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Rio de Janeiro
2017
Mariana Faria Teixeira
Rio de Janeiro
2017
Catalogação na fonte
Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca de Saúde Pública
Banca Examinadora
Rio de Janeiro
2017
Às cinco pessoas sem as quais essa tese
jamais seria possível.
Meu pai tem uma teoria de que a cada 10 anos uma pessoa pode ter uma vida completamente
diferente. Aprender uma nova língua e mudar de país; se apaixonar, casar e ter filhos; fazer
uma faculdade e ingressar em uma nova profissão. São várias as possibilidades de, conforme
ele, a cada 10 anos ser/fazer da sua vida uma nova história.
O meu doutorado conclui uma história que eu comecei a escrever 10 anos atrás, em setembro
de 2007, quando me mudei para o Rio de Janeiro para trabalhar no CEBES (Centro Brasileiro
de Estudos em Saúde). Naquele momento eu tinha 28 anos, uma filha de dois anos, um
diploma de Direito e uma carteirinha da OAB, e uma trajetória profissional que variava entre
professora, empresária, garçonete, guia de turismo, advogada e organizadora de eventos.
Havia morado em Belo Horizonte, Brasília, Arraial d’Ajuda e Vila Velha.
Sobre saúde eu conhecia muito pouco. Basicamente o que eu lia nos jornais ou assistia no
Jornal Nacional. O SUS era um caos! Mesmo assim eu me lancei. Me mudei pro Rio para
iniciar ali os próximos 10 anos da minha vida, escrevendo uma nova história, de amor pelo
direito à saúde, de dedicação, de estudo e de muito trabalho. E pelas linhas dessa história
passaram tantas pessoas fundamentais, sem as quais eu não teria chegado até aqui. E por isso,
é hora de agradecer.
A primeira delas será sempre a minha Tia Sonia. Porque foi através das suas mãos que as
portas dessa estrada se abriram para mim. Foi através do seu sexto sentido aguçado (como ela
mesma gosta de dizer), que sempre sente que alguém da família está precisando de uma
ligação, um conselho, uma palavra de consolo ou de uma proposta de emprego, que eu fui
trabalhar no CEBES e conhecer o mundo da saúde pública. Obrigada hoje e sempre, Tia.
Ali no CEBES eu conheci os “grandes” da saúde pública: Nelsão, Paulo Amarante, Lenaura,
Roberto, Ligia Giovanella, Ligia Bahia, Luizinho, Ana Costa, Mario Scheffer, Chico. Quanta
honra! Eu ali, recém-chegada naquele mundo tão fascinante e já sentada à mesa com os
mestres da saúde pública. Foram meus mestres, os que me ensinaram que o conhecimento
acadêmico é muito importante, que é preciso estudar muito, mas que a saúde é um espaço
político, um espaço de luta, de democracia e de cidadania. Afinal a saúde é um direito de
todos e um dever do Estado! Aos meus grandes mestres, deixo minha eterna admiração e
gratidão.
Nesse caminho conheci amigos e companheiros de luta no campo da saúde pública. Uma
delas virou também minha irmã, que levarei para sempre, em todas as vidas que for viver
daqui pra frente. Suelen, obrigada pela amizade, a sinceridade, a lealdade e por sempre estar
ao meu lado.
O capítulo seguinte dessa história começou a ser escrito no CRIS: era o meu ingresso na
saúde global. Já com uma especialização e um mestrado na bagagem, novamente fechei os
olhos e pulei em uma nova e desconhecida aventura. No CRIS encontrei pessoas abertas a me
receber, mesmo eu estando ali só de passagem, e a me ensinar sobre tudo o que era novo para
mim. Obrigada, Claudia Parente, Anderson, Lili, Bárbara, Ana Paula.
Foi no CRIS que ouvi pela primeira vez sobre a UNASUL. Ali começamos a construir o
ISAGS: o nome, o estatuto, as cores, a logo, a primeira sede física. E foi ali também que
conheci o Paulo Buss, o Jouval, o Temporão, o Oscar Feo e o Sebastian Tobar e me
reencontrei com a Ligia Giovanella. Novamente, quanta gratidão, eu iniciando outra jornada
cercada dos grandes mestres. Novamente momento de aprender, estudar e trabalhar muito.
Muito obrigada por acreditarem em mim e me darem a possibilidade de construir junto com
vocês o ISAGS.
Já no ISAGS construí uma família: Laura, Mari, Luana, Camilla, Flávia, Bia, Felippe, Felipe,
Jana, Nança, Manoel, Beth, Ana Paula, Jorge, Sr. Márcio. Essa tese também é de cada um de
vocês. Sem o apoio, o carinho e a força de vocês eu jamais teria chegado até aqui. Obrigada,
do fundo do meu coração.
Durante os cinco anos na Unasul eu fui abraçada e recebida por cada um dos doze países da
linda América do Sul. Quanta diversidade, quanta beleza, quantos sabores e também,
infelizmente, quanta iniquidade. Aos amigos queridos, de cada cantinho da nossa América do
Sul, obrigada por fazerem parte da minha história e principalmente, por terem me permitido
ser parte da de vocês. Gracias, Thank You, Dunk U Well, Obrigada!
Nos dois últimos anos do doutorado, depois da qualificação, eu morei em três países
diferentes: Brasil, Equador e Estados Unidos.
Essa caminhada só foi possível porque tenho uma família que me inspira e me apoia
incondicionalmente. Obrigada vovó Cora por ser sempre meu maior exemplo de superação e
coragem. Aos meus quatro pais, meus irmãos, tias e tios, primos e sobrinhos, fica a gratidão
diária e o amor incondicional por tudo o que vocês representam para mim.
Duda, obrigada por fazer nossas vidas mais felizes com sua presença.
Laura, minha filhinha, minha irmã, minha amiga, minha companheira de jornada e de valores,
nunca terei como te agradecer suficientemente por tudo. Meu amor por você é infinito.
Os agradecimentos finais precisam ir para a banca, que tão gentilmente aceitou meu convite.
Novamente me vejo cercada por mestres e privilegiada por poder aprender e compartilhar.
Soy,
Soy lo que dejaron
Soy toda la sobra de lo que se robaron
Un pueblo escondido en la cima
Mi piel es de cuero
Por eso aguanta cualquier clima
(…)
(…)
Vamos caminando
Aquí se respira lucha
Vamos caminando
Yo canto porque se escucha
This study analyzes the characteristics of regional integration in health within the Union of South
American Nations (Unasur), the construction of regional health sovereignty in South America and
defines a concept of health sovereignty. The methodology of case study included a variety of sources
of information: literature and document review, semi-structured interviews with key-actors from
Unasur member countries (20 interviews) and participant observation in meetings of Unasur’s Health
Council and the South American Health Institute (ISAGS). The studied period was from 2008 to 2015.
The South American Health Council’s creation, structure, governance, actions and agenda formulation
have been described throughout triangulation and cross-verification of the collected information from
various sources. The characteristics of Unasur’s regional integration have been determined based on
the study of historical integration models in Latin America and on the political context at the time of
Unasur creation. Health initiatives in regional integration processes within Latin America have been
identified and characterized. The analysis of Unasur has demonstrated that South America has
inaugurated a new regional integration model, at the beginning of the 21st century, which does not
focus on economic integration, as did previous models, but aims at social and political integration,
combining economic and social development. As an expression of the South American regional health
integration, Unasur has created the Health Council, which is formed by the 12 member countries
ministers of health, a Coordinating Committee, Technical Working Groups, Networks and the Isags.
In the Health Council’s governance, there are multiple spaces where relationships and arrangements
between actors involved in the decision-making processes occur, both between internal instances and
spaces that incorporate actors that are external to Unasur. The most noteworthy actions of the Health
Council are the creation of Isags, as a hub for the health Council actions, and the bloc’s role as a
Health Diplomacy actor, particularly during the World Health Assembly, where the countries
presented joint positions. From the experience of the Health Council, it was evinced that Unasur
member States have chosen to claim for their health sovereignty before relevant agents of the
international system, which have historically dictated health policies in the region, through the
construction of a regional integration process that has both promoted regional health sovereignty and
individually strengthened the national health sovereignties of each member country. The continuity of
this integration process in health and sanitary sovereignty building in South America depends on a
balance between political coalitions and technical coalitions. The study concludes that health
sovereignty has established a regional resilience mechanism as it strengthened the independence and
autonomy in health of the South American countries.
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 12
3. METODOLOGIA .............................................................................................. 55
A globalização reclama ações coletivas mais efetivas por parte dos governos e de outros
atores não governamentais (Kickbusch e Berger, 2010). O fim da Guerra Fria e a aceleração
da globalização no final do século XX ampliaram a necessidade de ações coletivas eficazes
para abordar desafios comuns entre os países, como alterações climáticas e epidemias
(McInnes e Lee, 2012). Como forma de responder a essa crescente demanda à cooperação
entre os países, a integração regional e a formação de blocos tornam-se cada vez mais
presentes. Inicialmente centrados na integração comercial e econômica, os modelos
vigentes de integração e cooperação passam a ser questionados (Ruiz, 2007).
Kickbusch e Berger (2010, p.19) destacam que a saúde apresenta desafios que ultrapassam
fronteiras e que precisam ser resolvidos de forma conjunta pelos países, “as questões de
saúde estão ultrapassando o reino puramente técnico e se tornando um elemento essencial
da política externa”. Segundo McInnes e Lee (2012), a saúde há muito se relaciona com as
políticas externas dos Estados, porém, nos últimos anos, os problemas de saúde têm se
tornado globais, o que ampliou a relação entre a saúde e a política internacional.
O Embaixador Simões (2011) afirma que apesar das diferenças políticas e econômicas dos
países da América do Sul, a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul)
representa o amadurecimento da região de trilhar um caminho comum para fortalecer a
região frente aos desafios de um mundo multipolar. A proposta inovadora da Unasul de
buscar acelerar, não apenas o desenvolvimento econômico regional, mas o
desenvolvimento social de seus países-membros e do bloco, inauguraria um novo
paradigma para as relações internacionais (Simões, 2011). Segundo Sanahuja (2011) a
Unasul expressa um regionalismo anti ou pós-neoliberal e não deve ser considerada uma
12
iniciativa de integração do sentido clássico visto que não pretende ser uma integração
econômica nem pressupõe atribuir competências a órgãos supranacionais.
Scotti (2013) afirma que a integração regional ocupa lugar de destaque na agenda política dos
Estados e é um dos fenômenos internacionais de maior importância do século XXI.
Segundo Legler (2013) existe atualmente uma proliferação de publicações que fazem
afirmações e suposições sobre os processos de integração regional na América Latina e em
particular na América do Sul e sobre a influência desses processos na soberania nessas
regiões. Contudo, são raros estudos sistematizados que analisam e avaliam o impacto desses
processos de integração regional no significado e nas práticas da soberania na América do
Sul.
Riggirozzi (2012) destaca que as pesquisas sobre integração floresceram nas últimas décadas
em todo o mundo, porém a ênfase desses estudos permanece no campo da segurança e da
economia, enquanto as questões políticas e sociais na construção regional possuem pouca
visibilidade no campo acadêmico.
Este estudo buscou aprofundar as bases teóricas e ampliar o conhecimento acumulado sobre a
importância da saúde no processo de integração regional na América do Sul, especificamente
a partir do estudo de caso do Conselho de Saúde Sul-americano (CSS) da Unasul. O tema
requer uma aproximação interdisciplinar, reunindo conteúdo produzido em distintas áreas do
conhecimento, visando à complementaridade a fim de cerrar lacunas conceituais, como
relações internacionais, ciência política, direito internacional público e saúde pública.
A escolha por estudar o Conselho de Saúde da Unasul foi oportuna visto que o primeiro Plano
Quinquenal do Conselho Sul-Americano de Saúde esteve válido até o final do ano de 2015,
encerrando um ciclo de cinco anos de trabalho do Conselho de Saúde. Um dos propósitos
deste trabalho de doutorado é contribuir com subsídios para os profissionais envolvidos na
tomada de decisão no CSS.
Frente a essas questões, este estudo buscou delimitar e descrever distintos modelos de
integração regional, com o objetivo de identificar as características que compõem o processo
de integração regional da Unasul, para então analisar o papel que desempenha a saúde nesse
processo de integração, através da criação e atuação do Conselho Sul-Americano de Saúde e
examinar se nesse marco está se construindo uma soberania sanitária regional.
1.2. Objetivos
Objetivo Geral
O objetivo deste estudo de doutorado foi analisar a atuação do Conselho de Saúde da Unasul
de modo a contribuir com os debates sobre a integração regional em saúde e sobre construção
de soberania sanitária.
A partir do objetivo geral foram desenvolvidos cinco objetivos específicos que guiaram esta
Objetivos Específicos
Sul;
II. Examinar a construção histórica do processo de integração que deu origem à Unasul;
14
Saúde e caracterizar a atuação do CSS em duas esferas: interna aos países da América
Segundo Minayo (2013), toda pesquisa inicia-se por uma pergunta, uma dúvida, um problema
a ser investigado. Assim, algumas perguntas foram formuladas, sem a pretensão de serem
A partir das perguntas elencadas, foi definida a questão que se buscou responder nesta tese: A
América do Sul?
O capítulo 5 está dividido em duas partes que abordam a Unasul como processo de integração
regional, sua construção histórica e sua estrutura.
O capítulo 7 busca responder o último objetivo específico deste estudo. Analisa a construção
de uma soberania sanitária regional a partir da atuação do Conselho Sul-Americano de Saúde.
16
anexos com os instrumentos utilizados na pesquisa de campo estão incluídos na presente
tese.
17
2. MARCO TEÓRICO E CONCEITUAL
18
2.1. Cooperação internacional e integração regional
Outro elemento importante desse período foi a Conferência Monetária e Financeira das
Nações Unidas, que reuniu delegados de 44 países na cidade de Bretton Woods, estado de
New Hampshire, nos Estados Unidos, em 1944, com o objetivo de “reconstruir o capitalismo
mundial, a partir de um sistema de regras que regulasse a política econômica internacional”
(Desiderá Neto, 2014, p.115). O acordo de Bretton Woods instituiu um conjunto de regras
para regular a política econômica dos países, dentre as quais o atrelamento em base fixa do
dólar norte-americano ao ouro e a obrigatoriedade dos demais países de manter a taxa de
câmbio de suas moedas nacionais vinculada ao dólar. Além do pacote de medidas, foram
criadas instituições multilaterais encarregadas de acompanhar esse novo sistema financeiro
internacional: o Banco Mundial (1944) e o Fundo Monetário Internacional (1945) (Desiderá
Neto, 2014). Outras instituições no campo da cooperação internacional foram criadas neste
período, como a Organização das Nações Unidas (1945) e a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (1948) (Matta, 2005).
1
Cientista política, com mestrado pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO, Chile),
doutorado pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Associação de Investigação e Especialização em
Temas Ibero-americanos (AIETI, Espanha), Sonia de Camargo dirigiu de 1992 a 2004 o Instituto de Relações
Internacionais do Centro de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio de
Janeiro), onde foi professora por três décadas.
19
desenvolvimento por meio do fornecimento de inputs, humanos e tecnológicos.
A cooperação internacional sofreu uma reorientação a partir da década de 1970. Marcada até
então pela verticalidade, unilateralidade, por “pacotes prontos” e pela relação “norte-sul”,
inicia-se a construção de alianças entre países em desenvolvimento, “países do Sul” a hoje
denominada Cooperação Sul-Sul (Almeida et al, 2010). A cooperação sul-sul se dá entre
países do denominado “sul global” ou “sul geopolítico”, que não faz referência à localização
geográfica do país no globo, mas à sua condição de país periférico ou em desenvolvimento
(Leite, 2012). A definição de cooperação sul-sul não é homogênea, porém alguns elementos
são comuns. Segundo Oliveira e Luvizotto (2011, p.14), a cooperação sul-sul se realiza por
“ações de cooperação entre países em via de desenvolvimento” com características
horizontais, deixando de ser exclusivamente um “mecanismo de interação Norte-Sul,
passando a existir também no sentido Sul-Sul”. Buss e Ferreira (2010, p.106) definem a
cooperação sul-sul como “o processo de interação econômica, comercial, social que se
estabelece com vantagens mútuas entre parceiros de países em desenvolvimento, geralmente
localizados no hemisfério sul”.
Marcada por iniciativas de dentro para fora e pela horizontalidade, a cooperação entre países
em desenvolvimento se estabeleceu como alternativa à relação de cooperação “Norte-Sul”
caracterizada por doadores e a imposição de condicionalidades. O objetivo maior da
Cooperação Sul-Sul é construir projetos de cooperação que se enquadrem nos desígnios de
desenvolvimento dos próprios países participantes.
Celli Junior (2006, p. 22) relata que “para autores clássicos, como Bela Balassa, a
cooperação incluiria várias medidas destinadas a harmonizar políticas econômicas e
diminuir a discriminação entre os países”. Como veremos adiante, Bela Balassa descreve as
etapas do processo de integração econômica, que, diferentemente da cooperação, “encerraria
medidas que obrigam efetivamente a supressão de algumas formas de discriminação”,
levando, por exemplo, à “abolição de restrições de intercâmbio”.
Para além das distinções clássicas, entendidas a partir das relações econômicas entre países, a
cooperação internacional e a integração regional também podem ser compreendidas como
processos de escopo distinto a partir do nível de interdependência, não apenas econômica,
mas também política entre os países (Celli Junior, 2006).
Conforme nos informa Celli Junior (2006) a distinção entre integração e cooperação no atual
cenário de crescente interdependência comercial e econômica entre os países não é muito
clara e os conceitos frequentemente se sobrepõem e contêm elementos estruturais muito
21
similares. Mecanismos de cooperação podem servir como complemento de processos de
integração e processos de integração podem caracterizar-se mais como acordos de
concertação ou coordenação entre países que propriamente como mecanismos de integração
regional.
22
são também amplamente utilizados na literatura para descrever aspectos similares aos dos
processos de integração.
O primeiro modelo teórico que será descrito é o clássico modelo de integração regional
econômica de Bela Balassa (1960), que descreve as etapas do processo de evolução da
integração econômica europeia e que servirá, algumas décadas mais tarde, de base para alguns
dos processos de integração na América do Sul.
No campo das relações internacionais, diversos autores (Farrell, 2007; Lazarou, 2013; Legler,
2013) apresentam o processo de integração da União Europeia como um modelo global para a
integração regional. Segundo Lazarou (2013, p.106) “no estudo da integração regional
nenhuma entidade figura de forma tão proeminente quanto a União Europeia”. Segundo
Guimaraes e Giovanella (2006) a União Europeia representa a modalidade mais profunda de
integração regional, portanto, suas significativas conquistas a tornam um exemplo de
governança eficaz e legítimo para outros países e regiões. Ainda que reconhecendo a
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importância da União Europeia para o estudo da integração regional e de que outros processos
posteriores de integração se inspiraram no mesmo, crises de “legitimidade e eficácia” são
recorrentes no processo de integração da Europa e a crise financeira de 2008 “atingiu os
Estados-membros de forma desigual, com alguns países conseguindo seguir crescendo e
outros afundando em uma recessão prolongada”, o que gerou implicações para a estabilidade
e solidariedade no processo de integração europeu (Lazarou, 2013, p.114). Contudo a União
Europeia é o único caso de integração regional funcional envolvendo governança
supranacional, competências compartilhadas e partilha de soberania e, portanto, seu estudo é
fundamental para debater processos de integração regional (Keohane e Hoffmann, 1991).
Estudos clássicos que orientam a análise do modelo de integração econômica baseiam-se nas
obras “Integração Econômica Internacional”, de Tinbergen (1954) e “Teoria da Integração
Econômica”, de Bela Balassa (1960). Ambos clássicos da literatura sobre integração
econômica estabelecem as etapas para a integração e surgem no início da conformação da
Comunidade Europeia (Farrell, 2007).
Segundo Tinbergen (1954) e Bela Balassa (1960) o processo de integração econômica entre
países ocorre em quatro estágios: Zona de Livre Comércio; União Aduaneira; Mercado
Comum e; União Econômica e Monetária.
A etapa seguinte, o mercado comum, exige a liberalização de todos os fatores produtivos, não
somente das mercadorias, objetivo já atingido nas duas etapas anteriores. O Mercado Comum
estabelece a livre circulação de mercadorias, trabalhadores, serviços e capitais entre os
Estados-membros. Essa etapa da integração demanda a constituição de regras e instituições
que definam deveres, direitos e benefícios, assegurando que estes sejam distribuídos de forma
equitativa entre todos os Estados-membros e setores sociais integrados ao projeto (Giovanella
e Guimaraes, 2007).
O último dos estágios da integração seria a União Econômica e Monetária, que decorre da
harmonização e unificação de políticas e instituições econômicas. O objetivo a ser alcançado
seria a atribuição da política monetária e cambial para uma autoridade comunitária
supranacional que obrigue com suas decisões os Estados-membros a implementar suas
decisões (Mello, 2004).
A última das fases da integração regional, conforme Tinbergen e Bela Balassa chama atenção
para a questão da supranacionalidade como um aprofundamento necessário do processo de
integração regional. Para efetivar os acordos europeus foram constituídos organismos que
conformam espaço institucional supranacional de integração (Guimarães e Giovanella, 2006).
25
2.2.2. Supranacionalismo e intergovernamentalismo
Segundo Lazarou (2013), a União Europeia é hoje o único caso de integração regional que
implica em competências compartilhadas e com transferência de soberania dos tomadores de
decisão nacionais para as instituições supranacionais e intergovernamentais, caracterizando-
se, assim, como um modelo supranacionalista de integração regional.
Diferentemente dos autores das ciências políticas, os autores das relações internacionais e do
direito internacional público, como Sweet e Sandholtz (1997), Perotti (1999) e Quadros
(1991), argumentam que o supranacionalismo não seria caracterizado pela transferência de
soberania, mas pela delegação de determinadas competências políticas, em áreas específicas.
Segundo Sweet e Sandholtz (1997) a classificação das organizações internacionais em
supranacionais ou intergovernamentais é falha, já que elas em geral contêm elementos de
ambos e são, portanto, híbridas.
Sobre a União Europeia, Sweet e Sandholtz (1997) afirmam que em termos econômicos o
26
bloco possui características supranacionais, enquanto que em termos políticos a UE se
aproxima mais do intergovernamentalismo. Quadros (1991) complementa que não há
transferência definitiva de competências soberanas na União Europeia, pois os Estados
membros conservam originalmente seus poderes soberanos, delegando, temporariamente,
competências sobre matérias específicas. A delegação de competências decorre de um ato
soberano dos países, que decidem delegar poderes aos organismos comunitários, podendo a
qualquer tempo retomá-los, como no caso da decisão de um Estado de se desligar da UE.
Bauman (2005) alerta que o modelo supranacional não é necessariamente melhor que o
modelo intergovernamentalista. A supranacionalidade excessiva causa conflitos no momento
da implementação e a evolução da integração europeia mostra que um caminho para reduzir
conflitos pode ser a adoção de flexibilidades para a os países buscarem, autonomamente, os
melhores caminhos para atingirem os objetivos e metas definidos no processo de integração.
27
Figura 2 – Supranacionalismo e Intergovernamentalismo
No entanto, foi na década de 1970 que as reflexões sobre a interdependência tomaram força,
respaldadas na emergência de diversos eventos. A crise do petróleo e a internacionalização do
sistema financeiro dominaram a atenção dos analistas internacionais, ampliando o âmbito de
análise da interdependência, até então focada apenas nas questões de segurança relativas à
Guerra Fria. O avanço nas comunicações, o crescimento do comércio e a atuação de empresas
multinacionais ampliou progressivamente as relações entre as economias nacionais (Nogueira
e Messari, 2005).
28
A interdependência é um conceito que explica as relações entre Estados ou entre atores de
diferentes Estados incorporando outras esferas como a econômica, a social e a ambiental, para
além das questões clássicas de segurança.
O Método Aberto de Coordenação engloba quatro elementos centrais. Primeiro são fixadas
orientações para o desenvolvimento de áreas específicas de uma política e são determinados
objetivos a curto, médio e longo prazo. Na sequência, o bloco estabelece indicadores e
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referenciais qualitativos e quantitativos para facilitar a comparação entre os países com o
objetivo de estabelecer padrões desejáveis. Em seguida os países-membros adotam as
orientações da UE para suas políticas nacionais através do estabelecimento de objetivos
concretos e medidas apropriadas. Finalmente, o monitoramento e a avaliação são um
elemento fundamental do MAC. Através de monitoramento mútuo entre os Estados-membros,
os países acompanham o desenvolvimento e o progresso de cada um (Gerlinger e Urban,
2007).
Segundo Sonia Camargo, uma das maiores diferenças entre os processos de integração na
Europa e na América do Sul (comparando a UE e o Mercosul) está na relação entre
intergovernabilidade e supranacionalidade (Giovanella e Guimarães, 2007). Apesar da
diferença na organização das institucionalidades no Mercosul e na UE, é importante destacar
que o modelo de integração regional do Mercosul é inspirado no europeu e, ainda que na
atualidade se caracterize como união alfandegária o objetivo final é constituir um mercado
comum, com a livre circulação de pessoas, bens e serviços, aproximando-se da modalidade de
integração da União Europeia (Guimarães e Giovanella, 2006).
Isso significa que o Mercosul tenderia a constituir instituições supranacionais como parte da
evolução e aprofundamento de seu processo de integração regional, porém a pesquisadora
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Sonia Camargo aponta que a questão da supranacionalidade, concretizada na criação de
instrumentos e procedimentos que possam dar um marco de legitimidade e assegurar a
uniformidade e coesão do processo de integração sul-americano, possui pouca prioridade nos
debates oficiais, o que mantém o Mercosul com características de um processo de integração
intergovernamental (Guimarães e Giovanella, 2007).
A ALADI é composta por 12 países, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba,
Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, e passou por um processo de
expansão com a adesão da Nicarágua, em 2011, e do Panamá, em 2012. Dentre alguns
alcances da ALADI, estão os Acordos de Complementação Econômica (ACEs), que são
essenciais para as relações econômico-comerciais dos países-membros.
O Mercosul foi criado com o Tratado de Assunção, assinado em 1991 pela Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai. Tem como objetivo a criação de um mercado comum e a integração dos
Estados Membros, através da livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos e; o
estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum (TEC), entre outros (Kume e Piani, 2005).
O Mercosul tem como objetivo principal a integração dos Estados-partes por meio da livre
circulação de bens, serviços e fatores produtivos, do estabelecimento de uma Tarifa Externa
Comum, da adoção de uma política comercial comum, da coordenação de políticas
macroeconômicas e setoriais, e da harmonização de legislações nas áreas pertinentes. No
Mercosul, como proposta de implementação de um mercado comum, os aspectos econômicos
predominam sobre a agenda social, uma vez que num modelo aberto de integração, rege
explicitamente a lógica de mercado (Acosta, 2007) (Saludjian, 2013).
