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‘Por que será que todos os nossos heróis são homens e brancos?

’ - Cultura - Estadão 14/06/2020 13:57

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‘Por que será que todos os


nossos heróis são homens e
brancos?’
Reflexão sobre monumentos e estátuas leva historiadora e antropóloga a
uma análise mais profunda sobre o racismo estrutural no Brasil: ‘Não
teremos democracia enquanto continuarmos racistas’

Entrevista com

Lilia Moritz Schwarcz


Daniel Fernandes, O Estado de S.Paulo
14 de junho de 2020 | 11h25

Enxergar é biológico. Ver é opção cultural. O Brasil descrito por Lilia


Moritz Schwarcz, historiadora, antropóloga e autora de livros como

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‘Sobre o Autoritarismo Brasileiro’ e ‘Lima Barreto: Triste


Visionário’, é o de heróis brancos e masculinos, nunca negros, nunca
femininos. É o Brasil inserido na civilização ocidental que, mais uma vez,
enxerga e não vê quais deveriam ser seus monumentos e esculturas. É o
Brasil que não vê que perpetuou a escravidão por todo o seu território -
mais de 4,8 milhões de pessoas foram privadas de liberdade. É o mesmo
país que, segundo a escritora, não vê que a morte de Marielle matou
também um outro Brasil, com mais oportunidade. Um país que enxerga
mas não vê que enquanto for racista não terá democracia. A seguir, a
entrevista concedida por telefone ao Estadão.

Antirracismo. Manifestantes de Bristol derrubam e lançam em um rio a estátua do


traficante de escravos Edward Colston Foto: Keir Gravil via REUTERS

A minha pergunta inicial seria: você é contra ou a favor da


retirada desses monumentos, dessas estátuas de escravocratas?
Mas não sei se é tão simples assim se posicionar de um lado ou

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de outro. Mas queria começar com essa pergunta.

Eu acho que a questão é equivocada, que não se trata de ser contra ou a


favor porque não se trata de abrir ou fechar um partido político que seja a
favor ou contra esse tipo de manifestação. Eu sou a favor da reflexão em
cima desse tipo de manifestação. Eu sou absolutamente a favor porque
nós crescemos com uma historiografia que se chama de universal, mas
que não é universal. É uma historiografia que se detém sobretudo nas
conquistas e nos feitos das sociedades européias e depois norte-
americanas. Um bom exemplo aqui é por que será que o Brasil, que foi
colonizado por portugueses, mas também indígenas e várias Áfricas,
vários africanos, e mesmo assim nós não temos na nossa história uma
referência a todas essas origens. Ou seja, não se fala das inúmeras Áfricas
que chegaram ao Brasil, as tecnologias, as filosofias, as culturas materiais,
as religiões que vieram nos navios negreiros. Também não comentamos os
inúmeros povos indígenas que estavam no Brasil quando os portugueses
chegaram.

Falamos de descobrimento de uma terra que já estava densamente


povoada. Os historiadores mostram que nas Américas, na América do Sul
sobretudo, a população respondia, em termos de quantidade, à população
da Península Ibérica no mesmo contexto. Mas, mesmo assim, falamos de
descobrimento. O que isso revela? Revela uma narrativa histórica muito
marcada por uma só experiência. Por que será que toda a nossa
imaginação é uma imaginação branca? Por que será que todos os nossos
heróis são homens e brancos? Quase não temos mulheres, quase não
temos heróis negros. Se as imagens dos heróis podem ser inventadas, isso
é o que acontece com boa parte dos monumentos, não sabemos como
eram as imagens dessas pessoas, assim como não sabíamos qual era a

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imagem de Tiradentes. Ela foi criada entre o final do Império e o


começo da República para que ele figurasse um herói branco, republicano,
mas também religioso, por isso Tiradentes hoje na imaginação se parece
tanto com Jesus Cristo. Por que será que nós não criamos uma
imaginação negra?

Falamos de descobrimento de uma


terra que já estava densamente
povoada.

