interno24.

Se nas várias normas remissivas é utilizada a expressão “com as necessárias (ou devidas)
adaptações”25 ou “devidamente adaptada”26, a norma não afeta conteúdo ou finalidade da
norma para que se remete mas visa apenas determinas expressões suas que devem ser
trocadas ou substituídas. Por exemplo, os artigos 2194.º ou 2196.º, para os quais o artigo
953.º remete, falam do testador, mas o que está em causa para o artigo 953.º é agora o
doador. Já o artigo 2034.º, para o qual o artigo 974.º remete, fala da indignidade
sucessória, mas no artigo 974.º está em causa um donatário e sua ingratidão e não um
sucessor por morte.

Quando se trata de aplicar uma norma ou de invocar um direito a lei pode enumerar os
seus pressupostos casuisticamente, ou seja, um por um, ou pode, em vez disso, utilizar
cláusulas gerais.

Quanto a enumerações casuísticas devemos distinguir:

i. Ou enumerações taxativas em que temos um elenco completo de fundamentos,


como por exemplo, os artigos 127.º, n.º 1, alínea b), 1978.º, n.º 1, alíneas a) – e),
o artigo 1889.º, n.º 1, ou o já supramencionado artigo 2034.º, alíneas a) – e), o
antigo artigo 4.º da antiga Lei do Divórcio de 1911, aliás uma lei muito avançada
para a época, que enumerava taxativamente dez causas legítimas do divórcio, a
começar pelo adultério da mulher ou do marido e a terminar com a doença
contagiosa reconhecida como incurável ou uma doença incurável que importe
aberração sexual;

ii. Ou enumerações exemplificativas onde o elenco permite ser completado o que


acontece sempre quando a lei o admitir ao dizer “nomeadamente” ou

23
Por exemplo, os artigos 123.º que refere “salvo disposição legal em contrário”, o art. 242.º, n.º1 que refere
“sem prejuízo do disposto no artigo 286.º”, o art. 252.º, n.º 1, uma norma difícil que faz exceções à sua
aplicação, o art. 285.º, apenas aplicável na falta de um regime especial.
24
Como por exemplo o artigo 8.º, n.º 1, da Constituição → validade de normas e princípios do direito
internacional comum quem fazem parte integrante do direito português; o artigo 1625.º Código Civil →
aplicação aos casamentos católicos, quanto à sua validade e dissolução, das normas do direito canónico
cuja competência na matéria é exclusiva.
25
Por exemplo, como no artigo 1156.º do Código Civil.
26
Cfr. o artigo 953.º do Código Civil.

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“designadamente” ou “entre outros”, etc., como por exemplo os artigos 1418.º, n.º
2, ou o 1722.º, n.º 2.

A técnica legislativa de recorrer a normas casuísticas não exclui que estas não possam
conter conceitos indeterminados27.

Por outro lado, em muitos casos a técnica da lei, para permitir a invocação de um direito
ou para indicar os pressupostos para a aplicação de uma norma, em vez de enumerar
casuisticamente os respetivos fundamentos, recorre à utilização de cláusulas gerais, como
sucede, por exemplo, com os pressupostos necessários para a inibição das
responsabilidades parentais que consistem em “infringir culposamente os deveres para
com os filhos” sem que a lei proceda a uma concretização ou exemplificação deste
comportamento; artigo 1915.º, n.º 1. Estas cláusulas, já referidas em contextos diferentes
acima, ou seja, no contexto de aparente colisão com a exigência da segurança jurídica e
na sua função de acompanhar a evolução e manter atualizadas as codificações, surgem
agora em mais um contexto legal, diferente.

Quase em contraste com as cláusulas gerais e em ordem a contribuir para a segurança


jurídica, dando estabilidade e previsibilidade à aplicação das normas, o Código Civil
recorre com grande frequência a definições legais (noções)28.

As definições legais têm apenas carácter prescritivo indireto porque a decisão do


legislador de dar uma definição de certa situação ou facto jurídico por si só não permite
ou proíbe ou prescreve nada, apenas condiciona a aplicação da hipótese legal em que a
noção aparece inserida no sentido da orientação normativa determinada pela definição
legal.

