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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – FAFICLA

Curso de Arte: História, Crítica e Curadoria

GABRIELA DA COSTA GOTODA

CAMPO DE DISPUTA:

A relação entre arte e política na história das exposições

São Paulo

2022
GABRIELA DA COSTA GOTODA

CAMPO DE DISPUTA:

A relação entre arte e política na história das exposições

Apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso de


Graduação, como exigência parcial para obtenção do grau de
Bacharel do curso de
Arte: História, Crítica e Curadoria.

Orientador(a): Professor(a) Dr(a) Cauê Alves

Aprovado em: São Paulo, ______/______/2022

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

Prof.(a) Dr. (a) (orientador)

____________________________________________

Prof.(a) Dr. (a)

____________________________________________

Prof.(a) Dr. (a)

2
AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, pelo suporte incondicional, e dedico este TCC à minha irmã mais velha,

Mariana, que me ensina a descobrir significado no real todos os dias.

Agradeço ao Martín, o melhor parceiro, ouvinte e amor, que me apoiou e me encorajou nos melhores e

piores momentos da pesquisa.

Agradeço à Désirée, por nunca me deixar esquecer de mim mesma.

Agradeço a todos os professores do curso de Arte: História, Crítica e Curadoria, que tanto me ensinaram

ao longo dos últimos anos, e sem quem eu não teria sido capaz de desenvolver as pesquisas e reflexões

que me levaram até aqui.

E agradeço especialmente ao meu orientador, Cauê Alves, cuja paciência me deixou livre para

desenvolver a pesquisa e a escrita da melhor maneira que eu pude.

3
Esta é uma ponte. Temos que atravessá-la. Hindurch [através]. Não fugir dela, não morar

nela. No relativo, esta é nossa liberdade. Dizer sim e não. Amar e não atar-se, ter prazer (se

possível). Sem “perder” aqui nosso “coração”. Ser lealmente deste mundo.

Mira Schendel, diário pessoali

4
RESUMO

A relação entre a arte e a política pode ser abordada através da perspectiva da história das exposições,

entendidas como situações marcadas pelo encontro imediato entre o objeto de arte e o público no

contexto maior da vida em sociedade. No final da década de 1960, devido ao seu estatuto de instituição

cultural com atribuições oficiais, a Fundação Bienal de São Paulo foi vista como um símbolo da ditadura

militar brasileira. Artistas e figuras importantes do circuito nacional e internacional organizaram um

movimento de boicote contra a décima edição da mostra em 1969, amplamente conhecida como “Bienal

do boicote”. Busca-se demonstrar que as possíveis relações entre arte e política na história dessa

exposição não são apenas relativas ao seu contexto de repressão e censura no país e ao movimento de

boicote que reagiu a ele. Elas também decorrem das possíveis proposições que emergem quando objetos

de arte são colocados em exposição perante o público. Desse modo, ainda que seja significativo avaliar

a posição tomada pelos artistas que aderiram ao boicote, interessa-nos o olhar sobre alguns daqueles

que participaram da exposição, posicionando-se diante do contexto de forma surpreendente através das

obras apresentadas. A partir disso, analisamos o protesto político que marcou a inauguração e a história

da exposição da 34ª Bienal de Veneza em 1968, em que artistas e manifestantes tomaram explicita e

fisicamente a exposição de trabalhos de arte como forma de barganhar seu posicionamento político.

Ambas as situações históricas se combinam a casos mais recentes de boicote a exposições de arte e

demonstram que as relações entre arte e política, produzidas a partir do encontro da arte com o público,

não são relativas apenas ao contexto específico das exposições, mas também engajam com grandes

questões e dilemas da sociedade, disputando sua autonomia diante das estruturas de poder.

Palavras-Chave: arte e política; história das exposições; bienal; arte contemporânea

5
ABSTRACT

The relationship between art and politics can be addressed through the perspective of the history of

exhibitions, understood as situations marked by the immediate encounter between the art object and the

public in the larger context of life in society. In the late 1960s, due to its status as a cultural institution

with official attributions, the Fundação Bienal de São Paulo was seen as a symbol of the Brazilian

military dictatorship. Artists and important figures from the national and international circuit organized

a boycott movement against the tenth edition of the show in 1969, widely known as the "Boycotted

Biennale". We seek to demonstrate that the possible relations between art and politics in this

exhibition’s history are not only relative to the country’s context of repression and censorship and to

the boycott movement that reacted to it. They also arise from the possible propositions that emerge

when art objects are put on display before the public. In this way, although it is significant to evaluate

the position taken by the artists who joined the boycott, we are interested in looking at some of those

who participated in the exhibition and positiones themselves in light of the context in a surprising way

through the works presented. From this, we analyze the political protests that marked the opening and

the history of the exhibition of the 34th Venice Biennale in 1968, in which artists and protesters

explicitly and physically took over the exhibition of artworks as a way to bargain their political position.

Both historical situations combine with more recent cases of boycott of art exhibitions and demonstrate

that the relations between art and politics, produced from the encounter of art with the public, are not

only relative to the specific context of the exhibitions, but also engage with major issues and dilemmas

of society, disputing its autonomy in the face of power structures.

Keywords: art and politics; exhibitions history; biennial; contemporary art

6
LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 – Cybèle Varela, O presente (1967/2018) – pág. 25

Fig. 2 – Quissak Jr., série Meditação sobre a bandeira nacional (1966/67) – pág. 26

Fig. 3 – Cartaz da 10ª Bienal de São Paulo (1969), autoria de Maria Argentina Bibas – pág. 35

Fig. 4 – Capa do manifesto Non à la Biennale (1969) – pág. 38

Fig. 5 – Claudio Tozzi, Veja o nu (1968) – pág. 50

Fig. 6 – Claudio Tozzi, O público (1968) – pág. 51

Fig. 7 – Marcello Nitsche, A bolha (c. 1969). Vista da obra na 10ª Bienal de São Paulo (1969) – pág.

52

Fig. 8 – Marcello Nitsche, A bolha (c. 1969). Vista da obra na 10ª Bienal de São Paulo (1969) – pág.

53

Fig. 9 – Marcello Nitsche, A bolha (c. 1969). Vista do artista diante da obra na 10ª Bienal de São Paulo

(1969) – pág. 53

Fig. 10 – Mira Schendel, Ondas paradas de probabilidade (1969). Artista na montagem da obra na 10ª

Bienal de São Paulo (1969) – pág. 55

Fig. 11 – Mira Schendel, Ondas paradas de probabilidade (1969). Vista da obra na exposição 30 x

Bienal (2013) – pág. 56

Fig. 12 – Mira Schendel, Ondas paradas de probabilidade (1969). Vista da obra na exposição 30 x

Bienal (2013) – pág. 61

Fig. 13 – Estudantes em manifestação na 34ª Bienal de Veneza (1968) – pág. 74

Fig. 14 – Estudantes em manifestação na 34ª Bienal de Veneza (1968) – pág. 75

Fig. 15 – Manifestações na praça São Marcos, 34ª Bienal de Veneza (1968). Um dos cartazes carrega

os dizeres “La Svezia dice no alla Biennale della polizia” [“A Suécia diz não à Bienal da Polícia”] –

pág. 75

7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 9

Capítulo 1: A Bienal de São Paulo em disputa: um breve histórico .................................................... 12

Capítulo 2: A ditadura militar e a produção artística no Brasil ........................................................... 22

Capítulo 3: A 10ª Bienal de São Paulo e a liberdade em disputa ........................................................ 34

3.1. Um manifesto de ausência: a adesão ao boicote ........................................................................... 35

3.2. Contraponto da liberdade: a participação de Mira Schendel e outros artistas brasileiros ............. 43

Capítulo 4: A disputa continua: a 34ª Bienal de Veneza e instâncias recentes de boicote

a exposições ......................................................................................................................................... 68

4.1. A Bienal de Veneza em disputa .................................................................................................... 69

4.2. A disputa continua: instâncias recentes de boicote a exposições ................................................. 78

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................. 87

8
INTRODUÇÃO

A história das exposições de arte é um amplo campo de pesquisa e discussão, ainda que seja

relativamente recente. Sendo as exposições documentos históricos que registram o encontro entre obra

e público, a abrangência do campo nos permite adotar diferentes posições críticas para compreender a

confluência entre tempo e espaço, obra e espectador, indivíduo e coletivo, tal como se dá na instância

de uma exposição. Dessa forma, para além das suas relevâncias artísticas e teóricas, escolhemos abordar

a história das exposições adotando uma posição que, de início, identifica-as como situações (contextos)

que disparam possibilidades multiplicadoras e diversas para a relação entre a arte e a política.

Justamente, o que há de comum entre esses dois campos de produção e pensamento, além de serem

ambas práxis humanas, é a sua fruição no espaço público. A arte e a política, cada qual com as suas

especificidades, ao se encontrarem no público, provocam e demandam uma tomada de perspectiva

relativa à intencionalidade do encontro.

A recorrência e o formato das exposições da Bienal de São Paulo possibilitam a contínua

constatação desse encontro e a reflexão acerca da sua intencionalidade. De fato, o protagonismo e a

influência da Bienal paulista no desenvolvimento do campo da história das exposições no Brasil são

incontestáveis, e cada uma das diversas edições da mostra internacional oferecem múltiplas

perspectivas de pesquisa e discussão. Além de ter sido a primeira bienal fundada no hemisfério sul, o

vasto interesse pelo estudo sobre a Bienal de São Paulo é certamente devido ao fato de nela convergirem

os vários agentes do meio da arte (as instituições, os artistas, os críticos, os acadêmicos, as galerias).

Ademais, nascem dessa convergência as disputas e transformações que marcam uma parcela relevante

da história recente da arte brasileira. No primeiro capítulo, elucidaremos um breve histórico das

primeiras edições da Bienal paulista e algumas dessas disputas e transformações, até a altura do ano da

instauração da ditadura militar.

Poucas edições da Bienal de São Paulo foram tão diretamente interpeladas por fatores

contextuais mais amplos, da dimensão social, e específicos, do tempo histórico, como a 10ª Bienal em

1969, amplamente apelidada de “Bienal do boicote”. Isso é porque ela foi realizada no contexto da

9
ditadura militar brasileira, especialmente da institucionalização da censura e da repressão através do

AI-5 em 1968, inserida no ambiente do desenvolvimento de uma produção artística cada vez mais

engajada, como buscaremos explicitar no segundo capítulo.

Sendo favorecida por interesses governamentais e ideológicos, a 10ª Bienal foi alvo de um

movimento de boicote internacional, com diversas adesões nacionais e cujos adeptos visavam se

desvencilhar da exposição através de uma oposição ética. Diante das calamidades da ditadura militar,

já não seria possível a isenção ou neutralidade das instituições que expõem a arte ao público. No terceiro

capítulo, analisaremos, portanto, como nessa exposição bienal a intencionalidade do encontro entre arte

e política foi teorizado e especialmente agenciado por aqueles que aderiram ao boicote. Ademais, para

justificar a análise da história dessa exposição a partir daquilo que ela de fato apresentou ao público,

iremos propor a consideração de uma discussão conceitual acerca do termo “exposição”, segundo texto

publicado pelo filósofo Vilém Flusser no dia da abertura da 10ª Bienal de São Paulo em 1969. Essa

discussão será importante para o estabelecimento de uma leitura prática sobre a função do encontro

entre arte e público.

Com isso, ainda no terceiro capítulo, iremos avaliar como alguns trabalhos apresentados na

exposição da 10ª Bienal de São Paulo, em particular a obra apresentada pela artista Mira Schendel,

relacionam-se expressamente com o contexto político vivido no país ou com as possibilidades para o

exercício da liberdade em face da importância de se tomar uma posição. Posição, essa, que o boicote

consolidou historicamente como dicotômica (participar ou não), mas que, na verdade, é relativa,

admitindo mais complexidade do que a simples concordância ou discordância sobre as atrocidades do

regime ditatorial. Desse modo, buscaremos demonstrar que a dimensão da arte e da política na história

da 10ª Bienal, além de estar relacionada às instituições de poder, perpassa as considerações

possivelmente produzidas a partir do encontro da arte com o público, atestando a discussão de Flusser.

Considerando a vasta bibliografia que já discute e avalia o movimento de boicote e como ele

singularizou a Bienal de 1969, acreditamos que seja principalmente necessário contribuir para uma

bibliografia que discuta e reflita acerca das implicações políticas, sociais e filosóficas da presença, em

detrimento da ausência, de obras contundentes na exposição.

10
Por fim, no quarto capítulo, iremos discorrer brevemente sobre os efeitos do boicote sobre a

Fundação Bienal de São Paulo. Em seguida, buscaremos aproximar o boicote que marcou a 10ª edição

da mostra com os protestos que atingiram a 34ª Bienal de Veneza em 1968, quando manifestações de

cunho político, cultural e civil também foram observadas em diversas partes do mundo. Não irá nos

interessar analisar propriamente as obras da exposição, mas sim as interações estabelecidas entre

manifestantes, artistas e as estruturas de poder (a instituição e o Estado) à medida que os primeiros

tomaram física e explicitamente a exposição de arte como forma de atuação e reivindicação política.

Através da recusa em mostrar seus trabalhos enquanto os protestos estudantis que se desdobraram na

exposição fossem respondidos com violência policial, demonstraremos que os artistas não somente

foram bem-sucedidos em pressionar a instituição a adotar mudanças, como também exerceram um

poder de barganha implícito no trabalho de arte e na sua exposição. Ademais, casos recentes de boicotes

ou protestos a exposições serão brevemente considerados a fim de demonstrar a continuidade do

encontro entre arte e política na contemporaneidade e nas implicações dele para questões e dilemas

mais amplos, relativos à vida em sociedade.

11
CAPÍTULO 1

A Bienal de São Paulo em disputa: um breve histórico

A Bienal de São Paulo, que completou 70 recentemente, já nasceu no centro de disputas. Disputas

no âmbito internacional (por exemplo, a Guerra Fria), nacional (o modernismo e a modernidade), local

(a classe intelectual-artística e a classe econômica-empresarial), institucional (as instituições de cultura

e suas relações com as estruturas de poder), artístico (o figurativismo e o abstracionismo). Tais disputas,

como veremos neste capítulo, permeiam a história da Bienal e, em maior ou menor grau, marcaram

definitivamente o contexto em que surgiu.

Nos anos iniciais do período pós-Guerra, a arte moderna já desfrutava de considerável consagração

institucional, no Brasil e no exterior. Após seu momento primário e vanguardista, marcado pela Semana

de Arte Moderna de São Paulo em 1922 (no bicentenário da Independência do Brasil), o modernismo

brasileiro – na verdade, o modernismo paulistano e carioca – foi gradualmente assimilado pelo gosto

da elite na década de 1940, articulado na arquitetura e no design dos casarões, na decoração das festas

de carnaval, nos saraus e salões frequentados pelos intelectuais e os artistas mais ascendentes no

período, como Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Volpi, Flexor, Brecheret, Tarsila do Amaral e Segall.

De certo modo, esses e outros modernistas ofereciam através de suas produções diálogos ativos (e

diversos em termos de intensidade crítica) com a maior preocupação da elite paulistana no início do

século 20: o estabelecimento de uma força motriz para o desenvolvimento nacional e local, mirando o

avanço industrial e a modernização a fim de inserir o país no palco internacional.

Muito disso pode estar relacionado à crescente institucionalização da arte moderna nos

considerados “centros” culturais internacionais, exemplificada pela fundação do Museum of Modern

Art (MoMA) de Nova York em 1929. Alguns artistas do modernismo brasileiro também já desfrutavam

de um considerável reconhecimento internacional, como Candido Portinari e Heitor do Prazeres. O

primeiro participou de exposições dedicadas à arte moderna já na década de 1930, no Carnegie Institute

(Pennsylvania, EUA) e no MoMA, integrando a mostra seminal “Art in Our Time”. Em meados da

década de 1940, Heitor dos Prazeres integrou a exposição itinerante “Exhibition of Modern Brazilian

12
Paintings”, percorrendo diversas instituições de arte no Reino Unido, como o Royal Academy of Arts

(Londres, Inglaterra). Além disso, o contexto pós-Guerra na capital paulista era economicamente

favorável às empreitadas artísticas e culturais de sua elite emergente1. Aracy Amaral sugere que é a

coincidência entre o internacionalismo do modernismo brasileiro (ainda que nacionalista, pois, como

as demais vanguardas, foi originado por ímpetos universalizantes) e o contingente populacional já

diverso em termos étnicos e culturais da cidade de São Paulo que anuncia a sua adequação para receber

um evento internacional do porte de uma Bienal2. De fato, Vilém Flusser, ao discutir os sentidos da

Bienal de São Paulo e da exposição de arte, definiu a capital paulista como “um enorme aglomerado de

desenraizados”3.

Mas, antes mesmo da Bienal de São Paulo, o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, sua

“instituição-mãe”, foi concebido como um marco desse contexto. Fundado por Francisco Matarazzo

Sobrinho, o “Ciccillo” Matarazzo, em 1948, o MAM de São Paulo surgiu aos moldes do MoMA de

Nova York, carregando consigo “promessas civilizatórias”4. Como Amaral, Rita Alves Oliveira aponta

que a fundação de dois museus de arte em São Paulo antes do final da primeira metade do século 20 se

deu em função de um novo mecenato, “proveniente dos setores emergentes da sociedade: a indústria e

as organizações da imprensa”5. O outro museu seria o Museu de Arte de São Paulo, fundado em 1947

por Assis Chateaubriand, um empresário de meios de comunicação. Ciccillo, fundador do MAM, era

de uma poderosa família industrial de ascendência italiana, mas seus interesses estavam muito mais

voltados ao fomento cultural, considerado um agente exemplar de uma elite compromissada com a arte

e a cultura6. “Ambos apareceram com um novo tipo de empresariado que buscava se projetar no mundo

econômico através dos empreendimentos culturais de cunho internacional [...] o empreendimento

1
AMARAL, Aracy. “Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo”. Revista USP, São Paulo, n. 52, dez./fev.
2001-2002, p. 19.
2
Ibid.
3
FLUSSER, Vilém. “As Bienais de São Paulo e a vida contemplativa”. O Estado de S. Paulo – Suplemento
Literário, 27 set. 1969.
4
OLIVEIRA, Rita Alves. “Bienal de São Paulo: impacto na cultura brasileira”. São Paulo em Perspectiva, 15 (3),
2001, p. 22.
5
Ibid., p. 19.
6
GUERRA, Abilio & SOMBRA, Fausto. “Avenida Paulista, 1951. Cenário de 1ª Bienal de São Paulo”. Em MIYADA,
Paulo (org.). Bienal de São Paulo: desde 1951. São Paulo: Bienal, 2022, p. 28.

13
cultural como uma forma de luta hegemônica”7. Esse empreendimento, entretanto, focalizou-se

principalmente em São Paulo, onde a população urbana crescia rapidamente, misturando milhões de

migrantes brasileiros e imigrantes europeus8. Os últimos, como Matarazzo, seriam os grandes

empregadores, expandindo seus poderes econômicos e políticos através da vasta oferta de mão de obra

local.

Além disso, as iniciativas culturais tomadas pela elite paulistana no início do período pós-Guerra

não podem ser desvencilhadas do contexto da Guerra Fria. Não por acaso, Ciccillo Matarazzo contou

substancialmente com o interesse e o apoio de Nelson Rockefeller na criação do MAM São Paulo. Além

de ser presidente do conselho curatorial do MoMA e filho da fundadora do museu, Rockefeller também

atuou como coordenador de assuntos interamericanos do governo dos Estados Unidos, realizando

visitas ao Brasil desde o início dos anos 1940 para assessorar mecenas como Matarazzo e Chateaubriand

na criação de museus de arte moderna no país9. É significativo, então, que a inauguração do MAM São

Paulo tenha sido marcada pela exposição “Do figurativismo ao abstracionismo”, em 1949, quando

apresentou de forma pioneira obras do abstracionismo estrangeiro e as primeira experiências abstratas

de nomes locais, como Waldemar Cordeiro e Samson Flexor. Isso é significativo porque uma das

principais disputas colocadas pela historiografia da arte em torno do surgimento da Bienal de São Paulo

é a disputa entre a tradição figurativa do modernismo brasileiro e a exponencial adesão às tendências

abstracionistas e construtivistas, especialmente pela influência de artistas estadunidenses e europeus.

De fato, Mirtes Marins de Oliveira entende que, considerando as “motivações internas e externas ao

7
OLIVEIRA, op cit., 2001. p. 20
8
SCHROEDER, Caroline S. “X Bienal de São Paulo: Sob os efeitos da contestação”. Dissertação (mestrado) - São
Paulo: Escola de Comunicação e Artes/USP, 2011, p. 40.
9
ASBURY, Michael. “Entre a incompreensão e o esquecimento: a 4ª Bienal de São Paulo”. Em MIYADA, op cit.,
2022, pp. 87-90. Sobre a participação direta de Nelson Rockefeller na constituição inicial do acervo MAM São
Paulo, que posteriormente é transferido ao MAC-USP, ver TOLEDO, Carolina Rossetti de. “A doação de Nelson
Rockefeller de 1946 no Acervo do Museu de Arte Contemporânea da USP”. Revista de História da Arte e da
Cultura, Campinas, SP, n. 23, 2021, pp. 149-173. Sobre a atuação de Rockefeller na política externa americana
e na criação do MAM São Paulo, ver SALA, Dalton. “Arquivo de Arte da Fundação Bienal de São Paulo”. Revista
USP, São Paulo, n. 52, dez./fev. 2001-2002, pp. 122-146.

