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Ficha Catalográfica

Al nonno Giuseppe, il mio esempio di brava persona


A nonna Sinaida che mi ha insegnato le prime parole in italiano e mi cucinava la pasta
À vó Bel, que sempre fazia rindo o que eu pedia a ela chorando
In memoriam
Agradecimentos
É findando um recorte de tempo burocrático que envolveu o
desenvolvimento desse trabalho. Um período que formalmente começou em março de
2012, com a matrícula no curso 74 – Doutorado em Filosofia na Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP), mas que teve início real em 2007, com minha primeira
conversa sobre a possibilidade de pesquisar a filosofia schopenhaueriana com meu
orientador, o Professor Oswaldo Giacoia Junior, e início afetivo em 2003 quando decidi
que iria cursar filosofia, embora tenha ingressado no curso apenas em 2005. Desde
então, foram duas bolsas de iniciação científica (PIBIC/CNPq), uma bolsa de mestrado
(FAPESP), uma bolsa de doutorado (FAPESP), duas bolsas de pesquisa no exterior
(BEPE/FAPESP), 57 apresentações em eventos, 5 eventos organizados, 4 capítulos de
livros, 11 artigos publicados (contando publicações em anais de eventos), o estudo de
várias línguas, 3 países, 4 Estados, 5 cidades, 9 mudanças de casa, e muitas pessoas
fantásticas que participaram disso tudo ou de parte disso tudo. Algumas delas,
infelizmente, não poderão partilhar esse momento comigo.
Mais do que agradecer, devo tudo o que sou e que conquistei aos meus pais,
José Francisco e Sandra Esmeralda – dos quais, segundo Schopenhauer, herdei o caráter
e a inteligência. Ao meu irmão, Marcelo, pelas brigas e pela amizade. Ao Faísca,
companheiro canino de longa data, que infelizmente nos deixou durante o período da
tese. Espero poder retribuir de forma responsável à sociedade o privilégio que vocês me
possibilitaram usufruir.
Ao professor e amigo Oswaldo Giacoia Junior, pela orientação precisa, pela
atenção, e por caminhar junto comigo desde meus primeiros passos na graduação,
sempre com palavras de incentivo e com muita paciência (a palavra certa é realmente
paciência). Eu não sei como agradecer pela ajuda e pelo privilégio de tê-lo como amigo
e interlocutor. Aos amigos do CriM (Grupo Critica e Modernidade); à professora
Regina Célia Silva, que ao me ensinar a língua italiana ajudou-me a conhecer mais de
mim mesmo; ao Erik Petschelies, que, além da amizade, ao me ensinar a língua alemã,
ajudou-me no contato com os textos originais de Schopenhauer e a encarar o desafio de
morar naquele país; ao professor Flamarion Caldeira Ramos, pelas discussões, textos
cedidos, e por participar das minhas bancas de qualificação e defesa do mestrado e por
ter aceitado compor à banca de defesa do doutorado; à professora Yara Frateschi, pelas
indicações no exame de qualificação do mestrado, que me foram úteis durante todo o
doutoramento – e ela provavelmente não sabe, mas não desisti do curso durante a
graduação por uma conversa que tivemos na monitoria da disciplina de redação
filosófica; ao professor e amigo Angelo Marinucci pela amizade, pelas discussões,
debates, bandejões e pelos apontamentos feitos por ocasião do exame de qualificação.
Ao amigo e professor Wander de Paula pela leitura e sugestões no exame de
qualificação.
Aos membros de minha banca de doutoramento, que me acompanharam ao
longo de minha trajetória e puderam observar e participar do desenvolvimento desse
trabalho, com críticas e sugestões, ao longo de vários anos. É uma honra que esse ciclo
de trabalho possa ser encerrado com a presença de vocês: professora Maria Lucia
Cacciola, Flamarion (mais uma vez), Leandro Chevitarese, Vilmar Debona, Kleverton
Bacellar.
Aos amigos que fiz nos eventos sobre Schopenhauer: conversar e debater
com vocês influenciou decisivamente os rumos dessa pesquisa. A nossa caminhada lado
a lado na pesquisa Schopenhauer tem quase dez anos, e muitos desses laços
transpuseram a vida acadêmica. Agradeço, em especial, Eduardo R. Fonseca, Felipe
Cardoso, Flora Bezerra, Gleisy Picoli, Guilherme Germer, Iasmin Martins, Jair Barboza,
Jarlee Salviano, Jorge Prado, Leo Staudt, Luan Corrêa, Lucas Lazarini, Márcio
Benchimol, Maria Lucia Cacciola, Roberto Barros, Selma Bassoli, Sidnei de Oliveira,
Vinícius de Castro Soares.
Aos amigos que cresceram comigo, que me apoiaram na época em que
prestei vestibular, durante a graduação, que me deram apoio durante o mestrado, e que
me dão apoio até hoje. São muitos, mas eles sabem exatamente da importância que
possuem em minha vida. Alguns eu não posso me furtar de mencionar: amigos do bairro
onde cresci, Pirituba, do Portal dos Bandeirantes, do Abravanel, Brunö Zanardo, Diego
Bertola, Fábio Hosoi PX, Fernanda Bastos, Isabelle Oliveira, Rafael Bertola.
Aos amigos que fiz por conta da UNICAMP, das repúblicas em que morei,
do curso de filosofia, das conversas, dos cafés, das inquietações, do bandejão nosso de
cada dia: Adriane Bagdonas, Adriano Godoy, Adriano Januário, Amanda Inocêncio,
Amanda Monteiro, Ana Carolina Verdicchio, Bárbara Luísa Pola, Bia Davanço, Brunela
Succi, Caio Pedrosa, Carlos Aloísio Garcia Netto, Carlos Guilherme, Chiara Cuatto,
Cláudio Marcelo, Denise Monzani, Eugênio Gonçalves, Fabrício Cavalcante, Felipe
Ferrari, Fernando Bee, Flávia Ginzel, Fredy Frigieri, Guilherme Andriguetti, Guilherme
Christol, João Batista Bittencourt, Luiz Gustavo ‘Kconde’, Marcela Moretto, Maria
Érbia, Mariana Pacheco Galgaro, Mariana Teixeira, Mariana ‘Nariz’, Nathália de Ávila,
Otavio Carneiro, Paulo Eduardo Bodziak, Paulo Yama, Rafael Café, Rafaela Jorge,
Raphael Concli, Raul Mariano Cardoso, Rodrigo Rabelo, Rubens Pássaro, Vinícius
Andrade, Wagner Richter, Willian Pereira.
Aos funcionários da universidade, em especial os que fazem o nosso IFCH
funcionar: Bene, Daniela, Devison, Fábio, Maria Cida, Maria Rita, Regina, Sônia, Su,
Terezinha e ao grande Benetti.
Agradeço aos amigos e amigas da Itália, que me acolheram de forma tão
calorosa e radical no ano de 2014. Leandro Sardeiro, Julia Sampaio, Alexandre “Titio”:
obrigado por me receberem, ajudarem, e também por cuidarem de mim. A maioria deles
entende e fala bem a língua portuguesa, mas eu gostaria que todos pudessem entender a
pequena mensagem de gratidão: ringrazio il Professore Domenico Fazio, che mi ha fatto
l’onore di considerarmi un suo allievo e mi ha accolto a Lecce come se fossi un figlio.
Un pensiero di gratitudine va anche a Fabio Ciracì, Irene Gianni, la madre de Irene, la
suocera di Fabio, la fantastica signora Rita e a Alessandra Tinelli. Un ringraziamento va
anche a Maria Eugênia Verdaguer, Francesco Morleo e a Germana Rodrigues. Non
posso mancare di ringraziare i ricercatori, gli studenti e gli amici del Centro
interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del
Salento: Alessandro Novembre, Francesco Giordano, Maria Vitale, Marilena Passabì,
Mario Carparelli, Simona Apollonio. Voglio ricordare anche i miei baristi preferiti
Vitantonio e Linda. Un sentito ringraziamento, infine, alla mia famiglia che ho potuto
conoscere e ritrovare: Monia Negusini, zia Rosa, zio Alfredo, zia Dina, Rinuccia, Pippo,
Donatello, Sabrina, Francesco, Rachele, Gaetano, Ivan, David, zia Lina, Francesco,
Gianpiero, zio Giovannino, zia Nina, Mariel, Basilio e tutti i Durante e parenti che mi
hanno aiutato in questo periodo in Italia!
Às amigas e aos amigos do período de pesquisa em Mainz, meu muito
obrigado. Ao professor Matthias Koßler que me recebeu e me ajudou durante esse
período, meu sentimento mais sincero de agradecimento. Angie Athan, Greta Fertillo,
Roberta Santucci, Aina Flam Colovila, Alessandro Fascioli, Francesco Pugliaro, Giulio
Costantini, Antonio Campo, Marta Fiori, Erika Norcini, Carl Hauck, Diego Trevisan,
Jakub Sypianski. Aos amigos do curso de alemão: Rodrigo Pereira, Pedro Emmel, Jorge
Ivan, Elise Marie, Mariana Reys, Omar Eizalden, Daniel Muñoz, Jay Fischer. E
obrigado, Kisselberg!
Na última etapa dessa caminhada, no final da redação do texto, cheguei em
Vitória para minha primeira experiência como professor universitário na Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES). Cheguei sozinho, mas logo encontrei amigas e
amigos que tornaram o processo de mudança mais ameno: Jorge Luiz Viesenteiner,
Isabel Soares Viesenteiner, Michela Bordignon, José Renato Salatiel, Francineide
Martins Ferreira, Wander de Paula, e as também recém-chegadas ao departamento
Luiza Hilgert e Rizzia Rocha. Às minhas alunas e alunos, que me fizeram melhorar.
Os últimos anos desse processo todo não seriam possíveis sem a ajuda, a
paciência e o companheirismo da Thais Machado Dias, um exemplo de pessoa que tive
a sorte de ter como confidente, amiga e companheira. Por causa dela eu conheci a Pagu,
uma simpática rottweiler que me levava para passear quando eu estava sem condições
de continuar o trabalho. Obrigado a vocês duas por todo afeto e carinho.
Aos que por ventura omiti, peço desculpas. Mas, sem cada um de vocês
todas essas páginas teriam sido impossíveis de serem escritas. Foi com vocês que dividi
minhas dificuldades, frustrações, ansiedades e angústias (e haja frustração, ansiedade e
angústia!), e com vocês que eu comemorei cada um dos meus passos durante esses
longos anos de formação. Vocês me ajudaram a buscar paixão para conceber novas
ideias, a entender que o pior sempre seria menos que o insuportável, e a ser mais. A
cada café, a cada conversa, a cada risada ou desespero compartilhado, e a cada
ansiedade discutida. Agradeço a todos vocês que me ajudaram a manter o foco durante
esse tempo difícil, porém enriquecedor e de superação que foi o doutorado.
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP) pelo financiamento que tornou possível a realização desse projeto (Processo
Fapesp: 2011/23291-5), as viagens para dois centros de excelência no exterior para que
eu pudesse debater e aprender com os grandes nomes da pesquisa Schopenhauer
mundial, através das Bolsas de Estágio e Pesquisa no Exterior (BEPE - Processo
Fapesp: 2013/20268-8 Itália; Processo Fapesp: 2016/00223-8 Alemanha), a aquisição de
livros clássicos e dos últimos lançamentos para a biblioteca de nossa Universidade –
fatores decisivos para qualidade da minha pesquisa e que, no caso dos livros, certamente
serão muito úteis para as futuras pesquisas sobre Schopenhauer na UNICAMP –, e a
minha dedicação integral à pesquisa.
A todos que me potencializaram com seus afetos positivos, o meu muito
obrigado.
Das Herz bleibt ungebessert, aber der Kopf wird noch aufgehellt
[O coração permanece incorrigível, mas a cabeça ainda pode ser esclarecida]
(Paródia de frase de Arthur Schopenhauer)
Resumo
O objetivo geral desta pesquisa é formular a questão da possível atualidade
do autor de O Mundo como Vontade e Representação, Arthur Schopenhauer (1788-
1860), no campo da moral, da ética, da política e do direito, sobretudo no que se refere a
uma questão específica que parece constituir a imbricação desses quatro campos, a
saber, a questão dos direitos humanos, verificando a extensão e o impacto dessa
atualidade.
Este esforço compreende quatro etapas: (i) exegese dos textos
schopenhauerianos, sobretudo daqueles que tratam de sua filosofia prática; (ii) procurar
nos manuscritos póstumos de Schopenhauer anotações que serviram como base para
formulação de sua ética, e, assim, buscar a superação de possíveis lacunas expositivas
do filósofo; (iii) exposição de possibilidades hermenêuticas atuais, as quais
possibilitariam o processo de atualização da filosofia schopenhaueriana; (iv)
contextualização de questões referentes aos direitos humanos que se relacionam com os
objetivos de nossa tese; e (v) avaliar a inserção, a extensão e o impacto de
Schopenhauer nessas disputas.
Espera-se, ao desenvolver as etapas supracitadas, explicitar a relação entre
moral, ética, direito e política na filosofia schopenhaueriana, expor a atualidade do
filósofo da Vontade no debate contemporâneo acerca dos direitos humanos,
evidenciando as questões relevantes que ele traz para a discussão, bem como as razões
pelas quais outras questões, nele presentes, não demonstram relevância pronunciada.
Tal percurso permitirá o melhor entendimento e exposição da importância de
Schopenhauer nos debates contemporâneos de filosofia política e de filosofia do direito.

Palavras-chave: Schopenhauer, Arthur; Moral; Ética; Direito; Direito Natural; Estado;


Política; Direitos Humanos;
Abstract
The general objective of this research is to formulate the question of the
possible current relevance of The World as Will and Representation’s author, Arthur
Schopenhauer (1788-1860), in morals, ethics, politics and law, especially in regard to a
particular issue that seems to be the imbrication of these four subjects, namely the issue
of human rights, verifying the extension and impacts of this author’s contemporary
relevance for this theme.
This effort comprises four stages: (i) exegesis of Schopenhauer's texts,
especially those about his practical philosophy, (ii) investigating through
Schopenhauer's manuscripts in order to find remains of his notes that were the basis for
his ethics formulation, and therefore enabling explanations for possible gaps in
Schopenhauer’s argument (iii) to expose the current hermeneutical possibilities which
would make possible the update process of Schopenhauer’s philosophy; (iv) to
contextualize some human rights issues related to the aims of our thesis; and (v)
evaluating the extent and impact of Schopenhauer in these disputes.
When developing the foregoing stages, it is expected to explain the
relationship between morality, ethics, rights and politics in Schopenhauer’s philosophy,
and to introduce his current thought to the contemporary debate on human rights. We
aim to highlight all of the relevant issues that he brings to the discussion as well as the
reasons why other issues there present do not show pronounced relevance. Such journey
will allow a better understanding and exposition of the importance of Schopenhauer in
contemporary debates on political philosophy and philosophy of law.

Keywords: Schopenhauer, Arthur; Moral; Ethics; Right; Natural Rights; State; Politics;
Human Rights;
Zusammenfassung
Das Hauptziel dieser Forschung ist die Fragestellung über die mögliche
Aktualität des Autors des Werkes Die Welt als Wille und Vorstellung, Arthur
Schopenhauer (1788-1860), in den Bereichen der Moral, Ethik, Politik und Rechtes zu
konzipieren, hauptsächlich in Bezug zu einer bestimmten Angelegenheit, in der diese
vier Bereiche scheinbar verflechtet sind, nämlich die Menschenrechte.
Dieser Einsatz umfasst vier Etappen: (i) Die Exegese der
Schopenhauer'schen Schriften, insbesondere derjenigen, die von seiner praktischen
Philosophie handeln. (ii) Die Suche nach Anmerkungen in Schopenhauers
handschriftlichem Nachlass, die als Ausgangspunkt für die Formulierung seiner Ethik
gedient haben können, und dadurch die Überwindung von möglichen Erklärungslücken
in dessen Philosophie. (iii) Die Darstellung von aktuellen hermeneutischen
Möglichkeiten, die den Aktualisierungsprozess der Schopenhauer'schen Philosophie
ermöglichen würden. (iv) Die Kontextualisierung der Fragestellungen, die sich auf die
Menschenrechte beziehen und somit auf die Ziele dieser Dissertation. (v) Die
Überprüfung der Einsetzung, Ausbreitung und Auswirkung Schopenhauers in diesen
Debatten.
Es wird gehofft, indem die oben beschriebenen Etappen ausgebaut werden,
die Beziehung zwischen Moral, Ethik, Recht und Politik in der Schopenhauer'schen
Philosophie aufzuklären, die Aktualität des Philosophen der Wille in der Debatte um
Menschenrechte darzustellen, während bedeutsame Fragestellungen zur Diskussion
aufgezeigt werden sollen, sowie die Gründe, warum andere Fragestellungen nicht
dieselbe Relevanz erreichten. Dieser Weg soll zu einem besseren Verständnis und zur
Darstellung der Wichtigkeit Schopenhauers in den gegenwärtigen Debatten der
politischen Philosophie und der Rechtsphilosophie führen.

Stichwörter: Schopenhauer, Arthur; Moral; Ethik; Recht; Naturrecht; Staat; Politik;


Menschenrechte;
Lista de Abreviaturas e Siglas
Obras de Schopenhauer

ASV: Aphorismen zur Lebensweisheit. (Aforismos para Sabedoria de Vida)1


Briefwechsel: Correspondência de Arthur Schopenhauer
E: Die beiden Grundprobleme der Ethik (Os dois Problemas Fundamentais da Ética).
HN I: Der handschriftliche Nachlass 1804-1818 (Manuscritos de Juventude 1804-
1818).
HN III: Berliner Manuskripte 1818-1830 (Manuscritos de Berlim 1818-1830)
HN IV-I: Die Manuskriptbücher der Jahre 1830-1852 (Manuscritos dos anos 1830-
1852, tomo I).
HN, Metafísica dos Costumes: Metaphysik der Sitten (Preleções de Berlim sobre a
Ética).
MVR: Die Welt als Wille und Vorstellung – Erster Band (O Mundo como Vontade e
Representação).
MVR II: Die Welt als Wille und Vorstellung – Zweiter Band (O Mundo como Vontade
e Representação – Segundo Tomo [Complementos]).
PP: Parerga und Paralipomena (Parerga e Paralipomena).
QR: Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde (Sobre a
Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente).
SFM: Preisschrift über die Grundlage der Moral (Sobre o Fundamento da Moral).
SLV: Preisschrift über die Freiheit des Willens (Sobre a Liberdade da vontade).
SVN: Über den Willen in der Natur. (Sobre a Vontade na Natureza).

Obras de Outros Autores


Hugo Grotius:
DPG: De iure belli ac pacis (Direito da Guerra e da Paz).
Thomas Hobbes:
De Cive: De Cive (Do Cidadão).
Leviatã: Leviathan, or the Matter, Forme, and Power of a Commonwealth,
Ecclesiastical and Civil (Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e
civil).

1
Apesar de ser um capítulo do primeiro tomo dos PP, recebe uma abreviação própria.
Rousseau:
Segundo Discurso: Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les
hommes (Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os
Homens).
Do Contrato Social: Du Contrat Social (Do Contrato Social).
Immanuel Kant:
KrV: Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura).
KpV: Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da Razão Prática).
MdS: Die Metaphysik der Sitten (Metafísica dos Costumes).
GMS: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da Metafísica dos
Costumes).

As referências bibliográficas completas encontram-se ao final do texto.


Sumário
1 Introdução ............................................................................................................. 18
2 A Reconstrução das Doutrinas do Direito e do Estado ..................................... 28
2.1. A Dimensão Ética do Sistema: Metafísica dos Costumes e Ética ....................28
2.1.1. Significado Ético do Sistema Filosófico Schopenhaueriano..................... 28
2.1.2. A Teoria da Ação ou Sobre a Liberdade da Vontade ................................ 34
2.2. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) de Arthur Schopenhauer ........................46
2.2.1. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) ou Justiça Temporal (zeitliche Gerechtigkeit)... 46
2.2.2. Egoísmo (Egoismus) como Origem da Guerra de Todos Contra Todos ... 47
2.2.3. A Relação do Egoísmo com a Injustiça e o Injusto ................................... 51
2.2.4. A Prática da Injustiça ................................................................................ 61
2.2.5. O Subjugar a Vontade de Outro Indivíduo: Pobreza, Proletariado,
Escravidão e Servidão ............................................................................................ 64
2.2.6. Dedução e Explanação da Justiça e do Justo............................................. 70
2.2.7. A Consciência Moral (Gewissen) .............................................................. 72
2.2.8. Direito Natural é um Direito Moral........................................................... 74
2.2.9. Direito Moral à Mentira ............................................................................ 78
2.2.10. Direito Moral à Propriedade ...................................................................... 79
2.2.11. A Origem e Finalidade do Estado (Staat): O Papel da Recta Ratio (Reta Razão). 83
2.2.12. Contrato Social como forma de Legitimação do Estado ........................... 91
2.2.13. Os limites e a Extensão da Moralidade no que Concerne à Fundação do
Estado e às suas Funções. ....................................................................................... 94
2.2.14. Direito Internacional, Estado de Direito, e Direito de Resistência ........... 96
2.2.15. As Formas de Governo e a Arte de Governar ........................................... 99
2.2.16. A Transferência da Doutrina Moral do Direito, por Inversão, para a Legislação 107
2.2.17. Direito Penal (Strafrecht) ........................................................................ 111
2.2.18. Um Aparente Paradoxo: A Questão da Imputabilidade .......................... 115
2.2.19. Considerações Sobre a Justiça Temporal (zeitliche Gerechtigkeit) e seus Limites..... 116
2.2.20. Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça Eterna (ewige Gerechtigkeit) ..... 119
2.3. Situando as Doutrinas do Direito e do Estado: o Utilitarismo, Kant e o Jovem Schopenhauer124
2.3.1. Seria Moral o Fundamento das Doutrinas Schopenhauerianas do Direito e
do Estado?............................................................................................................. 124
2.3.2. As Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina Kantiana do Direito... 128
2.3.3. As formulações das doutrinas do Estado e do Direito elaboradas pelo jovem
Schopenhauer: extensão, limites e mudanças em relação à publicação de sua obra principal.. 139
2.4. Compaixão: Da Justiça Voluntária ao Rompimento com a Ética ...................147
2.4.1. A Compaixão (Mitleid) como Origem das Virtudes Cardeais ................ 147
2.4.2. As Virtudes Cardeais: A Justiça Voluntária (freiwillige Gerechtigkeit) e a
Caridade (Menschenliebe) .................................................................................... 151
2.4.3. Ascese (Askesis): A Negação da Vontade para Vida .............................. 154
3 Schopenhauer: Leitores e Leituras ................................................................... 157
3.1. A Escola de Schopenhauer – A contribuição dos Estudos Italianos .................158
3.2. Rudolf Malter e o pessimismo crítico schopenhaueriano ...............................167
3.3. Ludger Lütkehaus: Esquerda e Direita na Interpretação da Filosofia Schopenhaueriana..172
3.4. Schopenhauer no Brasil: a esquerda schopenhaueriana ganha força ..............179
3.5. Permitir-nos-emos ser heréticos em nossa interpretação ................................188
3.6. O Engano de Ernst Tugendhat ........................................................................190
4 Direitos Humanos: entre o Problema de sua Fundamentação e sua Efetividade ..... 198
4.1. O Direito Natural ou Jusnaturalismo ..............................................................199
4.2. O Problema da Fundamentação dos Direitos Naturais ...................................204
4.3. As Cartas de Direitos como Reverberação das Teorias Jusnaturalistas: a
Passagem do Plano Teórico para o Plano Prático......................................................211
4.3.1. A Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689 ..................... 213
4.3.2. As Cartas de Direitos Estadunidenses ..................................................... 214
4.3.3. As Cartas de Direito Resultantes do Processo Revolucionário Francês . 218
4.4. As Principais Mudanças Político-Sociais Engendradas pelos Movimentos
Revolucionários estadunidense e francês ..................................................................228
4.5. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948................................234
4.6. Os Direitos Humanos e suas Gerações ...........................................................243
5 Considerações Finais: Atualidades de Schopenhauer ..................................... 249
5.1. Direitos Humanos de primeira geração...........................................................251
5.2. Direitos Humanos de segunda geração ...........................................................253
5.3. Direitos Humanos de terceira geração ............................................................255
5.4. A Pedagogia do Egoísmo como Caminho para Redução de Danos: a
Possibilidade do ‘Menos Pior dos Mundos Possíveis’ ..............................................261
6 Referências Bibliográficas ................................................................................. 263
18

1 Introdução

A questão do que é o justo e o injusto, tal como os fundamentos do direito –


e até mesmo o que é o direito – são indagações que permeiam toda a história da
filosofia. Questões correlatas, igualmente filosóficas e espinhosas, surgem quando
inicia-se a refletir sobre essa temática: “qual a origem da sociabilidade entre os seres
humanos?”, “qual a origem dos direitos?”, “qual a finalidade do direito?”, “que deveria
ser o direito?”, “qual a diferença entre o direito e a moral?”, “por que a lei obriga?”,
“qual o fundamento do direito de propriedade?”, “qual o fundamento do direito de
punir?”, “qual a origem do Estado?”, “qual a função do Estado?”, “qual a melhor forma
de organização do Estado?”, “em que se funda o direito positivo?”, “sob quais
condições é legítima uma autoridade jurídica e política?”, e “é legítimo que os homens
vivam em relações jurídicas e políticas, i.e., sob regras coercitivas?”.
Muitos filósofos se empenharam em responder a tais indagações; mas qual
seria a resposta de um filósofo que constrói suas doutrinas do direito e do Estado
inseridas em uma ética descritiva, e que defende a primazia da vontade sobre a razão?
Esses dois fatores já seriam suficientemente idiossincráticos para tornar o estudo da
doutrina do direito de Arthur Schopenhauer (1788-1860) pertinente. 1 Contudo, deve-se

1
Adotou-se a edição das obras completas em alemão organizadas por Paul Deussen: SCHOPENHAUER,
A. Arthur Schopenhauers sämtliche Werke. Hrsg. von Paul Deussen. Munique: R. Piper, 1911-1942.
A tradução adotada de Die Welt als Wille und Vorstellung para uma leitura cotejada com a obra em
idioma alemão foi feita por Jair Lopes Barboza: O mundo como vontade e como representação, 1º
Tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. Doravante abreviado como MVR, seguido da indicação de
parágrafo e página, e do tomo e da paginação em referência à edição alemã.
Doravante, faz-se referência ao segundo tomo d’O Mundo como Vontade e Representação por MVR II,
seguida da indicação de capítulo e de página na edição alemã. Quando necessidade de citação de MVR II,
a tradução para o português será de minha autoria, a partir do idioma alemão, salvo indicação contrária.
Para a obra Über die Grundlage der Moral adotou-se a tradução brasileira Sobre o fundamento da
moral. Tradução de Maria Lucia Mello Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Doravante
abreviado por SFM, seguido de capítulo, de página e do tomo e da paginação em referência à edição
alemã.
Para leitura da obra Parerga und Paralipomena adotou-se as traduções brasileiras do professor Flamarion
Caldeira Ramos: Sobre a filosofia e seu método. São Paulo: Hedra, 2010 (capítulos I-VII) e Sobre a
ética. São Paulo: Hedra, 2012 (capítulos VIII-XV). Doravante abreviada por PP, seguido de parágrafo,
página, e do tomo e da paginação em referência à edição alemã.
Para a leitura cotejada da tese de doutoramento de Schopenhauer, Ueber die vierfache Wurzel der Satzes
vom zureichenden Grunde, foi utilizada a tradução espanhola De la cuádruple raíz del principio de
razón suficiente. Tradução de Leopoldo-Eulogio Palacios. Madrid: Gredos, 1981. (Biblioteca Hispánica
de Filosofía – Clásicos de La Filosofía 1). Doravante abreviada por QR, seguida de parágrafo, página, e
do tomo e da paginação em referência à edição alemã.
19

ressaltar que o pensador em questão é considerado por grande parte da tradição de


comentadores como um autor pessimista. Considerado desse modo, nossa esfera de
questões a respeito das doutrinas do direito e do Estado de Schopenhauer se expande,
encampando outros questionamentos relevantes: como são construídas uma doutrina do
direito e uma doutrina política em um sistema filosófico que afirma ser este o pior dos
mundos possíveis, um sistema que afirma que este mundo é o que ele não deveria ser?
Como é possível pensar a imputabilidade e a responsabilidade, conceitos fundamentais
do direito e que pressupõem o livre-arbítrio, i.e., a liberdade de poder escolher, em um
autor considerado determinista? Como essa doutrina se relaciona com o restante de seu
sistema filosófico e com a tradição? Quais os principais conceitos constituintes de sua
teoria da justiça? Em suma, a quais artifícios teóricos o filósofo da vontade precisa
recorrer para que seja possível formular e constituir suas doutrinas do direito e do
Estado?
Para tanto, será necessário explicitar os postulados éticos do sistema
schopenhaueriano, trazendo à luz sua metafísica dos costumes, para, então, analisar os
princípios jurídicos derivados de seu sistema filosófico e, assim, delinear o papel da
reflexão política na obra do filósofo da vontade, i.e., entender os problemas da esfera
política, a proposição de meios que possibilitem a resolução deles, e apresentar o lugar
sistemático de tal reflexão no sistema filosófico do autor.
Será enfrentada a difícil tarefa de buscar em toda a obra de Schopenhauer os
capítulos e excertos que versam sobre a sua doutrina do direito, para que a exposição

Para leitura dos Manuscritos Póstumos utilizamos a edição clássica SCHOPENHAUER, A. Der
handschriftliche Nachlaß in fünf Bänden. Vollständige Ausgabe in sechs Teilbänden. Herausgegeben
von Arthur Hübscher. Band 1: Frühe Manuskripte (1804 - 1818). - Band 2: Kritische
Auseinandersetzungen (1809 - 1818). - Band 3: Berliner Manuskripte (1818 - 1830). - Band 4, I: Die
Manuskriptbücher der Jahre 1830 - 1852. - Band 4, II: Letzte Manuskripte. Gracians Handorakel. - Band
5: Randschriften zu Büchern. - 5 Bände in 6 Bänden (vollständig). (= dtv klassik). München, Deutscher
Taschenbuch Verlag, 1985. Doravante abreviado como HN, seguido de indicação de Tomo,
fragmento/capítulo e página. Quando necessidade de citação dos HN, a tradução para o português será de
minha autoria, a partir do idioma alemão, salvo indicação contrária.
Para a leitura cotejada das notas de aula de 1820 (Vorlesungen) sobre a ética (Arthur Schopenhauers
handschriftlicher Nachlaß. Philosophische Vorlesungen – Metaphysik der Sitten. In: SCHOPENHAUER,
A. Arthur Schopenhauers sämtliche Werke. Hrsg. von Paul Deussen. Munique: R. Piper, 1911-1942.
v.X, p.367-584), adotou-se a tradução espanhola feita por Roberto Rodríguez Aramayo: Metafísica de las
Costumbres. Introdução, tradução e notas de Roberto Rodríguez Aramayo. Madri: Editorial Trotta SA,
2001. (Coleção Clássicos de la Cultura). Doravante abreviado como HN, Metafísica dos Costumes,
seguido de indicação de capítulo, página e da paginação em referência à numeração dos manuscritos
originais.
Após cada citação, serão apresentados em nota de rodapé os excertos utilizados em seu idioma original.
20

mais completa possível dessa questão seja feita. Isso significa tentar coadunar, fazendo
confluir a exposição sintética a priori da obra principal do autor, com as exposições
analítica e sintética a posteriori de Sobre a Liberdade da Vontade (SLV) e Sobre o
Fundamento da Moral (SFM), 2 e a exposição pragmática de Parerga e Paralipomena
(PP), o que, por si só, já é um grande desafio.
A análise aqui empreendida será focada em uma das acepções assumidas
pelo conceito de justiça na obra schopenhaueriana: a justiça temporal (zeitliche
Gerechtigkeit), que tem por sede o Estado (Staat) e com a qual a doutrina do direito
(Rechtslehre) está diretamente relacionada. Questões correlatas, como a teoria da ação,
as justiças voluntária e eterna (die freiwilligen und ewigen Gerechtigkeiten), a
compaixão (Mitleid), e a ascese (Askese) serão introduzidas e explicadas na medida em
que auxiliam na resolução das questões propostas.
Para o exercício de entender a leitura que o filósofo faz da tradição foram
selecionadas algumas fontes. No que tange à fundamentação de seu sistema dos
princípios do direito, nota-se a influência do mesmo tripé teórico já conhecido pelos
leitores de Schopenhauer: (i) a filosofia oriental, quer quando Schopenhauer cita como
exemplo as Leis de Manu – um código legislativo sânscrito contido nos escritos
bramânicos –, quer quando invoca o mito da transmigração das almas para explicar de
modo mais claro e ilustrativo o conceito de justiça eterna; (ii) a filosofia kantiana, a qual
é tomada como interlocutora; e (iii) Platão, ao ter trechos de seus diálogos – tais como
Górgias, Leis, Protágoras, e a República – utilizados como referência.
Mas, como esperado, o leque de influências enunciadas e cifradas é bem
mais amplo, e não se restringe apenas às três fontes citadas. Notadamente, ao
fundamentar sua doutrina do direito e abordar o tema da política, as influências mais
diretas de Schopenhauer, além de Kant e de Platão, são Thomas Hobbes, Samuel von

2
No primeiro prefácio à obra Os Dois Problemas Fundamentais da Ética se lê: “São propriamente
explicações especiais de duas doutrinas, as quais em seus traços principais são encontradas no quarto
livro de O Mundo como Vontade e Representação, mas enquanto naquela obra são deduzidas a partir da
minha metafísica, ou seja, de modo sintético e a priori; nesta, pelo contrário, onde à questão não foi
permitido nenhum pressuposto, fundamenta-se tais explicações de forma analítica e a posteriori: por isso
o que foi ali o primeiro, aqui será o último.” E, III 433. No original alemão: „Es sind eigentlich specielle
Ausführungen zweier Lehren, die sich, den Grundzügen nach, im vierten Buche der »Welt als Wille und
Vorstellung« finden, dort aber aus meiner Metaphysik, also synthetisch und a priori abgeleitet wurden,
hier hingegen, wo, der Sache nach, keine Voraussetzungen gestattet waren, analytisch und a posteriori
begründet auftreten: daher was dort das Erste war, hier das Letzte ist.“
21

Pufendorf, e Feuerbach. 3 Como influências ocultas, com as quais Schopenhauer


estabelece um diálogo latente – seja de aprovação ou refutação – podem-se reconhecer,
por exemplo, Hugo Grotius e Jean-Jacques Rousseau.
Schopenhauer, ao formular sua teoria do direito, faz um acerto de contas
com certas teorias em voga, notadamente com esses autores que pertencem a um
determinado período da história da filosofia, denominado pelos historiadores da
filosofia por moderno. A história da filosofia moderna do direito confundiu-se em boa
medida com o jusnaturalismo moderno e com a teoria do contrato social. 4 Como nosso
trabalho não se trata de uma investigação exaustiva e pormenorizada das fontes e de
cada autor do período em questão, examinando a especificidade de cada um deles com
vistas a assimilar todas as semelhanças e dessemelhanças de suas teorias a fim de fazer
a reconstituição mais completa possível, 5 mas sim o de uma explicitação das principais
características desse período assimiladas pelo filósofo da vontade, foi necessário
delimitar um escopo de investigação mínimo – mas que pudesse evidenciar os aspectos
desejados.
Foram escolhidos quatro autores paradigmáticos do período moderno para
ilustrar nossa exposição. O primeiro deles foi Hugo Grotius (1583-1645), 6 que é

3
Aqui Schopenhauer refere-se ao pai do afamado Ludwig Feuerbach (1804–1872), Paul Johann Anselm
Ritter von Feuerbach (1775-1833), o qual figurou como grande jurista alemão, sendo o fundador da
moderna doutrina do direito penal da Alemanha. Ficou muito conhecido por ter sido o tutor legal de
Kaspar Hauser. Schopenhauer provavelmente se refere à obra Kritik des natürlichen Rechts als
Propädeutik zu einer Wissenschaft der natürlichen Rechte, de 1796, e/ou à obra Lehrbuch des Gemeinen
in Deutschland gültigen peinlichen Rechts, de 1812.
4
Por muitos séculos a disciplina de Filosofia do Direito foi designada por jus naturae ou jus naturale. Cf.
BARRETO, V. Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar,
2006, Verbete Direito Natural, p.240. Doravante abreviado por Dicionário de Filosofia do Direito,
seguido de indicação de verbete e página.
5
Para uma excelente introdução às várias especificidades das teorias contratuais, Cf. BOUCHER, D.;
KELLY, P (Orgs.). The social contract from Hobbes to Rawls. London; New York, N.Y.: Routledge,
1994, e MORRIS, C.W. The social contract theorists: critical essays on Hobbes, Locke, and Rousseau.
Organização de Christopher W Morris. Lanham, Md.: Rowman and Littlefield, 1999.
6
Hugo Grotius (também conhecido por Huig de Groot, Ugo Grozio, e Hugo Grocius, dependendo das
variações linguísticas e da tradução adotada para o seu nome) é natural de Delft (Holanda). Nascido em
uma época impregnada de valores humanistas, calvinistas e aristotélicos, foi educado no auge da
influência do protestantismo e do aristotelismo (Cf. TUCK, R. Natural rights theories: their origin and
development. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p.58.). Aos doze anos já era considerado
um milagre intelectual, graduando-se em direito com quinze anos. Foi professor de retórica em Leiden,
tradutor, poeta, historiador, e diplomata – trabalhando em diversos governos, como os governos da
Holanda, e da Suécia. Suas principais obras são De iure belli ac pacis, De iure praedae, e De iure
sumarim potestatum circa sacia.
22

considerado por muitos o fundador da teoria moderna do direito internacional, e foi


quem instituiu uma nova forma de investigar as questões da justiça, em particular no
campo mencionado. 7 Se Grotius foi o fundador da teoria moderna do direito
internacional, ou apenas um autor de transição do período clássico para o período
moderno, não é uma questão que compõe o nosso debate. O autor foi selecionado por
ter sido (i) o primeiro a formular em um grande sistema as questões relativas ao direito,
i.e., pode-se dizer que Grotius estabeleceu as categorias epistemológicas que foram
debatidas pelos autores do período em questão, 8 e (ii) porque ele marca a transição da
forma pela qual se procedia para fundamentar a teoria do direito: ele abandona as
fundamentações cosmológicas – pautadas no ordenamento da natureza – e teológicas –
as quais recorrem à figura de um Deus para serem fundamentadas –, procedendo a partir
de uma fundamentação baseada na natureza do ser humano e que por esse motivo pode
ser denominada antropológica e laica.
O segundo autor escolhido, Thomas Hobbes, 9 além de ser um dos expoentes
das tradições jusnaturalista moderna e contratualista, é citado nominalmente por

