Você está na página 1de 14

AULA TEÓRICA

(SEMANA 16/11/2020 A 20/11/2020)

Sumário breve:

O Estado e o Direito: evolução, noções, elementos e funções de um Estado Moderno.

Direitos subjetivos públicos.

Os Ramos de Direito.

A norma jurídica: noção e estrutura.

Silogismo Judiciário.

Características das normas jurídicas.

Sumário Desenvolvido:

O Estado e o Direito
Evolução do Estado moderno
A evolução do Estado moderno, enquanto organização política em termos distintos da
sociedade que reside num determinado território, começa a formar-se nomeadamente a
partir da época do Renascimento (séculos XIV-XVI), quer dizer, no período da transição
da Idade Média para o Tempo Moderno, com o Estado monárquico a assumir formas
absolutistas e paternalistas, tendo a “polícia” funções administrativas, coercivas e sociais,
isto é, de providência social; temos a chamada “boa polícia”; havia uma preocupação com
as condições de vida dos súbditos, assumindo o Estado funções tutelares.

Depois da Revolução Francesa de 1789 dá-se a evolução para o Estado de Direito liberal,
em que o próprio Estado – devido à separação dos poderes – fica submetido às leis; as
tarefas do Estado ficam limitadas à esfera política, à manutenção da ordem pública e à
garantia da segurança jurídica; os cidadãos têm direitos de defesa (= os direitos,

Página 1 de 14
liberdades e garantias como direitos fundamentais) contra o Estado que, em princípio,
não interfere nas suas atividades económicas, aliás de dimensões ainda comedidas.

Segue-se o Estado de Direito social, em que surgem os direitos de proteção social dos
cidadãos que complementam os direitos fundamentais e intensificam-se as intervenções
do Estado nas atividades económicas que, entretanto, alcançaram grandes dimensões.
Evolui depois para o Estado social ou de bem-estar e de providência social, empenhado
na realização da “justiça social” que corresponde, como alguém diz, a uma “utopia
concreta” e uma “tarefa eterna”, com o perigo de o homem livre ser encaminhado no
sentido do homem tutelado, adquirindo um estatuto de menoridade permanente face a um
Estado [omni]sapiente e [todo]previdente, correndo-se o risco de o Estado social se
transformar numa “democracia de favores” como variante moderna do clientelismo.

Noção e elementos do Estado Moderno


Como sabemos é o Estado que decide se uma norma de conduta é juridificada, tendo deste
modo a natureza de uma norma jurídica; por isso, a fonte do Direito é estadual.1 O Estado
moderno cria o Direito e na medida em que o Estado é fonte do Direito dispõe de recursos
para que as suas normas sejam observadas, servindo-se para o efeito dos meios de coação
necessários (órgãos administrativos e judiciais). A este respeito o Estado tem o monopólio
do poder para impor as suas leis. Assim, passamos a referir em termos breves as funções
do Estado moderno e, neste contexto, devemos distinguir primeiro os conceitos de:

a) “Nação”, enquanto comunidade assente na convivência de homens pertencentes à


mesma etnia, ligados pela mesma língua e pelas mesmas tradições com que se
imprime à nação um carácter particular que a individualiza;

b) “Povo”, que, enquanto conceito geral, não tem um sentido unívoco; no nosso
contexto significa o conjunto das pessoas ligadas ao seu Estado pelo vínculo
jurídico da nacionalidade [cidadãos ou nacionais]; o vínculo da nacionalidade não

1 Escreve J. Baptista Machado: “O Direito não se confunde (…) com o Estado. Antes, cabe ao Direito
limitar o poder do Estado e legitimá-lo. (…) Há princípios do Direito que se impõem ao próprio Estado –
e este não pode constituir uma ordem jurídica sem se referir ao princípio superior da justiça.”

Página 2 de 14
depende do pressuposto de os cidadãos pertencerem à mesma etnia [= nação] de
modo que um Estado não precisa de ser etnicamente homogéneo2;

c) “População”, que se refere tão-só a todos os residentes no território de um Estado,


sendo eles nacionais ou não;

d) “Território”, que corresponde ao espaço delimitado por fronteiras, onde o Estado


exerce o seu poder político e se rege pelas suas leis, aplicáveis e executadas por
autoridade própria. O território abrange o solo e subsolo e espaço aéreo, bem como
o mar territorial se o Estado tiver costa marítima, como Portugal tem, por
exemplo.

e) “Poder político”, capacidade para instituir órgãos e, com autonomia e autoridade,


exercer no território sobre o povo jurisdição, detendo meios coercivos capazes de
impor a execução de normas jurídicas por si criadas;

Dito isto, poderemos dizer que os elementos do Estado moderno são: o povo, o território3
e o poder político4, o qual, como se disse, pressupõe estruturas administrativas, que
conduziram ao aparecimento do funcionalismo público e que evoluíram em simultâneo
com o surgimento do Estado moderno, sendo a sua criação incentivada pelo poder
político5.