14
contexto político local, a Bienal de São Paulo é o ponto nevrálgico das históricas da arte moderna no

Brasil, e cuja influência institucional permanece”10.

O fato é que em 1951, menos de três anos após a inauguração do MAM São Paulo, Ciccillo

Matarazzo deu início a uma empreitada ainda mais ambiciosa: a criação da primeira bienal internacional

do hemisfério sul. Aos moldes da Bienal de Veneza, a primeira e mais antiga exposição bienal de cunho

internacional, organizada através de representações nacionais, a Bienal de São Paulo foi fundada sob a

guarda do MAM São Paulo, que se dividiu entre sua própria programação e as atividades envolvidas na

preparação da mostra internacional ao longo de uma década. A iniciativa de Matarazzo para a realização

de uma bienal em solo brasileiro começou no ano anterior, em 1950, quando ele se encarregou de

organizar a primeira ida de uma delegação de artistas brasileiros à Bienal de Veneza, em sua 25ª

edição11. A partir desse momento, a participação brasileira na Bienal italiana passou a ser organizada

pelo MAM, presidido por Matarazzo, e assim ocorreu até 1963, quando a recém-criada Fundação Bienal

de São Paulo passou a ser responsável. Mas foi aquela primeira experiência que se mostrou “a

oportunidade perfeita tanto para o posicionamento do país no panorama artístico internacional quanto

para fazer novos contatos com outras delegações”12.

Atualizado e munido de contatos oficiais com as autoridades estrangeiras, contando também com

o auxílio diplomático e estratégico de sua esposa Yolanda Penteado13, Matarazzo estava muito bem-

posicionado para sediar a 1ª Bienal de São Paulo. Inaugurada no dia 20 de outubro de 1951, a primeira

Bienal contou com a participação de mais de 500 artistas e 1800 obras de 21 países, além de contemplar

mostras de arquitetura, cinema e concursos de música e cartazes. O saldo mais aparente na literatura

acerca dessa exposição internacional pioneira no Brasil e na América Latina foram os debates e as

transformações que decorreram da premiação na categoria de melhor escultura a Max Bill, pela obra

Unidade tripartida (1948-49). Dessa premiação resultou o “Manifesto Consequência”, lançado por

10
DE OLIVEIRA, Mirtes Marins de. “A Bienal de São Paulo sob o signo da Guerra Fria: representações nacionais
e a Bienal do boicote”. Working Papers Series 2016. Instituto de História da Arte, Universidade Nova Lisboa,
dez. 2016, p. 55.
11
“A participação brasileira em Veneza”, em 05 jun. 2013. Disponível em
<http://www.bienal.org.br/post/347>. Acesso em 24 jun. 2022.
12
Ibid.
13
GUERRA & SOMBRA, op cit., 2022, pp. 29-32.

15
artistas “figurativos” que acusavam a exposição de ser uma “infame propaganda da arte abstrata

desligada de nossa vida e de nossas tradições”14. Em tom semelhante, Vilanova Artigas publicou artigos

em 1951 criticando o fato de que os financiadores dos prêmios fossem os “tubarões” da indústria

paulistana, ideologicamente influenciados pelos Estados Unidos e pelo abstracionismo “imperialista”

vinculado ao MoMA15. O crítico Mário Pedrosa, porém, não demorou em responder na imprensa, em

defesa da Bienal: “Trata-se de um acontecimento de âmbito internacional e com repercussões culturais

incalculáveis. Não somente para o Brasil como para nosso continente e mesmo para a velha Europa”16.

De fato, no ano seguinte à realização da primeira Bienal de São Paulo, um grupo de artistas paulistanos

lançou o “Manifesto Ruptura”, levando adiante muito da experiência provocada pela premiação à

escultura de Max Bill, artista expoente do concretismo europeu17.

Para Francisco Alambert, esse debate está inserido numa série de outras discussões disparadas pela

primeira Bienal, que se agravaram em sua segunda edição, conhecida como “A Bienal da Guernica”,

em 1953. Tais discussões opunham, entre outras posições ideológicas, artistas figurativos e artistas do

abstracionismo, nacionalismo e internacionalismo, revolução e desenvolvimentismo18. Como pivô

dessas discussões, a segunda Bienal, dirigida pelo crítico e historiador Sérgio Milliet, buscou alcançar

alguma conciliação ao dividir o prêmio de melhor pintura entre Alfredo Volpi, artista adepto das

tendências construtivistas e abstracionistas, e Di Cavalcanti, artista exemplar do modernismo figurativo

e nacionalista19. Ainda, a Bienal de 1953 reuniu tanto obras da produção mais contemporânea

fortemente vinculada ao abstracionismo, como Piet Mondrian e Alexander Calder, quanto pinturas da

paisagem brasileira e de Eliseu Visconti. Porém, a dualidade atestada por essas tentativas de conciliação

não seria resolvida nessa mostra. De fato, para Teixeira Coelho, a conciliação não ocorre

historicamente. Em texto publicado na edição comemorativa da Revista USP, marcando os cinquenta

anos da Bienal de São Paulo, Coelho ressalta que, à medida que essa Bienal surgiu e permaneceu como

14
AMARAL, op cit., 2001-2002, p. 20.
15
ALAMBERT, Francisco. “Sobre uma fotografia”. Em MIYADA, op cit., 2022, p. 51. Ver também OLIVEIRA, Rita
Alves. “Bienal de São Paulo: impacto na cultura brasileira”. São Paulo em Perspectiva, 15 (3), 2001, p. 18.
16
AMARAL, op cit., 2001-2002, p. 20
17
ALAMBERT, op cit., 2022, p. 53.
18
Ibid., p. 51.
19
Ibid., p. 52.

16
“emblema oficial do global no Brasil”, foi comprometida a sua capacidade de realizar adequadamente

o processo de internacionalização dupla (“exposição da arte estrangeira ao artista brasileiro, se não ao

público brasileiro, e exposição da arte brasileira à crítica, aos museus e depois aos curadores

estrangeiros”)20 do qual se incumbiu desde o seu princípio, no começo dos anos de 1950. Este autor

parece estar do lado dos propositores do “Manifesto Consequência” ao afirmar:

A burguesia brasileira instalada em São Paulo, junto com os sucessivos

governos municipais, estaduais e federais das quais foi mola e extensão, queria

ter acesso ao clube internacional (leia-se: Primeiro Mundo) “inocentemente”,

na melhor das hipóteses [...], ou subservientemente, nas demais [...] As chances

de ser bem-sucedida eram, como se verifica logo a seguir, historicamente

mínimas.21

Para Coelho, é justamente o comprometimento insistente da Bienal com a internacionalização

da arte brasileira que a coloca em xeque no final dos anos de 1960, quando se torna alvo de um

movimento de boicote, inclusive internacional.

Desde seu princípio, a Bienal de São Paulo não somente esteve vinculada ao interesse privado

de uma elite desenvolvimentista, como também foi amplamente apoiada por instâncias governamentais,

em termos financeiros e organizacionais. De fato, Matarazzo contou com a intermediação do Ministério

das Relações Exteriores, o Itamaraty, para oficializar a vinda de artistas estrangeiros e delegações

importantes para as mostras que compunham a programação da Bienal. No Arquivo Histórico Wanda

Svevo, da Fundação Bienal de São Paulo, encontramos inúmeras correspondências de Matarazzo com

oficiais do Itamaraty, embaixadores brasileiros no exterior, e embaixadores estrangeiros no Brasil,

tratando dos diversos trâmites institucionais envolvidos na realização de uma exposição de porte

internacional (envio de regulamentos e fichas de inscrição, transporte de obras, declarações aduaneiras,

20
COELHO, Teixeira. “Bienal de São Paulo: suave desmanche de uma ideia”. Revista USP, São Paulo, n. 52,
dez./fev., 2001-2002, pp. 83-84.
21
Ibid., p. 88

17
os valores de venda das obras etc.). Não é por pouco, então, que se destaca a oficialidade da Bienal do

ponto de vista político e cultural. E não é à toa que, ainda sob os efeitos dos debates acalorados gerados

por sua segunda edição, a Bienal fosse vinculada às celebrações do IV Centenário da Cidade de São

Paulo, que tiveram em Ciccillo Matarazzo um dos seus principais idealizadores22.

A 4ª Bienal em 1957 foi a primeira edição realizada no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, construído

por Oscar Niemeyer como parte do complexo arquitetônico do Parque Ibirapuera. Porém, na época, o

destaque não foi dado a esse fato, mas, sim, aos protestos de artistas brasileiros e locais, “furiosos com

o júri da Bienal por ter excluído total ou parcialmente suas inscrições para o evento”23. Para Michael

Asbury, tal exclusão seria resultado de uma seleção exigente e criteriosa dos inscritos brasileiros, que

teria favorecido aqueles que melhor correspondessem com o escopo geral do evento, o qual contava

com uma mostra dedicada aos artistas da Bauhaus, por iniciativa da Alemanha, e com a primeira grande

mostra internacional póstuma de Jackson Pollock, organizada pelos Estados Unidos. Ou seja, deixava-

se a impressão de que a 4ª Bienal tomava o partido do abstracionismo.

Em seus protestos, os artistas recusados recuperaram as acusações já dirigidas à Bienal desde

sua primeira edição:

À luz das políticas da Guerra Fria, a abstração foi colocada como a própria

personificação da cultura nas ‘democracias livres (capitalistas)’ [...] Para

muitos artistas e arquitetos, sobretudo aqueles ligados ao partido comunista, a

marca brasileira do modernismo, embora distinta do modelo realista socialista,

baseava-se na figuração, com suas representações de temas políticos, desde as

condições dos pobres e oprimidos até a afirmação da cultura e da identidade

nacionais.24

22
Ver BARROS, Regina Teixeira de. “Arte no parque: um projeto que não vingou”. Em MIYADA, op cit., 2022,
pp. 58-69.
23
ASBURY, op cit., 2022, p. 85.
24
Ibid., p. 87.

18
Porém, Asbury destaca que essas atribuições sugeridas à Bienal, de se colocar a favor de um

ou outro partido estético-ideológico, acabam enfraquecidas quando nos deparamos com contradições,

como, por exemplo, o fato de que o arquiteto Vilanova Artigas, cujas críticas à Bienal eram feitas

publicamente desde o seu início, foi um grande amigo de Matarazzo, mesmo sendo membro do partido

comunista. Além disso, o presidente-fundador da Bienal atuou para apaziguar os protestos ao participar

pessoalmente de uma reunião com os artistas, acompanhado do diretor técnico da Bienal à época,

Wolfgang Pfeiffer, e de Mário Pedrosa, que, interessantemente, ficou ao lado do industrial, mesmo

sendo um trotskista manifesto. Uma outra contradição é constatada na acusação feita por Flavio de

Carvalho de que o júri de seleção teria dado preferência à arte concreta. Porém, dentre os artistas mais

vocais desses protestos, estava o recusado Waldemar Cordeiro, porta-voz emblemático do grupo

Ruptura. Por fim, após tentarem apelar ao prefeito, pedindo que interrompesse a destinação de dinheiro

público para o evento, os artistas decidiram realizar uma exposição com as obras rejeitadas pelo júri de

seleção da Bienal, um Salon des Refusés do século 20.

Pouco tempo depois, em 1961, a Bienal alcançava o marco de dez anos em tempo de sua 6ª

edição. Chefiada por Mário Pedrosa, atuando como diretor artístico na edição comemorativa do evento,

a 6ª Bienal foi destacada na mídia da época por sua grandeza literal e figurativa25. Foram exibidos ao

total 4990 obras através da participação de 50 delegações internacionais (incluindo pela primeira vez

delegações africanas) e 681 artistas, além de serem inauguradas nessa edição as salas especiais.

Disputada desde o começo, era incontestável àquela altura a relevância da Bienal no meio artístico

contemporâneo, em termos locais e globais:

A Bienal era o elo forte da cadeia da arte brasileira com países voltados para a

arte “contemporânea”. Ao exibir obras de artistas estrangeiros ao público local

e mostrar uma parcela relevante da arte nativa aos visitantes vindos de fora, a

Bienal punha em conexão artistas, diplomatas, críticos, curadores,

25
VILLAS BÔAS, Glaucia. “A 6ª Bienal de São Paulo na berlinda”. Em MIYADA, op cit., 2022, p. 97.

19
colecionadores e historiadores da arte, ampliando os limites do mundo

artístico.26

Com uma bagagem considerável de experiências internacionais, Mário Pedrosa atentou-se à

essa relevância da Bienal ao orientar a 6ª edição em torno de um ideal modernista: a universalidade da

arte. Reunindo artefatos pré-históricos e obras contemporâneos, Pedrosa antecipou as práticas

curatoriais que tomariam força no final dos anos 1960. Essa tentativa de um discurso curatorial

relativamente precoce espantou o público e causou incompreensão na imprensa, resultando na

dificuldade em se produzir memória acerca dessa exposição27.

A realização da 6ª Bienal de São Paula, na marca de seus dez anos, foi sucedida por um fato

marcante na história da Bienal e das instituições e exposições de arte no Brasil: em 8 de maio de 1962,

a mostra internacional se desvencilha oficialmente da guarda do Museu de Arte Moderna, e é criada a

Fundação Bienal de São Paulo. Não cabe aqui a discussão em torno dos efeitos dessa separação sobre

o MAM São Paulo, cujo acervo, que vinha sendo constituído por obras emblemáticas (incluindo obras

de artistas como Matisse, Picasso e Kandinsky) através dos prêmios-aquisição da Bienal e importantes

doações (ver nota de rodapé nº 09), foi transferido à USP entre 1962 e 1963. Porém, vale destacar que

um dos motivos atribuídos à persistência de Ciccillo em relação a essa separação, prenunciada já em

1959 com o seu afastamento da presidência do MAM, advinha da vontade de desvincular o

financiamento das duas instituições28. Em 1962, a Bienal foi convertida em fundação privada, sob

presidência de Matarazzo, a partir de um projeto de lei escrito por Mário Pedrosa, que atuava como

secretário do Conselho Nacional de Cultura no governo de Jânio Quadros. Essa proximidade com a

autoridade pública continuou a favorecer a Fundação Bienal em sua arrecadação, agora individual, de

verbas e fomentos governamentais, enquanto o MAM foi obrigado a fechar suas portas e, por quase

uma década, sobreviveu somente o nome-fantasia da sua sociedade dirigente.

26
Ibid., p. 98.
27
Ibid., pp. 96-109.
28
MAGALHÃES, Ana Gonçalves & BROGNARA, Gustavo. “A Bienal de São Paulo: entre o museu e a
universidade”. Em MIYADA, op cit., 2022, p. 127.

20
Essa mudança na estrutura e no estatuto institucional da Bienal encerrava uma era de exposições

onde o caráter museológico ocupava um lugar inquestionável. Quando não foi efetiva a tentativa de

Walter Zanini, primeiro direto do Museu de Arte Contemporânea da USP (fundado a partir do antigo

acervo do MAM), de reestabelecer a ida das obras premiadas a um acervo de museu, no caso, do recém-

criado MAC-USP29, ficou clara a transformação institucional. Pouco tempo depois, essa transformação

foi agravada pelo cenário político e social no Brasil desencadeado pelo golpe militar de 1964. Uma

carta de 1965 encontrada no Arquivo Histórico Wanda Svevo da Fundação Bienal reforça a oficialidade

característica da Bienal. Na carta, o então reitor da Universidade de São Paulo, Luís Antônio de Gomes

e Silva, corresponde com o então presidente da república, Marechal Castello Branco, para tratar de um

ofício que havia expedido no ano anterior solicitando que a Fundação Bienal fosse declarada “de

utilidade pública”30.

29
Ibid., pp. 131-132.
30
Carta de Luiz Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da Universidade de São Paulo, ao Marechal Castello Branco,
ex-Presidente da República, 21 de maio de 1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo – Fundação Bienal de São
Paulo.

21
CAPÍTULO 2

A ditadura militar e a produção artística no Brasil

Depois do período democrático vivido no Brasil entre 1945 e 1964, o golpe militar armado contra

o governo do então presidente Jânio Quadros foi um baque intenso sobre todas as instituições do país,

afetando a sociedade de modo geral, em termos mais ou menos diretos. No período entre 1964 e 1985,

o país foi governado por cinco generais-presidentes e suas principais instituições democráticas foram

desprovidas de autonomia ou, em muitos casos, de funcionamento. Tão marcante quanto os ataques às

instituições foram os ataques do regime militar contra a própria população, que foi perseguida,

encarcerada, torturada e morta em números espantosos31.

O regime ditatorial dos militares impôs um sistema de repressão pautado pela importância da

“segurança nacional”, desrespeitando os direitos à liberdade e à manifestação civil. Após a extinção dos

partidos políticos em 1965, o regime militar elevou ainda mais o grau ditatorial ao reprimir o levante

de movimentos estudantis, que transbordavam nas ruas do país em 1968, com reações violentas e

truculentas por parte das forças policiais. Schroeder aponta que foi a partir de “um sentimento utópico

absoluto” que em 1968 “um interlúdio de liberdade tomou fôlego motivando manifestações

experimentais, artísticas e críticas. A contestação política de caráter esquerdista ganhava espaço [...]”32.

Foi diante dessa massificação da contestação política que o regime militar se viu acuado, e respondeu

com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que decretou o fechamento do Congresso, o afastamento dos

ministros do STF, a censura, as prisões em massa e a tortura sistemática contra presos políticos33. O AI-

5 marcou um agravamento decisivo do regime militar e ditatorial e acabou por radicalizar ainda mais

uma parcela da população que se colocava em oposição. As ações de guerrilhas urbanas melhoraram

sua organização operacional, armando-se cada vez mais e recorrendo a crimes, como os sequestros de

31
“500 mil cidadãos foram investigados pelos órgão de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão;
[…] dezenas de milhares de pessoas torturadas; […] 100 mil brasileiros exilados; […] 434 mortos pela
repressão, dos quais 243 estão desaparecidos [ainda]”. Ver MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil?
(vol. 2). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 16-17.
32
SCHROEDER, Caroline S. “A censura política às artes pláticas em 1960”. ArtEmbap – Anais do IX Fórum de
Pesquisa em Arte, Curitiba, 2013, p. 116.
33
MARTINS, op cit., p. 22.

22
embaixadores, para negociar a libertação dos presos políticos. A morte do líder guerrilheiro Carlos

Marighella, no final de 1969, porém, deu à ditadura ainda mais força para reprimir qualquer oposição.

Em termos da produção artístico-cultural, muitos escritores, músicos, artistas e cineastas tiveram

de enfrentar as práticas de censura exercidas pelo regime militar. Suas obras eram submetidas ao

escrutínio do regime, e para se esquivar da censura muitos usaram “e abusaram das metáforas,

inventaram as letras duplex, escreveram uma coisa e cantaram outra, criaram heterônimos, [...]

induziram censores a erros, esconderam recados em gritos e parolagens, gravaram canções com letras

diferentes no Brasil e no exterior, e por aí vai”34. Porém, no caso das artes visuais, as formas de

esquivamento não eram tão facilmente despercebidas, especialmente nas produções mais figurativas, e

muitas exposições de arte foram alvo de censura, especialmente no final da década de 1960. Schroeder

aponta que a censura, assim como outras estratégias de controle ideológico, foi utilizada pelo regime

militar “para silenciar pensamentos divergentes. [...] Aqueles que ousavam questionar a política dos

governantes militares, ou, então, produziam ‘leituras’ díspares da indicada pelo Estado sobre o Brasil e

os brasileiros, eram vistos como elementos subversivos que precisavam ser disciplinados”35.

De modo precedente e prenunciado ao decreto do Ato Institucional nº 5, um ato de censura marcou

a 9ª Bienal de São Paulo em 1967. Considerando a sua oficialidade como evento de projeção

internacional36 e que o seu financiamento advinha das instâncias governamentais37, a Bienal não poderia

estar isenta do regime de vigilância e repressão da ditadura militar, especialmente na edição que ficou

marcada como “Bienal do Pop” devido à poderosa presença de trabalhos da Pop Art estadunidense,

questão de extrema importância para o governo brasileiro e sua relação com os interesses geopolíticos

do país norte-americano38.