Para leitura cotejada com a obra De iure belli ac pacis adotou-se a seguinte edição brasileira: GROTIUS,
H. Direito da guerra e da paz. Santa Catarina: Unijuí, 2004. 2 v. Doravante abreviado por DGP, seguido
de indicação de livro, de capítulo, de seção, de parágrafo e da página na edição brasileira.
7
Esse é um ponto controverso. Guido Fassò e Haakonssen não concordam com essa asserção, enquanto
Richard Tuck considera Grotius um dos autores mais originais de sua época. Cf. FASSÒ, G. Historia de
la filosofia del derecho. Tradução de José F. Lorca Navarrete. Madri: Ediciones Pirámide S.A., 1979.
v.2. p.74-77 e o prefácio de TUCK, R. Philosophy and government, 1572-1651. Cambridge: Cambridge
University Press, 1993.
8
“Apesar das modificações mais ou menos moduladas, em linhas gerais a escola do direito natural
moderno permaneceu fiel às categorias epistemológicas definidas por Grotius”. GOYARD-FABRE, S.
Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.XXV. Doravante abreviado por
Os Fundamentos da Ordem Jurídica, seguido de indicação de página.
9
Thomas Hobbes nasceu no ano de 1588, na aldeia de Westport, perto de Malmesbury, Inglaterra. Com a
ajuda de um tio estudou em Oxford e, em 1608, tornou-se tutor na família Cavendish, com a qual manteve
estreitas relações até o final de sua vida. Trabalhou para Francis Bacon, auxiliando-o na tradução latina de
seus Ensaios. Faleceu em 1679, aos noventa e um anos, em Hardwick Hall. Dentre suas obras publicadas
podem ser destacadas The Elements of Law (1640), De Cive (1642), De Corpore (1655), De Homine
(1657), Leviathan or the Matter, Forme, Power of a Common−Wealth Ecclesiastical and Civil (1651),
entre outras.
Para a leitura da obra De Cive, adotou-se a edição latina HOBBES, T. De cive: the latin version entitled
in the first edition elementorvm philosophiae sectio tertia de cive. A critical edition by Howard
Warrender. In: The Clarendon edition of the philosophical works of Thomas Hobbes. Oxford:
Oxford Univ., 1983. v.2. Para uma leitura cotejada com a obra latina adotou-se a tradução de Richard
Tuck: On the citizen. Edited and translated by R. Tuck and M. Silverthorne: Cambridge University Press,
1998. Doravante abreviado como De Cive, seguido da indicação de página das edições em língua latina e
inglesa. Quando houver a necessidade de citações, a tradução realizada será feita a partir da edição
inglesa, em cotejamento com a edição latina.
23

Schopenhauer no processo de formulação de sua doutrina do direito. As assimilações


teóricas realizadas pelo filósofo da vontade a partir dos textos hobbesianos são muito
claras, além de serem confessas. Esses são fatores de grande relevância, e os quais
credenciaram Hobbes a integrar a análise em questão.
O terceiro autor escolhido, Jean-Jacques Rousseau, 10 escreve sobre a
piedade (pitié), conceito que encontra um importante correlato na filosofia
schopenhaueriana: o conceito de compaixão (Mitleid). Tal ocorrência, aliada ao fato de
sua teoria ser considerada pela maioria dos comentadores como antitética à teoria
hobbesiana, dá ensejo à questão de como e em qual medida o filósofo da vontade pôde
utilizar e assimilar fontes tão divergentes.
Para finalizar o nosso plantel, a busca por evidenciar os aspectos mais
relevantes assimilados por Schopenhauer, através dos autores selecionados, nos levou a

Para a leitura de Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, adotou-se a
edição inglesa editada por C.B. Macpherson: HOBBES, T. Leviathan. Edited with an introduction by
C.B. Macpherson. New York: Penguin, 1985. A tradução adotada de Leviathan para uma leitura cotejada
com a obra em idioma inglês foi feita por João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva: Leviatã
ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civilSão Paulo: Abril Cultural, 1973. (col. Os
Pensadores). Doravante abreviado como Leviatã, seguido da indicação de página das edições em língua
inglesa, original entre colchetes, e língua portuguesa.
10
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), nascido na cidade-estado de Genebra, é conhecido como um dos
mais importantes filósofos do século XVIII, tendo exercido grande influência intelectual no que ficou
conhecido como uma das mais impactantes revoluções da história ocidental: a Revolução Francesa. Seu
pensamento político foi fortemente influenciado pela leitura de autores como Tácito, Plutarco, Hugo
Grotius e Samuel Von Pufendorf. Suas contribuições atingiram diversos ramos das ciências e das artes:
escreveu verbetes para Encyclopédie de Denis Diderot e Jean Le Rond d’Alembert, e romances de grande
sucesso, como a novela Julie, ou La Nouvelle Héloïse (Julie ou a Nova Heloísa, de 1761); no campo da
composição criou um novo tipo de notação musical – embora essa tenha sido rejeitada pela Academia de
Ciências; em 1749 venceu o concurso da Academia de Dijon com o Discours sur les sciences et les arts
(Discurso Sobre a Ciência e as Artes), que ficou conhecido como primeiro discurso e lhe garantiu fama e
projeção no meio intelectual europeu. Em 1754 escreveu o segundo discurso, Discours sur l'origine et les
fondements de l'inégalité parmi les hommes (Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade Entre os Homens), e em 1762 publicou as obras Du Contrat Social (Do Contrato Social), e
Émile, ou De l’éducation (Emílio, ou Da Educação).
Adotou-se a edição das obras completas de Rousseau estabelecida por Raymond e Gagnebin:
ROUSSEAU, J. Œuvres completes. Paris: Gallimard, 1964. v.III, reimpressão de 2003. Para a leitura
cotejada com os textos em francês, adotaram-se as traduções brasileiras existentes na Coleção Os
Pensadores: ROUSSEAU, J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. São Paulo: Abril Cultural: 1973. (Coleção Os Pensadores). Doravante abreviado por Segundo
Discurso, seguido de indicação de página na tradução brasileira e da página do original francês; e
ROUSSEAU, J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural: 1973. (Coleção Os Pensadores).
Doravante abreviado por Do Contrato Social, seguido de indicação de página na tradução brasileira, e da
página do original francês.
24

Immanuel Kant. 11 Schopenhauer formula sua doutrina do direito tomando a filosofia


kantiana como interlocutora, construindo sua teoria em diálogo direto com a kantiana
por meio de refutações a pontos específicos, como, por exemplo, a objeção à
fundamentação do direito de propriedade, a censura à fundamentação do direito de punir
e sua execução, e a oposição à fundamentação do Estado no imperativo categórico como
um dever moral.
Assim, a partir da leitura dos textos de Schopenhauer, de orientações do
próprio autor, e dos textos dos filósofos supramencionados, selecionaram-se as obras e
trechos dessas que foram considerados influentes e consentâneos com a análise
proposta. Dessa forma, a primeira parte dessa tese doutoral almeja perscrutar as
doutrinas do direito e da política de Arthur Schopenhauer, i.e., elucidar e compreender
sua fundamentação, sua formulação, o diálogo estabelecido com a tradição acima
delimitada – como Schopenhauer a lê –, as consequências engendradas por essas
doutrinas, e a inserção sistemática delas na filosofia schopenhaueriana.
Nosso terceiro capítulo serve como uma espécie de transição entre esses
primeiros objetivos enunciados acima e o que vem a constituir o objetivo da segunda
parte de nossa tese de doutoramento, a saber, formular a questão da possível atualidade
do autor d’O Mundo como Vontade e Representação no campo da moral, da ética, da
política e do direito, sobretudo no que se refere a uma questão específica que parece
constituir a imbricação desses quatro campos, a questão dos direitos humanos,
verificando a extensão e o impacto dessa atualidade.

11
Immanuel Kant (1724 - 1804) lecionou na Universidade de Königsberg, cidade na qual nasceu e da
qual nunca saiu. É conhecido como um dos filósofos mais importantes e revolucionários da filosofia.
Autor das três críticas – Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura), Kritik der praktischen
Vernunft (Crítica da Razão Prática), e Kritik der Urtheilskraft (Crítica da Faculdade do Juízo) –, entre
outras obras de grande envergadura, como Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da
Metafísica dos Costumes), Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft (A Religião dentro
dos Limites da Simples Razão), Die Metaphysik der Sitten (A Metafísica dos Costumes).
Adotou-se a tradicional edição das obras completas em alemão de Kant organizadas pela Academia:
KANT, I. Kants Werke: Akademie-Textausgabe Unveranderter photomechanischer Abdruck des Textes
der von der Prenssischen Akademie der Wissenschaften 1902 begonnenen Ausgabe von
Kantsgesammelten Schriften. Berlin: W. de Gruyter, 1968. Para leitura cotejada com o texto Die
Metaphysik der Sitten da edição mencionada, escolhemos a tradução portuguesa Metafísica dos
costumes. Tradução, apresentação e notas de José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005.
Doravante abreviada por MdS, seguida de indicação página e numeração Becker.
Para leitura cotejada com o texto Grundlegung zur Metaphysik der Sitten da edição mencionada,
escolhemos a tradução portuguesa Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo
Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986. p. 59, IV 421. Doravante abreviado por Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, seguido de indicação de página e numeração Becker.
25

Nele são apresentadas algumas possibilidades de interpretação da filosofia


schopenhaueriana e sua recepção ao longo da história da filosofia. Existem chaves
interpretativas que, para o nosso estudo, abrem possibilidades de desenvolvimento da
filosofia do autor que nos permitiria situá-lo em um debate contemporâneo sobre os
direitos humanos. A exposição é iniciada com uma pequena reconstrução do trabalho
empreendido pelo Centro Interdipartimentale di Ricerca su Arthur Schopenhauer e la
sua Scuola, presidido pelo professor Domenico Fazio e situado em Lecce, Itália, na
recuperação e sistematização da relação de Schopenhauer com seus seguidores e com
um certo tipo de recepção de sua filosofia; trata-se da forma pela qual a filosofia
schopenhaueriana foi interpretada e desenvolvida, da forma como ela serviu de
inspiração e influenciou outras autoras e autores, e, mais recentemente, como os estudos
sobre a filosofia de Schopenhauer passaram a ser organizados através da fundação das
Schopenhauer-Gesellschaften, sediadas em diversos países – como Brasil, Estados
Unidos, Índia, Itália, e Japão – e com a sua matriz em Frankfurt, na Alemanha.
Passa-se, então, à consideração da interpretação dada por Rudolf Malter a
filosofia schopenhaueriana e do conceito de pessimismo crítico. Malter é responsável
por um dos tipos de interpretação que mais logrou êxito sobre a filosofia
schopenhaueriana: a caracterização sistemática dela como uma soteriologia. 12
Outra interpretação cara ao nosso estudo, que vem ganhando força nos
últimos anos no Brasil, é a proposta pelo professor Ludger Lütkehaus. Ela destoa da
comumente rigidez hermenêutica empregada na leitura do filósofo ao diferenciar dois
tipos de interpretação de Schopenhauer: aquela que já se consolidou como tradicional, a
qual é comumente identificada com o quietismo e a negação da vontade, chamada por
ele de “direita schopenhaueriana”, e aquela que privilegia a filosofia prática do filósofo
e inaugura novas searas a serem exploradas no que diz respeito à reflexão, interpretação,
e atualização do autor no campo da filosofia social, a qual o professor nomeia de
“esquerda schopenhaueriana”.
Em seguida, avaliamos a recepção da filosofia schopenhaueriana no Brasil
e, em especial, o debate produtivo entre o que poder-se-ia chamar de “esquerda
schopenhaueriana brasileira”, no qual a filosofia prática do autor e a sua eudemonologia
recebem especial atenção. Esse debate lança as bases e facilita uma certa inversão de

12
Cf. MALTER, R. Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens.
Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman-Holzboog, 1991 e MALTER, R. Der Eine Gedanke: Hinführung zur
Philosophie Arthur Schopenhauers. Darmstadt: Wiss. Buchges., 2010.
26

perspectiva que possibilita uma melhor apreciação dos problemas que nos colocamos, e
a situar nossa tese, também ela, como pertencente à esquerda schopenhaueriana.
Esse percurso nos leva ao projeto de fundamentação ética de Ernst
Tugendhat, o qual avalia a questão dos direitos humanos como a questão ética mais
importante da atualidade. Tugendhat apresenta o problema e sua gravidade, mas acaba
por descartar a ética da compaixão de Schopenhauer, classificando-a como implausível
e como nem mesmo sendo uma moral. Apresentaremos as razões pelas quais a ética da
compaixão schopenhaueriana não se adequam aos propósitos de Tugendhat; tais razões
parecem ser acertadas, mas em referência à apreciação da questão de uma perspectiva
na qual a ética da compaixão schopenhaueriana não pode e não pretende se enquadrar.
Com Tugendhat introduzimos a questão dos direitos humanos e finalizamos o terceiro
capítulo e a transição da primeira parte da nossa tese para sua segunda parte, inaugurada
pelo quarto capítulo, o qual versa sobre a história e os dilemas referentes aos direitos
humanos.
A primeira questão a ser levantada acerca desse ponto é “o que são direitos
humanos fundamentais?”. Dessa primeira questão emergem outras tantas questões
igualmente complexas, tais como: “é possível fundamentá-los?”, “existe um
fundamento absoluto para eles?”, “essa fundamentação é racional, possui como pedra
angular um sentimento, ou é histórica?”, “é um tipo de direito homogêneo ou
heterogêneo – e quê isso significa?”, “como é possível legitimar tal tipo de direito?”,
“qual a significação ética dos direitos humanos?”, “qual a sua eficácia e efetividade
sócio-política?”, “qual a sua função?”, “como eles se desenvolveram historicamente?”.
Para tentar ao menos suprir essas questões mais imediatas referentes aos
direitos humanos e poder mobilizar elementos importantes para responder a essas
questões, tomaremos como nosso fio condutor a tese de origem e afirmação histórica
dos direitos humanos sustentada pelo jusfilósofo italiano Norberto Bobbio, um dos
teóricos da filosofia do direito mais importantes do século XX. As teses bobbianas nos
oferecem um terreno relativamente seguro e firme para o desenvolvimento de nossos
argumentos frente ao pantanoso terreno no qual os debates sobre os direitos humanos se
realizam.
A tese da afirmação histórica dos direitos humanos localiza a origem desses
na modernidade, juntamente com a concepção individualista de sociedade.
Reconstituiremos ao menos algumas das etapas do processo de afirmação dos direitos
27

humanos, como o acolhimento das teorias jusnaturalistas e contratualistas, i.e., de


teorias filosóficas, em cartas de direitos, fator que iria marcar a transição do direito
pensado até então (teoria) para o direito realizado (prática). Para ilustrar essa transição e
averiguar os impactos e transformações das organizações políticas e sociais
analisaremos alguns documentos históricos, como (i) a Declaração de Direitos (Bill of
Rights) de 1689, consequência da Revolução Gloriosa; (ii) as declarações de direitos
envolvidas no processo histórico de independência dos EUA, tais como a Carta de
Direitos de Virgínia de 1776, a própria Declaração de Independência do país (1776), e a
Declaração dos Direitos e Garantias da Constituição Federal Norte-Americana (1791);
(iii) as declarações oriundas do processo revolucionário francês, dos anos de 1789,
1791, 1793 e 1795; e (iv) a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada
pela Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948.
A partir da análise desses documentos será possível avaliar a importância
das teorias filosóficas como base ideológica dos movimentos ilustrados revolucionários,
sustentar a origem dos direitos humanos como direitos históricos, avaliando a questão
dos fundamentos e de sua legitimação, os tipos de direitos humanos existentes, i.e., as
gerações de direitos humanos que surgiram no desenrolar do processo histórico.
Após pincelar os aspectos incontornáveis da questão, será possível,
finalmente, avaliar a atualidade do filósofo da vontade para o debate acerca dos direitos
humanos. Avaliaremos, então, levando em consideração a atual conjuntura mundial, a
atualidade do filósofo no que se refere a cada uma das denominadas gerações de
direitos, bem como em relação a questões mais amplas, como a sua atualidade para o
direito, para a moral e para a política, e a possibilidade de pensar e construir um “menos
pior dos mundos possíveis”.
2 A Reconstrução das Doutrinas do Direito e do Estado

2.1. A Dimensão Ética do Sistema: Metafísica dos Costumes e Ética

2.1.1. Significado Ético do Sistema Filosófico Schopenhaueriano

O jovem Schopenhauer, no ano de 1813, mesmo antes de sua obra principal


ser concluída, já vislumbrava o sentido último do sistema filosófico que conceberia anos
mais tarde:

Em minhas mãos e antes no meu espírito nasce um trabalho, uma filosofia, na


qual a ética e a metafísica devem ser UMA só, as quais até o momento foram
separadas de modo falso pelos homens, como o corpo e a alma. 1

Essa passagem nos permite notar o direcionamento e a importância da ética


no sistema filosófico schopenhaueriano já em sua concepção. É possível supor que a
importância da ética já estava dada no processo de gestação deste sistema e orientou
todo o seu desenvolvimento e confecção. Um sistema que, segundo o autor, possui uma
característica muito favorável e proveitosa para a exposição da decifração do enigma do
mundo, embora isso implique que seja necessário ler a sua obra principal duas vezes.
Trata-se de um sistema do pensamento único, o qual é definido da seguinte maneira:

[...] UM PENSAMENTO ÚNICO, por mais abrangente que seja, guarda a


mais perfeita unidade. Se, todavia, em vista de sua comunicação, é
decomposto em partes, então a coesão destas tem de ser, por sua vez,
orgânica, isto é, uma tal em que cada parte tanto conserva o todo quanto é por
ele conservada, nenhuma é a primeira ou a última, o todo ganha em clareza
mediante cada parte, e a menor parte não pode ser plenamente compreendida
sem que o todo já o tenha sido previamente. – Um livro tem de ter,
entrementes, uma primeira e uma última linha; nesse sentido, permanece
sempre bastante dessemelhante a um organismo, por mais que a este sempre
se assemelhe em seu conteúdo. Consequentemente, forma e conteúdo estarão
aqui em contradição.
Daí resulta facilmente que, sob tais circunstâncias, para penetrar na
exposição destes pensamentos, há apenas um conselho: LER O LIVRO
DUAS VEZES. 2

1
HN I, Fragmento 92, p. 59, Berlin 1813, Fólio L. No manuscrito alemão: „Unter meinen Händen und
vielmehr in meinem Geiste erwächst ein Werk, eine Philosophie, die Ethik und Metaphysik in E i ne m
seyn soll, da man sie bisher trennte so fälschlich als den Menschen in Seele und Körper.“
2
MVR, Prefácio à Primeira Edição, p.19-20, I VIII. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão:
„[…] ein einziger Gedanke muß, so umfassend er auch seyn mag, die vollkommenste Einheit bewahren.
Läßt er dennoch, zum Behuf seiner Mittheilung, sich in Theile zerlegen; so muß doch wieder der
Zusammenhang dieser Theile ein organischer, d.h. ein solcher seyn, wo jeder Theil ebenso sehr das
Ganze erhält, als er vom Ganzen gehalten wird, keiner der erste und keiner der letzte ist, der ganze
Gedanke durch jeden Theil an Deutlichkeit gewinnt und auch der kleinste Theil nicht völlig verstanden
werden kann, ohne daß schon das Ganze vorher verstanden sei. — Ein Buch muß inzwischen eine erste
29

E, neste sentido, pode-se recorrer a uma observação pertinente e


complementar à citação feita: “Schopenhauer é o filósofo da organicidade. Procura-a,
porque, com ela, onde quer que se esteja no seu sistema, estar-se-á em toda parte. O
todo conteria as partes e seria contido por elas”.3 Isso significa, em outras palavras, que
a todo momento, uma série de pressupostos e consequências permeiam a exposição da
filosofia do autor, permeiam a leitura de seus escritos.
Uma segunda característica a ser salientada sobre a exposição do sistema
filosófico schopenhaueriano refere-se ao fato do filósofo não tratar em sua completude e
de forma exaustiva em um único trecho ou passagem de seus escritos as temáticas
abordadas ao longo de sua obra. Exemplo disso é que o autor se furta a reproduzir parte
vital de sua argumentação sobre o princípio de razão suficiente em seu primeiro livro do
primeiro tomo de MVR, remetendo o leitor à leitura de sua tese de doutoramento, a QR.
A própria doutrina do direito serve, também, como exemplo para este tipo de
ocorrência, na medida em que ela é tratada pelo filósofo ao longo de toda sua obra, em
momentos díspares e esparsos. Esse tipo de procedimento é recorrente no estilo de
exposição do filósofo, como ele mesmo admite:

Pois é preciso ter em mente que meus escritos, poucos que sejam, não foram
compostos ao mesmo tempo, mas sucessivamente, no decorrer de uma longa
vida e com amplos intervalos; logo, não se deve esperar que tudo o que disse
sobre um tema também apareça reunido num único lugar. 4

Ao apontar essas duas características mais gerais, que se referem ao sistema


filosófico schopenhaueriano e ao modo pelo qual ele é exposto pelo filósofo, podemos
agora introduzir alguns dos conceitos fundamentais do próprio sistema. Um dos pilares
da filosofia schopenhaueriana é a distinção kantiana entre fenômeno (Erscheinung) 5 e

und eine letzte Zeile haben und wird insofern einem Organismus allemal sehr unähnlich bleiben, so sehr
diesem ähnlich auch immer sein Inhalt seyn mag: folglich werden Form und Stoff hier im Widerspruch
stehen. Es ergiebt sich von selbst, daß, unter solchen Umständen, zum Eindringen in den dargelegten
Gedanken, kein anderer Rath ist, als das Buch zwei Mal zu lesen.“
3
BARBOZA, J. A Metafísica do belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: USP-Humanitas, 2001, p.
137.
4
MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p. 663, I 633-634. No original alemão: „Denn man muß erwägen,
daß meine Schriften, so wenige ihrer auch sind, nicht alle zugleich, sondern successiv, im Laufe eines
langen Lebens und mit weiten Zwischenräumen abgefaßt sind; demnach man nicht erwarten darf, daß
Alles, was ich über einen Gegenstand gesagt habe, auch an Einem Orte zusammen stehe.“
5
É consagrada a tradução de Erscheinung como ‘fenômeno’ no que diz respeito aos estudos
schopenhauerianos. Todavia, ‘aparecimento’ e ‘aquilo que aparece’ seriam, também, boas alternativas.
30

coisa-em-si (Ding an sich) 6: em-si somos vontade, 7 unos e imutáveis; a vontade deve
ser entendida como um impulso cego e irracional que tem no desejo a expressão de sua
estrutura de movimento pela busca de um objeto de satisfação. Mas a vontade traz em si
a marca ontológica da insatisfação eterna, ou seja, por ser ontologicamente carência, ela
está condenada a sempre repetir a necessidade de satisfação; todo ato de vontade
satisfeito é apenas uma transição para um novo ato de vontade. A vontade, enquanto tal,
nunca pode ser satisfeita; ela é, portanto, eternamente padecente.
Enquanto fenômeno, somos o mais alto grau de objetivação dessa vontade
na realidade empírica, situados espaço-temporalmente em uma cadeia causal pelo
principium individuationis, o princípio de individuação, que fragmenta a vontade – una
e indivisa enquanto coisa-em-si. Por esse aspecto, ele pode ser considerado como
princípio constituinte da realidade empírica enquanto fenômeno. O princípio de
individuação também permite que a vontade se manifeste de igual modo em número
infinito de seres e, certamente, de uma maneira plena e íntegra.
O fenômeno pode ser definido como tudo aquilo que é objeto para o sujeito
que conhece enquanto indivíduo, e seu conhecimento se dá inteiramente submetido ao
princípio de razão em suas quatro figuras. 8 Tudo o que pertence ao fenômeno é causa

6
“A essência íntima do mundo, a coisa-em-si, é a vontade, a vontade para vida e esta, enquanto tal, conta
com três propriedades metafísicas: a unidade, a infundamentabilidade, e a incognoscibilidade” HN,
Metafísica dos Costumes, p.117, p.180. No original alemão: „Das innre Wesen der Welt, das Ding an sich
ist der Wille, der Wille zum Leben: als solcher hat er drei 'metaphysische Eigenschaften: Einheit,
Grundlosigkeit, Erkenntnißlosigkeit.“
7
A primeira ocorrência, embora não sistemática, registrada para o termo vontade (Wille) pode ser
encontrada no Fragmento 12 – Philosophische Aphorismen dos escritos de Juventude de Schopenhauer,
anotação número 7, de 1808-1809 (Cf. HN I, Fragmento 12 [7], Frühheste Aufzeichnungen –
Philosophische Aphorismen 1808-1809, p. 9). No Fragmento 34 – Ein Systemchen, Schopenhauer faz
novamente uma alusão ao termo vontade (Cf. HN I, Fragmento 34, Berlim 1812, Folha A 1-6, p. 21).
Contudo, apenas no Fragmento 67 de 1813 Schopenhauer identifica o termo vontade como sendo a
essência do mundo e de tudo que aparece no mundo (Cf. HN I, Fragmento 67, Berlim 1813, Folha E 1-4,
p.36).
8
O princípio de razão suficiente é definido por Schopenhauer como: nihil est sine ratione cur potius sit,
quam non sit (em tradução livre: nada é sem que haja uma razão para que seja ou sem que haja uma razão
que explique o que seja) Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grund, Erstes Kapitel,
§5, III 113. Ele possui quatro figuras que explicam as relações entre as representações e unificam todo o
conhecimento racional: (i) Princípio de Razão Suficiente do vir-a-ser (Satz vom zureichenden Grund des
Werdens); (ii) Princípio de Razão Suficiente do Conhecer (Satz vom zureichenden Grund der Erkenntnis);
(iii) Princípio de Razão Suficiente do Ser (Satz vom zureichenden Grund des Seins); (iv) Princípio de
Razão Suficiente do Agir (Satz vom zureichenden Grund des Handelns). A palavra alemã Grund pode ser
traduzida para o português por fundamento, causa, motivo, além de razão. A palavra razão deve ser
entendida nessa acepção, não significando o ato de raciocinar, julgar, etc.. O princípio de razão suficiente
pode ser considerado o fundamento de todas as ciências. Ele também expressa comumente vários
31

(Grund) e consequência (Folge), e essa consequência é determinada com absoluta


necessidade (Notwendigkeit). 9 Ora, se tudo o que existe enquanto fenômeno é pautado
na relação causal, então é possível inferir que o conteúdo inteiro da Natureza é
absolutamente necessário (durchaus nothwendig) – como será exposto com maior
retidão na seção que trata da questão da liberdade e da necessidade da vontade.
Por outra perspectiva, enquanto coisa-em-si, a vontade não está submetida
ao princípio de razão nem ao princípio de individuação. Logo, a vontade enquanto tal é
livre. Tudo o que existe como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessário; no
entanto, em si mesmo, é vontade e está integralmente livre e fora das formas do tempo e
do espaço.
Pela via cognitiva não é possível ter acesso à coisa-em-si. Mas é possível ter
acesso a ela pelo nosso corpo (Leib), enquanto sujeito da vontade. A filosofia, enquanto
explicitação conceitual do mundo é a tradução do conhecimento intuitivo da essência
metafísica do mundo para o conhecimento abstrato. Trata-se de uma teoria da
representação, ao mesmo tempo em que se configura como uma teoria dos limites dessa
representação. O discurso científico, que não consegue ir além do plano empírico, da
aparência, se pauta nas relações estabelecidas entre fenômenos. As perguntas pelo
“como?” (wie?), pelo “onde?” (wo?) e pelo “quando?” (wann?) de um determinado
evento expressam a tentativa de explicitar relações de causalidade, situadas em espaço e
tempo, i.e., as perguntas científicas estão pautadas nos princípios de razão suficiente e
de individuação. A pergunta filosófica, o “quê?” (was?) das coisas, consegue ultrapassar
o plano da aparência e vislumbrar a essência, seja de um objeto particular, seja do
sujeito da vontade.
As investigações sobre as relações físicas, entre eventos da natureza, servem
de base para a ciência empírica do agir humano, a ética. Segundo Schopenhauer, deve-
se pensar a ética em relação com a metafísica da natureza, como atesta a estrita relação
existente entre os livros II e IV de MVR. Pelo fato das investigações morais concernirem
quase que imediatamente à coisa-em-si, elas são incomparavelmente mais

conhecimentos dados a priori: nada existe sem uma razão de ser. Sobre o princípio de razão suficiente e
suas quatro figuras, conferir a obra de Schopenhauer Über die vierfache Wurzel des Satzes vom
zureichenden Grunde e CARTWRIGHT, D. Historical dictionary of Schopenhauer's philosophy.
Oxford: Scarecrow Press, 2005, (Coleção Historical dictionaries of religions, philosophies, and
movements, n. 55), p.138-143. Doravante abreviado por Historical Dictionary of Schopenhauer's
Philosophy, seguido de indicação de página.
9
Cf. MVR, §55, p.371, I 338.
32

importantes. 10 E elas concernem quase imediatamente à coisa-em-si porque no


indivíduo se manifesta de forma mais nítida, graças ao princípio de individuação, a
vontade para vida (Wille zum Leben) 11: pode-se observar a manifestação do microcosmo
no macrocosmo. Dessa forma, não é preciso investigar as relações estabelecidas entre
um grande contingente de indivíduos para obter dados relevantes para a ética, mas o
agir de um único indivíduo serve como objeto pleno para a observação. 12
Contudo, não se trata da ciência de como os homens devem agir. Ao
contrário, a ética schopenhaueriana, afastando-se da moral teológica e das morais
prescritivas, possui aporte e ponto de ancoragem em sua metafísica da vontade, na
descrição e explicação do mundo e da existência em geral, i.e., ela tem por objetivo
explicar os modos de agir dos homens no que se refere ao aspecto moral de suas ações.
A ética possui, enquanto doutrina empírica do agir humano, a quarta figura do princípio
de razão suficiente como forma geral, a saber, a motivação.
Nas preleções de Berlim, os objetivos da ética são esclarecidos pelo então
professor Schopenhauer: cabe a ela mostrar que (i) não existe nenhuma doutrina do
dever, que (ii) não existe nenhum princípio ético universal, e que (iii) não existe um
dever incondicionado. 13 Em suma, o ponto de partida da ética schopenhaueriana já
delineia um horizonte necessariamente antikantiano. Concomitantemente a esses três
objetivos, a ética trata, necessariamente, de dois problemas capitais: (i) a liberdade e a
sua relação com a necessidade, e (ii) o significado ético da conduta humana, i.e., o
fundamento da moral. 14
Nesse ponto é possível diferenciar o que Schopenhauer entende por ética – o
conjunto de objetivos e problemas supracitados – e o que ele entende por metafísica dos
costumes – a qual seria um conceito mais abrangente que o de ética e incluiria em seu
conteúdo programático toda a filosofia moral, a afirmação e negação da vontade para
vida, e incluiria também a doutrina da redenção.

10
Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 676.
11
Apesar de não existir uma tradução única em português para o termo Wille zum Leben – ele encontra
em português, ao menos, duas traduções, vontade de viver e vontade de vida –, optei por uma forma de
tradução que não é convencional, vontade para vida. Essa última tradução teria, a meu ver algumas
vantagens, tais como (i) estar gramaticalmente correta, (ii) ser literal e, portanto, mais próxima do idioma
alemão, mantendo o sentido do dativo empregado por Schopenhauer, e de (iii) manter o sentido de ser um
impulso, exatamente aquilo que a vontade é.
12
Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 678.
13
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.4, p.58-59.
14
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.21, p.76.
33

Os conceitos de afirmação e de negação da vontade podem ser


compreendidos a partir da seguinte passagem:

A vontade afirmar a si mesma, significa: quando em sua objetidade


(Objektität), ou seja, no mundo e na vida, a própria essência lhe é dada plena e
distintamente como representação, semelhante conhecimento não obsta de
modo algum seu querer, mas exatamente esta vida assim conhecida é também
enquanto tal desejada; se até então sem conhecimento, como ímpeto cego,
doravante com conhecimento, consciente e deliberadamente. – O oposto disso,
a NEGAÇÃO DA VONTADE PARA VIDA, mostra-se quando aquele
conhecimento leva o querer a findar, visto que, agora, os fenômenos
particulares conhecidos não mais fazem efeito como MOTIVOS do querer,
mas o conhecimento inteiro da essência do mundo, que espelha a vontade, e
provém da apreensão das IDÉIAS, torna-se um QUIETIVO da vontade e,
assim, a vontade suprime a si mesma livremente. 15

A afirmação da vontade é querer, e cada ato de vontade é sua afirmação,


tendo no próprio corpo a expressão dos impulsos próprios da vontade metafísica. O
corpo, assim, configura-se como a linha tênue entre os âmbitos da vontade e da
representação, sendo cada manifestação do corpo em tempo, espaço e em uma cadeia
causal, uma exteriorização da essência metafísica do indivíduo. A afirmação da vontade
para vida se dá em dois âmbitos: (i) a afirmação sobre o próprio corpo – pela
autoconservação e a satisfação do impulso sexual –, e (ii) a afirmação da vontade para
além do próprio corpo, que invade e nega a esfera de afirmação alheia.
A partir dessa pequena introdução à metafísica dos costumes e ao sistema
ético, é possível perquirir o seu significado moral, analisando em maior profundidade os
problemas da ética elencados pelo filósofo da vontade, a fim de entender a relação entre
ética, direito, moralidade e política.

15
MVR, §54, p. 369-370, I 336. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Der Wille bejaht
sich selbst, besagt: indem in seiner Objektität, d.i. der Welt und dem Leben, sein eigenes Wesen ihm als
Vorstellung vollständig und deutlich gegeben wird, hemmt diese Erkenntniß sein Wollen keineswegs;
sondern eben dieses so erkannte Leben wird auch als solches von ihm gewollt, wie bis dahin ohne
Erkenntniß, als blinder Drang, so jetzt mit Erkenntniß, bewußt und besonnen. - Das Gegentheil hievon,
die Ver ne inu ng des Wi l le ns zu m Le be n, zeigt sich, wenn auf jene Erkenntniß das Wollen endet,
indem sodann nicht mehr die erkannten einzelnen Erscheinungen als Mo t ive des Wollens wirken,
sondern die ganze, durch Auffassung der I dee n erwachsene Erkenntniß des Wesens der Welt, die den
Willen spiegelt, zum Qu iet iv des Willens wird und so der Wille frei sich selbst aufhebt.“
34

2.1.2. A Teoria da Ação ou Sobre a Liberdade da Vontade 16

Ao formular o que considera como um dos problemas fundamentais da


ética, a saber, a teoria da ação ou a liberdade da vontade, Schopenhauer inicia sua
investigação justamente pelo questionamento “o que é liberdade?”. Segundo o filósofo,
o conceito de liberdade só pode ser pensado como a ausência de obstáculos e
impedimentos; ela deve, assim, ser considerada como um conceito negativo. 17
A partir dessa primeira definição de liberdade pela via negativa, é possível
diferir entre três tipos possíveis de ausência de impedimentos: (i) a liberdade física
(physische Freiheit), que é caracterizada pela ausência de impedimentos materiais
(materiellen Hindernisse) de todo tipo,18 (ii) a liberdade intelectual (intellektuelle
Freiheit), que se refere ao voluntário e ao involuntário, e (iii) a liberdade moral
(moralische Freiheit), que constitui o liberum arbitrium – que significaria a
possibilidade de um mesmo indivíduo poder escolher a sua forma de agir, para uma
mesma situação, entre duas ações diametralmente opostas.
A liberdade física e a liberdade moral constituem uma certa relação, na
medida em que, segundo Schopenhauer, a primeira é anterior a segunda; e é sobre elas
que essa consideração se desdobrará. Contudo, segundo o filósofo, nas apreciações
anteriores acerca da temática da liberdade empreendidas por outros autores, a liberdade
sempre foi considerada apenas em referência ao poder (Können) executar uma ação ou
outra, não propriamente ao fato e possibilidade de o querer (Wollen) mesmo ser livre
(frei). Para Schopenhauer, livre deve ser entendido como o estar de acordo com o
querer. A questão, então, sob esta perspectiva, é recolocada de uma outra forma: “você
pode também querer o que quer?” (Kannst du auch wollen, was du willst?).
A mera resposta afirmativa a essa questão não decide nem resolve o
problema da liberdade do querer: faz-se indispensável recorrer à apreciação do contra-

16
Nos escritos publicados pelo autor, a temática da liberdade pode ser encontrada em MVR §23, §26, §55;
MVR II, Kapitel 19 – Vom Primat des Willens im Selbstbewußtseyn; SFM, §10; em SLV; e SVN, Capítulo
5. Cabe alusão à carta de Schopenhauer a Julius Frauenstädt, Frankfurt a. M., de 6 de agosto 1852.
17
Cf. SLV, p. 39, III 473.
18
Uma importante ressalva feita pelo autor: “Também se chama livre um povo e se entende por isso que
ele se rege de acordo com leis, mas leis que se deram a si mesmos; pois então obedecem, em todo caso,
exclusivamente a sua própria vontade. Segundo isso, a liberdade política deve se entendida junto com a
liberdade física.” SLV, p.40-41, III 4754. No original alemão: „Auch ein Volk nennt man frei, und
versteht darunter, daß es allein nach Gesetzen regiert wird, diese Gesetze aber selbst gegeben hat: denn
alsdann befolgt es überall nur seinen eigenen Willen. Die politische Freiheit ist demnach der physischen
beizuzählen.“
35

conceito de liberdade, a saber, o conceito de necessidade (Notwendigkeit). Mas quê


significa necessidade? Necessidade é uma consequência a partir de uma causa 19
segundo o princípio de razão suficiente em uma de suas quatro figuras. 20 E isso
significa que uma vez que uma causa está dada, seu efeito é necessário com o mesmo
rigor em todos os casos. A relação de causa e efeito, fundamento e consequência, rege
todo fenômeno – tudo aquilo que é objeto para o sujeito que conhece enquanto
indivíduo. Ora, se tudo o que pertence ao fenômeno é causa e consequência, e essa
consequência é determinada com absoluta necessidade,21 e se tudo o que existe
enquanto fenômeno é pautado na relação causal, nos princípios de razão suficiente e de
individuação, então é possível inferir que o conteúdo inteiro da Natureza é
absolutamente necessário. Um objeto poderia não existir na natureza, ou originária e
essencialmente ser algo inteiramente outro. Mas em tal caso toda a cadeia causal, na
qual ele está inserido como fenômeno, também seria outra,22 ou seja, tratar-se-ia de uma
outra configuração da realidade, de um outro contexto.
Dessa perspectiva – a perspectiva do fenômeno –, não seria possível admitir
uma vontade livre. Para ser livre, a vontade não poderia estar determinada por razões,
ou seja, uma vontade seria livre se não estivesse sob o domínio dos princípios de razão
suficiente e de individuação. Todavia, em outro registro que não o da representação, a
vontade é a própria coisa-em-si, e não está submetida aos princípios de razão e de
individuação. Deste ponto de vista, a vontade enquanto tal é livre. Tudo o que existe
como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessário; no entanto é, em si mesmo,
vontade e está integralmente livre por toda a eternidade. Nesse ponto nos deparamos
com a consideração da impossibilidade do conceito de liberdade no plano da
representação, que é regido pelas leis de causa e consequência, e da possibilidade de

