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A Olimpíada e as políticas públicas para

o ensino e aprendizagem de língua portuguesa


Egon de Oliveira Rangel

Diante dos muitos e às vezes simultâneos cotidiano-familiar, religiosa, escolar, profis-


projetos de que uma mesma escola participa, sional, política etc. – tende a desenvolver usos
há ocasiões em que o professor se sente... próprios, ou seja, gêneros discursivos: a con-
simplesmente perdido. Mas, afinal, em que versa à mesa, a oração, a dissertação escolar,
cada um desses programas efetivamente co- o relatório técnico, a propaganda eleitoral, e
labora para o melhor ensino e aprendizagem? assim por diante.
Como se relacionam com as orientações das
secretarias e do MEC para o ensino? 2. A proposta da sequência didática (SD)
Para encontrar uma resposta satisfatória como ferramenta básica para
para perguntas como essas, é preciso reser- o ensino e aprendizagem
var um pouco de tempo para conhecer os pres- de leitura e produção de textos
supostos teóricos e metodológicos de cada Inspirando-se em pesquisas e propostas de
projeto. Pensando na Olimpíada de Língua trabalho da Escola de Genebra e, em particular,
Portuguesa Escrevendo o Futuro, é esse tra- na reflexão de Bernard Schneuwly e Joaquim
balho que vamos desencadear aqui. Dolz, a Olimpíada se organiza com sequên-
Como todos sabemos, esse é  um projeto cias de atividades – de diferentes tipos e níveis
com características muito particulares: de complexidade – sistematizadas como ofici-
nas e, por isso mesmo, orientadas
para um conjunto bastante coeso de
• Organiza e promove, no âmbito de nossas redes públicas objetivos, por exemplo: (re)conhecer
de ensino, um concurso nacional de produção de texto o plano geral do texto de um artigo
para os três níveis da Educação Básica. de opinião; identificar as situações
• Tem como um de seus principais objetivos proporcionar de comunicação próprias das me-
para os professores e alunos inscritos um “mesmo chão”, mórias literárias etc.
em que todos possam plantar firmemente os pés. Partindo
deste mesmo patamar – e recorrendo aos mesmos parâ- 3. As teorias de Lev S. Vygotsky
metros e com as mesmas ferramentas – todos lutarão pela relativas à aprendizagem
vitória em condições semelhantes. As oficinas propostas pela Olim-
píada supõem aprendizes que, no
• Caracteriza-se como um curso de “formação em serviço”
contexto das oficinas, podem cons-
para os docentes inscritos, inserindo-se no cotidiano da
tituir-se como sujeitos ativos de sua
escola como parte da programação regular de língua por-
própria aprendizagem, e não como
tuguesa, e não como mais uma atividade extracurricular.
alunos passivos cuja tarefa se re-
suma à assimilação de conteúdos e
fórmulas.
Já a orientação teórico-metodológica da Olim­ Longe de se sobrepor ou de se contrapor
píada para o trabalho com leitura e produção quer às orientações oficiais, quer, ainda, à
de textos organiza-se em torno de três eixos reflexão e à atuação dos docentes, essa fun-
básicos: damentação teórica, assim como a metodo-
logia correspondente, está em sintonia tanto
1. A noção de gênero com as demandas da sala de aula quanto com
Na Ponta do Lápis – ano VI – nº 13

Orientado pela reflexão de Mikhail Bakhtin as orientações oficiais para o ensino da lín-
a esse respeito, o projeto da Olimpíada parte gua portuguesa. E não por acaso. É que, tanto
do pressuposto de que as diversas esferas da quanto os Parâmetros Curriculares Nacio-
atividade humana estão, necessária e indisso- nais, os princípios e critérios para a avaliação
luvelmente, relacionadas ao uso da linguagem. dos livros didáticos do PNLD, os parâmetros
Assim, cada esfera de nossas atividades – levados em conta para selecionar livros para

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o PNBE, e até mesmo os descritores com Já  as mudanças relativas ao como ensi-
base nos quais se formulam as provas de nar devem-se às conquistas propiciadas pelas
sistemas de avaliação como o Saresp e o teorias da aprendizagem, especialmente a par-
Saeb, a Olimpíada se insere num movimento tir das grandes sínteses produzidas na década
histórico que costumo chamar de “virada de 1980. Desde então, dispomos de descrições,
pragmática” no ensino da língua materna ou mesmo “modelos”, bastante plausíveis
(Rangel, 2002). da aprendizagem, tanto no que diz respeito à
Exatamente como a expressão sugere, forma como ela se processa na mente do indi-
essa virada pode ser caracterizada como uma víduo quanto no papel fundamental que o
brusca e radical mudança na concepção tanto contexto, a cultura, as situações e os esque-
do que seja uma língua quanto de como se mas de interação em jogo têm para o sucesso
deve ensinar a língua materna. Apesar de brus- do aprendiz.
cas e radicais, essas mudanças não se deram
da noite para o dia. Foram fruto de transforma-
ções paulatinas ocorridas em pelo menos dois
vastos campos do conhecimento científico di-
retamente relacionados à educação escolar e
ao ensino de línguas.
As mudanças relativas à concepção de lín-
gua devem-se à inflexão das ciências da lingua-
gem, desde os anos 1930, para os usos linguísti­
cos e para a dimensão social e histórica da
língua. A concepção de que a língua é, essen-
cialmente, um sistema de signos destinados a
representar coisas e ideias passou a ser ques-
tionada pelas pesquisas e reflexões que reve-
lavam aspectos antes negligenciados:

• o caráter interacional e comunicacional das


línguas – que faz que toda atividade humana
tenha o seu lado linguístico;
• seu poder de criar realidades, e não apenas
de representá-las – que explica, entre outras
coisa, porque o imaginário produzido pela
mídia é mais real para o público do que os
fatos efetivamente vividos no cotidiano.