O Mercosul conta com diversas instituições regionais, das quais três, uma no âmbito jurídico,
uma no legislativo e uma no econômico merecem ser destacadas. Com sede na cidade de
Assunção, o Tribunal Permanente de Revisão (TPR), criado em 2002, substituiu o anterior
sistema de negociações intergovernamentais diretas para a solução de controvérsias que
vigorava desde 1991. Com o estabelecimento do TPR os Estados-parte do Mercosul recorrem
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aos árbitros nomeados por cada país-membro que trabalham para garantir a correta
interpretação, aplicação e cumprimento dos instrumentos fundamentais do processo de
integração (Mercosur.int). Além da instância jurídica, o Mercosul conta também com uma
instituição legislativa. Em 2006, os Parlamentos Nacionais dos Estados-membros aprovaram
o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul. Sediado na cidade de Montevidéu, no
Uruguai, o Parlamento do Mercosul é composto por 18 representantes por país, indicados
pelos seus respectivos Parlamentos Nacionais, com reuniões ordinárias previstas para ocorrer
uma vez por mês (Mercosur.int). No âmbito econômico foi criado o Fundo para a
Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), que é um fundo destinado a financiar
programas para promover a convergência estrutural; desenvolver a competitividade;
promover a coesão social, em particular das economias menores e regiões menos
desenvolvidas e apoiar o funcionamento da estrutura institucional e o fortalecimento do
processo de integração. O Focem opera com contribuições voluntárias dos países-membros
(Mercosur.int).
Caldentey (2014, p. 156), em estudo realizado para a Cepal, resume os três modelos do
regionalismo latino-americano:
Segundo Fiori (1997, p.115), o início da década de 1980, foi marcado pela “restauração
conservadora mais extensa e radical da história moderna”. Liderado pelos governos
Reagan (EUA) e Thatcher (Inglaterra) todos os países industrializados adotaram políticas
de desregulação e deflação, que genericamente ficaram conhecidas por políticas
neoliberais (Fiori, 1997). Segundo Camargo, a conjuntura econômica internacional dos
anos 1980 era amplamente desfavorável à América Latina, que “sofria a pressão da crise
econômica dos países centrais entrelaçada com a própria crise interna de suas economias
nacionais” (Giovanella e Guimarães, 2007, p. S306).
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O Consenso de Washington (1989) representaria uma nova alternativa de crescimento
econômico para a América Latina, visto que para parte dos empresários, políticos e
intelectuais a crise enfrentada pela região seria em grande medida consequência da
demasiada interferência do Estado na economia (Esteves, 2008).
Conforme relata Chomsky (2007, p.3), essas medidas acarretaram, nos diversos países da
América Latina, uma série de efeitos negativos:
Segundo Tavares (1992), a aplicação de políticas monetárias restritivas para conter a inflação
provocou elevação das taxas de juros que contribuíram para o aumento das dívidas externa e
interna, deteriorando as contas públicas e resultando em menos recursos para os setores
sociais. Já a abertura comercial e a integração ao mercado internacional, em vez de tornar
as empresas mais competitivas e propiciar a modernização da estrutura produtiva, prevista
pela tese neoliberal, resultou na desintegração das indústrias nacionais, na desnacionalização
produtiva e na quebra de empresas o que, finalmente, ampliou o desemprego.
Com a crise na economia mundial do final dos anos 1980 a integração regional surgia como
36
uma alternativa aos mercados dos países centrais que tendiam a se fechar (Giovanella e
Guimarães, 2007), e a resposta dos países da América Latina veio em forma de integração
baseada em modelos econômicos, alinhados à vitória do “liberalismo pós-guerra fria”
(Saludjian, 2013, p.7). O modelo de integração aberto ou neoliberal (Quadro 1) esteve
embasado em acordos comerciais regionais que objetivavam dar aos mercados internos maior
eficiência competitividade internacional frente ao crescente processo de globalização da
economia (Sanahuja, 2012). Neste contexto o governo norte-americano lançou em 1990 a
Iniciativa para as Américas, que estabelecia como meta final a formação de uma zona de livre
comércio da qual fizessem parte todos os países do continente americano, a Área de Livre
Comércio das Américas (ALCA) (Esteves, 2008).
Para além da forte influência norte-americana, emergiram nesse período quatro processos de
integração econômica na América Latina.
Segundo Saludjian (2013), a ênfase dos processos de integração no período do modelo aberto
era eminentemente comercial e os processos eram regidos pela lógica de mercado. Esses
processos ocorreram no final dos períodos de ditadura na região, a partir da retomada dos
acordos setoriais de coordenação produtiva entre Argentina e Brasil.
Este ciclo de integração regional neoliberal continuou até os anos 2000 e marcou um período
relativamente consistente da integração regional latino-americana (Sanahuja, 2012). O
aprofundamento dos níveis de desigualdade social na América Latina, ocasionado pelas
políticas neoliberais de ajuste estrutural levou a uma reação de segmentos sociais há muito
alijados do cenário político. Segundo Saludjian (2013, p.3) a partir da primeira década do
século XXI a integração regional foi vista como “forma de melhorar a competitividade
sistêmica, aproveitando as economias de escala a nível regional em situação econômica
37
favorável” em um momento no qual os países da região buscavam encontrar alternativas aos
modelos de desenvolvimento implementados nas décadas de 1960 a 1980, enquanto os
governos de esquerda ou progressistas que ocuparam a arena política na América do Sul
demostravam rejeição às estratégias neoliberais.
Desde os anos 2000, três projetos de integração têm-se configurado na América Latina com
características do modelo “pós-neoliberal”: a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa
América - Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP), a Comunidade de Estados Latino-
Americanos e Caribenhos (Celac) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) (Legler,
2013).
38
Quadro 1 – Modelos históricos de integração regional na América Latina
Modelo Desenvolvimentista Aberto ou Neoliberal “Pós-neoliberal”
Fonte: Elaborado a partir de Baumann (2005), Esteves (2008), Sanahuja (2012), Riggirozzi e Tussie (2012) e
Legler (2013).
Os otimistas, como Sanahuja, Riggirozzi e Tussie, sugerem que está emergindo desses
processos de integração um novo regime de soberania, especialmente na América do Sul, que
ultrapassa as fronteiras nacionais e está relacionada à construção de um sistema de
governança regional. Sistema esse que inclui não apenas os chefes de Estado, mas integra
39
organizações intergovernamentais, a sociedade civil transnacional e os cidadãos.
Os céticos, como Legler e Saludjian, por sua vez, reconhecem que os processos de integração
mais recentes, “pós-neoliberais”, trouxeram mudanças, contudo, consideram que estas foram
acompanhadas de práticas persistentes e tradicionais. Esses autores destacam a manutenção e
constância dos antigos padrões institucionais e práticas políticas, e, portanto, não veem grande
avanço dos processos de integração “pós-neoliberais” em relação aos modelos anteriores
(Legler, 2013). Outra questão observada é a grande dispersão e fragmentação desses
processos de integração, que em vez de criar um único espaço regional coerente e fortalecido,
leva à segmentação da integração regional sul-americana (Malamud, 2013).
Ademais, apesar das mudanças observadas na política externa dos países Sul-Americanos,
com apoio à integração autônoma do subcontinente, e do discurso de oposição às ideias e
políticas neoliberais do período anterior, os novos governos progressistas mantiveram a
política macroeconômica anterior e o modelo tradicional de inserção da economia sul-
americana (Saludjian, 2013).
Durante as primeiras duas décadas dos anos 2000, os Acordos de Livre Comércio entre países
da América do Sul e mesmo com países externos à região – como Canadá, Estados Unidos e
México – continuaram a ser assinados bilateralmente. A multiplicação desses acordos
bilaterais no período mostrou que “não existe incompatibilidade entre acordos de livre
comércio e os períodos de avanços retóricos e institucionais na integração sul-americana”
(Saludjian, 2013, p.18).
A segunda década do século XXI inicia-se na região com limitações fiscais e restrições em
financiar projetos econômicos e sociais anteriormente concebidos, devido aos reflexos da
crise internacional de 2008. Saludjian (2013, p.26) chama atenção para que “sem instituições
referentes à força de trabalho, sem seguridade social, sem geração própria de bens de
capitais ou tecnologia” não é possível dinamizar o mercado interno dos países e torna “o
modelo de desenvolvimento insustentável e muito vulnerável às oscilações do mercado
mundial” (Saludjian, 2013, p.27).
Neste cenário de instabilidade externa e com a falta de mudanças estruturais que refletissem a
vontade política expressada pelos governos progressistas da região, o avanço dos processos de
integração sul-americanos do modelo “pós-neoliberal” está ameaçado. Segundo Fiori (2011,
p.9) a segunda década do século XXI é marcada pela “desaceleração do projeto de
integração sul-americana” devida à interrupção do período de convergências políticas e da
descontinuação do crescimento econômico da região. Os resultados das eleições em países
como Chile (2010), Argentina (2015) e do processo de impeachment no Brasil (2016) indicam
41
uma nova fase de governos de alinhamento à direita na região e desafiam a continuidade dos
processos de integração “pós-neoliberais”, indicando que esse modelo pode estar datado e que
os processos de integração que se constituíram no início dos anos 2000 podem ter sido viáveis
apenas em um curto período de tempo.
Os blocos regionais têm papel protagônico na arena da governança global em saúde. O atual
cenário da saúde global abarca uma “gama diversificada de interlocutores e interesses –
articulando atores estatais e não estatais” (Kickbush e Berger, 2010, p.20). E nessa arena de
múltiplos atores, os blocos regionais ocupam, formal ou informalmente, papel central, ao lado
dos Estados, nas negociações que dirigem o ambiente da política global em saúde (Scotti,
2013) (Kickbush e Berger, 2010).
Desde meados do século XIX a saúde tornou-se um desafio para as relações internacionais e a
diplomacia. A primeira Conferência Sanitária Internacional foi realizada em Paris no ano de
1851. Os objetivos da conferência estavam concentrados na tensão entre saúde e comércio
(Ventura, 2013). Almeida et al (2010, p.27) indicam o início da cooperação internacional em
saúde a partir desta data, impulsionada pelos “avanços sobre as doenças infecciosas e as
tecnologias de transporte”, o que ampliou as fronteiras das relações comerciais.
43
Atualmente a saúde assume certo protagonismo nas relações internacionais e nos temas
globais, figurando como uma negociação política de primeiro plano (Ventura, 2013). É certo
que essa crescente importância continua atrelada a questões centrais da política externa, como
segurança – como é o caso das armas biológicas e do bioterrorismo – e à defesa dos interesses
econômicos – como pandemias afetam a circulação de mercadorias, por exemplo (Kickbush e
Berger, 2010).
A high politics figurou tradicionalmente com primazia em relação ao low politics nas relações
internacionais. Porém, nos últimos anos, dado o novo contexto da necessidade de governança
global, há um crescente reconhecimento da importância dos temas da baixa política e de sua
capacidade de intervenção na alta política (Kickbush e Berger, 2010) (Nogueira e Messari,
2005). Ventura e Perez (2014, p.53) acrescentam que “na primeira década do século XXI, a
saúde ascende à agenda de instâncias como o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral
da ONU [e] torna-se tema das “great power conferences”.
McInnes e Lee (2012) destacam que apesar de saúde ser tradicionalmente vista pela política
de relações exteriores como uma área de cooperação multilateral limitada, existe uma
percepção crescente de que a globalização contemporânea causa a proliferação de
determinantes de saúde transfronteiriços e reduz a capacidade dos Estados-nacionais de
proteger a saúde de suas populações através de políticas domésticas. Consequentemente, a
globalização tem intensificado a necessidade de novas estruturas de governança global em
saúde que possam promover e coordenar ações intergovernamentais.
Governança global da saúde é um conceito que começou a ser usado na década de 1990, na
discussão sobre as deficiências da cooperação internacional em saúde e os impactos
crescentes da globalização sobre os determinantes da saúde. Governança pode ser entendida
como arranjos institucionais constituídos por autoridade reconhecida, regras acordadas para a
44
tomada de decisão e transparência no processo que envolve atores estatais e não estatais. A
governança global ocorre quando os arranjos institucionais e os atores envolvidos ultrapassam
as fronteiras dos países e as ações propostas derivam de objetivos comuns. Assim, a
governança global em saúde caracteriza-se por uma estrutura policêntrica e uma preocupação
com questões que afetam populações em todo o mundo, seja diretamente, através da
propagação global de doenças infecciosas, ou indiretamente – por exemplo, a instabilidade
política e insegurança global decorrentes da extrema desigualdade socioeconômica (McInnes
e Lee, 2012).
Segundo Kickbush e Berger (2010) a governança global em saúde exige no momento atual
uma profunda transformação, para acomodar os crescentes desafios da saúde em um mundo
definido por intensa globalização e estreitamento dos laços entre a governança global e
regional. A globalização da saúde traz novos desafios que não podem mais ser resolvidos de
forma isolada, mas dependem de ações conjuntas e coordenadas dos países.
Contudo, Ventura (2013, p.2) alerta que “quase a metade da população do planeta vive hoje
em condições sanitárias precárias, amiúde agravadas por uma situação de pobreza extrema”.
Portanto, é necessário que as ações da diplomacia da saúde, em especial dos países em
desenvolvimento, onde se concentra a maior parte dessa população negligenciada, promovam
uma reorganização na condução dos temas da saúde global.
45
2.4. Soberania regional
O tema da soberania é central nas relações internacionais, já que o Estado como ator
internacional é o objeto principal de estudo. Contudo, debates contemporâneos das relações
internacionais e da ciência política têm revisado os conceitos e práticas da soberania, em
perspectiva crítica a partir de enfoques não-estadocêntricos e com a inclusão de variáveis
como a cooperação entre Estados, as agendas globais e os atores internacionais e
transnacionais (Cardozo da Silva, 2007). Conforme a separação entre o interno e o externo se
torna cada vez mais permeável, menos legitimidade parece ter a representação política do
mundo que prevaleceu desde a fundação do sistema westfaliano (Legler, 2013). Diante desse
cenário, a revisão das teorias e conceitos sobre a soberania possui grande implicância nos
estudos sobre integração regional.
46
Bobbio et al (1998, p.1179), no Dicionário de Política, apresentam dois conceitos para
soberania, um lato e um restrito:
Segundo Voigt (2013, p.105) “a soberania significa o direito do Estado à decisão última,
tanto com referência a questões internas quanto externas”. As fronteiras, segundo Nogueira e
Messari (2005, p.152) separam a esfera doméstica da internacional com o objetivo maior de
“proteger cidadãos, governo e território das ameaças sempre presentes do mundo”. A questão
territorial, a delimitação das fronteiras para com o exterior, seria precondição imprescindível
para a manutenção da paz doméstica.
O aumento da interdependência entre os países tem sido multiplicado devido aos avanços
contínuos na área de logística e o aumento do estabelecimento de tratados internacionais,
fatores que influenciaram o comércio entre países a nível mundial, acompanhado por um
49
processo de internacionalização das relações econômicas e políticas (Krasner, 2001).
Krasner (2001) acredita que os tomadores de decisão encontram-se não diante de um dilema,
mas de forma mais severa, em uma situação paradoxal, pois a única forma de manter a
autoridade do Estado e o seu mais eficaz elemento de justificação (a ideia de soberania)
consiste no reconhecimento de suas limitações imanentes. E é a consciência do paradoxo que
faz com que os Estados passem a perceber a integração regional como um mecanismo para
aumentar seu reconhecimento internacional e capacidade de influenciar no sistema
internacional, o que em última instância fortalece sua soberania.
A União Europeia é o processo de integração regional entre países mais antigo e consolidado
do mundo, portanto é importante observar a construção de soberania regional europeia.
Segundo Canotilho (2000) as relações entre as nações na Europa, como o advento da União
Europeia e a necessidade de harmonização das legislações internas dos países pertencentes ao
bloco, dão origem ao Direito Comunitário, que é parte do Direito Internacional, porém possui
caráter supranacional. O Direito Comunitário da UE apresenta o conceito de soberania
compartilhada, na qual os Estados membros do bloco, na busca pela integração, transferem
parcelas de sua soberania, que passam a ser exercidas por todos da comunidade, a partir dos
órgãos supranacionais. Na soberania compartilhada, os países membros do processo de
integração não renunciam à sua soberania, tão somente passam a exercê-la de forma
compartilhada com os outros países naquelas matérias expressamente previstas nos tratados.
É fundamental salientar que negociar a soberania não a reduz necessariamente, visto que a
soberania é construída socialmente ao longo da história, a soberania negociada se baseia na
relação entre seus elementos constitutivos. A redução da autonomia, por exemplo, pode ser o
preço necessário para aumentar controle e legitimidade (Mattli, 2000). No caso dos países da
União Europeia, por exemplo, mesmo antes de sua entrada no bloco, muitos ajustes eram
necessários, impostos pelas regras do bloco. Mattli (2000, p.166) explica que nesses casos a
“autonomia política nacional permaneceu intacta de jure [na lei], mas de facto [na realidade]
perdeu muito do seu valor.”
Nos processos de integração regional da América Latina, por exemplo, seja nos processos que
visam à integração econômica ou nos mais recentes, que objetivam a integração política e
estratégica, existe algum nível de negociação sobre a autonomia, o controle ou a legitimidade.
A negociação não termina na constituição de uma instituição supranacional com delegação de
soberania, mas em acordos ou posicionamentos comuns em fóruns multilaterais, nos quais os
países precisam ceder, por exemplo, parte de sua legitimidade em ditar as regras, a fim de
consensuar e fortalecer assim a posição do bloco no sistema internacional, seja política ou
economicamente. A soberania negociada impõe limitações aos países, mas sempre traz
benefícios aos envolvidos e é essa a razão pela qual os Estados optam por fazer parte de
processos de integração regional (Mattli, 2000).
Na América Latina a defesa da soberania é uma tradição de muitos séculos. Nos processos de
independência essa defesa buscava a proteção dos países da região contra intervenções da
52
Europa e mais recentemente o alvo se tornou especialmente os Estados Unidos. Dentro dessa
tradição, a construção social da soberania na região tem forte associação com a defesa de
direitos humanos nacionais e da democracia (Legler, 2013).
Carrillo Roa e Santana (2012) destacam a cooperação Sul-Sul como ferramenta para a
consolidação e fortalecimento das identidades regionais no âmbito da nova ordem geopolítica
global, ou seja, os processos de cooperação e integração regional não possuem agendas
meramente técnicas, mas constituem um objetivo político estratégico de fortalecer a
identidade regional ou sub-regional dentro do sistema internacional.
Segundo Legler (2013), um traço comum dos processos de integração regional sul-americanos
mais recentes, é o fortalecimento dos Estados e a reorientação da relação com o mercado
privado e com os Estados Unidos. Esses processos atuariam de forma a fortalecer a soberania
nacional, pois a autoridade soberana nacional seria reforçada e protegida pela criação de um
escudo regional contra as forças extra regionais do mercado privado e da interferência dos
EUA e o reposicionamento regional fortaleceria a soberania de toda a América do Sul no
sistema internacional, construindo assim uma dupla soberania, na qual a soberania nacional e
a soberania regional se reforçam mutuamente.
Sobre a construção de soberania regional na região, Legler (2013, p.327) aponta que os
autores que ele classificou como otimistas sugerem que “um novo regime de soberania está
emergindo, especialmente na América do Sul, que vai além da soberania nacional, está
ligada à construção de um sistema de governo regional”, seria uma nova governança sul-
americana, que viria a fortalecer a concepção de uma soberania regional sul-americana.
Hakin (2015) anuncia que uma América Latina dividida será um ator débil em uma economia
global cada vez mais competitiva, com dificuldades de vencer as desvantagens que possui em
relação a países como os Estados Unidos e China, assim como em relação à União Europeia.
É necessário que a região construa uma visão cada vez mais unificada e um enfoque
coordenado, o que requererá que os países da região expressem sua vontade política “to
temper their demands of absolute sovereignty over their internal affair and turn to collective
regional action when valued regional norms and interests are at stake” (Hakin, 2015, p.5).
54
3. METODOLOGIA
O período de estudo foi de 2008 a 2015, iniciando-se com a criação do Conselho de Saúde,
em 16 de dezembro de 2008, até o final da vigência do primeiro Plano Quinquenal 2010-2015
do Conselho de Saúde Sul-Americano. Apesar do recorte temporal definido até o final do ano
de 2015, como parte deste estudo se desenvolve no ano de 2016, e dados os acontecimentos
55
políticos na América do Sul e no mundo, com impacto no processo de integração da Unasul,
reuniões ocorridas em 2016 e documentos publicados nesse ano foram estudados e
mencionados na análise, além disso, as considerações finais deste estudo fazem referência
também aos acontecimentos do ano de 2016.
A revisão bibliográfica foi realizada em textos provenientes dos campos da saúde coletiva,
das relações internacionais e do direito internacional público, dado que o tema é
interdisciplinar e os campos do conhecimento que foram explorados se complementam para
o melhor desenvolvimento do estudo e compreensão do tema.
Com o objetivo de definir um conceito para soberania sanitária, foi realizada revisão de
literatura na LILACS e na SCIELO, utilizando os descritores “soberania” AND “sanitária”.
A pesquisa na LILACS apresentou 10 resultados, sendo cinco textos em espanhol, quatro
em português e um em inglês. Na leitura dos 10 textos, apenas os quatro textos do autor
Paz-Soldán, em espanhol, continham o termo soberania sanitária, os demais continham as
palavras soberania e sanitária, porém sem relação. A pesquisa da Scielo resultou em apenas
seis textos, dos quais nenhum continha o termo soberania sanitária.
Análise documental
A análise documental foi realizada sobre os Tratados, Decisões, Resoluções, Atas e outros
56
documentos emanados das instâncias da Unasul relacionadas com o objeto do estudo. A
principal base documental utilizada neste estudo foi a da Secretaria Geral da Unasul,
Archivo Digital de Unasur (http://docs.unasursg.org). Outros sites foram utilizados para
encontrar documentos da Unasul que não puderam ser localizados na base principal, com
destaque para a biblioteca virtual do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde
(http://www.isags-unasur.org/biblioteca.php?cat=1&lg=1), os sites do Organismo Andino
de Saúde (http://www.orasconhu.org), da Oficina de Cooperación y Asuntos
Internacionales do Ministério de Saúde do Chile (http://www.ocai.cl) e do Ministério de
Relações Exteriores do Brasil (http://www.itamaraty.gov.br).
Com o objetivo levantar informações para a descrição do Conselho de Saúde, sua estrutura,
atuação e governança, a palavra “salud” (todos os documentos disponíveis são em
espanhol) foi utilizada como filtro no sistema de busca digital na base de documentos da
Secretaria Geral da Unasul, em cada uma das cinco instâncias da Unasul analisadas. O
57
resultado encontrado foi que a palavra saúde aparece em: 25 documentos do Conselho de
Chefas e Chefes de Estado e de Governo; 34 do Conselho de Ministras e Ministros de
Relações Exteriores; 25 do Conselho de Delegadas e Delegados e; 44 dos demais Conselhos
Setoriais da Unasul. Esses documentos juntamente com os documentos do Conselho de
Saúde, o Tratado Constitutivo e o Regulamento Geral da Unasul foram os documentos
analisados com maior profundidade e recorrência ao longo da pesquisa, totalizando 221
documentos.
Os 221 documentos foram lidos e arquivados digitalmente a partir das cinco categorias
utilizadas para analisar o Conselho de Saúde: (i) criação; (ii) estrutura; (iii) governança; (iv)
atuação; e (v) formulação da agenda. As informações obtidas por meio desses documentos
orientaram a análise do Conselho de Saúde.
A análise documental serviu para validação de fatos informados pelos entrevistados, bem
como para complementar informações obtidas na literatura e a partir das observações
participantes.
Observação participante
58
[...] “a observação participante, cuja característica principal é a inserção
do pesquisador no sistema de relações sociais, políticas e culturais da
organização ou comunidade que investiga, considera a dimensão
subjetiva do pesquisador uma condição sine qua non para a constituição
de significados e, consequentemente, para a obtenção de dados que
expressem, com mais espontaneidade e naturalidade, as intenções e
opiniões de seus informantes”. (Rodrigues Júnior, 2005, p.135).
Nunes (1993) orienta que a subjetividade não emerge do tipo de interação em si, mas "da
relação entre a interação e as condições estruturais – o quadro (frame) – que a organiza"
(p.42). Os quadros de análise – frame – objetivam analisar a interação, a experiência dos
participantes, em situações sociais. Assim, é necessário ao pesquisador/observador definir a
situação (O que está acontecendo aqui?) e articular a situação com o conteúdo da interação,
tornando-os acessíveis à observação e mais, possíveis de serem registrados e descritos. A
mesma sequência de acontecimentos é interpretada de maneira diferente se tiver lugar no
trabalho ou em uma festa, por exemplo (Nunes, 1993).
59
O período da observação participante foi de 8 meses, entre abril e dezembro de 2015,
contados a partir da liberação do Comitê de Ética (Projeto CAAE 43941915.8.0000.5240,
aprovado em 01/04/2015). Durante esse período foram acompanhadas cinco reuniões, sendo
duas do Conselho de Ministros, uma extraordinária, realizada em Genebra, em 17 de maio, e
uma ordinária, realizada em Montevidéu, em 11 de setembro; uma do Comitê Coordenador,
realizada em Montevidéu, nos dias 09 e 10 de setembro; uma reunião da Presidência Pro
Tempore do Conselho de Saúde, ocupada pelo Uruguai, com os representantes dos Grupos
Técnicos e das Redes, realizada na sede do ISAGS, no Rio de Janeiro, no dia 01 de julho e;
uma reunião do Conselho Consultivo do ISAGS, realizada no Rio de Janeiro, nos dias 02 e 03
de julho2.
Minayo (2013, p.61) ressalta que “embora haja muitas formas e técnicas de realizar o
trabalho de campo, dois são os instrumentos principais desse tipo de trabalho: a observação
e a entrevista”. A entrevista é uma forma privilegiada de interação social que tem como
objetivo construir informações pertinentes para um objeto de pesquisa. Compreendendo a
importância dessa técnica para a pesquisa social qualitativa, foram entrevistados atores-
chave no processo de integração em saúde na América do Sul.
2
Além das reuniões relatadas que foram parte da pesquisa como observação participante sistemática, após a
aprovação do Comitê de Ética, no período em que participei das reuniões da Unasul como representante do
ISAGS, entre 2011 e 2015, estive presente em cerca de 10 reuniões do Conselho de Ministros de Saúde, 15 do
Comitê Coordenador do CSS, cinco do Conselho Consultivo do ISAGS, seis reuniões por ano dos distintos
Grupos Técnicos e Redes do Conselho de Saúde, além de duas reuniões de Chefes de Estado, duas do Conselho
de Chanceleres e cerca de três por ano do Conselho de Delegados. Dos demais conselhos setoriais, estive
presente em duas reuniões do Conselho de Ministros de Desenvolvimento Social, uma do CEED e uma reunião
de alto nível de recursos naturais. Apesar dessas reuniões não serem fontes de informação sistematizada desta
tese elas informaram o meu olhar como pesquisadora, facilitando a seleção, leitura e interpretação dos
documentos, bem como a seleção e o contato com os entrevistados.