19
Talvez seja interessante ressaltar a distinção qualitativa estabelecida por Schopenhauer nas relações de
causa e efeito. Segundo o autor, aquilo que é responsável por um efeito pode se dar de três formas: (i)
como causa (Ursach), no corpo inorgânico; (ii) como estímulo (Reiz), nos vegetais; e (iii), como motivo
(Motiv), nos animais não-humanos e humanos. Cf. MVR, §23.
20
Cf. SLV, p.43, III 477 e HN, Metafísica dos Costumes, p. 22, p. 77.
21
“O conteúdo inteiro da natureza, a completude de seus fenômenos, são, portanto, absolutamente
necessários, e a necessidade de cada parte, de cada fenômeno, de cada evento, pode sempre ser
demonstrada, já que tem de ser possível encontrar a causa (Grund) do qual ele depende como
consequência.” MVR, §55, p.371, I 338. No original alemão: „Der ganze Inhalt der Natur, ihre gesammten
Erscheinungen, sind also durchaus nothwendig, und die Nothwendigkeit jedes Theils, jeder Erscheinung,
jeder Begebenheit, läßt sich jedesmal nachweisen, indem der Grund zu finden seyn muß, von dem sie als
Folge abhängt.“
22
Cf. MVR, §55, p. 372, I 339.
36

liberdade no plano do em-si, da possibilidade de uma liberdade transcendental. Essa


dualidade de perspectivas pode ser levada a cabo porque a filosofia schopenhaueriana
aceita e tem como ponto de partida a divisão kantiana entre fenômeno e coisa-em-si,
considerados pelo filósofo de Frankfurt como representação e vontade, e porque sua
exposição sobre a liberdade da vontade toma como referência a terceira antinomia da
Dialética Transcendental da obra kantiana Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão
Pura), na qual, em uma das interpretações possíveis, com a qual Schopenhauer pode ser
identificado, é possível compatibilizar determinismo empírico e liberdade noumênica, o
que estabelece uma relação entre os dois âmbitos. 23
O determinismo do fenômeno atinge até mesmo os seres humanos, os quais,
apesar de serem o mais alto grau de objetivação da vontade no mundo fenomênico,
ainda estão submetidos aos princípios de razão suficiente e de individuação. Isso
significa que o ser humano, como qualquer outra parte da natureza, também é
objetidade da vontade. 24 Pode-se afirmar que, enquanto fenômeno, cada indivíduo é um
corpo próprio, uma força da Natureza, uma Ideia, um caráter inteligível (intelligibler
Charakter) manifestado no tempo, espaço e em uma cadeia causal como caráter
empírico (empirischer Charakter):

Ora, assim como cada coisa na natureza tem suas forças e qualidades que
reagem de determinada maneira em face de determinada impressão, e
constituem o seu caráter, o ser humano possui o seu CARÁTER, em virtude
do qual os motivos produzem suas ações com necessidade. Nesse modo
mesmo de agir manifesta-se seu caráter empírico; por seu turno, neste
manifesta-se de novo seu caráter inteligível, a vontade em si, da qual aquele é
o fenômeno determinado. 25

Os conceitos de caráter empírico e de caráter inteligível, originários da


filosofia kantiana, são incorporados à filosofia schopenhaueriana. E caráter, aqui, deve
ser entendido como a constância, a regularidade, a regra que permanece imutável na
observação de um certo conjunto de fenômenos, neste caso o agir do indivíduo. Desta

23
Segundo Schopenhauer, a terceira antinomia é uma das maiores contribuições da filosofia kantiana. Cf.
SFM, §10, p.93, III 644. “Considero esta doutrina de Kant da coexistência da liberdade com a necessidade
como a maior das realizações da profundeza humana”. SFM, §10, p.95, III 646. No original alemão:
„Diese Lehre Kants vom Zusammenbestehen der Freiheit mit der Nothwendigkeit halte ich für die größte
aller Leistungen des menschlichen Tiefsinns“.
24
Cf. MVR, §55, p.372, I 339; Ver também: Cf. MVR, §18, p.157, I 119; Cf. MVR, §54, p.357, I 323; HN,
Metafísica dos Costumes, p. 23, p.78.
25
MVR, §55, p.372, I 339. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Wie jedes Ding in der
Natur seine Kräfte und Qualitäten hat, die auf bestimmte Einwirkung bestimmt reagiren und seinen
Char akt er ausmachen; so hat auch er seinen Charakter, aus dem die Motive seine Handlungen
hervorrufen, mit Nothwendigkeit.“
37

forma, tudo o que Schopenhauer escrevera sobre as leis que regem a Natureza também
são válidas para os seres humanos, os quais têm no princípio de razão suficiente do agir
(Satz vom zureichenden Grund des Handelns), ou, de forma abreviada, na lei da
motivação (Gesetz der Motivation), a condição de inteligibilidade de suas ações.
Os caráteres inteligível e empírico podem ser definidos como:

[...] caráter é manifestação da vontade e não a vontade como coisa-em-si


mesma. [...] O caráter inteligível é a vontade como coisa-em-si enquanto
aparece em uma determinada proporção em um indivíduo dado. O caráter
empírico, contudo, é essa manifestação mesma enquanto se põe de manifesto
nas formas do agir, conforme o tempo, na corporificação, conforme o
espaço. 26

Assim, o caráter inteligível é o que cada ser humano individualmente é em-


si, enquanto vontade, não submetido aos princípios de razão e individuação; as ações de
cada ser humano no mundo como representação são fenômenos, manifestações de seu
caráter inteligível – que é distinto em cada indivíduo –, denominado, enquanto

26
HN, Metafísica dos Costumes, p.25-26, p.80-81. No original alemão: „[…] und daß sein Karakter
unveränderlich ist: welches daher kommt daß der Karakter schon Erscheinung des Willens ist; nicht der
Wille als Ding an sich. […] Der int e ll ig ible Kar akt er ist der Wille als Ding an sich sofern er in
einem bestimmten Individuo, in bestimmtem Grade erscheint. Der empirische Karakter aber ist diese
Erscheinung selbst, so wie sie sich darstellt, der Zeit nach, in der Handlungsweise, dem Raum nach,
schon in der Ko r por isat io n. “
Optei por escolher a formulação das preleções de Berlim sobre o caráter inteligível e empírico, ainda que
em polêmica e divergência aparentes com outros textos de Schopenhauer, porque ela faz alusão a um
grande problema para os leitores, intérpretes da obra do filósofo, e até mesmo para o próprio
Schopenhauer: a possibilidade de se entender que cada caráter tem o mesmo estatuto de uma Ideia. Em
última instância, em-si, tudo é vontade; mas para que cada caráter possa ser individual, ele deve possuir
um pequeno grau de individuação. Contudo, isso não precisa significar necessariamente que ele esteja
submetido ao princípio de individuação – em tempo, espaço e em uma cadeia causal; esse raciocínio
estaria em consonância com o fato de que cada indivíduo teria uma Ideia que corresponda a si mesmo.
Esse é um problema assaz espinhoso, o qual não tenho por objetivo resolver e nem mesmo expor
detalhadamente. Deixamos registrado apenas a alusão a essa possibilidade de interpretação, baseada em
evidências textuais. No §116 de PP, Schopenhauer escreve: “a individualidade não repousa unicamente
no principium individuationis e não é, portanto, inteiramente apenas fenômeno, mas enraíza-se na coisa-
em-si, na vontade do indivíduo, pois seu próprio caráter é individual. Até onde vai a profundidade de suas
raízes constitui uma das questões cuja resposta não empreendo.” PP, §116, p.71, V 249. No original
alemão: „Hieraus folgt nun ferner, daß die I nd iv i dua lit ät nicht allein auf dem principio individuationis
beruht und daher nicht durch und durch bloße E rsc he inu ng ist; sondern daß sie im Dinge an sich, im
Willen des Einzelnen, wurzelt: denn sein Charakter selbst ist individuell. Wie tief nun aber hier ihre
Wurzeln gehn, gehört zu den Fragen, deren Beantwortung ich nicht unternehme.“
Para uma apreciação cuidadosa do conceito de Ideia (Idee) na obra schopenhaueriana e das possíveis
contradições encontradas em suas várias formulações, remeto ao artigo CIRACÌ, F. Il mondo come
volontà, idee e rappresentazione: Per una possibile lettura in senso illuministico della dottrina delle idee.
in: Revista Voluntas: estudos sobre Schopenhauer, v.1, n.1, p. 71-115, 1º sem. 2010. Disponível em:
http://www.revistavoluntas.com.br/uploads/1/8/1/8/18183055/v1-n1-05-ciraci_fabio.pdf. Acesso em 22
jan. 2014.
38

manifestação fenomênica, no tempo e no espaço, de caráter empírico. 27 Assim, a


liberdade não está situada no âmbito do caráter empírico, mas sim no âmbito do caráter
inteligível. E o caráter empírico é tão somente a exibição fenomênica do que o
indivíduo é da perspectiva metafísica.
Em suma, o caráter inteligível, além de ser considerado como um ato
extratemporal, indivisível e imutável da vontade, é a própria vontade enquanto coisa-
em-si manifestando-se num determinado indivíduo e em um determinado grau como
fenômeno, cujo desenvolvimento e espraiamento em tempo, espaço, e em todas as
formas do princípio de razão é o caráter empírico como este se expõe conforme a
experiência, vale dizer, no modo de ação e no decurso de vida do indivíduo. 28
Pode-se notar que a teoria do caráter, assim, reúne quatro características
básicas: (i) o caráter é individual, uma vez que é diferente para cada indivíduo, e isso
significa que o efeito de um mesmo motivo é completamente diferente em pessoas
diferentes; (ii) o caráter é empírico, enquanto manifestação fenomênica do caráter
inteligível. E isso significa que apenas pela experiência é possível nos conhecer e, por
conseguinte, também os outros; (iii) o caráter é constante, pois permanece o mesmo ao
longo de toda vida. E isso significa que uma pessoa, nas exatas e idênticas
circunstâncias, age sempre da mesma forma. Schopenhauer é implacável: quem roubou
uma vez é um ladrão por toda a vida; 29 e (iv) ele é inato, pois o indivíduo nasce com

27
As definições de caráter empírico e inteligível também podem ser encontradas em várias passagens da
obra schopenhaueriana, tais como: SFM,§10, p.94-96, III 645-647; MVR, §20, p.165, I 127-128; MVR,
§28, p.221-225, I 185-190; MVR, §53, p.353, I 319-320; MVR, §55, p.375, I 341-342.
28
Cf. MVR, §55, p. 375, I 341.
29
Cf. SLV, p. 88, III 521. “O que alguém fez uma vez, faria de novo, inevitavelmente, sob iguais
circunstâncias” SFM, §13, p.110, III 658. No original alemão: „was E iner ein Mal gethan hat, er unter
ganz gleichen Umständen, unausbleiblich wieder thun werde.“
Outras duas citações podem corroborar esse ponto de vista: “esperar que uma pessoa, em ocasiões
idênticas, aja uma vez assim e outra vez de forma totalmente diferente, seria como se se esperasse que a
mesma árvore que este verão deu cerejas dê peras no próximo” SLV, p.96, III 528. No original alemão:
„Folglich zu erwarten, daß ein Mensch, bei gleichem Anlaß, ein Mal so, ein ander Mal aber ganz anders
handeln werde, wäre wie wenn man erwarten wollte, daß der selbe Baum, der diesen Sommer Kirschen
trug, im nächsten Birnen tragen werde.“
“Na mesma verdade baseia-se que um indivíduo, mesmo a partir do mais claro conhecimento, sim,
mesmo a partir da aversão de suas faltas e defeitos morais, sim, mesmo a partir da intenção sincera de
melhorar, também obviamente não melhore, mas, ao contrário, a despeito das sérias intenções e
promessas honestas, deixe-se afetar, em uma nova oportunidade, mais uma vez como anteriormente pelas
mesmas veredas, para a sua própria surpresa.” SLV, p.89, III 521. No original alemão: „Auf der selben
Wahrheit beruht es, daß ein Mensch, selbst bei der deutlichsten Erkenntniß, ja, Verabscheuung seiner
moralischen Fehler und Gebrechen, ja, beim aufrichtigsten Vorsatz der Besserung, doch eigentlich sich
nicht bessert, sondern trotz ernsten Vorsätzen und redlichem Versprechen, sich, bei erneuerter
39

ele.30 E isso significa que (a) a pessoa, com o tempo, torna-se o que ela é, não podendo
escolher o que ela quer ser, 31 e (b) que o caráter é o local no qual residem todos os
vícios e virtudes, no que se segue que a virtude e o vício também são inatos. Aqui já é
possível vislumbrar o deslocamento da responsabilidade do âmbito do agir para o
âmbito do ser, ou, como Schopenhauer escreve, do operari para o esse.
A autoconsciência (Selbstbewusstsein) faz os indivíduos acreditarem que é
possível fazer qualquer coisa que se queira fazer. E, dado que o indivíduo também pode
pensar ações totalmente opostas como queridas, segue-se que ele crê que também pode
agir de forma contrária, se quiser. Contudo, como exposto acima, deve-se afastar o erro
de que o agir de um indivíduo particular e determinado não está submetido à
necessidade alguma, i.e., deve-se afastar o erro de considerar a priori que o agir é livre.
Como escreve a tradutora espanhola de Os dois Problemas Fundamentais da Ética (Die
beiden Grundprobleme der Ethik), Pilar López de Santa María, na introdução a essa
tradução: “Podemos desejar coisas diferentes e inclusive opostas; mas só podemos, em
cada caso, querer uma”. 32 Aqui se deve utilizar o exemplo tão claro que Schopenhauer
emprega em sua argumentação de SLV:

“São seis horas da tarde, a jornada de trabalho terminou. Agora posso dar
uma volta; ou posso ir ao clube; posso também subir em uma torre e ver o pôr
do sol; também posso ir ao teatro; e posso visitar esse ou aquele amigo;
posso, também, sair da cidade e nunca mais voltar. Tudo isso depende
somente de mim, tenho total liberdade para tanto; contudo, agora não faço
nada disso, e vou voluntariamente para casa ao encontro da minha mulher”. E
isso é igual ao que a água diria: “Posso formar altas ondas (sim! No mar
tempestuoso); posso correr de forma impetuosa (sim! no leito do rio); posso
precipitar-me espumosa e borbulhante (sim!, na cachoeira); posso subir livre
até o ar em forma de jato (sim!, nos chafarizes); posso, enfim, ferver e
desaparecer (sim!, a oitenta graus de calor); contudo, agora não faço nada
disso, mas permaneço voluntariamente, quieta e clara como um espelho em
um lago”. Assim como a água só pode fazer tudo isso quando se produzem
causas determinantes para uma coisa ou outra, igualmente todo indivíduo não
pode fazer o que imagina poder, a não ser, sob a mesma condição. 33

Gelegenheit, doch wieder auf den selben Pfaden wie zuvor, zu seiner eigenen Ueberraschung, betreffen
läßt.“
30
Cf. MVR, §53, p.353, I 319-320.
31
“De acordo com a tradição os indivíduos precisariam apenas ponderar COMO gostariam de ser, e assim
seriam: isto é liberdade da vontade”. MVR, §55, p.379, I 345. Tradução ligeiramente alterada. No original
alemão: „Nach dieser dürfte er nur überlegen, w ie er am liebsten seyn möchte, und er wäre es: das ist
ihre Willensfreiheit.“
32
SCHOPENHAUER, A. Los dos problemas fundamentales de la ética. Tradução, introdução e notas
de Pilar López de Santa María. Madri: Siglo XXI de España Editores, 2007, p.XXII.
33
SLV, p.79, III 512. Apesar de Schopenhauer escrever que a agua pode subir e desaparecer (evaporar) a
oitenta graus, o ponto de ebulição da água pura ao nível do mar é de 100 graus Celsius. No original
alemão: „»Es ist 6 Uhr Abends, die Tagesarbeit ist beendigt. Ich kann jetzt einen Spatziergang machen;
40

Se a liberdade da vontade fosse considerada no fenômeno, isso significaria


que cada ação humana seria independente do princípio de razão suficiente, das relações
de causa e consequência. Elas seriam inexplicáveis, tais como milagres. Pela reflexão a
posteriori percebe-se que o agir foi produzido de modo completamente necessário a
partir do confronto do caráter do indivíduo com a constelação de motivos apresentadas
ao intelecto desse mesmo indivíduo. 34 Mas o que isso significa? A motivação pode ser
entendida como “a causalidade vista de dentro (die Motivation ist die Kausalität von
innen gesehen)”, 35 e isso apenas denota que a motivação é um tipo especial da
causalidade: a causalidade que passa pelo conhecimento. Assim sendo, pode-se inferir
que todos os motivos são causas e carregam consigo consequências inevitáveis, uma vez
que toda causalidade traz consigo a necessidade.36
Todas as ações particulares de um indivíduo são apenas a exteriorização
sempre repetida do seu caráter inteligível, e a indução resultante da soma dessas ações
constitui precisamente o seu caráter empírico. A decisão se produz a partir da índole
interior confrontada com a afecção exterior, i.e., a decisão é produzida a partir do
caráter inteligível, da vontade individual, em seu confronto com motivos dados e, por
conseguinte, com perfeita necessidade. Se fossem dados de maneira completa o caráter
empírico de um indivíduo e os motivos que o afetam, seria possível calcular a conduta
futura desse como se calcula um eclipse do sol ou da lua, i.e., com absoluta precisão.
Contudo, o intelecto não possui acesso a todas as variáveis necessárias e existentes para
realizar um cálculo tão acurado. Por isso, os indivíduos não podem montar uma equação
com um resultado preciso.

oder ich kann in den Klub gehn; ich kann auch auf den Thurm steigen, die Sonne untergehn zu sehn; ich
kann auch ins Theater gehn; ich kann auch diesen, oder aber jenen Freund besuchen; ja, ich kann auch
zum Thor hinauslaufen, in die weite Welt, und nie wiederkommen. Das Alles steht allein bei mir, ich
habe völlige Freiheit dazu; thue jedoch davon jetzt nichts, sondern gehe ebenso freiwillig nach Hause, zu
meiner Frau. « Das ist gerade so, als wenn das Wasser spräche: »Ich kann hohe Wellen schlagen (ja!
nämlich im Meer und Sturm), ich kann reißend hinabeilen (ja! nämlich im Bette des Stroms), ich kann
schäumend und sprudelnd hinunterstürzen (ja! nämlich im Wasserfall), ich kann frei als Strahl in die Luft
steigen (ja! nämlich im Springbrunnen), ich kann endlich gar verkochen und verschwinden (ja! bei 80°
Wärme); thue jedoch von dem Allen jetzt nichts, sondern bleibe freiwillig, ruhig und klar im spiegelnden
Teiche.« Wie das Wasser jenes Alles nur dann kann, wann die bestimmenden Ursachen zum Einen oder
zum Andern eintreten; ebenso kann jeder Mensch was er zu können wähnt, nicht anders, als unter der
selben Bedingung.“
34
Cf. MVR, §55, p. 374, I 340-341.
35
QR, p.208, III 253.
36
Cf. SLV, p.72, III 505.
41

Com efeito, o que determina as ações de um indivíduo é a equação montada


entre os motivos dados na circunstância e o caráter desse indivíduo. Ou, dito de outra
forma, entre a constelação dos motivos e a configuração individual da vontade do
caráter inteligível de cada um. Dada a estrutura do caráter e a constelação dos motivos,
a ação se segue da relação entre ambas com absoluta necessidade:

Cada coisa no mundo age de acordo com aquilo que ela é, de acordo com sua
natureza, na qual, por isso, todas as suas manifestações já estão contidas
como “potentia” [segundo a possibilidade], mas acontecem como “actu” [na
realidade], quando causas exteriores as produzem. 37

O motivo afeta a vontade de um indivíduo, a qual desencadeia uma ação,


que se refere ao bem-estar ou ao mal-estar de um ser. Quando o fim último da ação é o
bem-estar ou o mal-estar do próprio agente, a ação é considerada egoísta. Por outro
lado, um motivo pode ser neutralizado a partir do confronto com um contramotivo
(Gegenmotiv) mais forte.
Ora, se as ações dos homens são executadas com absoluta necessidade,
então essas são determinadas e a possibilidade de existência do livre-arbítrio é
descartada. A confusão em se reputar o livre-arbítrio como verdadeiro, segundo
Schopenhauer, tem origem no fato de o conhecimento ser associado como fator
essencial e primordial ao guiar as ações do indivíduo humano, relegando a vontade ao
segundo plano no que tange à tomada de decisões. Mas não é o conhecimento que guia
as ações dos indivíduos, como pode ser observado na seguinte passagem:

A vontade é o primário e originário; o conhecimento é meramente adicionado


como instrumento pertencente ao fenômeno da vontade. Conseguintemente,
cada ser humano é o que é mediante sua vontade. Seu caráter é originário,
pois querer é a base de seu ser. Pelo conhecimento adicionado ele aprende no
decorrer da experiência o QUÊ ele é, ou seja, chega a conhecer seu caráter. 38

Após refutar a existência do livre-arbítrio, demonstrando que os seres


humanos estão sujeitos às relações de causa e consequência, uma vez que
fenomenicamente estão sob a tutela dos princípios de razão e individuação, é possível

37
SFM, §10, p.96, III 646. No original alemão: „jedes Ding in der Welt wirkt nach dem wie es ist, nach
seiner Beschaffenheit, in welcher daher alle seine Aeußerungen schon pot ent ia enthalten sind, act u
aber eintreten, wann äußere Ursachen sie hervorrufen;“
38
MVR, §55, p. 379, I 345. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Der Wille ist das Erste
und Ursprüngliche, die Erkenntniß bloß hinzugekommen, zur Erscheinung des Willens, als ein Werkzeug
derselben, gehörig. Jeder Mensch ist demnach Das, was er ist, durch seinen Willen, und sein Charakter ist
ursprünglich; da Wollen die Basis seines Wesens ist. Durch die hinzugekommene Erkenntniß erfährt er,
im Laufe der Erfahrung, was er ist, d.h. er lernt seinen Charakter kennen.“
42

considerar de forma mais detida a conduta humana. Essa pode, segundo o filósofo,
variar notavelmente sem que com isso se deva concluir que o caráter mesmo do
indivíduo tenha mudado. No mundo fenomênico, a única forma de se afetar a vontade é
através dos motivos. Os motivos jamais podem mudar a vontade em si mesma. Tudo o
que os motivos podem mudar é a direção do esforço da vontade, em outros termos, fazê-
la procurar o que inalteradamente procura por um caminho diferente do até então
seguido. Jamais os motivos poderiam fazer com que a vontade realmente queira de
maneira diferente do que quis até então. A ação da vontade se expõe de forma bastante
diferente em tempos diferentes, mas, por outro lado, seu querer permanece exatamente o
mesmo.
Em virtude da grande influência do conhecimento sobre o agir, apesar da
vontade ser inalterável, ocorre de o caráter desenvolver-se e suas diversas feições
entrarem em cena gradativamente. Assim, o traço do bom ou do mau caráter entra em
cena gradualmente, com cada vez mais poder no decorrer do tempo. Acerca desse
ponto, Schopenhauer escreve:

No começo somos todos inocentes, e isto apenas significa que nem nós, nem
os outros, conhecemos o mau de nossa própria natureza: este aparece apenas
nos motivos; e é só no decorrer do tempo que os motivos entram em cena no
conhecimento. Ao fim, nos conhecemos de maneira completamente diferente
do que a priori nos considerávamos, e então amiúde nos espantamos conosco
mesmos. 39

Essa correção do conhecimento é o arrependimento (Reue), que só é


possível por causa da razão. Esse nunca se origina de a vontade ter sido alterada, o que é
impossível, mas de o conhecimento ter mudado. Não existe arrependimento por algo
desejado, mas sim por algo que foi feito, visto que, ao ser conduzido por falsas noções,
o indivíduo agiu de maneira diferente daquela adequada à sua vontade. “O
arrependimento sempre é o conhecimento corrigido da proporção do ato com a intenção
real”.40
Deve-se considerar, ainda, outra diferença oriunda do fato dos seres
humanos serem dotados de razão: a razão faz a lei de motivação atuar de forma

39
MVR, §55, p. 383, I 349. No original alemão: „Daher auch sind wir Alle Anfangs unschuldig, welches
bloß heißt, daß weder wir, noch Andere das Böse unserer eigenen Natur kennen: erst an den Motiven tritt
es hervor, und erst mit der Zeit treten die Motive in die Erkenntniß. Zuletzt lernen wir uns selbst kennen,
als ganz Andere, als wofür wir uns a priori hielten, und oft erschrecken wir dann über uns selbst.“
40
MVR, §55, p. 384, I 350. No original alemão: „Immer also ist die Reue berichtigte Erkenntniß des
Verhältnisses der That zur eigentlichen Absicht.“
43

diferente nos animais humanos em relação aos animais não humanos. Enquanto os
animais não humanos são determinados pelo motivo mais recente, e por um motivo de
cada vez, o ser humano, por seu turno, é dotado de representações intuitivas e de
representações abstratas. Essas representações abstratas são denominadas por
Schopenhauer conceitos (Begriffe). Isso significa que para os animais humanos existe a
possibilidade de um conflito duradouro entre vários motivos até que o mais forte
determine com necessidade a ação da vontade. Essa capacidade do ser humano é
denominada decisão eletiva (Wahlentscheidung). Contudo, essa capacidade de poder
representar abstratamente motivos possui suas desvantagens. Grande parte das dores
que os indivíduos possuem não estão situadas no presente como representações
intuitivas ou sentimento imediato, mas na razão, como conceitos abstratos, pensamentos
atordoantes. O sofrimento está, em última instância, na faculdade de razão. Os animais,
desprovidos de razão, e, por conseguinte, de decisão eletiva, estão livres desse tipo de
sofrimento, pois eles vivem apenas no tempo presente, num estado, segundo
Schopenhauer, destituído de preocupação e digno de inveja. Em SLV, Schopenhauer
explica o mecanismo dessa deliberação:

A capacidade de deliberação que dela surge não produz, de fato, nada mais
que o constante e penoso CONFLITO DOS MOTIVOS, ao que serve a
indecisão e cujo campo de batalha é constituído pelo ânimo e a consciência
humana. De fato, ele permite aos motivos pôr à prova repetidamente sua
força contra outros motivos na vontade, com o que esta cai na mesma
situação na qual se encontra um corpo sobre o qual atuam diversas forças em
direções opostas: até que, no final, o motivo decididamente mais forte vence
os demais e determina a vontade; este desenlace se chama resolução e se
produz com total NECESSIDADE, como resultado da batalha. 41

A decisão eletiva também abre margens para o entendimento do significado


do sentimento de renúncia:

[...] toda privação individual e momentânea nos é fácil, enquanto toda


renuncia nos é bastante difícil, pois a primeira concerne só ao presente
passageiro, enquanto a outra concerne ao futuro e, por conseguinte, contém
em si inumeráveis renúncias das quais é a equivalente. Portanto, a causa de

41
SLV, p.73, III 506. No original alemão: „Die durch sie entstehende Deliberationsfähigkeit giebt in der
That nichts Anderes, als den sehr oft peinlichen Ko nf l ikt der Mot ive, dem die Unentschlossenheit
vorsitzt, und dessen Kampfplatz nun das ganze Gemüth und Bewußtseyn des Menschen ist. Er läßt
nämlich die Motive wiederholt ihre Kraft gegen einander an seinem Willen versuchen, wodurch dieser in
die selbe Lage geräth, in der ein Körper ist, auf welchen verschiedene Kräfte in entgegengesetzten
Richtungen wirken, — bis zuletzt das entschieden stärkste Motiv die andern aus dem Felde schlägt und
den Willen bestimmt; welcher Ausgang Entschluß heißt und als Resultat des Kampfes mit völliger
Not hwend igke it eintritt.“
44

nosso sofrimento, bem como de nossa alegria, reside na maioria dos casos
não no presente real, mas só em pensamentos abstratos. 42

A faculdade de razão, ao possibilitar a abstração, o raciocínio, e o


alargamento da dimensão temporal, permite, também, que o indivíduo, a partir da
reflexão e da experiência, encontre meios mais adequados para alcançar os seus fins.
Isso não se dá pela alteração do caráter desse indivíduo, mas pelo refinamento de sua
constelação de motivos, que significa a correção e o clareamento do conhecimento – o
qual é o meio dos motivos. A educação, entendida pelo filósofo da vontade como um
prêmio, atua nos indivíduos pela correção do conhecimento, através do ensino e do
exemplo. Assim, a função pedagógica do educar tem como objetivo influenciar o
indivíduo a agir dentro dos limites da lei e a optar pelos melhores meios para alcançar
os seus fins – promovendo a melhoria civil e legal –, sem, com isso, prescrever ou
moralizar:

O intento de suprimir os defeitos do caráter de uma pessoa mediante


discursos e moralizações, e assim remodelar seu caráter mesmo, sua própria
moralidade, é exatamente igual à pretensão de converter o chumbo em ouro
mediante influência externa, o de conseguir com esmerados cuidados que um
arbusto dê damascos. 43

Pelo fato do indivíduo ser capaz de decidir, é exclusivamente nele que a


decisão, não o mero desejo, serve para si mesmo e para os outros como uma indicação
válida de seu caráter. O desejo seria a simples consequência necessária da impressão
presente de excitação exterior ou de disposição interior passageira, e é, por conseguinte,
tão imediatamente necessário e sem ponderação quanto à ação dos animais.
A partir do exposto, é possível inferir que não é o acontecimento que está
absolutamente predeterminado, mas o acontecimento como resultado de causas prévias.
42
MVR, §55, p. 386-387, I 352-353. No original alemão: „Daher ist uns jede einzelne Entbehrung für den
Augenblick ziemlich leicht, aber jede Entsagung entsetzlich schwer: denn jene trifft nur die
vorübereilende Gegenwart, diese aber die Zukunft und schließt daher unzählige Entbehrungen in sich,
deren Aequivalent sie ist. Die Ursache unseres Schmerzes, wie unserer Freude, liegt daher meistens nicht
in der realen Gegenwart; sondern bloß in abstrakten Gedanken.“
Esse trecho de MVR aparece de forma quase que literal em HN, Metafísica dos Costumes, p. 40, p. 97. No
original alemão com as diferenças de formulações grafadas em negrito: „Daher ist uns jede einzelne
Entbehrung für den Augenblick ziemlich leicht, aber jede Entsagung entsetzlich schwer: denn jene trifft
nur die vorübereilende Gegenwart; diese aber die Zukunft, und schließt daher unzählige Entbehrungen in
sich, deren Äquivalent sie ist. Unser Schmerz, wie unsere Freude liegen meistens nicht in der realen
Gegenwart; sondern bloß in abstrakten Gedanken.“
43
SLV, p.90, III 523. No original alemão: „und das Unternehmen, die Charakterfehler eines Menschen
durch Reden und Moralisiren aufheben und so seinen Charakter selbst, seine eigentliche Moralität,
umschaffen zu wollen, ist ganz gleich dem Vorhaben, Blei durch äußere Einwirkung in Gold zu
verwandeln, oder eine Eiche durch sorgfältige Pflege dahin zu bringen, daß sie Aprikosen trüge.“
45

Os atos dos indivíduos sempre se dão de acordo com o caráter inteligível que eles
possuem, não sendo possível uma intelecção a priori desse caráter. Apenas a posteriori,
através da experiência, é possível aprender a conhecer a si mesmo e aos outros, uma vez
que, dessa forma, os atos dos indivíduos são um espelho deles mesmos.
O conhecimento das próprias qualidades, sejam elas boas ou más, i.e., o
melhor conhecimento possível da própria individualidade, do próprio caráter empírico,
proporciona ao indivíduo o que é denominado por Schopenhauer de caráter adquirido
(erworbener Charakter). O conhecimento mais acabado da própria individualidade
permite saber o que é querido, o que se pode ter, o que é possível exigir de si mesmo e
quais são seus próprios limites. Trata-se de um conhecimento abstrato, e por fim claro
das peculiaridades inalteráveis do próprio caráter empírico, assim como da proporção e
orientação das próprias forças, tanto corporais quanto espirituais; em síntese, trata-se do
conhecimento do conjunto de qualidades e fraquezas da própria individualidade. O
caráter adquirido é obtido na vida pelo seu uso no mundo (Weltgebrauch), 44 e é a ele ao
qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou a censura por não
o ter. A deficiência em seu conhecimento é responsável por nem sempre nos
compreendermos, embora sempre sejamos as mesmas pessoas.
Resta, agora, levar a bom termo uma questão central para uma teoria da
ação: como responsabilizar um indivíduo por suas ações, i.e., é possível responsabilizar
moralmente o indivíduo pelas ações por ele praticadas, se no plano representacional a
lei vigente é a da causalidade?
Como a argumentação empreendida frisou por diversas vezes, a ação se
segue com absoluta necessidade do confronto entre os motivos e o caráter do indivíduo.
Isso significa que “O que se faz segue-se do que se é”, operari sequitur esse. As ações
praticadas são acompanhadas por uma consciência (Bewusstsein) da própria potência e
da originalidade, graças à qual os indivíduos sentem-se como autores reais de suas ações
e, por isso mesmo, responsáveis (verantwortlich) moralmente.45
O agir, o operari, é resultado exato do que o ser é, o esse, e por isso, quando
se diz que o indivíduo poderia agir de outra forma, segundo a argumentação de
Schopenhauer, diz-se com isso que o indivíduo poderia ser outro. A responsabilidade
moral refere-se, de um ponto de vista superficial, à ação cometida, mas, em uma

44
Cf. MVR, §55, p.391, I 357. No original alemão: „der erworbene Charakter, den man erst im Leben,
durch den Weltgebrauch.“
45
Cf. SFM, §10, p.94, III 645.
46

consideração aprofundada, na causa / fundamento da ação, o ser do indivíduo: naquilo


que ele é estão assentadas a culpa e o mérito.
É no ser, no esse, no caráter que se encontra o aguilhão da consciência
moral, onde o sujeito se sente culpado e responsável, decerto por causa do operari. A
responsabilidade, assim, é o sentimento de tomada de consciência de que o nosso ser,
esse, é livre, e que as ações praticadas por ele são exteriorizações necessárias do que ele
é. Esse sentimento é baseado na inquebrantável certeza de que nós mesmos somos os
autores de nossos atos (Thäter unserer Thaten). 46 A argumentação de Schopenhauer
pode ser resumida na seguinte passagem de SLV:

Ali aonde se situa a culpa, tem que situar-se também a responsabilidade; e,


posto que esse é o único dado que nos justifica para inferir a liberdade moral,
então a liberdade tem que ser dita no mesmo lugar, ou seja, no caráter do ser
humano; tanto mais, quanto que nos temos convencido suficientemente de
que aquela não se pode encontrar imediatamente nas ações individuais que,
sob o suposto do caráter, se produzem com estrita necessidade. Mas o caráter
é, como se demonstrou, inato e imutável. 47

Desta forma, pôde-se observar como Schopenhauer, tendo como pano de


fundo teórico a terceira antinomia kantiana, utiliza e relaciona os conceitos de caráter,
de motivo, e de princípio de individuação para conciliar a liberdade da vontade (em-si)
com os princípios de razão e de individuação (representação) e, ainda, garantir a
responsabilidade moral pelas ações praticadas.

2.2. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) de Arthur Schopenhauer

2.2.1. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) ou Justiça Temporal (zeitliche

Gerechtigkeit)

É possível notar, ao longo da obra schopenhaueriana a utilização do


conceito de Justiça (Gerechtigkeit) em três registros: (i) a Justiça entendida como

46
Cf. SLV, p.133, III 563.
47
SLV, p.134, III 564. No original alemão: „Da, wo die Schuld liegt, muß auch die Verantwortlichkeit
liegen: und da diese das alleinige Datum ist, welches auf moralische Freiheit zu schließen berechtigt; so
muß auch die Freiheit ebendaselbst liegen, also im Charakter des Menschen; um so mehr, als wir uns
hinlänglich überzeugt haben, daß sie unmittelbar in den einzelnen Handlungen nicht anzutreffen ist, als
welche, unter Voraussetzung des Charakters, streng necessitirt eintreten. Der Charakter aber ist, wie im
dritten Abschnitt gezeigt worden, angeboren und unveränderlich.“
47

Virtude (freiwillige Gerechtigkeit), 48 (ii) como Justiça Temporal (zeitliche


Gerechtigkeit), e (iii) como Justiça Eterna (ewige Gerechtigkeit). A primeira ocorrência
para o uso da Justiça pode ser entendida como um certo grau no desvelar o Véu de
Maia, um certo olhar através do princípio de individuação que faz com que o indivíduo
abdique em parte de seu egoísmo, fazendo menor distinção entre si mesmo e os outros.
O segundo tipo de justiça afirma-se como tal quando a ação realizada para evitar uma
ação injusta refere-se ao futuro (Zukunft); ela tem no Estado seu dispositivo, seu meio
para efetivar-se, podendo, assim, retaliar e punir. Por fim, a justiça eterna rege o
mundo.
A explanação da justiça temporal é totalmente dependente do conceito que
pode ser entendido como a sua origem, o Egoísmo (Egoismus). Com o intuito de expor
e analisar os conceitos basilares que possibilitaram que as doutrinas do direito e do
Estado schopenhauerianas fossem erigidas, faz-se necessário analisar e trabalhar com o
núcleo de sustentação de toda a ética schopenhaueriana, i.e., com o conceito de
Egoísmo, com a origem dos conceitos de justiça e injustiça, com a qualidade moral das
ações praticadas, e com a forma pela qual todos os conceitos envolvidos em sua teoria
são articulados.

2.2.2. Egoísmo (Egoismus) como Origem da Guerra de Todos Contra

Todos

Schopenhauer justifica a hostilidade entre os indivíduos a partir de duas


perspectivas: (i) a perspectiva epistemológica, ao mostrar que o sujeito do conhecimento
é o sustentáculo do mundo, o que pode ser chamado de egoísmo teórico; e (ii) a
perspectiva ética, ao mostrar que cada um quer tudo para si, o que pode ser chamado de
egoísmo prático.