34
MARTINS, op cit., p. 31.
35
SCHROEDER, Caroline S. “X Bienal de São Paulo: Sob os efeitos da contestação”. Dissertação (mestrado) - São
Paulo: Escola de Comunicação e Artes/USP, 2011, p. 28.
36
“Aos olhos das autoridades, a Bienal funcionava como uma ‘vitrine’ do país para o mundo, tendo um papel a
cumprir no jogo das relações internacionais.” Ver SCHROEDER, Caroline S. “As Bienais ao fim dos anos 1960”.
Em MIYADA, Paulo (org.). Bienal de São Paulo: desde 1951. São Paulo: Bienal, 2022, p. 148.
37
SCHROEDER, op cit., 2011, p. 113.
38
“O Brasil, aos olhos do Departamento de Estado estadunidense, era peça chave na política externa da
década [de 1960]. Especialmente após a revolução cubana, as atenções viravam para o quintal do sul, onde
governos autoritários, porém anticomunistas, eram implantados com a ajuda de Washington. Seguindo a
lógica explicitada já em meados da década de 1940 pela Doutrina Truman, a política dos Estados Unidos era
dedicada à contenção da influência soviética.” NUNEZ, German Alfonso. “Melhor acender uma vela do que

23
De fato, na exposição, entraram em cena muitas das disputas ideológicas que circundam a Bienal

desde seu princípio, mas que haviam sido agravadas pelo contexto político daquele momento:

Durante um blecaute de quase meia hora, um grupo de pessoas entrou na sala

estadunidense e pichou a parede ao lado da obra de James Gill, Marilyn, com

dizeres como “Viva Guevara” e “Fora USA”. O trabalho de Richard Smith,

que havia ganhado o prêmio máximo do Itamarati, foi depredado. [...] Em anos

de Guerra Fria, essas confrontações mostram não apenas a força político-

cultural dos Estados Unidos – que ocupou novecentos metros quadrados do

pavilhão da Bienal, exaltando a arte pop – mas também a contundência política

das proposições artísticas brasileiras, que adotavam uma “nova figuração”, a

experimentação e a participação do público.39

Dialogando de modo tangente com as operações formais e conceituais da Pop Art, foram justamente

produções nacionais que sofreram censura. Antes da abertura da exposição, uma obra de Cybèle Varela,

O presente (1967/2018) (fig. 1), foi retirada do evento pela Polícia Federal por ordem do delegado

regional Gen. Silvio Corrêa de Andrade. Acreditando que corria perigo, a artista destruiu a obra após

ela ter sido devolvida pela polícia e deixou o país40. Além disso, outro ato de censura quase se realizou

contra a apresentação da série Meditação sobre a bandeira nacional (1966/67) (fig. 2), de Quissak Jr.,

que só não se concretizou devido à intervenção da diretoria da Bienal e sua intensa negociação com o

Ministério da Justiça, que, enfim, liberou a obra para a exposição41.

maldizer a escuridão: o boicote da representação estadunidense à X Bienal de São Paulo, entre dominantes e
dominados”. MODOS: Revista de História da Arte. Campinas, SP, v. 5, n. 2, p. 277.
39
SCHROEDER, op cit., 2022, pp. 148-151.
40
Ibid., p. 148. A obra foi reconstruída pela artista praticamente 50 anos depois, em 2018. Ver MIYADA, Paulo
et al. AI-5 50 anos: ainda não terminou de acabar. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2019, pp. 42-43.
41
Ibid., p. 149

24
Fig. 1 – Cybèle Varela, O presente (1967/2018)

25
Fig. 2 – Quissak Jr., série Meditação sobre a bandeira nacional (1966/67)

A partir dos anos 1960, ocorre uma retomada das linguagens figurativas na produção artística

brasileira e internacional. Porém, especificamente no Brasil, o figurativismo foi adotado no sentido de

um compromisso moral e político, entendendo que permitiria uma comunicação mais direta entre a obra

e seu espectador, especialmente quando o foco está em questões sociais e culturais, muitas vezes em

relação com a realidade urbana42. Com isso, o público seria estimulado a participar das críticas e

protestos imbuídos nas imagens e ativamente tomar uma posição diante do contexto político no país.

Tal possibilidade de participação, porém, não se restringiu apenas aos trabalhos de linguagem

figurativa, estando contida em outras formas visuais e estéticas, muitas vezes relativas à experimentação

conceitual (isso é especialmente pertinente no contexto da 10ª Bienal, como veremos no próximo

capítulo).

Diante da repressão e censura crescentemente sistematizadas pelo regime militar, muitos

artistas brasileiros viam-se no cruzamento indissociável entre sujeito, arte, política, ética, e sociedade,

42
CAVALCANTI, Jardel Dias. “Artes plásticas: vanguarda e participação política”. Dissertação (doutorado) –
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2005, p. 28.

26
à medida que todas essas esferas demandavam participação direta. Segundo Jardel Dias Cavalcanti, as

“[...] tensões do período se refletem inevitavelmente no pensamento artístico fazendo com que, para

muitos artistas, já não fosse mais possível permanecer numa pesquisa puramente estética, mas fazendo

com que suas obras apresentassem um claro engajamento político” 43. O poder de transformação contido

nesse engajamento reside na integração do espectador como agente de fruição da obra de arte. “Os

artistas buscavam um processo de comunicação cujo objetivo era, em última instância, uma intervenção

na realidade”44. Como possível herança das vanguardas do início do século, essa busca por uma

comunicação que atravessa a realidade em sentidos e camadas que muitas vezes se apodera da figura

ou do sujeito alcança tons máximos e plurais entre os anos 1960 e 1970 no Brasil, onde as linguagens

e formas empreendidas dirigem-se a uma nova noção de vanguarda.

Tanto O presente de Cybèle Varela quanto a série de Quissak Jr., Meditação sobre a bandeira

nacional, demandavam o engajamento político do próprio espectador à medida que somente a sua

manipulação constituiria a verdadeira proposição estética de sua forma. No caso da segunda obra, o

espectador deveria deslocar os painéis móveis a fim de criar diferentes combinações com os elementos

da bandeira. Ao deslocar os elementos e formalizar novas composições, manipular os painéis da obra

não seria mera interação física, pois o espectador atuaria no processo de reformulação do maior símbolo

nacional45, dialogando subjetivamente com as formas e cores que, fragmentadas, revelam a sua

construção implícita, seja ela libertadora – se favorece a identificação – ou opressora – se provoca

rejeição. Assim como no caso de O presente, de Cybèle Varela, em que a interação do espectador não

se restringe em responder à instrução “Abra-me”; ao abrir a singela caixa de madeira e encontrar uma

passagem do hino nacional (“Recebe o afeto que se encerra em nosso peito juvenil”) no interior de um

coração rosa, sobreposto a um militar minúsculo em trajes imensos, que chora rios de lágrimas, a sua

percepção é diretamente informada pelas imagens, figuras, cores, textos e subtextos que compõem a

ação sobre o objeto. São colocados em relação de conflito símbolos da ditadura militar (o hino nacional,

43
Ibid., p. 34
44
Ibid., pp. 33-34
45
O maior símbolo nacional em relação ao Brasil, é claro. Mas, independente da nacionalidade, o espectador
sempre estará submetido ao sistema internacional que prescreve as bandeiras como forma oficial de
identidade pátria, então a bandeira brasileira não deixaria de ser o maior símbolo nacional mesmo
internacionalmente.

27
as cores da bandeira, o domínio territorial, e o próprio militar) e a sensibilidade do sujeito submetido a

esses símbolos, que, por criatividade da autora, é estimulado pela sátira e pela ironia das sobreposições

e combinações alegóricas.

Não é de se surpreender que a Polícia Federal tenha considerado a obra de Cybèle Varela

antinacionalista46. Pelo o que esse e outros casos de censura evidenciam (abordaremos alguns outros

mais adiante), nos olhos do governo militar, ao qual estava submetida a PF, o uso dos símbolos

nacionais de qualquer forma que não evidentemente positiva seria tratado como uma afronta direta

contra nação – isto é, contra a autoridade nacional. Nesse contexto, a possibilidade de transformação da

realidade, verdadeiramente oferecida pela arte (“trans” – “formação” = “através” – “dar forma”), não

era aceitável. Afinal, a ditadura é incompatível com a consciência crítica acerca da realidade; com as

contestações e demandas de todas as ordens que certamente emergem de subjetividades variantes; com

as diferenças entre as formas que suscitam a vontade de transformação no sujeito e, consequentemente,

na sociedade.

Uma bibliografia relevante considera que essa relação entre estéticas e linguagens que

demandam a participação do espectador, e a sua potência como possibilidade de atravessamento

simbólico, e por vezes intencionalmente político, da realidade foi contundentemente estabelecida na

exposição Nova Objetividade Brasileira47, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em

abril de 1967, alguns meses antes da inauguração da 9ª Bienal de São Paulo. Não nos propomos, aqui,

a analisar as produções presentes nessa exposição ou a mostra em si; porém, ressaltamos que muitos

daqueles artistas que participaram da mostra no MAM-RJ também estiveram presentes na 9ª Bienal48,

46
“9ª Bienal de São Paulo”. Disponível em: <http://www.bienal.org.br/exposicoes/9bienal>. Acesso em 30 jun.
2022.
47
Ver CAVALCANTI, op cit., 2005, p. 34; FERREIRA, Glória. Arte como questão: Anos 70. São Paulo: Instituto
Tomie Ohtake, 2009, pp. 21, 33 e 35; MIYADA, Paulo et al. AI-5 50 anos: ainda não terminou de acabar. São
Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2019, p. 123.
48
Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Pedro Escosteguy, Nelson Leirner, Maurício Nogueira Lima, Avatar
Moraes, Marcello Nitsche, Sami Mattar, Glauco Rodrigues, Vera Ilce, Carlos Zilio, Antonio Manuel, Carlos
Vergara, Anna Maria Maiolino, Lygia Clark, e Rubens Gerchman são nomes que aparecem na ficha técnica da
exposição de 1967 no MAM-RJ e que também estiveram entre os artistas brasileiros na 9ª Bienal segundo o
catálogo da exposição. Ver Nova Objetividade Brasileira (por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural), 08 jan.
2018. Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento81894/nova-objetividade-brasileira>.
Acesso em 08 jul. 2022. Ver também IX Bienal de São Paulo – 1967. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,
1967.

28
fato que, considerando os fatores de tensão política daquela Bienal, acentua a possibilidade de uma

perspectiva política sobre a produção relacionada à exposição aqui introduzida. Um motivo para isso

talvez seja a proximidade dos artistas que configuravam a “nova objetividade” com o crítico Mario

Schenberg, um dos responsáveis pela seleção da representação brasileira na 9ª Bienal49.

Um texto publicado por Schenberg à época da inauguração da Bienal de 1967 destaca que “o

maior mérito do júri de seleção da IX Bienal de São Paulo foi ter compreendido o momento

revolucionário atual da arte brasileira e de ter dado prioridade às inovações, mesmo quando

apresentadas em obras com deficiências de execução”50. Em outro texto, Schenberg aponta que uma

“mudança radical no clima” desde o começo da década de 1960 deu espaço para “poderosas tendências

para manifestações pop e neodadaístas, associadas com obras de marcado conteúdo político e social”,

especialmente a partir do golpe militar em 196451. Essas tendências, segundo o crítico, conduziram ao

movimento brasileiro de arte conceitual, em detrimento das tendências construtivistas, que entravam

em “debilitação”. Semelhantemente, Cristina Freire argumenta que a emergência da arte conceitual no

Brasil se deu justamente diante do enrijecimento e cerceamento institucional das artes visuais no

período da ditadura militar, o que se traduziu em acentuamento político na produção brasileira daquelas

décadas: “foi o deslocamento das práticas das instituições artísticas oficiais para o domínio social e

político que tornou necessária a substituição do objeto de arte pelas operações conceituais”52.

No catálogo da exposição de 1967 no MAM-RJ, o texto de Hélio Oiticica, “Esquema geral da

nova objetividade”, discute e elucida alguns aspectos dessa produção revolucionária e experimental.

Esse texto é especialmente relevante pois nele convergem diversas discussões em voga no período

49
Na conclusão do texto no catálogo da exposição, Hélio Oiticica explica: “Mário Schenberg, numa de nossas
reuniões, indicou um fato importante para nossa posição como grupo atuante: hoje, o que quer que se faça,
qualquer que seja a nossa demarche [sic], se formo um grupo atualmente, realmente participante, seremos
um grupo contra coisas, argumentos, fatos. [...] No Brasil [...] hoje, para se ter uma posição cultural atuante,
que conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo, que seria em suma o conformismo cultural,
político, ético, social. Dos críticos brasileiros atuais, 4 influenciaram com seus pensamentos, sua obra, sua
atuação em nossos setores culturais, de certo modo a evolução e a eclosão da ‘nova objetividade’ [...] são eles:
Ferreira Gullar, Frederico Morais, Mário Pedrosa e Mário Schenberg.” Ver OITICICA, Hélio. “Esquema geral da
nova objetividade”. Em BARATA, Mario et al. Nova objetividade brasileira. Rio de Janeiro: Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, 1967.
50
SCHENBERG, Mário. “A representação brasileira na IX Bienal”, Correio da Manhã, 17 set. 1967.
51
SCHENBERG, Mário. Pensando a arte. São Paulo: Nova Stella, 1988, p. 216.
52
FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 12.

29
(como a superação dos suportes convencionais, a negação do objeto da arte, a atitude “antiarte” e a

crítica institucional, por exemplo), estando centralizado um debate que busca refutar a suposta

autonomia da obra de arte em face da participação ativa do espectador na obra, fazendo convergir

criticamente as dimensões da política e da arte naquele contexto.

Segundo Oiticica, a “Nova Objetividade” poderia ser definida como

[...] a formulação de um estado típico da arte brasileira de vanguarda atual,

cujas principais característica são: 1 – vontade construtiva geral; 2 – tendência

para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete; 3 – participação

do espectador (corporal, tátil, visual, semântica etc.); 4 – abordagem e tomada

de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5—tendência

para proposições coletivas e consequente abolição dos “ismos” característico

da primeira metade do século na arte de hoje [...]; 6 – ressurgimento e novas

formulações do conceito de antiarte.53

Na sequência do texto, o artista difere essa definição de “Nova Objetividade” de duas grandes

correntes internacionais do período, Pop e Op, ao ressaltar que se trata de uma característica do “estado

típico da arte brasileira atual”54. Com isso, o destaque dado para a relação com o presente e o fator local

coloca a definição proposta pelo artista em diálogo direto com o contexto da ditadura militar brasileira.

Ainda que o caso de censura na 9ª Bienal de São Paulo só aconteceria meses depois, as características

listadas no “manifesto” de Hélio Oiticica (especialmente 3, 4 e 5) demonstram que as obras da

exposição, de alguma forma ou de outra (na introdução do depoimento, Oiticica ainda destaca a

53
OITICICA, op cit., 1967.
54
Sobre a diferença entre a nova figuração ou nova objetividade brasileira e a Pop Art estadunidense, Paulo
Venâncio Filho afirma que os brasileiros, “na impossibilidade de encontrar os signos e as imagens produzidos
pela sociedade de massas, tentavam ‘iconologizar’ o grotesco da recente sociedade urbana brasileira: seus
sonhos, suas desilusões, suas ânsias, suas injustiças, e sua miséria. Dessa maneira, ainda persistia um resíduo
de afeto, inevitável sentimentalismo, nada equivalente ao radical cinismo e à indiferença das imagens pop [dos
EUA] que anunciavam o novo estágio da civilização da imagem”. Citato em LONGO, Celso. “Entre a poética do
frágil: abordagens gráficas e estratégias de comunicação na vanguarda brasileira dos anos 1960”. Em RIBEIRO,
José Augusto et al. Vanguarda brasileira dos anos 1960 – Coelção Roger Wright. São Paulo: Pinacoteca de São
Paulo, 2017, p. 139.

30
multiplicidade e a “falta de unidade de pensamento” como características importantes da Nova

Objetividade), se colocam em relação de embate ou subversão dos “problemas políticos, sociais e

éticos” daquele tempo. Isso sem ignorar as implicações formais, conceituais, estéticas e históricas dessa

relação, tangentes ao campo ideológico, à noção de vanguarda e ao potencial próprio de transformação

carregado pelo objeto de arte.

A produção de muitos artistas naquele contexto, incluindo alguns dos artistas presentes na

exposição “Nova Objetividade Brasileira” e na 9ª Bienal de São Paulo, evidentemente assumia

perspectivas críticas acerca da realidade e suas condições políticas, como em trabalhos como Reina

tranquilidade, de Carlos Zilio, e Operação tartaruga, de Pedro Escosteguy. Tais perspectivas

frequentemente tratavam da resistência em oposição ao totalitarismo; uma resistência no sentido da

liberdade individual e, ao mesmo tempo, da atuação coletiva. O artista, indivíduo livre, demanda a

participação do espectador na realização da obra, e a multiplicidade de possibilidades para tal

participação opera algum grau de resistência e oposição política contra as ações repressores e

homogeneizantes da ditadura militar. Resistência e oposição que são orientadas, portanto, pela

experimentação livre e politizada das formas estéticas, seja se apropriando de signos da comunicação

em massa, seja radicalizando a subjetividade no âmbito coletivo da sociedade e da cultura55, tendo como

destino comum a utopia (cujo processo é naturalmente a revolução entre todos), pois coloca as formas

em função de transformações desejadas, individual ou coletivamente, para a realidade.

A experimentação associada à Nova Objetividade e outras tendências da produção artística

brasileira no período da ditadura militar se dá em instâncias que coexistem nas dimensões de uma arte

crítica e de uma politização da arte. A liberdade dessa experimentação está contextualmente associada

à consciência crítica do indivíduo e, ao mesmo tempo, a ideologias, instituições e outros fatores

coletivos, cuja convergência pode ser exemplificada pelo caráter de manifesto do texto de Hélio Oitica

no catálogo da exposição “Nova Objetividade Brasileira”. Segundo Miguel Chaia, num espectro

mutuamente direcionado entre arte e política, que, sob o domínio comum da práxis humana e do público,

movimentam os sentidos entre liberdade e poder, a situação chamada como “arte crítica” consistiria em

55
CAVALCANTI, op cit., 2005, p. 35

31
uma percepção do objeto como mais próximo da arte do que aquilo que seria tipicamente político, pois

propõe uma revolução da linguagem enfatizando a liberdade individual do artista. Por outro lado, a

“politização da arte”, ao incorporar no objeto uma dimensão pragmática em função da revolução

(transformação) social, caracteriza o encontro do qual resulta a fusão do indivíduo com o institucional,

deslocando a liberdade para o plano ideológico e coletivo56. A arte que se relacionar a uma ou a outra

dessas caracterizações inegavelmente se coloca “como uma das possibilidades de interrupção da

tendência de cisão da vida, respondendo às reduções e impedimentos colocados pela sociedade”57.

Se a cultura é a regra, e a arte é a exceção, e a regra quer matar a exceção, no contexto de uma

arte produzida sob ditadura, não obstante militar, a possibilidade de se responder às imposições da

cultura oficial através da arte ou da experiência artística não era somente excepcional, como também

era tratada como ameaça ideológica e passou a oferecer sérios riscos para muitos artistas. Após as

tentativas de censura, bem e malsucedidas, na 9ª Bienal de São Paulo em 1967, e possivelmente em

reação ao teor político da produção artística do período, o regime militar consolidou de forma

institucional a censura a manifestações de cunho poético, artístico ou cultural com o decreto do AI-5

no final de 1968. Tendo como prerrogativa a preservação e manutenção da cultura oficial, o AI-5 se

apresentou de imediato como um mecanismo de repressão dos artistas interessados em posicionar

política e criticamente seus trabalhos.

Cerca de uma semana após o decreto do AI-5, oficializado em 20 de dezembro de 1968, a

repressão e a censura marcaram a realização da 2ª Bienal da Bahia, também conhecida como 2ª Bienal

Nacional de Artes Plásticas. Essa Bienal dedicava-se à produção brasileira contemporânea,

especialmente aquela externa ao eixo Rio-São Paulo, e era patrocinada pela Secretaria da Educação e

Cultura. Na noite de abertura da exposição, o governador da Bahia proferiu um discurso quando teria

dito que “toda arte jovem tem de ser revolucionária” e que “a liberdade caracteriza a arte”, irritando os

militares58. Além disso, segundo Juarez Paraíso, um dos organizadores da mostra, uma autoridade da

56
Ver CHAIA, Miguel. “Arte e política: situações”. Em CHAIA, Miguel (org.). Arte e política. Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2007, pp. 13-39.
57
Ibid., p. 39
58
OLIVA, Fernando. “3ª Bienal da Bahia: refazendo tudo” Em CYPRIANO, Fabio & DE OLIVEIRA, Mirtes Marins
(org.). Histórias das Exposições/Casos Exemplares. 2ª reimpr. São Paulo: EDUC, 2017, pp. 83-84.

32
Secretaria da Educação teria tentado censurar obras consideradas “subversivas” ainda antes da

inauguração59. Na manhã seguinte da abertura, a exposição foi fechada. Não se sabe ao certo se o

fechamento foi realizado pela Polícia Federal ou pelo próprio governo do estado da Bahia, receando

represálias60. Seus organizadores foram encarcerados por trinta dias, obras “ofensivas” foram

apreendidas, e a exposição reabriu em meados de janeiro de 1969, sem seus dirigentes originais e sem

as obras censuradas.

Um outro caso de censura ocorreu em maio de 1969, e este foi especialmente significativo para

o desencadeamento do movimento de boicote que marcou a 10ª Bienal de São Paulo. Encarregado de

realizar a seleção de artistas que representariam o Brasil na 6ª Bienal de Jovens de Paris, o Museu de

Arte Moderna do Rio de Janeiro produziu uma pré-exposição com as obras selecionadas, a fim de

apresentá-las ao público brasileiro. Porém, horas antes da inauguração, a exposição foi desmontada por

ordem do Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, sem muitas explicações61. “Os

trabalhos dos artistas foram então desmontados, encaixotados e guardados em um depósito”62. Segundo

Aracy Amaral, foi a junção desse episódio de censura com outros, como o da 2ª Bienal de Bahia, que

levou à Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), presidida à época por Mário Pedrosa, a votar

um manifesto de repúdio a qualquer limitação ao livre exercício da criação artística e da crítica,

recomendando seus associados “a se recusarem a tomar parte no julgamento de concursos promovidos

pelo governo, devido às atitudes coercitivas do último”63. Essa manifestação, segundo Amaral, estaria

no centro do movimento de boicote internacional.