60
sociais que tivessem maior vinculação com o tema e que possibilitassem, por sua diversidade
abranger a totalidade do problema investigado em suas múltiplas dimensões (Minayo, 2004).
Nesse sentido foi elaborada a lista de atores-chave considerando, inicialmente quatro
categorias: (i) Delegados dos países que ficaram responsáveis por acompanhar o Conselho
de Saúde na Secretaria Geral (SG) e/ou delegados dos países que participaram de reuniões
do Conselho de Saúde e/ou do Conselho Consultivo do Isags; (ii) Funcionários dos
Ministérios das Relações Exteriores (MRE) dos países-membros da Unasul, membros do
Conselho de Delegados e/ou representantes dos países nas missões em Genebra que
participaram de reuniões do Conselho de Saúde; (iii) Coordenadores nacionais e/ou
coordenadores alternos que estão ou estiveram por pelo menos dois anos da posição,
garantindo a representatividade equitativa de um entrevistado por país e; (iv) Coordenadores
e/ou coordenadores alternos dos Grupos Técnicos e Redes que estão ou estiveram por pelo
menos dois anos da posição e participaram de pelo menos duas reuniões do GT ou da Rede
e/ou do Conselho Consultivo do Isags. Considerando as quatro categorias inicialmente
determinadas, deveriam ser entrevistados 32 atores-chaves.
Contudo, as duas primeiras categorias, conformadas por funcionários dos Ministérios das
Relações Exteriores dos países membros da Unasul, tiveram que ser abandonadas ao longo
da pesquisa de campo, visto que os possíveis entrevistados contatados informaram que
somente poderiam dar entrevistas sobre a Unasul se obtivessem liberação dos Ministros de
Relações Exteriores de seus países. Apenas dois dos representantes dessa categoria
concordaram em dar entrevista, e foram incorporados na nova categoria de atores-chave.
61
representados nesta categoria de entrevistados.
Compreendendo que o Conselho de Saúde atua não apenas na instância ministerial e de alto
nível, mas possui estrutura ramificada com atuação no nível técnico de suas Redes e Grupos
Técnicos, entrevistei também alguns coordenadores, coordenadores alternos ou secretários
dos Grupos Técnicos e Redes que estiveram por pelo menos dois anos na posição e
participaram de pelo menos duas reuniões do GT ou da Rede e/ou do Conselho Consultivo
do Isags, que configuram a segunda categoria de entrevistados. Por questões de limitação
temporal da pesquisa, bem como pela atividade dos próprios GTs e Redes, nessa categoria
foram realizadas cinco entrevistas.
O roteiro para a realização de entrevistas possui como parte inicial nove perguntas para a
identificação do entrevistado, que além de nome, contato e país ou instituição que
representa, também questiona sobre relação do entrevistado com a Unasul, quanto tempo
ocupou ou ocupa essa função, sua profissão, local de trabalho atual e finalmente de quantas
reuniões da Unasul participou. O Quadro 3 evidencia três das categorias do perfil dos
entrevistados: profissão, instituição onde trabalha atualmente e número de reuniões da
62
Unasul que participou.
A coluna das profissões mostra que apesar de os médicos ainda serem maioria no campo da
integração em saúde na América do Sul, representando um quarto dos entrevistados, há uma
diversificação importante nas profissões que atualmente representam países ou instituições
neste campo. A coluna seguinte mostra a importância da Fiocruz dentro das instituições que
formam o Conselho de Saúde da Unasul.
O conceito clássico de governança foi estabelecido pelo Banco Mundial na década de 1990,
que a definiu como “a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos
econômicos e sociais do país, com vistas ao desenvolvimento” (Banco Mundial, 1992, apud
Borges, 2003, p. 126). O conceito do Banco Mundial destaca a forma pela qual o governo
exerce o seu poder e os procedimentos e práticas governamentais utilizados na consecução
das metas governamentais.
64
Com vistas a ampliar o conceito de governança apresentado pelo Banco Mundial, que aborda
exclusivamente os aspectos gerenciais, a maneira como se dão os processos para o
funcionamento estatal, Bresser-Pereira (2001, p.8) define governança como “um processo
dinâmico pelo qual se dá o desenvolvimento político e através do qual a sociedade civil, o
estado e o governo organizam e gerem a vida pública”. A governança aqui se vê ampliada e
inclui os mecanismos de organização entre diversos atores com objetivo de gerir a vida
pública. Santos (1997, p. 341) expande os processos dinâmicos entre os atores e conceitua
governança como “padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e
arranjos institucionais que coordenam e regulam transações”.
Hufty, Báscolo e Bazzani (2006, pS37) assumem a governança como uma “herramienta
analítica para la comprensión de los procesos de acción colectiva que organizan la
interacción de actores, la dinámica de los procesos y las reglas del juego, con las cuales la
sociedad toma e implementa sus decisiones (...)”. Os autores afirmam que a utilização da
governança como uma ferramenta analítica pode ser aplicada em diferentes níveis, desde o
local até o global. Para analisar a governança em saúde eles definem quatro categorias
analíticas ou dimensões: os atores; as normas sociais formais e informais; os pontos nodais,
que são os espaços, presenciais ou virtuais, onde convergem vários processos, atores e
normas, e onde se produzem efeitos na tomada de decisão; e, os processos de mudanças que
ocorrem nos padrões de evolução dos pontos nodais, na interação entre os atores e sua relação
com a mudança das regras e normas.
Essa análise gerou um artigo que foi publicado como parte do desenvolvimento desta tese.
66
Unasul e a existência atualmente de uma agenda regional/sul-americana de saúde. Para esta
análise, os modelos teóricos de Kingdon e de Sabatier e Jenkins-Smith foram utilizados
como referencial.
John Kingdon (1995, p.3) define agenda como “a lista de assuntos e problemas sobre os quais
o governo e pessoas ligadas a ele concentram sua atenção num determinado momento” e
complementa sua definição explicando que “o processo de formulação da agenda restringe
esse conjunto de assuntos possíveis para o conjunto de temas que estará no centro das
atenções”, e serão esses temas que formarão a agenda.
De acordo com Kingdon (1995) uma questão passa a fazer parte da agenda (agenda setting)
quando há uma junção dos três fluxos do modelo (Figura 3), fluxo de problemas, fluxo de
soluções e fluxo político e encontra-se aberta uma janela de oportunidade (policy window).
Nessas circunstâncias, entram em ação os policy entrepreneurs, os atores do processo
decisório, que reconhecem o problema, sugerem soluções e se envolvem em atividades
políticas que tanto podem promover ou parar mudanças políticas. Kingdon (2015) divide os
atores do processo decisório em dois grupos: os visíveis e os invisíveis. O primeiro grupo,
formado pelo governo e políticos, define a agenda e o segundo, acadêmicos e burocracia,
define as alternativas ou soluções.
67
A convergência dos três fluxos impulsiona temas para que eles adquiram maior importância e
para que eles possam fazer parte da agenda, o que ocorre como resultado da presença de uma
janela de oportunidade que se abre quando existe uma mudança no fluxo político, e que se
mantém aberta por um curto período, oferecendo oportunidades de ação por parte dos atores
do processo decisório (Kingdon, 1995).
É interessante notar que segundo o modelo dos múltiplos fluxos de Kingdon (1995), a
formulação da agenda segue um processo não intencional, ou seja, não se trata de um
processo racional, onde os formuladores listam os problemas a serem enfrentados para que
sejam elaboradas propostas de solução. A formulação da agenda envolve uma convergência
de três fluxos e atuação de atores com recursos específicos de poder, além de momentos
oportunos para sua proposição.
68
Finalmente é necessário que haja um contexto político ou administrativo favorável ao
desenvolvimento da ação. O fluxo político é onde ocorrem as coalizões a partir de
negociações entre os atores envolvidos na formulação da agenda. Kingdon (1995) destaca que
três elementos compõem o fluxo político e exercem influência sobre a decisão dos temas que
entram para a agenda: o “humor” nacional, a conjuntura política, econômica e social, as
forças políticas organizadas e mudanças no interior do próprio governo.
69
Figura 4 – Fluxograma do Modelo de Coalizão de Advocacia de Sabatier e Jenkins-
Smith, 1993
70
Sabatier (1986, p.31) chama atenção para a necessidade em distinguir a influência relativa
dos funcionários eleitos e dos funcionários públicos, na formulação das políticas e tomada de
decisão para formulação da agenda. Tema que Kingdon (1995) já havia destacado ao dividir
os atores entre visíveis e invisíveis e apontar que cada grupo possui maior capacidade de
intervenção em fases distintas da formulação da agenda.
Considerações éticas
Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP para avaliação dos
aspectos éticos envolvidos especialmente nas entrevistas e foi aprovado com parecer número
CAAE 43941915.8.0000.5240, aprovado em 01/04/2015. As entrevistas foram realizadas
após a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e garantindo a
confidencialidade dos dados. O TCLE foi entregue aos entrevistados antes da entrevista. No
caso das entrevistas via Skype o termo foi enviado ao participante via correio eletrônico, para
que o mesmo pudesse assiná-lo e enviá-lo de volta ao pesquisador principal antes do início da
entrevista.
71
4. INTEGRAÇÃO REGIONAL EM SAÚDE NA
AMÉRICA LATINA
Assim como no cenário global, a saúde foi aumentando sua presença nas relações
internacionais nos países da região das Américas (Santana, 2011). Com a expansão dos
mercados capitalistas, constitui-se em 1902 a Repartição Sanitária Pan-Americana (que mais
tarde daria origem à OPAS). Pires-Alves et al (2012, p.445) destacam que “sua criação foi
parte do processo de instituição da saúde internacional como domínio da saúde pública e
índice da crescente interdependência entre os povos”. Assim, quando a ONU criou a OMS
(1948), a cooperação internacional em saúde, regida pela OPAS, já era realidade nas
Américas há meio século.
A região das Américas possui outra particularidade neste campo, especialmente na América
Latina. Entre os países latino-americanos sobressai o fato de que a cooperação em saúde
regional e sub-regional ocorre, em grande medida, inserida em processos de integração
regional (Santana, 2011). Buss e Ferreira (2011) destacam que há vantagens em estabelecer
cooperação em saúde quando realizada dentro de blocos regionais, visto que os problemas
nacionais são, em grande parte, similares e há maior identidade política entre os grupos de
países envolvidos.
72
processos de integração de fato, alguns são caracterizados por cooperação internacional entre
os países-membros. Contudo, independentemente das características especificas de cada um, a
saúde aparece como um eixo agregador nos processos de cooperação ou integração latino-
americana.
Logo de sua criação, esses processos regionais delimitaram a saúde como uma área
estratégica para a cooperação entre os países-membros. A OTCA e CELAC aprovaram
agendas estratégicas com objetivos comuns em saúde. Caricom, Mercosul, SICA e Unasul
criaram grupos de trabalho e conselhos ministeriais dedicados à saúde – Conselho de
Desenvolvimento Humano e Social, Reunião de Ministros de Saúde e Subgrupo de Trabalho
3
O Quadro 1 – Modelos Históricos de integração regional na América Latina foi apresentado no capítulo 2.
73
n. 11 (SGT11), Conselho de Ministros de Saúde da América Central (COMISCA) e Conselho
Sul-Americano de Saúde (CSS) – respectivamente. A CAN e o Caricom avançaram mais na
institucionalização de suas instâncias dedicadas à saúde com a conformação do Organismo
Andino de Saúde (ORAS-CONHU) e da Agência Caribenha de Saúde Pública (CARPHA),
instituições permanentes e com sede própria. A criação de uma empresa transnacional de
produtos farmacêuticos e um centro regulador de medicamentos ainda são propostas não
implementadas da ALBA-TCP, mas mostram a importância da saúde para este processo de
integração regional (Quadro 4).
74
Quadro 4 – A Saúde nos processos de cooperação e integração nas Américas
Organismo de
Aliança do
Cooperação/ ONU CAN Caricom OTCA Mercosul SICA ALBA-TCP Unasul Celac
Pacífico
Integração
Ano de Criação 1945 1969 1973 1978 1991 1991 2004 2005 2010 2012
Centro
Conselho de Regulador de
Reunião de
Organismo Desenvolvimento Medicamentos Agenda
Agenda Ministros da Conselho de Reunião de
Organização Andino de Saúde- Humano e Social (ALBAmed); Conselho Sul- Estratégica de
Estratégica Saúde e Ministros de Vice-Ministros e
Instância dedicada Pan-americana Convênio (COHSOD) e Empresa Americano de Coordenação
2012-2020: Subgrupo de Saúde da Subsecretários
à saúde de Saúde Hipólito Unanue Agência transnacional Saúde Regional para
Gestão Regional Trabalho n°11 América Central de Saúde
(OPAS/OMS) (ORAS- Caribenha de distribuidora e (CSS) combater à
da Saúde Saúde (COMISCA)
CONHU) Saúde Pública comercializadora pobreza e à fome
(SGT11)
(CARPHA) de produtos
farmacêuticos
Ano de Criação 1902** 1971 1973/2011 *** 1996 1991 **** 2008 *** 2015
Contou com o
Conta com o
Observatório
Sediada em A CARPHA Secretaria Instituto Sul-
Mercosul de
Washington-EUA, Secretaria possui sede em Executiva criada Americano de
Sede permanente Sistemas de
possui escritórios Executiva criada Trinidade e dois em 2007, sediada Governo em Não tem
da instância de Não tem Saúde, criado em Não tem Não tem
em 27 países, além em 1997, sediada escritórios, na na Cidade de São Saúde, inaugurado
saúde 2008 e fechado em
de oito centros em Lima-Peru Jamaica e em Salvador - El em 2011 e sediado
2015, tinha sede
científicos. Santa Lucia Salvador no Rio de Janeiro-
em Montevideo-
Brasil
Uruguai
75
COHSOD
Governança do Qualidade e
Melhoria de Promover a Criar uma empresa Consolidar a
setor saúde humanização dos
políticas e serviços melhoria da saúde, Construir um marco transnacional América do Sul
regional, a partir serviços de saúde,
públicos de saúde, incluindo o operativo e distribuidora e como um espaço
da identificação e acesso equitativo
por meio da Coordenar e desenvolvimento e instrumental comercializadora de integração em Atenção materno-
priorização dos à medicamentos,
transferência de apoiar os esforços organização de consensuado de de produtos saúde que infantil e
Harmonizar problemas possibilidade de
tecnologia e da que realizam os serviços de saúde estratégias e farmacêuticos, contribua para a oftalmológica,
legislações, regionais que contar com
difusão do países membros, eficientes e indicadores desenvolvendo o saúde de todos e atenção e proteção
promover serão abordados assistência
conhecimento individual ou acessíveis. para a comércio justo de para o dos grupos em
cooperação conjuntamente. técnica dos
acumulado por coletivamente, institucionalização medicamentos que desenvolvimento, situação de
técnica e Incentivar as organismos de
meio de para a melhoria da CARPHA da Vigilância em privilegie os incorporando e vulnerabilidade
Objetivos das coordenar ações iniciativas cooperação
experiências saúde de seus Promover a saúde Saúde Ambiental sistemas públicos integrando os por parte do
instâncias de para fomentar o regionais de saúde internacional
produzidas nos povos, dando física e mental e o na região de saúde. esforços e avanços Estado e a
saúde processo de que necessitam de multilateral,
Países-Membros, prioridade aos bem-estar das amazônica dentro Desenvolver e sub-regionais do contribuição da
integração na área cooperação regional e de
nas áreas de mecanismos que pessoas do Caribe. dos sistemas implementar um Mercosul, do difusão dos temas
de saúde e internacional. desenvolvimento
epidemiologia, impulsionam o Promover e nacionais de saúde, sistema único, Organismo de integração
compatibilizar os Seguimento, econômico dos
saúde e ambiente, desenvolvimento desenvolver que seja compatível harmonizado e Andino de Saúde regional latino-
sistemas de execução e países membros e
recursos humanos, de sistemas e medidas para a com o RSI, o Plano centralizado para o (ORAS-CONHU) americana nas
controle sanitário. avaliação dos proposta de
comunicação, metodologias sub- prevenção de Quinquenal de registro sanitário e da Organização escolas de
acordos e criação de um
serviços, controle regionais. doenças, Saúde da Unasul e dos medicamentos do Tratado de educação básica.
resoluções Grupo de
de zoonoses, preparação e com as estratégias comercializados Cooperação
emanadas do Trabalho
medicamentos e resposta a da OPS/OMS. pela empresa Amazônica
Conselho de específico para
promoção. emergências de transnacional. (OTCA)
Presidentes. saúde.
saúde pública.
Fonte: Elaborado a partir dos sites oficiais da ONU, CAN, Caricom, OTCA, Mercosul, SICA, ALBA, Unasul, Celac e Aliança do Pacífico.
76
A proliferação das instâncias permanentes para tratar do tema da saúde nos anos mais
recentes pode estar relacionada com aumento da presença da saúde na agenda das relações
internacionais, do desenvolvimento da diplomacia da saúde e, como visto, no papel
protagônico que assumem os blocos regionais na arena da governança global em saúde.
É possível identificar algumas semelhanças nos objetivos das instâncias de saúde dos
distintos processos de cooperação e integração regional (Quadro 4). Os organismos em geral
assumem o compromisso de melhorar as condições de saúde da população das sub-regiões,
identificar as prioridades sanitárias regionais e de coordenar os esforços já realizados por seus
Estados-membros. A cooperação Sul-Sul também é um ponto de convergência e aparece
como importante ferramenta para a superação das problemáticas da saúde.
77
Outra questão que merece ser observada é a busca pela não duplicação de esforços, a partir da
compatibilização e observância das agendas e avanços em saúde dos demais processos
regionais. Essa característica está presente nos objetivos do CSS e da Agenda Estratégica
2012-2020 da OTCA e representa um avanço em relação às demais instâncias. Como a saúde
está presente em quase todos os processos de cooperação e integração da América Latina, e
os países-membros se repetem em muitos deles, a duplicação de esforços, com os escassos
recursos que disponibilizam essas instâncias de saúde, é um desperdício e pode gerar atrasos
no desenvolvimento de ações e no alcance dos objetivos regionais em saúde.
A Aliança do Pacífico
78
históricos anteriores.
Apesar das marcadas diferenças, a saúde também está presente neste recente processo de
integração. A Aliança do Pacífico já realizou duas Reuniões de Vice-Ministros e
Subsecretários de Saúde, em 2015 e 2016, e nesse último encontro houve a proposta de
criação de um Grupo de Trabalho para tratar do tema da saúde. Os temas priorizados nessas
duas reuniões não inovaram muito em relação às agendas em saúde dos demais processos de
integração regional. O acesso a medicamentos e a qualidade dos serviços de saúde foram os
dois temas técnicos destacados.
79
5. A UNASUL: CRIAÇÃO E ESTRUTURA
No início do século 21 ocorreu uma vasta mudança sociopolítica na América do Sul que
impulsionou alterações no modelo de desenvolvimento, que também podem ser observadas
na abordagem da integração regional sul-americana. Novas instituições e modelos de
integração, que surgem a partir de uma renovada busca pela convergência sócio-política
regional, foram concebidos pelos líderes políticos da região com o objetivo de impulsionar
uma agenda que refletisse os valores e as proposta da América do Sul no século XXI.
Este capítulo apresenta a criação da Unasul e sua estrutura, com destaque para os Conselhos
Setoriais e para a Secretaria Geral, e analisa a conjuntura política na América do Sul presente
no momento inicial deste processo de integração regional, bem como valores e características
que dão à Unasul um caráter inovador como modelo de integração na região.
Apesar das diferenças entre os países da região, algumas características comuns estão
presentes historicamente na América do Sul: a instabilidade de governantes; a disposição
dos Estados Unidos em interferir nos processos políticos da região; uma extensa relação de
governos e golpes militares; a presença constante de líderes populistas e; um capitalismo
com moldes reacionários e dependentes que deriva do passado colonial e autoritário dos
países sul-americanos (Botelho, 2005).
80
Nos anos 1990 os processos de integração não inovaram significativamente em relação “ao
histórico padrão de relacionamento regional que primara, até então, pelo distanciamento e
pela competição entre os países sul-americanos” (Mallmann, 2010, p.16). Iniciados os anos
2000 a região viu o começo de um novo período: transcorrida mais de uma década desde o
final do último ciclo de regimes militares e superados os períodos de transição, o PIB da
América Latina cresceu acima do PIB dos demais países em desenvolvimento por cinco
anos consecutivos e a região apresentou redução progressiva da pobreza, gerou empregos,
ampliou o gasto social per capita o que gerou melhora na qualidade de vida. Esses
resultados, segundo Cardoso e Foxley (2009), foram reflexos da combinação de dois
fatores: por um lado a expansão da economia mundial e do comércio exterior e por outro a
consolidação dos regimes democráticos em todos os países da região a partir dos anos 1980
e 1990.
O conjunto de países da América do Sul iniciou o século XXI com uma população estimada
em 349 milhões de habitantes, com um crescimento econômico em um patamar acima da
média mundial4 e com um alinhamento de “governos de orientação nacionalista,
desenvolvimentistas ou socialistas, que mudaram o rumo político-ideológico do continente”
(Fiori, 2011, p.8). Foi neste contexto de modificações políticas importantes na América do
Sul que a região teceu um novo processo de integração regional que culminou com a
criação da União de Nações Sul-Americanas – Unasul (Saludjian, 2013). Sem ter como
objetivo fundamental a integração econômica e descartando a proposta de constituir um
mercado comum, a Unasul tem suas bases no fortalecimento de uma identidade sul-
americana e na criação de um mecanismo de concertação política que busca superar
diferenças, sem desconhece-las, mantendo um espaço de interlocução entre os doze países
da América do Sul (Mariano et al, 2014).
4
Segundo dados do Banco Mundial, entre 2002 e 2010, a região apresentou crescimento de 5,3% ao ano,
enquanto a média mundial, no mesmo período, foi de 3,9%.
http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG?locations=ZJ
81
Na pesquisa realizada, dos 20 entrevistados, nove falaram sobre o processo de criação da
Unasul, sendo cinco representantes do Conselho Consultivo e quatro atores-chave. Os
demais entrevistados optaram por falar apenas sobre a criação do Conselho de Saúde,
justificando desconhecimento e falta de participação no processo macro. Os nove
entrevistados que trataram da criação da Unasul descreveram experiências pessoais, a partir
da participação direta ou indireta no processo, análises a partir de conhecimento teórico,
bem como percepções de participação indireta no processo.
82
Atores-chave destacaram a ampliação da possibilidade de consensos em relação a um novo
processo de integração sul-americano, dada a prevalência de governos progressistas na
região. “Vários governos regionais apoiavam a criação da Unasul, pois tinham uma visão
de mundo parecida, o que tornava mais fácil criar consensos e pensar na integração de uma
forma mais profunda do que vinha acontecendo até então” (AC1).
83
abarcando dimensões sociais, culturais e indenitárias”.
84
integração energética, o meio ambiente, as assimetrias, os mecanismos financeiros sul-
americanos, entre outras (Quadro 6).
85
Quadro 6 – Reuniões de Chefes de Estado e Governo que antecederam a criação da Unasul, 2000-2008
III Cúpula de Cusco, Peru, 8 Criação da Comunidade Sul-Americana de Declaração de Cusco sobre a Comunidade Sul-Americana Compromisso
Presidentes de de dezembro de Nações (CASA), a partir da convergência da de Nações com o acesso de
América do Sul 2004 CAN e do Mercosul. todos à saúde
I Cúpula da Brasília, 29 e Foram estabelecidas as oito áreas de ação Declaração presidencial e agenda prioritária Reuniões
Comunidade Sul- 30 de setembro da CASA: Programa de ação Ministeriais
Americana de de 2005 1. Diálogo político Declaração sobre a convergência dos processos de Setoriais serão
Nações (CASA) 2. Integração física integração da América do Sul convocadas pelos
. 3. Meio ambiente Declaração sobre integração na área de infraestrutura Chefes de Estado
4. Integração energética Decisão sobre propostas apresentadas durante o diálogo para examinar e
5. Assimetrias presidencial promover projetos
6. Mecanismos financeiros sul-americanos Decisão sobre propostas dos presidentes do Uruguai e da específicos e
7. Promoção da coesão social, da inclusão Venezuela políticas de
social e da justiça social Declaração sobre o seguimento da cúpula América do Sul integração da
8. Telecomunicações – Países Árabes América do Sul
Declaração sobre a Cúpula Comunidade Sul-Americana em áreas como a
de Nações – União Africana Declaração conjunta sobre a saúde (...)
Colômbia
86
Reunião Local, Data Avanços Documentos aprovados Menção à saúde
II Cúpula da Cochabamba, Definição do modelo de integração, dos Declaração de Cochabamba: Colocando a Pedra Aprova a Decisão
Comunidade Sul- Bolívia, 8 e 9 de princípios e objetivos da integração Sul- Fundamental para uma União Sul-Americana “Rumo à
Americana de dezembro de Americana e estabelecimento de instâncias Decisão sobre o desenvolvimento social e humano construção de uma
Nações (CASA) 2006 de institucionalidade, incluindo o Parlamento inclusivo como um dos eixos da Comunidade Sul- política e agenda
Sul-Americano. Ademais tratam de temas Americana de Nações regional em
específicos, dentre eles a decisão que instrui Decisão sobre a integração física sul-americana matéria de saúde”
aos Ministros de Saúde que elaborem uma Decisão sobre a integração educacional sul-americana
agenda regional em matéria de saúde. Declaração dos direitos dos povos indígenas da ONU
Nesta reunião, além da Declaração principal, Decisão sobre o papel dos bosques no desenvolvimento
foram aprovados 10 documentos pelos sustentável e na estabilidade climática
presidentes. Declaração sobre a questão das Malvinas
Decisão sobre a constituição de um espaço parlamentar
sul-americano
Decisão sobre o alívio da dívida com o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID)
Decisão “Rumo à construção de uma política e agenda
regional em matéria de saúde”
Reunião dos Brasília, Brasil, É criada a Unasul, com a presença dos Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas Define como um
Chefes de Estado 23 de maio de Chefes de Estado e Governo dos 12 países da Decisão sobre o Plano de Ação da Unasul 2008-2009 de seus objetivos
e de Governo da 2008 América do Sul. Decisão sobre o funcionamento transitório da Secretaria específicos o
América do Sul Geral da Unasul acesso universal
(Constituição da aos serviços de
Unasul) saúde (Artigo 3, j)
Fonte: Elaboração a partir das atas das 6 reuniões obtidas no Arquivo Digital da Secretaria Geral da Unasul (www.docs.unasursg.org)
87
Protagonismo do Brasil e da Venezuela
O fato da primeira Reunião de Presidentes da América do Sul ( 2000) e da primeira
Reunião de Chefes de Estado da Comunidade Sul-Americana de Nações (2005) terem
sido realizadas em Brasília demonstra o protagonismo e o impulso que o governo brasileiro
exerceu no processo de integração sul-americano no século XXI. Segundo Fiori (2011, p.9)
“o Brasil assumiu a liderança política e diplomática do processo de integração do
continente”, posição que é confirmada por todos os entrevistados. Um membro do Comitê
Coordenador destacou que “o Brasil foi muito importante para a Unasul. Eu acho que
Unasul aparece num momento que o Brasil queria exercer melhor a sua ação internacional,
a sua hegemonia na América do Sul, precisava liderar de uma forma organizada” (CC3).