As ficções legais
Fazem parte da técnica legislativa ainda as ficções ou equiparações legais.

Com o recurso a ficções, a lei “inventa” uma realidade que não existe ou “ignora” ou
“nega” a existência de uma realidade.

27
Por exemplo, o artigo 127.º, n.º 1, alínea b), que fala de negócios “próprios da vida corrente”, ao “alcance
da capacidade natural”, e de “despesas de pequena importância” ou o artigo 1978.º, n.º 1, alíneas d) e e),
que falam em “perigo grave” [sendo o conceito explicitado pelo n.º 3 do artigo 1978.º] ou “manifesto
desinteresse pelo filho”.
28
Entre os muitos exemplos referimos os artigos 1.º, n.º 2, 1.ª parte; 122.º; 202.º, n.º 1; 240.º, n.º 1; 270.º;
397.º; 874.º; 1251.º; 1577.º; 2179.º; etc.

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Assim, poderemos concretizar as seguintes ficções legais:

a) A lei finge a verificação de um facto ou acontecimento que na realidade não existe


ou que não sucedeu como se o facto existisse ou se tivesse verificado, recorrendo
para o efeito a expressões “é tido (havido) como”, “é considerado” ou “tem-se
por”, etc.29;

b) Também pode suceder que a lei negue a existência de uma relação ou de um facto
embora este na realidade exista. Sirva como exemplo o célebre antigo § 1589 n.º
2 BGB que vigorou até 30 de Junho de 1970 que, para evitar que um filho nascido
fora do casamento fosse herdeiro legal do seu pai devido ao parentesco com este,
o n.º 2 do § 1589 determinava que em relação ao seu pai e os seus parentes o filho
nascido fora do casamento (uneheliches Kind) não é havido como parente (“Ein
uneheliches Kind und dessen Vater gelten als nicht verwandt”). Isto é, o filho não
é havido como parente unicamente no sentido da lei civil para evitar a sucessão
legal, mas como é óbvio, a sucessão testamentária pode verificar-se no caso de o
pai assim o entender e instituir o seu filho como herdeiro. Para todas as outras leis,
evidentemente, o filho é parente. Aliás, temos uma situação semelhante no direito
português que é a inatendibilidade ou a desconsideração, por força da lei, de factos
verificados em relação ao estado civil de uma pessoa quase como se os factos ou
relações não existissem enquanto não forem registados, tendo deste modo efeitos
meramente latentes30.

c) A lei também pode, a favor de determinadas pessoas, ignorar certos factos


ocorridos que se verificaram indubitavelmente como sucede como resultado da
conjugação dos artigos 7.º e 4.º, n.º 1, do Código do Registo Predial que fingem,
mas tão-só a favor de um terceiro adquirente de boa fé!, a continuação de uma
situação jurídica que, na realidade, já deixou de existir, como sucede no caso de
um registo de um bem patrimonial em que a inscrição de um direito a favor de um

29
Como exemplos, indicamos os artigos 224.º, n.º 2; 275.º, n.º 2; 805.º, n. 2, alínea c); 923.º, n.º 2; artigo
1805.º, n.º 2; um outro exemplo, antigo e da maior relevância, é a ficção nasciturus pro iam nato habetur,
ou seja, para efeitos sucessórios, no momento da abertura da sucessão pela morte do seu autor, um nascituro
(já concebido) é considerado como se já tivesse nascido, isto na pressuposição de que venha a nascer com
vida, que está na base dos artigos 66.º, n.º 2, e 2033.º, n.º 1, pois na lógica do fenómeno sucessório é óbvio
que o sucessor sobreviva ao autor da sucessão, facto que na realidade ainda não se verifica em relação a um
nascituro em gestação.
30
Por exemplo, o artigo 2.º do Código do Registo Civil e o artigo 1669.º do Código Civil. Também
encontramos uma ficção no artigo 2029.º, n.º 1, que diz que a partilha em vida, onde há um acordo entre os
intervenientes, não é havida por contrato sucessório.