59
Juarez Paraízo em entrevista para Revista Bahia, 2005, citado em SCHROEDER, Caroline, op cit., 2013, p. 119.
60
Ibid., p. 120
61
“Itamarati cancela mostra no Museu”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 de maio 1969, citado em
COUTO, Maria de Fátima Morethy. “Brasileiros nas Bienais de Paris (anos 1960)”. VIS – Revista do Programa de
Pós-graduação em Arte da UnB, vol. 15, nº 2, jul.-dez. 2016, p. 161.
62
SCHROEDER, op cit., 2013, p. 120.
63
AMARAL, Aracy. “O boicote à X Bienal: extensão e significado”, 1970. Em AMARAL, Aracy. Arte e meio
artístico: entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983. p. 155.

33
CAPÍTULO 3

A 10ª Bienal de São Paulo e a liberdade em disputa

Como vimos até aqui, o contexto político e artístico no Brasil durante a ditadura militar

colocava em disputa as exposições de arte, tomadas por artistas que, em exercício de liberdade,

posicionavam-se contra o regime, e que, por isso, foram em muitos casos censurados e reprimidos. Em

1969, a Bienal de São Paulo realizaria a sua 10ª edição, marco significativo para uma exposição tão

ambiciosa e significativa em termos locais e globais (ainda era a única exposição bienal internacional

do sul global). Matarazzo tinha planos de “fazer da X Bienal, em 1969, algo que marque uma época nas

artes e no intercâmbio cultural entre nações, acima de partidos e ideologias”, e para isso contaria com

o apoio das autoridades públicas64. Porém, diante do agravamento das condições para a manifestação

artística sob a sombra do AI-5, e considerando o caráter oficial do evento (como demonstramos no

primeiro capítulo e no começo do segundo ao tratar da 9ª Bienal de São Paulo), artistas e críticos mais

uma vez colocaram a Bienal sob disputa, entendendo que a participação em sua 10ª edição significaria,

naquele contexto, conivência com as instâncias de poder governamental que se promoviam através da

realização da mostra65.

Aqui não nos interessa investigar todos os fatores e elementos que implicaram na difícil

realização da 10ª Bienal. Caroline Saut Schroeder realizou um excelente trabalho em sua tese de

mestrado, “X Bienal de São Paulo: sob os efeitos da contestação”, ao investigar toda a história dessa

exposição e todos os pormenores da sua realização, assim como a recepção da mídia. Interessa-nos, na

verdade, discorrer acerca das aproximações entre arte e política constatadas tanto no movimento de

boicote, suas adesões estrangeiras e internacionais, quanto na participação contundente de determinados

artistas na exposição. Com isso, buscaremos elucidar que o caráter público que caracteriza uma

64
“Dois anos até a outra Bienal”. O Estado de São Paulo/Jornal da Tarde, São Paulo, 9 jan. 1968, citado em
SCHROEDER, Caroline S. “X Bienal de São Paulo: Sob os efeitos da contestação”. Dissertação (mestrado) - São
Paulo: Escola de Comunicação e Artes/USP, 2011, p. 54.
65
Além de contar com os canais de comunicação oficiais do Itamaraty para organizar a vinda de
representações estrangeiras, a Bienal também era majoritariamente financiada pelas diferentes instâncias do
poder público, sendo três quintos dos seus gastos pagos pelos três níveis de governo. ARTIGAS, 2001, p. 66,
citado em SCHROEDER, op cit., 2011 p. 44

34
exposição é o mesmo que faz convergir as esferas da arte e da política, propiciando, assim,

possibilidades de transformação livre da realidade.

Fig. 3 – Cartaz da 10ª Bienal de São Paulo (1969), autoria de Maria Argentina Bibas

3.1. Um manifesto de ausência: a adesão ao boicote

Com o encerramento da mostra no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a divulgação

de outros casos de censura no exterior, iniciou-se um boicote internacional em junho de 1969, com uma

35
reunião de artistas e críticos de arte franceses no Museu de Arte Moderna de Paris. A reunião produziu

o manifesto Non à la Biennale (fig. 4), com texto original em francês, “baseado na declaração de

testemunhas e na documentação relativa à censura no Brasil”66. O texto do manifesto listava cinco

motivos para a recusa geral:

1. Desde Maio 1968, um grande número de intelectuais e artistas tomou posição

contra a colaboração com a “cultura oficial” na medida em que ela se coloca do

lado da repressão. Concernente a São Paulo, esse conluio é ainda mais evidente.

2. O obscuro e misterioso sistema de seleção das Bienais é sempre o mesmo. Há

dois ou três personagens oficiais que tomam as decisões, sem a menor consulta

dos interessados, sem nenhum esboço de debate coletivo. Temos que aceitar e

silenciar. Este meio artístico é governado por patrões poderosos que não são

minimamente autorizados pelos profissionais.

3. Mesmo se esforçando, não podemos ignorar indefinidamente a terrível situação

repressiva do Brasil, as perseguições que dominam as massas, os militantes

políticos, os intelectuais e os artistas. Não podemos deixar passar indefinidamente

em silêncio as interdições e censuras de todos os tipos que amordaçam o povo

brasileiro, os inúmeros roubos de fatos materiais e morais contra aqueles que se

recusam a seguir docilmente o governo militar.

4. A Bienal de São Paulo (como muitas outras instituições culturais) se mostra em

sua verdadeira intenção. Ela está inteiramente a serviço do poder. É a tela cultural

que tenta mascarar a repressão. Ela própria participa dessa repressão ao se recusar

a expor trabalhos com tema “imoral” ou “subversivo”. Ela tem por função –

através da participação internacional – de sancionar a política ditatorial dos

66
AMARAL, Aracy. “O boicote à X Bienal: extensão e significado”, 1970. Em AMARAL, Aracy. Arte e meio
artístico: entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983, p. 156.

36
generais. Aqui novamente o velho truque: a cultura “liberal” serve como tela de

fumaça à violência fascista.

5. Uma primeira seleção feita por M. Gassiot-Talabot recusou-se inteiramente a

participar da Bienal, Yvon Taillandier achou que deveria substitui-la. Ele e os

artistas que aceitaram entrar nessa jogada, que escolheram ir contra a decisão de

seus camaradas, só podem ser considerados como “Amarelos” – a serviço da

reação.

Por essas razões enumeradas aqui, e em solidariedade aos artistas franceses e

estrangeiros que se recusaram a participar da Bienal de São Paulo, nós pedimos a

demissão de Yvon Taillandier, como comissário francês67, e afirmamos que a

única legítima representação francesa à São Paulo será nossa recusa coletiva,

livremente discutida e aceita pelos abaixo-assinados.

Em Paris, 16 Junho 1969.68

67
Um adendo de 1º de julho ao manifesto indica que o comissário francês se demitiu de seu posto, recusando
a participação na 10ª Bienal, assim como a totalidade dos artistas selecionados por ele. Ver MIYADA, Paulo et
al. AI-5 50 ANOS - Ainda não terminou de acabar. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2018, p. 151.
68
Tradução do francês para o português retirada de ibid., p. 149.

37
Fig. 4 – Capa do manifesto Non à la Biennale (1969)

Resumidamente, os motivos consistiam de uma posição contra a “cultura oficial” representada

pela Bienal de São Paulo, na medida em que ela possuía laços institucionais com “o lado da repressão”;

contra o critério de seleção utilizado pela Fundação que não considerava um debate coletivo “com os

interessados”; contra a situação repressiva no Brasil, considerando os casos de censura que se

amontoavam; e contra a suposta censura da própria Fundação Bienal, a quem foi atribuída a autoria de

uma circular recomendando a exclusão de obras de motivos eróticos e políticos da seleção para a 10ª

38
Bienal. A autoria dessa circular, porém, foi veemente negada pela Fundação Bienal69. Ainda, é relevante

notar que os motivos elaborados no manifesto de boicote se direcionam inicialmente às bienais de modo

geral, aludindo, ainda, aos protestos de maio de 1968. A relação destes com a 34ª Bienal de Veneza,

realizada naquele ano, será brevemente discutido no quarto e último capítulo.

Outro ponto importante do manifesto é seu teor acusatório sobre o controle exercido por “dois

ou três personagens” na realização das mostras bienais. De fato, no caso da Bienal de São Paulo, Ciccillo

Matarazzo detinha grande poder sobre todas as decisões da Fundação. Após pressão de entidades do

meio artístico brasileiro que pediam mudanças na exposição e a participação efetiva de profissionais

qualificados na sua realização, Matarazzo aceitou a criação de um “Conselho Artístico”, composto por

membros da ABCA e da Associação Internacional de Artistas Plásticos (AIAP) que produziriam

reformulações na estrutura da exposição e em seu regulamento70. Porém, ao indicar o crítico Mário

Schenberg para compor a comissão de premiação internacional da 10ª Bienal, a Comissão recebeu a

recusa de Matarazzo, “receoso das consequências políticas” para a instituição que possuía um vínculo

significativo com o poder público71. A recusa a Schenberg seria devido ao fato de ele ser membro do

partido comunista e ter sido preso logo após o golpe em 1964. Voltaremos à figura de Schenberg um

pouco mais adiante, pois, mesmo vetado, ele ainda teve um papel importante na realização da 10ª

Bienal, assumindo a seleção dos artistas brasileiros. Porém, após essa recusa, alguns integrantes da

Comissão pediram demissão e, aos poucos, ela se desfez72.

O manifesto Non à la Biennale se adicionou às recusas que já chegavam nas correspondências

da Fundação Bienal73. Antes mesmo da publicação do manifesto, em 16 de junho, Bulgária74 e

Dinamarca75 já haviam recusado a participação na exposição de artes por motivos diversos. Porém,

69
SCHROEDER, Caroline S. “A bienal em xeque e o estopim do boicote: sobre algumas estratégias radicais”. 25º
Encontro da ANPAP “Arte: seus espaços e/em nosso tempo”, Porto Alegre, set. 2016, p. 2278.
70
Ibid pp. 2274-2277 e SCHROEDER, op cit., 2011, pp. 54-64.
71
SCHROEDER, op cit., 2011, p. 65.
72
SCHROEDER, op cit., 2016, p. 2278.
73
Diversos telegramas e cartas do Arquivo Histórico Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo foram
consultados pela pesquisadora em 2019 e 2022.
74
Telegrama da União de Artistas Pintores da Bulgária, 17 de maio de 1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo -
Fundação Bienal de São Paulo
75
Carta do Cônsul Geral da Dinamarca a Matarazzo, 31 de março de 1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo -
Fundação Bienal de São Paulo

39
foram as assinaturas do manifesto, que reuniu artistas de mais de 10 países, incluindo o Brasil, que

consolidaram o desfalque de importantes representações nacionais, como a francesa e a estadunidense.

A primeira estava sendo organizada pelo celebrado crítico Pierre Restany, que em 10 de junho de 1969

escreveu uma carta a Matarazzo expressando sua estima por ele, mas manifestando-se contrário às

calamidades da ditadura militar no Brasil e, por uma questão de consciência, via-se obrigado a se retirar

da realização da 10ª Bienal. Restany idealizava a realização de uma Sala Especial dedicada à Arte e

Tecnologia, porém, os artistas selecionados de vários países se juntaram à recusa do crítico e muitos

deles assinaram o manifesto elaborado em Paris. A representação estadunidense era organizada por

Gyorgy Kepes que realizou grandes esforços para contornar limitações financeiras e as diversas recusas

dos artistas convidados, incluindo o expoente Hans Haacke76. Por fim, não houve uma representação

estadunidense na exposição de artes visuais, mas foi realizada no Parque Ibirapuera, como programação

paralela à 10ª Bienal, uma mostra sobre energia atômica patrocinada pelos Estados Unidos77. As

delegações da Holanda, Suécia, União Soviética, Bélgica, Inglaterra, Venezuela78, México e Chile

também não compareceram integralmente na exposição.

Quanto à participação brasileira, dos vinte e cinco artistas inicialmente convidados para integrar

a representação nacional, que iria conter, no limite, 50 artistas, apenas oito aceitaram participar79. As

primeiras vinte e cinco cartas de convite foram enviadas pela Fundação Bienal em junho de 1969, dando

pouco mais de três meses para os artistas prepararem as suas obras para a exposição. Além disso, o

envio desses convites coincidiu com a reunião no Museu de Arte Moderna de Paris, onde foi produzido

e assinado o manifesto Non à la Biennale. Assim, é difícil discernir quais recusas realmente estavam

relacionadas ao boicote internacional, que ia tomando forma nacional. Considerando o contexto de

repressão ideológica, artistas podem ter se utilizado de qualquer outro motivo para não aderir

explicitamente ao boicote, como foi o caso de Rubens Gerchman, que após aceitar inicialmente o

76
Ver NUNEZ, German Alfonso. “Melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão: o boicote da
representação estadunidense à X Bienal de São Paulo, entre dominantes e dominados”. MODOS: Revista de
História da Arte. Campinas, SP, v. 5, n. 2, pp. 272-291.
77
“‘Átomos em ação’ dia 17 de outubro no Ibirapuera”. Diário Popular, 24 set. 1969.
78
Apesar dessa delegação contar do catálogo da exposição, Schroeder indica que as obras foram desmontadas
e retornadas ao país pouco antes da abertura da mostra. Ver SCHROEDER, op cit., 2011, p. 165.
79
Ibid., p. 137.

40
convite, voltou atrás e recusou alegando ausência do país no período. Gerchman, porém, “esteve

presente no Museu de Arte Moderna de Paris, em 16 de junho, quando assinou o manifesto contra a

mostra”80. Podemos, assim, atestar o boicote como motivo da recusa no caso dos artistas brasileiros que

assinaram o manifesto, como Sérgio Camargo, Lygia Clark, Rubens Gerschman, Antônio Dias e Hélio

Oiticica – todos residindo fora do país na época81. Aracy Amaral, inclusive, aponta que teria sido “mais

fácil para os artistas brasileiros que viviam no exterior recusar sua presença na Bienal”82, o que pode

estar relacionado com o acesso desses artistas a outras oportunidades de exposição, enquanto aqueles

que estavam no país tinham de lidar com as restrições do regime ditatorial na maioria dos contextos

públicos. Por outro lado, não é correto associar todas as recusas ao protesto, especialmente no caso

daquelas que se deram em decorrência do pouco tempo disponível para preparem as suas obras, como

foi o caso explícito dos artistas Mary Vieira83 e Willys de Castro84.

Com isso, é pertinente retomar a noção proposta por Miguel Chaia acerca da politização da

arte. Ainda que não se trate propriamente de uma produção artística, o manifesto Non à la Biennale e o

movimento de boicote como um todo produz um caso de politização da arte, mais que de arte crítica,

pois atribui ao objeto artístico uma dimensão pragmática em função da revolução (transformação)

social, deslocando a liberdade para o plano ideológico e coletivo. Isso se dá na medida em que a recusa

coletiva em participar da exposição, isto é, a recusa em exibir objetos de arte ao público, é acarretada

pela percepção que a dimensão pragmática dos objetos não seria possível, especialmente considerando

que muitos dos artistas brasileiros que aderiram ao boicote desenvolviam produções altamente

engajadas com a transformação social e críticas, do ponto de vista do conhecimento. Basta nos

lembrarmos das proposições de Hélio Oiticica em “Esquema geral da nova objetividade”, tratadas no

80
Ibid., p. 142.
81
Ibid., pp. 77-78.
82
AMARAL, op cit., 1983, p. 156.
83
Carta de Mary Vieira a José Humberto Affonseca, ex-diretor da Fundação Bienal de São Paulo, 27 de julho de
1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo - Fundação Bienal de São Paulo.
84
Carta de Willys de Castro à Fundação Bienal de São Paulo, 21 de julho de 1969. Arquivo Histórico Wanda
Svevo - Fundação Bienal de São Paulo.

41
capítulo 2. “Artista e obra incluem-se no fluxo de propagação difusa de algum projeto político, sem

deixar-se apanhar completamente pela rede do poder centralizado e impositivo de alguma instituição”85.

A recusa a participar da exposição constitui também uma atitude que promove a ideia de que,

sem a total garantia de liberdade artística e crítica (teoricamente impossibilitada pelo contexto de

ditadura), o objeto de arte não poderia realizar qualquer transformação. De fato, “o artista politiza sua

arte ao privilegiar seu papel de militante”86, o que, na situação do boicote à 10ª Bienal, leva-o a agir por

fora de sua produção, agenciando a própria imagem e perfil de artista para reivindicar seu

posicionamento político, de modo que a participação na exposição significaria uma direta concordância

com o contexto político do país, enquanto a recusa a participar conotaria o oposto.

Essa lógica, porém, não é unívoca. Num momento de cerceamento da liberdade, onde os

encontros e as experiências verdadeiramente livres no espaço público só eram possíveis no silêncio do

pensamento de cada um, a ausência de um objeto de arte com potencialidade transformadora acaba por

ampliar a distância entre a arte e a vida, resultando na impossibilidade do público espectador em

apreender uma unidade possível entre ética e estética e, assim, produzir pensamento e conhecimento

crítico acerca de sua realidade. A recusa em promover experiências a um público carente de autonomia,

reprimido pela censura do Estado, pode ser uma maneira, também, de negar qualquer possibilidade de

revolução, individual ou coletiva. Se, de um lado, os adeptos do boicote se mobilizaram como uma

forma de resistência às estruturas de poder (a Bienal e os governos totalitários) utilizando-se da

liberdade individual para atuar coletivamente, de outro, a não-presença de suas produções constitui, de

certo modo, uma instrumentalização política da arte, que compromete, como fator de contingência, a

conscientização crítica do público espectador, impossibilitado de participar da fruição artística. Isso, de

certo modo, pode constituir algum grau de contradição em relação à produção de boa parte dos artistas

brasileiros que aderiram ao boicote, à medida que, relembrando as questões tratadas no capítulo 2, a

participação ativa do espectador era uma proposição central da arte engajada no período da ditadura

militar. Nesse sentido, Aracy Amaral comenta que “muitos daqueles que se recusaram a participar da

85
CHAIA, Miguel. “Arte e política: situações”. Em CHAIA, Miguel (org.). Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2007, p. 24.
86
Ibid. pp. 24-25.

42
mostra ficaram consideravelmente desiludidos quando ela foi oficialmente inaugurada, como se nada

tivesse acontecido, e o público permaneceu sem saber o que se passara nos meses precedentes”87.

Não é possível supormos o que seria diferente na história acerca da 10ª Bienal de São Paulo

caso não houvesse o boicote. Definitivamente, o endurecimento da ditadura fez com que a dimensão

participativa e engajada da produção de muitos artistas se tornasse um risco à sua segurança, e a ação

coletiva do boicote talvez fosse a única saída possível na sua percepção. Mas é fato que o movimento

de ausência, por mais que não tenha inviabilizado a realização da mostra, marcou a sua narrativa

histórica, e pouco se discute hoje acerca dos possíveis significados e aproximações entre arte e política

que se fizeram presentes, de maneira material e efetiva, na exposição.

Pretendemos, a seguir, contribuir para essa discussão, tratando brevemente da participação dos

artistas Claudio Tozzi e Marcello Nitsche, e discutindo de maneira mais detida a participação de Mira

Schendel. A escolha por esses três artistas se dá pelas diferenças significativas entre suas linguagens e,

também, coincide com duas constatações: a proximidade deles com o crítico Mário Schenberg, que

atuou na seleção dos artistas brasileiros para a 10ª Bienal e publicou textos críticos sobre os três em seu

livro “Pensando a arte” (Nova Stella, 1988); e a presença de obras dos três artistas na Coleção Roger

Wright, dedicada à vanguarda brasileira dos anos 1960 e suas diversas possibilidades de significação

política88.

3.2. Contraponto da liberdade: a participação de Mira Schendel e outros artistas brasileiros

Antes de abordarmos as participações contundentes para a relação entre arte e política na

exposição da 10ª Bienal de São Paulo, acreditamos ser válida uma discussão inicial acerca de um texto

publicado pelo filósofo Vilém Flusser no jornal O Estado de S. Paulo no dia da inauguração da

exposição, em 27 de setembro de 1969.

87
AMARAL, op cit., 1983, p. 155.
88
Ver RIBEIRO, José Augusto et al. Vanguarda brasileira dos anos 1960 – Coelção Roger Wright. São Paulo:
Pinacoteca de São Paulo, 2017.

43
No artigo intitulado “As Bienais de São Paulo e a vida contemplativa”, o filósofo, que era

radicado no Brasil à época, e pela proximidade com artistas e críticos certamente tinha conhecimento

das diferentes circunstâncias que rodeavam a realização da mostra naquele ano, propõe-se a responder

três perguntas: “(1) Que é uma exposição? (2) Que é uma exposição bienal? e (3) Que é uma exposição

bienal em São Paulo?”. A pertinência desses questionamentos no momento da abertura de uma

exposição que sofria um movimento de boicote é incontestável, e as respostas sugeridas pelo autor são

significativas para entendermos as implicações da ausência e da presença na mostra, considerando o

que ele entende como sendo a finalidade ideal de uma exposição: o seu paciente (o público espectador)

e a vida contemplativa. Os conceitos introduzidos por Flusser, buscaremos demonstrar neste e no

próximo capítulo, contribuem para a reflexão acerca das relações entre arte e política na história das

exposições abordadas.