Mallmann (2010, p.17) também afirmava, em 2010, que o Brasil assumiu progressivamente
“os custos da integração”, tanto materiais quanto políticos, visando a integração, o
desenvolvimento e a estabilidade regionais, bem como “os interesses de projeção externa
do país”.
88
Da CASA para a Unasul
Dois anos depois da Declaração de Cusco, na qual foi criada a CASA, e um ano depois
da aprovação da agenda prioritária de Brasília, em d ezembro de 2006, os presidentes das
Nações da América do Sul se encontraram em Cochabamba, B olívia, na II Reunião de
Chefes de Estado da Comunidade Sul-Americana de Nações.
89
Quadro 7 – Princípios para a integração Sul-Americana na Unasul
A Unasul teve seu Tratado Constitutivo5 aprovado em maio de 2008 (Quadro 6), durante
a Reunião do Conselho de Chefas e Chefes de Estado e Governo, em Brasília. A
mudança da CASA para a Unasul aumentou o nível de estruturação e institucionalização
do organismo, ampliando o conteúdo das Declarações de Cusco e Ayacucho.
5
Na Declaração de Margarita, em 2007, os Presidentes instruíram os Ministros de Relações Exteriores a criar
um Conselho de Delegados Nacionais, que deveriam fazer a redação de um projeto de Acordo Constitutivo da
Unasul. Em 2008, este projeto foi aprovado e tornou-se o Tratado Constitutivo da Unasul.
90
A Unasul integra os doze países independentes da América do Sul – Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
Segundo seu tratado constitutivo, ela é uma organização de personalidade jurídica
internacional com o objetivo de construir uma identidade e cidadania sul-americana e
desenvolver um espaço de integração e união entre seus povos nos âmbitos cultural,
social, econômico, político, ambiental, energético e de infraestrutura (Unasul, 2008).
Com isso em mente, os Presidentes dos Estados Membros chegaram à conclusão que a
melhor maneira de potencializar e coordenar os esforços que já vinham sendo realizados na
91
região seria através da criação de Conselhos Setoriais e Grupos de Trabalho (Unasul,
2006). Estes Conselhos teriam natureza intergovernamental e seriam compostos em sua
maioria por Ministros dos Estados Membros das áreas de integração de seus
respectivos setores.
92
Figura 5 – Organograma da Unasul
93
Conselhos Setoriais
A Unasul possui doze Conselhos Setoriais já aprovados, criados entre 2007 e 2012,
conforme mostra o Quadro 8. Os Conselhos Setoriais se reúnem periodicamente e
elaboram planos de ação identificando problemas comuns e encontrando soluções coletivas.
94
Conselho Objetivo Criação
95
Inácio Lula da Silva (Brasil), Néstor Kirchner (Argentina), Hugo Chávez (Venezuela) e Evo
Morales (Bolívia) (Silva, 2016).
O mesmo entrevistado falou sobre como essa mudança de governo nos Estados Unidos
impactou na decisão dos Chefes de Estado da Unasul em relação à criação do Conselho de
Defesa:
A defesa e a saúde foram consideradas áreas estruturantes para a Unasul e além da criação
dos dois conselhos setoriais em 2008, também foram criados em 2009 e em 2010,
respectivamente, dois centros de pensamento estratégico para essas áreas. O Centro de
Estudos Estratégicos de Defesa do Conselho de Defesa Sul-Americano (CEED-CDS) da
UNASUL foi criado em março de 2009. Com sede fixa em Buenos Aires, Argentina, o
CEED-CDS foi inaugurado em maio de 2011. Já o Conselho de Saúde aprovou em 2010 a
criação do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), que teve sua sede
inaugurada em 25 de julho de 2011, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
96
o desenvolvimento, produção e comercialização do Avião EPB UNASUR I.
Além dos Conselhos de Saúde e de Defesa, outro conselho da Unasul que merece destaque
pela atuação e a relação com a construção e manutenção da democracia na região é o
Conselho Eleitoral. A primeira missão eleitoral da Unasul nasceu com o Grupo de
Acompanhamento Eleitoral Internacional (GAEI), que foi solicitado pelo Paraguai para o
Referendum Constitucional de 09 de outubro de 2011. O GAEI participou do processo de
votação desse referendum por convite do Tribunal Supremo de Justiça Eleitoral do Paraguai.
A partir desta experiência os Conselho de Chefes de Estado e Governo criou em 2012 o
Conselho Eleitoral. Desde 2011 até outubro de 2016 foram realizadas pelo Conselho Eleitoral
20 missões eleitorais em oito países membros.
O objetivo das missões eleitorais da Unasul é apoiar os organismos eleitorais de seus países
membros para que as etapas dos processos eleitorais sejam realizadas com imparcialidade,
objetividade, independência, legalidade e transparência.
97
2009 (Quadro 8) ele teve como antecedente estruturante a Iniciativa para a Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), que foi criada pelos Chefes de Estado no
ano 2000, quando ainda se iniciavam as negociações para a CASA. Em 2011 a IIRSA foi
incorporada ao COSIPLAN.
Todos os conselhos setoriais da Unasul mantêm reuniões periódicas (ver Quadro 9) de suas
instâncias, que podem ser a reunião dos ministros daquele setor, ou a reunião de técnicos dos
ministérios indicados para representarem os países nas instâncias executivas de cada
conselho, como é o caso do Comitê Coordenador do Conselho de Saúde, ou em instâncias
técnicas, como grupos de trabalho para temas específicos. Essas reuniões podem ser
presenciais ou virtuais, segundo o Regulamento Geral da Unasul (2012), e necessitam contar
com um quórum mínimo de países para terem validade, a regra diz que o número mínimo é
metade dos países membros mais um.
98
fóruns globais (ex.: AMS e UNGASS); (3) o tema de gestão de riscos e desastres naturais e;
(4) o intercâmbio e boas práticas entre os países membros (Quadro 9).
Reuniões
ordinárias
Conselho Última reunião, local, data Principais temas
Ministros
2008-2016
Conselho V Reunião do Conselho Aumentar o uso de recursos renováveis,
Energético Sul- Energético, Quito, Equador reduzindo os efeitos do câmbio climático e
Americano (CES) 5 1 de julho de 2016 assegurando o papel do desenvolvimento
energético como elemento fundamental da
inclusão social
Conselho de XII Reunião da Instância Plataforma web SIGRID CDS-UNASUR,
Defesa Sul- Executiva do Conselho de Atlas Sul-Americano de Mapas de Risco
5
Americano (CDS) Defesa, Montevidéu, de Desastres ocasionados por Fenômenos
Uruguai Naturais, CEED e Escola de Defesa
16 de dezembro de 2015
Conselho de Saúde XXII Reunião Posições comuns do bloco na 69 AMS;
Sul-Americano Extraordinária do Conselho Designação Diretora ISAGS; Terremoto
9
(CSS) de Saúde, Genebra, Suíça no Equador
23 de maio de 2016
Conselho Sul- VII Reunião de Ministras e Apresentação do Plano de Ação 2015-
Americano de Ministros do Conselho Sul- 2017, focado nos temas: desenvolvimento
Desenvolvimento Americano de com inclusão; segurança alimentar e luta
Social (CSDS) 7 Desenvolvimento Social, contra a fome; economia social, solidária e
Montevidéu, Uruguai inclusão produtiva; e participação social
29 de maio de 2015
99
Reuniões
ordinárias
Conselho Última reunião, local, data Principais temas
Ministros
2008-2016
Conselho Sul- VI Reunião da Instância Sinergias entre Unasul e Mercosul;
Americano de Executiva do Conselho Sul- Combate ao tráfico ilícito de bens culturais
Educação (CSE) 2 Americano de Educação, e; empoderamento dos jovens estudantes
Montevidéu, Uruguai
14 e 15 de abril de 2016
Conselho Sul- III Reunião do Conselho Convergência de agendas entre blocos da
Americano de Sul-Americano de Cultura, região; prevenção e luta contra o tráfico
Cultura (CSC) 3 Montevidéu, Uruguai ilícito de bens culturais e patrimoniais;
4 de setembro de 2015 Bienal Internacional de Arte Unasul;
programas audiovisuais Expreso Sur
Conselho Sul- Reunião de Altos Delegados Estratégias socioeducativas e sócio
Americano de do COSUCTI, Montevidéu, tecnológicas em soberania e segurança
Ciência, Uruguai alimentar; doenças transmitidas por
Tecnologia e 13 e 14 de abril de 2016 vetores; apoio científico e tecnológico a
1
Inovação projetos de outros conselhos da Unasul;
(COSUCTI) restrições financeiras na região e;
necessidade de contar com um estado de
situação da CTI da região
Conselho Sul- III Reunião do Conselho Criação da Rede Unasul contra a
Americano em Sul-Americano em Matéria delinquência organizada transnacional;
Matéria de de Segurança Cidadã, Justiça regras mínimas da Unasul sobre acesso à
Segurança Cidadã, e Coordenação contra a justiça e; relação com a União Europeia
Justiça e Delinquência Organizada
Coordenação 3 Transnacional, Montevidéu,
contra a Uruguai
Delinquência 30 de outubro de 2015
Organizada
Transnacional
(DOT)
Fonte: Elaboração a partir das atas das 12 reuniões obtidas no Arquivo Digital da Secretaria Geral da Unasul
(www.docs.unasursg.org)
Além da estrutura interna de cada conselho setorial, a Secretaria Geral da Unasul possui um
corpo de funcionários dedicados ao acompanhamento das atividades de cada conselho.
A Secretaria Geral da Unasul, com sede em Quito, Equador, é o órgão técnico e de apoio que
executa os mandatos que recebe do Conselho de Chefas e Chefes de Estado e Governo, bem
como mandatos provenientes das demais autoridades da Unasul. A Secretaria Geral possui
um corpo de funcionários misto: funcionários representantes de seus estados membros, em
grande parte funcionários dos Ministérios das Relações Exteriores dos países alocados na em
Quito por um período determinado; funcionários internacionais que passam por processo de
100
concurso internacional e se dedicam exclusivamente a atividades da Secretaria Geral da
Unasul e; funcionários nacionais, em geral para cargos de apoio, como administração,
informática e eventos. Todas os funcionários respondem ao Secretário Geral da Unasul, que é
designado para um mandato de dois anos pelo Conselho de Chefas e Chefes de Estado e
Governo.
A Unasul já teve quatro Secretários Gerais desde a criação da Secretaria Geral: o ex-
presidente argentino Néstor Kirchner foi o primeiro designado e assumiu a função em 4 de
maio de 2010. Após sua morte a embaixadora e ex-ministra de relações exteriores da
Colômbia María Emma Mejía assumiu como Secretária Geral (maio de 2011 a junho de
2012) e por impossibilidade de um acordo entre seu país e a Venezuela, dividiu o mandato
com o também embaixador e ex-ministro das relações exteriores venezuelano Alí Rodríguez
Araque (junho de 2012 a agosto de 2014). Após extensos debates, que levaram mais de um
ano, os países membros da Unasul conseguiram chegar ao consenso de um nome para
assumir a Secretaria Geral e nomearam o ex-presidente colombiano Ernesto Samper em 22 de
agosto de 2014.
Até o ano de 2015 os Conselhos Setoriais eram monitorados pelos funcionários dos
Ministérios das Relações Exteriores dos países membros que trabalhavam na Secretaria
Geral. Cada país selecionava os conselhos que gostaria de acompanhar e seus funcionários
participavam das reuniões, organizavam a documentação dentro da Secretaria Geral,
mantinham uma linha de diálogo com os Ministros e representantes dos países naquela área
específica.
101
Quadro 10 – Direções Técnicas da Secretaria Geral da Unasul
Direção Técnica Diretor, país Conselhos que acompanha
Direção de Assuntos Pedro Silva Barros, Brasil COSIPLAN - Infraestrutura e Planejamento;
Econômicos CSEF - Economia e Finanças;
CES - Energético; COSUCTI - Ciência, Tecnologia
e Inovação
Direção de Assuntos Mariano Nascone, CSC - Cultura;
Sociais Argentina CSDS - Desenvolvimento Social;
CSE - Educação;
CSS - Saúde e o ISAGS
Direção de Assuntos Mauricio Dorfler Ocampo, CSD – Defesa;
Políticos e Defesa Bolívia CEU – Eleitoral
Direção de Segurança David Álvarez Veloso, CSPMD - Problema Mundial das Drogas;
Cidadã e Justiça Chile DOT - Segurança Cidadã, Justiça e Coordenação de
Ações contra a Delinquência Organizada
Transnacional
Direção de Cooperação Ricardo Malca Alvariño, Conselho de Ministras e Ministros de Relações
Internacional e Agenda Peru Exteriores;
Técnica Convergência com organismos sub-regionais;
Cooperação internacional e relacionamento com
terceiros
Fonte: Elaborado a partir do site oficial da Secretaria Geral da Unasul (www.unasursg.org).
O modelo de integração regional proposto pela Unasul não tem como objetivo a
constituição de estruturas supranacionais ao longo da consolidação de seu processo de
integração, mas o fortalecimento das soberanias nacionais. A integração na Unasul deve
102
ocorrer pelo exercício da diplomacia dos doze Estados-membros em identificar
oportunidades e negociar acordos oportunos em distintas áreas definidas como estruturais
pelos Chefes de Estado da América do Sul, com o objetivo final de alcançar crescimento
econômico e justiça social para a região (Sanahuja, 2012) (Simões, 2011). Essa
característica, que é criticada pelos autores céticos, por considerarem que desta forma não
se chega de fato a um processo de integração regional, mas a uma instância de concertação
política, pode representar uma inovação no modelo de integração.
6. A UNASUL E A SAÚDE
103
A saúde não aparece diretamente nas prioridades elencadas nos objetivos do Tratado
Constitutivo da Unasul de 2008. Porém, a letra j do artigo 3 do mesmo tratado inclui entre
os objetivos específicos da UNASUL “o acesso universal à seguridade social e aos
serviços de saúde” (Unasur, 2008). O Tratado constitutivo da Unasul não volta a mencionar
a saúde, contudo, segundo Ventura (2013, p. 12) “a prática dos Estados-membros fez dela
[a saúde] um dos mais dinâmicos domínios da integração regional”.
Este capítulo apresenta como a saúde está inserida no processo de integração regional da
Unasul e está dividido em quatro partes. A primeira descreve o processo de criação do
Conselho de Saúde e todas as instâncias que compõem a estrutura do CSS. A segunda parte
analisa a governança do Conselho de Saúde da Unasul, a partir dos mecanismos de tomada
de decisão existentes e da identificação dos espaços nos quais ocorrem as relações e
arranjos entre os atores envolvidos. A terceira sessão deste capítulo é dedicada explorar os
campos de atuação do Conselho de Saúde entre o período entre 2008 e 2015. Finalmente a
última parte analisa a formulação da agenda em saúde da Unasul.
Sete meses após a criação da Unasul, em maio de 20086, os Presidentes da região voltaram
a se reunir na Costa do Sauipe, Bahia, para realizar a Cúpula Extraordinária da União de
Nações Sul-Americanas (Unasul), em dezembro de 2008. Nessa reunião foram assinadas a
Declaração da Costa do Sauipe e duas Decisões: uma criou o Conselho de Defesa Sul-
Americano e a outra o Conselho de Saúde Sul-Americano (doravante denominado
Conselho de Saúde ou CSS).
Os objetivos principais do CSS segundo a Decisão dos Chefes de Estado que criou o
Conselho de Saúde são:
6
Ver o Quadro 6 – Reuniões de Chefes de Estado e Governo que antecederam a criação da Unasul, no capítulo
5.
104
cooperação em saúde entre os países da Unasul;
Identificar determinantes sociais críticos para a saúde e propiciar políticas e
ações intersetoriais, tais como: segurança alimentícia, ambiente saudável,
mudança climática, entre outros;
Promover a resposta coordenada e solidária ante as situações de emergências e
catástrofes;
Promover a investigação e desenvolvimento de inovações em saúde;
Avançar no processo de harmonização e homologação de normas em saúde.
Diversos autores, Almeida et al. (2010), Bueno et al (2013), Herrero e Tussie (2015),
Riggirozzi (2014) e Ventura, 2013, examinam a criação do Conselho de Saúde a partir dos
objetivos expressados na Decisão dos Chefes de Estado, que além de afirmar a saúde como
um direito fundamental do ser humano e da sociedade e um componente vital do e para o
desenvolvimento humano, reforça a importância de que o CSS incorpore e integre os
esforços e avanços sub-regionais do Mercosul, do Organismo Andino de Saúde (ORAS-
CONHU) e da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), agindo como
um agente catalisador, capaz de consolidar a América do Sul como um espaço de
integração em saúde (Unasur, 2008b). Buss e Ferreira (2011, p.2703) acrescentam, além
das experiências do Oras-Conhu e do Mercosul, “as experiências de cooperação em saúde
desenvolvidas nos diversos órgãos de integração sub-regional na América Latina e Caribe,
como o Sistema de Integração Centro-Americano (SICA), a Comunidade do Caribe
(Caricom), a Alba e o Projeto Mesoamérica”, como antecedentes importantes da
constituição do Conselho de Saúde da Unasul7.
A Decisão que criou o Conselho de Saúde declara também o consenso de que a saúde é
propulsora da integração regional, opera como instrumento de redução de iniquidades entre
os sistemas de saúde dos países-membros e indica a necessidade de impulsionar a
participação cidadã nas discussões em saúde (Unasur, 2008).
105
reunião de presidentes, agrupando as informações oferecidas pelos entrevistados, foi possível
identificar diversos fatores que influenciaram na criação do CSS:
106
conjunta e outros países foram se somando e formamos um grupo.” (CC9)
Alguns entrevistados afirmaram que o próprio foco de integração da Unasul, que estabeleceu
em seu Tratado Constitutivo o objetivo de construir um espaço de integração e união no
âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos, priorizando o diálogo político,
as políticas sociais (...) poderia ser a resposta para a criação do CSS, uma vez que a saúde
estaria necessariamente contemplada nessa visão.
8
Ver o Quadro 8 – Conselhos Setoriais da Uansul, no capítulo 5.
107
também já haviam sido tema de Declarações específicas dos Chefes de Estado9. Assim, ainda
que a saúde seja fundamental para eliminar a desigualdade socioeconômica, alcançar a
inclusão social e a participação cidadã, fortalecer a democracia e reduzir as assimetrias,
objetivo maior do processo de integração da Unasul, conforme seu Tratado Constitutivo, a
decisão de criar o CSS parece haver dependido de mais elementos do que apenas a natureza
aglutinadora da saúde.
“Foi um momento muito singular, no qual havia uma série de governos que
se poderia chamar de corte progressista, digamos assim, ou de ênfase nas
políticas sociais, e a saúde exatamente por esse enfoque dos governos e pelo
acúmulo de processos do passado, é uma área que se organiza e se estrutura
de maneira mais consistente.” (AC2)
9
Ver o Quadro 6 – Reuniões de Chefes de Estado e Governo que antecederam a criação da Unasul, no capítulo
5.
108
Um dos representantes do Comitê Coordenador destacou, porém que seu país não participou
tão ativamente do processo de criação do Conselho de Saúde, pois via no processo de
integração da Unasul um componente ideológico muito diferente do seu Governo, além disso,
no próprio âmbito da saúde “se incluem de início alguns aspectos, como por exemplo,
sistemas universais de saúde, enquanto que o meu país tem um sistema de asseguramento e,
portanto, não se vê tão representado” (CC4). Outro representante do Comitê Coordenador
entrevistado diz que na criação do Conselho de Saúde o seu país não participou ativamente,
pois o Tratado Constitutivo da Unasul somente foi ratificado pelo parlamento em outubro de
2010 e apenas a partir desta data é que o Ministério de Saúde passou a se incorporar nos
debates da Unasul (CC10).
Ainda que secundária, a pressão dos movimentos sociais foi também um elemento no
processo de criação do Conselho de Saúde da Unasul destacado por entrevistados.
Movimentos sociais da América Latina se reuniram na Bolívia com o objetivo de influenciar
nos debates dos Presidentes da América do Sul que estavam reunidos no país. Segundo
atores-chave entrevistados, uma das recomendações dos movimentos sociais foi a elaboração
de uma agenda regional em saúde.
109
recomendação fundamental desta cúpula foi a construção de uma agenda
sul-americana para a saúde. E essa recomendação foi levada pela Ministra
de Saúde da Bolívia, Nila Heredia, e pelo Secretário do Organismo Andino
de Saúde, Oscar Feo, até a reunião dos chanceleres e depois a dos
presidentes. E a reunião de presidentes a assumiu. O que quero ressaltar
com isso é que o Conselho Sul-Americano de Saúde não surge como uma
iniciativa dos Ministérios de Saúde, mas sim como uma iniciativa dos
movimentos populares assumida pelos presidentes.” (AC4)
10
O Quadro 6 – Reuniões de Chefes de Estado e Governo que antecederam a criação da Unasul foi
apresentado no Capítulo 5 desta tese, quando se analisou a criação da Unasul.
110
que ocorreram entre Cochabamba (2006) e Costa do Sauipe (2008) que foram parte da
institucionalização do Conselho de Saúde e da definição de sua estrutura inicial (ver Figura
6).
O destaque para a Bolívia e o Chile nessas etapas está relacionado com o fato dos dois países
estarem na PPT da Unasul durante esse período. O presidente da Bolívia, Evo Morales,
exerceu a Presidência Pro Tempore da ainda CASA entre dezembro de 2006 até maio de
2008, quando a entregou à presidente do Chile, Michelle Bachelet.
A Agenda Sul-Americana de Saúde foi elaborada nesse período prévio à criação do Conselho
de Saúde (Figura 6). Nela foram definidos os “cinco eixos prioritários” (AC3), que mais
tarde foram incorporados ao Plano Quinquenal e deram origem aos Grupos Técnicos.
A Figura 6 ilustra oito momentos fundamentais que antecederam a criação do Conselho Sul-
111
Americano de Saúde. O processo levou dois anos: desde a II Cúpula da CASA em
Cochabamba, Bolívia, em dezembro de 2006, onde os Chefes de estado da América do Sul
aprovaram a Decisão “Rumo à construção de uma política e agenda regional em matéria de
saúde”, que solicitou aos Ministros de Saúde que elaborassem uma agenda sul-americana em
saúde; até a criação do Conselho de Saúde em dezembro de 2008. Após a solicitação dos
Presidentes, os Ministros de e autoridades dos Ministérios de Saúde se reuniram sete vezes
para avançar na elaboração de uma agenda sul-americana de saúde. Das sete reuniões, cinco
foram realizadas aproveitando outros espaços técnicos, sub-regionais, continentais e globais,
nos quais os países da América do Sul estavam presentes. A Assembleia Mundial da Saúde,
da OMS, a Conferência Sanitária Pan Americana de Saúde, da OPAS e a Reunião de
Ministros de Saúde da Área Andina, da CAN, foram alguns desses espaços.
112
Figura 6 – De Cochabamba à Costa do Sauipe: constituindo o Conselho de Saúde da Unasul
Fonte: Elaborado a partir de informações obtidas através das entrevistas e do documento SELA, 2010 e ORAS-CONHU, 2009.
113
A criação do Conselho de Saúde da Unasul decorreu de um somatório de fatores, que reúnem
a identificação da saúde como um campo propulsor da integração regional e que opera como
instrumento de redução de iniquidades; o histórico de cooperação em saúde nas Américas,
que foi iniciado pela OPAS e está presente em todos os processos de integração regional da
América Latina; a conjuntura política de alinhamento dos governos da região, que propiciou a
criação da própria Unasul e possibilitou o consenso em temas relacionados com a saúde,
como o reconhecimento da saúde como um direito universal e; a pressão de movimentos
populares para a elaboração de uma agenda regional em saúde, que foi recebida pelos
governos da região, por se tratarem de governos que possuíam uma proximidade e um
diálogo com esses movimentos.
114
Ministérios, que também se reúnem e dão início ao que seria o Comitê
Coordenador.” (CC3)
Essa reunião foi precedida por uma reunião do Comitê Coordenador, que foi realizada no
dia anterior da reunião dos Ministros. Essa reunião preparou toda a documentação que foi
aprovada pelos Ministros e definiu o padrão para reuniões ordinárias do Conselho de
Saúde, que passaram sempre a serem precedidas por uma reunião do Comitê Coordenador.
115
A Figura 7 exibe o organograma do Conselho de Saúde com todas as instâncias criadas até o ano de
2016. Os Grupos Técnicos foram todos criados na mesma ocasião, em 2009, enquanto que as Redes
forma sendo criadas em anos diferentes, como mostra a figura.
Na determinação das cinco áreas prioritárias de trabalho, que deram origem aos GTs, é
importante destacar que ainda que vigilância em saúde e recursos humanos fossem temas
116
clássicos da saúde pública, áreas como Sistemas Universais de Saúde e Determinantes
Sociais da Saúde somente entraram para a agenda regional de saúde devido ao projeto de
integração com enfoque social e de redução de inequidades, que, como apresentado no
capítulo anterior, caracterizou o modelo de integração regional da Unasul.
A Figura 8, a seguir, apresenta os cinco Grupos Técnicos com os países que possuem a
coordenação titular e alterna de cada um dos temas. Os países foram definidos em 2009 e
mantidos sem alteração. Os países que detém a coordenação titular e alterna dos Grupos
Técnicos revezaram anualmente essas funções. A única exceção foi o Grupo de Acesso
Universal a Medicamentos (GAUMU) que manteve a coordenação titular com a Argentina
e a alterna com o Suriname desde sua criação.
117
Presidente do Equador, Rafael Correa, havia recebido a Presidência Pro Tempore em
agosto do mesmo ano.
Em Guayaquil foram criadas as duas primeiras Redes Estruturantes do CSS (Redes) (ver
Figura 7): a Rede Sul-Americana de Oficinas de Relações Internacionais/ Cooperação
Internacional em Saúde (REDSSUR-ORIS) (Resolução 10/09) e a Rede de Escolas
Técnicas de Saúde (RETS-UNASUL). A Resolução 07/09 além de reconhecer a existência
Rede de Escolas Técnicas de Saúde e criar o “capítulo” da Unasul, também definiu o
conceito e a importância das redes de instituições estruturantes em saúde, enfocando essas
instituições no campo da “formação de pessoal para os sistemas de saúde” e por essa razão
orienta a coordenação destas redes ao GT de Recursos Humanos.