A soberania não é um elemento essencial do Estado como o provam os Estados


federados6, em que os Estados que compõem a Federação mantêm todos os elementos
essenciais que os caraterizam como Estados.

2 Não obstante este facto, notamos que a partir da Revolução Francesa de 1789 e depois da 1.ª Grande
Guerra (1914-1918) e, novamente, depois da 2.ª Grande Guerra (1939-1945) procurou-se em muitos
Estados alcançar uma homogeneização étnica dos nacionais com efeitos nefastos para as minorias étnicas
atingidas pelas medidas correspondentes, ou seja, expulsões (= “limpezas étnicas”), assimilações forçadas
e proibições do uso das línguas minoritárias.
3 Por mais exíguo que seja, veja-se, por exemplo, o Estado do Vaticano.
4 A este propósito, Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão (Introdução ao Estudo do Direito, pag. 22)
definem Estado como a “coletividade, ou seja, um povo fixo num determinado território que nele institui,
por autoridade própria, um poder político relativamente autónomo”.
5 Como nos mostra, por exemplo, a instituição da Universidade Estatal de Nápoles pelo imperador
Frederico II em 1224, destinada a formar os quadros administrativos para o Reino da Sicília. Em
comparação: a Universidade de Salamanca foi fundada em 1218.
6 Por exemplo, o Brasil, México, Estados Unidos da América do Norte, Canadá, Suíça, Áustria, Alemanha,
República Checa, etc.

Página 3 de 14
Falta ainda ressalvar que não se poderá confundir o conceito de Estado com o conceito
de estado, pois este último apenas define as condições das pessoas, por exemplo, o estado
civil, familiar ou social ou insolvente.

As funções do Estado Moderno


As funções do Estado consistem em garantir, a partir das suas estruturas, a paz social
interna e a segurança externa bem como em legislar e fazer cumprir as leis, pois, como já
vimos, o conceito de Estado não coincide com o de Direito, é do Estado que emana o
Direito.

De forma sintética, podemos dizer que o Estado possui as seguintes funções:

a) Função política7: cabe ao Governo, e compete-lhe, no exercício desta função,


definir e prosseguir os interesses da coletividade, tomando as decisões que em
cada momento se considerarem mais acertadas, seja em matéria de direitos
económicos e sociais, no acesso a cargos e funções públicas entre outras8;

b) Função legislativa: que consiste na criação de atos legislativos segundo regras e


procedimentos definidos constitucionalmente. Os atos legislativos são as leis, os
decretos-leis e os decretos legislativos regionais9.

c) Função jurisdicional10: exercida pelos Tribunais, enquanto órgãos de soberania,


a quem compete administrar a justiça em nome do povo, assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da
legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

d) Função administrativa: executada pelos órgãos administrativos do Estado,


prosseguindo-se o interesse público e satisfazendo as necessidades da coletividade
de acordo com a política e legislação pré-determinada11.

7 Cfr. Artigos 182.º e 197.º da Constituição da República Portuguesa.


8 Também neste sentido, ver Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão (Introdução ao Estudo do Direito,
pag. 30).
9 Cfr. Art. 112.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
10 Cfr. Artigos 202.º e ss da Constituição da República Portuguesa.
11 Também neste sentido, ver Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão (Introdução ao Estudo do Direito,
pag. 31).

Página 4 de 14
Direitos Subjetivos Públicos
Na sequência do nascimento do Estado de Direito passou a haver o controlo judicial das
leis e da sua aplicação e, muito hesitantemente, também dos atos da Administração. Agora
o cidadão possui direitos subjetivos públicos que pode invocar contra o Estado ao exigir
um determinado comportamento a que correspondem deveres do Estado ou ao pôr limites
ao exercício dos poderes do Estado. Existe uma relação geral de poder (allgemeines
Gewaltverhältnis) entre Estado e cidadão (indivíduo) que está sujeito, subordinado, ao
seu poder, quer dizer, o poder de império.