Respondendo à primeira pergunta, “Que é uma exposição?”, Flusser se atem ao termo

“exposição” na língua portuguesa, à medida que ele conota, necessariamente, um contexto: “alguém

põe algo, anteriormente escondido, em lugar aberto, a fim de que esse algo possa ser encontrado por

alguém outro”. Esse contexto é constituído de elementos – “(a) um lugar público, (b) um agente que

põe, (c) um objeto posto, e (d) um paciente que encontra” – os quais se estruturam numa hierarquia

valorativa em que “o lugar (a) serve de base, sobre a qual o agente (b) serve o objeto (c) ao paciente (d)

[...] O propósito do lugar é o agente, e o propósito do agente é o paciente”. Com isso, Flusser entende

que a definição de “exposição” compreende uma escala de valores, na qual:

[...] o degrau inferior e fundamental é ocupado pelo lugar (inclusive por tudo

que tem a ver com o lugar, como edifícios, meios financeiros, organizadores,

planejadores e administradores), o degrau intermediário é ocupado pelo agente

(por exemplo por artistas), e o degrau supremo é ocupado pelo paciente (por

exemplo por visitantes ou ouvintes).

44
Se aplicarmos essa escala de valores estratificada por Flusser ao contexto da Bienal de São

Paulo, constatamos que a Fundação e suas condições materiais para a execução da mostra estariam no

degrau mais baixo da hierarquia, o qual o autor sugere chamar de “economia”; os artistas, que se

agenciaram de poder ao realizarem o movimento de boicote, estariam no degrau intermediário, chamado

de “política ou vida ativa”; e o público, de certo modo ignorado ou subestimado nas disputas entre o

“lugar” e os “agentes” constatadas ao longo da história da Bienal, e especialmente na história da sua

10ª edição, seria aquele que, de fato, ocupa o degrau final, o degrau “supremo” na estrutura que dá valor

a uma exposição e que Flusser chama de “teoria ou vida contemplativa”. Nesse sentido, o filósofo

comenta que “tanto a administração quanto os artistas tendem a esquecer o degrau que ocupam na

hierarquia da exposição, e tendem, portanto, a desvirtuá-la”. Essa hierarquia, assim, com as

nomenclaturas atribuídas, enquadra-se no modelo platônico, fazendo da própria utopia platônica

modelo da exposição: “os organizadores de uma exposição são seus economistas, os expositores seus

políticos, e os visitantes da exposição seus teóricos e contempladores [...] A contemplação é a finalidade

da ação, e o homem teórico (aquele que transforma drama em teatro) deve ser rei da utopia”.

Porém, o modelo platônico da exposição trata-se de uma inversão da hierarquia que informa o

nosso mundo, à medida que “nossa situação é dominada por organizações, administrações e

planejamentos, portanto pela ‘economia’ [...] sustentada por atos e ações, pela ‘política’ portanto. E esta

se baseia sobre várias ‘teorias’”. Dessa forma, as exposições concebidas segundo o modelo platônico

seriam “oásis de contemplação num deserto da economia. Mas oásis, obviamente, que funcionam em

função do deserto. Os nômades que por elas perambulam são filhos do deserto”. Essa perspectiva é

especialmente pertinente à exposição da 10ª Bienal. Se o contexto político do país naquele período pode

dar conotações ainda mais graves para a noção de um “deserto da economia”, conforme exposições de

artes e outras manifestações culturais eram reprimidas e censuradas, a funcionalidade de um “oásis de

contemplação” corresponde à satisfação das necessidades mais básicas do público, da sociedade no

geral, dos “nômades” do deserto. Porém, como aponta Flussser, mesmo no modelo platônico e ideal, a

exposição é realizada em função da economia.

45
Dedicando-se a responder à segunda pergunta, “Que é uma exposição bienal?”, o autor elucida

que o termo “bienal” não apenas implica numa “ocorrência recorrente”, mas essa noção també

subentende um fenômeno no tempo circular. “O tempo da circularidade é o tempo do mito e da festa, e

ocorrências recorrentes são ocorrências festivas”. Sendo, portanto, a exposição bienal uma “ocorrência

festiva”, em contraste com o “caráter racional e prosaico da ocorrência única”, é característica dela a

articulação de um mito e a tendência dela própria de se transformar em mito, a partir de sua recorrência.

Porém, as exposições bienais que conhecemos se dão no contexto do “tempo linear desmitizado [sic]”,

isto é, ocorrem dentro do contexto racional e prosaico do tempo linear, ainda que se oponham a ele, e é

pelo contraste que elas produzem ao articular o mito do tempo circular no ambiente “desmitizado” que

as exposições bienais tendem a se tornar mito. Sendo as bienais, no entanto, ocorrências planejadas,

Flusser aponta que este é o seu dilema: ser um mito planejado que “nega-se dialeticamente a si mesmo”

à medida que “o mito autêntico é a tentativa de articular o inarticulável”, enquanto que “o mito

planejado é a tentativa de confundir e mistificar o articulado”. Desse modo, as exposições bienais ao

mesmo tempo que contribuem para a desmitificação de seu “mito fundante” – a superação do mito da

arte – por serem planejadas, também resultam na contraditória ritualização (mistificação) do eterno

retorno e da novidade.

Considerando o movimento de boicote que constituiu a recusa de determinados artistas e suas

produções à exposição da 10ª Bienal, é interessante ponderarmos se essa atitude contribui ou contradiz

a superação do mito da arte, isto é, a aproximação definitiva entre arte e vida. Isso é porque à medida

que os artistas negaram a presença na exposição, seus trabalhos permaneceram “escondidos”,

depositados sob os auspícios da resistência, e, dessa forma, não cederam à ritualização que caracteriza

o formato planejado da exposição bienal e sua potência de desmitificação. Se o mito autêntico busca

articular o inarticulável, o objeto de arte que não se apresenta, que não se coloca em exposição, acaba

inarticulado, perpetuando-se como mito.

Por fim, para responder à terceira pergunta, “Que é uma exposição bienal em São Paulo?”,

Flusser primeiramente formula a síntese “exposições são problemáticas em geral, e exposições bienais

são problemáticas em particular”; síntese que a inauguração da 10ª Bienal de São Paulo coloca em

46
xeque. Sendo realizada em São Paulo, cidade que ocupa uma posição marginal no contexto da cultura

ocidental, a Bienal resulta na alteração periódica e momentânea dessa posição, deslocando a cidade para

o centro durante a ocorrência da exposição. Além disso, a “falta de tradição que caracteriza São Paulo,

já que se trata de um enorme aglomerado de desenraizados” é alterada em decorrência da Bienal à

medida que ela “tem por efeito o surgir de uma tradição, portanto a criação de raízes”. Isso é

especialmente relevante ao considerar que, naquele período, a cidade se encontrava numa “situação

histórica [...] uma situação de passagem para uma sociedade desenvolvida”. Para Flusser, é justamente

a Bienal de São Paulo que sinaliza a passagem para uma sociedade desenvolvida, que seria, portanto,

uma sociedade onde há superação do mito da arte, onde a arte é desmistificada.

A Bienal de São Paulo é um fato. Como todo fato, ela é obstinada. E como

todo fato, ela é ameaçada tanto na sua permanência como no seu significado.

E ela é um fato importante. Não se pode compreender São Paulo sem

considerá-la. A importância do fato exige que seja criticado.

Porém, o filósofo conclui o artigo indicando que o texto tinha por propósito elucidar os termos

dentro dos quais “deverão necessariamente dar-se as críticas dos pacientes89 da Bienal, dos que vivem,

em relação a ela, uma vida contemplativa”. Seja isto ou não uma investida contra as críticas advindas

dos agentes políticos da exposição, isto é, dos artistas, Flusser deixa claro que a Bienal, como toda

exposição, deve idealmente ser realizada em função de sua finalidade utópica: o público “paciente”,

espectador. Essa noção é cara à reflexão que empreendemos aqui, segundo a qual as obras que se

fizeram presentes na exposição, que se permitiram ir de encontro a alguém, são aquelas que, de fato,

contribuem para a desmistificação da arte, e, assim, possibilitam à aproximação, no espaço público,

com a dimensão política da vida contemplativa. A experiência de um paciente numa exposição, num

oásis do deserto da economia de nosso mundo, é a única capaz de defrontar verdadeiramente o mito da

89
Itálico nosso.

47
arte; e a percepção dessa experiência pelo paciente, resultante da sua contemplação, deve ser o propósito

supremo de todos os elementos que se estruturam no contexto de uma exposição.

Retomando a participação contundente de alguns artistas brasileiros na exposição da 10ª Bienal,

a bibliografia aponta que não houve uníssono para a adesão ao movimento de boicote no contexto

nacional, com figuras-chave decidindo vocalmente pela participação. Apesar de ter sido vítima de

perseguição do regime militar90, e ter sido vetado do júri de premiação internacional, o crítico e físico

Mario Schenberg, por exemplo, incentivou artistas do seu círculo a não aderirem ao boicote, orientando

jovens como Claudio Tozzi, Carmela Gross e Marcello Nitsche a participarem com trabalhos “bem

incisivos”91. Schenberg foi responsável pela organização de uma sala com 28 jovens artistas, e em texto

de agosto de 1969, ele comenta que as condições “especialmente difíceis” do trabalho do júri de seleção

brasileira se deram devido “à demora na elaboração do regulamento” e ao consequente encurtamento

do tempo para resposta dos artistas inscritos e convidados. Schenberg aponta que o “critério de máxima

contemporaneidade fez com que predominassem entre os convidados os artistas jovens, se bem que já

tendo considerável maturidade artística. [...] a maioria dos melhores trabalhos apresentados foi feita por

artistas com menos de dez anos de atividade”92.

Um desses artistas com menos de dez anos de carreira foi o supramencionado Claudio Tozzi,

que iniciou sua trajetória artística em 1963 no XI Salão Paulista de Arte Moderna vencendo o concurso

de cartazes da exposição. Tozzi nasceu em 1944 na cidade de São Paulo, e o contexto urbano foi um

importante pano de fundo para o desenvolvimento inicial de suas obras. A partir do golpe militar,

90
Com a promulgação do AI-5 veio também um decreto que anunciava a aposentadoria compulsória de
professores universitários, incluindo Mário Schenberg, então professor na Faculdade de Física da USP,
considerado pelo regime militar perigoso para a segurança nacional. Por isso, quando a Comissão de Artes
Plásticas, criada para assessorar a diretoria da Fundação Bienal com a formulação do regulamento da 10ª
Bienal, indicou o crítico brasileiro para compor o júri de premiação internacional, Matarazzo se mostrou
“receoso das consequências políticas”. Apesar disso, o crítico aceitou participar do júri de premiação nacional
a convite de Matarazzo, entendendo que o espaço da Bienal de São Paulo era “de fundamental importância
para o Brasil e para toda a América Latina”. Ver SCHROEDER, op cit., 2011. p. 65 e 104.
91
Claudio Tozzi, sobre “Militância, Guerrilha e Arte”, depoimento dado a Paulo Miyada em 26 jul. 2018. Em
MIYADA, et al., op cit., 2018, p. 105
92
SCHENBERG, Mário. Pensando a arte. São Paulo: Nova Stella, 1988, pp. 201-202.

48
sobretudo, os ambientes acadêmicos e estudantis da capital paulista borbulhavam iniciativas de

resistência e de transformação política e social, expressando na produção artística e intelectual do

período uma ampla preocupação com a capacidade transformadora da arte quando colocada a serviço

do povo, a favor de seu engajamento político. Durante a década de 1960, a produção de Tozzi foi

marcada por essa preocupação. Em 1967, quando expôs no IV Salão de Arte Moderna do Distrito

Federal, um episódio preludiou a repressão e censura impostas pela ditadura militar sobre as artes

visuais nos anos seguintes, assim como a 9ª Bienal mencionada no capítulo 2. Isso é porque diversas

obras do IV Salão foram recolhidas pelo regime, inclusive o painel Guevara Vivo ou Morto (1967) de

Claudio Tozzi, que foi destruído durante a exposição por um grupo extremista simpático ao regime

militar93 antes de ser apreendido.

A produção de Tozzi na década de 1960 também esteva intimamente sitiada nos procedimentos

da Nova Figuração, onde a lógica das histórias em quadrinhos e da fotografia publicitária e jornalística

ecoa narrativas de teor crítico e bastante politizado. Em depoimento para catálogo de uma exposição

sobre a Pop Art internacional realizada pela Tate Modern, de Londres, em 2015, o artista comenta que

ele e seus colegas “respondiam às mudanças que aconteciam nas artes e especialmente às mudanças

que ocorriam na sociedade e à nova forma de pensamento da juventude. [...] Nós estávamos interessados

na comunicação direta com o público e motivados a seguir a suas respostas”94. A operação de Tozzi é

distinta, porém, em sua apropriação conceitual de imagens. O artista se dedicava a um tratamento

minucioso, recriando no papel vegetal o resultado de experimentações com alto contraste, a fim de obter

a força visual necessária para pulverizar os traços distintos da imagem original. A composição acentua

a assimilação de uma nova imagem, pois condensa em seu recorte preciso, por vezes estruturado por

molduras e cores sólidas, a capacidade de significação de formas e imagens sintetizadas. Figuras

tornavam-se “manchas” através da manipulação do artista, flexionando a percepção da imagem e seu

significado, colocando suas figuras e planos em inegável tensão - entre a abstração e a figuração, entre

a forma e o signo - conforme o espectador se posiciona diante da obra.

93
SCHROEDER, op cit., 2011, p. 30.
94
(tradução livre do inglês) Em MORGAN, Jessica & FRIGERI, Flavia (edts.) The EY Exhibition – The World Goes
Pop. London: Tate Publishing, 2015, p. 132.

49
Na exposição da 10ª Bienal de São Paulo, Tozzi apresentou quatro trabalhos, sendo três pinturas

e um objeto tridimensional. Este, intitulado Veja o nu (1968) (fig. 5), demandava que o espectador se

aproximasse para conseguir enxergar num cilindro metálico a imagem refletida de um nu feminino. O

reflexo é produzido pela mancha impressa na superfície que apoia o cilindro, onde a imagem corrige a

forma distorcida e irreconhecível. Aproximando-se de operações típicas da Op Art, que constituíam

ilusões de óptica na produção de imagens e novas tipologias, essa obra surpreende também por seu

conteúdo erótico, que era motivo para a censura do regime militar, como vimos anteriormente. Com

extrema criatividade, o artista não somente se esquivou da repressão da ditadura95, como também a

ironizou na palavra de ordem que compõe a obra e reforça o papel ativo do espectador na sua fruição,

que recusa restrição moral.

Fig. 5 – Claudio Tozzi, Veja o nu (1968)

95
Escapou neste caso, pois uma das obras que apresentaria na exposição, A prisão (1968), foi retirada antes da
abertura pois poderia “ofender” as autoridades que estariam presentes. Ver SCHROEDER, op cit., 2011. p. 219.

50
Dentre as pinturas apresentadas por Tozzi, destacamos o painel O público (1968) (fig. 6), parte

da série Multidões. Essa pintura, reproduzida no catálogo da 10ª Bienal, é composta pela repetição

vertical da mesma imagem, invertida horizontalmente, em que vemos dois homens figurados com traços

pouco reconhecíveis, constituídos pelas manchas da imagem trabalhada em alto contraste. Ambas as

figuras aparecem com a boca entreaberta e expressões sérias, como se proclamassem algo crítico, e o

espelhamento causado pela repetição e inversão produz uma dinâmica visual que parece mobilizar a

imanência de uma verbalização. Considerando a repressão de manifestações populares, e a discussão

que empreendemos mais acima acerca da verdadeira finalidade da exposição (a contemplação do

público paciente), é significativo que o artista tenha intitulado essa obra como “O público”. Ainda que

as imagens retratem duas vezes as mesmas duas figuras, essa multiplicação alude ao silenciamento geral

da verbalização pública. A importância do público não está na sua numerosidade, mas, sim, na sua

presença, ainda que silenciada.

Fig. 6 – Claudio Tozzi, O público (1968)

51
Além de Claudio Tozzi, destacamos também brevemente a participação do jovem artista

Marcello Nitsche, que iniciou a sua carreira em meados da década de 1960 e que, assim como Tozzi,

teve obras destruídas pelos militares em 1967, no IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal96. Ele

foi considerado por Schenberg “o mais dotado dos [artistas] de sua geração de São Paulo” e “talvez o

mais pop dos artistas brasileiros”, pois sua obra à época amplamente capturava a vivência na metrópole

paulistana, e, para o crítico, “uma arte pop brasileira só poderia nascer em São Paulo” 97. O artista ficou

conhecido no período pela realização de grandes estruturas infláveis, as quais chamava de Bolhas.

Ainda que não figure no catálogo da 10ª Bienal, imagens publicadas no site da Fundação Bienal são

prova da participação do artista na exposição com ao menos um desses trabalhos98 (figs. 7, 8 e 9).

Fig. 7 – Marcello Nitsche, A bolha (c. 1969). Vista da obra na 10ª Bienal de São Paulo (1969)

96
Ver depoimento do artista em MORGAN & FRIGERI, op cit., 2015, p. 138.
97
SCHENBERG, op cit., 1988, p. 41.
98
Disponível em: <http://www.bienal.org.br/exposicoes/10bienal/fotos/4124> ;
<http://www.bienal.org.br/exposicoes/10bienal/fotos/3902> ; e
<http://www.bienal.org.br/exposicoes/10bienal/fotos/3897> Acesso em 14 nov. 2022.

52
Fig. 8 – Marcello Nitsche, A bolha (c. 1969). Vista da obra na 10ª Bienal de São Paulo (1969)

Fig. 9 – Marcello Nitsche, A bolha (c. 1969). Vista do artista diante da obra na 10ª Bienal de São

Paulo (1969)

53
Nas imagens da exposição, a obra exprime uma presença retumbante, tomando grandes

extensões do espaço entre os pavimentos do prédio da Bienal e os pavilhões nacionais que constituíram

a mostra. A sua materialidade e dimensão gigantes dialogam com o título da obra de maneira imprevista

e aludem ao contexto da exposição. A natureza de toda bolha é a sua eventual explosão, ao atingir seu

tamanho de expansão máxima. As Bolhas apresentadas por Nitsche na 10ª Bienal, porém, prolongam-

se em extensão e altura, assumindo formas inauditas em relação ao formato oval típico99. De certo modo,

é possível pensar a expansão extensiva dessas formas, que se dilatam e se contorcem sobre si mesmas,

como uma analogia à necessidade de adaptabilidade para a resistência ao contexto político de repressão

que caracterizava a vida sob a ditadura militar. Sob o risco de prisão, tortura e morte, explodir não era

uma opção para aliviar o acúmulo de revolta e indignação; era necessário se adequar, apropriar-se

inventivamente do espaço, desdobrar-se em circunstâncias sinuosas, para manter alguma integridade.

Ainda, a enorme amplitude das Bolhas de Nitsche também pode ter colaborado para tensionar os vãos

e espaços vazios deixados pelas desistências e ausências que resultaram do movimento de boicote.

Ademais, a participação de uma artista que poderia ser considerada “veterana” chama a atenção

particularmente por suas reflexões acerca das implicações e sentidos da presença, ou da ausência,

naquela Bienal, considerando a liberdade relativa da arte diante da censura e da repressão. Tomando

uma atitude avessa à de alguns de seus colegas artistas, como Waldemar Cordeiro e Sergio Camargo

(que recusaram o convite do júri nacional para participar da 10ª Bienal), artista suíça naturalizada

brasileira Mira Schendel (1919-1988) não aderiu ao boicote e participou da Bienal de São Paulo em

1969 com um trabalho profundamente significativo para aquele contexto e além.

Antes de aceitar o convite para participar da exposição da 10ª Bienal de São Paulo, Mira

Schendel refletiu acerca das possibilidades de atuação da arte e do artista naquele contexto, partindo de

uma pluralidade de referências. Após trocas com o amigo e filósofo Jean Gebser, Mira decidiu aceitar

o convite da Fundação Bienal e do júri nacional da 10ª edição, apresentando na ocasião um único

99
O Museu de Arte Moderna de São Paulo detém em seu acervo a Bolha vermelha (1968) de Nistche, que
apresenta a característica forma oval de uma bolha.

54
trabalho, a instalação Ondas paradas de probabilidade (fig. 10). Ocupando um espaço de 5 m² com

milhares de fios de náilon, descendo de uma altura de 3 m do teto e arrastando seus 30 cm finais sobre

o chão, o trabalho de caráter instalativo também apresentava um trecho bíblico do Livro dos Reis, do

Velho Testamento, impresso sobre uma placa de acrílico fixado na parede ao lado (fig. 11). A passagem

bíblica descreve o momento em que Deus se revelou ao profeta Elias:

E Ele falou, saia e suba nesta montanha perante a face do Senhor.

Eis que o Senhor passou. E um grande e forte vento que quebrava as

montanhas e rasgava as rochas precedia o Senhor.

Mas o Senhor não estava no vento.

Mas do vento veio um terremoto. Mas o Senhor não estava no terremoto.

E depois do terremoto veio um fogo. Mas o Senhor não estava no fogo.

E depois do fogo veio a voz de um suave sussurrar.