Finalmente, foi nesta reunião também que os Ministros resolveram criar o Instituto Sul-
Americano de Governo em Saúde (ISAGS), por meio da Resolução 05/09 (ver Figura 7). O
GT de Recursos Humanos, coordenado pelo Brasil (Figura 8), havia se reunido entre os
dias 24 e 25 de setembro de 2009 no Rio de Janeiro para discutir a proposta de criação de
uma Escola Sul-Americana de Governo em Saúde, que foi aprovada pelos Ministros em
Santiago, como parte do Plano de Trabalho 2009-2010. Em Guayaquil, os resultados dessa
reunião do GT de Recursos Humanos foram aprovados e o ISAGS foi criado, com a
definição da sede na cidade do Rio de Janeiro e uma estrutura inicial de Conselho Diretivo,
Conselho Consultivo e Direção Executiva.
118
Um dos entrevistados destaca o protagonismo do Brasil e em especial da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) na criação das Redes e do ISAGS:
Diversos autores destacam o ISAGS como uma instituição pioneira (Herrero e Tussie,
2015), extremamente dinâmica (Ventura, 2013), fundamental para assegurar a
implementação de políticas e a promoção dos sistemas universais de saúde (Bianculli e
Hoffman, 2016) e como centro de pesquisa e desenvolvimento da Unasul (Riggirozzi,
2015). Entre os entrevistados a criação e existência do ISAGS, sua atuação e importância
para o Conselho de Saúde é uma unanimidade11.
119
avança também no detalhamento de indicadores para controlar os progressos dos resultados
e no orçamento e modalidades de financiamentos para operacionalizar cada um dos 28
resultados. Entretanto, foi somente em 2012, dois anos após a aprovação do Plano
Quinquenal, que a Unasul aprovou seu orçamento global e suas regras para financiamento,
que não contemplavam, contudo, orçamentos específicos para os Conselhos Setoriais, nem
tampouco para todas as atividades aprovadas pelo Conselho de Saúde (Bueno et al, 2013).
Porém o Plano Quinquenal deixou de fora as Redes do CSS (Figura 7). Ainda que naquele
momento três das seis redes já tivessem sido criadas, a RETS, a ORIS e a RINS, nem
mesmo essas foram contempladas pelo plano. Essa ausência de menção sobre essas
estruturas no Plano Quinquenal, que ainda que não estivessem todas conformadas, já
haviam sido anunciadas pela Resolução 07/09, gerou problemas para que o trabalho dessas
redes pudesse ser reconhecido e apoiado pelas demais estruturas do CSS nos anos seguintes
como apontam dois dos entrevistados representantes de Redes (GTR1 e GTR3).
A próxima Rede a ser criada pelo Conselho de Saúde foi a Rede de Escolas Públicas de
Saúde (RESP), instituída em 2011, no Paraguai. Neste mesmo ano, o ISAGS foi inaugurado
na cidade do Rio de Janeiro, em 25 de julho. Nesta data além da cerimônia de inauguração
que nomeou o ex-Ministro da Saúde do Brasil, José Gomes Temporão, como primeiro
Diretor Executivo do instituto, e da inauguração de sua sede física, o ISAGS realizou a
primeira reunião de seu Comitê Diretivo, com a presença dos Ministros da Saúde e de seus
representantes.
Apesar de inicialmente as Redes terem sido criadas com uma proposta de agrupar
instituições estruturantes na formação de recursos humanos em saúde para os países
120
membros da Unasul (Resolução 07/09), o escopo de atuação das Redes foi ampliado com a
criação das Redes de Instituições Nacionais de Câncer (RINC) em 2011, no Rio de Janeiro,
Brasil, e da Rede de Gestão de Riscos e Mitigação de Desastres em 2012, na VI Reunião
Ordinária do Conselho de Saúde, realizada em Assunção, no Paraguai.
121
6.2. Governança do Conselho de Saúde
O primeiro tema a ser observado é a tomada de decisão por consenso. O Tratado Constitutivo
(Unasur, 2008, p.16) em seu Artigo 12, que trata da aprovação da normativa, informa que
“Toda a normativa da UNASUL será adotada por consenso”. Isso significa que
diferentemente de organismos multilaterais como a OPAS e a OMS, ou outras agências das
Nações Unidas, na Unasul não existe decisão tomada por votação. Todas as decisões
precisam do acordo de todos os países membros para serem aprovadas. No dia 5 de dezembro
de 2014, no ato de inauguração da sede da Secretaria Geral da Unasul em Quito, Equador, o
presidente Rafael Correa criticou a necessidade do consenso para a tomada de decisão na
Unasul, citando o fato do atraso de quase um ano para definir o nome do ex-presidente da
Colômbia, Ernesto Samper, para o cargo de Secretário Geral da Unasul:
122
por consenso, y veremos que todo estaba listo para que la integración se
estanque y fracase”. (Rafael Correa, Presidente do Equador)
Apesar da crítica do Presidente Correa, a decisão por consenso não é uma característica
exclusiva da Unasul, mas uma característica dos processos de integração regional na América
Latina, como é o caso, por exemplo, do Mercosul, da CAN e do SICA, segundo seus
regulamentos. Na União Europeia algumas decisões não requerem unanimidade e são
definidas por votos e são aprovadas por maioria qualificada ou dupla maioria (de cidadãos e
de Estados-Membros). Por outro lado, questões que envolvem impostos, política social,
defesa e política externa dependem do consenso entre os Estados membros da União
Europeia para serem aprovadas (União Europeia, 2007).
Em espaços multilaterais, como as agências das ONU, onde não há uma proposta de gerar
integração, como regra a decisão é por maioria de votos. Na OMC, por exemplo, o consenso
é recomendado, no entanto, quando o consenso não é possível, os procedimentos de votação
demandam uma regra de maioria de 2/3 ou de 3/4, cada membro correspondendo a um voto
(Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio, GATT, 1947). Já na OPAS, OMS e Organização
dos Estados Americanos (OEA), os Diretores Gerais são eleitos pelos votos dos estados
membros.
123
Tratado Constitutivo define as responsabilidades de cada um de seus quatro órgãos. Apesar
de não definir especificamente mecanismos para outras instâncias, o Artigo 5 trata da
possibilidade de serem convocadas reuniões setoriais ou de grupos de trabalho de matérias
específicas e determina que “Essas instâncias prestarão conta do desempenho de seus atos
por meio do Conselho de Delegadas e Delegados, que o elevará ao Conselho de Chefas e
Chefes de Estado e de Governo ou ao Conselho de Ministras e Ministros das Relações
Exteriores, conforme o caso”.
Esse documento foi aprovado quatro anos depois da criação do Conselho de Saúde, dois anos
depois da aprovação do Plano Quinquenal e um ano depois da inauguração do ISAGS, que
teve seu estatuto aprovado na data de sua inauguração. Por essa razão houve uma série de
acomodações que foram necessárias por parte do Conselho de Saúde e de suas instâncias para
atender às novas regras e mecanismos de tomada de decisão impostas pelo novo
Regulamento Geral da Unasul.
Uma questão interessante de observar nos documentos emitidos pelo Conselho de Saúde é a
nomenclatura. Nas primeiras reuniões realizadas pelo CSS, em Santiago (abril, 2009),
Genebra (maio, 2009) e Quito (agosto, 2009), os documentos emitidos pelos Ministros de
Saúde eram denominados de “Acordos” ou “Declarações” e cada reunião possuía uma “Ata”
ou “Informe”. A partir da Reunião de Guayaquil (novembro, 2009), os documentos emitidos
pelo Conselho de Ministros passaram a ser registrados como “Resoluções” e as reuniões são
registradas por meio de “Atas”, tanto das reuniões de Ministros, como das reuniões do
Comitê Coordenador. Essa forma de registrar os documentos do CSS perdurou até o advento
do Regulamento Geral da Unasul. A VII Reunião Ordinária do Conselho de Saúde, realizada
em setembro de 2012, em Lima, Peru, foi a última que teve uma Resolução emitida pelo
Conselho de Saúde.
124
A partir da aprovação do Regulamento Geral da Unasul ficou definido que o Conselho de
Chefes de Estado se manifesta por meio de Decisões; o de Ministros de Relações Exteriores
por meio de Resoluções e; o Conselho de Delegados por meio de Disposições. As demais
instâncias da Unasul (incluído aqui o Conselho de Saúde), passaram a se manifestar por meio
de Atas e Declarações. Essa mudança fez com que o Conselho de Saúde, bem como os
demais Conselhos Setoriais, ficasse subordinado ao Conselho de Ministros de Relações
Exteriores, uma vez que para emitir uma Resolução, os ministros de saúde precisam submeter
uma Proposta de Resolução, que será apreciada pelo Conselho de Ministros de Relações
Exteriores e, posteriormente, uma Resolução poderá ser emitida por este Conselho.
Todos os documentos aprovados pelo Conselho de Saúde são emitidos a partir de reuniões
realizadas. De acordo com o Regulamento Geral da Unasul as reuniões podem ser presenciais
ou realizadas por meio de teleconferência ou videoconferência (Artigo 61). O Quadro a
seguir mostra que o CSS se reuniu 11 vezes de forma ordinária, considerando as nove
reuniões ordinárias, a reunião constitutiva do Conselho de Saúde e a reunião preparatória que
elaborou a Agenda Sul-Americana de Saúde (reuniões marcadas em azul). Além dessas
reuniões, foi possível localizar nos bancos de documentos pesquisados atas de mais oito
reuniões extraordinárias (marcadas em branco), das quais duas foram realizadas de forma
virtual, uma durante o Conselho Diretivo da OPAS (2009) e quatro durante as sessões da
Assembleia Mundial da Saúde (AMS) em Genebra. A numeração das reuniões
extraordinárias do CSS não segue uma ordem, algumas inclusive não possuem numeração,
são identificadas nas Atas apenas como “Reunião Extraordinária”. A última Ata pesquisada
foi a da reunião extraordinária realizada em Genebra, no dia 11 de maio de 2015. Essa ata
identifica a reunião como sendo a vigésima primeira extraordinária do Conselho de Saúde,
porém, infelizmente, como mencionado, foram encontradas Atas de apenas oito reuniões
extraordinárias.
125
Data Reunião Local
8 de agosto de 2009 I Reunião Extraordinária do CSS Quito, Equador
Washington DC,
28 de setembro de 2009 II Reunião Extraordinária do CSS
Estados Unidos
24 de novembro de 2009 I Reunião Ordinária do CSS Guayaquil, Equador
Um dos atores-chave entrevistados destaca o Conselho de Saúde como um dos mais ativos
dentre os Conselhos Setoriais, especialmente pelo número de reuniões que realiza (AC1).
Como foi possível observar anteriormente12, os Conselhos Setoriais da Unasul possuem um
número bastante diferente de reuniões realizadas. A média de reuniões realizadas pelos
Conselhos Setoriais desde sua criação até dezembro de 2016 é de quatro reuniões ordinárias
por Conselho. O Conselho de Saúde realizou nove reuniões ordinárias e mais de vinte
reuniões extraordinárias.
12
Ver o Quadro 9 – Últimas reuniões realizadas pelos Conselhos Setoriais da Unasul, no capítulo 5.
126
é menor na aprovação de Declarações e Resoluções e maior na construção de posições
comuns que serão depois apresentadas pelos países durante a AMS. As reuniões de caráter
ordinário emitem uma grande quantidade de documentos, sobre os mais diversos temas.
Tomando como exemplo a última Reunião Ordinária, realizada em 2015 no Uruguai (Quadro
11), foram aprovadas sete Declarações pelos Ministros de Saúde: três relativas ao
funcionamento do ISAGS; uma aprovando um Memorando de Entendimento com a OPAS;
uma sobre negociação conjunta de medicamentos de alto preço para compras regionais; uma
sobre projeto da RINC para o controle de câncer de colo de útero do Fundo de Iniciativas
Comuns da Unasul (FIC) e; uma declaração política de rechaço à mudança realizada pela
OMS na metodologia de cálculo da mortalidade materna.
127
Quadro 12 – Espaços da governança do Conselho de Saúde da Unasul
GOVERNANÇA DO CONSELHO DE SAÚDE DA UNASUL
Específica/Própria Geral/Abrangente
O papel do ISAGS como agente catalisador será considerado, a seguir, na análise do espaço
do Conselho de Saúde, enquanto que o compromisso dos países e a rotatividade da PPT e a
tradução de agendas técnicas em decisões políticas será considerada no espaço de governança
da relação entre os estados membros e o CSS.
128
O Conselho de Saúde
129
participantes presentes em todas as atas das reuniões do Conselho Consultivo do ISAGS, os
membros desse Conselho são os representantes dos GTs, das Redes, da PPT do CSS e da
Secretaria Geral da Unasul.
130
A Unasul
Quadro 13 – Projetos na área de saúde realizados por outros Conselhos da Unasul, 2012-
2015
CONSELHO PROJETO DOCUMENTO/ANO
Conselho Sul-Americano Sistematizar as experiências em torno da difusão e Plano de Ação 2012-
de Desenvolvimento promoção de práticas saudáveis em matéria de 2014
Social Segurança Alimentar e Nutrição.
Conselho Sul-Americano Elaborar um estudo e formular uma proposta para Plano de Ação 2013
de Defesa a criação de um programa sul-americano de
produção de medicamentos no âmbito da defesa
em consulta como o Conselho Sul-Americano de
Saúde e o Instituto de Governo em Saúde sobre
essa matéria.
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CONSELHO PROJETO DOCUMENTO/ANO
Conselho Sul-Americano Realização do Encontro Regional "Gestão e Ata da II Reunião do
em Matéria de Administração Penitenciária com Enfoque de Grupo de Trabalho de
Segurança Cidadã, Direitos Humanos e Segurança Integral", Quito, 10 Justiça, 23 e 24 de abril
Justiça e Coordenação a 12 de setembro de 2014. de 2014
contra a Delinquência Tema 4: Direito à saúde no sistema penitenciário.
Organizada
Transnacional
Conselho Sul-Americano Fomentar o desenvolvimento de novos processos Plano de Ação 2014-
de Ciência, Tecnologia e de gestão na saúde pública mediante o 2015
Inovação aproveitamento da telemedicina.
Fonte: Elaboração a partir dos documentos disponíveis no Arquivo Digital da Secretaria Geral da Unasul
(www.docs.unasursg.org)
A relação do Conselho de Saúde com a Secretaria Geral foi bastante inconstante ao longo do
tempo, dependendo do próprio dinamismo da Secretaria Geral que, por sua vez, esteve
sempre fundado na pessoa do Secretário (a) Geral da Unasul. Um representante do Comitê
Coordenador considera que a Secretaria Geral deveria realizar um acompanhamento mais
próximo do Conselho de Saúde e dar seguimento às decisões tomadas pelos Ministros e aos
planos de trabalho aprovados. Informa que atualmente existe uma “presença física da
Secretaria Geral nas reuniões do Conselho de Saúde, porém não fica claro qual o seu papel”
(CC1). Como anteriormente mencionado, no ano de 2015 ocorreu uma mudança na Secretaria
Geral da Unasul com a incorporação de Diretores. Por ser uma mudança ainda muito recente,
esta não pode ser avaliada por este trabalho.
A instabilidade na forma de atuação da Secretaria Geral também foi apontada por dois dos
entrevistados. A personalidade e o potencial de cada Secretário Geral marcaram a capacidade
de gerir e influenciar da Secretaria Geral nos processos da Unasul, transitando entre uma
instância política e uma instância apenas burocrática:
“O papel mais político que tinha a Secretaria Geral com a Dra. Mejia teve
grandes retrocessos com a figura do Dr. Alí Rogriguez, e agora começamos
a vislumbrar novamente uma posição mais política com o atual Secretário
Geral [Ernesto Samper].” (CC1)
132
Países Membros
Organismos de países membros e sua relação com o Conselho de Saúde da Unasul são outros
espaços da governança específica (Quadro 12). A primeira questão a ser observada é que não
apenas os Ministérios da Saúde são atores de articulação e cooperação, mas também os
Ministérios das Relações Exteriores, as Missões dos países em Genebra e até as Presidências
possuem níveis de relação que impactam nos mecanismos de tomada de decisão, no exercício
do poder e no alcance de resultados do Conselho de Saúde da Unasul.
O primeiro tema nessa relação que vale ser destacado é o impacto da própria criação do
Conselho de Saúde nos Ministérios de Saúde dos países da região. Dois representantes do
Comitê Coordenador relatam que naquele momento foi necessário organizar estruturas
internas nos Ministérios para acompanhar os trabalhos do CSS (CC7 e CC10). Um deles
descreve “organizamos a equipe de trabalho, a coordenação interna, com todas as direções
gerais que tinham a responsabilidade de participar nos diferentes Grupos Técnicos”. Por
outro lado, outro membro do Comitê Coordenador expressou a dificuldade de acompanhar
tantos temas diferentes, dos Grupos Técnicos e das Redes, dadas as diferenças que existem
nos sistemas de saúde de cada país, que por vezes não possuem as mesmas estruturas,
“encontrar a pessoa apropriada para representar o país em uma Rede, por exemplo, é um
grande desafio, porque nosso sistema é organizado de forma diferente” (CC6).
As relações do Conselho de Saúde com os estados membros estão influenciadas pelo nível de
compromisso político dos países; pelas mudanças constantes de autoridades e
funcionários nos Ministérios de Saúde que geram descontinuidades nos trabalhos do
Conselho de Saúde e; pela ideologia política dos governos de cada Estado membro. Esses
fatores que interferem na dinâmica da governança nestes espaços foram apontados por todos
os entrevistados.
O nível de compromisso político dos países membros afeta a atuação do Conselho de Saúde.
Dependendo do país que detém a Presidência Pro tempore, a dinâmica da Unasul é
diferenciada. A Presidência Pro tempore pode ser de um país que possui interesse na Unasul
e, portanto, convoca reuniões e propõe temas de agenda ou, caso a Unasul não seja uma
prioridade política na agenda do país que detém a PPT, a Unasul pode passar um ano inteiro
sem nenhuma atividade e gerar perda de acúmulo institucional. O compromisso dos países é
muito heterogêneo, “Alguns países só cumprem burocraticamente o que lhes chega da
133
Unasul [Conselho de Saúde], gerando uma perda de vigor em relação ao seu funcionamento
e à concretização do Plano [Quinquenal] (CC1).
Além de afetar o desempenho do CSS como um todo, dependendo do país que ocupa a PPT,
o nível de compromisso dos países também influencia no avanço das ações dos Grupos
Técnicos e Redes. O nível do compromisso político do país que possui a coordenação ou a
secretaria técnica de um GT ou uma Rede também determina em grande medida se as
iniciativas acordadas nessas instâncias avançam ou não (CC1, CC9 e GTR4).
O compromisso se expressa também na qualidade dos representantes que cada país envia para
participar das reuniões dos GTs, Redes e ISAGS e, às vezes, até do Comitê Coordenador e do
Conselho de Ministros. Muitas vezes esses representantes não possuem conhecimento técnico
ou não tem capacidade de decisão. “A falta de priorização dos países no CSS impossibilita
avançar com as ações que foram propostas” (CC1)
Por outro lado, países como Peru, Chile e Guiana foram apontados por alguns entrevistados
como possuindo baixo compromisso com o Conselho de Saúde, sendo que a razão dos dois
primeiros estaria relacionada à falta de alinhamento político desses países com a Unasul,
enquanto que no caso da Guiana seu envolvimento mais ativo com os compromissos Caricom
seria o fator principal para o baixo envolvimento com a Unasul (CC1, CC3 e CC6).
A grande rotatividade das autoridades, desde Ministros até funcionários técnicos, é apontada
como “uma das maiores debilidades do Conselho de Saúde” (CC2). Segundo um ator-chave,
“é fácil perceber que a expectativa de vida ao nascer dos Ministros da América do Sul é
muito baixa. Então toda hora chega um novo Ministro que primeiro precisa dar conta da
mortalidade infantil, enfrentar o caos do acesso a medicamento, a epidemia A B e C para
depois descobrir o que é Unasul” (AC2).
134
“Em alguns momentos os Ministros [de Saúde] não tinham uma
compreensão do que era a integração, de qual era o seu papel. (...) Quando
havia Ministros que entendiam as coisas caminhavam, quando havia
Ministros que não entendiam, tudo parava. Então estávamos
permanentemente à deriva.” (AC4)
A ideologia política dos governos de cada Estado membro também figura como uma barreira
para a integração em saúde. Os entrevistados apontam que há temas em que a disparidade e
divergências entre os países é muito grande e, nesses casos, é muito difícil chegar a um
denominador comum para poder avançar. Há momentos em que países “tentam impor
ideologias políticas sobre as decisões técnicas” e isso impediria o avanço do consenso no
Conselho de Saúde (CC8). Um dos membros do Comitê Coordenador descreve alguns desses
momentos:
“Em determinados momentos os conflitos que existem têm muito a ver com
as visões dos governos dos países. Teve um momento, durante o governo do
Presidente Piñera, que o Chile se retraiu muito em relação a algumas
questões, como medicamentos, por exemplo. A Venezuela também teve
atuações de excesso de burocratização do Conselho [de Saúde] em razão
dos conflitos com a Colômbia e com o próprio Chile. As posições políticas
no âmbito mais geral da Unasul repercutiam também na área da saúde.
Teve também a suspensão do Paraguai, por causa do afastamento do
[Presidente] Lugo. São questões que vem de fora, é uma repercussão de
conflitos e choques de interesse mais de fora do que propriamente do campo
da saúde” (CC3).
135
Apesar das ideologias políticas serem apontadas como uma dificuldade no processo de
integração em saúde na Unasul, três membros do Comitê Coordenador destacaram uma visão
diferente, da possibilidade de se chegar a consensos mesmo quando os países possuem
posições políticas divergentes. Eles denominaram essa posição de “coalizão técnica”, que
ocorre quando surgem iniciativas desde o nível técnico sobre um tema específico e os países
trabalham sobre essa temática com objetivo de gerar resultados concretos (CC2, CC4 e
CC10). Nesse caso, a construção técnica a partir de um problema comum e a necessidade de
criar uma solução que possa ser compartilhada entre os diferentes países pode superar as
diferenças ideológicas.
136
último caso, a dificuldade de articulação ficava muito latente nos momentos em que o
Conselho de Saúde se reuniu durante as Assembleias Mundiais de Saúde para coordenar
posições comuns (AC5 e CC10).
137
Dimensão geral ou abrangente da governança
A existência das demais instâncias dedicadas à saúde na região faz com que o Conselho de
Saúde precise permanentemente estabelecer alianças e coordenar agendas com essas
estruturas. Essas interações com outras agências conformam a dimensão abrangente da
governança do CSS, que é composta por quatro espaços: regional, continental, global e a
relação com os atores não estatais (Quadro 12).
Os entrevistados citaram momentos nos quais ocorreu ação coordenada entre o Conselho de
Saúde e as instâncias sub-regionais, como a incorporação das cinco áreas prioritárias
definidas pela Agenda Sul-Americana de Saúde (2009) no plano de trabalho do Oras-Conhu;
a lista única e consensuada de patologias e doenças de notificação obrigatória que unificou as
listas do Mercosul e da Comunidade Andina e criou uma lista válida para todos os países da
Unasul e; mais recentemente a adesão do Conselho de Saúde da Unasul ao Acordo do
Mercosul de "Criação do Comitê Ad Hoc para Negociação de Preços de Medicamentos no
Mercosul e Estados Associados" (CSS/Unasur, 2015) (AC3 e CC7).
138
Outros espaços em que se processa a ação do CSS são mais amplos: de abrangência
continental, na relação com a OPAS, e global, com a OMS (Quadro 12).
O vínculo com a OPAS pode ser observado desde o início dos diálogos para a criação do
Conselho de Saúde. Como é possível verificar na Figura 6, a OPAS esteve representada na
Reunião do Grupo de Trabalho, outubro de 2008, Chile, que elaborou a proposta de criação
do CSS. Na mesma direção, a Decisão da Costa do Sauipe (2008) que criou o Conselho de
Saúde indica que a OPAS é parte do Comitê Coordenador, na qualidade de observador.
Contudo a relação entre o CSS e a OPAS foi marcada por conflitos, conforme apontam
alguns entrevistados. Um ator-chave conta que na Reunião de Cuenca (2010) a OPAS propôs
funcionar como secretaria técnica do Conselho de Saúde (AC2), o que voltou a ocorrer na
Reunião de Assunção (2012), segundo um representante do Comitê Coordenador (CC7). A
OPAS também tentou, segundo outro ator-chave, “boicotar a criação do ISAGS, propondo
que o ISAGS fosse um organismo de apoio à OPAS na América do Sul”, o que foi
imediatamente rejeitado pelo Conselho de Ministros (AC2).
Outro ponto de conflito na relação com a OPAS envolve as Redes coordenadas pelo Brasil e
o Grupo de Recursos Humanos, também coordenado pelo Brasil (GTR1, GTR2, GTR3 e
GTR4). Como não há recurso destinado para as atividades dos Conselhos Setoriais, o Brasil
destinou orçamento para essas instâncias através de termos de cooperação estabelecidos com
a representação da OPAS no Brasil. A partir destes mecanismos, reuniões dessas Redes e do
GT de Recursos Humanos foram financiadas através da OPAS. Segundo os entrevistados que
abordaram este tema, alguns estados membros, como a Bolívia e a Venezuela, “não viam a
OPAS como um agente muito neutro” e criticavam a relação do CSS com a organização.
13
Ver o Quadro 9 – Últimas reuniões realizadas pelos Conselhos Setoriais da Unasul, no capítulo 5.
139
Acordo do Mercosul de "Criação do Comitê Ad Hoc para Negociação de Preços de
Medicamentos no Mercosul e Estados Associados" (CSS/Unasur, 2015), tendo no Fundo
Estratégico da OPAS o agente viabilizador da compra conjunta de medicamentos para a
região sul-americana.
Já a relação com a OMS esteve mais marcada pela atuação do Conselho de Saúde nos
Conselhos Executivos e nas Assembleias Mundiais de Saúde a partir da apresentação de
posicionamentos conjuntos que defendiam os interesses da região. Um dos atores-chave
ilustra que “... antes existia tradicionalmente a reunião dos Ministros das Américas [Região
das Américas GRUA-GRULAC], normalmente presidida pela OPAS, mas não existia essa
figura de representação do bloco sul-americano, e agora existe a Unasul” (AC2)14.
Finalmente, as relações do Conselho de Saúde com atores não estatais, ainda que muito
incipientes, são identificadas como mais um espaço da governança abrangente (Quadro 12).
Esse tema é complicado para a Unasul como um todo, pois depende das regras estabelecidas
no Regulamento Geral da Unasul (2012) sobre o relacionamento com terceiros. O
representante de uma das Redes contou sobre a impossibilidade de receber fundos para o
projeto de controle do câncer que já haviam sido negociados com a Agência Internacional
para a Pesquisa do Câncer (IARC, sigla em inglês), pelo acordo não ter passado pelos
mecanismos formais de aprovação de relacionamento com terceiros que estabelece o
Regulamento Geral da Unasul (GTR1). Um depoimento que chamou atenção foi sobre a
ausência de relacionamento do Conselho de Saúde com os movimentos sociais, que tiveram
grande importância na criação do próprio CSS. Segundo o ator-chave, “...não existe diálogo
com os movimentos sociais, não há espaço no Conselho de Saúde, nem no ISAGS, para a
presença formal e a expressão de opinião dos movimentos sociais” (AC4).