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titular está desconforme com a realidade uma vez que o direito inscrito já foi
transmitido e deixou de pertencer ao titular inscrito.

Através da consagração de ficções legais, o legislador, implicitamente, leva-nos a aplicar


um determinado regime jurídico previsto para algo que não ocorreu na realidade, ou para
que se siga o regime jurídico como se algo que ocorreu não tivesse ocorrido, ou seja, o
legislador ficciona uma realidade para se lhe aplicar o regime jurídico dessa realidade
fingida como se fosse a real. Diz-se que as ficções legais são normas não autónomas
porque não regulam a realidade sobre que versam diretamente, antes remetendo para as
normas que a regulam. A finalidade das ficções é, portanto, aplicar o ao facto fingido o
regime jurídico do facto real.

As presunções legais
Finalmente, temos ainda as presunções.

A seu respeito a lei recorre a uma definição dizendo que “presunções são as ilações que
a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”31, sendo
óbvio que se refere a factos jurídicos.

Distinguimos deste modo as presunções legais, previstas no artigo 350.º, e as presunções


judiciais, previstas no artigo 351.º.

As presunções têm grande relevância para efeitos de prova.

As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, conforme dispõe o
artigo 341.º. Dos factos provados resulta a verdade processual, uma vez que quod non est
in actas non est in mundo; contudo, a verdade processual não coincide forçosamente com
a realidade verdadeira, que não se consegue provar.

As regras gerais32 do ónus de prova ditam que quem invocar um direito, tem o ónus da
prova dos factos constitutivos do seu direito e que quem alega factos impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito invocado contra si deve igualmente provar estes
mesmos factos. Resumindo estas regras, diz-se que quem invoca um facto em seu favor,
dele pretendendo beneficiar, deve prová-lo e não somente alegá-lo.

O ónus da prova é um ónus pesado, pois uma pessoa pode ter inteira razão, mas num
processo judicial, pode não conseguir prová-la e pode não ver o seu direito reconhecido

31
Cfr. artigo 349.º do Código Civil.
32
Cfr. Art. 342.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil.

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por falta de provas. Dos factos provados pelas partes depende a decisão do juiz (da mihi
factum, dabo tibi ius).

Mas se um determinado facto é ou está presumido (presumptio facti), havendo uma


presunção legal, já não é necessário fazer a sua prova. É o que dispõe o artigo 350.º, n.º
1. A presunção legal beneficia, portanto, quem invocar o facto presumido a seu favor,
bastando alega-lo, não tendo de fazer a sua prova. Por exemplo, o artigo 798.º determina
que o devedor que falta culposamente ao cumprimento é responsável pelo prejuízo do
credor. Segundo o artigo 799.º, n.º 1, presume-se que há culpa do devedor e, por isso, o
credor não precisa de a provar, bastará alegar que o devedor teve culpa no incumprimento,
mas não terá de provar essa culpa.

Assim, a consequência da presunção legal é a inversão das regras gerais do ónus da


prova33, na medida em que agora compete à outra parte ilidir a presunção que a prejudica,
ou seja, caberá, no nosso exemplo, ao devedor fazer prova de que não teve culpa no
incumprimento. No nosso exemplo cabe ao devedor provar que o incumprimento não foi
causado por sua culpa.

Portanto, quem invocar um direito subjetivo a seu favor deve provar os factos
constitutivos do direito, ou seja, os factos que sustentam ou suportam o seu direito, a não
ser que, em relação aos factos alegados, existam presunções e, de igual modo, na situação
inversa, quem alegar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito
invocado também há-de provar estes factos.

A respeito das presunções distinguimos:

a) As presunções judiciais, previstas no art. 351.º, ou também comummente


designadas de presunções de facto, que são baseadas na experiência da vida e são
ilidíveis por simples contraprova. Porém, o recurso a presunções judiciais só é
possível nos casos em que é admitida a prova testemunhal34, ou seja, em situações
em que o facto em causa não deve constar de um documento. O mesmo é dizer
que se não for admissível prova testemunhal sobre um facto, também não poderá
esse facto ser objeto de uma presunção judicial35.36 De resto, de entre todas as

33
Cfr. Art. 344.º, n.º 1 do Código Civil.
34
Cfr. Art. 392.º do Código Civil.
35
Cfr. Art. 393.º do Código Civil.
36
Por exemplo, a falta de um documento exigido não é suprível por testemunhas do mesmo modo que
testemunhas não podem afastar um facto provado por documento.