Fig. 10 – Mira Schendel, Ondas paradas de probabilidade (1969). Artista na montagem da obra na

10ª Bienal de São Paulo (1969)

55
Fig. 11 – Mira Schendel, Ondas paradas de probabilidade (1969). Vista da obra na exposição 30 x

Bienal (2013)

Para Geraldo Souza Dias, a instalação, em sua encenação espacial, “transformava a atmosfera

da sala de exposições em um momento bíblico [...] cuja força de irradiação silenciosa agia sobre o

observador por meio dos fios de náilon que sugeriam o caráter imaterial do sopro tênue” do suave

sussurrar100. Evidentemente, a aparência etérea produzida pelos fios transparentes é reforçada pelo

silêncio sugerido no texto e pelo vazio que coabita o campo de fios. Afinal, a sua transparência rasurada

e instável acaba por ativar o vazio constatado, tornando-o palco para uma presença meditativa e

espiritual. A referência espiritual desse trabalho é ainda mais significativa quando consideramos,

também, as implicações filosóficas, na percepção da própria artista, de sua participação na polêmica

“Bienal do boicote”.

100
DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 147.

56
Um trecho de uma carta de Mira a Jean Gebser, em junho de 1969, revela a influência do boicote

sobre a compreensão da artista acerca do seu trabalho Ondas paradas de probabiblidade:

Fui convidada a participar de nossa décima Bienal. O regulamento mudou.

Vinte e cinco brasileiros foram convidados desta vez. Outros 25 serão

admitidos por um júri. E aquilo que em Veneza e adjacências já é coisa do

passado é novidade por aqui. Holanda, França e Suécia aparentemente se

recusaram a participar. Também se recusaram alguns dos 25 brasileiros

convidados. Por motivos (num primeiro plano!) também válidos.

Perspectivamente estou de acordo com eles. Aperspectivamente, porém, tenho

que aceitar o convite. Aperspectivamente tem “valor quântico” também no

“primeiro plano”. A transparência.101

Nessa passagem, Isobel Whitelegg identifica uma referência de Mira aos protestos contra “a

cultura burguesa” e a cumplicidade institucional com a “comoditização da arte” que marcaram

historicamente a Bienal de Veneza de 1968 – assim como a Bienal de São Paulo no ano seguinte102.

“Nas entrelinhas, há um evidente ceticismo da parte dela com relação ao protesto cultural quando este

se transforma em repetição, em modismo”103. No sentido desse modismo, vale considerar uma

declaração consideravelmente existencialista e política de Mira, relatada em seu diário à época da 10ª

Bienal:

No mundo atual tudo vira redundante. Até as bombas atômicas são

redundantes. Os discos voadores. Os partidos. Os carros. As guerras, as

revoluções e as contrarrevoluções. Cada mensagem é consumida rapidamente.

101
Mira Schendel, carta a Jean Gebser, São Paulo, 26 jun. 1969. Em DIAS, op cit., 2009, p. 149.
102
Mira Schendel também participou da representação brasileira da 34ª Bienal de Veneza, junto de Lygia Clark,
Mary Vieira, Anna Letycia Quadros e Farnese de Andrade.
103
WHITELEGG, Isobel. “O outro mundo é este. A participação de Mira Schendel na X Bienal de São Paulo”. Em
PALHARES, Taisa et al. Mira Schendel. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014, p. 48.

57
[...] Para não falar de algumas filosofias já consumidas ou da “morte de Deus”,

que teve seu sucesso e seu rápido consumo uns anos atrás. Entrou na circulação

no fim da moda dos sapatos de ponta fina.104

Apesar disso, o que é realmente significativo para a compreensão do posicionamento de Mira

acerca do boicote e da sua participação naquela Bienal Internacional de São Paulo, sob as condições da

ditadura militar, são as menções a conceitos abordados por Gebser em sua obra mais conhecida,

Ursprung und Gegenwart (1949). Mais em tom com o pensamento filosófico e espiritual que embasa

muitas de suas pesquisas e experimentações artísticas, Mira menciona no trecho da carta ao próprio

Gebser as palavras “perspectivamente”, “aperspectivamente”, “primeiro plano”, e “transparência”, que

além de possuírem relação com o trabalho do interlocutor, também remetem a conceitos de Vilém

Flusser, amigo próximo da artista.

Dias aponta que, segundo Gebser, ver ou pensar “perspectivamente” corresponde a “ver e

pensar de um ponto fixo, pois a perspectiva fixa tanto o observador como o observado, concretizando

a relação do homem com o espaço: o homem posiciona-se espacialmente e poder ver apenas um

setor”105. Para Whitelegg, o “perspectivo” de Gebser também se refere ao aspecto negativo do racional,

aquele que implica “cálculo e divisão”:

[...] o fato de Mira conseguir concordar perspectivamente com os artistas que

boicotaram a Bienal pode sugerir que ela via as ações deles como

compreensíveis, mas também como divisoras. Que ela entenda as motivações

deles como válidas “em primeiro plano” pode, também, indicar que

considerava as formas polarizadas de ação política como dominantes em seu

meio imediato. Pode-se especular, portanto, que, na opinião de Mira, a

104
Mira Schendel, diário inédito. Em DIAS, op cit., 2009, p. 129.
105
DIAS, op cit., 2009, p. 142.

58
estratégia de boicote correspondia a uma maneira maniqueísta de pensar, que

se mostrou ineficaz nas experiências de sua própria vida.106

Abordada em praticamente toda a sua produção ao longo da década de 1960, é coerente que a

artista tenha continuado a experimentar na instalação apresentada na 10ª Bienal com a transparência e

o estado de diafaneidade que suspende o tempo e o espaço. Flusser compreende que, para captarmos a

diafaneidade, basta que ela nos seja apresentada literalmente, ou seja, pela arte. A transparência,

portanto, meditada e mediada107. Paralelamente em diálogo com Flusser, Mira também refletia sobre o

conceito de transparência através da concepção de “consciência integral” ou “aperspectívica” proposta

por Gebser. Segundo Dias, essa “seria a consciência da totalidade, que reúne em si o tempo em seu todo

e a humanidade inteira, enquanto presenças vivas. Ela tornaria transparente aquilo que se oculta no

mundo [...]”108. Considerando isso, Whitelegg afirma que o conceito de “transparência” é correlato ao

“aperspectivo” na medida em que “indica uma consciência das relações contingentes entre o eu e o

outro [...] uma maneira de insistir na presença inegável de um futuro diferente no âmbito do

entendimento que cada um tem do tempo presente”109.

Basta considerar o ambiente de transparência indefinida e meditativa que Mira conquista em

Ondas para perceber a validade da aproximação feita por Whitelegg. O campo de fios de náilon pode

ser conceitualmente entendido como uma “visualização” da consciência aperspectiva, “transparente”,

necessária àquele momento. Pois até mesmo o silêncio e o vazio operam por meio da presença, e é essa

condição que é, fundamentalmente, o motivo da aceitação de Mira ao convite da Bienal:

A “visibilidade” do invisível. O “silêncio visual”. Esta experiência tende ao a-

racional, além o irracional e do racional. [...] Com o trabalho da Bienal (O

“sussurrar do invisível”) talvez inicie uma fase de maior silêncio. [...] Escutar

106
WHITELEGG, op cit., 2014, p. 49.
107
FLUSSER, Vilém. Diacronia e Diafaneidade. São Paulo: O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, 26 de
abril e 03 de maio de 1969
108
DIAS, op cit., p. 143.
109
WHITELEGG, op cit., 2014, p. 49.

59
(também o silêncio). [...] Todo nosso esforço de perfeição em espaço e tempo

é ilusão. Não aceitação do relativo. Esta é uma ponte. Temos que atravessá-

la.110

A tentativa de transparência evidenciada nesse trabalho (fig. 12) indica que a sua aceitação foi

“aperspectiva”: ela se deparou com a relatividade inerente ao espaço-tempo – e à qualquer ideologia

política acerca dele – e escolheu exercitar sua liberdade relativa e fazer de sua presença um vazio para

a meditação filosófica e silenciosa. Muito dessa meditação filosófica deve aos conceitos formalizados

no trabalho, que cria um campo de profunda contemplação do presente, na medida em que a visibilidade

dos fios é instável, relativa ao ângulo e à intensidade da luz, além da posição do corpo que os visualiza.

Ondas paradas de probabilidade oferecem ao espectador uma pausa e permitem o atravessamento do

olhar, apresentando, assim, a possibilidade da transparência. Suspendem o espaço e o tempo na relação

entre a forma e o corpo, que se infiltra virtualmente na meditação da liberdade individual. Através do

jogo de transparência e opacidade, tanto no âmbito material quanto, e mais importante, no âmbito

metafísico, Schendel é capaz de tornar conceitos abstratos, como “vazio” e “silêncio”, imagináveis, sem

de fato defini-los em seus sentidos. É justamente nisso que consiste a diafaneidade: a transparência das

estruturas diacrônicas que direcionam os sentidos, a denúncia do vazio sobre o qual residem.

110
Mira Schendel, diário inédito. Em DIAS, op cit., 2009, p. 147.

60
Fig. 12 – Mira Schendel, Ondas paradas de probabilidade (1969). Vista da obra na exposição 30 x

Bienal (2013)

Na medida em que a obra de Mira “reconhece” o vazio implicado pelo movimento de boicote,

é possível especular as considerações filosóficas que esse conceito possibilita à obra apresentada pela

artista e àquela edição da Bienal. A relação da obra de Mira com o vazio não seria novidade naquela

ocasião, e devem levar em consideração reflexões púbicas da artista acerca desse conceito. Em

entrevista de 1981 a Jorge Guinle Filho, Mira confessa:

O grande espaço vazio é uma coisa que me comove profundamente, que me

toca profundamente [...] Ao trabalho, ao mundo, ao modo de ser, de viver,

sempre os artistas tiveram essa noção do corpo dentro do espaço. É uma

preocupação muito forte. É a dimensão do trabalho. E eles se dão

61
simultaneamente. Onde se dá o vazio, se dá também a individualização do

cheio. São simultâneos, não podem ser separados um do outro.111

Essa consciência da condição ambivalente do vazio, que apenas pode ser apreendida pelo corpo,

elucida a imperatividade da presença. Pois é justamente a presença do corpo que intensifica e caracteriza

o espaço vazio, destinado a despolarizar o tempo e o espaço. Dias aponta que “em concordância com

Mário Schenberg, Mira teria como meta de seus trabalhos o vazio sunyata da estética budista oriental

[...] este vazio, este zero, seria pleno de significados”112. A leveza e suspensão vazadas de Ondas

indicam um espaço frutífero para produtividade existencial, e, com isso, se aproximam

consideravelmente das noções de “vazio” contempladas pela filosofia zen-budista.

[...] a visibilidade do invisível, daquilo que age sem que o vejamos – como, por

exemplo, processos físicos ou espirituais113

Não é improvável a correspondência entre essas palavras da artista e o zen-budismo, cujo

pensamento filosófico entende o vazio não como inatividade, mas como transformação: “Fica-se em

silencio para falar, fica-se imóvel para agir”114. Esse caráter de aprofundamento existencial atribuído ao

vazio ressoa, em especial, com o Ma, conceito caro à arte e cultura japonesas:

A introdução de Ma na vida de uma pessoa implicaria [...] um momento de

transformações, seria uma pausa ativa, uma pausa de intermediação entre o

passado e o futuro, uma pausa que colocaria o mediante no momento

presente.115

111
Mira Schendel em entrevista a GUINLE, Jorge, Filho. “Mira Schendel, pintora: o espaço vazio me comove
profundamente”. Em PALHARES, op cit., 2014, p. 238-239.
112
DIAS, op cit., 2009, p. 192.
113
Mira Schendel, carta a Konrad Gromholt, São Paulo, 25 set. 1969. Em DIAS, op cit., 2009, p. 149.
114
VIDAL, Victor Raphael Rente. “Vazio: atividade e mediação na obra de Mira Schendel”. Simpósio 7 –
Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões, 24º Encontro da ANPAP, 22 a 26 set. 2015, p. 3300.
115
VIDAL, op cit., 2015, p. 3303.

62
Parece possível uma aproximação dessa passagem com o próprio título da obra de 1969, Ondas

paradas de probabilidade – “paradas” subentende imobilidade momentânea, a pausa de algo que antes

estava em movimento. O termo “ondas de probabilidade” foi apropriado poética e filosoficamente do

campo da física, cuja mecânica quântica resumidamente conceitua que “onda de probabilidade”

descreve, em gráfico, a chance de se encontrar uma partícula em determinada posição. “No nível

quântico”, porém, “a realidade não permite certezas ou determinações, apenas possibilidades mais ou

menos prováveis”116.

Desse modo, é possível compreender que a calmaria transmitida pelos leves e transparentes fios

de Ondas é a condição própria de todas as possibilidades que o presente coloca em meditação diante

deles – seja na forma de um espectador, seja na forma de mais silêncio ou mais vazio – sem, porém,

definir qualquer ponderação específica sobre a realidade. Assim, mais uma vez se mostra a

fundamentação desse trabalho num contraponto “anti-utópico” da noção de ausência operada pelo

boicote: é a presença do vazio que transparece o todo. “O espaço vazio na obra de Mira funcionaria

como um espaço de encontro, um espaço que se abriria à ocupação daquele que se coloca diante da obra

[...] um diálogo entre as partes seria possível através desse corpo a corpo engendrado pelo vazio”117.

Reforçando esse sentido de encontro com o vazio, uma declaração da artista poucos meses antes

da sua participação na 10ª Bienal sugere um grau de interatividade para a instalação, e indica a

percepção de uma existência relativamente livre no espaço:

[...] não me importo se o destruírem. Depende da possibilidade de ver-se nele

algo ou nada se perceber. De modo que se alguém deixar intactos esses finos

fios de náilon, cortá-los com raiva ou arrancá-los, no fundo (plano de fundo!),

isso não teria a menor importância. Divirto-me com isso.118

116
MANNARINO, Ana. “Atravessar o labirinto: Ondas paradas de probabilidade e a arte como modo de agir no
mundo”. Anais do XXXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Arte em Ação, Campinas, 4-6 out.
2016, p. 61.
117
VIDAL, op cit., 2015, p. 3305.
118
Mira Schendel, carta a Jean Gebser, São Paulo, 26 jun. 1969. Em DIAS, op cit., 2009, p. 149.

63
Sobre essa indiferença quanto à preservação material de suas obras, Barson entende que “Mira

estava mais interessada no significado do confronto. [...] A ênfase recai então sobre a abertura da obra,

sua energia ou movimento potencial”119. Nesse sentido, em texto sobre Mira Schendel, intitulado

“Ativamente o vazio”, o crítico e galerista britânico Guy Brett (motor da importante galeria Signals)

acentua que “usos do vazio por artistas contemporâneos trazem de volta um antigo dilema filosófico:

definir e nomear a realidade é de algum modo reduzi-la”120. Considerando isso, acreditamos que a

possibilidade de confronto com a realidade presente, contida no trabalho da “Bienal do boicote”,

dialogou com o contexto político e com o exercício filosófico da liberdade, marca inquestionável da

trajetória pessoal e artística de Mira.

Apesar de não-praticantes, a descendência judaica de ambos os seus pais marcou fortemente as

primeiras décadas de vida da artista, que decorreram paralelamente ao crescimento do antissemitismo

na Europa. Pouco após ter iniciado estudos em filosofia na Università Cattolica del Sacro Cuore, em

Milão, no final dos anos de 1930, um decreto-lei forçou a interrupção de sua graduação ao proibir a

matrícula de judeus estrangeiros nas instituições de ensino italianas. “Mira, que fora educada no

catolicismo e teria desde a juventude, segundo depoimento de José Bueno de Aguiar, um profundo

interesse pela teologia cristã, seria classificada como judia estrangeira e obrigada a fugir para

sobreviver”121. O trajeto de Mira pela Europa durante os anos de perseguição cruzou diversos países e

terrenos, na medida em que as invasões nazistas minavam seu caminho, levando-a, inclusive, a cruzar

uma região baixa dos Alpes.

São poucos os relatos de Mira sobre as experiências extremas vividas durante a 2ª Guerra, com

exceção de algumas histórias guardadas por amigos e familiares. Uma passagem de seu diário posterior

aos eventos é um dos poucos testemunhos de sua aflição:

119
BARSON, Tanya. “Mira Schendel, a Signals London e a Linguagem do Movimento”. Em PALHARES, op cit.,
2014, p. 27.
120
BRETT, Guy. Brasil Experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria,
2005, p. 174.
121
DIAS, op cit., 2009, p. 31.

64
Eu vi em 1941 uma menina de 6 ou 7 anos jogar no chão um coelhinho, num

vai-e-vem frenético, até matá-lo. Como fizeram com as crianças judias.

Sempre que a vida for considerada o sumo bem vai haver este escândalo.122

Ainda, a liberdade relativa sobre a qual a artista reflete em seu diário – “Sei (hoje) que não

chega esta vida. Embora a vida “comece” com o “saber” da libertação. Sei que é um caminho de

libertação. [...] E que nosso sofrimento é fruto da ignorância. Que em espaço e tempo não é alienável.

Pois em espaço e tempo, não somos livres. [...] Todo nosso esforço de perfeição em espaço e tempo é

ilusão. Não aceitação do relativo”123 – ecoa diversas instâncias de sua trajetória até a culminação em

1969: a decisão de abandonar a sua vida recém-conquistada como deslocada de guerra em Porto Alegre

no final da década de 1940, mudando-se sozinha para São Paulo; ao chegar na capital, mesmo rodeada

de artistas e críticos dogmáticos que insistiam em categorizar sua obra como “construtiva”, “concreta”,

“neoconcreta”, Mira manteve-se firme em seus princípios filosóficos e artísticos ao longo da década de

1950 e 1960, mesmo com altos e baixos; e, quando muitos apontavam ingenuamente para a ausência

como meio de intensificar a força do vazio, Mira propôs que seria a presença da “visibilidade do

invisível”, do “silêncio visual”, que ativaria existencialmente, e, portanto, politicamente, o vazio e o

silêncio de seu contexto.

Consciente da relatividade que caracteriza a liberdade humana, Mira produziu um trabalho que

marca a memória como um mito da presença silenciosa do eterno-misterioso. A “presença silenciosa”

de Ondas paradas de probabilidade configura um grau filosófico à política de ausência e esvaziamento

implicada pelo boicote, elucidando vias filosóficas e conceituais para a aproximação entre a arte e a

política que não se restringem àquele contexto. Além da participação da artista na exposição, inclui-se

sob a perspectiva política da presença silenciosa a dificuldade de se capturar a obra em imagem

fotográfica, na medida em que a visibilidade de seus fios é relativa à luz. Ou seja, é demandada a

presença do corpo para que se provoque uma apreensão integralmente contemplativa da transparência

122
Mira Schendel, diário inédito. Em DIAS, op cit., 2009, p. 32
123
Ibid., p. 147.

65
espaço-temporal oferecida pela imagem rala do náilon desfiado. Essa imperatividade da presença

dialoga diretamente não apenas com a ausência reivindicada pelo movimento do boicote, mas também

com o entendimento de Flusser, apresentado anteriormente, segundo o qual a “política” cabe aos agentes

da exposição (os artistas) desde que ofereçam o objeto para o encontro do paciente (os visitantes da

exposição), seguindo a hierarquia do modelo platônico de exposição.

O ambiente instalativo da obra apresentada por Mira na 10ª Bienal de São Paulo produz a

imagem de um “mar” de ondas paradas de probabilidade. A insistente quase-invisibilidade das linhas

estouradas (e as linhas, que são caras à obra de Mira de modo geral, são especialmente centrais à sua

produção na década de 1960) dificultam a apreensão visual dos limites desse “mar”. Mas quando

capturados sob o olhar, os fios de náilon riscam o espaço, cortando o ar do teto ao chão, onde suas

pontas correm ligeiramente sobre o piso. Essa imagem pode levar à presentificação explosiva do fim da

densidade, do rompimento da superfície que conteve o máximo que foi possível em volume. Um

rompimento que alude, assim, às tensões do período da ditadura militar, à acumulação de indignações,

e à necessidade de se encontrar formas mais integrais de resistência.

Segundo Isobel Whitelegg, tanto Jean Gebser quanto Vilem Flusser, interlocutores das

reflexões filosóficas e conceituais de Mira, entendem que “o papel a responsabilidade da arte eram

ancorar, na vida real, o que, de outra forma, poderia ser uma proposição abstrata, tornando concebível

o aparentemente inconcebível ao torná-lo presente”124. Nesse sentido, a imperatividade da presença

contemplativa, que é subentendida pela materialidade delicada de Ondas paradas de probabilidade,

ancora “na vida real” o inconcebível ao materializar a transparência, contida também entre o espectral

e o conceitual, na relação do corpo com o espaço quase vazio. Além disso, Whitelegg aponta que,

considerando as discussões e os posicionamentos políticos de seu tempo, “a posição de manter uma

resistência psicológica perante as disciplinas psíquicas impostas pela repressão parece agora não menos

radical, e não menos duramente conquistada, do que formas mais ostensivamente heroicas ou divisórias

de ação”125.