Apesar das dificuldades, em manter essas relações, o ISAGS e algumas Redes tem buscado
estabelecer relações com a academia dentro e fora da América do Sul e com algumas
organizações não governamentais, como a Associação Latino-Americana de Medicina Social
(ALAMES), a Iniciativa para Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi por sua
sigla em inglês), Médicos sem Fronteira, Médicos do Mundo, South Centre, entre outras.
14
Esta tese possui uma seção específica, paresentada adiante, sobre a atuação do Conselho de Saúde como
um ator da diplomacia da saúde no âmbito da AMS.
140
6.3. A atuação do Conselho de Saúde
De acordo com a Decisão dos Chefes de Estado que cria o Conselho de Saúde15, o objetivo
do CSS é construir um espaço de integração em saúde, incorporando os esforços e as
conquistas dos outros mecanismos de integração sub-regionais, promovendo políticas comuns
e atividades coordenadas entre os países membros da Unasul. O Plano Quinquenal acrescenta
que a importância da conformação do CSS está na constituição de uma instituição política
sul-americana com competências em temas de saúde e problemas ou desafios comuns e que
possa facilitar a interação das autoridades sanitárias dos estados membros da Unasul (Unasur,
2010).
Autores como Ventura (2013), Buss e Ferreira (2011) abordam a atuação do Conselho de
Saúde a partir da concepção regional de políticas públicas com objetivo de construir respostas
para problemas comuns.
A partir das entrevistas nove tópicos foram identificados como as principais ou mais
destacadas atuações do Conselho de Saúde ao longo de seus primeiros oito anos de existência
entre 2008 e 2015. O Gráfico 1 mostra que a criação do ISAGS e a atuação do Conselho de
Saúde como um ator da diplomacia da saúde global foram as atuações mais relevantes na
opinião dos entrevistados. A atuação específica do GT de Acesso Universal a Medicamentos
(GAUMU) e da Rede de Instituições Nacionais de Câncer (RINC) também foram ressaltadas
pelos entrevistados. A elaboração do Plano Quinquenal e a criação das Redes Estruturantes
do Conselho de Saúde foram apontadas por alguns como outras conquistas importantes.
Finalmente, a atuação do CSS transformada em impacto concreto para os países membros,
seja pela realização de acordos bilaterais entre países que são parte da Unasul, seja pelo
15
Ver o Quadro 8 – Conselhos Setoriais da Unasul, no capítulo 5.
141
impacto direto nas políticas nacionais, aparece de forma mais tímida, porém também
presente.
A criação do ISAGS
Dos 20 entrevistados, 16 destacaram a criação do ISAGS como uma das iniciativas e campo
de atuação mais importantes do Conselho de Saúde. Como já visto o ISAGS foi criado pelos
ministros de saúde em 2009 e inaugurado em 2011 e, segundo Bermudez (2016, p.62) tinha
como objetivo inicial uma “escola de governo que pudesse trabalhar com a questão da
governança em saúde na região”, um “centro de pensamento crítico com a finalidade de
capacitar quadros de liderança da saúde (...) para fortalecer a governança dos processos
políticos, sociais, econômicos nos países membros da Unasul”. Contudo, Bermudez (2016)
adverte que essa concepção original dos ministros da saúde sofreu modificações ao longo do
tempo, uma vez que não houve muita clareza inicialmente sobre como seria a dinâmica do
cotidiano do instituto.
Autores como Ventura (2013), Riggirozzi (2015), Bianculli e Hoffman (2016) e Herrera e
Tussie (2015) destacaram a importância da existência e da atuação do ISAGS. Entre os
entrevistados 16 concordam que a criação do instituto foi a ação/atuação mais relevante do
142
Conselho de Saúde, contudo, as perspectivas sobre as funções e a atuação do ISAGS são
divergentes. Existem três grandes visões sobre a atuação do instituto:
O papel do ISAGS como um agente catalisador das interlocuções entre as distintas instâncias
do Conselho de Saúde foi destacado na seção anterior na análise da governança do Conselho
de Saúde.
A atuação do ISAGS como uma “secretaria executiva” do CSS foi relatada por diversos
entrevistados (AC2, CC4, CC9, GTR1 e GTR4). Essa atuação, como instância executiva,
surgiu por uma necessidade de coordenar as ações de todas as instâncias do Conselho de
Saúde, bem como destas com as demais instâncias da Unasul. O ISAGS preencheu um vazio
existente na governança do CSS.
Por outro lado, a atuação como instância executiva e de apoio às demais estruturas do CSS foi
favorecida pela existência de orçamento próprio e de uma sede física, com funcionários
próprios e exclusivamente dedicados aos temas do ISAGS, do Conselho de Saúde e da
Unasul, característica que o diferencia do Conselho de Ministros, do Comitê Coordenador,
dos Grupos técnicos e das Redes.
Os entrevistados destacam também a atuação do ISAGS como uma instância de apoio aos
países membros da Unasul, que facilitou a comunicação e possibilitou a realização de
atividades.
143
“O ISAGS é uma ferramenta que atuou diretamente com os países, e por
possuir mais dedicação, uma estrutura, uma forma de trabalho e um
orçamento organizados, pode ter uma continuidade cotidiana de seu
trabalho e apoiar com que as outras estruturas do Conselho de Saúde
dessem continuidade ao trabalho”. (CC10)
“O ISAGS como um pivô, um vetor que busca se alimentar das Redes e GTs
que estão no seu Conselho Consultivo”. (AC2)
A perspectiva do Isags como uma instância estratégica, um think tank, que se consolida como
referente regional e global em saúde, não exclui a visão de uma secretaria executiva do CSS e
é possível observar que, em alguns casos, o mesmo entrevistado destaca a atuação do ISAGS
nas duas esferas.
Entre 2011, ano de sua inauguração, e 2015 o ISAGS realizou 15 oficinas com objetivo de
fomentar o debate e a troca de experiências entre os estados membros da Unasul e algumas
delas resultaram em publicações e posicionamentos comuns em foros internacionais.
Um dos entrevistados destacou ainda a capacidade do ISAGS em expandir sua atuação para
além do CSS e levar as temáticas da saúde para outros Conselhos Setoriais. Das 15 oficinas
realizadas pelo ISAGS, seis foram intersetoriais e contaram com a presença dos
144
representantes dos Ministérios da Saúde e de outros Ministérios como Desenvolvimento
Social e Ciência e Tecnologia dos países membros da Unasul.
“O ISAGS foi construindo um trabalho que teve seu ápice em 2014 e agora
tem seus frutos, começa a ser identificado como uma referência técnica
regional e a nível global em matéria de saúde.” (CC4)
“Hoje temos o ISAGS como uma instância altamente estratégica para gerar
massa crítica e evidências de trabalho que possam apoiar as políticas
públicas dos países da Unasul.” (CC7)
Outra interpretação para a atuação do Isags é de ser uma Instância criada para gerar
inovações no campo da saúde na região, mas que não teria conseguido alcançar os objetivos
propostos. Dois dos entrevistados, membros do Comitê Coordenador, ressaltam que o início
do ISAGS foi vigoroso e respondeu às expectativas que os países-membros tinham em
relação ao instituto, contudo, com o passar do tempo, as dificuldades para a
institucionalização completa do ISAGS e o baixo compromisso dos países, a capacidade de
atuação e impacto do Instituto teria diminuído, frustrando os objetivos para os quais foi
criado.
145
“O ISAGS teve um papel de muito protagonismo em seus anos iniciais, mas
pouco a pouco vem perdendo o brilho, pela falta de recursos e pela falta de
uma institucionalização completa.” (CC1)
Existe, claramente, uma visão predominante sobre o ISAGS da posição de uma instância
catalisadora e de apoio na execução das ações do CSS, por parte dos entrevistados que
representam as Redes e os Grupos Técnicos. Essa perspectiva está em parte relacionada com
a governança do Conselho de Saúde, pois como visto as Redes e os GTs não têm participação
nas reuniões do Comitê Coordenador, nem nas reuniões do Conselho de Ministros. Entretanto
encontra-se também relacionada com a questão orçamentária, destacada por vários dos
entrevistados como uma das maiores barreiras para a atuação efetiva das Redes e
especialmente dos Grupos Técnicos. Como o ISAGS possui orçamento anual, a partir das
cotas pagas pelos países membros da Unasul (Artigo IX, Estatuto do ISAGS, 2011), que pode
financiar uma estrutura fixa e pessoal com dedicação exclusiva, além de atividades como
oficinas, cursos, pesquisas e publicações, o Instituto termina sendo fundamental para
financiar as atividades também das demais estruturas do Conselho de Saúde.
Na literatura pesquisada, os autores dão destaque para a atuação do ISAGS como centro de
capacitação de gestores para os sistemas de saúde, além de anunciar sua atuação como
catalisador das relações entre as demais instâncias do Conselho de Saúde. Buss e Ferreira
(2010) anunciam, antes de sua inauguração, a atuação do ISAGS na capacitação de recursos
humanos para a condução e liderança dos sistemas de saúde da região, na produção e gestão
de conhecimento e já prevê a relação do instituto com as Redes do Conselho de Saúde.
Ventura (2013), destaca que apesar de ter sido recém-criado, o ISAGS é uma instituição
inovadora e dinâmica que além de atuar na formação de gestores para os sistemas de saúde
sul-americanos, o instituto contribui para a tomada de decisões conjuntas entre os Ministros
da Saúde da região. Segundo Riggirozzi e Grugel (2015) e Bermudez (2016), o ISAGS atua
146
no desenvolvimento de capacitação para os profissionais dos estados membros, bem como na
área de pesquisa e intercâmbio de informações entre especialistas e representantes dos países.
Os autores destacam também o caráter inovador do Instituto que emerge como espaço de
construção de consensos e difusão de boas práticas.
Diplomacia da Saúde
A atuação do CSS como um ator da diplomacia da saúde global é citada como a ação de
maior destaque por 15 dos 20 entrevistados e aparece como a segunda mais relevante. Além
de ser regional, a ação do Conselho de Saúde avança na formulação e na negociação política
em fóruns multilaterais. Segundo Riggirozzi (2012) o CSS teria a capacidade de projetar os
objetivos regionais no âmbito da diplomacia regional em saúde e defender a região como um
espaço geoestratégico na formulação de política internacional.
O CSS tem atuado na formulação e na negociação política em diversos fóruns globais, como
o Conselho Diretivo da OPAS e as conferências globais realizadas por agências
especializadas, como a VI Conferência Internacional das Autoridades Reguladoras de
Medicamentos (ICDRA), 2014; o III Fórum Global sobre Recursos Humanos em Saúde,
2013; a VIII Conferência Global em Promoção da Saúde: Saúde em Todas as Políticas; e a
Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde, 2011.
147
posicionamentos comuns na AMS, o Conselho de Saúde contribui para o fortalecimento do
processo de integração regional na América do Sul, para a construção de uma agenda
regional em saúde e para a consolidação da própria Unasul como um player global na
definição de pautas, na agenda mundial da saúde, que possam contribuir para a redução de
iniquidades em saúde.
O CSS vem ocupando todos os espaços da OMS a partir de distintas estratégias de atuação.
Além da apresentação de posicionamentos comuns na AMS, em ambos os Comitês, a Unasul
reforçou sua representatividade no Conselho Executivo da OMS. Em 2014, das seis vagas
destinadas à região das Américas, Estados-membros da Unasul atualmente ocupam metade.
Fortalecer a presença do bloco no Conselho Executivo foi estratégico para garantir que os
temas definidos como prioridade pelos países da América do Sul pudessem entrar na agenda
da AMS seguinte. A Unasul ainda não organizou nenhum side event como bloco, mas vários
dos temas que foram alvos de posicionamentos comuns tiveram side events organizados por
um ou mais Estados-membros.
16
Para obter mais detalhes sobre a estrutura e funcionamento dos órgãos da OMS e especificamente sobre a
Assembleia Mundial da Saúde, recomenda-se o artigo A Unasul na Assembleia Mundial da Saúde:
posicionamentos comuns do Conselho de Saúde Sul-Americano, de autoria de Faria M, Giovanella L, Bermudez
L., produto deste doutorado, que foi publicado na revista Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p.
920-934, Dec. 2015. http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v39n107/0103-1104-sdeb-39-107-00920.pdf
148
OMS, não é ainda reconhecida como um bloco de países e, portanto, não possui
representação oficial na AMS. Isso significa que não há um assento na AMS destinado à
UNASUL e que nenhum representante do bloco pode credenciar-se ou falar na AMS como
representante da UNASUL. Assim, ainda que os 12 Estados-membros do bloco entrem em
consenso e preparem uma proposta de Resolução a partir de um posicionamento comum, e
que esta seja apresentada nos Comitês pela PPT e em nome da UNASUL, apenas o país ao
qual pertence o representante que apresente a proposta de Resolução será considerado como
autor da mesma. Os outros 11 países precisam manifestar posteriormente sua concordância
em relação ao posicionamento apresentado, individualmente.
A Unasul também avançou em relação aos outros processos de integração da América do Sul.
CAN, Mercosul e OTCA, mais antigos do que a Unasul, não se organizaram para uma
atuação conjunta na AMS, o que resultou no não reconhecimento da região sul-americana
como um ator importante nessa arena. Contudo, a partir de 2010, com a atuação constante e
crescente da Unasul na AMS, esse cenário começa a ser alterado (Riggirozzi, 2012).
Os temas que entram para o debate e posterior consenso do bloco possuem duas portas de
entrada: podem partir de uma das estruturas do CSS, como um Grupo Técnico, ou são
apresentados por um país, que tem determinado tema como prioridade nacional e busca, em
seus companheiros de bloco, o apoio necessário para avançar com o tema no cenário global.
O primeiro movimento foi o que iniciou o processo de consenso para a AMS, mas, nas
assembleias seguintes, os países foram se apropriando desse espaço favorável de negociação,
que é o processo de integração.
149
A Unasul defendeu seu primeiro posicionamento comum na AMS em 2010, ano no qual o
CSS fortaleceu sua institucionalização com a aprovação do Plano Quinquenal e com a criação
dos GTs (Unasur, 2010). O impacto dos direitos de propriedade intelectual sobre o acesso a
medicamentos e o poder de monopólio das empresas farmacêuticas na fixação de preços e
decisões sobre genéricos foi o tema do posicionamento. No período de 2010 a 2014, foram
apresentados posicionamentos comuns da UNASUL relativos a 25 Resoluções da Assembleia
(Quadro 14).
Ao longo dos anos, além do aumento no número de resoluções, ocorreu diversificação nos
temas das resoluções que foram objeto de posicionamento comum da UNASUL (Quadro 14).
Em 2010, as duas resoluções objetos de posicionamento comum do CSS estavam
relacionadas com a produção de medicamentos. Nos anos seguintes, esse tema se manteve no
foco dos posicionamentos comuns do bloco, mas passou a ser acompanhado por diversos
outros, como o Regulamento Sanitário Internacional, em 2011 e 2014; a Reforma da OMS,
em 2012 e 2013; e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), em 2013 e 2014,
entre outros.
150
Ano e Nº Nº de
Resolução
AMS resoluções
2013 6 A66/4 - Reforma da OMS
66ª AMS A66/7 - Projeto de Orçamento por Programas 2014-2015
A66/12 - Deficiência
A66/13 - Monitoramento dos ODM relacionados com a saúde
151
cinco GTs do CSS, é o único que, ao longo dos anos, manteve reuniões periódicas e
acompanhamento das agendas internacionais. O outro fator é o desabastecimento de
medicamentos, que têm sido uma preocupação global, mas, em especial, dos países em
desenvolvimento e não produtores de medicamentos, além da incorporação de tecnologias
que vêm gradativamente desfinanciando os sistemas de saúde dos países da região (Gray e
Manasse, 2013).
GAUMU e RINC
O Fundo de Iniciativas Comuns (FIC) tem por objetivo financiar projetos com um alto
impacto no território da América do Sul (Artigo 44, Regulamento Geral da Unasul, 2012). Os
recursos do FIC provêm de contribuições voluntárias dos estados membros da Unasul
(Unasur, 2012b). O Conselho de Saúde tem dois projetos elaborados pelo GAUMU e
financiados pelo FIC: Mapeo de producción de medicamentos e Banco de precios de
medicamentos17 (Unasur, 2012c). Em dezembro de 2015 o Conselho de Saúde teve
novamente um projeto aprovado pelo Conselho de Ministros de Relações Exteriores para ser
financiado com recursos do FIC. Desta vez o projeto foi elaborado pela RINC e novamente
contou com o apoio do ISAGS para sua implementação (Unasur, 2015). O Projeto
Plataforma de intercambio de experiencias y asistencia técnica para prevención y control del
17
Os dois projetos totalizando 320.733,00 dólares foram aprovados pelo Conselho de Ministros de Relações
Exteriores em novembro de 2012 para serem executados a partir de 2013 (Unasur, 2012c).
152
cáncer de cuello uterino en Suramérica, foi orçado em 200 mil dólares e deverá ser
implementado no prazo de dois anos.
A possibilidade de contar com recursos do FIC apoia a concretização de projetos das Redes e
GTs, que como visto sofrem com a falta de orçamento próprio, porém os três projetos
aprovados serão executados em parceria com o ISAGS, que é a única instância do Conselho
de Saúde que possui personalidade jurídica e estrutura de pessoal para receber e executar os
recursos.
153
monitoramento (CC1, CC5, CC10 e AC4). A falta de financiamento e a falta de uma entidade
ou sistema que permitisse o monitoramento do cumprimento do Plano Quinquenal
impuseram limitações às ações que os GTs deveriam executar de forma a cumprir com o
instrumento desenvolvido. Além disso, como visto, o interesse ou desinteresse político dos
estados membros também foi uma barreira ao cumprimento das metas e objetivos. Três
entrevistados também destacaram a “personificação do trabalho” dos Grupos de Trabalho e
Redes, afirmando que a realização ou não do trabalho “depende da qualidade das pessoas
que estão tanto coordenando como representando cada país” em determinado GT ou Rede
(CC1, GTR3 e GTR5). Um dos representantes do Comitê Coordenador destaca que o
GAUMU teve uma atuação tão positiva porque “sempre teve liderança em sua coordenação
e os representantes dos estados membros que participavam dinamizaram sua performance,
com destaque para Argentina, Suriname, Brasil, Colômbia e Equador” (CC1).
A criação das Redes Estruturantes do Conselho de Saúde (ver Figura 7) também mereceu
destaque para três dos entrevistados. Um representante do Comitê Coordenador expressa a
importância da existência das Redes:
154
ficando tão dependentes da ideologia do Governo, a partir da ação da RINS” (GTR2) e; “a
ENSP/FIOCRUZ está ofertando 17 vagas de doutorado e 9 de mestrado preferenciais para
candidatos da América do Sul” (CC3).
155
Plano Quinquenal, objetivos, metas e atividades que devem ser cumpridas por cada instância
do Conselho de Saúde. Apesar da existência desses instrumentos formais de planejamento,
existe uma Agenda política do Conselho de Saúde que não está necessariamente expressa ou
contida nesses planos e que possui, como agenda política que é, um processo de formulação
complexo que envolve atores, negociação, tomada de decisão, clima político e momentos de
oportunidade que definem que temas entram ou não para a agenda.
A compreensão do processo de formulação da uma agenda política requer análises que tratem
da dimensão política, do exercício do poder e da racionalidade na escolha de prioridades
(Gottems et al, 2013). O uso de modelos teóricos como base desta análise possibilita a
compreensão da realidade, os sentidos e os significados dos processos envolvidos.
Para analisar a formulação da agenda do Conselho de Saúde, foram utilizados dois modelos
teóricos: o Modelo de múltiplos fluxos de Kingdon e o Modelo de Coalizão de Advocacia
(MCA) de Sabatier e Jenkins-Smith. Enquanto o modelo de Kingdon trata especificamente do
processo de formulação da agenda, o MCA trata ciclo de políticas públicas completo, e ainda
que este não seja o foco deste estudo, o modelo é útil, pois amplia a compreensão de
processos políticos complexos, com as suas múltiplas dimensões e inclui a presença dos
subsistemas de políticas (policy subsystems).
Ainda que essas abordagens sirvam para analisar todas as fases do ciclo da política pública –
formulação da agenda, formulação da política, tomada de decisão, implementação, avaliação
e reimplementarão (Howlett e Ramesh, 1995) – nosso foco foi na fase inicial de formulação
da agenda.
Apesar de terem sido elaborados originalmente para compreender regimes nacionais, essas
três abordagens teóricas podem auxiliar na análise da formulação de agendas de processos de
integração regional “porque esses demonstram um caráter híbrido, que mistura
características domésticas e internacionais” (Dri e Paiva, 2016). Autores como Princen e
156
Rhinard (2006) e Dri e Paiva (2016) utilizaram diferentes teorias das ciências políticas,
inicialmente concebidas para explicar a formulação de agendas em Estados nacionais, para
criar um quadro teórico que pudesse analisar a formulação da agenda na União Europeia e no
Mercosul, por exemplo. Nesses estudos os autores elaboraram quadros teóricos a partir das
teorias utilizadas para analisar a formulação de agendas nacionais, e os aplicaram a dinâmicas
semelhantes encontradas nos processos de integração.
Assim como nos estudos citados, neste trabalho o processo de formulação de agenda no
Conselho de Saúde da Unasul foi analisado utilizando um marco teórico construído a partir
de teorias inicialmente geradas para analisar a formulação de agendas políticas nacionais,
identificando as dinâmicas análogas presentes na formação da agenda do CSS.
Um dos destaques da reunião foi a busca de convergência entre as agendas dos distintos
processos de integração regional em saúde na América do Sul. A representante do Brasil, que
detinha a Presidência Pro Tempore do Mercosul, naquele momento, fez uma apresentação
sobre a experiência do bloco e propôs áreas possíveis para a convergência de agendas com a
Unasul, como a negociação conjunta de medicamentos de alto preço. Tema que foi aprovado
meses depois, em setembro de 2015, na IX Reunião Ordinária do Conselho de Saúde
(CSS/Unasur, 2015).
157
Os coordenadores nacionais não avançaram muito na elaboração do novo plano do Conselho
de Saúde e o tema voltou a ser pauta da reunião do Comitê Coordenador que antecedeu a IX
Reunião Ordinária do Conselho de Saúde, realizada em setembro de 2015, em Montevidéu.
Ao final da reunião foi definido e ficou plasmado na Ata que:
Novamente não foi possível elaborar um plano estratégico, ou poderíamos chamar da nova
agenda formal do Conselho de Saúde. O coordenador nacional do CSS no Uruguai e
representante da PPT nesta reunião, Gilberto Ríos, declarou que “os tempos são outros” e no
novo plano será necessário “considerar a priorização política, factibilidade e possibilidade
de convergência” (Isags/Unasul, 2015, p.2).
158
pelos atores invisíveis. Existem Redes, GTs e o ISAGS trabalhando e gerando possibilidades
de soluções. Contudo o Fluxo político, ou seja, o contexto político ou administrativo
favorável, não está presente.
Apesar da ausência de uma nova agenda formal (considerando o período deste estudo), uma
agenda política, não plasmada em um documento único, segue direcionando as ações do
Conselho de Saúde. Já foi visto que existem em curso o Plano Anual Operativo do ISAGS,
projetos do GAUMU e da RINC financiados pelo FIC, além da atuação no âmbito da
diplomacia da saúde por parte do CSS nos fóruns multilaterais, em especial na AMS.
Considerando que não existe uma ausência de ação nas distintas estruturas do CSS, ainda que
seja apontado um esfriamento, também é possível ponderar que existe uma agenda política
vigente.
18
Ver Figura 4 – Fluxograma do Modelo de Coalizão de Advocacia (MCA), apresentada na Metodologia,
capítulo 3.
159
Dos 20 entrevistados 13 responderam objetivamente à pergunta “Existe hoje uma agenda sul-
americana de saúde?”, dos quais oito responderam não considerarem que exista uma agenda
sul-americana de saúde na atualidade e cinco consideram que essa agenda existe (Quadro 15).
Dos oito que responderam que não existe hoje uma agenda regional em saúde, todos
afirmaram que o grande problema é a falta de envolvimento político (Fluxo Político/tomada
de decisão) para a definição de prioridades. Contudo, mesmo entre os entrevistados que
disseram não existir neste momento uma agenda regional de saúde, há a indicação de temas
como prioritários entre os países membros da Unasul.
O primeiro destaque foi dado ao tema da Vigilância Epidemiológica (Quadro 15), que não
coincidentemente é o tema que no final do século XIX e início do século XX estabelece o
processo de internacionalização da saúde, ou da cooperação internacional em saúde com o
objetivo de controlar o quadro de transmissibilidade de doenças contagiosas, agravado pelo
aumento do comércio marítimo e do trânsito entre as nações (Rosen, 1994). A Vigilância
Epidemiológica também figura entre os cinco eixos do Plano Quinquenal 2010-2015 e possui
um GT dedicado ao tema. Para os entrevistados que alegam não existir uma agenda regional,
mas destacam o tema como uma prioridade sul-americana criticam a “reatividade
conjuntural” do Conselho de Saúde, e a falta de uma “pauta clara” que possa guiar o
trabalho de todas as instâncias do CSS (GTR2 e AC4). Esses entrevistados, que criticam a
agenda do CSS como “conjuntural e responsiva”, alegam que as prioridades são
estabelecidas por atores externos, como os Estados Unidos, a OPAS e a indústria
farmacêutica (GTR2 e AC4). Por outro lado, a reação do CSS às epidemias de Zika,
Chickungunha e até a possibilidade de uma epidemia de Ebola, foram citadas pelos
160
entrevistados que acreditam na existência de uma agenda regional como uma fortaleza que
demonstra a capacidade que foi construída na região de reagir em conjunto quando existem
interesses comuns entre os países (CC5, CC6, CC7 e CC8). Um representante do Comitê
Coordenador relata a experiência da reação do CSS à epidemia de Zika, que ele denomina de
“agenda propositiva da Unasul em saúde”:
Dentre os entrevistados que afirmam não existir atualmente uma agenda regional de saúde,
dois disseram que existe uma forte pressão da indústria farmacêutica e que as ações tomadas
pelo CSS de negociação conjunta de preços para medicamentos de alto preço (CSS/Unasur,
2015), ao invés de fortalecer a região sul-americana, responderia a esses interesses (GTR2 e
AC4). Essa é uma posição parcial/isolada, que defende uma abordagem mais holística da
saúde, enfocada nos determinantes sociais da saúde, mais social e menos biomédica e
medicalizada.
161
complementaridade entre Unasul e Mercosul e também era uma das áreas prioritárias
definidas pelo Plano Quinquenal (CC2, CC5, CC7 e CC8). O desabastecimento de
medicamentos na Colômbia e na Venezuela foram citados como eventos que colocaram o
tema de medicamentos na agenda política da Unasul, por iniciativa dos Ministros da Saúde
dos dois países (CC10).