Neste contexto distinguimos:

a) “status passivus”: compreende os deveres do indivíduo para com o Estado, como


por exemplo, prestar serviço militar ou social ou pagar impostos;

b) “status activus”: o direito de participar na vida do Estado, como por exemplo


através de eleições ou por via de acesso a cargos públicos;

c) “status negativus”: direitos de defesa contra o Estado, em primeiro lugar, os


direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias;

d) “status positivus”: direitos do indivíduo à proteção pelo Estado, como por


exemplo, prestações sociais, apoio judiciário, entre outras.

Destas situações referidas resultam, para além da relação geral de poder que abrange
todos, relações específicas e diferenciadas entre o Estado e os cidadãos que são relações
especiais de poder (besondere Gewaltverhältnisse) com que os cidadãos se deparam12.
Da relação geral de poder bem como das várias relações especiais de poder resultam para
o cidadão direitos subjetivos públicos diferenciados e obrigações específicas face ao
Estado e também obrigações do Estado em relação aos seus cidadãos. Quer dizer quando
falamos de direitos subjetivos públicos estamos em face de relações entre cidadãos
(indivíduos) e o Estado (ou outras entidades que fazem parte da organização estadual).
Estas relações são reguladas pelo direito (público).

Em contrapartida, quando falamos de direitos subjetivos privados estamos perante as


relações entre particulares reguladas, naturalmente, também pelo direito (privado).

12 Por exemplo, como funcionários públicos ou como membros das Forças Armadas ou como pessoas com
direito a prestações sociais ou à reforma.

Página 5 de 14
Vemos com facilidade que se trata de relações essencialmente diferentes entre si: nas
relações com o Estado (com o seu poder de império), os cidadãos estão, regularmente,
numa situação de inferioridade, por outro lado, nas relações entre eles os particulares
encontram-se normalmente numa posição de igualdade.

A partir daí é fácil perceber as grandes linhas estruturantes do sistema jurídico. Na


verdade, quando até agora temos falado do Direito, isto é de todo o direito objetivo e das
suas normas, como um conjunto vimos apenas o mare magnum, o mar imenso das leis e
das normas que o enchem e ficámos ainda a saber que é este direito objetivo que atribui
(ou reconhece) às pessoas os seus direitos subjetivos e que estabelece as correspondentes
obrigações.

(Ramos de Direito – Ver Aula Prática da semana 09/11/2020 a 13/11/2020)

A norma jurídica
Noção
Aqui chegados, podemos afirmar que o direito objetivo, ou ordem jurídica, se encontra
subdividido em direito público e direito privado, e cada um deles subdividido em vários
ramos que, por sua vez, incluem os vários códigos (ou leis), por seu lado constituídos ou
compostos por livros, títulos, capítulos, secções, etc. e, finalmente, por unidades
normativas que os concretizam: são os artigos ou os §§ de um código (ou de uma lei) que
dizem o que vale.

As normas jurídicas têm como objetivo primordial orientar e regulamentar as condutas


humanas. Contudo, nem todas têm esta função, pois existem normas que se limitam a
consagrar definições sobre conceitos jurídicos13, a definir regras de interpretação das

13 Cfr. Artigos 397.º, 402.º, 464.º, 666.º, 712.º, 874.º, 1251.º, 2039.º, etc. do Código Civil.

Página 6 de 14
leis14, ou a revogar outras normas15, ou a consagrar sanções jurídicas16, entre outras
funções que não a de pautar condutas.

Mas de uma maneira geral, poderemos referir que uma norma jurídica é um critério
material para resolução de casos concretos17.

Características
As normas são gerais e abstratas.

Gerais porque não se dirigem a ninguém em particular, a nenhuma pessoa


individualmente considerada, mas antes a todas as pessoas ou categoria de pessoas que
possam estar na posição18 ou situação que as normas regulam.

Abstratas porque não versam sobre casos concretos ou específicos, mas antes sobre um
tipo ou categoria de situações, abstratamente indicadas e desenhadas na norma.

Há ainda quem refira que a hipoteticidade nos surge como outra característica da norma,
na medida em que para que a mesma seja aplicável e produza efeitos jurídicos é necessário
que se verifique em concreto a situação nela descrita de forma abstrata, pois de outra
maneira não será nunca aplicável19.