Então, voltando a sua pergunta, porque ela está equivocada. Porque o que
a gente não percebe é que esses monumentos, essas esculturas, reforçam
uma imaginação somente ocidental. Mais ainda: uma imaginação, por
vezes, muito violenta. Nós apaziguamos a violência. Eu sou absolutamente
a favor da retomada crítica desses espaços simbólicos porque eu sou
historiadora e antropóloga e eu acredito piamente na eficácia simbólica
para o poder político. Ou seja, não se trata de ingenuamente contar com
uma escultura de um traficante de escravos. Se trata de glorificar e
enaltecer essa figura. De lembrar para esquecer. O que você lembra? Que

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ele foi do parlamento, estou me referindo ao caso mais gritante no


momento, inglês e o que se esquece? Que ele traficou vidas humanas
durante muito tempo. E também, o que se esquece? Que a Inglaterra, a
Grã-Bretanha, não era só essa grande civilização. Ela compactou com a
barbárie. Então, esse é o meu a favor.

Penso sim que recuperar esses espaços simbólicos é um ato muito


significativo. Como nós vamos recuperar é uma outra questão. Eu,
particularmente, acho que não é o caso de destruir apenas. Eu faria, por
exemplo, um memorial crítico da escravidão, um memorial crítico da
colonização. Ou então, colocaria ao lado dessas, esculturas que tensionem
esses regimes de verdade. Esculturas que digam o oposto sobre essa
pessoa. Existem muitos mecanismos de fazê-lo, mas, por vezes, é preciso
começar radicalizando para que a sociedade preste atenção. Porque o que
acontece no nosso cotidiano, nós não vemos. Existe uma diferença muito
grande entre enxergar e ver. Enxergar é uma faculdade biológica, ver é
uma opção cultural. Eu penso que os brasileiros e de uma maneira geral a
civilização ocidental enxerga, não vê. É isso que fazemos diante dessas
esculturas, desses monumentos.

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A antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz Foto: Amanda Perobelli/Estadão

Eu li no New York Times uma entrevista do professor (do John


Jay College of Criminal Justice) Erin Thompson. Ele diz que a
queda das estátuas é um sinal de que o que está em questão não
é apenas o nosso futuro, mas também o passado como nação,
sociedade e mundo. Nesse sentido, eu pergunto se isso é sinal
de que precisa haver uma ruptura? Você entende que é um
olhar para o passado tudo isso que está acontecendo a partir do
movimento de Black Lives Matter?

Eu digo lá no meu livro Sobre o Autoritarismo (Sobre o Autoritarismo


Brasileiro, Companhia das Letras, 2019) que o nosso presente está cheio
de passado. Ou seja, que nós vivemos entre fantasmas. Disse o poeta
Carlos Drummond de Andrade que toda história é remorso. O que
nós fazemos com isso? Nós silenciamos os nossos fantasmas, não
queremos viver com eles. O que nós estamos vivendo, não só nesse

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momento, também provocado pelo Black Lives Matter, mas não só, é um
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movimento de revisão da história. Isso não quer dizer apagamento da
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história. Isso quer dizer que deveríamos falar de ‘histórias’ no plural. Nós
Anúncio? Por quê?
temos que ter muitas histórias para contar e não uma história para contar.

Então, o que sou totalmente contra é com essa ideia de que vamos apagar
totalmente a história. Ninguém apaga. A história é assim: o historiador
Jacques Le Goff falou, e também o historiador (Achille) Mbembe que
a história é feita a partir das nossas perguntas. Ou seja, por que será que a
história do final do século XIX foi uma história eminentemente política, a
história do começo do Século XX, uma história eminentemente social? A
história que nós vivemos foi uma história muito cultural e por que agora
vamos viver este momento em que a história se detém sobre direitos civis?
Porque essa é uma linguagem que vai nos socializando. Então, um
documento nunca diz nada para um historiador. Um documento só diz a
partir das perguntas que nós fizemos a ele.

