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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro | Campus Paracambi
Pró-reitoria de Pós-graduação, Pesquisa e Inovação
Programa de Pós-graduação Lato Sensu em Educação e Diversidade

'Escravidão na Poesia Brasileira' esquece obra


literária da mulher negra

Antologia de poemas que tematizam processo histórico ainda vilipendia


trajetória de Maria Firmina dos Reis
Fernanda Miranda

Doutora em estudos literários pela Universidade de São Paulo, é autora de 'Silêncios Prescritos: Estudo de Romances de Autoras Negras
Brasileiras'

29.jun.2022 às 13h37

A escravidão na poesia brasileira - Do século 17 ao 21


Preço R$ 89,90 (714 págs.)
Editora Record
Organização Alexei Bueno

A capa de "A Escravidão na Poesia Brasileira - Do século 17 ao 21" espelha a obra "Ferramentas de Castigo",
pertencente à série "Obra Divina Não se Quebra à toa", do artista, negro, Rafael Cruz. A esta série também pertencem
"Ferramenta de Obstáculo" e "Ferramenta de Ameaça", nomes associados a tecnologias de um sistema que ainda
organiza a sociedade brasileira, sua memória e sua ideia de futuro, a escravização negra.

Em nossa literatura nacional, ferramentas poderosas têm sido desenvolvidas e aplicadas ao longo dos séculos. Um
nome muito simples as descreve, silenciamento –aquela tecnologia de fabricar esquecimentos. Sua subversão,
"exúnica" por natureza, é a espiral do tempo na memória –uma epistemologia da teima em não esquecer.

É nesse lugar que a antologia se localiza, ao trazer para o centro um tema que permeia a poesia brasileira de ponta a
ponta, mas que se mantinha à margem do sensível e dos arquivos da historiografia e da crítica.
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Organizado por Alexei Bueno, o livro reúne cerca de 80 autores e mais de 200 poemas, dispostos cronologicamente
e divididos em torno de alguns temas, como o exílio forçado, a profanação da mulher, as revoltas e fugas, Palmares,
Zumbi e outras figuras míticas, reações às leis, entre outros.

Há autores pouco lembrados, como Cassiano Ricardo, Melo Morais Filho, Catulo da Paixão Cearense e Paulino de
Brito; autores conhecidos, porém pouco visitados no âmbito do mote da antologia, como Oswald de Andrade,
Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos; e alguns —poucos— autores negros em
suas poéticas variadas, como Luiz Gama, Cruz e Sousa, Solano Trindade, Carlos de Assumpção, Edimilson de
Almeida Pereira e Henrique Marques Samyn.

Lamentavelmente, há pouquíssimas autoras presentes na obra. Entre os 60 autores que compõem o livro, só cinco
são mulheres e, destas, só uma é negra. Maria Firmina dos Reis, Narcisa Amália, Emília de Freitas, Francisca Júlia
e Cecília Meireles representam a autoria feminina na antologia.

Não houve, portanto, diálogo com o tempo presente –marcado pela presença autoral de mulheres que têm existido
em voz alta neste território textual que silencia dissonâncias da autoria hegemônica, e que também se inscrevem no
tema do livro. Tampouco parece ter sido feita pesquisa mais apurada acerca de poetas soterradas pelos regimes de
comunicabilidade e transmissão que articulam o cânone.

Contudo, o problema mais grave no âmbito da autoria feminina incide sobre a memória da única autora negra presente
na obra, uma autora já muito vilipendiada pelo silenciamento sistêmico que forja os limites do que se entende por
literatura brasileira. Há apenas uma curtíssima nota biográfica que o autor dedica a Maria Firmina dos Reis, na qual
se lê "faleceu cega, aos 95 anos, na cidade maranhense de Guimarães, na casa de uma sua ex-escrava".

O pronome possessivo aqui performa uma ficção que sequestra a pessoa, vilipendia sua trajetória e igualmente ignora
a produção crítica de pesquisadores e pesquisadoras empenhados em construir pontes mais seguras para o encontro
com essa escritora pioneira do abolicionismo brasileiro, silenciada durante todo o século 20.

Desde a pesquisa fundamental de Nascimento Moraes Filho, estudos já mostram que Maria Firmina dos Reis jamais
aceitou a escravidão. Pelo contrário, lutou contra ela com coragem, inteligência e altivez.

Maria Amélia, a ex-escravizada e ex-aluna que abrigou Maria Firmina dos Reis em sua velhice, foi, inclusive,
alforriada graças aos seus esforços, conforme mostra a biografia recente escrita por Agenor Gomes.

Excetuando essa ferramenta de castigo, o livro é um capítulo importante da historiografia literária brasileira, posto
que visibiliza, na poesia, a presença constante da experiência que nos produz enquanto sociedade a escravização de
pessoas negras e a permanência dos senhores.
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/06/escravidao-na-poesia-brasileira-esquece-obra-de-mulheres-negras.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa)

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