Estrutura da norma
Na estrutura-tipo de uma norma, numa norma jurídica completa, distinguimos:

14 Cfr. Artigos 8.º a 11.º do Código Civil.


15 É o caso do art. 17.º, n.º 2 do Decreto -Lei 329-A/95 de 12 de dezembro que revogou os Assentos
previstos até então no art.º 2.º do Código Civil, que dispunha que “Nos casos declarados na lei, podem os
tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral”, sendo que aquela norma
revogatória veio determinar que “Os assentos já proferidos têm o valor dos acórdãos proferidos nos termos
dos artigos 732.º-A e 732.º-B” do Código de Processo Civil à data, ou seja, como Acórdãos
Uniformizadores de Jurisprudência.
16 Como por exemplo o art. 4.º, n.º 2 do Código da Estrada que se limita a referir que “Quem infringir o
disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600, se sanção mais grave não
for aplicável por força de outra disposição legal, sem prejuízo do disposto no número seguinte”, referindo-
se à contra-ordenação cometida pelo utente que desobedecer às ordens legítimas das autoridades com
competência para regular e fiscalizar o trânsito, ou dos seus agentes, desde que devidamente identificados
como tal.
17 Também neste mesmo sentido, veja-se ASCENSÃO, JOSÉ DE OLIVEIRA, 2005, O Direito -
Introdução e Teoria Geral. 13. Coimbra: Almedina. Pp. 493.
18 Por isso se diz que, ainda que a norma apenas se aplique a uma pessoa, ela não se dirige nem foi redigida
para essa pessoa individualmente considerada, mas antes tendo em atenção à posição ou cargo que a dita
ocupa. Veja-se o caso das normas jurídicas sobre o Presidente da República.
19 Por exemplo, nos termos do art. 798.º do Código Civil, num contrato, o devedor apenas se torna
responsável pelo prejuízo que causar ao credor se tiver faltado culposamente ao cumprimento da obrigação
a que se encontrava adstrito.

Página 7 de 14
a) previsão legal ou a hipótese legal ou tipo legal [Tatbestand], a facti specie, que
consagra a situação de facto de forma geral e abstrata, sendo aqui que se
encontram definidas as condições ou requisitos a verificar para que a norma seja
aplicável à situação. Podemos assim afirmar que as normas versam sobre a
realidade empírica, jurisidicionalizando-a;

b) estatuição ou injunção legal [Rechtsfolge], que contempla as consequências


jurídicas a aplicar caso se verifique em concreto o que se encontra descrito na
previsão da norma. A estatuição pode traduzir-se na aplicação de sanções
jurídicas20, atribuição de direitos ou imposição de obrigações21, consagração de
estatutos jurídicos22, orientações ou instruções de condutas a adotar23, entre
outros;

Como exemplo do que acabamos de explicar, referimos o artigo 483.º, n.º 1, do Código
Civil que consagra: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de
outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado
a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, sendo a previsão legal
“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer
disposição legal destinada a proteger interesses alheios…” e a estatuição “fica obrigado
a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Cumpre ainda assinalar que nem sempre as normas possuem previsão e estatuição,
algumas têm apenas previsão, encontrando-se a sua respetiva estatuição consagrada
noutra norma24. Também nem sempre as normas que têm previsão e estatuição nos
surgem por esta ordem, podendo a estatuição surgir antes da previsão25.

20 Como por exemplo a obrigação de indemnizar o lesado (artigo 483.º); a nulidade de um contrato que
não observa a forma legalmente exigida (artigo 220.º), etc.
21 Por exemplo, o direito de exigir o preço da coisa vendida e a obrigação de entregar a coisa vendida
(artigo 874.º, 879.º, alíneas b) e c)).
22 Como por exemplo o estatuto da menoridade atribuído no art. 122.º do Código Civil.
23 Cfr. Artigo 1324.º do Código Civil.
24 Como é o caso do art. 122.º que consagra que “quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade”
(previsão) carece de capacidade para o exercício de direitos (estatuição), o que se encontra previsto no art.
123.º do Código Civil.
25 Cfr. Artigo 280.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil que estipulam de imediato a nulidade do negócio jurídico
(estatuição) cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável (n.º 1) ou
contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes (n.º 2) (previsão). Ou o caso do art. 892.º do
Código Civil que consagra a nulidade da “venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de
legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não
pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”.