48
Essa distinção é bem notada por Annette Godart-van der Kroon no seu artigo Schopenhauer's Theory
of Justice and its Implication to Natural Law. In: Jahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft 2003. Band
84. Frankfurt am Main: Verlag Köningshausen & Neuman Würzburg, 2003, p. 121-145. Contudo, os
tradutores de língua portuguesa não chegaram a um consenso sobre a melhor tradução para o termo
freiwillige Gerechtigkeit. Alguns traduzem por justiça espontânea, outros por justiça livre, outros, ainda,
por justiça voluntária. Utilizaremos o termo de justiça voluntária, mas tendo em mente que esse tipo de
justiça se refere à justiça enquanto virtude cardinal.
48

O egoísmo em sua perspectiva ética, i.e., o egoísmo prático, é tratado por


Schopenhauer principalmente e de forma mais detida no §61 d’O Mundo como Vontade
e Representação e no capítulo 14 de Sobre o Fundamento da Moral. Em MVR,
Schopenhauer inicia sua exposição sobre o conceito recordando um aspecto de sua
filosofia que fora explicado no segundo livro de sua obra mais importante, ao mesmo
tempo em que enuncia o egoísmo como o ponto chave para que se possa entender a luta
contínua entre os indivíduos, ou seja, entender a guerra de todos contra todos:

Recordemos do livro segundo que na natureza inteira, em todos os graus de


objetivação da vontade, existe necessariamente uma luta contínua entre os
indivíduos de todas as espécies, e, justamente aí, exprime-se um conflito
interno da vontade para vida consigo mesma. Nos graus mais elevados de sua
objetivação, como qualquer outra coisa, esse fenômeno se expõe em distinção
mais acentuada e, por conseguinte, pode ser mais bem decifrado. Tendo em
vista esse fim, queremos primeiro perquirir em sua fonte o EGOÍSMO, como
ponto de partida de toda luta. 49

Apenas no tempo e no espaço há pluralidade, uma vez que o princípio de


individuação torna plural – fragmentado e dividido – o que em-si é uno e indiviso: a
vontade aparece em toda parte na multiplicidade de indivíduos, não como coisa-em-si,
mas como fenômeno. O princípio de individuação permite que a vontade se manifeste
de igual modo em número infinito de fenômenos de uma maneira plena e íntegra. O
grau mais elevado de objetivação alcançado pela vontade é o ser humano, e é no ser
humano que o egoísmo pode manifestar-se da forma mais nítida. O indivíduo é o sujeito
cognoscente, e, enquanto tal, é o portador da totalidade do mundo objetivo, ou seja, o
indivíduo acaba por se considerar o centro do mundo, como possuidor e mantenedor de
toda realidade; toda a natureza e todos os indivíduos externos a ele não existem senão
em virtude de sua representação. Tudo o que não sou, não pode me interessar. Dessa
forma, nada pode ser mais importante para o indivíduo do que ele mesmo.
O comportamento egoísta tem sua origem na afirmação da vontade para
vida manifesta no plano fenomênico. Entre os seres dotados de entendimento, os
animais não humanos e humanos, o egoísmo é tido como a motivação fundamental,
porque ele pode ser entendido como um ímpeto para a existência – uma existência

49
MVR, §61, p.425-426, I 391. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Wir erinnern uns aus dem
zweiten Buch, daß in der ganzen Natur, auf allen Stufen der Objektivation des Willens, nothwendig ein
beständiger Kampf zwischen den Individuen aller Gattungen war, und eben dadurch sich ein innerer
Widerstreit des Willens zum Leben gegen sich selbst ausdrückte. Auf der höchsten Stufe der
Objektivation wird, wie alles Andere, auch jenes Phänomen sich in erhöhter Deutlichkeit darstellen und
sich daher weiter entziffern lassen. Zu diesem Zweck wollen wir zunächst dem E go is mu s, als dem
Ausgangspunkt alles Kampfes, in seiner Quelle nachspüren.“
49

desejada incondicionalmente – e para o bem-estar, o que o identifica com a afirmação


da vontade para vida. O ser humano ao se colocar e interpretar o mundo da perspectiva
de ser o seu centro acaba por relacionar tudo o que nele acontece consigo mesmo,
considerando-se merecedor da maior soma possível de benefícios e vantagens. Ele
busca desfrutar de tudo e tudo possuir, tendo como mote “tudo para mim e nada para o
outro”, 50 e como máxima51 neminem iuva, imo omnes, si forte conducit, laede [não
ajudes a ninguém, mas prejudica a todos, se isto te for útil].52
O egoísmo faz com que os indivíduos anteponham sua própria existência e
bem-estar a tudo o mais, apesar de frente a todos os outros seres serem apenas um.
Schopenhauer assevera que “alguns homens seriam capazes de assassinar um outro só
para engraxar suas botas com a gordura dele.”53 Isso significa que, por sermos todos
fenômenos de uma vontade única que entra em conflito consigo mesma na pluralidade
do mundo como representação, acabamos por instaurar relações prima facie amorais e,
consequentemente, antimorais entre os indivíduos. 54 E não é a instrução nem a reflexão,
i.e., não é de forma racional que se alcança a moralidade, pois, como a ética
schopenhaueriana enuncia, o querer não pode ser ensinado (velle non discitur). O
contraste maior gerado por essa forma de interpretar e agir no mundo é o zelo para
consigo mesmo e a indiferença na consideração do outro.

50
SFM, §14, p.121, III 667. No original alemão: „»Alles für mich, und nichts für die Andern«.“
51
Para Schopenhauer uma máxima apenas descreve, a posteriori, a regra de ligação pela qual uma causa
é relacionada ao seu efeito. No caso da ação, a máxima é a formulação do princípio que dá regularidade à
conduta do agente. Ela é a explicitação do padrão de ações nas mais variáveis circunstâncias. Pode-se
dizer, assim, que para Schopenhauer a máxima é, em última instância, a expressão da constância, da
regularidade, a regra que permanece imutável na observação de um certo conjunto de fenômenos que são
referidos ao agir humano, e assim ao caráter dessas ações. Para Kant, contudo, máxima seria um princípio
subjetivo da vontade que contém a regra prática determinada pela razão de acordo com o sujeito, i.e., ela
é o princípio de acordo com o qual o sujeito age; em outras palavras, é a tradução da regra autoelaborada
a priori para a condução da maneira habitual de agir; a ação moral passa pelo teste das máximas, em
confronto com o imperativo categórico, sendo que, desse modo, a máxima prescreve a forma pela qual o
indivíduo deve agir.
52
Cf. SFM, §7, p.72, III 628. Essa máxima é repetida, com uma pequena variação – “neminem iuva, imo
omnes, si forte conducit (ou seja, ainda sob certas condições [also immer noch bedingt]), laede!” [não
ajudes ninguém, mas prejudica a todos, se acaso fores levado a isso] em SFM, §14, p. 126, III 670.
53
SFM, §14, p.124, III 668. No original alemão: „[…] mancher Mensch wäre im Stande, einen andern
todtzuschlagen, bloß um mit dessen Fette sich die Stiefel zu schmieren.“
54
“É do ponto de vista da representação que existem, pois, indivíduos separados, e, aí, o egoísmo se faz
presente como o motivo antimoral por excelência”. CACCIOLA, M. Schopenhauer e a questão do
dogmatismo. São Paulo: EDUSP, 1994, p.158. Doravante abreviado por Schopenhauer e a Questão do
Dogmatismo, seguido de indicação de página.
50

Contudo, Schopenhauer não considera o egoísmo uma conduta estritamente


má; antes, deve-se entendê-lo como uma conduta moral indiferente,55 uma espécie de
destino inescapável, um ponto de vista usual, não sendo nem bom, nem mau, mas um
atributo predominante e recorrente dos indivíduos. O egoísmo nada mais é do que o
desejo de ser e continuar sendo. Exatamente aquilo que é a afirmação da vontade. O ser
egoísta busca continuar existindo e, se possível, em melhor situação; ele é aquele que
considera a afirmação de si fundamental, querendo conservar o seu próprio eu nas
melhores condições possíveis. Se for preciso, pode até prejudicar o outro, mas
prejudicar o outro não é para o egoísta um fim em si mesmo; trata-se apenas de um
meio para obter o seu fim.
Mediante a exposição feita, é possível inferir que enquanto cada indivíduo
busca avidamente assegurar sua existência nas melhores condições possíveis,
perseguindo seus fins pelos meios que julga adequado, certamente os meios de
realização do seu querer entrarão em conflito com o querer e os meios de realização do
querer de outro indivíduo. Tem-se, assim, uma sobreposição das esferas de afirmação da
vontade dos indivíduos, i.e., a concorrência, e a colisão de interesses. O conflito interno
da vontade emerge no mundo empírico como conflito entre todos os mais diversos graus
de objetivação da vontade, mas é o ser egoísta o responsável pelo conflito interno da
vontade conseguir atingir temível manifestação no mundo como representação,
engendrando uma luta generalizada entre os indivíduos, a guerra de todos contra todos.
Agora, deveremos nos deter na análise das consequências dessa guerra
originada do e pelo egoísmo, i.e., das consequências da autoafirmação da vontade de
cada indivíduo extrapolar a sua própria esfera de atuação e afirmação, entrando em
conflito com a de outros indivíduos. Existiriam meios para neutralizar ou amenizar
essas consequências indesejadas? As doutrinas do direito e do Estado podem ser
entendidas como uma resposta afirmativa para tal questão, restando-nos analisar em
qual medida e como.

55
Segundo Schopenhauer, o egoísmo produz ações moralmente indiferentes. (Cf. SFM, §16, p.138, III
680). Egoísmo e valor moral excluem-se um ao outro.
51

2.2.3. A Relação do Egoísmo com a Injustiça e o Injusto

O conceito de injustiça (Unrecht), a ser agora examinado, deriva


diretamente do conceito apresentado anteriormente, o egoísmo. As conexões que
Schopenhauer traça entre egoísmo e injustiça indicam que o egoísmo não é somente
uma motivação indiferente ou neutra, mas está necessariamente conectado com a
origem da guerra de todos contra todos. Schopenhauer escreve:

Já examinamos a primeira e a mais simples afirmação da vontade para vida, a


simples afirmação do próprio corpo, vale dizer, a exposição da vontade via
atos no tempo, na medida em que o corpo, em sua forma e finalidade, expõe
essa mesma vontade espacialmente, e não mais. Semelhante afirmação se
mostra como conservação do corpo por meio do emprego de suas forças. 56

E, no sentido de o egoísmo consistir na afirmação do próprio corpo,


Schopenhauer completa:

– Ora, na medida em que a vontade expõe aquela AUTOAFIRMAÇÃO do


próprio corpo em inumeráveis indivíduos, um ao lado do outro, essa
autoafirmação, em virtude do egoísmo inerente a todos, vai muito facilmente
além de si mesma até a NEGAÇÃO da mesma vontade que aparece em outro
indivíduo. 57

Nesse ponto da argumentação schopenhaueriana é possível notar a


influência de Thomas Hobbes (1588-1679), o que torna interessante a análise da forma
pela qual é estabelecido o diálogo do filósofo da vontade com a obra daquele que ficou
conhecido – talvez injustamente – como o filósofo do absolutismo. Para tanto, é
necessário um pequeno excurso em nossa exposição para trazer à luz alguns elementos
da argumentação hobbesiana.
É bem conhecido o filosofema hobbesiano acerca da tentativa de justificar e
legitimar um ordenamento político a partir da caracterização da natureza humana em um
estado de vida no qual não existem sociedade civil, poder coercitivo, leis que regulem a
interação entre os indivíduos, nem um poder que vincule os indivíduos entre si, que
estabeleça obrigações e deveres.

56
MVR, §62, p.428, I 393-394. No original: „Es ist bereits auseinandergesetzt, daß die erste und einfache
Bejahung des Willens zum Leben nur Bejahung des eigenen Leibes ist, d.h. Darstellung des Willens
durch Akte in der Zeit, in so weit schon der Leib, in seiner Form und Zweckmäßigkeit, denselben Willen
räumlich darstellt, und nicht weiter. Diese Bejahung zeigt sich als Erhaltung des Leibes, mittelst
Anwendung der eigenen Kräfte desselben.“
57
MVR, §62, p.429, I 394. No original: „— Indem nun aber der Wille jene S e lbst be ja hu ng des eigenen
Leibes in unzähligen Individuen neben einander darstellt, geht er, vermöge des Allen eigenthümlichen
Egoismus, sehr leicht in einem Individuo über diese Bejahung hinaus, bis zur Ver ne inu ng desselben,
im andern Individuo erscheinenden Willens.“
52

Ainda segundo Hobbes, os indivíduos são iguais por natureza 58 e por


natureza almejam a autoconservação, nas melhores condições possíveis. Este
movimento de evitar o dano e buscar a própria satisfação não é, segundo o filósofo
inglês, absurdo, nem repreensivo, nem contrário à reta razão (recta ratio) e, por não
contrariá-la, essas ações praticadas são reconhecidas como um certo tipo de direito –
que é definido como “a liberdade que cada homem tem em usar suas faculdades naturais
conforme sua reta razão.”59 O empenho em proteger a própria vida e integridade física,
pelos meios e pelas ações necessárias, é o que ele define como direito natural. 60
O ser humano descrito por Hobbes evita o que lhe desagrada e busca o que
lhe apraz. Se dois indivíduos almejam um mesmo fim, eles se tornam concorrentes. Essa
concorrência se dá num estado de vida sem regras, leis comuns, em que todos os meios
para manutenção da própria vida são permitidos, e no qual não há um árbitro para evitar
as indesejadas consequências funestas desse contexto. Trata-se de um ambiente de
extrema competição, no qual os indivíduos estão autorizados pelo direito natural a matar
uns aos outros para assegurarem os meios e os fins que possam garantir a
autoconservação.
A natureza do ser humano em um contexto no qual ela possa se manifestar
de modo pleno, i.e., um contexto desprovido de elementos limitadores, segundo
Hobbes, resulta na inferência de um estado em que os indivíduos competem entre si
para obterem seus fins, desconfiam uns dos outros porque não possuem garantias que
lhes assegurem a vida, e almejam à glória. Esse estado de vida foi denominado estado
de natureza, um estado caracterizado pela ausência de fatores restritivos, e no qual é
possível inferir que é permitido fazer o que se quer a quem julgar adequado, e se pode
ter, usar e usufruir o que for possível obter. Nele, portanto, não há diferença entre o meu
e o teu, i.e., não há propriedade privada – a posse de um bem não é peremptória: ela

58
Por natureza os homens são iguais, e embora existam diferenças entre eles em alguns aspectos, essas
diferenças não são tão grandes a ponto de permitir que alguém possa exigir algum tipo de status ou
benefício (Cf. Leviatã, p.183, p.[60], p. 78). Nem a força física serve como critério para se exigir algum
tipo de vantagem, uma vez que o mais fraco fisicamente pode superar o mais forte através da inteligência
ou através da aliança com outros homens. E aqueles que podem se afetar de igual modo são iguais. Cf.
FRATESCHI, Y. Estado e Direito em Thomas Hobbes. In: MACEDO, R. (org.) Curso de filosofia
política: do nascimento da filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008, p.300. Doravante abreviado como
Estado e Direito em Thomas Hobbes, seguido de indicação de página.
59
De Cive, p.94, p.27. “Right is the liberty each man has of using his natural faculties in accordance with
right reason”. No original latino: “Neque enim Iuris nomine aliud significatur, quam libertas quam
quisque habet facultatibus naturalibus secundum rectam rationem utendi.”
60
De Cive, p.94, p.27. Importante atentar para o fato de ser uma defesa da integridade física.
53

dura apenas enquanto existe a posse física desse bem –, e nem se pode definir o que é
justo ou injusto, uma vez que onde não há lei não há justiça.61 É um estado de vida no
qual todos os indivíduos possuem direito a tudo, e esse direito vai até onde vai o seu
poder. 62
Esses fatores tornam o estado de natureza um estado de vida insuportável,
um estado caracterizado pela guerra de todos contra todos, em que o homem é o lobo do
próprio homem. Como assinala Renato Janine Ribeiro, “Por natureza cada indivíduo
quer expandir-se; mas, fazendo-o, entra em guerra com os outros.” 63
Toda essa competição, essa falta de regras e de leis geram um estado de
desconfiança: não existem razões para acreditar na palavra do próximo, nem para
acreditar que não existe a concorrência por um mesmo fim. Não há razões suficientes
para crer que se está seguro, e não há garantias satisfatórias de vida: existe sempre o
medo da morte violenta à espreita; a desconfiança e as incertezas imperam, e a
autoconservação está em estado constante de ameaça. As incertezas são tantas que, se
um indivíduo se sentir ameaçado e julgar que a melhor forma de se preservar é atacando
primeiro, então esse ataque é legitimado – i.e., não pode ser censurado – pelo que
Hobbes chama de direito natural, porque, como visto, o indivíduo tem o direito de
proteger sua integridade física e vida pelos meios que julgar necessário.
Se a natureza do ser humano o faz competir, desconfiar dos outros, e
almejar à glória, não se pode afirmar que ele é um animal gregário, mas que sua
natureza tende à dissociação e à guerra. Contudo, não se deve cair no erro de julgar a
sua natureza como sendo simplesmente má. O ser humano no estado de natureza não é

61
Cf. Leviatã, p.188, p. [63], p. 81.
62
Segundo Richard Tuck, “A descrição completa do estado de natureza era claramente o coração da obra
hobbesiana; na verdade, ele foi o primeiro a cunhar esse termo, apesar da teoria de Grotius já ter
envolvido essa noção.” No original: “A full description of the state of nature was clearly at the heart of
Hobbes’s work; indeed, he was the first person to coin the term, though it is clear that Grotius’s theory in
fact involved such a notion” TUCK, R. The rights of war and peace – political thought and the
international order from Grotius to Kant. New York: Oxford University Press, 1999. p.135. Doravante
abreviado como The rights of War and Peace seguido de indicação de página.
“[...] para Hobbes o estado de natureza é o estado em que os homens vivem sem um poder político capaz
de obrigá-los a se respeitarem mutuamente e a obedecerem regras comuns. O estado de natureza é, em
suma, caracterizado pela ausência do Estado e de leis que possam regular as ações humanas e determinar
o que é o justo ou injusto”. (Estado e Direito em Thomas Hobbes, p.300).
63
RIBEIRO, R. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999. p.245. Pode-se dizer que essa asserção cabe também a Schopenhauer.
54

puramente mau. Ele apenas tenta suprir suas necessidades de autoconservação e de


felicidade num estado em que a falta de direitos impera.64
É no que se refere ao agir humano em sua camada mais epidérmica, i.e., no
fenômeno, na aparência, na consideração apenas da relação entre causas e
consequências, o ponto em que se pode notar a aproximação da filosofia
schopenhaueriana com a hobbesiana. Schopenhauer concorda com a exposição
hobbesiana acerca da caracterização do estado de natureza como uma guerra de todos
contra todos, e a entende como uma consequência de os seres humanos serem, em sua
maioria, egoístas, o que significa, em termos da filosofia schopenhaueriana, a colisão
das esferas de afirmação de vontade dos indivíduos. É exatamente a formulação da
dinâmica de colisão de interesses e finalidades descrita por Hobbes que é elogiada por
Schopenhauer, principalmente quando referida ao primeiro capítulo da obra De Cive:

[...] tão logo uma multidão se rebela contra toda lei e ordem: aí se mostra de
imediato, da maneira mais nítida, o bellum omnium contra omnes [a guerra
de todos contra todos], descrito primorosamente por Hobbes no primeiro
capítulo do De Cive. 65

Os dois filósofos compartilham da asserção de que os indivíduos entram em


conflito não só por causa da escassez de um determinado objeto de desejo, mas porque
possuem necessidades e interesses para os quais a satisfação necessita de meios, e
porque, devido ao compartilhamento do ambiente em que vivem, podem ambicionar
diferentes objetos por um mesmo meio ou por meios conflitantes. O perigo do conflito
subjaz, assim, na condição humana. Em Hobbes a natureza do ser humano em um
determinado contexto determina a situação de miséria e conflito. Em Schopenhauer, o
próprio ser humano determina sua situação de miséria, conflito e carência, porque assim
é a sua essência.
Contudo, o afastamento de Schopenhauer em relação a Hobbes se encontra
no fato dos filósofos possuírem metodologias e pressupostos teóricos diferentes:
enquanto o filósofo inglês tem como um dos pilares de seu sistema o paradigma

64
Pode-se dizer que a falta de direitos impera porque ter direito a tudo, nesse contexto, é como ter direito
a nada. O jovem Schopenhauer, em uma passagem de seus manuscritos, já reconhecera essa asserção:
“[...] de acordo com Hobbes, originalmente todos possuem direito a tudo, mas um direito exclusivamente
a nada.” HN I, Fragmento 527, Dresden 1816, Fólio h.h.h.h., p. 389. No original alemão: „[...]wie, nach
Hobbes, ursprünglich ein Jeder ein Recht auf ein Jedes Ding hat, aber auf keines ein ausschließliches[...].“
65
MVR, §61, p. 427, I 393. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „[…] sobald irgend ein
Haufen Menschen von allem Gesetz und Ordnung entbunden ist: da zeigt sich sogleich aufs Deutlichste
das bellum omnium contra omnes, welches Hobbes, im ersten Kapitel De Cive, trefflich geschildert hat.“
55

mecanicista e a análise empírica das ações do ser humano, i.e., a interpretação do


movimento e da interação de corpos materiais no espaço, inspirado por Galileu,
Schopenhauer pode, por considerar também o âmbito da experiência interna e por
elaborar uma metafísica imanente da vontade como arcabouço teórico, considerar a
conduta humana e o direito para além da consideração fundamentalmente empírica.
Dessa forma, a argumentação hobbesiana só pode considerar a justiça, a injustiça, e a
moral como convenções humanas adotadas no findar do estado de natureza e no ato de
fundação do Estado – o que de acordo com a ótica schopenhaueriana é uma incorreção,
como será explicitado adiante no texto através da exposição e análise dos argumentos
apresentados por Schopenhauer. Todavia, em um determinado ponto de sua exposição,
para contestar a visão hobbesiana, o filósofo da vontade se esquece da argumentação ad
rem e parte para argumentação ad hominem:

Quem, todavia, deseja pôr de lado a consideração puramente moral da


conduta humana, ou negá-la e a considerar somente segundo sua eficácia
exterior e consequência, pode certamente, com Hobbes, declarar justiça e
injustiça determinações convencionais, arbitrariamente adotadas e, por
conseguinte, inexistentes fora da lei positiva; e com isso jamais podemos
apontar-lhe na experiência externa o que não pertence a ela. É esse Hobbes o
mesmo que, em seu livro De principiis Geometrarum, caracteriza
estranhamente seu modo de pensamento, no todo empírico, negando por
completo a matemática propriamente pura, ao afirmar obstinadamente que o
ponto possui extensão e a linha possui largura, e, como nunca podemos
exibir-lhe um ponto sem extensão e uma linha sem largura, tampouco
podemos fazer-lhe compreender a aprioridade do direito, visto que ele se
fecha a qualquer conhecimento não empírico. 66

Para Schopenhauer, o egoísmo, como exposto, leva à invasão dos limites da


afirmação da vontade alheia. Essa invasão pode ocorrer por (i) ferimento / dano / lesão
(Verletzung), (ii) por destruição do corpo de outra pessoa ou (iii) quando ocorre a
imposição de uma vontade particular a uma vontade alheia – que é negada e passa,

66
MVR, p.438, I403-404. No original alemão: „Wer nun aber die rein moralische Betrachtung des
menschlichen Handelns bei Seite setzen, oder verleugnen, und das Handeln bloß nach dessen äußerer
Wirksamkeit und deren Erfolg betrachten will, der kann allerdings, mit Hobbes, Recht und Unrecht für
konventionelle, willkürlich angenommene und daher außer dem positiven Gesetz gar nicht vorhandene
Bestimmungen erklären, und wir können ihm nie durch äußere Erfahrung das beibringen, was nicht zur
äußern Erfahrung gehört; wie wir demselben Hobbes, der jene seine vollendet empirische Denkungsart
höchst merkwürdig dadurch charakterisirt, daß er in seinem Buche »De principiis Geometrarum« die
ganze eigentlich reine Mathematik ableugnet und hartnäckig behauptet, der Punkt habe Ausdehnung und
die Linie Breite, doch nie einen Punkt ohne Ausdehnung und eine Linie ohne Breite vorzeigen, also ihm
so wenig die Apriorität der Mathematik, als die Apriorität des Rechts beibringen können, weil er sich nun
einmal jeder nicht empirischen Erkenntniß verschließt.“
56

então, a servir à vontade impositiva, 67 e pode afetar a pessoa (Person), a liberdade


(Freiheit), a propriedade (Eigentum), a honra (Ehre) e o corpo (Leib).68 Essa afirmação
da vontade para além do próprio corpo, mediante a negação da vontade de outrem, é
definida por Schopenhauer como injustiça (Unrecht).
Quem sofre injustiça – quem tem a vontade negada por uma vontade
estranha – sente esta invasão na esfera de afirmação do próprio corpo – a primeira e
mais básica afirmação da vontade para vida. Mas é importante ressaltar que, para
Schopenhauer, o praticante da injustiça também está sendo injusto consigo mesmo, uma
vez que a vontade dele e a vontade de quem sofre a injustiça são, em essência
metafísica, a mesma vontade: opressor e oprimido são uma só e mesma coisa; é a
vontade dilacerando a si mesma (selbst zerfleischen). O opressor, o praticante da
injustiça, apreende isso através de um sentimento de difícil compreensão e explicação, a
saber, o remorso (Gewissensbiß) – o abatimento da consciência que percebe ter
cometido uma falta, um erro – ou injustiça praticada (ausgeübten Unrechts).
O sentimento de remorso é uma espécie de confissão involuntária do
praticante da injustiça do seu ato; um sentimento turvo de que aquilo que está sendo
considerado como diferença, devido ao princípio de individuação, é, no fundo,
identidade; trata-se do conhecimento nebuloso do fato de que a vontade dilacera a si
mesma.
Após definir o que é injustiça, Schopenhauer caracteriza cinco graus em que
ela se manifesta, estabelecendo como critério para tal classificação o grau de
objetivação da vontade. Para Schopenhauer, a vontade manifesta-se em graus no mundo
fenomênico, no mundo como representação. 69 O grau mais baixo de manifestação da

67
Cf. MVR, §62, p.429, I 394.
68
Aqui temos uma pequena discrepância entre formulações: somente no escrito SFM, do ano de 1840,
Schopenhauer inclui a invasão dos limites da afirmação da vontade que correspondem à liberdade como
uma das possibilidades de ocorrência da injustiça (Cf. SFM, §17, p.150-151, III 689-690). Na formulação
dos PP, datada do ano de 1851, a liberdade não é mencionada como uma categoria passível de ser afetada
de forma a ser configurada uma injustiça (Cf. PP, §121, p. 86, V 264). Em última instância, o ataque à
pessoa, à liberdade, à propriedade e à honra parecem se configurar como ataques à esfera de afirmação da
vontade do indivíduo, assim como o corpo, que é mencionado no contexto da destruição, dano, lesão ou
ferimento, mas não como ponto passível de ser afetado. Como parece estranho desconsiderar, a partir
dessa perspectiva de interpretação do conceito, um elemento tão importante como a liberdade, decidiu-se
por manter a formulação feita em SFM por considerá-la a mais completa, adicionando o corpo como lugar
passível de ser afetado por injustiça.
69
“Seu emergir [da vontade] na visibilidade, sua objetivação, possui tantas infindas gradações, como a
existente entre a mais fraca luz crepuscular e a mais brilhante luz solar, entre o mais forte tom e o mais
baixo eco.” MVR, §25, p.189, I 152. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „sein
57

vontade engloba as forças mais gerais da natureza (die allgemeinsten Kräfte der Natur),
as quais são consideradas pelo autor como fenômenos imediatos – e ele usa como
exemplo os casos da gravidade e da eletricidade; em seguida ele aponta nessa gradação
o reino inorgânico (unorganisches Reich), o reino vegetal (Pflanzenreich), os animais
não humanos (Thiere), e, por fim, o ser humano (Mensch). Ele escreve: “Os reinos da
natureza formam uma pirâmide, cujo ápice é o ser humano.” 70
Schopenhauer identifica como grau mais flagrante de injustiça o
canibalismo, pois nele ocorre, de forma concreta, a contradição da vontade em seu mais
elevado grau de objetivação, no ser humano. Nesse evento observa-se a manifestação
mais nítida e plena da vontade consumir a si mesma em um outro corpo, no qual
também ela se manifesta de forma mais nítida e plena. Em seguida, o filósofo aponta o
homicídio como segundo grau mais alto de injustiça.71 A leitura do texto deixa
subentendido que para fins de classificação do grau de injustiça apenas o assassinato de
outro animal humano é considerado, não incluindo aí o assassinato de um animal não
humano. Diferindo apenas em grau do homicídio, mas em essência igual a ele, o autor
aponta a mutilação intencional ou a mera lesão do corpo de outro indivíduo. Como
quarto grau na escala de formas de injustiça tem-se o subjugar um indivíduo, fazendo
com que a vontade dele seja compelida a trabalhar para uma vontade estranha a dele. 72
O quinto grau de injustiça se manifesta no ataque à propriedade alheia.
O filósofo define propriedade (Eigentum), de forma genérica, como aquilo
que foi trabalhado por intermédio das próprias forças.73 De acordo com essa definição,
o trabalho do corpo alheio e a propriedade confundem-se e identificam-se, fazendo com
que o ato de atacar um corpo sem vida, i.e., o ato de atacar uma propriedade identificada

Hervortreten in die Sichtbarkeit, seine Objektivation, hat so unendliche Abstufungen, wie zwischen der
schwächsten Dämmerung und dem hellsten Sonnenlicht, dem stärksten Ton und dem leisesten
Nachklange sind.”
70
MVR, §28, p.219, I 182-183. No original alemão: „sie [alle Gestaltungen der Thiere, das Pflanzenreich,
die Unorganischen] bilden eine Pyramide, deren Spitze der Mensch ist.“
Se formos interpretar a filosofia schopenhaueriana de forma estrita, a partir do que ele escreve sobre as
diferenças entre os gêneros feminino e masculino, essa gradação teria a especificidade de ter o gênero
masculino como grau mais intenso da manifestação da vontade no plano fenomênico. O indivíduo genial
constituiria o seu ápice.
71
Schopenhauer escreve que o horror no homicídio cometido ou o tremor em vir a cometê-lo são os
responsáveis pelo apego à vida, condição inerente a todo ser vivo enquanto fenômeno da vontade para
vida (Cf. MVR, §62, p.430, I 395).
72
Essa lógica de funcionamento caracteriza a escravidão (Sklaverei) e será analisada adiante no texto.
73
Cf. MVR, §62, p.430, I 396.
58

com um corpo alheio, também seja injustiça. 74 Dessa maneira, quem usurpa uma
propriedade serve-se das forças do corpo, da vontade ali objetivada, a fim de fazê-las
servir à vontade objetivada no corpo usurpador. Em suas notas de aula sobre a ética
(1820), Schopenhauer define a propriedade da seguinte forma:

aquilo que não pode ser tomado do indivíduo sem incorrer em injustiça; o
que pode ser defendido pelo indivíduo até suas últimas consequências sem
cair em injustiça; o que se consegue mediante suas próprias forças e cuja
subtração priva a vontade que se objetiva nesse corpo das forças empenhadas
por seu corpo. 75

Nessas mesmas preleções, o filósofo da vontade expõe a temática de forma


mais flexível. 76 Ele reconhece os mesmos cinco graus de injustiça, mas admite duas
pequenas modificações: (i) que a ação possa ser de natureza mista e corresponder a mais
de um dos graus ao mesmo tempo, 77 e (ii) uma rubrica (Rubrik) especial de injustiça,
que é derivada do não cumprimento das obrigações relativas às relações sexuais
(Sexualverhältniß) – que consistiria um sexto tipo de injustiça.78
Esse sexto tipo de injustiça é um tipo muito específico e, como mencionado,
é tratado de forma detida nas preleções de Berlim sobre a ética, embora seja
mencionada de forma en passant no capítulo XXVII – Über die Weiber (Sobre as
Mulheres) de seu escrito PP. Trata-se, basicamente, do não cumprimento de um acordo
que deve ser estabelecido entre homens e mulheres, aos moldes de um contrato. O
homem deverá prometer a mulher com a qual mantiver relações sexuais que não a
abandonará e que tomará as providências necessárias quanto ao seu cuidado e sustento.
Dessa obrigação assumida pelo homem, Schopenhauer deduz a necessidade de
fidelidade por parte da mulher – fidelidade entendida como o não ter relações sexuais
com outro homem –, de forma a não colocar em jogo a paternidade da prole a ser
concebida; da fidelidade da mulher, Schopenhauer deriva a necessária fidelidade do

74
Em suma, atacar uma propriedade identificada com o corpo de outro indivíduo equivale a atacar esse
indivíduo.
75
HN, Metafísica dos Costumes, p.93, p.153. No original alemão: „Eigentliches Eigenthum, d. h. solches,
welches, ohne Unrecht, dem Menschen nicht genommen, hingegen ohne Unrecht aufs Aeußerste von ihm
vertheidigt werden kann, das kann, unsrer Ableitung des Unrechts zufolge, nur dasjenige seyn, was durch
seine Kräfte bearbeitet ist, durch Entziehung dessen man daher die darauf verwendeten Kräfte seines
Leibes, dem in diesem Leibe sich objektivirenden Willen entzieht, um solche Kräfte dem in einem andern
Leibe objektivirten Willen dienen zu lassen.“
76
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p. 90-92, p. 150-152.
77
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.90, p.150.
78
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.90, p.150.
59

homem, o que para ele significa o compromisso de restringir sua capacidade de


satisfazer o impulso sexual feminino a uma só mulher. Mas a fidelidade do homem a
uma única mulher dura enquanto durarem as condições dela em satisfazer sexualmente
o impulso sexual do homem; aquele que toma uma segunda mulher mais jovem quando
a primeira mulher não consegue mais satisfazê-lo, se possuir condições materiais para
manter as duas mulheres e cuidar de todos os filhos, segundo o autor, do ponto de vista
moral não cometeria nenhuma injustiça, apesar de muitos sistemas jurídicos proibirem a
poligamia.
Contudo, esse tipo de injustiça parece ser irrelevante na constituição da
doutrina do direito do autor, e, talvez, por essa razão, não apareça nas formulações
posteriores do conceito de injustiça dos escritos publicados, tais como SFM (1840),
MVR II (1844), e PP (1851); o filósofo apenas se refere novamente a esse tipo de
injustiça no capítulo de PP que versa sobre as mulheres, em um registro outro que o da
formulação da doutrina do direito.
Toda a constituição da tipologia da injustiça parece ser baseada e se dar no
registro da isonomia entre os graus de objetivação da vontade considerados. O
raciocínio é feito levando em consideração preponderantemente as ações que ocorrem
entre seres humanos, i.e., no mais alto grau de manifestação da vontade; é entre os
animais humanos que o canibalismo, o homicídio, a lesão, o constrangimento de agir
guiado pela vontade de outro, o ataque à propriedade, e os tipos de relações sexuais
estabelecidos são pensados como possibilidade de concreção de ações injustas. No
entanto, algumas relações interespécies, como, por exemplo, a tortura, o uso, e o
consumo de animais por seres humanos, aparecem na reflexão do autor.
A tortura e os maus tratos são considerados atos de crueldade, e, por isso,
são classificados como moralmente condenáveis e injustos. Já o consumo de carne
animal e o uso de suas forças, no entanto, não são considerados condutas moralmente
injustas porque, segundo Schopenhauer, possuem justificativas: O autor justifica o fato
da vontade consumir a si mesma e o uso das forças de um corpo alheio por outro corpo,
quando em diferentes graus de objetivação, com o argumento que a privação da carne
ou do uso da força do animal não humano poderiam trazer mais sofrimento ao ser
humano que a abstinência do consumo de carne ou do auxílio animal nos trabalhos
cotidianos, especialmente os trabalhos mais pesados. Em outras palavras, matar um
animal para consumo não configura uma injustiça, como, da mesma forma, utilizar das
60

forças do corpo animal para proveito humano, desde que justificado pelo contexto e de
que não seja feito de forma cruel, também não o é. Existem, ao menos, duas passagens
na obra publicada do autor que tentam justificar esses tipos de posicionamentos. Em
MVR, Schopenhauer escreve:

O direito do ser humano à vida e à força dos animais baseia-se no fato de


que, com o aumento da clareza de consciência, cresce em igual medida o
sofrimento; e a dor, que o animal sofre através da morte e do trabalho, não é
tão grande quanto aquela que o ser humano sofreria com a privação de carne
ou de força do animal. O ser humano, pois, na afirmação de sua existência,
pode ir até a negação da existência do animal, e a vontade para vida no todo
suporta aí menos sofrimento que no caso inverso. Isso ao mesmo tempo
determina o grau de uso que se pode fazer das forças animais, sem cometer
injustiça, o que, entretanto, é frequentemente desrespeitado, particularmente
em relação aos animais de carga e aos cães de caça; contra o que, portanto, a
sociedade protetora dos animais em especial orienta sua atividade. Aquele
direito do ser humano, na minha opinião, não se estende à vivissecção,
sobretudo em animais superiores. Já o inseto, por outro lado, não sofre
através da sua morte quanto o ser humano sofre com a sua picada. – Isto os
hindus não o perceberam. 79

E, em SFM pode-se ler:

Que, de resto, a compaixão para com os animais não tenha de levar tão longe
a ponto de, como os brâmanes, abstermo-nos da nutrição animal baseia-se no
fato de que, na natureza, a aptidão para sofrer caminha passo a passo com a
inteligência. Por isso o ser humano, pela privação da nutrição animal,
principalmente no norte, sofreria mais do que sofre o animal por meio de uma
morte rápida e sempre imprevista, que, todavia, dever-se-ia aliviar ainda mais
mediante o clorofórmio. Em contrapartida, sem nutrição animal, o gênero
humano no norte nem ao menos pode fazer o animal trabalhar para ele, e só o
excesso de um esforço imposto torna-se crueldade 80.

79
MVR, §66, nota do autor, p.474, I 441. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Das Recht
des Menschen auf das Leben und die Kräfte der Thiere beruht darauf, daß, weil mit der Steigerung der
Klarheit des Bewußtseyns das Leiden sich gleichmäßig steigert, der Schmerz, welchen das Thier durch
den Tod, oder die Arbeit leidet, noch nicht so groß ist, wie der, welchen der Mensch durch die bloße
Entbehrung des Fleisches, oder der Kräfte des Thieres leiden würde, der Mensch daher in der Bejahung
seines Daseyns bis zur Verneinung des Daseyns des Thieres gehen kann, und der Wille zum Leben im
Ganzen dadurch weniger Leiden trägt, als wenn man es umgekehrt hielte. Dies bestimmt zugleich den
Grad des Gebrauchs, den der Mensch ohne Unrecht von den Kräften der Thiere machen darf, welchen
man aber oft überschreitet, besonders bei Lastthieren und Jagdhunden; wogegen daher die Thätigkeit der
Thier-Schutz-Gesellschaften besonders gerichtet ist. Auch erstreckt jenes Recht, meiner Ansicht nach,
sich nicht auf Vivisektionen, zumal der oberen Thiere. Hingegen leidet das Insekt durch seinen Tod noch
nicht so viel, wie der Mensch durch dessen Stich. - Die Hindu sehen dies nicht ein.“
80
SFM, §19, p.183, III 715. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Daß übrigens das
Mitleid mit Thieren nicht so weit führen muß, daß wir, wie die Brahmanen, uns der thierischen Nahrung
zu enthalten hätten, beruht darauf, daß in der Natur die Fähigkeit zum Leiden gleichen Schritt hält mit der
Intelligenz; weshalb der Mensch durch Entbehrung der thierischen Nahrung, zumal im Norden, mehr
leiden würde, als das Thier durch einen schnellen und stets unvorhergesehenen Tod, welchen man jedoch
mittelst Chloroform noch mehr erleichtern sollte. Ohne thierische Nahrung hingegen würde das
Menschengeschlecht im Norden nicht ein Mal bestehen können. Nach dem selben Maaßstabe läßt der
61

A Ética da Compaixão (Mitleidsethik) e a Doutrina do Direito (Rechtslehre)


schopenhauerianas podem até abarcar e considerar o sofrimento animal em suas
reflexões, mas ele será sempre considerado um tipo de sofrimento inferior – porque os
animais não humanos são objetivações da vontade em grau inferior aos animais
humanos – e será sempre considerado no confronto e em relação ao sofrimento humano.
É prima facie a partir dos interesses, das vantagens ou desvantagens, de um animal
humano que a ação direcionada a um animal não humano é classificada como não
injusta ou injusta. Éticas contemporâneas considerariam o posicionamento de
Schopenhauer especista. Tal juízo poderia ser visto como anacrônico, mas é certo que,
ao menos, deve-se admitir que o modo pelo qual a ética e a doutrina do direito
schopenhauerianas tratam a questão denotam um caráter antropocêntrico, o qual,
juntamente com a tradição, coloca o ser humano como o centro da reflexão e em lugar
privilegiado em relação aos demais seres da natureza.
Nessa seção do texto, apresentou-se a relação entre o egoísmo e a injustiça,
bem como os graus ou rubricas pelos quais é possível classificar uma ação como injusta.
Deve-se, agora, considerar as formas pelas quais a injustiça pode ser praticada.