124
WHITELEGG, op cit., 2014, p. 50.
125
Ibid., pp. 51-52.

66
De fato, enquanto o movimento de boicote apostava no esvaziamento da exposição da 10ª

Bienal como forma de represália à instituição e sua proximidade com o regime militar, Mira Schendel

demonstrou coragem para apresentar um trabalho que se colocaria em choque com esse vazio e com o

silencia implícito a ele. Por mais que essa perspectiva política acerca do vazio não tenha sido percebida

pelos críticos do período e por uma grande parte da literatura atual sobra a obra da artista e sobre a

exposição, são as reflexões filosóficas de Mira Schendel, parcialmente citadas mais acima, que tornam

essa dimensão inegável. Justamente, pensando no lugar que essa obra ocupa na memória da “Bienal do

boicote”, é interessante destacarmos que a artista recebeu uma Menção Honrosa pela sua participação.

Geraldo Souza Dias, por exemplo, chega a comentar sobre essa Menção, mas apenas para designar um

historiador de arte alemão como o responsável pelo mérito126. É revelador também que consta do

catálogo da mostra uma única passagem sobre Mira e sua obra:

Mira Schendel tornou-se conhecida como artista gráfica de grande

personalidade, mas na hora em que escrevia esta apresentação ainda não se

sabia de que consistiria a sua participação.127

126
DIAS, op cit., 2009, p. 245.
127
BERKOWITZ, Marc. “Brasil”. Em X Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1969, p.
34.

67
CAPÍTULO 4

A disputa continua: a 34ª Bienal de Veneza e instâncias recentes de boicote a exposições

O boicote à 10ª Bienal de São Paulo foi um protesto significativo, que marcou de maneira

emblemática a história do evento e, possivelmente, das exposições bienais. Não somente pelo fato de

ser uma das poucas manifestações do tipo na história das exposições, mas também porque as

desistências e recusas produzidas pelo boicote resultaram em um certo caos institucional na realização

da Bienal de 1969128, que repercutiu ao longo da década seguinte. De acordo com Aracy Amaral, “os

anos de ferro da ditadura, anos 70, [...] foram, a meu entender, os ‘anos baixos’ das Bienais de São

Paulo; o evento decaiu em qualidade e se tornou morno”129. Além disso, após a baixa adesão de

importantes figuras artísticas do meio nacional e internacional na 10ª Bienal, como a desistência do

crítico francês Pierre Restany (quem também endossou o manifesto Non à la Biennale)130, a Fundação

Bienal viu-se forçada a se reformular para se manter relevante. Já em meados da década de 1960,

Restany acusava o modelo das bienais de estar sob risco de ceticismo, à medida em que os artistas que

antes almejavam a consagração institucional, passaram a rejeitar a aparente indiferença das instituições

responsáveis pelas mostras, considerando a participação nas bienais “o máximo do comprometimento

burguês”131. Desse modo, é possível considerar que o movimento de boicote tenha sido movido por uma

rejeição à passividade diante das instituições de poder, questionando a sua efetividade como promotora

da arte contemporânea à medida em que se mantinha ausente dos posicionamentos demandados pela

gravidade política daquela contemporaneidade.

128
As desistências exigiram um enorme esforço para que fossem convidados outros países, muitos dos quais
nunca haviam participado de uma Bienal, como foi o caso da Malásia. Havia, também, a necessidade de
continuamente lidar com questionamentos externos acerca da gravidade dessas desistência, além da
constante alteração na programação, na relação de expositores, e, por fim, na documentação da exposição, tal
como constatou-se nas consultas no Arquivo Histórico Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo.
129
AMARAL, Aracy. “Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo”. Revista USP, São Paulo, n. 52, dez./fev.
2001-2002, p. 22.
130
SCHROEDER, Caroline S. “X Bienal de São Paulo: Sob os efeitos da contestação”. Dissertação (mestrado) -
São Paulo: Escola de Comunicação e Artes/USP, 2011, p. 77.
131
RESTANY, 1965, citado em DE PAIVA, José Eduardo R. & PEREIRA, Verena Carla. “As tentativas de
reformulação da Bienal de São Paulo pós-Boicote”. Gambiarra, Niterói, n. 7, dez. 2014, p. 78.

68
Diversos autores apontam para a crise que se instaurou na Bienal de São Paulo após sua décima

edição. Além de Aracy Amaral, supracitada, também o artigo de José Eduardo R. de Paiva e Verena

Carla Pereira, intitulado “As tentativas de reformulação da Bienal de São Paulo pós-boicote”132, assim

como outros autores que tangenciam o período da década de 1970 em textos sobre a história de Bienal.

Por exemplo, segundo Rita Alves Oliveira, a partir de sua décima edição, “a Bienal de São Paulo

começava a entrar num longo período de decadência de seu prestígio internacional”133. De fato, segundo

Isobel Whitelegg, as cinco edições que procederam a Bienal de 1969 receberam quase nenhuma

cobertura da mídia internacional, e o próprio movimento do boicote perdeu sua intensidade134. Para José

Roberto Teixeira, em 1971, a Bienal de São Paulo atravessava a sua mais grave crise desde sua

criação135. Entretanto, como apontam Amaral, de Paiva e Pereira, e Whitelegg, o período dos anos de

1970 foi marcado por esforços internos de reformulação, que atingiu um momento de virada com a

Bienal de 1981, a primeira organizada sob a clara figura de um curador em Walter Zanini.

A dimensão estrutural do movimento de boicote contra a Bienal de São Paulo em 1969 pode

ser compreendida, ainda, à luz dos protestos direcionados à Bienal de Veneza em 1968, na medida em

que eles também foram amplamente motivados por uma crítica geral às instituições de poder, acusadas

de permitir o consumo das obras de arte como mercadoria e, no caso de Veneza, a exploração turística

e comercial da cidade, aos moldes do consumismo estadunidense.

4.1. A Bienal de Veneza em disputa

Fundada em 1895 pelo governo da cidade de Veneza, a primeira bienal internacional do mundo

foi concebida em paralelo com a ocorrência crescente das Feiras Universais, apresentando obras de arte

a partir da seleção de um júri internacional, feita de acordo com nacionalidades. A partir de 1907,

132
DE PAIVA & PEREIRA, op cit., dez. 2014, pp. 75-86.
133
OLIVEIRA, Rita Alves. “Bienal de São Paulo: impacto na cultura brasileira". São Paulo em Perspectiva, vol. 15,
n. 3, 2001. p. 24.
134
WHITELEGG, Isobel. The Bienal de São Paulo: Unseen/Undone (1969-1981). Afterall Journal, vol. 22,
disponível em: https://www.afterall.org/article/the.bienal.de.so.paulo.unseenundone.19691981. Acesso em
06 nov. 2021.
135
TEIXEIRA, José Roberto. “Bienal de São Paulo: já era?”. Em VENÂNCIO FILHO, Paulo et al. 30 x bienal -
transformações na arte brasileira da 1ª à 30ª edição. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2013, p. 122.

69
diversas nações construíram seus próprios pavilhões para exibição dos trabalhos no Giardini di Castello

– uma das áreas mais modernas da cidade, construída por Napoleão. Quando o governo fascista tomou

o poder na Itália no final da década de 1920, a Bienal de Veneza passou por um período de sérias

transformações ao longo das décadas que seguiram, como a saída da prefeitura como órgão responsável

pelas exposições, que passaram a ficar a cargo do Estado definitivamente a partir de 1938, com a lei

“Novo sistema da Exposição Bienal Internacional de Arte de Veneza”136.

Mesmo com a queda do governo fascista em 1946, foi somente depois dos protestos de 1968

que a Bienal de Veneza conseguiu dar forma a um novo regimento e diferentes modos de exibição,

respondendo às demandas dos protestos por uma instituição cultural permanente e independente137.

Abbie James indica que existem duas Bienais de Veneza: aquela que ocorreu em edições anteriores a

1968, e aquela que foi reformulada depois dos protestos138. De fato, após a 34ª edição, havia uma

percepção real de que a Bienal poderia ser fechada139. Porém, a instituição realizou mudanças, em

especial, a autonomia garantida às nações na formulação das exposições em seus pavilhões, a concepção

do evento através de temáticas que orientam criticamente as linguagens apresentadas, além da crescente

inclusão e premiação de trabalhos que operam críticas institucionais contundentes. Segundo Romas

Tauras, foi graças aos protestos na Bienal de 1968 que os seus organizadores passaram a adotar “um

programa curatorial ousado, mais provocante, para bienais posteriores, fazendo delas fóruns para o

debate cultural”140.

136
(tradução livre do inglês) CAGOL, Stefano Collicelli & MARTINI, Vittoria. “The Venice Biennale at Its Turning
Point – 1948 and the Aftermath of 1968”. Em GARCÍA, Noemi de Haro et al. (edts.) Making Art History in
Europe After 1945. Nova York: Routledge, 2020, p. 83.
137
Ver ibid.
138
Ainda que indique essa diferenciação, A. James também aponta que a primeira instância de uma proposição
política através do trabalho artístico se deu na Bienal de Veneza antes mesmo de 1968. Em 1966, Yayoi
Kusama contestou de maneira satírica o mercado que se operava no entorno e no interior da Bienal de Veneza
com a performance Nacissus Garden (1966), em que a artista ocupou o espaço entre os pavilhões nacionais
vendendo esferas espelhadas, produzidas em massa, por dois dólares; em questão de dias, oficiais da Bienal
exigiram que parasse a venda, mas o trabalho permaneceu no local. Ver JAMES, Abbie. “Interventions in
Venice: Art and Politics at the Biennale”. Tese de bacharelado, University of Arizona, Tucson, EUA, 2020, pp. 4
e 12-13.
139
TAURAS, Romas. “Mentalidade de Cerco, Bienal de Veneza: 1969/2019”. Wrong Wrong Magazine, n. 15,
abr.-jun. 2019. Disponível em: <https://wrongwrong.net/artigo/mentalidade-de-cerco-bienal-de-veneza-
19692019> Acesso em 14 nov. 2022.
140
Ibid.

70
De acordo com Cagoll e Martini141, na visão dos manifestantes, a Bienal de Veneza de 1968

incorporou todas as contradições denunciadas pelos protestos empreendidos naquele ano, que viram na

Bienal mais antiga do mundo um símbolo da disputa cultural contra as instituições. De modo semelhante

ao que ocorreu quando o movimento de boicote contra à Bienal de São Paulo enxergou nesta instituição,

em 1969, um símbolo da ditadura militar brasileira e a culpabilizou por participar da manutenção das

estruturas de poder, a Bienal de Veneza no ano anterior (um ano marcado por vários protestos ao redor

do mundo, motivados por pautas civis, raciais, feministas, ecológicas, humanitárias etc.) foi acusada de

combinar “arte e dinheiro numa aliança profana”142, ilustrado pela presença de um balcão de vendas na

exposição, que foi abolido após a edição de 1968143. Convém lembrar que o manifesto Non à la

Biennale, citado no capítulo 3, deixa explícito que as suas motivações se iniciaram em maio de 1968,

quando artistas e intelectuais se posicionaram contra a “cultura oficial”. Além disso, o manifesto

também cita o obscuro sistema de seleção das Bienais, no plural, o que certamente implica também a

Bienal de Veneza, considerando o contexto abordado.

Sobre o que causou os acontecimentos que marcaram aquele contexto, Moacir do Anjos aponta

que:

1968 teria sido, dessa forma, o momento catalisador de processos que o

antecedem e a ele sobrevivem: o instante em que vontades e desejos de

transformação, gestados ao longo de um tempo anterior, se impuseram com

vigor, distendendo sua presença para adiante. Não há nesse caso, contudo, um

único acontecimento capaz de marcar, de maneira inequívoca, o início desse

ano extenso. [...] O que é possível dizer, todavia, é que 1968 é emblema do

espírito de uma época de fronteiras imprecisas, em que padrões de relações

141
CAGOL & MARTINI, op cit., 2020, pp. 83-100.
142
(tradução livre do inglês) DI STEFANO, Chiara. “The 1968 Biennale. Boycotting the exhibition: An account of
three extraordinary days”, em RICCI, Clarissa (edt.). Starting from Venice. Studies on the Biennale. Milão: Et al.
Edizioni, 2010, p. 130.
143
TAURAS, op cit.

71
humanas há muito vigentes foram interrogados como nunca antes haviam

sido.144

Na Itália, é possível observar que as demandas por reformas das instituições democráticas que

ainda eram governadas sob estatutos decretados pelo regime fascista dos anos de 1930 e 1940, tal como

a Bienal de Veneza145, convergiram com a retórica revolucionária e anti-establishment do manifesto

Arte Povera: Appunti per uma guerriglia [Arte Povera: Notas para uma guerrilha], publicado em 1967

e apropriado pelos protestos de 1968 na Europa, que denunciavam uma nova onda de “anti-

americanismo” compatível à crítica da Arte Povera direcionada à sociedade do consumo146. A Arte

Povera, caracterizada pelo uso de materiais precários como forma crítica à sociedade do consumo,

também ecoa a vontade crescente da arte contemporânea àquele período de desmanchar as barreiras

entre a arte e a vida, entre a política e o objeto estético, frequentemente através de procedimentos

conceituais que demandavam a aproximação ativa do sujeito espectador.

Um artista italiano, Gastone Novelli, além de apoiar o fechamento do pavilhão nacional durante

os protestos na abertura da 34ª Bienal de Veneza, tomou uma atitude mais enfática ao virar suas telas

contra as paredes e escrever em tinta preta sobre o seu verso “A Bienal é fascista!”147, contribuindo para

a aproximação, mesmo que análoga, com a radicalidade política da Arte Povera. Além disso, o anti-

americanismo que caracterizava os adeptos dessa produção e simpatizantes de suas ideias políticas, e

os manifestantes de 1968 de modo geral, pode ter sido provocado pela presença de grandes nomes da

Pop Art entre os expositores da 34ª Bienal de Veneza, como Roy Lichenstein e Andy Warhol. De fato,

na 32ª edição, em 1964, a atribuição do grande prêmio de pintura a Robert Rauschenberg causou grande

revolta na imprensa e no meio artístico italianos, visto como uma imposição da política externa

estadunidense148. Isso é análogo às manifestações contrárias à grande presença da Pop Art na 9ª Bienal

144
DOS ANJOS, Moacir. “Quando foi 68?”. Em ROLNIK, Suely et al. Quando foi 68?. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco, Editora Massangana, 2010, pp. 41-42.
145
CAGOL & MARTINI, op cit., 2020, pp. 90-91
146
CULLINAN, Nicholas. “From Vietnam to Fiat-nam: The Politics of Arte Povera”. OCTOBER 124, março-maio
2008, p. 9.
147
DI STEFANO, op cit., 2010, p. 132.
148
CULLINAN, op cit., 2008, pp. 13-17.

72
de São Paulo, de 1967, brevemente comentada no capítulo 2, e seria mais uma forma de aproximar as

histórias das exposições das duas mais antigas instituições bienais.

Ainda que essa vertente não tenha abertamente endossado os protestos à Bienal em 1968,

quando “multidões se reuniram perto do Giardin [della Biennale] para protestar condições injustas de

trabalho, a Guerra do Vietnã, e a desconfiança geral do Sistema”149, o teor político de seu partido

estético-conceitual pode permitir certa aproximação ao posicionamento de alguns artistas que exporiam

na mostra: a recusa em mostrar seus trabalhos diante da força policial que esperava os manifestantes no

Giardini (espaço central da Bienal de Veneza) nos dias de preview da mostra150.

A abertura prévia da 34ª Bienal para críticos de arte e outras figuras do meio foi manchada pela

presença de “ampla proteção policial”151, convocada pelo presidente Favaretto Fisca em antecipação à

presença de manifestantes. Algumas centenas de estudantes apareceram para protestar em apoio a um

movimento de boicote às Bienais que já havia se iniciado152 (figs. 13 e 14). Segundo Romas Tauras,

ativistas “tinham ocupado alguns dos pavilhões nacionais, virando, noutros as obras de arte contra a

parede ou envolvendo-as em bandeiras anti-guerra. Ao final do dia, os polícias [sic] foram implicados

em medidas repressivas contra uma manifestação na praça de São Marcos”153. Os estudantes presentes

nessa manifestação publicaram um manifesto, distribuído em panfletos, acusando a Bienal de ser um

“instrumento da burguesia para codificar uma política de racismo e subdesenvolvimento cultural para

a comercialização de ideias [...] uma atividade turística para os ricos”154. Em solidariedade aos protestos

estudantis e seu confronto com a força policial repressiva, artistas retiraram ou alteraram seus trabalhos

em exposição, e alguns, inclusive, se uniram às manifestações (fig. 15).

149
(tradução livre do inglês) ALTAMONTE, Jenna. “(Dis)Rupture, (Re)Engage: Occupation and Protest at the
Venice Biennale” em NEVES, Pedro Soares, TUNALI, Tijen (edts.), UXUCS – Interaction Design, User Experience
& Urban Creativity Scientific Journal: Art and Urban Social Struggles. Publicação independente, UC Scientific
Journals, vol. 1, n. 1, dez. 2020, p. 72.
150
Ver DI STEFANO, op cit., 2010, pp. 130-133.
151
JAMES, op cit., 2020, p. 11.
152
DI STEFANO, op cit., 2010, p. 130.
153
TAURAS, op cit.
154
(tradução livre do inglês). ALLOWAY, Lawrence. The Venice Biennale 1895-1968: From Salon to Goldfish
Bowl, citado em JAMES, op cit., 2020, pp. 11-12.

73
Do lado de fora do pavilhão francês, Nicolas Schoffer escreveu “CHIUSO” (fechado)

em um pedaço de papel branco acompanhado de uma foto inequívoca de incriminações

policiais durante os protestos de maio na França. O pavilhão sueco também foi fechado

e um aviso postado do lado de fora deixava claro a intenção de não abrir ao público

enquanto a polícia estivesse presente no espaço da exposição. O aviso, que terminava

com a frase em italiano “la Biennale è morta!” (a Bienal está morta!), foi rapidamente

removido por um agente público. Achille Perilli e Gastone Novelli foram os primeiros

a protestar no pavilhão italiano, uma dissidência ecoada imediatamente pelo pintor

Ernesto Treccani que anunciou aos corredores ainda meio vazios “A Bienal não é um

local de uma exposição de arte, mas sim um quartel!”155

Fig. 13 – Estudantes em manifestação na 34ª Bienal de Veneza (1968)

155
(tradução livre do inglês) DI STEFANO, op cit., 2020, p. 131.

74
Fig. 14 – Estudantes em manifestação na 34ª Bienal de Veneza (1968)

Fig. 15 – Manifestações na praça São Marcos, 34ª Bienal de Veneza (1968). Um dos cartazes carrega

os dizeres “La Svezia dice no alla Biennale della polizia” [“A Suécia diz não à Bienal da Polícia”]

75
No caso da participação brasileira na 34ª Bienal de Veneza, organizada por Ciccillo Matarazzo

e pelo crítico Jayme Maurício156, a pesquisa não se deparou com registros da sua interação com os atos

empreendidos por outros artistas. A única menção ao ocorrido foi aquela brevemente assinalada por

Mira Schendel em carta de junho de 1969, que citamos anteriormente no capítulo 3. Na Bienal de

Veneza de 1968, além de Schendel a representação brasileira na exposição contou com obras de Lygia

Clark (com uma retrospectiva dos dez anos de sua produção), Mary Vieira, Anna Letycia Quadros e

Farnese de Andrade.

A atitude adotada por alguns artistas, de protesto ou recusa em mostrar suas obras enquanto

houvesse presença policial na exposição, foi amplamente revertida uma vez que os confrontos com os

estudantes diminuíram157. Esse fato contribui para uma necessária diferenciação entre a disputa artística-

política na 34ª Bienal de Veneza e aquela relativa à 10ª Bienal de São Paulo. Nessa última exposição,

a disputa empreendida pelo movimento de boicote foi teórica, à medida que reivindicou a ausência.

Essa disputa teórica é exercida de forma contrária à reflexão de Flusser acerca da hierarquia da

exposição, discutida no capítulo 3. Pois os verdadeiros teóricos da exposição deveriam ser aqueles que

desfrutam da “vida contemplativa”, seus “pacientes”, ou espectadores. Na exposição italiana, o embate

foi um fator presente, produzido pelo encontro dos protestos que marcaram o ano de 1968 com o

contexto da instituição histórica que é a Bienal de Veneza. Foi, então, reforçado pela tomada de posição

política por parte de artistas, os “agentes” da exposição, reagindo a um contexto em que o encontro do

objeto de arte com o público da arte não poderia ignorar conflitos sociais e políticos maiores que a

exposição de arte.

A inviabilidade de visualização das obras estabelecida pelos gestos temporários de fechamento

dos pavilhões ou de encobrimento de imagens tem de ter sido constatada pelos primeiros visitantes da

exposição, uma vez que ela foi inaugurada para o público geral num ambiente de “desolação de

pavilhões inacabados e meio vazios”158. Essa inviabilidade temporária configura um certo poder de

156
Brasile. XXXIV Biennale di Venezia (txt. Jayme Maurício). São Paulo: Olivetti Industrial S.A., s/d.
157
DI STEFANO, op cit., 2020, p. 132. Apesar disso, o catálogo da exposição registra que ao menos um artista, o
iugoslavo Miroslav Sutej, renunciou à exposição de seus trabalhos na Bienal, e que o pavilhão da
representação sueca nunca foi aberto ao público. Ver XXXIV Venezia Biennale 1968. Veneza: Biennale di
Venezia, 1967, p. 111 e 147.
158
DI STEFANO, op cit., 2020, pp. 132-133.