Página 8 de 14
Subjunção jurídica e silogismo judiciário
Assim, as normas jurídicas, os artigos ou os §§, preveem (ou descrevem) em abstrato
factos ou comportamentos e seus efeitos ou consequências jurídicas. Como tais,
contrapõem-se a situações concretas, os factos ou casos que efetivamente aconteceram na
vida real, que são, a seguir, aferidas e subsumidas àquelas normas. As normas jurídicas
funcionam agora como intermediários ou como instrumentos na aplicação do direito às
situações concretas, aos casos efetivamente ocorridos, que se lhes contrapõem. As
situações concretas, os casos efetivamente ocorridos, são analisadas para sabermos se elas
são abrangidas ou não pela previsão da norma. Algumas vezes é difícil subsumir uma
situação concreta à previsão abstrata da norma quando não é óbvio se esta inclui ou
abrange a situação em causa; há mesmo situações que não correspondem à descrição feita
pela norma e, por isso, não cabem dentro da previsão de uma norma legal, com o resultado
de esta ser, desde logo, inaplicável ao caso.

Com a previsão legal abstrata da norma confrontamos um caso concreto, uma dada
situação concreta ocorrida [Sachverhalt], e procedemos à subsunção desta situação à
norma, isto é a verificação, se a situação concreta, o facto ocorrido, preenche ou cabe nos
pressupostos previstos e enunciados na previsão da norma legal, ou seja, se a previsão
legal está concebida para acolher a situação concreta. Temos primeiro um facto, a situação
verificada, e depois vamos procurar se há uma norma que se pode aplicar ao facto.
Subordinamos um facto (ou caso) concreto a uma norma formulada em abstrato.

Tendo feito a subsunção do caso concreto à previsão abstrata da norma, concluímos que
existem os pressupostos para as consequências jurídicas estatuídas na norma.

Recorremos aqui à figura do silogismo judiciário que apresenta as seguintes


particularidades: existe a premissa maior, que consiste na previsão da norma ou hipótese
legal, e a premissa menor, que corresponde à situação concreta a ser subsumida, por fim,
surge a conclusão da subsunção feita, ou sejam as consequências jurídicas enunciadas na
estatuição da norma.

No silogismo judiciário temos uma “atuação técnico-jurídica” que consiste na apreensão


rigorosa de todos os elementos relevantes da situação concreta ocorrida (da matéria de
facto do caso concreto em apreço) e na subsunção do facto à norma pertinente ao proceder
à verificação se todos os pressupostos enunciados em abstrato na sua previsão legal estão

Página 9 de 14
preenchidos ou não na situação concreta e, sendo a resposta afirmativa, a conclusão
quanto às consequências jurídicas.

Ao fazer esta operação nunca devemos perder o sentido da justiça ou da razoabilidade ou


da adequação quanto ao resultado da subsunção, à conclusão a que chegámos. A
subsunção, não obstante corresponder a uma operação técnico-jurídica, não é um
processo desligado da realidade social, insensível e impessoal como se de uma equação
matemática se tratasse.

Os factos e os efeitos jurídicos


A previsão, a hipótese da norma, refere-se à descrição ou visualização de situações típicas
da vida, de factos ou conjuntos de factos, cuja verificação no caso concreto ocorrido
desencadeia as consequências jurídicas enunciadas na estatuição da norma. Na medida
em que se refere a tais factos é designada também como facti species. Estes factos
apresentam uma grande diversidade entre si. Ao referir-se aos factos, a previsão
normativa utiliza, naturalmente, conceitos que se referem a algo num específico sentido
jurídico; os conceitos que a lei utiliza e com que descreve os factos como situações típicas
da vida são entendidas como elementos no sentido da lei. Deste modo, os conteúdos dos
conceitos legais podem afastar-se do significado naturalístico ou originário das palavras
usadas. Por exemplo, os conceitos de “arma” ou de “coisa” ou de “pessoa” ou de
“documento” quando utilizados pela lei são conceitos em sentido jurídico. Contudo, os
conceitos jurídicos não contrariam o significado originário, não se lhe opõem
fundamentalmente.