2.2.4. A Prática da Injustiça

A prática ou o exercício (Ausübung) da injustiça em geral ocorre pela


violência (Gewalt) ou pela astúcia (List) – o que, em termos morais, são em essência a
mesma coisa.81 Como exposto anteriormente, os casos de injustiça, excetuando-se
homicídio e lesão corporal, são redutíveis ao fato de obrigar outro indivíduo a servir, em
vez de a própria vontade, a uma vontade particular. Para tanto, pode-se optar pela via da
violência, onde o outro é obrigado a seguir uma vontade estranha à própria mediante
causalidade física; ou, pode-se optar pela via da astúcia, onde o outro é obrigado a
seguir uma vontade estranha à própria mediante motivação, i.e., por meio da
causalidade que passa pelo conhecimento.

Mensch das Thier auch für sich arbeiten, und nur das Uebermaaß der aufgelegten Anstrengung wird zur
Grausamkeit.“
81
Cf. MVR, §62, p.432, I 398.
62

Nesse segundo caso, apresentam-se motivos aparentes (Scheinmotive) à


vontade de quem sofre a ação injusta, em função dos quais a vontade dele segue uma
vontade estranha, embora ele acredite que os motivos aos quais segue são provenientes
de sua própria vontade. Esta falsificação do conhecimento alheio caracteriza a mentira
(Lüge). A mentira, portanto, cria pseudomotivos (motivos aparentes) e, assim, falseia o
conhecimento do indivíduo. Desta forma, Schopenhauer infere que toda mentira supõe
tanta injustiça como qualquer ato de violência.
Qualquer imposição de uma mentira é uma injustiça, entretanto, a recusa de
uma declaração – o não dizer a verdade – não é passível de ser classificado como tal.
Isso significa que quem se recusa a dar uma informação não pratica injustiça, mas quem
fornece uma informação errada – e tem consciência da falsidade de tal informação – a
exerce. A mentira ataca o mecanismo do querer: a relação entre vontade e
conhecimento; dessa forma, mentir significa proferir deliberadamente uma falsa
declaração, tendo por fim negar a vontade alheia para que a vontade própria seja
imposta, exatamente como faz a violência. Neste sentido, Schopenhauer escreve:

[...] visto que [a mentira] em si tem por fim estender o domínio da minha
vontade sobre os outros indivíduos, portanto intenta afirmar a vontade pessoal
através da negação da vontade alheia, exatamente como o faz a violência. 82

Do exposto, segue-se a equiparação moral da ação de mentir com atos de


violência,83 o que é mais um elemento corroborante de que a mentira se configura como
injustiça. A mentira perfeita, segundo Schopenhauer, é a quebra de contrato (gebrocher
Vertrag), 84 que é o não cumprimento de um compromisso assumido, firmado e dado
como certo, no qual foi empenhada a palavra, deu-se garantias, e firmou-se a boa fé em
cumprir o acordado. Aqui é estabelecida a relação entre a promessa (Versprechen) e o
contrato (Vertrag): ambos são um pacto – pessoal ou jurídico – e, quando não
cumpridos tornam-se, segundo Schopenhauer, as mais solenes mentiras.
A estrutura pela qual a mentira atua é bem explicada pelo professor
Oswaldo Giacoia Junior:

82
MVR, §62, p.433, I 399. No original: „weil sie schon als solche zum Zweck hat, die Herrschaft meines
Willens auf fremde Individuen auszudehnen, also meinen Willen durch Verneinung des ihrigen zu
bejahen, so gut wie die Gewalt“.
83
Em suas notas de aula Schopenhauer escreve: “A mentira supõe tanta injustiça como qualquer ato de
violência”. HN, Metafísica dos Costumes, p.96, p.177. No original alemão: „Aus dem Gesagten folgt, daß
jede Lüge eben so Unrecht ist, wie jede Gewaltthätigkeit.“
84
Cf. MVR, §62, p.433, I 399.
63

Na medida em que falsas declarações constituem motivações, que o intelecto


exibe como meio de influenciar a vontade ou arbítrio, mentir implica em
invadir a esfera de afirmação da vontade de viver, tal como esta se apresenta
na pessoa singular (no corpo) de outro indivíduo, sem seu livre
consentimento, sujeitando-a, por esse desvio, à vontade ou arbítrio de um
outro indivíduo. Portanto, os efeitos são os mesmos visados por quem
constrange outrem mediante o emprego da violência física, a agir
contrariamente à sua própria vontade. 85

Ao retomar o fio condutor da argumentação, tem-se a ponderação acerca de


qual das formas pelas quais se exerce a injustiça é pior: o autor argumenta que a
injustiça por violência não é tão deplorável (schimpflich) para o praticante quanto a
injustiça por astúcia (List), pois a injustiça por violência evidencia a força física,
imposta aos seres humanos em todas as circunstâncias, enquanto a injustiça por astúcia
rebaixa o agente tanto em termos físicos quanto em termos morais.
Schopenhauer escreve que a aversão produzida pela malícia (Arglist), pela
deslealdade (Treulosigkeit) e pela traição (Verrat) nos indivíduos funda-se no fato de
que essas rompem os fatores que ainda agregam exteriormente em unidade a vontade, a
saber, a confiança e a honestidade. Estes fatores gregários impõem barreiras às más
consequências do egoísmo provenientes da fragmentação da vontade na pluralidade de
indivíduos do mundo como representação – fragmentação engendrada pelos princípios
de individuação e de razão suficiente. A deslealdade e a traição atuam no sentido
contrário: dão às consequências do egoísmo espaço ilimitado de ação.
Em seu escrito não premiado, SFM, Schopenhauer especula acerca do
tamanho (Größe) da injustiça. Segundo o filósofo, ela é proporcional ao tamanho da
reprovação que a ela se impõe, e é reconhecida na vida cotidiana, i.e., de forma
empírica. O autor chega a conceber uma fórmula matemática para o cálculo do tamanho
da injustiça: “o tamanho da injustiça de minha ação é igual ao tamanho do mal que ela
inflige a outrem, dividida pelo tamanho da vantagem que consegui com ela.” 86
Existe, ainda, um tipo especial de injustiça, que não é um grau de injustiça
como os mencionados acima, mas uma combinação de ações injustas: trata-se da

85
GIACOIA, O. A mentira e as luzes: aspectos da querela a respeito de um presumível direito de mentir.
In: PUENTE, F. R. (Org.). Os filósofos e a mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG; Departamento de
Filosofia – FAFICH/UFMG, 2002, p.18-19. Doravante abreviado como A Mentira e as Luzes, seguido de
indicação de página.
86
Contudo, não existe nessa passagem nenhuma indicação de como quantificar as variáveis dessa fórmula
matemática. SFM, § 17, p.150, III 689. No original alemão: „die Größe der Ungerechtigkeit meiner
Handlung ist gleich der Größe des Uebels, welches ich einem Andern dadurch zufüge, dividirt durch die
Größe des Vortheils, den ich selbst dadurch erlange.“
64

injustiça dupla (doppelte Ungerechtigkeit). Ela consiste no fato de um indivíduo assumir


um compromisso para com outro indivíduo no que se refere à proteção. O não
cumprimento do compromisso, por si só, já se configuraria como uma injustiça,87 mas,
além disso, o esperado protetor agride e fere o suposto protegido exatamente no âmbito
em que deveria protegê-lo. A ruptura com o compromisso assumido para a proteção e a
agressão justamente nesse ponto podem ser pensadas e entendidas como uma traição
(Verrat), ação que é o horror do mundo. Schopenhauer dá alguns exemplos, como:

Este é, por exemplo, o caso em que o vigia encarregado ou o acompanhante


torna-se assassino, o protetor confiável torna-se ladrão, o tutor tira do pupilo
a sua propriedade, o advogado prevarica, aquele a quem se pede um conselho
dá intencionalmente um conselho pernicioso [...]. 88

Ainda sobre a injustiça dupla, seria interessante analisar um caso particular


o qual Schopenhauer não considera, mas que poderia ser classificado sob essa rubrica: a
injustiça provocada sobre alguém que já está em uma situação de injustiça gerada pela
imposição de uma vontade particular a uma vontade alheia, a qual é negada e obrigada a
servir à vontade impositiva, i.e., uma segunda injustiça praticada sobre quem está em
situação de pobreza (Armuth), proletariado (Proletariats), escravidão (Sklaverei), ou
servidão (Leibeigen) por aquele responsável por exercer essa primeira injustiça.

2.2.5. O Subjugar a Vontade de Outro Indivíduo: Pobreza, Proletariado,

Escravidão e Servidão

No primeiro tomo de MVR é bem claro o tom de condenação de


Schopenhauer, principalmente, à escravidão. A partir da análise direta da questão, o
subjugar um indivíduo é classificado como uma injustiça, sendo tal ação recriminada. Já
no capítulo 46 do segundo tomo de sua obra principal, a questão aparece em um
contexto um pouco diverso, de forma indireta. Durante sua argumentação, na qual o
filósofo expõe uma série de flagelos do mundo como consequência e decorrência
daquilo que o próprio mundo é essencialmente, vontade, é possível ler:

87
Schopenhauer define dever (Verpflichtung) como toda ação que se omitida causa injustiça.
88
SFM, §17, p.151, III 690. No original alemão: „Dies ist z.B. der Fall, wo der bestellte Wächter, oder
Geleitsmann, zum Mörder, der betraute Hüter zum Dieb wird, der Vormund die Mündel um ihr
Eigenthum bringt, der Advokat prävaricirt, der Richter sich bestechen läßt, der um Rath Gebetene dem
Frager absichtlich einen verderblichen Rath ertheilt;“
65

Como o ser humano se comporta com o ser humano, mostra, por exemplo, a
escravidão dos negros, a qual possui como finalidade o açúcar e o café. Mas
não é preciso ir muito longe: aos cinco anos começar a trabalhar em uma
tecelagem, ou em outra fábrica qualquer, e permanecer sentado, no início, por
dez horas, depois por doze e enfim por quatorze, continuando a fazer o
mesmo trabalho mecânico, é pagar um preço caro pelo prazer de respirar. É
essa a sorte de milhões [de pessoas], e muitos outros milhões possuem uma
sorte análoga. 89

Nessa passagem, a perversidade das relações humanas é apresentada de uma


forma um tanto conformada, resignada. O subjugar outro indivíduo não é analisado
diretamente, mas aparece como uma consequência daquilo que o mundo é. E o mundo
é, como veremos adiante no texto ao analisarmos o conceito de justiça eterna,90 aquilo
que ele não deveria ser, mas, ao mesmo tempo, o mundo só pode ser aquilo que ele é:
vontade.
Em SFM, encontra-se a formulação do conceito de injustiça que acaba por
englobar a escravidão. O termo escravidão aparece grafado apenas no §18 – A virtude
da caridade (Die Tugend der Menschenliebe), em um contexto no qual Schopenhauer
argumenta que, a partir da compaixão, a escravidão deveria ser combatida e negada:

Aparece em tamanho grande quando, depois de uma longa reflexão e debates


sérios, a generosa nação inglesa despende vinte milhões de libras esterlinas
para comprar a liberdade dos escravos negros nas suas colônias, sob o
aplauso jubiloso do mundo inteiro. Quem quiser recusar a esta bela ação em
grande estilo a motivação da compaixão para atribuí-la ao cristianismo, reflita
que em todo o Novo Testamento não é dita nenhuma palavra contra a
escravidão, por ser uma coisa tão generalizada antigamente que, ainda em
1860, na América do Norte, nos debates sobre a escravidão, alguém referiu-
se ao fato de que Abraão e Jacó também mantinham escravos. 91

89
MVR II, Kapitel 46 – Von der Nichtigkeit und dem Leiden des Lebens, II 661. No original alemão:
„Wie der Mensch mit dem Menschen verfährt, zeigt z.B. die Negersklaverei, deren Endzweck Zucker und
Kaffee ist. Aber man braucht nicht so weit zu gehen: im Alter von fünf Jahren eintreten in die
Garnspinnerei, oder sonstige Fabrik, und von Dem an erst 10, dann 12, endlich 14 Stunden täglich darin
sitzen und die selbe mechanische Arbeit verrichten, heißt das Vergnügen, Athem zu holen, theuer
erkaufen. Dies aber ist das Schicksal von Millionen, und viele andere Millionen haben ein analoges.“
90
Cf. 2.2.20 Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça Eterna, p.119.
91
Schopenhauer parece desconsiderar o contexto histórico e os fatores econômicos que levaram a
Inglaterra a abolir a escravidão e fazer pressão para que outros países também o fizessem. SFM, §18 A
virtude da caridade, p.163-164 , III 700. No original alemão: „Er tritt im Großen ein, wenn, nach langer
Ueberlegung und schwerer Debatte, die hochherzige Brittische Nation 20 Millionen Pfund Sterling
hingiebt, um den Negersklaven in ihren Kolonien die Freiheit zu erkaufen; unter dem Beifallsjubel einer
ganzen Welt. Wer diese schöne Handlung im großen Stil, dem Mitleid als Triebfeder absprechen wollte,
um sie dem Christenthum zuzuschreiben, bedenke, daß im ganzen Neuen Testament kein Wort gegen die
Sklaverei gesagt ist; so allgemein auch damals die Sache war; und daß vielmehr, noch 1860, in Nord-
Amerika, bei Debatten über die Sklaverei, Einer sich darauf berufen hat, daß Abraham und Jakob auch
Sklaven gehalten haben.“
66

Quando passamos à leitura dos PP, podemos notar dois contextos distintos
nos quais o subjugar outro indivíduo é tratado. No capítulo V, Algumas palavras sobre
o panteísmo (Einige Worte über den Pantheismus), a situação é muito próxima à
relatada no segundo tomo de MVR:

Pois deveria se tratar de um Deus muito mal esclarecido, que não soube
encontrar melhor divertimento que se transformar num mundo como este, tão
faminto, e para aqui suportar, na figura de inumeráveis milhões de seres
vivos, porém aterrorizados e maltratados, que em sua totalidade conseguem
existir momentaneamente apenas se devorando uns aos outros, a lástima, a
necessidade e a morte, sem medida e sem finalidade, na figura, por exemplo,
de seis milhões de escravos negros que recebem diariamente em média
sessenta milhões de chicotadas sobre o corpo nu, e na figura de três milhões
de tecelões europeus que vegetam debilmente com fome e desgosto, em
catres mofados ou salões de fábrica desolados etc. Que passatempo para um
deus!. 92

Neste ponto, novamente Schopenhauer expõe as mazelas do mundo como


resultado da forma pela qual a vontade se manifesta, como resultado daquilo que a
vontade é. Não só a escravidão é retratada como uma situação de miséria e sofrimento,
mas também o trabalho fabril. Ambos servem de exemplo para o autor corroborar um
ponto de vista em um outro contexto argumentativo.
A situação muda um pouco de figura quando chegamos ao capítulo IX,
Sobre a doutrina do direito e a política (Zur Rechtslehre und Politik). Ao contrário do
tom de condenação assumido em MVR e SFM, no §125 de PP – cujo foco da
argumentação é a justificação para uma visão positiva do ócio a partir de suas
consequências e do que é gerado através dele, onde questões como o luxo, a escravidão,
e a liberdade acabam por ser agregadas a esse debate – o autor empreende uma análise
mais minuciosa e refinada das formas pelas quais uma vontade pode servir outra
vontade, e chega, apesar de classificá-la como injustiça, a apontar algumas vantagens
que a escravidão poderia ter.
Ter as próprias forças produtivas usurpadas por outro indivíduo configura
um tipo de injustiça e pode receber, segundo Schopenhauer, alguns nomes, como

92
PP, §69, p.146-147, V 107. No original alemão: „Es müßte ja offenbar ein übel berathener Gott seyn,
der sich keinen bessern Spaaß zu machen verstände, als sich in eine Welt, wie die vorliegende, zu
verwandeln, in so eine hungrige Welt, um daselbst in Gestalt zahlloser Millionen lebender, aber
geängstigter und gequälter Wesen, die sämmtlich nur dadurch eine Weile bestehn, daß eines das andere
auffrißt, Jammer, Noth und Tod, ohne Maaß und Ziel zu erdulden, z.B. in Gestalt von 6 Millionen
Negersklaven, täglich, im Durchschnitt, 60 Millionen Peitschenhiebe auf bloßem Leibe zu empfangen,
und in Gestalt von 3 Millionen Europäischer Weber unter Hunger und Kummer in dumpfigen Kammern
oder trostlosen Fabriksälen schwach zu vegetiren u.dgl.m. Das wäre mir eine Kurzweil für einen Gott!“
67

pobreza (Armuth), proletariado (Proletariats), escravidão (Sklaverei), e servidão


(Leibeigen). Nos dois primeiros casos (pobreza e proletariado) a injustiça está assentada
na astúcia; nos dois últimos (escravidão e servidão), na violência. Trata-se de uma
situação de sobrecarga de trabalho e de escassa satisfação das necessidades próprias.
Mas, para Schopenhauer, essa sobrecarga e situação podem ser justificadas de duas
formas diferentes: (i) servir à vontade de outro indivíduo pode ter suas vantagens, pois o
senhor tem de cuidar do servo quando este adoece, envelhece ou se torna incapaz, ao
mesmo tempo em que o escravo pode melhorar sua posição, pois, segundo
Schopenhauer, através do bom serviço prestado, ele terá seu esforço reconhecido e será
mais bem tratado pelo seu senhor. Ele poderia, ainda segundo Schopenhauer, até
comprar a sua própria liberdade; (ii) o segundo âmbito versa sobre a necessidade natural
dos indivíduos terem e precisarem de líderes. Esse é o ponto em que a consciência
liberal de Schopenhauer aparece de forma clara: ele demonstra conhecimento das
mazelas associadas à pobreza, ao trabalho, ao escravismo, e à servidão, mas as justifica
como consequência natural da necessidade de líderes e da forma pela qual o mundo vem
a ser; tal organização pode, se otimizada e baseada nos esforços individuais, até ser
vantajosa para aqueles que padecem tal situação.
Resta ainda a referência às notas de aulas sobre a ética (Philosophische
Vorlesungen - Metaphysik der Sitten) e ao fragmento 286 de 1814 de seus manuscritos
de juventude (Frühe Manuskripte,1814). Nas notas de aula o conceito de escravidão é
tal e qual o apresentado no primeiro tomo de MVR, i.e., a classificação sem escusas da
ação de subjugar um outro como sendo injusta. No caso de seus manuscritos, o jovem
pensador já concebe a injustiça como a invasão da esfera de afirmação da vontade, i.e.,
como a afirmação da vontade que vai até outro corpo e o nega. 93 No fragmento 286
(1814), Schopenhauer admite a injustiça como uma invasão realizada por meio do
canibalismo, do homicídio ou pela utilização das forças alheias pertencentes a uma
vontade objetivada em um corpo por outro corpo. Desse último caso é derivada a
injustiça que configura o que neste ponto ele chama de servidão (Leibeigenschaft),
como é possível observar abaixo:

Muitos corpos lado a lado são afirmados (via de regra) cada um através de
uma vontade: e essa afirmação pertence a cada um, sem injustiça e sem que

93
Cf. HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha Q.Q – R.R., p. 174-176, p.189-192 (o qual parece
constituir o primeiro rascunho), e HN I, Fragmento 693, Dresden 1817 – Folha 17, p.482-483, p.534
(fragmento com o texto mais próximo da redação final do texto de MVR).
68

um outro possa se queixar sobre isso; porque também a sua própria vontade é
de tal afirmação. Mas se alguém vai tão longe na afirmação de seu corpo que
essa afirmação se torna negação do corpo de outro e através disso a vontade
se torna visível, então denominamos isso injustiça. Isso ocorre não apenas
quando um devora o outro (canibalismo), ou então porque alguém fica em
seu caminho, e então é morto; mas também quando um obriga o outro a
utilizar suas forças para preservação ou comodidade de si mesmo: porque
minhas forças pertencem ao meu corpo enquanto sua qualidade, assim como
o produto dessas forças. Esse é o caso mais flagrante de servidão: mas
também já é o caso da organização, provocada pela desigualdade de
propriedade, ordenação na qual um alimenta o outro, um trabalha para o
outro, como o camponês para o burguês, quando esse não o compensa de
uma outra maneira, e essa compensação certamente pode ocorrer de uma
forma muito complexa e distante. 94

Como é possível perceber nesse trecho, Schopenhauer ainda não refinou o


conceito a ponto de encontrar, na lógica do subjugar outro indivíduo, suas
possibilidades: pobreza, proletariado, escravidão e servidão. Ele observa, de forma
genérica, a questão a partir da servidão em geral (Leibeigenschaft). Contudo, é preciso
fazer duas observações sobre a passagem supracitada. A primeira delas refere-se ao
significado da palavra Leibeigenschaft, a qual expressa uma dependência pessoal do
camponês ao senhor (Abhängigkeit des Bauern vom Grundherrn), um tipo de status
social – jurídico e econômico – dos camponeses na Rússia e dos camponeses durante o
período feudal na Europa. Seu sentido etimológico é “pertencente com a vida” (mit dem
Leben zugehörig). 95 Nesse sentido, Schopenhauer pode ter percebido a inadequação e a
ambiguidade do vocabulário empregado em seus manuscritos, alterando-o em seus
textos éditos. O termo Leibeigenschaft é utilizado posteriormente para referir-se apenas
à organização social da servidão, 96 seja o período durante o feudalismo, seja o regime
russo, evitando, assim, a equiparação e confusão com, por exemplo, o termo escravidão

94
HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha R.R., p. 174. No original alemão: „Die vielen Leiber
nebeneinander werden (in der Regel) jeder durch einen Willen bejaht: und diese Bejahung steht Jedem zu,
ohne Unrecht und ohne daß ein Andrer darüber klagen könne; weil auch sein eigner Wille eine solche
Bejahung ist. Geht nun aber irgend Einer in der Bejahung seines Leibes so weit, daß sie zur Verneinung
der andern Leiber und der durch solche in die Sichtbarkeit getretnen Willen wird; so nennen wir dies
Unrecht. Dies geschieht nicht nur wenn Einer den Andern frißt (Kannibalismus), oder auch nur, weil er
ihm im Wege steht, tödtet; sondern auch sobald einer den Andern zwingt seine Kräfte zur Erhaltung oder
Annehmlichkeit Jenes zu verwenden: denn meine Kräfte gehören zu meinem Leibe als seine Qualität
eben so das Produkt dieser Kräfte.) Dies ist am krassesten bei der Leibeigenschaft: aber es ist auch schon
der Fall bei der durch die Ungleichheit des Eigenthums herbeigeführten Einrichtung daß Einer den
Andern ernährt und für ihn arbeitet, wie der Bauer für den Bürger wenn nicht dieser es auf eine andre
Weise kompensirt, welche Kompensation aber freilich auf eine sehr verwickelte und entfernte Weise
geschehn mag.“
95
Cf. WAHRIG, G. Deutsches Worterbuch: mit einen "Lexikon der Deutschen Sprachlehre". 6. Aufl.
Gutersloh: Bertelsmann, 1997, p. 805.
96
Cf. MVR, §62, p.443, I 409 e PP, §125, p.89, V 267.
69

(Sklaverei). Ambas são injustiças que ocorrem pelo uso das forças de uma pessoa sem o
seu consentimento, embora comportem diferenças na forma pela qual se realizam.
A segunda observação sobre a passagem citada refere-se ao fato de que já
nessa formulação de juventude é possível verificar a existência de escusas para justificar
as relações de escravidão e servidão – as quais Schopenhauer enuncia e desenvolve de
forma mais atida apenas no §125 de PP (1851) –, como espera-se ter sido possível
mostrar.
Em nenhum dos registros textuais analisados os seres humanos em situação
de servidão são tratados como uma propriedade (Eigentum), e em nenhum desses
registros encontramos a honra (Ehre) dos afetados apresentada como fator considerado
nas relações estabelecidas. São omissões sobre dois aspectos importantes.
Em qual contexto, então, esse tipo de injustiça poderia ser considerado uma
injustiça dupla? É possível pensar, por exemplo, nos casos de ofertas de trabalho que
acabam revelando-se falsas promessas, resultando na ruptura do que fora acordado entre
as partes (a ruptura do contrato), e em situações de precariedade da vida, ou até mesmo
em situações de trabalho análogos ao trabalho escravo. Guiados por falsas promessas,
indivíduos são convencidos a aceitar situações que os levam a uma circunstância muito
diferente da esperada, na qual aqueles que teoricamente seriam responsáveis pelo zelo
da integridade de tais indivíduos revelam-se os seus algozes: esse é o caso de milhares
de indivíduos vitimados pelo tráfico de pessoas, sendo que podemos lembrar dos casos
mais específicos de imigrantes que aceitam propostas de trabalho e acabam em
situações análogas ao trabalho escravo, e dos casos de milhares de mulheres, vítimas da
escravidão sexual. A primeira etapa, o aliciamento, geralmente se dá por meio da
astúcia; a segunda etapa, a manutenção do indivíduo em tal situação, em geral, pela
violência.
Para ficar no próprio exemplo dado por Schopenhauer: o senhor deve cuidar
do seu escravo (nos casos de doença, velhice, etc.), mas ele pode, também, torturar,
matar, ou não oferecer os cuidados mínimos para subsistência digna: nesse caso, o
“protetor” é quem agride, maltrata e fere quem ele deveria cuidar.
Até o momento, abordou-se nesse texto a origem, a definição, os graus e
alguns desdobramentos da injustiça. Para Schopenhauer, o conceito de injustiça possui
precedência ontológica frente ao conceito de justiça. Isso significa que a injustiça é um
conceito não só originário e positivo – e isso se dá pelo fato de que ela é sentida
70

imediatamente, manifestando-se por si mesma, sendo natural e fundamentada na


experiência –, 97 mas também porque ela é a condição de inteligibilidade do conceito de
justiça (Recht), i.e., ela é a origem do conceito de justiça, como veremos a seguir.

2.2.6. Dedução e Explanação da Justiça e do Justo

O oposto do conceito de injustiça, i.e., o conceito caracterizado por ser


derivado e negativo, é justamente o conceito de justiça (Recht). Ela pode ser definida a
partir da mera negação do conceito de injustiça, visto que, segundo Schopenhauer, esse
conceito não seria cunhado sem a existência daquele. Assim, a injustiça é a condição de
existência da justiça, e esta é toda ação praticada que não seja a negação da vontade
alheia por uma vontade estranha àquela, i.e., que não cause dano ao corpo de outrem,
que não afete a esfera de afirmação da vontade do indivíduo em sua pessoa, em sua
liberdade, em sua propriedade, e em sua honra. A definição do conceito é feita
inteiramente pela via negativa:

A negatividade da justiça confirma-se, contra as aparências, mesmo na mais


trivial definição: “dar a cada um o que é seu”. Já que é seu, não é preciso que
se lhe dê, e significa portanto: “não tirar de ninguém aquilo que é seu.” 98

Dessa forma, será classificada (subsumiert) como justa toda ação que não
ultrapasse o limite exposto, ou seja, toda ação que não seja negação da vontade alheia
em favor da mais forte afirmação da vontade. Em SFM, Schopenhauer faz alusão à
definição de justo e injusto estabelecida por aquele que ele considera o pai da doutrina
filosófica do direito, o jusfilósofo holandês Hugo Grotius. 99 Segundo Grotius, “É injusto
o que repugna à natureza da sociedade dos seres dotados de razão”,100 i.e., injusto é
aquilo que atenta contra os limites do direito do outro, estabelecidos pelos ditames da
reta razão, e

97
Cf. SFM, §16, 138-139, III 680-681, grifo nosso; Cf. MVR, §62, p.434, I 399.
98
SFM, §17, p.147, III 687. No original alemão: „Die Negativität der Gerechtigkeit bewährt sich, dem
Anschein entgegen, selbst in der trivialen Definition: »Jedem das Seinige geben.« Ist es das Seinige,
braucht man es ihm nicht zu geben: bedeutet also: »Keinem das Seinige nehmen.«“
99
Cf. SFM, §17, p.147, III 687.
100
DGP, Livro I, Capítulo I, Seção III, § 1, p.73. No original em latim: “Est autem iniustum quod naturæ
societatis ratione utentium repugnat.”
71

a palavra direito nada significa mais aqui do que aquilo que é justo. Isto, num
sentido mais negativo que afirmativo, de modo que o direito transparece
como aquilo que não é injusto.101

Delimitados os conceitos e os limites da injustiça e da justiça, Schopenhauer


pode, agora, iniciar a sua argumentação acerca do conceito de direito. Esta transição tem
como ponto de partida o seguinte argumento:

O conceito de JUSTIÇA, como negação da injustiça, encontra sua principal


aplicação, e sem dúvida sua primeira origem, nos casos em que uma tentada
injustiça por violência é impedida. Ora, como uma tal defesa não pode ser uma
injustiça, consequentemente é justa, embora o ato de violência ali praticado,
considerando em si e isoladamente, seja injustiça, no entanto aqui justificado
por seu motivo, isto é, converte-se em direito. 102

É possível afirmar, de forma até intuitiva, que a ação de se defender de uma


injustiça – negar a imposição de uma vontade exterior à vontade própria do indivíduo –,
ao ser justificada por um motivo, torna-se um direito – que podemos chamar de direito à
legítima defesa, ou seja, de direito à autoconservação –, direito que consiste no fato do
indivíduo que sofre a injustiça ser legitimado a negar a negação de vontade imposta a
ele com a força necessária para suprimi-la. 103 Guardadas as devidas proporções, se a
força necessária aplicada para suprimir uma injustiça sofrida causar a morte do
praticante da injustiça, então essa morte é considerada justa e por direito. 104
Do direito à autoconservação, à legítima defesa, infere-se o direito
denominado por direito de coerção (Zwangsrecht). Schopenhauer baseia esse direito no
seguinte raciocínio: se uma vontade estranha ao indivíduo tenta negar a vontade dele,
ele pode usar suas forças para se conservar e sem injustiça (ohne Unrecht), exercer uma
coerção (Zwang) sobre aquela vontade estranha. Esta coerção visa à desistência da
negação de vontade a ser imposta, sem que isso negue a vontade impositiva, que se
mantém em seu limite. Quando o indivíduo tem um direito de coerção, um direito pleno
em empregar a violência contra outro indivíduo sem que com isso pratique a injustiça,
ele pode, ao invés de empregar a violência, empregar a astúcia, estabelecendo um real

101
DGP, Livro I, Capítulo I, Seção III, § 1, p.72-73. Tradução da edição brasileira para: “Nam ius hic
nihil aliud quam quod iustum est significat: idque negante magis sensu quam aiente, ut ius sit quod
iniustum non est.”
102
MVR, §62, p. 435, I 400. No original: „Der Begriff des Rec ht s, als der Negation des Unrechts, hat
aber seine hauptsächliche Anwendung, und ohne Zweifel auch seine erste Entstehung, gefunden in den
Fällen, wo versuchtes Unrecht durch Gewalt abgewehrt wird, welche Abwehrung nicht selbst wieder
Unrecht seyn kann, folglich Recht ist; obgleich die dabei ausgeübte Gewaltthätigkeit, bloß an sich und
abgerissen betrachtet, Unrecht wäre, und hier nur durch ihr Motiv gerechtfertigt, d.h. zum Recht wird.“
103
Isto é, ele tem o direito de afirmar a própria vontade sobre a vontade estranha.
104
Cf. MVR, §62, p. 435, I 401.
72

direito de mentir exatamente na mesma extensão em que ele possui o direito de coerção
(ein wirkliches Recht zur Lüge, gerade so weit, wie ich es zum Zwange habe). 105

2.2.7. A Consciência Moral (Gewissen)

Um importante conceito empregado por Schopenhauer para o entendimento


do objeto de nosso estudo é o de consciência moral (Gewissen). A consciência moral é
uma espécie de atributo dos seres dotados de razão responsável por emitir juízos sobre o
valor moral de certos atos individuais determinados. Por mais que o indivíduo esteja
envolto no princípio de individuação, segundo Schopenhauer, no mais íntimo de sua
consciência, o indivíduo tem o pressentimento de que o mundo empírico é mero
fenômeno, mera aparência.106 Quem pratica a injustiça sente que quem sofre a injustiça
é igual a ele em essência, sente que o outro e ele são ambos um esforço de
autoconservação, e que ele, o praticante da injustiça, nesse caso, é mais forte.
Esse sentimento (Gefühl)107 do injusto é a consciência moral (Gewissen), a
qual também é conhecida por foro íntimo e por tribunal interno, e é justamente a tomada
de consciência por parte do indivíduo do sentido ético da ação praticada por ele mesmo:

105
Cf. MVR, §62, p. 436, I 401.
106
“Por mais que o Véu de Maia envolva espessamente os sentidos da pessoa má, noutros termos, por
mais firmemente que ela se enrede no principio individuationis, de acordo com o qual se considera
absolutamente diferente dos demais seres e deles separada por um amplo abismo, conhecimento ao qual
adere com todo o seu vigor, visto que somente ele se conforma ao seu egoísmo e lhe dá sustento, de
maneira que o conhecimento é quase sempre corrompido pela vontade – lateja, entretanto, no mais íntimo
de sua consciência o pressentimento de que essa ordem de coisas é simples fenômeno.” MVR, §65, p.465,
I 431. No original alemão: „So dicht nämlich auch den Sinn des Bösen der Schleier der Maja umhüllt,
d.h. so fest er auch im principio individuationis befangen ist, demgemäß er seine Person von jeder andern
als absolut verschieden und durch eine weite Kluft getrennt ansieht, welche Erkenntniß, weil sie seinem
Egoismus allein gemäß und die Stütze desselben ist, er mit aller Gewalt festhält, wie denn fast immer die
Erkenntniß vom Willen bestochen ist; so regt sich dennoch, im Innersten seines Bewußtseyns, die
geheime Ahndung, daß eine solche Ordnung der Dinge doch nur Erscheinung ist, […].“
107
Schopenhauer define sentimento da seguinte forma: “[...] o oposto propriamente dito do SABER é o
SENTIMENTO, oposição que merece aqui a sua explanação. O conceito que designa a palavra
SENTIMENTO possui em realidade um conteúdo meramente NEGATIVO, noutros termos, designa algo
presente na consciência que NÃO É CONCEITO, NÃO É CONHECIMENTO ABSTRATO DA
RAZÃO.” E isso significa que o sentimento não se encontra no âmbito do racional. MVR I, §11, p.100, I
61. No original alemão: „In dieser Hinsicht ist nun der eigentliche Gegensatz des Wis se ns das Ge f ühl,
dessen Erörterung wir deshalb hier einschalten müssen. Der Begriff, den das Wort Gefühl bezeichnet, hat
durchaus nur einen neg at iv e n Inhalt, nämlich diesen, daß etwas, das im Bewußtseyn gegenwärtig ist,
nic ht Begr iff, nic ht abst r akt e Er kennt niß der Ver nunft se i. “
73

“o saber do indivíduo sobre aquilo que fez”; 108 a consciência moral pode ser entendida
como um tipo de reconhecimento (Erkenntnis), porém um reconhecimento não teórico,
um reconhecimento sentido, uma espécie de sentimento, podendo ser considerada como
a expressão emocional sensível do conhecimento que temos do significado moral de
nossas ações. Schopenhauer escreve em uma anotação sua de juventude: “O indivíduo
reconhece na sucessão da vida, como em um espelho, a sua vontade: o pavor suscitado
por esse reconhecimento é a consciência moral.” 109 Nesse sentido, o juízo de valor
expresso pela consciência moral, que aprova ou desaprova, 110 funciona, também, como
uma espécie de reconhecimento da consciência moral do indivíduo de que os atos ali
praticados são de sua autoria, i.e., serve como reconhecimento do indivíduo de que ele é
responsável pelos atos que pratica.
São nas e pelas ações que afetam a consciência moral que cada um passa a
se conhecer, i.e., passa a ter acesso àquilo que é, ao seu caráter; mas isso não significa –
nem pode significar – que ela é a responsável por esse caráter:

Só nas ações é que cada um aprende a conhecer a si mesmo e aos demais,


empiricamente, e apenas elas pesam na consciência moral, pois não são tão
problemáticas como os pensamentos, mas, pelo contrário, são certas e,
permanecendo imutáveis, não são apenas pensadas, mas sabidas. 111

O enfoque dado pela consciência moral à ação refere-se ao seu significado


interno. Para aquele que cometeu a ação injusta ela significa uma censura moral que

108
SFM, §8, p.87, III 640. No original alemão: „Es ist das Wissen des Menschen um Das, was er gethan
hat.“ Sobre a consciência moral ser a tomada de consciência do sentido ético da ação, pode-se ler em
MVR §64, p.456, I 422: “Mas, a partir de nossa exposição não mítica porém filosófica da justiça eterna,
queremos agora passar à consideração que lhe é aparentada do significado ético da ação e consciência
moral, que não passa do mero conhecimento sentido desse significado.” No original alemão: „Aber von
unserer nicht mythischen, sondern philosophischen Darstellung der ewigen Gerechtigkeit wollen wir jetzt
zu den dieser verwandten Betrachtungen der ethischen Bedeutsamkeit des Handelns und des Gewissens,
welches die bloß gefühlte Erkenntniß jener ist, fortschreiten.“
109
HN I, Fragmento 191, Weimar 1814, Folha Z, p.106. No original alemão: „Der Mensch erkennt in der
Succession des Lebens, wie in einem Spiegel seinen Willen: der Schreck über diese Erkenntniß ist das
Gewissen.“
110
“[…] por mais diferentes que sejam os dogmas religiosos dos povos, o bom feito é acompanhado,
entre eles, de contentamento indizível, e o mal de um horror sem fim: os primeiros não admitem zombaria
alguma; os últimos, padre algum pode nos absolver. MVR, §12, p.108, I 69. Tradução ligeiramente
alterada. No original alemão: „[…] wie verschieden auch die religiosen Dogmen der Völker sind, so ist
doch bei allen die gute That von unaussprechlicher Zufriedenheit, die böse von unendlichem Grausen
begleitet: erstere erschüttert kein Spott: von letzterem befreit keine Absolution des Beichtvaters.“
111
SFM, §9, p.87, III 640. No original alemão: „An den Thaten allein lernt ein Jeder sich selbst, so wie
die Andern, empirisch kennen, und nur sie belasten das Gewissen. Denn sie allein sind nicht
problematisch, wie die Gedanken, sondern, im Gegensatz hievon, gewiß, stehen unveränderlich da,
werden nicht bloß gedacht, sondern gewuß t . “
74

indica a veemência da concreção do egoísmo em um corpo que invadiu os limites de


afirmação da vontade de outro corpo.
Do exposto pode-se inferir que pelo fato da consciência moral reportar-se ao
significado de atos, reportar-se ao agir, ela nunca os determina, pois, a determinação de
um ato seria anterior à ação; apenas a eles devem ser atribuídos o sentimento de
injustiça e a censura moral: apenas o ato pode ter atribuição de valor moral. E a respeito
do que aconteceu, a consciência moral torna-se testemunha e juiz. Segundo
Schopenhauer, “aqui me parece repousar até mesmo a etimologia da palavra
consciência moral (Gewissen), pois só o já acontecido é que é certo (gewiß).”112
Em SFM, Schopenhauer conjectura acerca da composição matemática da
consciência moral: temor aos outros indivíduos, aos deuses, preconceito, vaidade e
costume na proporção de um quinto cada um. 113 Dependendo da forma de afecção da
ação na consciência moral, do tempo de duração do tormento, a má ação pode originar o
remorso (Gewissensbiß), ou a angústia de consciência (Gewissensangst).
Os sentimentos despertados e exprimidos pela consciência moral (pesar,
remorso, angústia de consciência) podem ser interpretados e entendidos como reflexo a
uma estrutura existente, como o ponto de ancoragem da distinção e reconhecimento das
ações injustas e justas. A consciência moral funciona, assim, como um parâmetro de
constatação e reconhecimento das ações praticadas como injustas ou justas, como
veremos a seguir.