Então, um documento nunca diz


nada para um historiador. Um
documento só diz a partir das
perguntas que nós fizemos a ele.

Essas perguntas têm a ver com os tempos que nós presenciamos. Vou dar
um exemplo prático: quando eu escrevi a biografia do Lima Barreto (Lima
Barreto: Triste Visionário, Companhia das Letras, 2017), já existiam
biografias fundamentais sobretudo a do Francisco de Assis Barbosa, que
praticamente recriou o Lima Barreto. Eu considero que o Lima Barreto

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não existiria sem Francisco de Assis Barbosa. O que eu fiz lá? Fazer uma
pergunta nova para o mesmo objeto, ou seja, de que maneira a tensão
racial impacta a biografia de um escritor como Lima Barreto? Até dizer
que Lima Barreto morreu com 41 anos e que no atestado de morte devia
estar escrito assim: morreu de racismo.

Os documentos estão lá, claro, cada um acha novos documentos, mas a


pergunta é que é diferente. Aquilo que nós queremos saber é que é
diferente. Os arquivos da escravidão são violentos, são arquivos
silenciosos e o que está acontecendo agora grandemente no Brasil e em
outros países? Nós voltamos a esses arquivos coloniais e fazemos outras
perguntas a eles e com isso nós achamos outros personagens, outras
realidades. Escravizadas que compravam sua liberdade, e compravam a
dos seus filhos também. Descobrimos tantas insurreições, tantas
rebeliões, tantos atos. Não que eles não estivessem lá, eles estavam lá, mas
nós precisamos fazer outras perguntas para encontrar um projeto de
história que seja mais amplo, mais generoso e mais plural.

Você escreveu com Flávio Gomes na introdução do ‘Dicionário


da Escravidão e Liberdade’ (Companhia das Letras, 2018) que
projetando um futuro moderno, se inventava um passado
distante. Lá atrás, lá distante, tinha ocorrido a escravidão. Eu
queria te perguntar o seguinte: o quanto da Lei Áurea, que
vocês mesmo escrevem, foi breve e sem inclusão social, você
acha que contribui para um racismo estrutural hoje no Brasil?

O Brasil não foi apenas o último país a abolir a escravidão mercantil,


porque eu sei que existem outras formas de escravidão vigentes hoje em
dia, mas foi também aquele que recebeu o maior número de escravizados

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e escravizadas. Dos 12 milhões de africanos e africanas que deixaram


compulsoriamente o continente africano, hoje se diz que 10 milhões
desembarcaram nas Américas e no Caribe. Desses, 4,8 milhões tinham
como destino final o Brasil. Pelos portos do Recife, do Rio de Janeiro,
Salvador, pouco importa aqui. Mas o Brasil recebeu praticamente metade
dos escravizados.

Nós tivemos, diferente de outros países escravocratas, escravidão em todo


o nosso território. Isso fez da escravidão mercantil mais do que uma força
de trabalho, fez da escravidão mercantil uma espécie de linguagem social.
E essa linguagem traz muitas consequências para nós. Eu entendo sua
pergunta, que é excelente, mas eu não acho que a gente tem que dizer que
tudo é culpa da Princesa Isabel. Nós tivemos trabalho escravizado em
todas as partes do Brasil. Nós também não tivemos, como diz uma certa
mitologia, uma escravidão pacífica. Isso seria uma contradição em seus
termos porque o sistema que pressupõe a posse de uma pessoa por outra
pessoa não pode ser pacífico, não é?

Nós tivemos também uma Lei Áurea, a lei de 1888, quando o Brasil
aboliu a escravidão depois dos Estados Unidos, depois de Cuba, depois de
Porto Rico, portanto, estávamos na lanterninha do movimento
abolicionista. E fizemos uma lei muito curta e muito conservadora, uma
lei que tinha uma intenção política de dar à Isabel um terceiro reinado,
que acabou não acontecendo. O plano falhou. Mas o fato é que na época
existiam outros projetos correndo muito mais inclusivos, que previam
ressarcimentos, que previam trabalho, que previam educação, mas a
nossa lei saiu curta, saiu muito breve e saiu muito conservadora. ‘Não
existem mais escravos no Brasil’.