Assim, a facti species é redigida ao usar e aplicar conceitos jurídicos; por isso, quando
resolvemos um caso temos que aprender a ler já o próprio caso concreto, os factos, a
analisar e a subsumir à previsão normativa, a partir de uma perspetiva jurídica. A “questão
de facto” não é uma simples apreciação de dados, mas implica na sua “leitura” a inclusão
de uma perspetiva jurídica dentro da lógica do sistema: a verificação do alcance do
preceito legal para captar a relevância jurídica dos factos em análise, ou seja, quais são,
entre vários, os factos decisivos. Significa que temos quer ler os dados, os factos
presentes, a partir da perspetiva da lei.

Os factos aqui em questão são unicamente os factos com relevância jurídica, factos de
que resultam efeitos jurídicos, mas não factos ajurídicos. Distinguimos assim entre factos
ajurídicos e factos jurídicos.

Página 10 de 14
Um facto jurídico afeta a situação jurídica de uma pessoa. Deste modo é facto jurídico
todo o acontecimento – natural (involuntário) ou humano (voluntário) – que produz
efeitos jurídicos para alguém. Acontecimentos que não produzem efeitos jurídicos, por
mais relevantes e frequentes que possam ser na vida das pessoas (na vida social), são
factos ajurídicos e neste sentido estão fora do nosso interesse.

Portanto, factos jurídicos (Rechtstatsachen) são todos os atos humanos (voluntários) ou


todos os acontecimentos naturais (involuntários) que produzem efeitos jurídicos, isto é,
efeitos juridicamente relevantes. Os factos jurídicos involuntários acontecem
independentemente da vontade humana e os factos jurídicos voluntários são produzidos
pela vontade humana.

Neste contexto devemos distinguir muito bem entre o facto jurídico em si, que acontece
ou sem a vontade humana ou é provocada por ela, e os seus efeitos jurídicos ou
consequências jurídicas que resultem do facto.

Entre os factos jurídicos involuntários (ou também os acontecimentos naturais)


encontramos, por exemplo, o nascimento cujo efeito jurídico é a aquisição da
personalidade (artigo 66.º, n.º 1), o facto de a pessoa perfazer dezoito anos de idade com
a consequência da aquisição da maioridade (artigo 130.º), o facto da morte que faz cessar
a personalidade (artigo 68.º, n.º 1); em muitos casos previstos na lei, o simples decurso
do tempo (artigos 296.º e seguintes) tem como efeito ou a prescrição ou a caducidade]);
o facto da acessão natural faz com que tudo o que acrescer “por efeito da natureza”
pertença ao proprietário (artigo 1327.º), etc. Quer dizer, é sempre a lei que atribui os
efeitos jurídicos, as consequências que provêm de tais factos.

Quanto aos factos jurídicos voluntários, produzidos pela vontade humana, devemos
distinguir particularmente bem entre o próprio facto provocado pela vontade que está na
sua origem, de modo que o facto é sempre produto da vontade humana que o provoca, e
os efeitos jurídicos produzidos pelo facto. Enquanto o facto é provocado pela vontade
humana, os seus efeitos jurídicos são – com uma única exceção –, tal como acontece com
os factos jurídicos involuntários, sempre determinados pela lei. Ou seja, por outras
palavras, o próprio facto é voluntário, produto da vontade humana, mas o efeito produzido
pelo facto já não se fundamenta na vontade, mas é determinado pela lei. Só não é assim
no caso de o facto jurídico ser um negócio jurídico.

Página 11 de 14
Os factos jurídicos voluntários subdividem-se em factos ilícitos e factos lícitos, que
também são designados por atos jurídicos em sentido amplo, por sua vez subdivididos em
atos jurídicos em sentido restrito e negócios jurídicos. Em geral (os pormenores ficam
para a disciplina de Teoria Geral do Direito Civil), os factos jurídicos voluntários poderão
ser sistematizados do modo seguinte:

Efeitos jurídicos
Ilícitos determinados pela
lei

Efeitos jurídicos
Actos reais determinados
Voluntários (ou pela lei
humanos)
Actos Jurídicos Efeitos jurídicos
em sentido Actos de ciência determinados
estrito pela lei
Factos Jurídicos Lícitos (Atos Efeitos jurídicos
Atos quase
Jurídicos em determinados
negociais
sentido amplo) pela lei
Efeitos jurídicos Efeitos jurídicos
Involuntários Negócios
determinados determinados
(ou naturais) Jurídicos
pela lei pela vontade

Ora bem, o esquema enunciado mostra nos que os efeitos dos factos ilícitos e os efeitos
dos vários atos jurídicos em sentido restrito resultam sempre da lei, ou como sanção, no
caso dos factos ilícitos, ou como uma consequência não sancionatória, pois os atos são
lícitos, e os seus efeitos legais são bem aceites por quem praticou ao ato.