2.2.8. Direito Natural é um Direito Moral

Após investigar o egoísmo, constatou-se que ele tem como essência a


autoafirmação, e que essa pode extrapolar os seus próprios limites, invadindo a esfera
de afirmação da vontade para vida em um corpo alheio a esse. Esta invasão da vontade
do outro sem um motivo que a justifique foi denominada injustiça e, após a
pormenorização deste conceito, pela sua negação, Schopenhauer definiu o conceito de
justiça.

112
SFM, §9, p.87, III 639. No original alemão: „Hierauf scheint mir sogar die Etymologie des Wortes
Gewissen zu beruhen, indem nur das bereits Geschehene gewiß ist.“
113
Cf. SFM, §13, p.116, III 662.
75

O estabelecimento dos limites existentes entre afirmar a própria vontade e o


negar a vontade de um outro indivíduo fornece, em referência a uma simples e pura
determinação moral, todo o domínio das possíveis ações injustas ou justas:

Na escala dos distintos graus de força com que se manifesta a vontade para
vida no indivíduo humano, os conceitos de justiça e injustiça constituem um
ponto fixo (como o ponto de congelamento dos termômetros), a saber, o
ponto onde a afirmação da própria vontade se torna negação da vontade
alheia, isto é, o ponto no qual a vontade revela o grau de sua intensidade e,
igualmente, o grau de confusão do conhecimento imerso no principium
individuationis, através do agir injusto. 114

Estes dois termos – injustiça e justiça – podem ser considerados


determinações morais, uma vez que se referem à conduta humana enquanto tal, ao valor
dessa conduta, à íntima significação dessa conduta em si (die innere Bedeutung dieses
Handelns an sich). 115 O significado íntimo de cada ação da conduta humana em si
demonstra-se claramente à consciência moral pelo fato de (i) a prática da injustiça ser
acompanhada de uma dor interior (ein inner Schmerz) e (ii) do praticante da injustiça,
enquanto fenômeno, ser diferente de quem a sofre, mas em-si – em essência metafísica
–, idêntico ao sofredor. Para quem sofre a injustiça, essa significação se expressa no fato
(iii) deste sofredor estar dolorosamente consciente da negação de sua vontade e que, (iv)
sem praticar injustiça, ele pode se defender de todas as maneiras daquela negação
imposta, caso lhe seja possível. Segundo Schopenhauer, “qualquer selvagem saberia
reconhecer o justo e o injusto”, 116 por meio da sensação de aprovação ou desaprovação
despertada no observador, ou por meio da sensação de remorso ou de injustiça praticada
pelos envolvidos na ação. Pode-se atentar para o que Schopenhauer escreve:

Essa significação puramente moral é a única que a justiça e a injustiça têm


para os seres humanos enquanto seres humanos, não como cidadãos do

114
HN, Metafísica dos Costumes, p.101, p.162. No original alemão: „Nämlich auf der Skala der höchst
verschiedenen Grade der Stärke mit welchen der Wille zum Leben in menschlichen Individuen sich
offenbart, sind die Begriffe Recht und Unrecht in fester Punkt (wie der Eispunkt auf dem Thermometer),
nämlich der Punkt, wo die Bejahung des eigenen Willens zur Verneinung des fremden wird: d. h. auf
diesem Punkt giebt der Wille den Grad seiner Heftigkeit, und zugleich den Grad der Befangenheit der
Erkenntniß im principio individuationis an, durch Unrecht-Thun.“
115
Cf. MVR, §62, p.436, I 402.
116
Por selvagem entenda-se qualquer indivíduo que não tenha crescido sob a tutela de um Estado e que
desconheça, por isso, as leis positivas. HN, Metafísica dos Costumes, p.102, p.163. No original alemão:
„Alle Wilde nämlich kennen Recht und Unrecht.“
76

Estado, e que, portanto, subsistiria inclusive no estado de natureza, sem lei


positiva. 117

Por serem determinações morais, os direitos derivados dos conceitos de


injusto e de justo podem ser denominados naturais, no sentido de que não estão
definidos por convenções humanas nem são instituídos pelo Estado, mas existem de
maneira inata – valem por si e em si –, e são universais e imutáveis – pois valem para
todos os indivíduos, em qualquer localidade, e em qualquer época. Assim, o direito
natural (Naturrecht) é identificado e estabelecido por Schopenhauer como direito moral
(moralisches Recht). As esferas dos dois conceitos, direito natural e direito moral, são
completamente iguais (Die Sphären zweier Begriffe sind sich ganz gleich), poder-se-ia
afirmar ao recordar a classificação de conceitos segundo a lógica, exposta por
Schopenhauer no §9 de sua principal obra.118 Dessa forma, a argumentação
schopenhaueriana constrói no seio da moral o seu conceito de direito, subsumindo-o ao
conceito de moral, e subvertendo a tradição que remonta a Christian Thomasius e,
principalmente, a Kant. 119
Apesar dos conceitos de justiça e injustiça serem de fato válidos para o
estado de natureza, e o direito moral deles derivado também o ser, a validade do direito
moral não se dá em todos os casos para cada indivíduo, permanecendo latente – um
direito que não se efetiva –, e, assim, não é eficaz no sentido de impedir que a violência
impere. Justo e injusto valem ali apenas como conceitos morais para o
autoconhecimento, para a consciência moral (Gewissen) de cada um:

117
MVR, §62, p.437, I 403. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Diese rein moralische
Bedeutung ist die einzige, welche Recht und Unrecht für den Menschen als Menschen, nicht als
Staatsbürger haben, die folglich auch im Naturzustande, ohne alles positive Gesetz […].“
Nota-se neste excerto a primeira inversão na ordem dos termos: injustiça e justiça, empregados até então
sempre nesta ordem, para justiça e injustiça.
118
Cf. MVR, §9, p.90, I 51.
119
Christian Thomasius (1655-1728) foi um dos primeiros pensadores a retirar o direito da esfera da
moral e da ética. (Cf. FASSÒ, G. Historia de la filosofia del derecho. Tradução de José F. Lorca
Navarrete. Madri: Ediciones Pirámide S.A., 1979. v.II, p.170. Doravante abreviado por HFD, seguido por
indicação de página). Kant também opera com essa distinção, o que é motivo de duras críticas
provenientes de Schopenhauer ao filósofo de Königsberg (Cf. a seção deste trabalho intitulada 2.3.2 As
Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina Kantiana do Direito, p.128). Deve-se atentar para
o fato de que toda argumentação schopenhaueriana, no que tange à fundamentação da doutrina do direito,
é um esforço em subsumir o conceito de direito, novamente, à esfera da ética e da moral.
77

No estado de natureza, depende de todos em cada caso apenas NÃO


PRATICAR injustiça, de modo algum em cada caso não SOFRER injustiça, o
que depende de seu poder exterior contingente. 120

Assim, pode-se afirmar que a doutrina moral do direito se refere à parte


ativa da dinâmica de esferas de afirmação da vontade no mundo considerado pela faceta
da representação, o agir (Tun), não à parte passiva, a forma pela qual as vontades são
afetadas, o sofrer (Leiden). Esse só é considerado pela moral de maneira indireta, a
saber, tendo em vista provar que as medidas tomadas com a finalidade de evitar o
sofrimento de uma injustiça de modo algum sejam consideradas e confundidas com a
prática da injustiça.
A argumentação de Schopenhauer atribui ao agir egoísta a responsabilidade
pela invasão da esfera da vontade do outro, o que configura a injustiça e dá ensejo para
a derivação e delimitação de todo o conteúdo do direito natural como um tipo de direito
moral. O professor Sandro Barbera faz, em seu livro Une philosophie du Conflit –
Études sur Schopenhauer, uma interessante análise desse aspecto da filosofia
schopenhaueriana:

Ao mesmo tempo, ele [Schopenhauer] explicava a origem do direito natural


como um corolário da teoria do corpo-vontade, fazendo referência ao modelo
de conflito que Hobbes expôs no primeiro livro de De Cive. A criação do
direito natural será retomada mais tarde em termos que, essencialmente, não
mudarão, mas com um acréscimo significativo no §62 d’O Mundo como
vontade e Representação. Tanto nos Erstlingmanuskripte (primeiros
manuscritos) quanto em O Mundo como vontade e Representação, a
identidade entre corpo e vontade permite delinear um panorama das
diferentes intensidades da afirmação da vontade, que são visíveis como ações
do corpo e de suas forças no que diz respeito a outros corpos e suas esferas de
influência. 121

120
MVR, §62, p.437, I 403. No original: „Im Naturzustande hängt es nämlich von Jedem bloß ab, in
jedem Fall nicht Unrecht zu t hun, keineswegs aber in jedem Fall nicht Unrecht zu le id e n, welches von
seiner zufälligen äußern Gewalt abhängt.“
121
BARBERA, S. Une philosophie du conflit – études sur Schopenhauer. Tradução de Marie France
Merger (com exceção do segundo anexo, traduzido por Olivier Ponton). Paris: Presses Universitaires de
France, 2004. Collection Perspectives Germaniques, p. 104. No texto em francês : « En même temps, il
expliquait l'origine du droit naturel comme corollaire de la théorie du corps-volonté, et il le faisait en se
reportant au modèle de conflit que Hobbes avait exposé dans le premier livre du De Cive. La création du
droit naturel sera reprise par la suite en des termes qui, en substance, ne changeront pas, mais avec un a
ajout important, dans le § 62 du Monde. Aussi bien dans les Erstlingmanuskripte que dans Le Monde,
l'identité du corps et de la volonté permet de dessiner un diagramme des différentes intensités
d'affirmation de la volonté, qui se redent visibles comme actions du corps et de ses forces à l'égard des
autres corps et de leurs sphères d'influence. »
78

Após estabelecer o vínculo identitário entre o direito natural e o direito


moral, é possível considerar algumas das extensões desse vínculo, como o direito moral
à mentira e o direito moral à propriedade.

2.2.9. Direito Moral à Mentira122

Como visto, a falsificação do conhecimento alheio com a finalidade de fazer


com que um indivíduo aja segundo uma vontade estranha acreditando que segue a
própria vontade configura o exercício da injustiça por meio da astúcia, a falsificação dos
motivos no conhecimento, utilizando-se da mentira, e que nos casos em que se possui o
direito de coerção é possível exercê-lo pela violência ou pela astúcia, inferindo-se, pela
via negativa, o direito de mentir. 123
Esse seria, também, um direito natural e, portanto, moral, e “não admiti-lo
implica em denegar a única possibilidade de realização efetiva de um princípio de
Direito Natural, entendido como direito de resistência à injustiça originária.”124 O
direito à mentira se resume apenas ao aspecto de resistência, de autodefesa, de
autoconservação, não podendo ir além desse limite.
Segundo Schopenhauer, tal direito contempla não só ocasiões de perigo,
mas também ocasiões indecorosas que podem se referir a questões pessoais e cuja
resposta ou omissão poderiam ocasionar algum tipo de risco ou suspeita. Em suma,
pode-se recorrer ao direito à mentira quando a situação remontar a um contexto em que
a autoconservação pode ser violada no que se refere à pessoa, à liberdade, à propriedade
à honra, e ao corpo. Em algumas ocasiões, avalia Schopenhauer, mentir é propriamente
um dever, como, no exemplo um tanto questionável do autor, no caso do médico que
oculta do paciente terminal as más notícias para que esse possa usufruir de seus últimos
momentos. Diferentemente de Kant, que condena toda e qualquer mentira, a
investigação de Schopenhauer constata, ao considerar ações em que a mentira é
justificável, que nesses casos mentir não causa nenhuma dor de consciência ao seu

122
Para uma apreciação do tema para além dessa pequena introdução, conferir o texto do professor
Oswaldo Giacoia Junior no qual ele articula a exposição da problemática do direito à mentira com o
contexto histórico-filosófico do iluminismo e sua recepção: Cf. GIACOIA, O. A Mentira e as Luzes.
123
“Nos casos em que tenho um direito à força, tenho também à mentira.”. SFM, §17, p.154, §17, III 692.
No original alemão: „Ich habe also in den Fällen, wo ich ein Recht zur Gewalt habe, es auch zur Lüge.“
124
GIACOIA, O. A Mentira e as Luzes, p.28.
79

praticante, e que esse fato explica e afasta a contradição entre a moral que é pregada e
ensinada, e a moral praticada por aquelas pessoas que são consideradas íntegras.
Qualquer mentira que não seja astúcia antecipatória, i.e., o emprego da
astúcia contra a violência, ou da astúcia contra a astúcia visando à autoconservação, é
simplesmente o exercício da injustiça, sendo moralmente censurável.

2.2.10. Direito Moral à Propriedade

Para Schopenhauer a propriedade é um dos pontos capitais da vida


humana,125 sendo todo o autêntico direito de propriedade um direito moral que está
originariamente baseado única e exclusivamente no trabalho elaborador (Bearbeitung) –
que faz com que o corpo que produz o trabalho se identifique e se confunda com o
objeto no qual esse trabalho é plasmado, que se torna dessa forma propriedade. Nesse
ponto, o filósofo da vontade se declara em total acordo com os escritos bramânicos das
Leis de Manu, IX, 44: “Os sábios, que conhecem os tempos pretéritos, declaram que um
campo cultivado é propriedade de quem cortou a madeira, o limpou e lavrou, do mesmo
modo que um antílope pertence ao primeiro caçador que o acertou mortalmente.” 126
Dessa forma, o esforço plasmado em um objeto na forma de melhorias, proteção,
conservação, ainda que mínimo, assegura o direito de posse do indivíduo àquele. Assim,
a mera fruição do objeto, sem nenhum cuidado referente à proteção, à conservação, etc.,
não garante nenhum direito – da mesma forma que a mera declaração da vontade de
posse do objeto não garante nem supõe direitos sobre ele. Schopenhauer ilustra seu
ponto de vista com o exemplo de uma família que em uma determinada extensão de
terra pratica a caça por cerca de um século, sem, contudo, ter feito ou ter tomado
qualquer providência referente à melhoria ou à conservação do local. Essa família não
poderia impedir um estrangeiro de caçar na mesma extensão de terra sem cometer
algum tipo de injustiça. Com esses argumentos, o filósofo da vontade ataca dois dos

125
Cf. SFM, §13, p.110, III 658.
126
MVR, §62, p.430, I 396. Na citação feita por Schopenhauer, em alemão: „»Weise, welche die Vorzeit
kennen, erklären, daß ein bebautes Feld Dessen Eigenthum ist, welcher das Holz ausrottete, es reinigte
und pflügte; wie eine Antilope dem ersten Jäger gehört, welcher sie tödtlich verwundete.« — Gesetze des
Menu, IX, 44.“
80

principais conceitos fundantes do direito de propriedade que vigoram na filosofia do


direito de seu tempo: (i) a declaração de posse, e (ii) o direito de primeira ocupação. 127
Em MVR II, para ilustrar o seu ponto de vista, Schopenhauer evoca a
declaração do ex-presidente estadunidense Quincy Adams, encontrada nos Quarterly
Review de 1840, nº 130, e em francês na Bibliothèque Universelle de Genève, 1840,
julho, nº55, que segundo o filósofo corroboraria no plano prático o seu modo de
interpretar e explicar o direito de propriedade:

Alguns moralistas puseram em dúvida o direito dos europeus de se


estabelecerem em terras dos povos indígenas americanos. Mas eles
consideraram a questão com maturidade? Na maior parte do país, o direito de
propriedade dos índios repousa em uma base duvidosa. Sem dúvida, o direito
natural os asseguraria suas terras cultivadas, suas residências, a terra
suficiente para o seu sustento e tudo o que o trabalho pessoal de cada um
tivera procurado. Mas que direito tem o caçador ao amplo bosque ao qual
casualmente recorre para perseguir a sua presa? 128

Além de descartar a declaração de posse e o direito de primeira ocupação


como elementos fundantes do direito de propriedade, Schopenhauer alega que a
fundamentação do direito natural de propriedade não requer que se tenha,
concomitantemente, a detenção (Detention) e a formação (Formation) de propriedade –
fundamentos de direito –, mas apenas a última.129 A única ressalva feita pelo autor é que
a nomenclatura formação não é adequada, uma vez que é possível trabalhar algo
aplicando a própria força sem lhe dar uma forma. O direito de propriedade moralmente
fundamentado, de acordo com o exposto, dá ao possuidor um poder sobre a coisa como
aquele que possui sobre o próprio corpo, permitindo-lhe transmitir sua propriedade por
troca ou por doação.
Quando é considerado o caso da doação, deve-se considerar, também, a
herança. Essa seria a responsável pela ligação entre o direito de propriedade e o direito

127
A argumentação de Schopenhauer está majoritariamente visando Kant e sua Metaphysik der Sitten
(Metafísica dos Costumes). A seção 2.3.2 As Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina
Kantiana do Direito é totalmente dedicada às críticas feitas por Schopenhauer à filosofia kantiana do
direito e contempla o caso do direito à propriedade.
128
MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 682. No original alemão: „»Einige Moralisten haben das Recht der
Europäer, in den Landstrichen der Amerikanischen Urvölker sich niederzulassen, in Zweifel gezogen.
Aber haben sie die Frage reiflich erwogen? In Bezug auf den größten Theil des Landes, beruht das
Eigenthumsrecht der Indianer selbst auf einer zweifelhaften Grundlage. Allerdings würde das Naturrecht
ihnen ihre angebauten Felder, ihre Wohngebäude, hinreichendes Land für ihren Unterhalt und Alles, was
persönliche Arbeit einem Jeden noch außerdem verschafft hätte, zusichern. Aber welches Recht hat der
Jäger auf den weiten Wald, den er, seine Beute verfolgend, zufällig durchlaufen hat? «.“
129
Cf. MVR, §62, p.431, I 397, Nota do Autor.
81

de nascimento (Rechte Geburt). A ligação entre esses dois tipos de direito é tão estreita
que, apesar do direito de nascimento não ser tão bem fundado quanto o de propriedade,
a exclusão daquele colocaria este em perigo. 130 Para os indivíduos que vivem em
sociedade é muito difícil conseguir visualizar a relação existente entre o direito de
propriedade assegurado pelo dispositivo coercitivo e mantenedor das relações da vida
social, o direito positivo assegurado pelo Estado, e o direito moral à propriedade
baseado no trabalho elaborador. Apesar da fonte originária desse direito basear-se em
um direito natural, são muitos estágios intermediários: é possível pensar na propriedade
herdada, na propriedade adquirida pelo casamento, adquirida pela troca, pela venda,
pelo ganho, etc. Esse distanciamento entre o fundamento e o asseguramento da posse
faz, segundo Schopenhauer, com que se tenha a impressão e se acredite que o fator de
garantia da propriedade é o direito positivo:

É preciso uma cultura significativa para reconhecer em tal propriedade o


direito ético e, por conseguinte, respeitá-la por puros impulsos morais. De
acordo com isso, muitos consideram em silêncio a propriedade dos demais
como possuída apenas em virtude do direito positivo. 131

O que talvez seja interessante notar nesse ponto é como Schopenhauer


estabelece, já no estado de natureza, um direito de propriedade moral que é individual,
em contraste com outros autores, como, por exemplo, Hugo Grotius, Thomas Hobbes, e
Jean-Jacques Rousseau, para os quais no estado de natureza existe um direito de
propriedade coletivo, ou seja, um direito de todos a todas as coisas, e que passa a ser
individual justamente com a instituição do Estado.
Para Grotius, em um momento lógico anterior à introdução da propriedade,
os indivíduos possuíam um direito de uso coletivo universal das coisas. Já nesse
momento, a reta razão ditava regras que faziam com que eles percebessem que algo não
poderia ser retirado de outro sem que com isso fosse ocasionada uma injustiça. 132 Dessa
forma, esse direito de uso coletivo universal exercia a função de um direito de
propriedade.133 Neste ponto, Grotius ilustra sua argumentação com uma passagem de
Cícero: “Ainda que o teatro seja comum, pode-se, contudo dizer, com razão, que cada

130
Cf. PP, §130, p.259, V 283-384.
131
SFM, §13, p.111, III 659. No original alemão: „Es bedarf schon bedeutender Bildung, um bei allem
solchen Besitz das ethische Recht zu erkennen und es demnach aus rein moralischem Antriebe zu achten.
- Demzufolge betrachten Viele, im Stillen, das Eigenthum der Andern als allein nach positivem Rechte
besessen.“
132
Nesse ponto é absolutamente nítida a proximidade de Schopenhauer com o jusfilósofo holandês.
133
Cf. DGP, Livro II, Capítulo I, Seção II, § 1, p.310.
82

local é daquele que o ocupa.” 134 E quando esse direito de uso coletivo universal passou
a vigorar sob o estatuto de uma posse privada? Grotius responde: “Foi, no entanto, o
resultado de uma convenção, seja expressa através de partilha, seja tácita através, por
exemplo, de ocupação.” 135
Hobbes, como mencionado acima, argumenta que no estado de natureza
todos teriam direito a tudo, e que esse direito a tudo seria como ter direito a nada. O
pacto que dá origem ao Estado implica a restrição consentida da liberdade em empregar
os meios julgados necessários para a manutenção da própria vida, e a abdicação em ter
direito a todas as coisas – que resulta na possibilidade de ter direito exclusivo sobre
determinados objetos. Um súdito do Estado que detém a posse de um determinado
objeto, como, por exemplo, uma extensão de terra, possui o direito de excluir todos os
outros súditos do uso dessas terras. 136 Nascia dessa forma, segundo Hobbes, o conceito
de propriedade privada e o seu asseguramento.
Para Rousseau, o estado de natureza é um estado de vida no qual os homens
podem ter direito a tudo quanto aventuram e podem alcançar,137 e no qual não existem
distinções morais entre os indivíduos, o que permite aferir a existência de uma
igualdade natural entre os indivíduos no que se refere à moral. 138 Para o filósofo
genebrino, a exposição pela qual se origina a propriedade privada faz parte do processo
de distanciamento do ser humano de sua natureza original. Nesse processo, primeiro foi
originada a noção de posse; depois, da terra partilhada, surgiu a demarcação e limitação
de terras, e as primeiras regras de justiça, porque “para dar a cada um o que é seu, é
preciso que cada um possua alguma coisa.” 139 O trabalho de formação empreendido
pelo primeiro ocupante do lote de terra demarcado trouxe a posse, agora contínua, que
se transformou, aos poucos, em propriedade, e, assim, surgiu o que se entende por
direito de propriedade – mas um direito ainda precário porque não perene.

134
DGP, Livro II, Capítulo II, Seção II, § 1, p.310. Tradução da edição brasileira para: “Theatrum cum
commune sit, recte tamen dici potest eius esse eum locum quem quisque occuparit.”
135
DGP, Livro II, Capítulo II, Seção II, § 5, p.314. Tradução da edição brasileira para: “sed pacto
quodam aut expresso, ut per diuisionem, aut tacito, ut per occupationem.”
136
Cf. Leviatã, p.297, p. [128], p.155.
137
Esse ponto pode ser entendido como uma das várias reminiscências da filosofia de Hobbes em
Rousseau. Sobre esses aspectos Cf. TUCK, R. The Rights of War and Peace, p.197-207.
138
No que se refere à moral porque as desigualdades físicas (diferença de idades, de saúde, qualidades do
espírito e da alma, vigor, capacidades físicas, agilidade, etc.) são desigualdades inevitáveis e, em geral,
benignas.
139
Segundo Discurso, p.272, p.173. No original: « […] car pour rendre à chacun le sien, il faut que
chacun puisse avoir quelque chose ».
83

Para assegurar o direito peremptório à propriedade fora necessário ao


homem civilizado sacrificar sua liberdade natural, mediante a alienação de sua vida.
Dessa forma, segundo Rousseau, estabelece-se o corpo político “como um verdadeiro
contrato entre o povo e os chefes que ele escolhe, contrato pelo qual as duas partes se
obrigam à observância das leis nele estipuladas e que formam os liames de sua
união.”140 Com o pacto social estabelece-se e firma-se o direito de propriedade,
garantido a manutenção do que é de cada um, da liberdade civil / convencional – que
ocupa o lugar da liberdade natural –, da igualdade moral – que substitui a igualdade
natural –, e da justiça, 141
Nesse ponto, é possível indagar se Schopenhauer também identifica um
dispositivo moderador das relações humanas para assegurar esses direitos naturais /
morais, e o modo pelo qual esse dispositivo opera ao visar realizar suas finalidades:
analisemos, pois, a origem e a finalidade do Estado (Staat).

2.2.11. A Origem e Finalidade do Estado (Staat): O Papel da Recta Ratio

(Reta Razão)

Essa parte da nossa exposição ganhará muito em força e conteúdo se nos for
permitida uma rápida digressão para mostrar a importância do conceito de reta razão
(recta ratio) e o modo pelo qual ele é operado por autores que exerceram influência
confessa em Schopenhauer, como Hugo Grotius e Thomas Hobbes.
Especialmente nos prolegômenos de sua obra mais conhecida, De iure belli
ac pacis (O Direito de Guerra e de Paz), Grotius se empenha em fundamentar
jusfilosoficamente o Direito Internacional – a regulação jurídica entre os Estados
nacionais – para, assim, poder definir o que seria uma guerra justa. É justamente essa
parte da obra, essa fundamentação filosófica, que mais interessou e foi debatida pelos

140
Segundo Discurso, p.280, p.184. No original: « [...] comme un vrai contrat entre le peuple et les chefs
qu'il se choisit, contrat par lequel les deux parties s'obligent à l'observation des lois qui y sont stipulées et
qui forment les liens de leur union».
141
“O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto
aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui.”Do
Contrato Social, Livro I, Capítulo VIII, p.42, p.364. No original: «ce que l'homme perd par le contrat
social, c'est sa liberté naturelle et un droit illimité à tout ce qui le tente et qu'il peut atteindre; ce qu’il
gagne, c'est la liberté civile et la propriété de tout ce qu’il possède».
84

filósofos posteriores, principalmente no que tange ao direito natural.142 É possível notar


na argumentação grotiana a confluência de argumentos teológicos e racionais, o que,
por um lado, o assegura de não ser acusado de heresia e de ir contra os escritos bíblicos,
e, por outro, de se pautar em uma possível universalidade, o que garantiria que ele não
pudesse ser objetado por argumentos embasados por regionalismos ou dogmas
religiosos. Dessa forma, Grotius buscou o fundamento das normas de conduta humana
no que acreditava ser essencialmente humano no homem: a razão. Contudo, ele por
muitas vezes se pautou em exemplos retirados das escrituras, em especial do Velho
Testamento.
Pode-se notar, na exposição de Grotius, o emprego de dois métodos
argumentativos: o método (i) a priori, no qual a argumentação abstrata é exposta a
partir de um axioma, a saber, a reta razão (recta ratio), e o método (ii) a posteriori, a
partir da comprovação empírica do que fora argumentado aprioristicamente por meio da
citação de fatos, da análise da legislação de outros povos, da citação de poetas, de
historiadores, ou de qualquer outro elemento que pudesse ser utilizado para comprovar
o seu ponto de vista.143 O ponto de partida da exposição de Grotius é a afirmação da
existência de princípios universalmente válidos de justiça, em polêmica com o
relativismo utilitarista de alguns autores dessa época. 144 Grotius elege Carneades, um
conhecido orador grego da antiguidade, como representante de seus objetores, para,
desse modo, refutar as possíveis críticas a sua própria exposição. Esse procedimento
metodológico é necessário, uma vez que o jusfilósofo precisa refutar aqueles que
afirmam não haver uma distinção objetiva entre justiça e injustiça, i.e., Grotius precisa
refutar os oponentes de uma fundamentação moral do direito natural.

142
É importante frisar que a análise aqui empreendida não será focada exclusivamente nessa seção da
obra de Grotius.
143
“Costuma-se provar de duas maneiras que algo é de direito natural: a priori e a posteriori. Desses dois
modos, o primeiro é mais abstrato e o segundo, mais popular. Prova-se a priori demonstrando a
conveniência ou inconveniência necessária de uma coisa com a natureza racional e social. Prova-se a
posteriori concluindo, se não com uma certeza infalível, ao menos com bastante probabilidade, que uma
coisa é de direito natural porque é tida como tal em todas as nações ou entre as que são mais civilizadas”.
DPG, Livro I, Capítulo I, Seção XII, § 1, p.85. Tradução da edição brasileira para: “Esse autem aliquid
iuris naturalis probari folet tum ab eo quod prius est, tum ab eo quod posterius. A priori, si oftendatur rei
alicuias convenientia aut disconvenientia necessaria cum natura rationali ac sociali: a posteriori vero, si
non certissima fide, cerre probabiliter admodum, iuris naturalis esse colligitur id quod apud omnes gentes,
aut moratiores omnes tale esse creditur.”
144
HFD, p.71. Schopenhauer também tem que enfrentar uma objeção semelhante, que ele denomina de
visão cética. Cf. SFM, §13, p.108-120, III 656-665.
85

Segundo Grotius, o ser humano possui uma natureza que o torna superior a
outras formas de vida por ser dotado de razão e de linguagem. Apesar de o ser humano
ser fisicamente fraco em comparação com os outros animais, por não possuir garras nem
dentes afiados, 145 ele possui duas características que o tornam o mais forte de todos os
seres: a razão – que permite a abstração, a apreciação, e a especulação de eventos no
tempo (passado e futuro) – e a vida social.146
Grotius toma como base os tão conhecidos argumentos de Aristóteles e de
Cícero sobre o appetitus societatis do ser humano, i.e., o fato de considerarem o ser
humano ser gregário por natureza e dele constituir naturalmente a vida em sociedade
com vistas à autopreservação. Essa natureza racional e social do ser humano é, para
Grotius, a fonte do direito propriamente dito, e se encontra no direito natural por esse
ser derivado das características essenciais e específicas da natureza humana. O
jusfilósofo escreve que é própria do ser humano a necessidade de sociedade pacífica e
organizada de acordo com os dados de sua inteligência. 147 Grotius, dessa forma, não
deixa dúvidas de que a reta razão é responsável tanto pela sociabilidade natural do ser
humano quanto pelo direito natural:

O direito natural nos é ditado pela reta razão que nos leva a conhecer que
uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada
por deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência,
Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ordena. 148

Essa passagem ainda deixa clara a não secção entre os conceitos de direito e
de moral, uma vez que o direito natural pode – pelo fato de ser fundamentado na reta
razão – definir objetivamente, a partir de critérios morais, o que, por assim dizer, Deus
proíbe (injusto) e o que Deus ordena (justo). Essa inferência possibilita a afirmação de
que a fundamentação grotiana do direito natural é como a ciência da moral fundada na

145
Grotius atribui a Deus o fato dos homens serem fracos, como forma de serem impelidos a cultivar a
vida social (Cf. DGP, Prolegômenos, §16, p.43), o que exemplifica de maneira clara a confluência entre
argumentos racionais e teológicos.
146
Cf. DGP, Prolegômenos, §8, p.39, nota 19.
147
Cf. DGP, Prolegômenos, §6, p.37.
148
DGP, Livro I, Capítulo I, Seção X, § 1, p.79. Tradução da edição brasileira para: “Ius naturale est
dictatum rectæ rationis indicans, actui alicui, ex eius convenientia aut disconvenientia cum ipsa natura
rationali inesse moralem turpitudinem aut necessitatem moralem, ac confequenter ab auctore naturæ Deo
talem actum aut vetari aut præcipi.”
86

natureza humana. 149 Isso significa que a partir do que Grotius julga ser a natureza
humana fundamenta-se uma teoria do direito natural, que é, também, moral: tem-se,
dessa forma, acesso a um corpo de conhecimentos sistematizados dos limites do injusto
e do justo através da reta razão. Como visto, Grotius efetiva sua definição dos conceitos
de injusto e justo através da via negativa.
Até que ponto existe a confluência entre a argumentação racional e
teológica, i.e., em última instância qual o autêntico fundamento do direito natural: Deus
ou a reta razão? A exposição grotiana leva o leitor a entender que Deus é a fonte do
direito natural, pois Ele criou o ser humano fraco, desprotegido, e lhe concedeu a reta
razão como forma de impeli-lo à vida em sociedade. Mas, esse modo de entender tal
questão está sujeito à contestação da existência de Deus e a interpretações divergentes
acerca da natureza Dele. Ao perceber essa deficiência, Grotius argumenta, no que ficou
conhecido como argumento do ímpio, que não é necessária a existência de Deus para a
fundamentação do direito natural, e que tudo que ele expusera até então permanece
válido mesmo sem a existência de Deus. 150 Contudo, para escapar de uma possível
acusação de heresia, Grotius recua em sua argumentação e atribui o fato dos seres
humanos serem dotados de reta razão a Deus, 151 tornando-O a causa do conceito onde
reside a fundamentação do direito natural (reta razão), e a causa indireta, porém não
necessária, do direito natural. Desta forma, mesmo se a existência de Deus for
contestada, a reta razão subsiste perfeitamente como fundamento do direito natural e
como critério de imputabilidade,152 garantido a universalidade da argumentação, ou
seja, a arquitetônica da exposição grotiana não ruiria frente a tal objeção e estaria imune
aos diferentes dogmas existentes. Deve-se ressaltar, ainda, que a confluência entre
argumentos racionais e teológicos não é rompida: trata-se, apenas, de uma estratégia

149
Essa é uma afirmação de Buckle acerca de Grotius e Samuel Pufendorf. Cf. BUCKLE, S. Natural law
and the theory of property: Grotius to Hume. Oxford, Oxford University Press; New York, Clarendon
Press, 1991. p.vii.
150
Cf. DGP, Prolegômenos, §11, p.40. Para uma apreciação mais detida do argumento do ímpio Cf.
CROWE, M. B. The Impious Hypothesis: A Paradox in Hugo Grotius?. In: HAAKONSEN, K. Grotius,
Pufendorf and modern natural law. Vermont: Ashgate, 1999. p.3-34.
151
Cf. DGP, Prolegômenos, §12, p.41.
152
Pode-se entender a reta razão como um critério de imputabilidade porque ela é acessível a todos os
seres humanos.
87

metodológica e argumentativa para resguardar-se de possíveis críticas e proteger o


ponto axiomático de toda sua exposição. 153
Para que a necessidade de autopreservação seja realizada plenamente,
assegurando a paz, é preciso garantir, uma vez organizados em comunidades, o respeito
pelo direito dos outros, inclusive pelo direito de propriedade, evitando as tensões e
disputas que engendram guerras. Apesar de a reta razão ditar as normas que deveriam
servir de princípios norteadores para a criação de condições que garantam a paz social,
o agir moralmente bom não é realizado espontaneamente. Pelo contrário, além do fato
dos indivíduos não terem se conservado em um estado de vida simples e inocente, 154 se
eles fossem justos, i.e., agissem segundo as regras ditadas pela reta razão, eles não
teriam a necessidade da força. 155
A sociabilidade do ser humano o leva, em vistas a obter vantagens, a formar
associações ou à sujeição a uma autoridade, fazendo com que cada um se mantenha
naquilo que lhe pertence. Assim, os pactos de união e de sujeição assumem a forma
explícita do acordo de vontades individuais para a tutela dos interesses dos indivíduos,
dando origem a um Estado concebido como uma livre e voluntária criação dos
indivíduos para a proteção e garantia de seus direitos naturais.
Pode-se dizer que o direito natural precisou de um dispositivo para coerção
mútua e vigilância da conformidade com o juízo sadio, e, assim, Grotius executou a
transição do direito natural (baseado na universalidade do conceito de reta razão comum
a todos os seres humanos) para o direito civil (que é uma obrigação que nos impomos
mediante a força a partir de uma utilidade como causa ocasional). Note-se que a
associação ou a sujeição a uma autoridade foi iniciada tendo em vista alguma vantagem,
o que torna o direito civil / positivo variável conforme a nação. A diferença entre o
direito natural e o direito civil afinal, segundo Grotius, é que a natureza do ser humano

153
Fica ainda mais claro que o autêntico fundamento do direito natural é a reta razão a partir da seguinte
passagem: “O direito natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus. Por mais
imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange porque aquelas de que
fazemos alusão não podem ser senão enunciadas, mas não possuem nenhum sentido que exprima uma
realidade e são contraditórias entre si.” DGP, Livro I, Capítulo I, Seção X, § 5, p.81. Tradução da edição
brasileira para: “Est autem ius naturale adeo immutabile ut ne a Deo quidem mutari queat. Quamquam
enim immensa est Dei potentia, dici tamen quædam possunt ad quæ se illa non extendit, quia quæ ita
dicuntur, dicuntur tantum, sensum autem qui rem exprimat nullum habent; sed sibi ipsis repugnant.”
154
DGP, Livro II, Capítulo II, Seção II, § 2, p.312.
155
DGP, Prolegômenos, §24, p.47.
88

(a reta razão) é a mãe do direito natural, enquanto que a mãe do direito civil é a
obrigação que nos impomos pelo próprio consentimento.
Pode-se dizer, assim, que Grotius é um autor que marca a transição do
objetivo coletivo, mediado por Deus, para o subjetivo individual, mediado pela razão
objetivada no contrato. Porém, deve-se atentar para o fato de que Grotius não exclui
Deus de sua fundamentação teórica, mas a torna independente Dele. Sua formulação,
como visto, coexiste perfeitamente com a existência de Deus. Se, por um lado, ele
sustenta que o direito natural e a sociabilidade são frutos da reta razão do ser humano,
por outro, pode sustentar sem cair em contradição que Deus é a fonte indireta do direito
natural, pois deu ao ser humano a faculdade de razão e o criou fraco e dependente uns
dos outros para forçar a sua sociabilização. Desta forma Grotius realiza uma
fundamentação racional de sua teoria sem dar margens para acusações de heresia.
No caso de Hobbes, a reta razão sugere, através de um cálculo de utilidade
in foro interno do indivíduo, as leis adequadas para se alcançar a paz:

As paixões que fazem os homens tenderem para a paz são o medo da morte, o
desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a
esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas
normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas
normas são aquelas a que por outro lado se chama leis de natureza. 156

As paixões – o esforço para a autoconservação e ser feliz – aliadas à reta


razão – que sugere as leis157 adequadas para obter a paz – são as responsáveis pelo
movimento de superação do estado precário de vida durante o período de vida pré-
estatal. A reta razão sugere as leis da natureza 158 que, embora não obriguem o indivíduo
em seu foro externo, fornecem uma espécie de catálogo de ações que devem ser
praticadas para manutenção da vida. A primeira lei de natureza orienta o indivíduo a

156
Leviatã, p.188, p.[63], p. 79. No original: “The Passions that encline men to Peace, are Feare of Death;
Desire of such things as are necessary to commodious living; and a Hope by their Industry to obtain them.
And Reason suggesteth convenient Articles of Peace, upon which men may be drawn to agreement. These
Articles, are they, which otherwise are called the Lawes of Nature.”
157
Hobbes assinala a diferença entre direito e lei: “Diferença entre direito e lei: o direito consiste na
liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas”
(Leviatã, p.189, p. [64], p.82). No original: “RIGHT, consisteth in liberty to do, or to forbeare; Whereas
LAW, determineth, and bindeth to one of them.”
158
“Uma lei da natureza (Lex naturalis) é um preceito ou regra geral estabelecido pela razão” (Leviatã,
p.189, p. [64], p.82). No original: “A LAW OF NATURE, (Lex Naturalis,) is a Precept, or generall Rule,
found out by Reason.” Hobbes expõe cerca de treze leis de natureza. Para a finalidade do nosso estudo,
precisamos explicitar apenas as três primeiras.
89

buscar a paz, e caso ele não a consiga, autoriza-o a utilizar-se da guerra;159 a segunda
diz respeito à autodefesa, ao fato de não ser possível abdicar de se defender; 160 a terceira
lei de natureza manifesta a necessidade de cumprir os pactos celebrados.
No caso de Schopenhauer é bem sabido que em seu sistema filosófico a
razão (Vernunft) recebe um status secundário, possuindo como única função a formação
de conceitos. 161 A razão permite ultrapassar o nível sensitivo e intelectual da impressão
presente, possibilitando o registro e a combinação de impressões sob certas regras. Isso
significa que os seres dotados de razão, os seres humanos, têm a capacidade de
estabelecer relações entre as intuições – entre as representações concretas – e de
transformar esse conhecimento intuitivo em conceitos – que são representações
abstratas –, fazendo com que esse conhecimento possa ser aplicado na prática.
O ser humano, por ser dotado da faculdade de razão, é privilegiado por
possuir (i) a linguagem – que é o meio e o veículo da razão –, (ii) a ação deliberada, e
(iii) o saber (Wissen) e a ciência (Wissenschaft). 162 Ser dotado de razão significa que o
conhecimento humano extrapola o estreito limite da percepção atual. A representação
conceitual torna possível a classificação do conhecimento, a relação entre as noções
comuns, e a conservação dessas noções na memória. O conhecimento do ser humano
ultrapassa o âmbito do presente e se abre para as dimensões do passado e do futuro. Isso
significa a recordação das impressões passadas, assim como a projeção de expectativas,
anseios, e cuidados no futuro. Alargam-se as dimensões de possibilidade do sofrer:
sofre-se no passado, no presente, e também no futuro. A razão, assim, é a responsável
pela intensificação do sofrimento que já nos é inerente.