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Quais são os problemas disso? Primeiro, nós divulgamos a ideia de que a


Princesa Isabel nos deu a liberdade. A pergunta é a seguinte: alguém pode
dar a liberdade uma vez que esse é um direito de toda a humanidade?
Ninguém pode lhe dar isso. Esse foi um processo de luta, um processo que
teve muito ativismo negro e a Lei Áurea foi apenas o ponto final. Mas o
que acontece a partir de então? Nós temos um longo período do pós-
abolicionismo que tem data para começar e não tem data para terminar. E
mesmo assim, já nesse momento, você vê várias práticas discriminatórias.
Ao mesmo tempo, você vê o surgimento dos artistas negros, dos jornais
negros, enfim, de personagens negros que se elegem para a política, de
cantores que falam das mazelas, de teatrólogos que denunciam a
escravidão e assim vamos. Então, o que acontece, é que a Lei Áurea tem
um papel nesse nosso racismo estrutural e institucional, este é um legado
pesado que nós temos.

A pergunta e a seguinte: alguém


pode dar a liberdade uma vez que
esse é um direito de toda a
humanidade?

Mas sua questão é muito boa porque não dá para dizer que é tudo culpa
do passado porque, se não, nós fazemos a coisa que nós mais gostamos, ou
seja, nós nos aliviamos da nossa culpa. E não é coisa do passado, ela é
coisa do nosso presente porque no momento em que eu você conversamos
aqui o Brasil pratica um racismo estrutural e institucional. Ele é estrutural
porque ele está na estrutura, na base da nossa sociedade. A escravidão
legou essa linguagem social muito perversa. Então, ela está na base da

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nossa sociedade de que forma? Nos dados sobre emprego, nos dados
sobre subemprego, nos dados da saúde, na atual pandemia nós já temos
dados mostrando que são as populações negras as que estão sendo as mais
afetadas. Nos dados da educação, porque nós sabemos que são as
populações negras que menos conseguem cumprir com o ciclo básico
obrigatório. É estrutural porque nós nos acostumamos a ir nos espaços
sociais e não convivermos com as pessoas negras, nós não temos uma lei
do Apartheid, mas na nossa prática nós vivemos em cidades divididas.
Não só a Lei Áurea, mas o que essa grande mitologia da democracia racial
fez entre nós?

Ela naturalizou o racismo e naturalizou a diferença. O racismo também é


institucional porque nós não vemos pretos e pardos, que segundo
categorias do IBGE correspondem a quase 56% da nossa população,
mesmo assim, quando nós vamos às instituições, a presença de negros e
negras, sobretudo em posições de mando, de direção, ela é absolutamente
desequilibrada em relação a esse porcentual. É institucional porque eu
não vejo negros nas direções das escolas, quase não vemos negros no
ambiente corporativo, quase não vemos negros e negras na indústria da
moda, quase não vemos negros e negras nas nossas esculturas e
monumentos públicos, então, isso é um racismo institucional e essa é a
perversão do racismo institucional, porque ele naturaliza e faz com que as
pessoas enxerguem, mas não possam ver.

Você fala que o racismo é uma questão presente. E a gente teve,


nos Estados Unidos, a partir de um caso, uma ruptura. As
pessoas vão às ruas mesmo em meio a uma pandemia. Essa
ruptura talvez seja o começo de uma mudança. Olhando para o

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Brasil, como você acha que pode se dar essa ruptura? Ela é uma
ruptura traumática, nos sentido de que pode ser violenta, ou é
uma coisa de crescimento da sociedade para olhar e mudar esse
presente?

Essa situação já existe há muito tempo, não é de hoje que a polícia


brasileira é considerada uma das mais violentas do mundo e não é de hoje
que estamos praticando um genocídio da população negra, jovem e que
vive nas nossas periferias. Eu sei que o termo genocídio aplica-se a
situações de guerra, mas os números são tão fortes, eu mostro no Sobre
Autoritarismo que nós temos em guerras civis, como a guerra civil no
Afeganistão e a guerra civil na Síria. Só que mais uma vez nós
enxergamos, mas não vemos.