Daqui resulta também que, de entre todos os factos jurídicos, é unicamente o caso do
negócio jurídico em que os efeitos do facto jurídico (o negócio jurídico como facto
jurídico voluntário lícito) resultam da vontade de quem o celebrou, precisamente com a
finalidade de obter estes efeitos ao celebrar o negócio.

Quando a lei, no artigo 295.º, determina que aos atos jurídicos que não sejam negócios
jurídicos, isto é, todos os atos jurídicos que são exatamente os actos jurídicos em sentido
restrito, se podem aplicar por analogia disposições respeitantes aos negócios jurídicos não
se refere obviamente a disposições que respeitam aos efeitos dos negócios. Os efeitos dos
negócios jurídicos resultam da vontade enquanto os efeitos dos atos jurídicos em sentido
restrito são determinados pela lei, de modo que no que respeita aos efeitos as situações
não são comparáveis e assim não pode haver analogia. Apenas as disposições que
respeitam aos pressupostos volitivos do negócio jurídico ou dos atos jurídicos em sentido
restrito (a vontade que está na sua origem) podem, conforme a natureza do ato jurídico

Página 12 de 14
em sentido restrito, ter alguma relevância. Estes pressupostos volitivos para os atos
jurídicos em sentido restrito, ou seja, as exigências quanto à vontade necessária para
poderem ser praticados, são reduzidos no caso dos atos reais, mas são elevados nos atos
quase negociais e podem sê-lo em alguns atos de ciência.

Do vínculo jurídico
Dos efeitos jurídicos produzidos pelo facto jurídico pode resultar uma relação jurídica
que se vem estabelecer entre duas ou mais pessoas ou ainda um status (o estado pessoal;
o estado civil) que define a situação da própria pessoa.

Sendo o facto jurídico criador de uma relação jurídica entre duas ou mais pessoas elas
passam a ser os sujeitos desta relação com os seus direitos e deveres recíprocos, ou seja,
fica estabelecida uma vinculação jurídica mútua entre elas. Os efeitos jurídicos
produzidos por esta vinculação consistem na atribuição de um direito subjetivo a um e a
imposição de um dever jurídico (que é ou uma obrigação ou uma sujeição) a outrem.
Deste modo o facto jurídico dá origem à constituição, aquisição, modificação ou extinção
de direitos subjetivos. Sendo assim, a relação jurídica criada por um facto jurídico
corresponde a uma relação social juridicamente relevante. Trata-se de um vínculo
jurídico, um vínculo normativo.

Dos ónus jurídicos


Como vimos, os efeitos de um facto jurídico consistem na atribuição de um direito
subjetivo a um e na imposição de uma obrigação a outrem. À obrigação de uma parte
corresponde o direito de exigir o seu cumprimento da outra. De uma obrigação, cujo
cumprimento pode ser exigido pela outra parte, distingue-se o ónus (Obliegenheit). O
cumprimento de um ónus não pode ser exigido uma vez que não lhe corresponde um
direito subjetivo de ninguém. O ónus, mesmo sendo imposto por lei, como por exemplo,
o registo da aquisição de um imóvel é hoje obrigatório, é uma “obrigação” que uma
pessoa tem em relação a si mesma, mas não em relação a uma outra pessoa. Deste modo,
o ónus não é nenhuma obrigação no sentido próprio que se caracteriza pela situação em
que temos um devedor ao qual o credor pode exigir o cumprimento da sua obrigação.

A observância do ónus tem como consequência a obtenção de vantagens ou o evitar de


desvantagens na pessoa à qual incumbe o ónus. Como exemplos podemos referir o ónus
de proteger a casa antes de ir para férias, ou de fechar e sinalizar o veículo depois de um
acidente ou de promover o registo após a compra de um imóvel ou de uma motocicleta,

Página 13 de 14
etc. Não observando o ónus o “obrigado” sofre os resultados negativos do seu
comportamento negligente. Por exemplo, o seguro não indemniza os prejuízos sofridos
por um furto se a casa não estava devidamente fechada ou o comprador que não regista o
contrato vê a sua propriedade perdida por ter sido adquirida por um terceiro de boa fé.

Páginas a ler: J. Baptista Machado, pp. 79-82

Página 14 de 14

Você também pode gostar