Com base nessa investigação da lingua-


gem como uso, e não apenas como sistema
de signos, firmou-se a noção de discurso, que
podemos entender, genericamente, como “a
linguagem posta em ação – e necessariamen-
te entre parceiros” (Benveniste, 1958, p. 284).
E essa noção de discurso abriu a reflexão lin-
guística para o que há, na linguagem, de acon-
tecimento, de (inter)ação e de compromisso
social: toda produção linguística é, então, um
Na Ponta do Lápis – ano VI – nº 13

fato situado no tempo, no espaço e na vida em


sociedade. Assim, foi possível, entre outras
coisas, entender melhor, nos processos de lei-
tura e escrita, as formas pelas quais os senti-
dos são (re)construídos pelos parceiros do
discurso a partir do texto.

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Esta é a razão pela qual procedimentais. Devem-se ensinar usos,
afirmei que orais e escritos, da língua. Não por acaso,
[...] a história recente da educação pode tanto os PCN do Ensino Fundamental quan-
ser dividida, grosso modo, em dois gran- to os princípios e critérios de avaliação de
des momentos. O primeiro deles, que cha- livros didáticos do PNLD definem como ob-
maremos de tradicional, foi dominado pe- jetivo do ensino do português o desenvolvi-
las preocupações praticamente exclusivas mento da proficiência oral e escrita do aluno
com o ensino. As grandes questões, para e, em particular, sua inserção qualificada no
os educadores, eram o que e como ensinar, mundo da escrita.
considerando-se os saberes disponíveis e Se retomarmos agora o conjunto deste ar-
os objetivos socialmente perseguidos em tigo, veremos facilmente que o projeto da
cada nível de ensino. Olimpíada se insere na mesma virada prag-
mática que dá origem às orientações oficiais
No segundo momento, é a apren- para o ensino do português:
dizagem, ou melhor, o que já sa-
bemos a respeito dela, que comanda • ao eleger o gênero como unidade de trabalho, traz a
o ensino. Atentos aos movimentos, língua em uso para a sala de aula;
estratégias e processos típicos do
aprendiz numa determinada fase • ao eleger Vygotsky como referência teórica para a sua
de sua trajetória e num certo con- concepção de ensino e aprendizagem, mostra-se em dia
texto histórico e social, os educa- com as conquistas propiciadas pelas pesquisas em
dores procuram organizar situa- aprendizagem;
ções e estratégias de ensino o • ao se organizar em sequências de atividades inspira-
mais possível compatíveis e ade- das na noção de sequência didática, organiza a leitura,
quadas. Nesse sentido, o esforço a oralidade e a reflexão sobre a língua e a linguagem
empregado no planejamento do en­ em torno das demandas de produção textual geradas
­sino e na seleção e emprego de es- por um concurso de redação de escala nacional. Nesse
tratégias didático-pedagógicas em sentido, a Olimpíada constitui, por si só, todo um con-
sala de aula acaba tomando o pro- texto de uso da escrita.
cesso da aprendizagem como prin­­
cípio metodológico de base (Rangel,
2009; com adaptações). Participar da Olimpíada não é, portanto,
apenas participar de um jogo entre outros,
Por todos esses motivos, os objetos de por mais divertidas que as oficinas também
ensino e aprendizagem, no contexto da vira- possam ser. É, antes de tudo, envolver-se
da pragmática, têm sido concebidos como numa proposta de trabalho que pode se cons-
tituir, para o professor, como uma referência
interessante para, até independentemente do
con­­­­­­­­­­curso, articular e moldar as atividades de
ensino e aprendizagem de língua portuguesa.  

Referências
Benveniste, Émile. 1958. “Da subjetividade na linguagem”, in: Pro-
blemas de linguística geraI I. 2ª- ed. Campinas: Pontes/Editora da
Unicamp, 1988.

Rangel, Egon de Oliveira. “Livro didático de língua portuguesa: o


retorno do recalcado”, in: Dionisio, Angela Paiva e Bezerra, Ma-
ria Auxiliadora (orgs.). O livro didático de português: múltiplos olha-
Na Ponta do Lápis – ano VI – nº 13

res. 2ª- ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

Rangel, Egon de Oliveira. Para não esquecer: de que se lembrar, na


hora de escolher um livro do Guia? Brasília: SEB/MEC, 2009. Mimeo.

Egon de Oliveira Rangel é professor do Departa­


mento de Linguística da PUC-SP, membro do Comitê
Assessor da Secretaria de Educação Superior (Sesu).

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