A terceira prioridade apontada pelos entrevistados com um tema que compõe a agenda sul-
americana em saúde são as doenças não transmissíveis. Dos três entrevistados que
mencionaram o tema, dois citaram expressamente a questão do controle do câncer, o trabalho
realizado pela RINC e o projeto da Rede financiado pelo FIC (GTR1 e CC8). Esse tema foi
colocado na agenda do CSS através do trabalho técnico da RINC, que reúne os representantes
das instituições nacionais de câncer dos países da América do Sul e que através do exercício
da advocacia em reuniões do Conselho Consultivo do ISAGS, do Comitê Coordenador e do
Conselho de Ministros, foi capaz de elevar aos atores políticos/tomadores de decisão o tema
do controle do câncer de colo do útero (GTR1). Como já visto, o trabalho das redes não está
incluído no Plano Quinquenal, ou seja, formalmente o controle do câncer não figurou na
agenda do CSS.
Além dos temas elencados como prioridades da agenda sul-americana de saúde (Quadro 15),
a reação do Conselho de Saúde às agendas global e continental é citada como um mecanismo
19
Ver Figura 3 – Modelos dos múltiplos fluxos de Kingdon, apresentada na Metodologia, capítulo 3.
162
de formulação e definição dos temas da agenda regional. A agenda do CSS é descrita como
reativa, conjuntural, responsiva, oportunista e fragmentada (CC4, CC9, CC10, GTR2 e
AC4). Um dos representantes do Comitê Coordenador afirma que a agenda é “90% reativa e
10% propositiva”, e considera que o CSS reage à agenda global, uma agenda na qual os
países sul-americanos possuem baixa incidência e, portanto, “a região recebe os pacotes
marcados desde o nível global e reage” (CC10). Os exemplos citados, considerando que as
agendas que vem do nível global e continental, são absorvidas pela agenda regional, são a
reforma da OMS; o tema de produtos médicos de baixa qualidade, espúrios, falsamente
rotulados, falsificados, fraudados (SSFFC); a Cobertura Universal em Saúde e; a epidemia de
Ebola. Como mencionado anteriormente, a capacidade de reagir conjuntamente às agendas
global e continental, apesar de criticada por alguns entrevistados, é vista como uma fortaleza,
que é resultado do trabalho conjunto propiciado pela existência da Unasul (CC5, CC7, GTR5
e AC3).
163
Um dos exemplos da influência da agenda global/continental citado foi a consigna da
Cobertura Universal em Saúde, lançada pela OMS. Um ator-chave entrevistado relata que a
reação do Conselho de Saúde a essa agenda global mostrou a capacidade da região de
influenciar na agenda continental, traçando o fluxo inverso ampliando o escopo da
universalidade proposta (Figura 10):
A fragilidade em traduzir os problemas nacionais em propostas para uma agenda regional que
possa, ao mesmo tempo, fortalecer a agenda regional, através da busca por soluções comuns
e, orientar-se a influenciar as agendas continental e global, é apontada como uma debilidade
dos países sul-americanos (CC9 e CC10). Segundo os entrevistados existe uma agenda
técnica nos países e até regionalmente é possível verificar essa agenda técnica, porém há uma
incapacidade de traduzi-la para uma agenda política. Tomando o modelo de múltiplos fluxos
de Kingdon20, é possível compreender que o fluxo de problemas e o fluxo de soluções estão
presentes, mas como o fluxo político não está alinhado, não se abre a janela de oportunidade,
o que inviabiliza a entrada de um determinado tema na agenda.
20
Ver Figura 3 – Modelos dos múltiplos fluxos de Kingdon, apresentada na Metodologia, capítulo 3.
21
Ver Figura 4 – Fluxograma do Modelo de Coalizão de Advocacia (MCA), apresentada na Metodologia,
capítulo 3.
164
Ministros que representa os 12 países pode reafirmar, por exemplo, um dos princípios
basilares da Unasul que é a questão da universalidade [dos sistemas de saúde].” (AC2).
As mudanças políticas ocorridas no Brasil foram destacadas com preocupação por cinco dos
entrevistados (CC3, GTR2, AC1, AC2 e AC4). Assim como o Brasil teve uma posição
decisiva na criação da Unasul e depois na estruturação do Conselho de Saúde, as mudanças
na política brasileira podem impactar fortemente a possibilidade de haver uma nova agenda
regional em saúde na América do Sul. Um representante do Comitê Coordenador afirma que
“o Brasil mudou, o que foi definido em um determinado momento com muita clareza pelo
Lula e pelo Celso Amorim teve um declínio nítido. Houve uma mudança na orientação das
políticas exteriores iniciada pela Dilma, que demonstrou um desapetite pela coisa. E o Brasil
tem um peso muito forte nessa região” (CC3).
Sobre a fragmentação da agenda, levantada por alguns dos entrevistados, surge uma segunda
questão, que é se existe apenas uma, ou se existem várias agendas em saúde na Unasul.
Todos os representantes das Redes e dos GTs entrevistados falaram sobre a agenda específica
da instância que representavam. Agendas que são aprovadas pelos representantes dos países
membros que participam dessas Redes e GTs. Dessas agendas surgem, como no caso da
RINC e o GAUMU, temas que são capazes de surgir das coalizões técnicas e receber
aprovação das autoridades políticas, expressados pelos projetos financiados pelo FIC, por
exemplo. Porém outros tantos seguem seu caminho, mais ou menos vitorioso, dentro dos
próprios subsistemas22. Um dos entrevistados diz que “é a manutenção dos contatos entre
esses micropoderes que foi capaz de manter o Conselho de Saúde vivo, atuante, apesar do
declínio da intensidade da dinâmica interna” (CC3).
Sabatier e Jenkins-Smith (1993, p.178) definem como premissas de seu Modelo de Coalizão
de Advocacia a necessidade do tempo, do longo prazo, para que ocorra mudanças nas
políticas e que se deve focar nos subsistemas a fim de observar as mudanças, ou seja, que se
deve analisar a interação de quem procura influenciar no resultado do processo político.
Nesse sentido, observar as mudanças que ocorrem por meio da interação dos atores
representantes dos países membros, dentro dos subsistemas que são as Redes, os GTs e as
reuniões, oficinas e cursos realizados pelo ISAGS podem apresentar maior potencialidade de
perceber as construções e as modificações que ocorrem na agenda regional de saúde, ou nas
22
Ver Figura 4 – Fluxograma do Modelo de Coalizão de Advocacia (MCA), apresentada na Metodologia,
capítulo 3.
165
múltiplas agendas regionais que se constroem dentro de cada subsistema. Como os recursos
de cada subsistema são o que determinam a capacidade de cada um influenciar nas políticas
(Sabatier e Jenkins-Smith,1993), os resultados obtidos pela RINC e pelo GAUMU, por
exemplo, demonstram que alguns subsistemas dentro do Conselho de Saúde possuem maior
nível de recursos que outros.
Por outro lado, se a formulação de uma nova agenda formal do Conselho de Saúde tem sido
inviabilizada pela falta de uma conjuntura política favorável, a Unasul possui múltiplas
agendas em saúde. Essas agendas possuem, na maioria das vezes, caráter conjuntural e
reativo estabelecido por agentes externos, na qual as agendas global e continental ditam as
prioridades da agenda regional.
Contudo o fortalecimento da capacidade dos países em defender seus interesses gerado pela
integração regional através da Unasul é destacado por vários entrevistados. A possibilidade
de contar com o bloco de países em fóruns continentais e globais e frente a atores externos,
como os agentes de mercado, habilitou os países da América do Sul a formular agendas em
temas específicos, desde o nível técnico, passando pela aprovação política e, em alguns casos,
se manifestando em espaços externos à própria região.
Apesar do impacto dos eventos externos da macro política na região na dinâmica do Conselho
de Saúde, a presença dos subsistemas políticos representados especialmente pelas Redes,
Grupos Técnicos e pelo ISAGS, tem podido formular e avançar com agendas temáticas como
medicamentos, controle de câncer e vigilância epidemiológica, fortalecendo a capacidade
regional e nacional de resposta em saúde.
166
7. SOBERANIA SANITÁRIA
Construir soberania sanitária por meio de processos de integração regional pode ser uma via
de fortalecimento da autonomia, controle e legitimidade nacionais, ao mesmo tempo em que
pode ampliar o espaço de atuação do bloco regional como ator no sistema global, uma vez
que a saúde figura como uma arena privilegiada para a cooperação entre países e o exercício
da diplomacia. Segundo Kickbusch e Berger (2010, p.19) “a saúde global é uma das áreas
em que uma nova abordagem da diplomacia no século vinte e um é mais evidente”. A
construção de soberania sanitária regional pode ser uma escolha especialmente positiva para
países do sul global.
167
Históricamente la noción de soberanía ha experimentado cambios
profundos. De la soberanía divina a la humana, transferida de Dios a los
hombres: al monarca, a las aristocracias, al pueblo.
O conceito de soberania sanitária ainda é pouco explorado no campo acadêmico, como foi
possível observar na revisão realizada da LILACS e SCIELO, e possui abordagens bastante
distintas tanto de órgãos oficiais como de movimentos da sociedade civil.
Outro conceito para soberania sanitária é construído por organizações não governamentais
que defendem, entre outros valores, a medicina tradicional. Para eles a soberania sanitária
garante a cada cidadão seu direito inalienável de decidir sobre os métodos para obter sua
cura, incluindo a capacidade de escolher os medicamentos que são sociocultural e
ecologicamente adequados, e a ele devem ser oferecidas as opções de tratamento que
respeitem sua ideologia (SINAPSIS, 2014) (United Plant Savers).
O termo soberania sanitária passou também a aparecer com frequência em jornais e sites que
noticiam medidas sobre medicamentos dos Ministérios da Saúde de países da América do
Sul, especialmente Argentina e Colômbia. No colombiano El Telespectador (2014), por
exemplo, a matéria tratou da aprovação de um decreto que regularia a produção de
medicamentos biológicos e biotecnológicos no país a fim de reduzir os preços, possibilitando
168
maior acesso pela população. A matéria termina incitando o Presidente a “(...) construir un
país digno, que ejerza plenamente el derecho de soberanía sanitaria”.
O primeiro autor, citado no início deste capítulo, Paz-Soldán (1949), publicou seu livro “La
OMS y la soberanía sanitaria de las Américas” no período pós-criação da OMS, quando a
então Oficina Sanitária Pan-Americana (OSPA), que em 1958 se tornou OPAS, negociava
com a organização de nível global sua integração como oficina regional da OMS nas
Américas. Além da necessidade, fortemente marcada no livro, de definir os limites da
autonomia da OPAS em relação à OMS, demonstrava também a necessidade de reafirmar
uma independência em relação à Europa, aos países que haviam colonizado as nações das
Américas, especialmente Espanha, Inglaterra, França e Portugal.
O conceito de soberania sanitária de Paz-Soldán (1949, p. 176) conjuga a legislação, que ele
denomina de Direito Sanitário Internacional Americano, e capacidade de execução das
normas a partir da administração que “comprueba y perfecciona la norma, bajo el imperio de
la experiencia social”. A soberania sanitária, segundo o autor, possui três elementos
essenciais, as Leis/Normas, o Poder e o Povo. A norma é o saber positivo, enquanto que o
poder é a aplicação da norma, é o que a torna concreta e acessível ao povo, que poderá então
disfrutar de uma vida saudável, sendo assim, esses três elementos são indissociáveis. O
objetivo final da aplicação da soberania sanitária seria obter a saúde do indivíduo, da família,
da tribo, da etnia, da cidade e da nação inteira.
Apesar de ter um objetivo final similar ao conceito da OMS, com foco no Estado Nação, o
conceito de soberania sanitária elaborado por Paz-Soldán possui o componente da soberania
regional, ausente na definição da OMS, que destaca o papel dos Estados soberanos. O autor
fala de uma “soberanía continental” que abarca não apenas uma, mas segundo ele, todas as
Américas, “la Inglesa, la Española, la Portuguesa, la Francesa y las indigenas” (Paz-
Soldán, 1949, p.193). A Soberanía Sanitaria de las Américas é, segundo Paz-Soldán, a
expressão concreta das vontades livremente acordadas entre as nações de unir suas
experiências e conhecimentos no campo da saúde de seus povos dentro dos princípios
comuns da doutrina médico-social. O autor destaca ainda que dentro desse conceito, a
soberania sanitária continental “sería lo contrario de dependencia sanitaria, ayer mediante
169
los funcionarios de las metrópolis [fazendo referência aos países europeus que colonizaram a
América] para velar por la salud de las colônias (...)” (Paz-Soldán, 1949, p.178).
Seis décadas depois, Mário Rovere, sanitarista argentino, retoma a discussão sobre a
definição de soberania sanitária, a partir de uma perspectiva regional. Rovere (2011, p.27)
expressa que soberania sanitária é alcançada a partir do “fortalecimento da capacidade do
Estado de garantir o direito à saúde e de prover bens e serviços públicos”. Em um contexto
global completamente diferente de seu antecessor, Rovere mantém o objetivo final de
garantir a saúde da população, porém destaca três elementos: o fortalecimento da capacidade
do Estado; a saúde reconhecida como direito e; a provisão dos bens/produtos em saúde por
parte do Estado. Para Rovere (2011) uma política de saúde baseada na recuperação da
soberania sanitária tem que contemplar o financiamento do sistema público de saúde, a
produção de conhecimento, a inteligência epidemiológica, a avaliação de tecnologias, a
regulação democrática e o desenvolvimento de uma produção pública de medicamentos.
O cenário das Américas no século XXI já não comporta, segundo Rovere (2014), o
pensamento de uma soberania continental, como apresentado por Paz-Soldán em 1949, pois a
busca da independência já não se dá em relação aos países da Europa, como colonizadores
das Américas, mas está no alinhamento político dos governos da América do Sul em relação,
especialmente, à influência dos Estados Unidos na região:
Ainda segundo Rovere (2011), a soberania não está mais associada com o isolacionismo, mas
necessita buscar alianças e fontes de inovação na esfera internacional e desenvolver
170
capacidade de negociação e de análise crítica das propostas externas para aproveitar as
oportunidades, por um lado, e se proteger de manipulações, por outro. Nesse contexto, a
construção de uma soberania sanitária regional pode servir para os países da América do Sul
como “eje para redefinir las políticas de salud y construir nuevas capacidades de
negociación en el marco de una salud internacional alternativa” (Rovere, 2011, p.27).
A conjuntura global sobre a qual escreve Rovere não é a de um mundo saindo de uma guerra
mundial, como era o de Paz-Soldán, quando a intervenção externa, decorrente das relações
entre os Estados, que geravam mudanças nas políticas internas envolviam sempre a força
física, a intervenção militar. No século XXI as distintas modalidades de intervenções
transnacionais limitam a capacidade dos Estados em definir as estruturas políticas e
econômicas para a organização de sua política interna e terminam por interferir na soberania
nacional ou interna dos países.
A partir da análise das entrevistas realizadas e do estudo feito sobre a atuação do Conselho de
Saúde da Unasul, o presente capítulo busca contribuir com o desenvolvimento do conceito de
soberania sanitária regional, utilizando como base os elementos oferecidos por Paz-Soldán e
Rovere, em uma perspectiva sul-americana.
Ao serem questionados sobre o que entendiam por soberania sanitária todos os entrevistados
171
manifestaram desconhecer o significado ou conceito “correto” e 18 dos 20 entrevistados
afirmaram que era a primeira vez que ouviam o termo. Incentivados a conceituar soberania
sanitária a partir de seus conhecimentos e práticas, os entrevistados citaram diversos
componentes, valores e temas que em sua percepção estariam associados ao conceito de
soberania sanitária. O Gráfico 2 apresenta e ordena os elementos que foram identificados nas
falas dos entrevistados como categorias emergentes do conceito de soberania sanitária.
O componente que apareceu com maior frequência nas respostas dos entrevistados, foi a
relação entre soberania sanitária e a capacidade dos Estados em garantir saúde para seus
cidadãos por meio de políticas públicas, é “a possibilidade de construção de políticas
públicas baseadas nas características e necessidades do próprio país” (CC10). Um ator-
chave disse que “não somos soberanos se não somos capazes de satisfazer nossas próprias
necessidades, as necessidades de nossos sistemas de saúde” (AC4). A capacidade do Estado
em garantir a saúde de seus cidadãos também está presente nos conceitos de Paz-Soldán e de
Rovere, e mesmo no conceito da OMS, figurando assim como elemento essencial do conceito
de soberania sanitária.
172
A independência/autonomia aparece muito relacionada à questão da capacidade dos países
em definir suas próprias políticas. É possível observar a relação entre esses dois elementos
como dois lados da mesma moeda: a capacidade do Estado é parte da soberania interna,
enquanto que a independência/autonomia seria o componente da soberania externa. Os dois
elementos são mutuamente dependentes, ou seja, quanto mais independente um país é, da
influência e interesses de agentes externos, maior é a sua capacidade de definir suas próprias
políticas e garantir a saúde para seus cidadãos e vice-versa. Dois representantes das Redes
trataram dessa relação ao conceituar a soberania sanitária a partir de sua perspectiva,
destacando às imposições que sofrem os países “dos interesses mercadológicos” e das “leis
de mercado definidas pelas empresas visando o lucro” e que limitam a capacidade dos países
em ter “controle sobre seu papel na proteção social, no desenvolvimento das sociedades da
região, norteado pelos conceitos de igualdade, equidade, universalidade e integralidade”
(GTR1) (GTR3).
Ainda acerca da relação entre esses dois elementos da soberania sanitária, um membro do
Comitê Coordenador relata a influência da própria cooperação internacional na soberania
sanitária de seu país:
173
construção de políticas e a produção de medicamentos que satisfaçam as
necessidades dos sistemas de saúde”. (AC 4)
174
Nesse sentido foram destacados os dois projetos do Grupo Técnico de Acesso Universal a
Medicamentos (GAUMU), financiados pelo Fundo de Iniciativas Comuns da Unasul (FIC), e
o Acordo entre Mercosul, Unasul e OPAS para negociação e compra conjunta de
medicamentos de alto preço e a atuação da Unasul na AMS em temas relacionados a
medicamentos, como expressões do trabalho do Conselho de Saúde no sentido de fortalecer a
soberania sanitária regional. O representante de uma Rede destacou a importância do tema no
momento atual da região:
175
Quadro 16 – Componentes da soberania sanitária sul-americana nas dimensões interna
e externa
Independência/Autonomia/Autossuficiência
Capacidade do Estado de garantir saúde para seus
cidadãos através de políticas públicas
Defesa dos interesses do país
Sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde Migração (acesso e impacto nos sistemas)
176
Apesar da maior importância à atuação do Conselho de Saúde como ator da diplomacia da
saúde global ter sido conferida por países menores da região, o representante de um dos GTs
relatou como a os grandes países do bloco podem também ser beneficiados. Um exemplo é a
maior estabilidade de decisões políticas, gerada pelo compromisso regional, realizado frente
aos outros países do bloco, que mesmo com a alta rotatividade de Ministros da Saúde é
mantido, preservando assim decisões sobre políticas de saúde, como é o caso da garantia do
acesso a medicamentos:
“O Brasil teve uma mudança grande de ministros de setembro [de 2014] pra
cá. Saiu o Padilha, entrou o Chioro, depois saiu o Chioro e entrou o Marcelo
Castro, que já saiu também. E mesmo assim foi possível aprovar no
Conselho de Saúde o acordo de compra conjunta de medicamentos. E isso é
um passo gigantesco, porque comprando como América do Sul o preço
diminui, e isso garante que cada país individualmente e a região em geral
tenha uma cobertura maior e uma capacidade de resposta muito maior. Isso
representa uma grande economia para o país e também representa acesso da
população e a sustentabilidade do sistema.” (GTR4)
Dezessete dos vinte entrevistados afirmaram que a Unasul, através de seu processo de
integração, pode construir soberania sanitária regional. A soberania sanitária sul-americana é
vista pelos entrevistados como “necessidade da independência da região”, como “um
mecanismo de resistência”, como “uma exigência de confrontar a hegemonia global do
capital e do mercado” e como “a possibilidade de desenvolver ações e missões comuns”
(AC4, CC1, AC3, CC10). Dois atores-chave apontam que na atualidade nenhum país pode
resolver sozinho seus problemas de saúde, não apenas pelas epidemias, mas porque gerir seu
177
próprio sistema de saúde está muito relacionado com as relações internacionais, os países não
podem se isolar, a cooperação e o contato externo na área da saúde são necessários e a
integração regional pode fortalecer os países para essas relações externas que impactam em
suas políticas domésticas (AC1 e AC2).
Segundo um dos membros do Comitê Coordenador, existe uma busca do equilíbrio entre o
que os países estão dispostos a abrir mão em prol de benefícios que possam vir a receber. “Na
construção da soberania sanitária regional os países da América do Sul negociam partes de
sua soberania nacional, para que projetos e ações comuns possam ser desenvolvidos,
melhorando a qualidade dos serviços e o acesso das pessoas à saúde” (CC9).
O membro do Comitê Coordenador que considerou que a conjuntura política atual dos países
membros da Unasul coloca em dúvida o processo de integração apontou para a existência de
conflitos políticos não superados entre países da região, como por exemplo Argentina com o
Brasil no comércio no Mercosul; a fronteira entre o Chile e o Peru; da Bolívia e do Peru pela
saída para o mar e; o conflito ideológico entre Venezuela e Colômbia. Esses conflitos não
estão no campo da saúde, porém impedem um melhor fluxo da cooperação entre os países e,
portanto, a possibilidade de construção de interesses comuns. Nesse cenário a construção de
soberania sanitária regional também não seria viável. Além dos “conflitos históricos”, o
entrevistado disse que no contexto de crise que vive a região no momento, “a tendência dos
países é se fechar cada vez mais, é se defender” (CC3).
178
Embora alguns entrevistados tenham expressado a dificuldade de se construir uma soberania
sanitária regional no âmbito da Unasul, especialmente no cenário atual, a maioria das
opiniões indicou que a soberania sanitária sul-americana está em construção.
A soberania sanitária se expressa em duas dimensões, uma interna e outra externa, que
são complementares e se retroalimentam. Na dimensão interna, que se expressa no âmbito
do Estado nacional, a soberania sanitária é a capacidade de definir políticas públicas a
partir da concepção de que a saúde é um direito humano e de que as necessidades das
pessoas devem ser atendidas por sistemas de saúde sustentáveis. Na dimensão externa, que
se expressa no âmbito regional e se fortalece a partir da integração entre os países, a
soberania sanitária é a capacidade de defender os interesses em saúde de sua população
em espaços multilaterais e frente aos interesses transnacionais mercadológicos. A
soberania sanitária estabelece um mecanismo regional de resistência à medida que reforça
a independência e a autonomia em saúde dos Estados.
O que essa definição agrega é a delimitação clara de que a soberania sanitária se expressa em
duas dimensões distintas, a interna e a externa, uma que se manifesta na ação do Estado
Nacional e outra que se constrói no âmbito regional, a partir da integração regional entre os
países. Ademais apresenta a relação de complementaridade e benefício mútuo que essas duas
dimensões da soberania sanitária possuem. A Figura 11 ilustra que a partir da cooperação
entre os países e da integração regional, a região se fortalece e amplia a capacidade de
negociar e defender seus interesses em espaços multilaterais, frente ao mercado e outras
organizações internacionais e transnacionais, o que gera maior autonomia dos países que
pertencem ao processo de integração regional em relação à influência desses atores. Esse
exercício da soberania sanitária regional fortalece, não apenas a região no âmbito da
179
soberania externa, como também individualmente cada um dos países que pertencem ao
processo de integração regional, aumentando assim a capacidade desses países em definirem,
com menor nível de influência externa, suas políticas de saúde, elevando assim o grau da
soberania sanitária interna dos Estados nacionais. À medida que os países definem suas
políticas, com base nas necessidades de sua população, fortalecem também seus sistemas de
saúde o que fará com que a região integrada, tenha maior capacidade de negociar
externamente, fortalecendo assim a soberania sanitária regional.
A soberania sanitária regional entendida como prática compartida e negociada entre os países
se desenvolve a partir da percepção que a integração pode aumentar a capacidade de decidir
de forma autônoma e romper com condições assimétricas historicamente estabelecidas da
região sul-americana com o exterior. Quanto menor a autonomia de uma região em relação ao
sistema internacional, maior é a importância dos fatores externos na definição de suas
políticas. Os países da América do Sul são altamente sensíveis e vulneráveis aos
180
acontecimentos e pressões do sistema internacional, consequentemente, sua autonomia
dentro desse cenário externo é limitada, forçando-os a privilegiar os espaços criados pelas
instituições multilaterais para poder atingir seus objetivos (Mariano, 2007, p.140).
Ainda que os países da América do Sul sejam vulneráveis e historicamente tenham sofrido
pressões externas que comprometeram sua capacidade de exercer sua soberania sanitária,
tanto na dimensão interna como na externa, o impacto da influência externa é diferente em
cada Estado. Países maiores, com economias mais expressivas, possuem individualmente
maior capacidade de exercer sua soberania sanitária, tanto no tangente à definição de suas
prioridades e políticas internas, como na negociação e defesa de seus interesses frente a
atores externos. Na América do Sul, por exemplo, o Brasil, além de possuir essas
características, ainda agrega a participação em outros blocos, como o BRICS e a CPLP, que
possibilitam com que o país aumente sua capacidade de exercer sua soberania sanitária
externa. Países menores, com economias mais frágeis, dependem mais da “voz regional” para
defender seus interesses. Contudo, os compromissos assumidos no âmbito dos processos de
integração regional podem manter determinadas prioridades na agenda, mesmo quando há
mudança de governo ou de dirigentes nos Ministérios da Saúde. Este último elemento é
observado também nos países maiores.
Ventura e Perez (2014, p.53) ressaltam que “houve uma mudança radical nas últimas
décadas: as empresas transnacionais e os imperativos de mercado passaram a desempenhar
um papel importante, por vezes perverso, na formulação de políticas de saúde”. Os Estados
membros da Unasul optaram por reivindicar a soberania sanitária frente a agentes relevantes
do sistema internacional, o que inclui não apenas países e organizações que notadamente
ditaram políticas de saúde na região, mas incorpora o mercado, as empresas transnacionais,
em especial a indústria farmacêutica.
A Unasul é ainda um ator jovem na arena global e sua atuação e resultados produzidos são
ainda incipientes. Contudo, é possível afirmar que os dois principais campos de atuação da
soberania sanitária regional na Unasul foram o exercício da diplomacia da saúde em espaços
multilaterais e o acesso a medicamentos.
Kickbush e Buss (2011) destacam que o mundo está passando por uma mudança geopolítica e
os países em desenvolvimento, que antes não tinham como expressar suas necessidades
diante dos países desenvolvidos, agora possuem uma voz na arena internacional através da
181
diplomacia da saúde. O exercício da diplomacia da saúde busca captar tanto o sistema quanto
o método dos processos de negociações em relação aos diversos níveis e atores que modelam
e gerem o ambiente político global no âmbito da saúde.