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provas admitidas, nos artigos 362.º e seguintes, a prova documental é, ainda antes
da prova pericial ou da prova por inspeção, a melhor prova. A prova menos fiável
é a prova testemunhal.

b) As presunções legais, que podem ser:

i. presunções relativas ou iuris tantum, ilidíveis mediante prova em contrário37;

ii. presunções absolutas ou iuris et de iure38, não admitem a elisão o que a


formulação da lei deixa bem claro ao dizer “considera-se sempre” e, nesta
medida, as presunções iuris et de iure são próximas de uma ficção legal39;

iii. presunções híbridas, que encontramos no contexto da filiação, precisamente no


contexto do estabelecimento da paternidade40;

Se de um facto decorre uma presunção legal (presumptio iuris), esta pode ser ilidível ou
não conforme a natureza da presunção41. As presunções legais podem, regra geral, ser
ilididas mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir, ou seja,
proibir que se faça a prova em contrário. A regra é, portanto, as presunções relativas e a
exceção é a presunção absoluta.

As presunções híbridas assentam na lógica mater semper certa est et pater numquam e
para a sua elisão não se exige a prova em contrário pois a elisão faz-se com base na
“manifesta improbabilidade” num caso, veja-se o artigo 1839.º, n.º 2, e devido a “sérias
dúvidas” no outro, veja-se o artigo 1871.º, n.º 242.

Para finalizar, falta acrescentar que as presunções legais apresentam-se também como
normas não autónomas na medida em que ao consagrar-se uma presunção o legislador

37
Por exemplo, artigos 799.º, 491.º, 493.º, 1260.º, n.º 2; 1268.º e artigo 7.º Código de Registo Predial.
38
Por exemplo, os artigos 243.º, n.º 3; 1260.º, n.º 3.
39
Mas não se pode confundir uma presunção com uma ficção, na medida em nas ficções sabemos que os
factos são diferentes mas a lei ficciona-os como iguais para aplicar certo regime, enquanto que nas
presunções, a lei apenas presumirá um facto a partir de um outro relativamente ao qual de deve fazer prova
ou mostrar a sua existência.
40
Os exemplos são os artigos 1826.º, n.º 1 ≠ 1839.º, n.º 2 [nascimento na constância do matrimónio], e o
artigo 1871.º, n.º 1, alíneas a) a e) ≠ 1871.º, n.º 2 [nascimento fora do matrimónio]; quando a mãe está
casada presume-se a paternidade do marido → artigo 1826.º; não estando a mãe casada a presunção da
paternidade há-de resultar de pressupostos diferentes → artigo 1871.º, n.º 1, alíneas a) -e).
41
Cfr. Art. 350.º, n.º2 do Código Civil.
42
O artigo 1871.º só (!) se aplica nos casos do estabelecimento judicial da paternidade quando a mãe da
criança e seu progenitor não estão casados um com o outro. No caso de ter havido perfilhação, isto é um
estabelecimento voluntário da paternidade (artigos 1847.º a 1849.º), e esta não corresponder à verdade, ela
pode ser impugnada (artigo 1859.º) ou, caso seja o resultado de um erro anulada (artigo 1860.º).

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remete-nos para o regime jurídico aplicável do facto presumido ou pelo menos a tê-lo em
consideração para efeitos de aplicação do regime jurídico.

A finalidade principal da presunção é aliviar o ónus pesado que é o da prova de factos.


Assim, a lei dita que uma vez verificados e provados certos factos, ela presume outros,
abdicando da necessidade de prova destes, a qual, aliás, pode ser deveras difícil.

PÁGINAS A LER: J. Baptista Machado, pp. 99-108

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