159
Cf. Leviatã, p.190, p.[64], p. 82. “Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha
esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudar e vantagens da
guerra.” No original: “That every man, ought to endeavour Peace, as farre as he has hope of obtaining it;
and when he cannot obtain it, that he may seek, and use, all helps, and advantages of Warre.”
160
Cf. Leviatã, p.190, p.[64], p.82.
161
Cf. MVR, §8, p.85, I 46. Pode-se dizer que Schopenhauer caracteriza a razão como uma das faculdades
cognitivas, ao lado do entendimento / intelecto (Verstand) e da sensibilidade (Sinnlichkeit). O Intelecto é
uma função do aparelho cognitivo que tem a forma do princípio de causalidade e consiste na faculdade de
intuição, possibilitando a percepção de objetos que afetam nossa sensibilidade; a sensibilidade é a
faculdade receptiva, passiva, que recebe as impressões dos órgãos sensoriais e imprime a essas
impressões uma primeira distribuição em termos de tempo e espaço. O espaço como forma da intuição, e
o tempo como forma da modificação. A lei de causalidade, assim, funciona como reguladora da
ocorrência das modificações (no tempo e no espaço). Sobre a definição do termo Verstand (intelecto /
entendimento) Cf. Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, p.175-176. Sobre a definição do
termo Sinnlichkeit (sensibilidade) Cf. Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, p.157-158.
162
Cf. MVR, § 10, p.98, I 59.
90

A vida no estado de natureza é tosca, breve, deficitária, precisamente o


contrário do que o egoísmo é: conservar a essência e ser mais e melhor. A razão pode
apreender a totalidade através dos conceitos, deixando o particular, e possibilitando o
discernimento de qual o meio mais eficaz para fugir do estado inicial de guerra de todos
contra todos. Ela reconhece a fonte das desvantagens da injustiça e começa a buscar um
meio de diminuí-la ou, onde possível, suprimi-la através de um sacrifício comum,
compensado, todavia, pela vantagem comum daí resultante. Na medida em que a
faculdade de razão, visando sempre um bem maior e a própria conservação na melhor
situação possível, deixa de considerar os fatos a partir do ponto de vista unilateral do
indivíduo ao qual pertence, ela nota que os prazeres obtidos com a prática da injustiça
em um indivíduo são sempre superados pela dor, relativamente maior, do sofrer
injustiça.
Segundo Schopenhauer, o ato de praticar injustiça causa prazer no praticante
e a razão reconhece que tanto para diminuir o sofrimento em toda parte, quanto para
reparti-lo da maneira mais equânime possível, o melhor e o único meio é poupar a todos
da dor relacionada ao sofrimento da injustiça, fazendo-os renunciar ao prazer obtido
com a sua prática. Esse parece ser um movimento paradoxal da argumentação
schopenhaueriana, uma vez que a faculdade de razão age egoisticamente ao abandonar o
ponto de vista da individuação, que é em essência também egoísta, para, assim, obter
um bem maior.
Contudo, é pelo abandono de uma ação egoísta no plano da individuação
que se obtém vantagens maiores neste mesmo plano e no plano de uma totalidade
social. Trata-se de um aparente abandono de um egoísmo individual em prol de um
egoísmo coletivo; contudo, as vantagens referentes ao plano da individuação exercem
uma influência mais acentuada do que esses mesmos motivos considerados no plano de
uma totalidade social: isso significa que o egoísmo inerente a cada indivíduo e a avidez
com que se manifesta leva-nos a crer que a melhoria coletiva é simples meio para a
melhoria individual, ou seja, o egoísmo coletivo é apenas a afirmação mais contundente
de cada egoísmo individual. Assim, o motivo mais forte da constelação de motivos dos
indivíduos – não sofrer a dor, relativamente maior, da injustiça – se afirmou
soberanamente sobre o outro motivo – o prazer obtido em praticar ações injustas.
A instrumentalização do egoísmo coletivo pelo egoísmo individual com
vistas a evitar seus próprios males, i.e., a superação egoísta do egoísmo – através de um
91

egoísmo, por assim dizer, esclarecido –, recorreu a um pequeno cálculo de utilidade: a


recta ratio em um nível tosco é cálculo de benefício, e leva o ser humano a pôr fim ao
estado de natureza enquanto estado de guerra de todos contra todos por meio do
contrato social (Staatsvertrag) ou da lei (Gesetz). Somente com auxílio da linguagem a
razão consegue estabelecer o conjunto dos dispositivos institucionais e normativos de
combate aos atos injustos, o Estado, 163 efetivando uma das suas mais importantes
realizações. O contrato que origina o Estado deve fornecer ao cidadão a segurança de
sua vida, de sua liberdade, de sua propriedade, de sua honra, de seu corpo; ele, o
cidadão, deu como penhor sua vida e propriedade em favor da segurança de cada um.
Assim, a razão faz o indivíduo abandonar seu prazer de praticar a injustiça para, então,
poder ser protegido: o monopólio da força e da violência, agora, pertence à instituição
política instaurada. A razão discerne qual o meio mais eficaz para superar o estado
inicial de guerra de todos contra todos. O Estado, desse modo, surge por um cálculo de
utilidade, determinado pela razão, para a proteção e tutela dos interesses dos indivíduos,
i.e., ele não nasce da preocupação positiva com a justiça, mas da preocupação em evitar
o sofrer injustiça. Desta forma, o contrato é celebrado como uma estratégia do egoísmo
esclarecido em garantir a melhor preservação das objetidades da vontade no mundo
fenomênico, no mundo como representação.

2.2.12. Contrato Social como forma de Legitimação do Estado

Schopenhauer fundamenta e legitima filosoficamente um dispositivo


moderador das relações pessoais e jurídicas, e uma ordem política fundamental.
Contudo, não parece ser o caso de uma fundamentação e de uma argumentação a partir
da descrição histórico-cronológica da fundação de um Estado em particular; antes, o
contrato subsidiário de sua teoria não parece ser um acontecimento histórico, mas deve-
se ser entendido como um recurso hipotético, 164 i.e., um artifício utilizado para analisar,

163
Cf. MVR, § 8, p.83-84, I 44. Essa capacidade de reflexão é a raiz de todas as obras teóricas e práticas e
“também da colaboração de muitas pessoas para um mesmo fim: e por isso, da ordem, da lei, dos Estados,
etc.” (Cf. QR, §27, p.154, III 209).
164
“Para demonstrar a vantagem – e uma vantagem irrenunciável – de certos deveres coercitivos, pode-se
argumentar de outra forma e, em um experimento mental, supor a renuncia total a tais deveres. Na
tradição filosófica esta suposição (puramente teórico-legitimante e não histórica) se chama: estado de
natureza ou, mais precisamente: estado primário de natureza.” HÖFFE, O. Estudios sobre teoria del
92

avaliar, e explicar a origem da sociedade, e justificar a autoridade política, ou seja, trata-


se de uma estratégica metodológica para validar o poder do Estado sobre os seus
governados – como parece ser o caso da maioria dos autores contratualistas modernos.
A argumentação schopenhaueriana possui como pedra angular a natureza do
ser humano, o egoísmo. De modo bastante geral pode-se dizer que durante a antiguidade
a forma predominante de argumentação pela qual os direitos eram justificados eram
assentadas em um ordenamento da natureza – em uma cosmologia –, e que durante o
período medieval os direitos eram justificados a partir da vontade de Deus, em uma
fundamentação que pode ser denominada teológica; Schopenhauer, no entanto, é
caudatário dos autores do período moderno que romperam com essas tradições e se
valeram da natureza do ser humano como ponto de partida, fazendo-o figurar como
centro e axioma das argumentações empreendidas. Daí muitos comentadores definirem
a metodologia dos autores modernos como um procedimento antropológico.165
Schopenhauer faz uso do artifício hipotético-legitimador do Estado, de um
estágio lógico pré-estatal – o estado primário de natureza. A situação pré-estatal tem em
si mesmo um defeito inaceitável: é um contexto no qual os direitos dos seres humanos
não podem se efetivar, i.e., é uma circunstância na qual os direitos permanecem latentes,
não assegurados, um cenário que configura a anarquia em seu sentido pejorativo, no
qual cada um persegue seus fins pelos meios que lhe parecem adequados, e entram em
conflito quando os meios ou os fins são os mesmos; nessa conjuntura a vida se torna
insuportável; também não se pode esperar a conduta moralmente justa do indivíduo
próximo, uma vez que se todos agissem conforme à moral, de forma a respeitar o direito
do próximo, não seria necessária a existência de um dispositivo coercitivo para
estabelecer, manter e regular a ordem, fornecendo um mínimo de segurança às
interações entre os seres humanos.
A igualdade entre os indivíduos possibilita a realização do pacto que cria um
poder coercitivo: a ordem política pode ser justificada apenas através do consenso
possível dos afetados. A ordem política instaurada para superação desse modo precário
de vida deve significar necessariamente uma limitação individual – uma limitação da
esfera de afirmação da vontade com o intuito de evitar as ações injustas. Deste modo,

derecho y la justiça. Version castellana de Jorge M. Sena. Barcelona; Caracas: ALFA, 1988, p.71.
Doravante abreviado por Estudios sobre Teoria del derecho y la justiça, seguido de indicação de página.
165
Cf. Estudios sobre Teoria del derecho y la justiça, p.9; Os Fundamentos da ordem jurídica, p.XX-
XXX; Cf. Dicionário de filosofia do direito, Direito Natural, p.241.
93

tem-se um paradoxo a ser respondido, a saber, “como se pode legitimar frente a pessoas
que querem maximizar sua esfera de afirmação da vontade uma ordem política que, por
essência, significa uma limitação fundamental justamente dessa esfera de afirmação?”,
ou “por que as pessoas consentiriam uma limitação deste porte?”. A resposta teria como
pano de fundo o fato de que tal situação de precariedade só seria superada se cada um,
sob as mesmas condições, aceitasse uma limitação de seu egoísmo, de sua esfera de
afirmação da vontade. A limitação espontânea e recíproca dos egoísmos é celebrada
pelo que ficou conhecido por contrato social.
O contrato representa um acordo com valor jurídico. Desta forma, o contrato
significa (i) uma teoria consensual de legitimação política com vistas a assegurar a paz
entre os indivíduos; (ii) um acordo que realiza a transferência recíproca de direitos e de
deveres; (iii) o comprometimento jurídico, a partir da instituição do contrato, de cada
indivíduo com o cumprimento do acordado: ações que infringem o contrato são
perseguidas pelo direito penal (Strafrecht). 166
A ordem política fundamental é pensada pela razão, mas surge do contrato
originário celebrado entre pessoas livres, 167 não entre governante e governados. Trata-se
de uma convenção entre iguais que celebram pactos para estabelecer as regras para um
governo, marcando a transição da situação pré-estatal para a sociedade civil.
O Estado é legitimado como poder coercitivo e como sede das leis, do
direito positivo – que deverá ter no direito natural um parâmetro valorativo mínimo –,
como poder moderador que organiza a vida em sociedade, proporcionando vantagens
aos seus governados, ao assegurar o direito de propriedade, ao garantir a proteção
interior, a proteção exterior, e a proteção contra o seu protetor, em troca do
cumprimento de deveres para a manutenção da instituição.

166
Cf. HÖFFE, O. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado;
tradução de Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p.401.
167
Cf. Estudios sobre Teoria del derecho y la justiça, p.9; Cf. BOUCHER, D.; KELLY, P. The Social
Contract and its Critics: an Overview. In: BOUCHER, D.; KELLY, p. (Orgs.). The social contract from
Hobbes To Rawls. London; New York: Routledge, 1994, p.37.
94

2.2.13. Os limites e a Extensão da Moralidade no que Concerne à Fundação

do Estado e às suas Funções.

Apresentados e estabelecidos os pontos acima, pode-se agora avaliar os


limites e a extensão da moralidade na filosofia política schopenhaueriana, i.e., é possível
caracterizar o papel da moral no que concerne à fundação do Estado e às funções e
deveres atribuídos a ele. Diferente de Hobbes, para quem os “pactos sem a espada são
apenas palavras” (covenants without the sword are but words), 168 para Schopenhauer,
como visto, os pactos e contratos constituem um tipo de vínculo estabelecido com
validade e obrigação legal e moral. Dito de outra forma, para Schopenhauer o contrato é
um pacto moral que gera relações de responsabilidade – deveres, obrigações, direitos, e
benefícios – entre aqueles que celebram o acordo. Essa caracterização já possui uma
consequência extremamente importante na filosofia schopenhaueriana: o Estado surge
da celebração do contrato social (Staatvertrag), logo, a origem desse dispositivo
regulador das relações sociais e humanas é um pacto moral: o Estado surge, em última
instância, de um acordo moral estabelecido entre as partes envolvidas.
O Estado surge de um contrato social que pode – e deve – ser entendido
como um contrato moral, mas ele, o Estado, não deve ser entendido como uma
instituição orientada à melhoria moral de seus cidadãos. É fato que a legislação possa
engendrar certo efeito colateral de caráter pedagógico no que se refere à educação e
melhoria moral dos cidadãos do Estado,169 mas esse não é o escopo nem a finalidade
dessa instituição; trata-se, portanto, apenas de um efeito contingente. Um efeito
colateral contingente da ação do Estado em restringir o egoísmo inerente a cada
indivíduo em torno da otimização de seu próprio querer.170

168
Cf. Leviatã, Cap. XVII.
169
Cf. PP, Kapitel XXVIII – Ueber Erziehung (Capítuço XXVIII – Sobre a Educação).
170
Cf. MALTER, R. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens.
Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman-Holzboog, 1991, p.361. Doravante abreviado por Arthur
Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens, seguido de indicação de página.
Sobre esse ponto, Malter ainda completa: “Assim, não se admira que Schopenhauer negue toda a
capacidade do Estado e sua competência em melhorar os indivíduos. O Estado não é uma instituição
corretiva, mas sim a instituição na qual o egoísmo deve perder sua agressividade externa para poder se
conservar (ainda que apenas de maneira destrutivamente latente).” Nossa tradução para: „Daher
verwundert es nicht, daß Schopenhauer dem Staat jegliche Fähigkeit und Befugnis, den Menschen zu
bessern, bestreitet. Der Staat ist keine Besserungsinstitution, wohl aber die Einrichtung, in der der
Egoismus seine äußere Aggressivität verlieren soll, um selber (nun immer noch latent destruktiv) sich
erhalten zu können.“
95

Nesse ponto cabe ressaltar a existência de uma importante diferença entre o


Estado não ser orientado à promoção da melhoria moral e ele possuir sua origem em um
acordo moral vinculante. No primeiro caso tem-se o elenco das possíveis obrigações do
Estado para com seus cidadãos, do qual, segundo Schopenhauer, a melhoria moral está
excluída; no segundo caso, tem-se a base na qual a origem da instituição é alicerçada,
i.e., uma consequência do recurso hipotético-legitimador das relações sociais.
Cumprir e usufruir das obrigações e benefícios engendrados pelo contrato
que originou o Estado constituem uma obrigação moral e, também, jurídica. Da mesma
forma que o contrato estabelecido obriga moral e juridicamente o Estado a proteger seus
cidadãos, não cumprir com os direitos de proteção e não punir um crime configuram
uma quebra de contrato. Ambos são violações do acordo vinculante que transfere e cria
direitos e deveres entre os indivíduos que celebraram o pacto que originou o Estado.
A base vinculante da transferência recíproca de direitos e deveres é moral,
mas sua força acaba por repousar na criação do âmbito jurídico, o qual permite e prevê a
sanção – o que significa a atuação na constalação de motivos dos indivíduos enquanto
cidadãos do Estado.171 Os âmbitos da moralidade e da legalidade estabelecem uma
relação na medida em que o primeiro tem de servir como parâmetro valorativo para o
segundo: assim, o direito moral (direito natural) serve como parâmetro valorativo –
embora em seu reverso 172 – para todo direito positivo justo; e seguindo a mesma lógica,
Schopenhauer acaba por nomear de injustiça positiva todo direito positivo que não tenha
o direito moral como base axiológica.
Dentro desse contexto teórico, quando o Estado atenta contra alguma de
suas três finalidades básicas ele fere moralmente o pacto responsável por sua origem e
rompe com a sua obrigação de proteger os cidadãos, resultando nas duas ações
sumariamente condenadas por Schopenhauer como as piores possíveis: (i) a quebra de
contrato, ou seja, a realização e efetivação da mentira mais perfeita, e (ii) a injustiça
dupla, i.e., o protetor ferindo aqueles que deveriam ser protegidos – o Estado, cuja
função é proteger os seus cidadãos, acaba por lesá-los em suas pessoas, liberdades,
propriedades, corpos, e/ou em suas honras. 173 Estes, por sua vez e como exposto acima,

171
Aqui vale lembrar mais uma vez que se as relações morais entre os indivíduos fossem
espontaneamente estabelecidas, o Estado seria uma instituição supérflua e desprovida de sentido.
172
MVR, §62, p.441, I 407.
173
Seria o caso, por exemplo, do Estado que ao invés de proteger a integridade física de seu cidadão
admite a tortura mesmo que não exista um ato identificado como prática de injustiça, i.e., punição sem
crime, a presunção de culpa sem provas.
96

possuem um direito moral e também jurídico de resistência às injustiças perpetradas


pelo Estado: o direito moral à autoconservação e o direito de proteção garantidos pelo
enunciado como terceira obrigação e função do Estado – a garantia ao protegido de
proteção contra aquele que deveria protegê-lo.
Dessa forma, ao ressaltar os aspectos selecionados da filosofia prática
schopenhaueriana, mais especificamente no que se refere ao direito e ao Estado, pôde-se
notar e expor o papel crucial da moral na ética do filósofo – em suas limitações e
extensões –, uma vez que a moralidade serve como base e subsidiária, estando presente
– mesmo que apenas na condição de pano de fundo – na completude da formulação das
doutrinas do direito e do Estado aventadas pelo filósofo da vontade.

2.2.14. Direito Internacional, Estado de Direito, e Direito de Resistência

A “origem e meta do Estado são explicadas magistralmente por Hobbes”.


Este comentário está presente tanto em MVR, quanto nas notas de aula sobre ética.174 O
Estado concebido por Schopenhauer surge para conveniência dos indivíduos, sendo
apenas um aparelho de repressão, 175 não possuindo, segundo o autor, nenhuma
significação moral. Sua principal função é a de contrapor o egoísmo coletivo ao
egoísmo particular, e para isso ele deve cumprir, ao menos, três finalidades básicas, que
são expostas, de maneira breve, no capítulo 47 do segundo tomo d’O Mundo como
vontade e Representação.
Schopenhauer defende a tese de que o direito é um conceito moral e que sua
existência independe do Estado, o qual seria o dispositivo legal para o asseguramento e
a efetivação dos direitos naturais. Dessa forma, ele censura aqueles que afirmam que o
direito só existe mediante a existência do Estado, i.e., aqueles que negam a existência do

174
Cf. MVR, p. 442, I 408, No original alemão: „Auch Hobbes hat diesen Ursprung und Zweck des Staats
ganz richtig und vortrefflich auseinandergesetzt“; HN, Metafísica dos Costumes, p.106, p.168. No
original alemão: „Diesen Ursprung und Zweck des Staats hat schon Hobbes ganz richtig und vortrefflich
auseinandergesetzt.“
175
“Schopenhauer se opôs expressamente a todas as teorias desenvolvidas pelos sucessores de Kant, que
esperavam do Estado um melhoramento e uma moralização (Versittlichung) do ser humano (Hegel) ou
que viam no Estado uma espécie de organismo humano superior (Novalis, Schleiermacher e outros).”
SAFRANSKI, R. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: uma biografia. Tradução de
Willian Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011, p.421. Doravante abreviado como Schopenhauer e os
anos mais selvagens da filosofia, seguido de indicação de página.
97

direito exterior a essa instituição, por confundirem o direito com os meios de fazê-lo
efetivar-se. Apenas por meio do dispositivo legal instaurado se torna assegurada a
proteção do direito – que só pode ser obtido pela força: justiça e coação, direito e
violência são, assim, duas faces da mesma moeda. A existência do direito independe da
existência do Estado, mas os meios para que eles sejam efetivados dependem.
O Estado tem, segundo Schopenhauer, três deveres que se relacionam
estritamente com a proteção (Schutz), a saber, a (i) proteção a atos exteriores (Schutz
nach außen), a (ii) proteção interior (Schutz nach innen) e a (iii) proteção contra o
protetor (Schutz gegen den Beschützer). 176 Portanto, ainda segundo o autor, quem
pretende atribuir ao Estado outro fim que a proteção o desvia de sua verdadeira
finalidade. Qualquer outra função que o Estado venha a exercer violará os próprios
direitos dos cidadãos. O Estado deve, desse modo, restringir-se aos limites de seu papel
negativo, restringir-se somente ao indispensável – os deveres de proteção – para que se
possa conter as desvantagens do egoísmo.
A proteção a atos exteriores apresenta como princípio fundamental a defesa,
nunca através de uma forma de proceder agressiva, tendo como principal âmbito de
atuação a prevenção e o resguardo de ataques provenientes de outros povos. Essa
dinâmica revela e reconhece o direito internacional (Völkerrecht) – que para
Schopenhauer “não passa do direito natural levado à esfera de sua atividade prática, a
relação entre os povos.” 177 O direito positivo não é válido nessa esfera de atuação
porque ele não possui os dispositivos necessários para se afirmar, a saber, a existência
de um juiz e de um poder executivo. Poder-se-ia dizer que o direito internacional
consiste, dessa forma, em um certo grau de moralidade nas relações entre as nações, e
que o juiz dos eventos, nessa esfera, é a opinião pública.178
Contudo, no §124 de PP, ancorado em perspectiva diversa da de MVR II,
Schopenhauer escreve que entre os cidadãos do Estado o direito do mais forte
(Faustrecht) foi abolido, porém, na dinâmica de relações políticas entre as nações ele
continua valendo. De acordo com o filósofo da vontade, os povos que promovem a

176
Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681.
177
MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681. No original alemão: „Dieses ist im Grunde nichts Anderes, als
das Naturrecht, auf dem ihm allein gebliebenen Gebiet seiner praktischen Wirksamkeit, nämlich zwischen
Volk und Volk, als wo es allein walten muß, weil sein stärkerer Sohn, das positive Recht, da es eines
Richters und Vollstreckers bedarf, nicht sich geltend machen kann.“
178
Atualmente existem órgãos de cooperação internacional, como a ONU – Organização das Nações
Unidas –, a qual possui como órgão jurídico o Tribunal Internacional de Justiça, também conhecido por
Corte Internacional de Justiça, Tribunal de Haia ou Corte de Haia.
98

guerra possuem como objetivos as conquistas e o roubo, e erram ao justificarem essa


conduta utilizando-se de falsos discursos apoiados na moral, quando, na verdade,
deveriam recorrer às ideias concebidas por Maquiavel. E isso porque no âmbito da
política internacional ocorre justamente o contrário: o princípio seguido é antimoral,
quod tibi fieri non vis, id alteri tu feceris (faça ao outro o que tu não gostarias que
fizessem a ti). Tem-se, assim, nas relações internacionais a lógica do ataque
antecipatório: subjugar o outro para não ser subjugado. A conclusão que se segue desse
raciocínio é a de que “cada Estado observa o outro como uma horda de ladrões que
atacará assim que a oportunidade se apresentar”,179 denotando uma perspectiva menos
favorável à dinâmica analisada do que a exposta no escrito anterior.
O segundo tipo de proteção que o Estado deve proporcionar aos seus
cidadãos é a proteção interior, que deve assegurar e zelar pela preservação dos membros
do Estado entre si, garantindo o direito privado (Privatrecht), mediante o cumprimento
da legislação, em um estado de direito (rechtlicher Zustand). Nesse contexto as forças
de todos os indivíduos protegem cada indivíduo, o que cria a aparência de que todos os
cidadãos são honestos e não desejam agredir-se mutuamente. Esse tipo de proteção
parece ser a proteção mais imediatamente buscada pelos pactos fundantes do Estado. E
ela parece ser a tentativa de realização da metáfora do açaimo posto no animal
carnívoro: assim como o animal sanguinolento é tornado inofensivo, os indivíduos são
forçados a deixarem de ser uma ameaça uns para os outros, pelo menos em aparência.
Safranski, em seu livro Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, explica
muito bem o significado da efetivação dessa metáfora:

É sobre este cenário que Schopenhauer desenvolveu sua própria teoria do


Estado, reconhecivelmente apoiada sobre a de Hobbes, como ele próprio o
havia indicado: o Estado coloca uma “mordaça” (Maulkorb) nos “animais
ferozes” (Raubtiere) a fim de fazer com que estes, embora longe de se
tornarem melhores moralmente, se tornem “inofensivos como um
ruminante” (unschädlich wie ein grasfressende Tier). 180

O asseguramento dessas duas finalidades, dessas duas proteções, cria a


necessidade de uma terceira proteção: a proteção contra o protetor, que é basicamente
um direito de resistência, um direito à defesa contra aquele ou aqueles aos quais a
sociedade delegou o exercício da proteção e a tutela do Estado, um direito contra o

179
PP, §124, p.89, V 267. No original alemão: „Im Grunde sieht jeder Staat den andern als eine
Räuberhorde an, die über ihn herfallen wird, sobald die Gelegenheit kommt.“
180
Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, p.420-421.
99

abuso do poder. Essa proteção assegura o direito público (öffentliches Recht), que é
mais efetivo quando dividido em três poderes protetores independentes uns dos outros, a
saber, quando dividido em poder legislativo, em poder judiciário, e em poder
executivo. 181 Dessa forma, Schopenhauer lança as bases do que seria um governo justo
– aquele que possui no direito natural seu espelho, aquele que respeita a individualidade
e os limites de afirmação da vontade de cada cidadão, aquele que cumpre os seus
deveres relacionados à proteção. Em última instância Schopenhauer parece apontar as
formas liberais de governo como solução mais eficiente para a organização político-
administrativa dos Estados. Cabe agora investigar as formas de governo com as quais
ele se depara e o que seria para ele a arte de bem governar.

2.2.15. As Formas de Governo e a Arte de Governar

Como visto, o Estado tem sua origem na necessidade de coibir a injustiça


engendrada pelo egoísmo inerente ao gênero humano e deve cumprir alguns deveres
relacionados a formas de proteção. O Estado é o dispositivo, possui a forma; o
governante é aquele que se utiliza da forma do Estado para cumprir determinados
objetivos que englobam a vida em sociedade e questões relativas a garantias individuais.
O que seria, então, para Schopenhauer a arte de governar (die Staatskunst)?
A arte de governar teria como grande desafio “associar a força e o direito de
modo que o direito reja por meio da força.”182 A força garantiria o respeito e o
cumprimento do direito e da justiça, que, sozinhos, não seriam eficazes para fazerem-se
valer – e aqui é importante recordar que se a moralidade fosse suficiente para organizar
a vida em sociedade, não seriam necessários a legalidade e todo o aparato estatal. A
força, todavia, segundo Schopenhauer, encontra-se nas massas, onde é associada à
ignorância, à estupidez e à injustiça. A tarefa da arte de governar seria, assim,
subordinar a força física à inteligência, tornando-a útil. O bom governante deve aliar a
inteligência à justiça e a boas intenções. O governo, na forma de um Estado, tem a

181
Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681.
182
PP, §127, p.96, V 273.
100

obrigação de cumprir os deveres de proteção, garantindo a ordem e segurança. 183 Esse


seria o uso otimizado do aparato estatal – ou, como Schopenhauer chama, o Estado
perfeito – dentro das condições de possibilidade humanas. 184
A fundamentação ético-moral da autoridade política, i.e., a legitimação das
relações de mando e obediência corporificadas no dispositivo do Estado passam a
existir, conforme exposto, mediante um acordo comum, a partir do cálculo de utilidade
realizado pela reta razão e que é efetivado pelo contrato social. Contudo, existem
formas pelas quais o Estado pode ser organizado para cumprir esses deveres e outras
funções determinadas que podem variar de acordo com cada nação – e, aqui, é
importante ressaltar, comportam-se variações empíricas, mas não o relativismo.
Para gerir e cumprir da melhor forma possível os objetivos pelos quais foi
constituído, o Estado deve reunir algumas características que se referem a sua (i)
finalidade, (ii) a sua forma e configuração, e (iii) a sua base de correspondência com a
lei positiva.
A finalidade do Estado, como mencionado acima, relaciona-se com a
regulação da vida social, com o cumprimento de deveres relacionados à proteção. E essa
finalidade é realizada por meio da força, da violência, da repressão do injusto. Todavia,
não se trata aqui do estabelecimento do totalitarismo ou do absolutismo. Pelo contrário,
o asseguramento dos direitos deve ser dado na medida em que as liberdades individuais
são asseguradas. Qualquer outro tipo de legislação do Estado que não se refira aos tipos
de proteção descritos acima configuram a violação dos direitos do cidadão. Reduzido ao
papel da repressão e longe da tensão totalitária, o Estado, segundo o autor, deveria ser
mínimo, evidenciando certo caráter liberal de sua teoria, na medida em que seus
cidadãos teriam assegurados direitos que restringem o poder do Estado sobre eles, i.e.,
estariam protegidos contra a ingerência do poder estatal no que se refere às liberdades
individuais – o que engloba os campos da economia, da política, da religião, o campo
intelectual, etc.
Para Schopenhauer, o Estado seria mais ou menos perfeito conforme a
relação de assimilação com o que ele chama de anarquia (Anarchie) – uma “horda de

183
Ou, como Lefranc escreve “no fundo de toda ordem social se encontra apenas o equilíbrio do ódio, do
medo e da cólera”. LEFRANC, J. Compreender Schopenhauer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis: Editora Vozes, 2005, p.161.
184
PP, §127, p.97, V 274.
101

selvagens independentes uns dos outros” 185 – e com o que ele chama de despotismo
(Despotie) – uma “horda de escravos arbitrariamente dominados pelo mais forte.”186 Em
MVR, Schopenhauer passa à consideração de uma forma de governo que seja a justa
medida entre a república e a monarquia, encontrando como resultado a monarquia
constitucional, a qual, segundo o autor, tende ao império das facções. Para criar um
Estado que cumpra da melhor forma sua finalidade, diz-se isso de um Estado perfeito,
primeiro é necessário criar seres cuja natureza permita que sempre sacrifiquem o
próprio bem-estar em favor do bem-estar público. Ou seja, estes seres devem ser
capazes de abdicar da própria autoafirmação da vontade para vida – devem abdicar de
seu egoísmo – em prol do bem-estar coletivo. Tratar-se-ia do indivíduo ético, justo,
caritativo; aquele que preza a afirmação do outro e dá a cada um o que é seu, não
lesando ninguém. Nesse contexto e dessa forma, o Estado funcionaria como elemento
gregário da vontade na pluralidade de indivíduos, i.e., o Estado seria um agregador das
vontades individuais no plano representacional. Schopenhauer chega a devanear sobre
essa questão em PP:

Se se quer planos utópicos, então digo: a única solução do problema seria o


despotismo dos sábios e nobres, de uma genuína aristocracia e nobreza,
atingida no caminho da geração, por meio da união entre os mais generosos
homens e as mais inteligentes e brilhantes mulheres. Essa proposta é minha
Utopia e minha República de Platão. 187

Assim, ele retoma pontos de sua filosofia que são bem conhecidos, e faz
uma proposição um tanto assustadora, uma espécie de eugenia social: a partir de
indivíduos previamente selecionados – os mais generosos homens, e as mais inteligentes
e brilhantes mulheres –, seres humanos seriam gerados através da combinação do
caráter herdado do pai e da inteligência herdada da mãe. Os seres gerados seriam os
líderes e governantes do melhor tipo de sociedade que Schopenhauer pode imaginar,
uma sociedade governada por seres éticos, capazes de sacrificarem o próprio bem-estar
em prol do bem-estar alheio.