76
barganha para o artista, o que não é diferente do poder político. A barganha, nesse caso, era o próprio

objeto de arte, temporariamente inviabilizado na exposição para pressionar a instituição e outras

estruturas de poder a ceder aos protestos. Com isso, se compararmos o resultado do boicote à 10ª Bienal

de São Paulo, brevemente abordado no início desse capítulo, e as transformações estruturais na Bienal

de Veneza que resultaram dos protestos e acontecimentos da exposição de 1968, mencionados mais

acima, não é impraticável constatar que o último foi mais efetivo que o primeiro.

Talvez o motivo disso seja que o encontro entre o objeto de arte e o público, característica a

natureza documental e utópica das exposições ainda segundo Flusser, é explicitamente o ponto focal

das aproximações entre arte e política na história da 34ª Bienal de Veneza. A explicitude deste encontro

é devido, justamente, aos confrontos físicos, manifestos e proclamados entre público, artistas, objetos

de arte, a instituição e o Estado. Por outro lado, no contexto da exposição da 10ª Bienal de São Paulo,

o encontro (que não se refere ao boicote, pois esse movimento não era um movimento de “ir de

encontro”, mas sim de “não ir de encontro”) deu-se de maneira muito mais silenciosa, como

demonstramos anteriormente no capítulo 3. A conjuntura arriscada da ditadura militar, com seus atos

de censura e violência, demandou que aqueles artistas que optaram participar da exposição

empregassem recursos, ao mesmo tempo, silenciosos e ruidosos – como nas imagens em alto-contrate

de Claudio Tozzi; nas enormes estruturas infláveis, de superfície uniforme e suave, de Marcello Nitshce;

e no extenso mar de ondas paradas, de linhas soltas e quase invisíveis, de Mira Schendel.

A noção que a exposição do objeto de arte configura um certo poder de barganha também pode

ser relacionada com casos mais recentes de boicote, que abordaremos por último e a seguir a fim de

demonstrar a contínua relevância de seu dilema, contundentemente sintetizado por Chiara Di Stefano:

A recusa em pendurar obras no espaço de uma exposição como ato extremo de

um artista, por si só, ilustra as convulsões dos conflitos políticos e sociais

daquele período histórico particular. Mas também estimula uma reflexão muito

77
contemporânea sobre o poder de exibir e seu uso para comunicar conceitos e

ideologias.159

4.2. A disputa continua: instâncias recentes de boicote a exposições

Desde o boicote organizado em nível nacional e internacional à 10ª Bienal de São Paulo, de

1969, e dos protestos na 34ª Bienal de Veneza do ano anterior, essa prática política tem recorrido

significativamente na história das exposições bienais. Com o avanço da globalização e a aproximação

de realidades distintas, o mundo da arte tem recebido cada vez mais escrutínio de movimentos ativistas

e políticos, e as exposições de arte e as bienais vem sendo usadas como plataformas para seus protestos.

Através de uma bibliografia relativamente limitada, e em língua estrangeira, a pesquisa conseguiu

averiguar sumariamente o contexto de casos recentes de boicote a duas exposições bienais: a 31ª Bienal

de São Paulo, de 2014, e a Bienal de Sydney, do mesmo ano. Além disso, a pesquisa também se atentou

ao estado da discussão contemporânea acerca dos paradoxos que circundam a noção de liberdade diante

do boicote a exposições de arte.

O caso do boicote à 31ª Bienal de São Paulo (2014) ficou apenas na ameaça. Numa dinâmica

análoga àquela adotada pelo protesto em à Bienal de Veneza de 1968, uma carta aberta, assinada por

55 dos 68 participantes internacionais da mostra, foi publicada na internet e nas redes sociais uma

semana antes da abertura oficial. Ameaçando boicotar a exposição, os assinantes da carta, que incluíam

dois artistas de Israel, demandavam que fosse retirado o patrocínio do governo israelense à organização

da mostra. Esse protesto foi liderado e orquestrado pelo grupo ativista internacional Boycott, Divestment

and Sanctions [Boicote, Desinvestimento e Sanções] (BDS), que desde 2005 organiza protestos contra

o governo israelense: “Os ativistas do BDS pedem pelo fim da ocupação e da expropriação do território

palestino, pela igualdade plena para todos os cidadãos palestinos de Israel e pelo direito de refugiados

palestinos retornarem às suas casas”160. A Fundação Bienal conseguiu eliminar a ameaça de boicote ao

159
(tradução livre do inglês) Ibid., p. 133.
160
(tradução livre do inglês) ESTEFAN, Kareem. “When Artists Boycott”. Art in America, Nova York, dez. 2014,
p. 38

78
alocar o apoio financeiro de Israel apenas aos artistas daquele país. Entretanto, com a permanência do

logotipo oficial do Estado de Israel nos canais de comunicação e de divulgação da mostra, e com a

obrigação contratual dos artistas - que teriam de devolver o dinheiro recebido para a produção do

trabalho destinado à 31ª Bienal caso não comparecessem -, o seu contentamento com a solução

encontrada pela Fundação exala contradições e simplificações. Retomando a ideia de “liberdade

relativa”, porém, sugerida por Mira Schendel ao aceitar o convite de participação da 10ª Bienal de São

Paulo, a ameaça de boicote à edição de 2014 aponta para as permanências entre o passado e o presente

na história das exposições, à medida que, nesse caso recente, foram mais uma vez expostas as

complexidades institucionais e diplomáticas, a face pública e o interesse privado que caracterizam as

exposições.

No mesmo ano da 31ª Bienal de São Paulo, também foi organizado um boicote à Bienal de

Sydney. A ameaça de ausência por parte dos participantes da mostra visava o maior patrocinador do

evento, a empresa multinacional Transfield, cujas atividades no setor carcerário, especialmente a

administração dos centros de detenção australianos fora da costa, foram denunciadas161.

“Eventualmente, o presidente do conselho da Bienal de Sydney, Luca Belgiorno-Nettis, quem também

era o CEO da Transfield, renunciou seu cargo”162 e o financiamento pela empresa foi descontinuado

após aquela Bienal. Refletindo acerca do que significa, para o mundo da arte e para a curadoria de

grandes mostras internacionais, a crescente prática de boicote, Sergio Edelsztein questiona: “o que

causou a Bienal desse ano [2014], depois de mais de quarenta anos de patrocínio da Transfield, a ser

boicotada? Por que agora?”163. Essa indagação não cabe no contexto da 10ª Bienal devido às gravidades

urgentes da ditadura militar. Porém, considerando que em ambas as Bienais de 2014 as demandas do

boicote foram aparentemente atendidas, esse tom inquisitivo do autor nos permite questionar se as

demandas do boicote à Bienal de São Paulo de 1969 jamais poderiam ser realisticamente satisfeitas -

pois, visando à instância de maior autoridade no país então (o governo militar), miraram numa

161
EDELSZTEIN, Sergio. “Are Boycotts the New “Collective Curating”?”. On Curating, Zurique, edição 26, out.
2015, pp. 43-44.
162
(tradução livre do inglês) Ibid., p. 44
163
(tradução livre do inglês) Ibid.

79
instituição de arte que tentava permanecer presente, e que nada poderia fazer para “derrubar” a

autoridade.

De fato, a maioria dos materiais consultados acerca de uma possível “história do boicote a

exposições de arte” aponta para a polarização política e para a ausência de coerência, de certo modo, à

luz dos boicotes mais recentes. Uli Sigg, por exemplo, em seu texto “Collectors: Do Not Boycott

Contemporary Chinese Art” [“Colecionadores: não boicotem a arte contemporânea chinesa”]164, aponta

para os critérios duplos que muitas vezes são empregados para culpar a arte e os artistas de certos países

pelos crimes de seu governo – enquanto artistas de países como os Estados Unidos quase nunca recebem

o mesmo tipo de acusação. No caso dos artistas contemporâneos chineses, que muitas vezes são

acusados pelos proponentes do boicote de corroborar com um governo totalitário, Sigg aponta que a

maior parte deles tiveram suas carreiras seriamente interrompidas pelo próprio governo no mínimo sinal

de crítica. Porém, mesmo com a represália, muitos dele, como Ai WeiWei, permanecem

incansavelmente críticos ao regime do governo chinês, especialmente na arena internacional da arte

contemporânea. Pensando em relação às acusações feitas contra a Bienal e o governo militar no Brasil

no período da 10ª Bienal, é possível notar paralelos na tendência de culpar instâncias que sofrem,

diretamente, com a ameaça de censura governamental.

Se os proponentes do boicote apontam que a solução para não se submeter a nenhum tipo de

censura ou repressão é a ausência, ou a retirada da presença, Dave Beech brevemente compara os

movimentos de boicote a exposições de arte e os movimentos de ocupação em seu artigo propulsor “To

Boycott or Not to Boycott?” [“Boicotar ou não boicotar?”]165. Para o autor, existem muitas diferenças

importantes entre as táticas do boicote e da ocupação, mas o que torna a força política da ocupação

consideravelmente maior é quando o fato da ilegalidade está presente como negação do status quo. “A

diferença em princípio é que o boicote está limitado ao horizonte de seu protesto, enquanto a ocupação

pode ser engajada diretamente no processo de transformação política”166. Isso nos remete diretamente à

34ª Bienal de Veneza, quando a ocupação da exposição por manifestantes levou os artistas a se

164
SIGG, Uli. “Collectors: Do Not Boycott Chinese Contemporary Art”. ArtAsiaPacific, edição 59, jul./ago. 2008,
pp. 58-59.
165
BEECH, Dave. “To Boycott or Not to Boycott?”. Art Monthly, Londres, edição 59, out. 2014, pp. 11-14.
166
(tradução livre do inglês) Ibid., p. 14.

80
posicionarem de forma política sobre as suas produções, fosse seu conteúdo propriamente político ou

não. A simples presença das obras naquele contexto (elas mesmas ocupando a exposição) seria a chave

para qualquer possibilidade de transformação política real através da arte. Nesse sentido, também é

possível considerar que, apesar da atitude anti-utópica na produção de Mira Schendel, a escolha feita

da artista pela presença no contexto nacional maior que determinava a exposição da 10ª Bienal de São

Paulo, significou muito mais probabilidade de confronto com a realidade do que a ausência coletiva

promovida pelo boicote. Isso, em conjunto com o critério duplo apontado por Sigg, remete a uma

passagem da análise Isobel Whitelegg sobre Ondas paradas de probabilidade (1969):

Boicotar porque fazer outra coisa seria se colocar do lado de um Estado

repressivo é o tipo de decisão programática que já contém o conhecimento do

que é a coisa certa. Por isso mesmo, não é decisão de tipo algum. [...] o poder

deste trabalho dentro da Bienal do Boicote reside em sua capacidade

afirmativa, sua descoberta de uma razão para continuar, num momento em que

a certeza não era facilmente perceptível167

O boicote à Bienal de São Paulo no período da ditadura militar demonstra que o mundo da arte

é, justamente, este – o mundo das relações, da política, da experiência institucional, da vida social. O

exercício da liberdade relativa por artistas que optaram participar da Bienal, como Mira Schendel, e por

aqueles que aderiram ao boicote demonstra que o posicionamento “político” é imanente à exposição do

trabalho artístico, quer se queira quer não. A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz descreve o seguinte

pensamento: “Se toda arte é política, pois os significados são sempre políticos, não é possível limitá-la

apenas ao seu momento, como se ela tivesse um compromisso marcado com a ‘realidade’ e o

testemunho direto sem mediações”168. A autora sugere que a relação entre a arte e seu tempo é, na

verdade, uma limitação que impõe um compromisso que não seria inerente a ela. Ora, se a liberdade é,

167
WHITELEGG, Isobel. “O outro mundo é este. A participação de Mira Schendel na X Bienal de São Paulo”. Em
PALHARES, Taisa et al. Mira Schendel. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014, pp. 51-52.
168
SCHWARCZ, Lilia Mortitz. “Arte degenerada no Brasil ou como sair da arquibancada moralista”. Em
DUARTE, Luisa (org.). Arte censura liberdade: reflexões à luz do presente. Rio de Janeiro: Cobogó, 2018, p. 103.

81
de fato, relativa ao seu espaço e tempo, o trabalho artístico é uma das muitas formas de

comprometimento com a sua realidade, especialmente considerando as várias problemáticas

institucionais e, até mesmo, trabalhistas, que envolvem a exposição de arte. Além disso, o trabalho

artístico, como objeto de experiência, assume inerentemente esse compromisso com a “realidade”, ou,

ao menos, com a experiência da realidade, ao se colocar diante do espectador. A arte, os artistas e as

exposições já mais existiram, ou operaram, no vácuo.

82
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação entre arte e política não é produzida automaticamente a partir da constatação de um

ou de outro. Ela demanda uma tomada de posição, de perspectiva, que se assume a fim de que seja

possível avaliar de que modo a arte e a política se situam em diálogo, pois este é sempre polissêmico.

Essa polissemia é constatada no campo da história das exposições na medida em que, sendo comum à

arte e à política a ação de indivíduos no espaço público, o encontro da arte com o público registrado

pela exposição produz movimentos diversos que conflituam com as questões próprias da liberdade e do

poder. A exposição de um objeto de arte ao público não diz respeito somente a escolha do artista de

produzir o objeto e, em seguida, exibi-lo a outros, mas também subentende um posicionamento, uma

posição conscientemente tomada dentro das possibilidades de ocupação e comunicação que

determinado contexto lhe possibilita. Os possíveis sentidos dessa escolha e as implicações produzidas

pelo posicionamento tomado, por outro lado, possuem sua relevância devido ao encontro desse objeto

com o público, que tanto resulta da intencionalidade do artista, quanto é permeado por questões e fatores

do contexto maior da vida em sociedade.

Desse modo, buscamos demonstrar que o estudo acerca da relação entre arte e política na

história das exposições consiste em adotar uma perspectiva que coloque em foco e tensione os

elementos que estruturam hierarquicamente a exposição – o seu contexto, os seus agentes, o objeto de

arte e o público. Como demonstramos no primeiro capítulo, a história da Bienal de São Paulo faz dela

um contexto com fatores próprios, que colocam recorrentemente em disputa as possibilidades de poder

e de liberdade a partir das exposições. Como instituição pioneira localizada às margens do Ocidente, o

surgimento Bienal brasileira estabeleceu ambições inauditas à arte nacional, na tentativa de propiciar o

seu encontro com a produção internacional, de forma mutuamente direcionada. Os resultados e as

intenções desse encontro também são matérias de disputa desde o seu princípio, à medida que a atuação

inicial da Bienal de São Paulo exerce influência direta sobre a narrativa da história da arte brasileira

recente.

83
A importância de suas exposições é especialmente constatada a partir da ditadura militar, que

insere de vez a Bienal no contexto de disputa entre o poder político e ideológico do Estado e a sociedade

de modo geral. À medida que a Bienal de São Paulo projeta uma imagem nacional para o olhar

estrangeiro, foi do interesse do regime ditatorial exercer controle sobre suas exposições e atividades.

No segundo capítulo, demonstramos como na 9ª Bienal em 1967 houve esforços para reprimir

provocações indesejada a símbolos nacionais, especialmente à medida que tais provocações eram

particularmente enfáticas ao demandar a atuação direta do público espectador para a fruição do objeto

de arte. Dessa atuação direta, poderiam resultar percepções com o potencial de transformar criticamente

a realidade. De fato, naquele período, uma parte significativa da produção artística brasileira buscou

reagir ao cerceamento da liberdade imposto pela ditadura através de um engajamento político cada vez

maior. As diferentes formas e linguagens desse engajamento convergem na tentativa de fazer do

espectador um participante ativo na fruição do objeto de arte, o que faz com que a sua exposição ao

público adquira ainda mais possibilidades de sentido para a relação entre arte e política. À medida que

tanto os artistas quanto as instituições reconhecem o poder transformativo da arte quando essa é

oferecida para o encontro do público, coloca-se em disputa a possibilidade de se experimentar

livremente com a percepção da realidade no contexto da ditadura militar, e isso ficou evidente nos casos

de censura comentados no segundo capítulo.

Com isso, examinamos, no terceiro capítulo, os modos como o engajamento político de parte

da produção artística brasileira no período da ditadura implicaram, também, na decisão de participar ou

não da 10ª Bienal de São Paulo em 1969. Considerando os laços institucionais e financeiros da Fundação

Bienal com as diferentes instâncias governamentais, e o reconhecimento do poder ideológico de suas

exposições, muitos artistas e agentes da arte adotaram uma posição de recusa da instituição. Através do

manifesto Non à la Biennale, um boicote foi organizado contra a 10ª edição da mostra, como forma de

protestar a sua aparente subserviência ao estado de opressão e de não se implicar em concessões éticas

e morais supostamente necessária para a presença na exposição. Esse protesto contou com a adesão de

artistas brasileiros diretamente envolvidos na produção artística engajada que discutimos no segundo

84
capítulo, e demonstra que a recusa em levar o objeto de arte de encontro com o público diante de um

contexto de censura e repressão serve como forma de resistência a ele.

Porém, a história da 10ª Bienal de São Paulo, como de qualquer exposição, não pode se resumir

apenas aos fatores contextuais externos que, bem ou mal, se relacionam com o seu acontecimento. Em

face da vasta bibliografia que investiga as questões que motivaram e resultaram do boicote, nossa

intenção, no terceiro capítulo, foi contribuir especialmente para a investigação dessa exposição e seus

fatores de interação com a relação entre arte e política a partir de uma consideração daquilo que a

exposição, de fato, apresentou ao público. Ora, se a exposição é o documento histórico que registra o

encontro entre os objetos de arte e o público, uma história da exposição da 10ª Bienal de São Paulo, e

de qualquer exposição, deve também se atentar para os trabalhos que nela figuraram. No texto publicado

por Vilém Flusser em 1969 no dia da abertura dessa exposição, as discussões em torno do sentido de

uma exposição bienal em São Paulo não apenas consideram os aspectos particulares de seu contexto,

mas concluem que, em qualquer caso, na hierarquia que estrutura a dinâmica entre os elementos de uma

exposição, o público que vai de encontro ao objeto exibido ocupa o degrau mais alto. É a partir do

encontro do público com o objeto que a contemplação é capaz de produzir conhecimento e teorias sobre

a arte e a vida.

Ainda que o contexto da ditadura militar oferecesse um risco à livre expressão artística,

buscamos demonstrar que obras apresentadas pelos artistas Claudio Tozzi, Marcello Nitshce e Mira

Schendel na 10ª Bienal de São Paulo possibilitam aproximações diretas com as implicações políticas

de se levar a arte à exposição naquele momento. Em particular, a obra apresentada por Schendel, Ondas

paradas de probabilidade (1969), tenciona as noções de vazio (como aquele produzido pelo boicote)

através da materialização tênue entre transparência e opacidade, invocando, ainda, em termos literais e

simbólicos, o silêncio no espaço da exposição. Ademais, as considerações explícitas da artista sobre os

dilemas impostos pelo contexto e sobre as implicações de sua participação, diante de um movimento

amplo de ausência, estabelecem diálogos contundentes com reflexões espirituais e filosóficas, e

sugerem que a relação entre arte e política não se dá apenas em termos de manifestos ou partidos

85
ideológicos. Sob a perspectiva de uma liberdade relativa, a arte em exposição pode se aproximar da

política pelo seu lado avesso, compreendendo demais dimensões da vida.

Considerando a imperatividade da presença do objeto de arte na exposição para que o encontro

com o público seja possível e, assim, seja realizado o propósito utópico de qualquer exposição,

abordamos, no quarto e último capítulo, a história da 34ª Bienal de Veneza, de 1968. No contexto de

manifestações e protestos mais amplos, que fizeram daquele ano um marco histórico, não nos

interessamos em analisar propriamente as obras colocadas em exposição, mas sim as condições

reivindicas para que isso fosse possível, isto é, as interações factualmente estabelecidas entre

manifestantes, artistas e as estruturas de poder (a instituição e o Estado). Os primeiros tomaram

fisicamente a exposição de arte como forma de atuação e reivindicação política, através da recusa em

mostrar seus trabalhos enquanto os protestos estudantis que se desdobraram na exposição fossem

respondidos com violência policial. Elucidamos, com isso, que os artistas não somente foram bem-

sucedidos em pressionar a instituição a adotar mudanças, como também exerceram um poder de

barganha implícito no trabalho de arte e na sua exposição.

Em contraste com os efeitos surtidos sobre a Bienal de São Paulo a partir do boicote, tratados

brevemente no início do quarto capítulo, a presentificação explícita da manifestação política na 34ª

Bienal de Veneza demonstrou a potência transformadora do encontro da arte com o público. Os casos

recentes de boicotes ou protestos a exposições brevemente considerados no quarto capítulo

demonstram, ainda, a continuidade dos dilemas provocados pelo encontro entre arte e política na

contemporaneidade, à medida em que a presentificação ou a ausência da arte permanece produzindo

sucessivos questionamentos acerca do seu papel na sociedade. Se a presença do objeto de arte em

qualquer contexto que o ofereça ao encontro do público (o contexto da exposição de arte) provoca

reflexões invariavelmente interpeladas por fatores externos, dedicamo-nos a discernir os modos como

as histórias das exposições abordadas oferecem chaves para compreendermos a tensão entre liberdade

e poder, entre indivíduo e sociedade, entre objeto e público, que configura o movimento polissêmico da

relação entre arte e política.

86
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