Há quem pergunte assim: por que será que nos Estados Unidos, que tem
uma população negra que corresponde de 11% a 12%, um evento como
esse do George Floyd em Mineápolis causa muito mais comoção do que
aqui no Brasil a morte de MIguel, a morte de João Pedro? Eu acho que
mais uma vez, a pergunta está errada. Me lembra muito aquela conversa
que Lewis Carroll faz entre Humpty Dumpty e a Alice, quando ela precisa
tomar um líquido para diminuir e entrar no País das Maravilhas. E ela só
tem um rótulo, que está escrito ‘Beba-me’ e ela fala como é que eu vou
saber qual é o certo se o rótulo diz a mesma coisa. E o Humpty Dumpty
responde: um, aquele que acredita em rótulos, em geral, se engana. Dois,
aquele que faz perguntas erradas, recebe respostas erradas. Eu acho que a
questão é outra. A questão é que não é que a população negra no Brasil
não se manifesta se a gente pensar que a primeira revolução republicana,
que foi a Revolta da Vacina de 1904, já era uma revolta negra contra as
medidas autoritárias da república.

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A pergunta certa seria: por que será que a sociedade brasileira, e a mídia
brasileira, de uma forma geral, não cobrem esses eventos com a devida
responsabilidade que deveriam ter. De novo é uma questão de cegueira
cultural. Porque nos Estados Unidos, o que acontece, essa linguagem dos
direitos civis, a linguagem do direito, a diferença na universalidade é um
ganho do Século XX. Democracia sim, é projeto inconcluso. Mas é certo
que nós só chegamos nessa linguagem dos direitos civis como nação no
final da década de 1970. Então, eu acho que o que está acontecendo aqui
no Brasil, no mundo também, é essa ideia de prestar atenção às nossas
invisibilidades, prestar atenção para os nossos tantos silêncios. E os
silêncios em relação às questões raciais são silêncios muito profundos.

Outro dia uma amiga minha negra estava me falando sobre as colunas
sociais, e é verdade. As colunas sociais até pouquíssimo tempo e ainda
continuam a ser esse espaço da branquitude. O que é a branquitude, e eu
falo como branca, é o privilégio de poder estar em qualquer lugar, é o
privilégio de não ser parado pela polícia, é o privilégio de não ter de entrar
pelo elevador de serviço, é o privilégio de frequentar o restaurante que
quiser sem que as pessoas fiquem olhando, é uma política de privilégios e
essa política de privilégios será mantida se as elites não quiserem ter
atitudes antiracistas.

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As colunas sociais até pouquíssimo


tempo e ainda continuam a ser esse
espaço da branquitude. O que é a
branquitude, e eu falo como branca,
é o privilégio de poder estar em
qualquer lugar, é o privilégio de não
ser parado pela polícia

Não é possível prever se teremos uma convulsão social, se teremos um


aprimoramento da nossa cidadania, mas com os ativismos negros que eu
convivo não me parece que a posição é bélica, a posição é de construir
aliados. Na minha opinião o que a sociedade branca pode fazer: um, mais
do que dizer ‘eu não sou racista’, prestar atenção e dizer eu quero ser
antiracista. A questão não é moral. A questão não é culpa. Culpa não leva
longe. A questão, na minha opinião, é de responsabilidade. Ou seja, ser
antiracista é adotar atos e fazer ações antiracistas. Abrir espaço nas
redações de jornais para mais editores negros e prepará-los, abrir espaço
nas universidades para mais negros não só na graduação, mas na pós-
graduação, abrir espaço nas empresas, nos nossos consultórios, tomar
atitudes antiracismo.