Nesse contexto o Conselho de Saúde da Unasul inaugurou o exercício dessa diplomacia com
foco na saúde como impulsor para a construção de soberania sanitária regional, a partir da
formação de consenso entre seus Estados membros e da definição de posicionamentos
comuns nos foros internacionais. A Unasul compreendeu que agregar os países em torno de
interesses comuns pode fortalecer as posições da região em foros internacionais multilaterais
e ampliar as possibilidades de defender os interesses dos países da América do Sul frente aos
desafios transnacionais de saúde.
182
reconhecimento internacional e sua capacidade de negociação nos espaços da saúde global. A
ação conjunta dos países por meio do Conselho de Saúde da Unasul fortalece a soberania
sanitária nacional ao mesmo tempo que constrói soberania sanitária regional para a América
do Sul.
Ainda que a atuação da Unasul no campo da saúde tenha construído soberania sanitária
nacional e regional, é necessário ponderar se é possível construir soberania em saúde sem que
a soberania em geral seja construída pelos países individualmente e pela região. As políticas
de saúde não são isoladas das demais políticas, seja, elas econômicas ou sociais. Os
determinantes sociais da saúde evidenciam a relação direta entre outras políticas e a saúde. O
exercício pleno da soberania sanitária depende claramente do exercício da soberania como
um todo, a partir da concepção atualizada de soberania como autonomia, controle e
legitimidade dos países. Neste sentido, a Unasul é um espaço privilegiado para o diálogo com
183
as demais áreas políticas, visto que reúne os Ministros de Educação, Desenvolvimento Social,
Cultura, Economia, entre outros em seus Conselhos, além dos Ministros das Relações
Exteriores e dos próprios Presidentes dos países. Por outro lado, a saúde também é, em si, um
campo privilegiado para a construção de soberania externa, uma vez que conta com espaços
continentais e globais multilaterais de negociação e exercício de soberania, que outras áreas
sociais não possuem.
As possibilidades existem, tanto no setor saúde como dentro da Unasul, para a articulação
com outros setores e a construção de soberania para a região sul-americana. Contudo os
limites do setor saúde também são claramente marcados, tanto na governabilidade interna da
Unasul, como nos fóruns globais. No primeiro caso, a subordinação do Conselho de Saúde ao
Conselho de Ministros de Relações Exteriores com o advento do Regulamento Geral da
Unasul em 2012 expressa o limite de atuação do setor saúde dentro da Unasul. Nos espaços
globais os limites impostos ao setor saúde por acordos realizados no âmbito da Organização
Mundial do Comércio (OMC) são outro exemplo dos limites da construção de soberania
sanitária.
A influência e interferência dos acordos multilaterais firmados na OMC, que definem regras
sobre patentes, propriedade intelectual e sobre o comércio de produtos da saúde geram
impacto direto na definição de políticas em saúde nos países e nos sistemas de saúde
nacionais (Esquivel e Friedrich, 2015) (Woodward et al, 2001). O Acordo Geral sobre
Comércio de Serviços (GATS por sua sigla em inglês), o Acordo sobre Aspectos dos Direitos
de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs por sua sigla em inglês) e o
Acordo sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (AMSF) são exemplos de
acordos multilaterais vinculantes da OMC que possuem impacto direto no exercício da
soberania sanitária dos países. Diferentemente dos acordos da OMC, as Resoluções emanadas
pela Organização Mundial da Saúde não possuem caráter vinculante.
Uma das formas que os países da América do Sul podem expressar sua soberania sanitária
externa e ao mesmo tempo fortalecer sua soberania interna é pressionar a OMS para que a
Assembleia Mundial da Saúde (AMS) possa avançar na aprovação de acordos vinculantes
para determinados temas, que são prioritários e necessitam de mais força normativa do que as
Resoluções são capazes de propiciar. A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco
(CQCT), que entrou em vigor em fevereiro de 2005, após 40 países a terem ratificado, é o
primeiro e único tratado internacional de saúde pública da história. Diferentemente das
184
Resoluções, que apenas produzem diretrizes em políticas de saúde em nível global, o CQTC,
por se tratar de um tratado mundial, é juridicamente vinculante, o que significa que seu
cumprimento é obrigatório a partir de sua entrada em vigor.
Na Unasul existe certa negociação da soberania sanitária nacional, que termina em acordos
ou posicionamentos comuns em fóruns multilaterais, nos quais os países precisam ceder, por
exemplo, parte de sua legitimidade em ditar as regras, a fim de consensuar e fortalecer assim
a posição do bloco no sistema internacional, seja política ou economicamente. A construção
de soberania sanitária regional pressupõe a negociação da soberania sanitária nacional, o que
impõe limitações aos países, mas sempre traz benefícios aos envolvidos e é essa a razão pela
qual os Estados optam por serem membros da Unasul.
185
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os temas examinados em cada capítulo deste estudo são retomados e relacionados aqui a fim
de responder à questão inicialmente proposta: A atuação do Conselho de Saúde da Unasul
pode construir soberania sanitária regional na América do Sul?
Com o intuito de responder essa pergunta, este trabalho de doutorado identificou os processos
de integração regional presentes na América Latina e procurou destacar as características de
cada processo e seus objetivos no campo da saúde. A partir dessa identificação foi possível
delimitar as características próprias da Unasul como um processo de integração regional, suas
semelhanças e diferenças com os demais processos da América Latina. O passo seguinte foi
descrever o processo de criação da Unasul e compreender o contexto histórico e político do
momento de sua criação, para então determinar os elementos que propiciaram a criação do
Conselho Sul-Americano de Saúde. A estrutura, a governança, a atuação e a formação da
agenda do Conselho de Saúde da Unasul foram analisadas em detalhe. Finalmente esse
conjunto de informações foi relacionado com o conceito de soberania sanitária definido neste
estudo.
186
A integração é também mais ampla que a cooperação porque pode resultar em novas
unidades ou entidades políticas e é menos flexível, promovendo mudanças significativas nos
Estados envolvidos. A questão da criação de novas unidades ou entidades remete aos
processos de integração supranacionais, onde há transferência de soberania para um ente
supranacional. No caso da América Latina não existem processos de integração
supranacionais. Todos os processos de integração da região são intergovernamentais, o que os
torna mais frágeis institucionalmente e gera críticas no sentido de serem considerados mais
processos de concertação presidencial que realmente processos de integração regional.
Entendemos que essas críticas advêm da comparação com o processo da integração da
Europa. Por ser o processo mais antigo de integração regional, a União Europeia é utilizada
como modelo e são comuns os estudos comparativos entre os processos de integração
regional da América Latina e a União Europeia. Contudo, os processos latino-americanos
possuem características históricas próprias que demarcam suas particularidades e que
respondem às necessidades regionais.
Os processos de integração regional têm exercido um papel protagônico nas negociações que
dirigem o ambiente da política global em saúde. Neste estudo entende-se a saúde global como
um espaço ampliado da saúde, que não se restringe a fronteiras e a relações entre nações, mas
acrescenta temas e atores envolvidos para além dos países e organizações governamentais e
intergovernamentais, e como esses novos atores interferem nas decisões em saúde. A
acentuação dos processos de interdependência associados à globalização contemporânea
amplia os determinantes de saúde transfronteiriços e reduz a capacidade dos Estados
Nacionais de proteger isoladamente a saúde de suas populações, exigindo novas estruturas de
governança global em saúde que possam promover e coordenar ações intergovernamentais.
Os processos de negociações múltiplas, que ocorrem nos distintos níveis e envolvem a
participação dos mais variados atores e visam impulsionar mudanças que promovam
globalmente a saúde, constituem o campo da diplomacia da saúde.
Verifica-se a perda da autonomia dos países e a redução de sua soberania a partir de eventos
globais sobre os quais um país não possui a capacidade de tomar decisões e tampouco é capaz
de produzir, sozinho, os resultados necessários para a proteção de seus cidadãos e de suas
fronteiras. Nesse contexto, o conceito de soberania, classicamente centrado no soberano, no
território e na autoridade, precisa ser revisitado, dada a entrada de novos atores no cenário
187
global e do advento de normas transnacionais que impactam na maneira como os Estados
nacionais exercem, interna e externamente sua soberania.
Uma vez, entendida a soberania como a autonomia que possui um Estado de definir e
executar suas próprias políticas, de controlar a produção de resultados e de ter a legitimidade
para determinar as regras, reconhecida por atores externos, a integração regional pode ser
uma alternativa especialmente favorável ao fortalecimento da soberania dos países da
América Latina e de outros países do sul-global.
Para países que historicamente tiveram suas políticas persistentemente penetradas pela
influência externa, a integração regional pode representar o caminho para equilibrar as
relações de poder entre países e outros atores no sistema internacional. O processo de
integração fortalece a soberania externa no nível regional, e promove o exercício da soberania
interna de forma mais autônoma, com maior controle e legitimidade, consolidando assim a
soberania nacional de cada um dos Estados-membros.
A América Latina possui uma história de seis décadas de processos de integração regional.
Entre 1950 e 2012 foram criados na região nove distintos processos de integração regional: a
Comunidade Andina de Nações – CAN (1969); a Comunidade e Mercado Comum Caribenho
– Caricom (1973); a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA (1978); o
Mercado Comum do Sul – Mercosul (1991); o Sistema da Integração Centro-Americana –
SICA (1991); a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América - Tratado de Comércio
dos Povos – ALBA-TCP (2004); a União de Nações Sul-Americanas – Unasul (2005); a
Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos – Celac (2010); e a Aliança do
188
Pacífico (2012). Cada processo possui características próprias e se alinha, em maior ou menor
grau, com os três modelos históricos de integração regional latino-americanos:
desenvolvimentista, aberto/neoliberal e “pós-neoliberal”. Esses modelos não representam
uma evolução histórica da integração regional latino-americana, mas delimitam
características específicas dos distintos processos de integração que foram criados em
determinado momento e sob conjunturas políticas diversas. Esses processos de integração
permanecem vigentes e são adaptados às novas conjunturas, convivendo entre si.
A década de 1980 foi marcada pelas políticas neoliberais, com forte desregulação e políticas
de austeridade fiscal adotadas nos países industrializados. Essa conjuntura foi muito
desfavorável para os países da América Latina, que em 1989, com o advento do Consenso de
Washington iniciaram a implementação das políticas neoliberais. Nas décadas de 1980 e
1990 houve acentuada redução do gasto público, especialmente na área social. A
liberalização do comércio, a redução das regulações, as privatizações, o aumento das
exportações e a concentração de investimentos no setor privado passaram a ser considerados
como os principais indutores do desenvolvimento, no lugar do Estado.
189
Nesse período foram criados o Caricom e o Mercosul. O Mercado Comum Centro-americano
(MCCA) foi transformado no Sistema da Integração Centro-Americana (SICA) e o Grupo
Andino na CAN. A ênfase desses processos de integração regional era puramente comercial e
eles eram regidos pela lógica de mercado. Esse período coincide com o final dos governos
ditatoriais na região e a retomada do interesse dos Estados Unidos pelos países da América
Latina.
Nessa conjuntura política e econômica, a América do Sul deu início a um novo modelo de
integração regional, que não estava focado na integração econômica, como os modelos
anteriores, mas buscava uma integração política e social, com a retomada da agenda
desenvolvimentista, porém aliando o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento social.
190
Distintamente dos processos de integração anteriores, como Mercosul e a CAN, que tinham
como objetivo a conformação de um mercado comum, com livre circulação de pessoas, bens,
serviços e capitais e eliminação das barreiras comerciais e alfandegárias, a Unasul busca
constituir-se como um contrapeso a um sistema de blocos regionais que não estava
favorecendo a região sul-americana.
A agenda proposta pelos Chefes de Estado da Unasul enfatizou dimensões sociais, culturais e
identitárias, extrapolando os temas clássicos das agendas dos processos de integração da
região, que estiveram focados na integração comercial e produtiva.
Apesar das suas debilidades institucionais, de sua juventude e dos desafios futuros, a Unasul
faz parte de um processo de reconfiguração dos padrões de cooperação e integração na
América do Sul. O avanço desse novo modelo de integração regional foi fortemente
impulsionado pelos Presidentes dos três maiores países da região: Argentina, Brasil e
Venezuela, com especial destaque para os presidentes Lula e Chaves. Essa personificação do
processo de integração é uma característica permanente da Unasul. A Unasul esteve, desde
sua criação, dependente de personalidades que levassem o processo adiante. Essa
característica esteve presente tanto na esfera presidencial como em relação à Secretaria Geral
da Unasul que teve um desempenho oscilante e dependente da pessoa do Secretário Geral.
Assim, o processo de integração regional conduzido pela Unasul depende muito da vontade
do líder de cada Estado, o que fragiliza o processo de integração a médio e longo prazos,
como pode ser observado na segunda década do século XXI.
191
A criação do Conselho de Saúde na Unasul respondeu a uma tradição regional da cooperação
em saúde na América Latina, iniciada pela Organização Pan Americana da Saúde (OPAS) há
mais de um século, e absorvida por todos os processos de integração existentes na região.
A pressão de movimentos populares para a elaboração de uma agenda regional em saúde foi
um elemento adicional ao processo de criação de uma instância regional em saúde, que teve
relevância por se tratarem de governos que possuíam uma proximidade e um diálogo com
esses movimentos. A preexistência de um espaço de trabalho e confiança entre as autoridades
dos Ministérios da Saúde da América do Sul, construído nos fóruns sub-regionais, continental
e global foi também fundamental para criação do Conselho de Saúde. O processo de
elaboração da agenda sul-americana em saúde demonstrou que todos os espaços de encontro
foram utilizados para avançar com o projeto regional.
O Isags, além de um articulador que apoia a governança específica das instâncias da própria
Unasul, foi capaz de mobilizar regionalmente outros setores, como o de desenvolvimento
social e o de tecnologia e inovação para debater com a saúde soluções para temas que
requerem atuação intersetorial. Também foi capaz de aumentar o reconhecimento das
políticas de saúde da América do Sul, entre os países da região, bem como globalmente. A
192
realização de oficinas, seminários, reuniões, publicação de livros e geração de dados e
evidências sobre as prioridades regionais em saúde, permitiram aos países membros da
Unasul compartilhar informações, conhecimentos, desafios e boas práticas sobre os
problemas de saúde e a transferência de conhecimento.
Fortalecer a região por meio de políticas e ações intersetoriais é uma opção viável para a
Unasul, que conta com outros 11 conselhos setoriais além da saúde. Quando essa estrutura
começar a coordenar suas ações e atuar em conjunto, em diferentes arenas globais, o bloco
poderá melhorar muito sua posição de player global.
193
diplomacia da saúde, utilizando os espaços de negociação continental e global, com destaque
para a Assembleia Mundial da Saúde (AMS), como palco da defesa de interesses regionais. A
atuação do Conselho de Saúde na diplomacia da saúde alterou o reconhecimento da região
sul-americana como um ator importante na governança da saúde global. CAN, Mercosul e
OTCA, processos mais antigos do que a Unasul, não se organizaram para uma atuação
conjunta em espaços multilaterais de saúde. Essa atuação diferencia a Unasul dos demais
processos de integração da América do Sul.
Apesar de ainda iniciais e tímidos, já foi possível observar impacto nas políticas nacionais e a
realização de acordos bilaterais entre países membros da Unasul como resultados da
participação dos países no Conselho de Saúde. A existência de espaços para o intercâmbio de
boas práticas e a crescente confiança construída nas diversas interações entre os
representantes técnicos e políticos dos Ministérios da Saúde possibilitou repercussões nas
políticas nacionais. Exemplos concretos foram a mudança nos mecanismos do controle de
câncer de um país membro; a restruturação dos Institutos Nacionais da Saúde de alguns
países; e a oferta de vagas de doutorado e mestrado no Brasil preferenciais para candidatos da
América do Sul. A aproximação de países andinos com países do cone-Sul, que antes da
Unasul estavam mais restritos aos espaços sub-regionais da CAN e do Mercosul, gerou
oportunidades para acordos bilaterais, por exemplo, entre Equador e Uruguai.
A complexa estrutura criada dentro do Conselho de Saúde – com cinco Grupos Técnicos, seis
Redes, um Instituto, um Comitê Coordenador e um Conselho de Ministros –, aliada à também
complexa estrutura da Unasul – com seus 12 Conselhos Setoriais, uma Secretaria Geral, um
Conselho de Delegados, um Conselho de Ministros de Relações Exteriores e um Conselho de
Chefes de Estado – e finalmente incluídos os países membros, gera uma multiplicidade de
espaços de articulação e de tomada de decisão entre os atores, o que, somado à juventude e
fragilidade da Unasul, pode produzir um efeito negativo de dificultar a ação e estancar os
processos do Conselho de Saúde e do processo de integração como um todo.
194
pelo Regulamento Geral da Unasul, a partir de 2012, enfraqueceu a capacidade de tomada de
decisão dos Ministros de Saúde.
A Unasul, assim como outros processos de integração regional (Mercosul, CAN e SICA), têm
como característica, a tomada de decisão por consenso. Esse mecanismo que difere dos
processos decisórios em espaços multilaterais, como, por exemplo, da Assembleia Mundial
da Saúde e do Conselho Diretivo da OPAS, onde a decisão é por maioria de votos, evidencia
a necessidade de construir um espaço no qual todos os Estados-membros se sintam
confortáveis com as decisões tomadas e que amplie a confiança entre os envolvidos. O
consenso certamente faz com que o processo de tomada de decisão seja mais lento e, em
alguns casos, impeditivo. Porém, parece ser a via possível para se construir, de fato, a
integração entre países.
Ainda que a atuação do Conselho de Saúde como um importante ator da diplomacia da saúde
seja um dos destaques positivos da Unasul no campo da saúde, há questões nas quais o CSS
pode avançar, com o objetivo de ampliar e qualificar sua atuação na arena global.
195
A Unasul necessita também construir alianças com outras regiões e países que possam
fortalecer as posições e valores defendidos pelo bloco, e somar votos. A Unasul representa
apenas 12 votos em um universo total de 194. O sul global deve ser o parceiro principal
buscado pela Unasul, especialmente outros processos de integração, tais como: como a União
Africana; o grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics); a
Comunidade do Caribe (Caricom); o Conselho de Ministros de Saúde da América Central e
Republica Dominicana (Comisca); a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e
a Southern Africa Development Community (SADC).
A diplomacia sanitária exercida pelo Conselho de Saúde da Unasul poderá agregar também
países da Europa e o Canadá, por exemplo, vistos os valores e princípios que aparecem
transversalmente em seus posicionamentos comuns, em questões de saúde global.
A soberania regional não é a negação da soberania nacional. Ela deve ser entendida como
prática compartilhada e negociada entre os países membros de um processo de interação.
Desenvolve-se a partir da percepção de que a integração aumenta a capacidade de decidir de
forma autônoma e de romper com condições assimétricas, historicamente estabelecidas entre
a região e o exterior. No caso da Unasul, por se tratar de um processo de integração
intergovernamental, não há cessão de soberania a um órgão supranacional, mas a concertação
de ideias e propósitos.
Os Estados nacionais encontram-se inseridos em uma estrutura global que reduz sua
autonomia e capacidade de tomar decisões. Uma motivação para buscar o processo de
integração regional, como porta-voz das necessidades do Estado Nacional, é a percepção de
que a soberania interna de um país foi afetada pela intervenção de agentes externos, mediante
práticas e decisões que alteraram a configuração das políticas nacionais.
196
como um mecanismo para aumentar seu reconhecimento internacional e sua capacidade de
influenciar no sistema internacional, o que em última instância fortalece sua soberania
nacional, ao mesmo tempo que constrói a soberania regional.
No campo da saúde, soberania sanitária é um conceito que começou a ser discutido nas
Américas já no período da criação da Organização Mundial da Saúde (OMS). A soberania
sanitária partiu de uma abordagem continental, que defendia a autonomia das Américas frente
a seus colonizadores europeus e da OPAS frente à OMS, e foi redefinida para um contexto
global do século XXI com uma abrangência regional, da defesa dos interesses da América do
Sul no campo da saúde.
A contribuição desse estudo para definição de soberania sanitária foi delimitar claramente as
duas dimensões nas quais a soberania externa se expressa: uma interna, que se manifesta na
ação do Estado Nacional e outra que se constrói no âmbito regional, a partir da integração
regional entre os países. As duas dimensões são complementares e se beneficiam mutuamente
uma da outra.
A partir dessa delimitação, esta tese apresenta uma proposta de conceito para soberania
sanitária: a soberania sanitária se expressa em duas dimensões, uma interna e outra externa,
que são complementares e se retroalimentam. Na dimensão interna, que se expressa no
âmbito do Estado nacional, a soberania sanitária é a capacidade de definir políticas públicas a
partir da concepção de que a saúde é um direito humano e de que as necessidades das pessoas
devem ser atendidas por sistemas de saúde sustentáveis. Na dimensão externa, que se
expressa no âmbito regional e se fortalece a partir da integração entre os países, a soberania
sanitária é a capacidade de defender os interesses em saúde de sua população em espaços
multilaterais e frente aos interesses transnacionais mercadológicos. A soberania sanitária
estabelece um mecanismo regional de resistência à medida que reforça a independência e a
autonomia em saúde dos Estados.
Com base nesse conceito de soberania sanitária, as análises realizadas neste estudo de tese
concluíram que os Estados membros da Unasul optaram por reivindicar a soberania sanitária
frente a agentes relevantes do sistema internacional, o que inclui não apenas países e
organizações que notadamente ditaram políticas de saúde na região, mas incorpora o
mercado, as empresas transnacionais, em especial a indústria farmacêutica.
197
A Unasul possibilitou a efetivação de um processo de integração regional em saúde que tanto
construiu soberania sanitária regional, como fortaleceu individualmente as soberanias
sanitárias nacionais de cada país membro.
Questões que dependem de um alinhamento político foram consensuadas entre o bloco, como
no caso da atuação do Conselho de Saúde na Conferência Mundial sobre os Determinantes
Sociais da Saúde, realizada no final de 2011. Porém tornam-se cada vez mais difíceis, dadas
as mudanças políticas ocorridas na região a partir de 2010.
A dificuldade de se obter consenso sobre uma nova agenda em saúde na Unasul, com o fim
do Plano Quinquenal 2010-2015, expõe a fragilidade do processo de integração em saúde na
América do Sul.
198
Entretanto, os processos de integração regional na América do Sul, criados em outros
cenários e sob uma ótica política diversa, sobreviveram e foram sendo adaptados para
responder às crises e mudanças na região ao longo de décadas, o que resultou em uma
convivência de diversos processos de integração na região. Os países membros da Unasul
poderão optar por um realinhamento conservador para o processo de integração sul-
americano, respondendo ao projeto político que vem ganhando espaço na América do Sul.
Por outro lado, as medidas tomadas pelo recém-eleito Presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump, poderão funcionar como um novo estímulo para a integração Latino-americana, com
protagonismo do México e dos países da Aliança do Pacífico, ampliando a atuação da Unasul
ou reativando a Celac.
Ainda que o futuro da Unasul seja incerto, é possível afirmar que integração sul-americana
em saúde produziu importantes resultados políticos e técnicos em seus primeiros oito anos de
existência. A continuidade deste processo de integração em saúde depende de um equilíbrio
entre as coalizões políticas e as coalizões técnicas: se uma das duas se enfraquece a outra
precisa se fortalecer para manter o processo vivo. Em conjunturas políticas complicadas e
desfavoráveis, como as enfrentadas na região, a partir da segunda década dos anos 2000, o
fortalecimento das coalizões técnicas impulsionadas pelos Grupos Técnicos, Redes e ISAGS
pode contribuir para mitigar o enfraquecimento da integração sul-americana em saúde,
mantendo o fluxo de informações sobre o que ocorre na região; o intercâmbio de boas
práticas; e a capacidade de desenvolver políticas. A manutenção de uma agenda regional em
saúde para a América do Sul é fundamental para evitar que a região perca autonomia e,
consequentemente, veja sua soberania sanitária enfraquecida, passando a ter uma agenda de
saúde completamente reativa à agenda externa.
199
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210
LISTAS DE QUADROS, FIGURAS E GRÁFICOS
211
Quadros
Capítulo 3 – Metodologia
Quadro13 – Projetos na área de saúde realizados por outros Conselhos da Unasul, 2012-
2015......................................................................................................................................131
212
Quadro 14 – Resoluções da AMS que a Unasul apresentou posicionamento comum, 2010-
2014......................................................................................................................................150
213
Figuras
Capítulo 3 – Metodologia
214
Gráficos
215
LISTA DE ANEXOS
216
ANEXO I: ROTEIRO PARA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
Data: ___/___/_____
1. Nome da Reunião:
______________________________________________________________
2. Local da Reunião:
______________________________________________________________
I. Participação
*Especificar:________________________________________________________
5. Países ausentes:_________________________________________________
8. Em caso afirmativo, na questão anterior, esses atores eram representantes dos países
membros da Unasul de outro Conselho? Ou representantes de outro organismo internacional?
___________________________________________________________________________
_________________________________________________________
III. Dinâmica
217
11. Quais foram os temas da agenda aprovada que geraram maior debate?
___________________________________________________________________________
_________________________________________________________
12. Quais foram os principais conflitos? Houve algum conflito que não foi solucionado?
___________________________________________________________________________
_________________________________________________________
14. Formaram-se coalizões de países? Em caso afirmativo, essa(s) coalizão foi de forma
generalizada ou em torno de algum tema específico?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
________________________________________________
15. Dentre os encaminhamentos houve propostas de levar a posição comum da Unasul para
fóruns multilaterais? Qual tema? Qual fórum?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
________________________________________________
16. Quais os países que tiveram atuação mais marcante? Por quê?
___________________________________________________________________________
_________________________________________________________
218
Data da entrevista: ____/____/_______
Identificação do entrevistado
Contato do entrevistado:________________________________________
Profissão: ____________________________________________________
Questões-chave:
_________________________________________________________________________
_______________________________________________________
1. Unasul
Houve países que se destacaram nesse processo? Quais? Por que eles tiveram
atuações destacadas?
Houve conflitos nesse processo inicial? Quais eram os atores envolvidos nesses
219
conflitos? Como eles foram superados?
Quais são os Conselhos da Unasul que tem atuação mais marcante/efetiva? Como
esses Conselhos atuam?
Qual foi a atuação da Unasul que teve maior resultado? Quais são os resultados
concretos da Unasul?
Algum conselho da Unasul possui maior prioridade no seu país? Por quê?
Qual foi a atuação do CSS que teve maior resultado? Quais são os resultados
concretos do CSS?
220
2.2. Dinâmica das Reuniões do CSS
E negativamente?
O seu país busca apoio junto aos demais países membros da Unasul para defender
prioridades nacionais em fóruns multilaterais/globais? Em quais temas? Que tipo
de iniciativas seu país espera do CSS?
De que forma o CSS atua para levar as prioridades em saúde da América do Sul
para a arena global? O CSS é capaz de influenciar na governança da saúde global?
2.5. CSS e Diplomacia da Saúde
4. Soberania
221
4.2. Soberania regional
222