Se a sociedade brasileira se mobilizar, nesse sentido, quem sabe nós


teremos um aprimoramento da nossa sociabilidade não exatamente uma
guerra, mas muitas vezes é preciso enfrentar, tomar atos para que as
pessoas saiam da sua posição de passividade. E reflitam. Cidadania é
assim, é de cada um. Não vale dizer você tem que fazer. Cidadania é feito

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de grandes atos e de pequenos atos, é feito do nosso cotidiano. E é preciso


que a sociedade brasileira entenda, essa sociedade que está vivendo uma
crise que é social, que é política, que é econômica e que é moral, na minha
opinião, como historiadora nunca vista antes, mas é preciso que a
sociedade entenda também - se pudesse eu grifafa o também - que nós
não teremos uma democracia enquanto continuarmos tão racistas. Ou
seja, racismo não funciona com democracia e é essa luta por direitos que
nós vamos ter que encampar.

Eu vou citar uma frase do Lima Barreto, que eu pesquei do seu


livro, e gostaria que você fizesse uma reflexão do momento a
partir dela. A frase é a seguinte: ‘Nós, os brasileiros, somos
como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos
venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou’.

LIma Barreto era uma pessoa muito contrária aos estrangeirismos da


sociedade brasileira, acreditava que os brasileiros tinham mania de
Madame Bovary, ele usava uma teoria do (filósofo Jules de) Gaultier
chamada Bovarismo que ele dizia que nós brasileiros sempre queremos
estar no lugar a que não pertencemos e sempre queremos nos imaginar
em outro lugar, então, Lima Barreto estava coberto de verdade. Ele
brincava que a nossa imaginação era grega, vamos espalhar colunas
dóricas e jônicas pelo Rio de Janeiro. Mas do que ele reclamava nessa
circunstância?

Dessa ideia de que os brasileiros não conseguem se apalpar, não


conseguem ver o que eles são de fato. Era isso que ele criticava, que as
lojas têm mania de Paris, que as ruas têm mania de Roma, de alguma

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forma dizendo como nós temos dificuldade de nos apalpar, de nos


escutarmos e, sobretudo, de nos acolhermos nas nossas sublimes
diferenças e nas nossas sublimes similitudes. Nesse momento que nós
estamos vivendo uma pandemia, que pegou o Brasil de jeito, ou seja, um
governo muito autoritário, um governo que sonega informações, o que é
péssimo para nós planejarmos e projetarmos nosso futuro, mas essa
questão do racismo, de tantos ‘João Pedros’, de tantas ‘Ághatas’, de
tantos meninos Miguel, de tantas Marielles, precisa entrar na nossa
agenda urgente. Quando Marielle morreu, eu penso que um sonho de
Brasil, um sonho de Brasil mais cidadão, mais generoso, morreu com ela.

Quando Marielle morreu, eu penso


que um sonho de Brasil, um sonho
de Brasil mais cidadão, mais
generoso, morreu com ela.

Por que que eu digo isso, porque Marielle simbolizava um Brasil que
conseguia incluir. Um Brasil difícil. Marielle usou de todas as franjas do
sistema para fazer uma escola, entrar na universidade, fazer um mestrado,
ser eleita como uma das vereadoras mais populares do Rio de Janeiro ela
sendo favelada, negra, gay, enfim, isso mostrava um outro Brasil,
sinalizava uma outra possibilidade de Brasil.

Quando Marielle morre e nós ficamos tanto tempo sem saber,


continuamos, sem saber quem mandou matar Marielle isso fala da nossa
amnésia coletiva. Isso fala muito da nossa forma de lidar com o racismo
tentando escondê-lo, isso fala muito de uma perspectiva brasileira, de que

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todos os brasileiros dizem que são contra o racismo, mas ninguém se diz
racista. Então, enquanto nós não assumirmos esse lugar antiracista essa
agenda vai continuar urgente e ela não pode mais ser postergada para um
futuro indeterminado.

Então, enquanto nós não


assumirmos esse lugar antiracista
essa agenda vai continuar urgente e
ela não pode mais ser postergada
para um futuro indeterminado.

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