185
MVR, §62, p.439, I 405. No original: „eines Haufens von einander unabhängiger Wilden.“
186
MVR, §62, p.439, I 405. No original: „eines Haufens Sklaven war, die der Stärkere nach Willkür
beherrscht.“
187
PP, §127, p.104, V 280. No original alemão: „Will man utopische Pläne, so sage ich: Die einzige
Lösung des Problems wäre die Despotie der Weisen und Edlen einer ächten Aristokratie, eines ächten
Adels, erzielt auf dem Wege der Generation, durch Vermählung der edelmüthigsten Männer mit den
klügsten und geistreichsten Weibern. Dieser Vorschlag ist mein Utopien und meine Republik des Plato.“
102

Fugindo ao devaneio – e do que seria uma contradição com o seu próprio


sistema filosófico –, é preciso lembrar que a função do Estado é puramente negativa,
vigilante, e repressora; 188 ele não pode – nem conseguiria – mudar o caráter dos
indivíduos, sendo capaz apenas de fornecer motivos que possam tentar influenciar os
indivíduos a agirem de uma determinada forma e não de outra.189 A partir dessa
limitação, Schopenhauer propõe uma solução paliativa:

[...] entretanto, algo pode ser alcançado na existência de UMA família cujo
bem-estar é completamente inseparável do bem-estar do país, de maneira que,
pelo menos nas grandes questões, nunca uma pode ser favorecida sem que o
outro o seja. Aí residindo a força e a vantagem da monarquia hereditária. 190

A monarquia, segundo o filósofo, constitui a forma mais natural de


organização do ser humano. Tendo o monarca como líder, guia, e dirigente, os súditos
teriam uma figura com a qual se identificar e seguir. Essa figura é necessária porque,
segundo Schopenhauer, a natureza humana é tal que deseja um líder com quem possa
identificar-se como indivíduo. Tem-se, assim, um elemento agregador e unificador das
vontades individuais no plano fenomênico. E essa figura agregadora é passada de
geração em geração, por meio da prole e da sucessão ao trono, garantindo a ordem e
evitando turbulências na transição de um governo para o outro. O poder transferido de
forma hereditária, de pai para filho, seria mantenedor da ordem, da paz, da unidade do
Estado, e da figura de identificação nacional. Além disso, o monarca teria o seu
interesse ligado de forma íntima, estrita, inseparável e idêntica ao interesse da nação.
Isso significa que o que é bom para o soberano é bom para a nação e vice-versa:

É como se ele fosse a personificação, ou o monograma de todo o povo, que


nele chegou à individualidade; neste sentido ele pode até mesmo dizer com
razão: l’état c’est moi [O Estado sou eu]. Exatamente por isso, vemos nos

188
Em ASV é possível ler: “A coação é a companheira inseparável de toda sociedade”. No original
alemão: „Zwang ist der unzertrennliche Gefährte jeder Gesellschaft.“ ASV, p.131, IV 463.
189
Pode-se observar, a esse respeito, que se os indivíduos possuem um caráter adquirido que se “dá no
seu relacionar-se com o mundo”, e que, se as relações no mundo estão, em sua maior parte, pautadas
sobre uma ótica econômico-jurídica regulada pelos Estados existentes, então, em última instância, as
relações dos indivíduos com o mundo são reguladas pelo Estado. Esse, assim, teria participação na
formação do caráter adquirido dos indivíduos, atuando no refinamento da constelação de motivos destes,
tornando-os, assim, menos toscos, i.e., mais preparados para conseguir alcançar seus objetivos evitando
incorrer em ilegalidades ou em conflitos desnecessários com as leis.
190
MVR, §62, p.440, I 406. No original: „Bis dahin aber läßt sich schon etwas dadurch erreichen, daß es
e ine Familie giebt, deren Wohl von dem des Landes ganz unzertrennlich ist; so daß sie, wenigstens in
Hauptsachen, nie das Eine ohne das Andere befördern kann. Hierauf beruht die Kraft und der Vorzug der
erblichen Monarchie.“
103

dramas históricos de Shakespeare os reis da Inglaterra e da França tratarem-


se mutuamente como França e Inglaterra, e também chamam de Áustria o
duque desse país (King John, ato III, cena 1). 191

Por ser uma monarquia constitucional, ela teria a legitimidade de leis que
restringiriam o poder do governante, assegurando a proteção contra o protetor; a
tripartição do governo garantiria a otimização do funcionamento da máquina estatal e
estaria de acordo com os três deveres de proteção que o Estado deve assumir. Dessa
forma, poder-se-ia afirmar que, resumidamente, a melhor configuração para o Estado,
segundo o filósofo da vontade, seria uma monarquia constitucional hereditária e
tripartida em poder executivo, legislativo e judiciário.
Esse parece ser um dos poucos pontos da ética schopenhaueriana em que se
pode especular acerca de uma mudança do viés argumentativo: a partir do momento em
que o filósofo analisa as diversas possibilidades de governo, e toma partido por uma
delas, ele parece prescrever ao invés de descrever. Mas essa prescrição pode ser
explicada: a partir da descrição da natureza humana, da finalidade do Estado e do
direito, da definição do que seria a arte de governar, e das possíveis formas de
configuração da máquina estatal, é possível identificar e apontar qual forma de
organização seria a mais adequada e eficiente para suprir as necessidades engendradas
pela natureza humana sem, contudo, fugir do campo da sugestão e adentrar o âmbito do
dever ser de uma configuração do dispositivo político instaurado para organizar e
administrar as relações sociais.
Em PP, parece lícito apontar o que pode configurar uma confusão ou
contradição: ao mesmo tempo em que o filósofo da vontade considera a criação do
Estado um meio artificial (künstlich) para suprir as necessidades dos seres humanos, 192
ele também considera as repúblicas inaturais e artificiais (widernatürlich, künstlich),
fruto da reflexão,193 e a monarquia um regime natural (natürlich) ao ser humano. 194 A
contradição poderia ser explicada e parcialmente dissoluta a partir das seguintes
considerações: (i) em MVR, o Estado surge de um cálculo de utilidade da reta-razão,

191
PP, §127, p.103, V 279. No original alemão: „Er ist gleichsam die Personifikation, oder das
Monogramm, des ganzen Volkes, welches in ihm zur Individualität gelangt: in diesem Sinne kann er
sogar mit Recht sagen: l’état c’est moi. Gerade daher sehn wir in Shakespeares historischen Dramen die
Könige von England und Frankreich sich gegenseitig France und England, auch den Herzog von
Oesterreich Austria (K. John, III, 1.) anreden.“
192
Cf. PP, §127, p.99, V 276.
193
Cf. PP, §127, p.103, V 280.
194
Cf. PP, §127, p.102, V 278.
104

seja ele uma república ou uma monarquia, e isso significa que ambos surgem da
reflexão – essa forma de interpretar o que o autor escreveu mantém a contradição
constituída; (ii) contudo, em PP a perspectiva adotada para explicação da origem do
Estado é um tanto diferente. Schopenhauer argumenta que em toda parte e em todas as
épocas diversos povos foram regidos de forma monárquica.195 Ele chega a recorrer,
seguindo Voltaire, a uma hipótese empírica para a origem dos primeiros monarcas: “os
primeiros príncipes foram originalmente generais vitoriosos e durante muito tempo eles
regeram nessa condição.”196 Ou seja, se o ‘natural’ da monarquia for entendido como
algo que decorre habitualmente da ordem regular das coisas, a forma pela qual os seres
humanos parecem se organizar em maior número de ocorrências, verificado repetidas
vezes no fluxo da história, então a submissão a um líder e à forma hierárquica poderiam
ser entendidas como ‘naturais’. Esse processo, verificado historicamente, seria resultado
de um instinto natural para a monarquia, a existência de um instinto monárquico no ser
humano (ein monarchischer Instinkt im Menschen) – o que solucionaria um aspecto da
contradição. Schopenhauer, nessa chave de interpretação, enxerga a monarquia – a qual
parece tomar como sinônimo de hierarquia – em muitos âmbitos:

A forma de regime monárquica é natural ao ser humano; quase como ela é


para as abelhas e para as formigas, para grous em voo, os elefantes nômades,
os lobos em hordas para a caça e outros animais ainda que colocam um deles
no topo de seus empreendimentos. Toda ação humana que envolve perigo,
cada campanha militar, todo barco deve obedecer um comandante; em toda
parte, uma só vontade deve ser a dirigente. Mesmo o organismo animal é
construído monarquicamente: o cérebro apenas é o guia e regente, o
αηγεμονικον [aegemonikon]. Ainda que o coração, os pulmões, o estômago
contribuam bem mais para a manutenção do todo, esses bons burgueses não
guiam nem conduzem, pois essa é unicamente a incumbência do cérebro e
deve proceder de um só ponto. Mesmo o sistema dos planetas é
monárquico. 197

195
PP, §127, p.102, V 279.
196
PP, §126, p.95, V 272. No original alemão: „Allerdings sind ursprünglich alle Fürsten siegreiche
Heerführer gewesen, und lange Zeit haben sie eigentlich in dieser Eigenschaft geherrscht.”
197
PP, §127, p.102, V 278-279. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Ueberhaupt aber ist
die monarchische Regierungsform die dem Menschen natürliche; fast so, wie sie es den Bienen und
Ameisen den reisenden Kranichen, den wandernden Elephanten, den zu Raubzügen vereinigten Wölfen
und andern Thieren mehr ist, welche alle Einen an die Spitze ihrer Unternehmung stellen. Auch muß jede
menschliche, mit Gefahr verknüpfte Unternehmung, jeder Heereszug, jedes Schiff, Einem
Oberbefehlshaber gehorchen: überall muß Ein Wille der leitende seyn. Sogar der thierische Organismus
ist monarchisch construirt: das Gehirn allein ist der Lenker und Regierer, das ähgemonikon. Wenn gleich
Herz, Lunge und Magen zum Bestande des Ganzen viel mehr beitragen; so können diese Spießbürger
darum doch nicht lenken und leiten: Dies ist Sache des Gehirns allein und muß von Einem Punkte
ausgehn. Selbst das Planetensystem ist monarchisch.“
105

Dessa forma, segundo o velho Schopenhauer dos PP, as monarquias seriam


o resultado de um instinto natural, não podendo ser apenas fruto da reflexão e, por
conseguinte, não seriam uma criação artificial. As repúblicas, entretanto, seriam
artificialmente fundadas pela reflexão sobre um direito abstrato, e, por isso, estariam
sempre sujeitas à ameaça das desordens populares. Já a monarquia, ao ser considerada
uma forma de organização natural e mais comum aos seres humanos que a república,
possuiria algumas outras vantagens. Uma delas se refere ao fato dos talentos serem
protegidos, i.e., os indivíduos dotados de um maior preparo e inteligência conseguiriam
alçar cargos elevados e influenciar a política de forma direta. Pelo fato do monarca estar
bem estabelecido no poder, ele só teria a ganhar ao somar espíritos geniais à sua
administração, agregando valor à máquina estatal, tornando-a mais eficiente. Dessa
perspectiva, a meritocracia seria incentivada na monarquia, aproveitando a contribuição
das melhores mentes, em detrimento da política de favores e do que o autor denomina
privilégios de nascimento (das Vorrecht der Geburt) observadas em outras formas de
organização do Estado.
O velho Schopenhauer, contudo, parece cair em contradição com pilares
importantes do seu sistema filosófico ao escrever em MVR II que

O grande valor e a ideia fundamental da monarquia me parece estar no fato


de que, porque os homens permaneçam homens, o monarca deve ser
colocado em posição tão elevada, e ter tanto poder, riqueza, segurança, e a
inviolabilidade absoluta, que para si não há nada que ainda possa desejar,
esperar ou temer. Desta forma, o egoísmo que habita nele, como em todos, é
aniquilado por neutralização, e, como se ele não fosse um ser humano, ele
agora está habilitado a praticar a justiça, e ter em vista não mais o seu próprio
bem-estar, mas apenas o do público. Esta é a origem do caráter
aparentemente sobre-humano em todos os lugares que acompanha a
dignidade da realeza, e a distingue tão inteiramente da simples presidência. 198

Como seria possível satisfazer a vontade? Não se trata de um tipo especial


de conhecimento, nem de uma clareza de consciência (Besonnenheit der Vernunft).
Ainda mais, como seria possível a supressão do egoísmo e praticar a justiça sem a
tomada de consciência da unidade metafísica da vontade, sem que tal supressão ocorra

198
MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681-682. No original alemão: „Der große Werth, ja die Grundidee
des Königthums scheint mir darin zu liegen, daß, weil Menschen Menschen bleiben, Einer so hoch
gestellt, ihm so viel Macht, Reichthum, Sicherheit und absolute Unverletzlichkeit gegeben werden muß,
daß ihm für sich nichts zu wünschen, zu hoffen und zu fürchten bleibt; wodurch der ihm, wie Jedem,
einwohnende Egoismus, gleichsam durch Neutralisation, vernichtet wird, und er nun, gleich als wäre er
kein Mensch, befähigt ist, Gerechtigkeit zu üben und nicht mehr sein, sondern allein das öffentliche Wohl
im Auge zu haben. Dies ist der Ursprung des gleichsam übermenschlichen Wesens, welches überall die
Königswürde begleitet und sie so himmelweit von der bloßen Präsidentur unterscheidet.“
106

por algum tipo de olhar através do véu de Maia, através do princípio de individuação,
ou por algum tipo de diminuição do grau de diferença que existe entre os indivíduos no
mundo empírico, da diminuição das fronteiras entre um e o outro? O indivíduo em
questão não seria completamente acometido pelo tédio? Trata-se de uma contradição
com o sistema filosófico, ou de uma exceção, dado o caráter específico da questão?
Schopenhauer não parece ter explorado essa questão e escrito sobre ela em nenhum
outro lugar.
Nesse âmbito da filosofia schopenhaueriana é possível perceber alguns
aspectos relevantes dos seus escritos: não apenas o conservadorismo mais acentuado do
velho Schopenhauer, o Schopenhauer do segundo tomo de MVR e dos PP, mas a
diferença marcante entre os seus primeiros e últimos escritos sobre política,
principalmente no que se refere ao método de exposição. Como ressaltamos logo na
introdução desse nosso texto, o autor escreve no prefácio da primeira edição de sua obra
Os Dois Problemas Fundamentais da Ética (Die beiden Grundprobleme der Ethik) que
em MVR a exposição de sua filosofia é feita de forma sintética a priori, e nos seus
demais escritos, de forma analítica ou sintética a posteriori.199
No primeiro tomo de MVR, temos uma exposição geral da fundamentação e
origem do Estado, baseada no cálculo de utilidade da reta razão que, através do contrato
social, reprimiu a guerra de todos contra todos. O peso constitucional da monarquia e as
restrições do seu poder aparecem de forma mais acentuada. O escrito não premiado,
Sobre o Fundamento da Moral, parece seguir a mesma linha argumentativa do primeiro
tomo de MVR, não apresentando grandes alterações ou complementos significantes para
essa questão em específico.
No segundo tomo de sua obra principal, temos uma importante
complementação teórica sobre o Estado: a apresentação das suas finalidades, todas
referentes à proteção; e uma desconcertante afirmação sobre a possibilidade do monarca
neutralizar o seu egoísmo e, assim, poder governar de forma ética.
Já nos PP, talvez pela abordagem mais objetiva e pragmática, temos as
maiores demonstrações de conservadorismo e, até mesmo, algumas tensões com os
escritos anteriores. Aqui, temos uma mudança de perspectiva e de semântica do termo
“natural”, o que ocasiona uma diferenciação entre a origem das repúblicas e das

199
Cf. SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauers sämtliche Werke. Hrsg. von Paul Deussen.
Munique: R. Piper, 1911-1942, III 433.
107

monarquias. A monarquia é apresentada quase como um sistema absoluto, e o filósofo


chega a justificar o poder do monarca como inato.
Para além das tensões existentes no interior do sistema filosófico do autor,
que poderiam, talvez, ser interpretadas como rupturas no seu pensamento único, existem
questões de limitação e alcance de hipóteses do filósofo ao explicar alguns fenômenos
pontuais. Um desses aspectos se refere ao tempo histórico ao qual a teoria
schopenhaueriana pode se referir. Mesmo para sua época, ela já parece defasada e,
comparada ao espírito de seu tempo e acontecimentos históricos, um retrocesso. Apesar
de alguns pontos de sua argumentação serem interessantes, como o confronto do
nepotismo, dos privilégios de nascimento, a solução apresentada para contornar o
problema é a meritocracia, a qual é apresentada sem maiores considerações e reflexões.
Nosso texto pôde, até aqui, reconstituir e expor a origem, finalidade e a
forma de configuração que são consideradas por Schopenhauer mais adequadas aos
desafios e problemas engendrados pela natureza humana. Agora, devemos entender qual
a base legítima da legislação, i.e., como o direito natural, segundo Schopenhauer, serve
de parâmetro valorativo para o direito positivo.

2.2.16. A Transferência da Doutrina Moral do Direito, por Inversão, para a

Legislação

Após estabelecer a doutrina do direito como sendo uma doutrina moral,


explicitar a origem, os tipos, e qual seria o modelo mais perfeito de Estado,
Schopenhauer argumenta que, ao contrário da moral, que tem como objeto de
investigação a conduta humana, i.e., o agir, e se restringe ao fazer (tun) justiça ou
injustiça, a ciência política – ou teoria da legislação – tem por objeto de análise o sofrer
(leiden) injustiça. Com o intuito de facilitar o entendimento dessa asserção, poder-se-ia
ilustrar a questão ao assinalar que a moral se propõe a responder à questão: “como o
indivíduo deve agir para ser justo?”, enquanto que a ciência política (teoria da
legislação), por ter como escopo de investigação o sofrimento da injustiça, perguntar-se-
ia “como evitar o sofrimento de injustiça?, como desestimular a prática de injustiça?”,
não possuindo como objeto de investigação o agir justo.
108

Moral e teoria da legislação convergem na medida em que a prática da


injustiça e o sofrer injustiça relacionam-se mutuamente, constituindo uma correlação. Se
fosse possível pensar uma prática de injustiça separada do sofrimento de injustiça pela
outra parte, o Estado não poderia proibi-la. A proibição é feita a partir do momento em
que há sofrimento de injustiça por uma das partes.
Para a moral, a disposição à injustiça é o único elemento a ser considerado.
Dessa forma, a vontade, obstinada a cometer injustiça, ao ser impedida por um poder
externo, não se dissocia da injustiça de fato cometida: moralmente o querer a injustiça e
o ser injusto são uma e mesma coisa.
O Estado tem apenas o ato (Tat) como escopo de investigação, na medida
em que há, como exposto acima, uma relação de reciprocidade entre este e o sofrimento
do outro. A disposição íntima, a intenção, é investigada apenas na medida em que, a
partir dela, conhece-se a significação do ato, na medida em que através dos motivos se
conhece os efeitos. Logo, pode-se afirmar que, segundo Schopenhauer, o Estado não
proíbe ninguém de querer ou de desejar matar o próximo, desde que esta instituição
política tenha certeza que o medo da punição inibirá qualquer ação que concretize esse
ato.
O Estado não almeja – nem teria o poder de – eliminar a disposição do
indivíduo de cometer injustiça, mas atua no sentido de coibir a ação, por meio da
contraposição de uma sanção a cada motivo possível para cometer injustiça, levando ao
abandono do primeiro; 200 este motivo contraposto é denominado por Schopenhauer de
punição implacável (unausbleibliche Strafe, ou punição inevitável). Assim, a pena
jurídica tem o objetivo de mostrar ao indivíduo não que ele poderia ser outro, mas que,
por determinados meios, ele não vai chegar aos seus fins. A pena jurídica só tem sentido
como uma prevenção e, para sê-lo, deve ser rigorosa, efetiva e infalível, porque ela não
muda o caráter do indivíduo, ela atua por meio da intimidação. Um conjunto de
contramotivos (Gegenmotiven) à prática da injustiça é o que Schopenhauer denomina
código penal (Kriminalkodex). Esse possui como propósito conseguir fazer, na medida
do possível, com que os indivíduos estejam mais motivados a obedecer à lei do que a
violá-la. Schopenhauer escreve: “[...] o código penal é um registro o mais completo

200
Sob o ponto de vista da liberdade da vontade, pode-se dizer que o Estado é ciente de sua
impossibilidade em alterar o íntimo da vontade, a vontade em-si, e, neste caso, o caráter inteligível dos
indivíduos; o Estado pode atuar no âmbito externo, apresentando motivos que possam influenciar a
vontade dos indivíduos da forma pretendida (o que, deve-se assinalar, não garante o êxito do planejado).
109

possível de contramotivos opostos a todas as ações criminais presumíveis – tudo isso in


abstracto, para fazer aplicação in concreto quando o caso ocorrer.” 201
Com o objetivo de evitar as ações criminosas – o ato de injustiça e o seu
correlato, o sofrer injustiça – a ciência política, ou legislação, empresta da moral a
doutrina do direito, que determina os limites entre justiça e injustiça, para poder utilizar-
se do reverso (Kehrseite) destes limites estabelecidos. A doutrina pura do direito tem
como base o dado a partir da moral, do caráter, do âmbito interno da experiência,
enquanto que a teoria do Estado considera o que é dado a partir da motivação. Ou seja,
estabelecidos o injusto e o justo como padrão objetivo de medida (quais sejam: o injusto
se configura pela invasão da esfera de afirmação da vontade no corpo alheio e o justo é
a negação do conceito de injustiça), invertem-se a perspectiva e a ordem dos valores: a
legislação vigorará de acordo com o limite do justo estabelecido, que não pode ser
violado no âmbito da experiência externa.
A consequência direta dessa inversão de valores é que os limites são
bloqueados a partir do lado passivo, ou seja, não é definido e prescrito o que se deve
fazer para ser justo, pregando um agir fundado em uma moral, mas sim define-se o que
é injusto, que deve ser suprimido através da punição. Essa inversão é mais bem
visualizada no fato da legislação mostrar ao indivíduo os direitos que ele não pode
violar; os conceitos de injustiça e justiça, originalmente morais, tornam-se jurídicos pela
mudança do ponto de partida: do lado ativo (a prática da injustiça) para o lado passivo
(o sofrer injustiça).
Toda a exposição aqui empreendida teve como intenção demonstrar que o
Estado não está simplesmente orientado contra o egoísmo, mas a ele deve sua origem e
existe exclusivamente em função dele, tendo sido instituído sob a correta pressuposição
de que a pura moralidade, i.e., a conduta justa a partir de fundamentos morais, não é
algo que se deva esperar dos indivíduos. 202 Se a conduta justa a partir de fundamentos
morais fosse praticada espontaneamente, o Estado seria uma instituição desnecessária e
supérflua. Essa última asserção parece constituir um ponto pacífico entre grande parte
dos pensadores que visam justificar a existência do Estado como: é o caso, por exemplo,
das teorias de Grotius, Hobbes, Rousseau, e Kant.

201
MVR, §62, p.441, I 407. No original: „demgemäß ist der Kriminalkodex ein möglichst vollständiges
Register von Gegenmotiven zu sämmtlichen, als möglich präsumirten, verbrecherischen Handlungen, —
Beides in abstracto, um vorkommenden Falles die Anwendung in concreto zu machen.“
202
Cf. MVR, §62, p.442, I 408.
110

A partir deste ponto de vista, argumenta-se que o Estado, orientado a


proporcionar condições de segurança para que os indivíduos convivam – que os limites
impostos pela legislação não sejam transgredidos –, não foi instituído contra o egoísmo,
mas contra as consequências desvantajosas dele. O egoísmo, assim, mostra uma de suas
faces: faz com que os indivíduos queiram continuar a existir na melhor situação
possível, e, para tanto, utiliza-se da faculdade de razão para instituir o Estado.
Assume-se, a partir do argumentado, que a finalidade do Estado é a garantia
da ordem social e, assim, das condições mínimas de convívio entre os indivíduos.
Dessa forma, duas consequências são dedutíveis no caso de o Estado alcançar
plenamente seu objetivo: (i) ninguém praticará injustiça; logo, (ii) ninguém sofrerá
injustiça.
É preciso ressaltar que para Schopenhauer o Estado, apesar de estar
orientado ao bem-estar – e bem-estar entendido apenas como a garantia de segurança
para o convívio em comum – dos indivíduos, não pode ir além de seu aspecto negativo,
a saber, do aspecto de imposição do direito: ele não pode proibir uma prática de
injustiça à qual não corresponda um sofrer injustiça do outro lado. Visto que isto é
impossível, o Estado proíbe qualquer prática de injustiça. O papel positivo, de fazer com
que cada indivíduo experimente a benevolência e obras de caridade, também não pode
ser imposto, porque dessa forma, segundo o autor, cada cidadão irá querer assumir um
papel passivo dentro do Estado – apenas usufruir de ações assistencialistas do Estado –,
não o ativo – praticá-las; como, segundo o autor, não existem razões para diferenciar e
atribuir a qual cidadão cabe cada função, o Estado só pode garantir um certo
ordenamento social que estabeleça a paz, deixando que cada indivíduo possa legislar
sobre os rumos de sua própria vida.
Do exposto, Schopenhauer conclui que a pura doutrina do direito, ou direito
natural, que melhor se denominaria direito moral,203 é a base, embora sempre ao reverso
(Kehrseite), de toda justa legislação positiva. Isso significa que os direitos positivados,
aqueles assegurados aos cidadãos pelo Estado, devem manter uma estrita relação com o
direito natural, assim como os deveres de proteção que o Estado assume. Dessa forma, a
legislação estaria assentada na mais precisa definição do justo e do injusto, embora
utilize, para termos práticos, o inverso dessa delimitação. Do contrário não se tem um

203
A argumentação de Schopenhauer, como visto, estabeleceu a equivalência e sinonímia destes três
termos.
111

Estado legal e justo, mas uma injustiça imposta aos seus cidadãos que é admitida
publicamente. Assim, é concluída a transferência da doutrina moral do direito para a
legislação, como é possível observar textualmente:

A legislação, como dissemos, toma de empréstimo à moral a pura doutrina do


direito, ou doutrina da natureza e dos limites do que é justo e injusto a fim de a
aplicar ao inverso para fins próprios, alheios à moral, e assim instituir uma
legislação positiva e os meios para mantê-la, ou seja, o Estado. A legislação
positiva, portanto, é a pura doutrina do direito aplicada ao inverso. 204

Nossa reconstrução da argumentação schopenhaueriana abordou quatro dos


cinco tópicos capitais considerados pelo autor no que se refere à doutrina do direito, a
saber, (i) a origem dos conceitos de injusto e justo, bem como sua aplicação e lugar na
moral; (ii) o direito de propriedade; (iii) a dedução da validade moral dos contratos; (iv)
a explanação da origem e do fim do Estado e da relação deste fim com a moral, assim
como da transferência apropriada da doutrina moral do direito, por inversão, para a
legislação. Resta, agora, analisar o processo de fundamentação e o modus operandi do
direito penal (Strafrecht), o quinto tópico a ser contemplado em uma exposição de uma
doutrina do direito.

2.2.17. Direito Penal (Strafrecht)

O direito penal existe exclusivamente dentro do Estado, pois todo direito de


punir é estabelecido exclusivamente pela lei positiva – corporificada nessa instituição. O
direito penal acoima o ato injusto, não a pessoa que pratica esse ato. Essa é punida
apenas por concomitância, sendo apenas a matéria (Stoff) na qual o ato é castigado com
o objetivo de que a lei conserve a sua força dissuasiva através do exemplo.205
O escopo do direito penal deve ser o ato, uma vez que seria um erro tentar
mudar o caráter dos transgressores, por meio da punição, visando educá-los e melhorá-
los moralmente. Segundo Schopenhauer, a educação deve ser entendida como um
benefício; já o castigo, como um malefício. A tentativa de unir duas finalidades distintas

204
MVR, §62, p.443, I 409. No original: „Die Gesetzgebung entlehnt, wie gesagt, die reine Rechtslehre,
oder die Lehre vom Wesen und den Gränzen des Rechts und des Unrechts, von der Moral, um dieselbe
nun zu ihren, der Moral fremden Zwecken, von der Kehrseite anzuwenden und danach positive
Gesetzgebung und die Mittel zur Aufrechthaltung derselben, d.h. den Staat, zu errichten. Die positive
Gesetzgebung ist also die von der Kehrseite angewandte rein moralische Rechtslehre.“
205
Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685.
112

– educar e punir – por um mesmo meio, a punição jurídica, seria ineficaz e, portanto,
um erro. 206 A punição é apenas um castigo que mesmo antes do delito já fora
determinado – um contramotivo registrado no código penal – para quem o cometer, e
cuja ameaça deve sobrepor-se a todo possível motivo que conduz à prática da injustiça.
Em SLV Schopenhauer escreve:

Pois as leis partem do correto pressuposto de que a vontade não era


moralmente livre, em cujo caso não se podia dirigi-la, mas que estava
coagida pelos motivos: de acordo com isso, ao ameaçar com uma pena
querem opor aos eventuais motivos para cometer um crime, contramotivos
mais fortes; e um código penal não é nada mais que um índice de
contramotivos às ações criminais. 207

A lei positiva, corporificada no Estado, é reconhecida por todos os cidadãos


que sancionaram um contrato comum, com vistas a acabar com os males do egoísmo
selvagem. Ora, se o Estado foi instituído pelos cidadãos por meio de um contrato pode-
se afirmar que estes membros estão, por um lado, sujeitos a infligir punição; por outro, a
sofrê-la. E, por se tratar de um contrato comum, a punição pode ser imposta, por meio
do Estado – que detêm o monopólio da violência – com total direito. Logo, outra
consequência direta deste contratualismo é que o objetivo imediato da punição em um
caso particular é o cumprir a lei como um contrato (Erfüllung des Gesetzes als eines
Vertrages). 208
Enquanto tal é o objetivo da punição, a lei (Gesetz) tem por objetivo
assegurar os direitos alheios, protegendo cada cidadão do sofrimento da injustiça
causada pelos males do egoísmo, o que equivale à prevenção dos crimes. A lei é o
instrumento do Estado instituído para que a ordem social seja mantida e,
consequentemente, os indivíduos possam fruir o bem-estar. Deste modo, o contrato
celebrado garante tais benefícios aos seus cidadãos, mas por outro lado obriga-os a
renunciar à prática da injustiça, e a assumir o fardo da manutenção da instituição
instaurada.

206
Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685.
207
SLV, p.140, III 569. No original alemão: „Denn die Gesetze gehen aus von der richtigen
Voraussetzung, daß der Wille nicht moralisch frei sei, in welchem Fall man ihn nicht lenken könnte;
sondern daß er der Nöthigung durch Motive unterworfen sei: demgemäß wollen sie allen etwanigen
Motiven zu Verbrechen stärkere Gegenmotive, in den angedrohten Strafen, entgegenstellen, und ein
Kriminalcodex ist nichts Anderes, als ein Verzeichniß von Gegenmotiven zu verbrecherischen
Handlungen.“
208
Cf. MVR, §62, p.444, I 410.
113

A lei, entendida como um contramotivo a uma injustiça a ser praticada, tem


na punição seu cumprimento, ou seja, a punição é a objetivação da lei enquanto poder
de impedir a prática de uma injustiça. É importante atentar que a lei e a punição são
orientadas em essência ao futuro (Zukunft), não ao passado (Vergangenheit). Esta
orientação ao futuro é critério que permite diferir a punição (Strafe) da vingança
(Rache).
A vingança é motivada simplesmente pelo que já aconteceu, ou seja, pelo
passado. Toda resposta a uma injustiça sofrida sem objetivo algum relacionado ao
futuro é vingança, e não pode ter outro objetivo senão, pela visão do sofrimento causado
a um outro, consolar a si mesmo do próprio sofrimento.209 Mas, no interior do sistema
filosófico schopenhaueriano, isso é eticamente injustificável: a injustiça sofrida de
modo algum autoriza a prática de outra injustiça – a não ser que ela esteja situada na
esfera do direito de coerção, na legítima defesa.
Qual seria, assim, o estatuto teórico da lei? Como visto, ela prevê um
contramotivo para cada ato injusto que possa ser praticado. Contudo, esse contramotivo
não é direcionado à melhoria moral do indivíduo, transformando aquilo que o indivíduo
é, mas, antes, busca atuar na constelação de motivos e alterar os meios pelos quais cada
um busca alcançar seus fins: são fornecidas razões para que sejam eleitos os meios pelos
quais não há a prática de injustiça. As razões apresentadas são as possíveis sanções
sofridas no caso de se insistir pela via ilícita. Schopenhauer enxerga no sistema
penitenciário americano a adequação da lei com a sua finalidade e com regras de
organização que contribuem para o seu melhor funcionamento e eficácia:

É sobre isso que se funda o sistema penitenciário americano: não tem a


intenção de melhorar o coração do criminoso, mas penas de endireitar-lhe a
cabeça, para que ele chegue à compreensão de que trabalho e honestidade são
um caminho mais seguro e mesmo mais fácil para o próprio bem do que a
patifaria. 210

Pode-se alterar a ação do indivíduo, mas não o seu querer, e isso significa:
não é possível mudar o fim que a vontade desse indivíduo busca, mas apenas o caminho
trilhado para atingi-lo. Tendo como base esse dado alcançado pela investigação
empreendida, Schopenhauer define o papel da lei.

209
Cf. MVR, §62, p.445, I 411.
210
SFM, §20, p.198, III 725. No original alemão: „Hierauf gründet sich das Amerikanische
Pönitentiarsystem: es beabsichtigt nicht, das Herz des Verbrechers zu bessern, sondern bloß, ihm den
Kopf zurechtzusetzen, damit er zu der Einsicht gelange, daß Arbeit und Ehrlichkeit ein sicherer, ja
leichterer Weg zum eigenen Wohle sind, als Spitzbüberei.“
114

Contudo, existe uma certa função pedagógica da sanção jurídica, uma vez
que as leis acabam por gerar, ainda que minimamente, um determinado grau de
instrução, que em níveis maiores corresponderiam à educação: a atuação na constelação
de motivos dos indivíduos pode contribuir para o aprendizado e, assim, ajudar o
indivíduo a escolher os meios mais adequados para obter o fim almejado. Através dos
motivos é possível forçar e obter a legalidade, mas nunca a moralidade. Em SFM,
Schopenhauer considera que neste aspecto há uma cultura moral e uma ética da
melhoria, mas que seu limite, alcance e horizonte são limitados e facilmente
determinados. Em última instância “A cabeça é aclarada, mas o coração permanece
incorrigível.” 211
A punição e o castigo atuam na constelação de motivos do indivíduo como
exemplos a serem considerados, como amostras das consequências engendradas pela
realização de uma determinada ação. Schopenhauer estabelece uma relação entre
punição e impunidade: da mesma forma como a punição inibe a repetição de um ato, a
impunidade incentiva a ocorrência de ações criminosas de mesmo teor. 212
Por ser o foco da pena punir o ato, fazendo-o servir de exemplo, na ética
schopenhaueriana a pena de morte é tratada como uma forma de punição legítima e
justificável. 213 Contudo, como já mencionado, deve sempre haver uma proporção entre
o ato a ser punido e a punição que será aplicada. 214 No cômputo para definição da pena
também devem ser considerados os motivos que impulsionaram a ação proibida.
Todavia, segundo o autor, a ignorância, as aflições externas, as dificuldades financeiras,
etc., não podem servir como escusa para justificar a causa de um crime, uma vez que,
seguindo o bem conhecido argumento liberal, inúmeras pessoas vivem em condições
deste tipo e não comentem crime algum. 215

211
SFM, §20, p.199, III 725. No original alemão: „Der Kopf wird aufgehellt; das Herz bleibt
ungebessert.“
212
“Como o câncer e a gangrena podem afetar por contagium as zonas mais próximas às zonas afetadas,
um delinquente impune será imitado por novos delinquentes seguindo seu exemplo.” HN, Metafísica dos
Costumes, p.112, p.175. No original alemão: „wie Krebs und Kalter Brand durch contagium [Ansteckung
(durch Berührung)] jeden nächsten Theil sich ahnlich machen; so wirkt ein Verbrechen wenn es
ungestraft hingeht unfehlbar neue Verbrechen durch sein Beispiel.“
213
Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686.
214
“Que a pena deve manter uma exata proporção com o crime, tal e como ensina Beccaria, não se deve
ao fato de ser uma expiação do crime, mas uma adequação ao valor daquilo a que responde” MVR II,
Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686. No original alemão: „Daß, wie Beccaria gelehrt hat, die Strafe ein
richtiges Verhältniß zum Verbrechen haben soll, beruht nicht darauf, daß sie eine Buße für dasselbe wäre;
sondern darauf, daß das Pfand dem Werthe Dessen, wofür es haftet, angemessen seyn muß.“
215
MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685.
115

2.2.18. Um Aparente Paradoxo: A Questão da Imputabilidade

A exposição anterior acerca da teoria da ação e da liberdade da vontade


auxiliará na resolução de uma objeção comumente feita à doutrina do direito de
Schopenhauer: se as relações jurídicas são pautadas e fundamentadas na imputabilidade,
i.e., na possibilidade de responsabilizar o indivíduo por suas ações – e essa
responsabilidade é assentada na concepção de livre-arbítrio, refutada pelo filósofo –,
como responsabilizar o indivíduo por seus atos e, assim, puni-lo por uma conduta
considerada injusta?
Como fora argumentado, as ações do indivíduo são exteriorizações de seu
caráter inteligível e esse, sendo imutável, concerne ao âmbito da vontade em-si. O
direito, como concebido por Schopenhauer, é regulado pelo Estado e este tem ciência de
que não pode mudar o que o ser é, mas de que pode apenas influenciar a ação do
indivíduo por meio da contraposição de motivos. A lei, assim, afeta apenas o
comportamento expresso no fenômeno pelo caráter empírico, não a essência do ser: o
direito penal atua apenas no plano fenomênico; no plano da coisa-em-si a atuação é da
justiça eterna (ewige Gerechtigkeit).216 Assim, o que interessa à aplicação do direito é a
exteriorização do caráter inteligível através do caráter empírico no mundo fenomênico,
ou seja, o agir, o operari, o comportamento do indivíduo. As disposições íntimas dele,
neste contexto, são irrelevantes, uma vez que o escopo de tipificação das ocorrências
jurídicas é a ação que cause um sofrimento.
A responsabilidade deve ser entendida a partir de uma dupla consideração:
por um lado, da perspectiva da legalidade, o Estado atribui a responsabilidade da ação
ao indivíduo, uma vez que ele considera como fator principal para análise o ato, a ação
praticada e o seu agente; por outro, no plano da moralidade, o indivíduo se sente
responsável moralmente por suas ações, uma vez que elas são manifestações dele
mesmo: “as ações do homem são consequências do que ele é, e sua responsabilidade por
elas decorre então do que ele é.”217

216
A justiça eterna é apresentada e analisada na seção 2.2.20 Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça
Eterna.
217
CARDOSO, R. A idéia de justiça em Schopenhauer. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008, p.
148.
116

Dessa forma, o indivíduo, por poder ser responsabilizado moralmente e por


possuir o sentimento dessa responsabilidade, admite ser imputado pelas ações por ele
praticadas, i.e., pode-se atribuir a ele a autoria ou responsabilidade por certo ato lícito
ou ilícito praticado e, assim, premiá-lo ou puni-lo. Dessa forma, nessa correlação entre
ser imputado e admitir ser imputado por uma ação praticada, por reconhecer-se
moralmente como autor de tal ação, ficam asseguradas a possibilidade de
responsabilizar um indivíduo por seus atos e as estruturas básicas para o direito poder
atuar e se efetivar. O contrato celebra, também, a admissão dessa relação: celebra o
reconhecimento de que posso ser imputado e punido pelas minhas ações porque as
reconheço como minhas.

2.2.19. Considerações Sobre a Justiça Temporal (zeitliche Gerechtigkeit) e

seus Limites

Como visto, Schopenhauer justifica a hostilidade entre os indivíduos a partir


de duas perspectivas: (i) a perspectiva ética, ao mostrar que cada um quer tudo para si, e
(ii) a perspectiva epistemológica, ao mostrar que o sujeito do conhecimento é o
sustentáculo do mundo. O ser humano, por ser um organismo mais complexo, possui
necessidades mais complexas: a partir da complexidade do corpo humano e da
complexidade de consciência humana (a razão), o ser humano pôde refletir acerca da
sua situação de penúria no estado de natureza, e pode procurar soluções para superá-la.
Pelo cálculo da razão o Estado foi concebido; e pelo contrato social, instituído. Mas não
se trata de uma vinculação a uma concepção utilitarista, a qual visa o bem como
finalidade, pois o bem não é a finalidade do Estado; 218 evitar o injusto, instaurando a
ordem social é o modo pelo qual se tornou possível contornar os males do egoísmo
animal destrutivo. Mas essa solução não é um ultrapassamento mesmo do egoísmo, é
apenas a limitação egoísta do egoísmo.
A justiça temporal tem sua sede no Estado, e, como visto, a doutrina do
Estado, enquanto conjunto dos dispositivos institucionais e normativos de combate aos
atos injustos, refere-se à pura doutrina do direito, que tem no justo e no injusto por
natureza seu padrão objetivo de medida; e o justo e o injusto referem-se aos limites da

218
Cf.2.3.1 Seria Moral o Fundamento das Doutrinas Schopenhauerianas do Direito e do Estado?, p.124.
117

afirmação da vontade para vida. Essa forma de conceber o Estado faz com que essa
instituição não possua nenhum status moral ou função ética, diferindo e sendo até
mesmo contrário à forma pela qual foi concebido pelo idealismo alemão.
Recordemos o motivo fundador do Estado e o objetivo dessa instituição na letra
do filósofo:

No Estado, portanto, reconhecemos o meio pelo qual o egoísmo, servindo-se


da faculdade de razão, procura evitar as suas próprias consequências funestas
que se voltam contra si, e, assim, cada um promove o bem-estar geral, porque
dessa forma assegura o seu bem-estar particular. 219

Schopenhauer especula sobre como seria um Estado que cumprisse de forma


plena seus objetivos, i.e., como seria se o Estado se realizasse de forma plena. A
resposta hipotetizada enuncia que um domínio cada vez maior sobre a natureza seria
possível e com isso seria possível a extinção de todo o mal, instaurando-se, assim, algo
parecido a um reino utópico. 220 Mas, fugindo à utopia, o autor considera que, além do
Estado sempre se encontrar distante de tal fim, mesmo se este fosse alcançado, ainda
nos restariam outros inumeráveis males, e a vida manteria sua essência de sofrimento. E
se os males fossem erradicados, subitamente o tédio ocuparia o lugar deles – não é
possível escapar ao pêndulo da vontade. 221 O autor ressalta: as disputas e discórdias
entre os indivíduos nunca são totalmente suprimidas pelo Estado, porque a
autocontradição e a discórdia são a essência íntima de todos nós e o mundo é um
espelho dessa essência. Mas, supondo que o Estado alcançasse plenamente o seu fim,
supondo que todos os males fossem superados, supondo que os indivíduos vivessem em
completa harmonia, qual seria o prognóstico de Schopenhauer? O denominado filósofo
do pessimismo, nesse ponto, faz jus a sua alcunha: “[...] o resultado seria a efetiva

219
MVR, §62 p.447, I 413. No original: „Wir haben also im Staat das Mittel kennen gelernt, wodurch der
mit Vernunft ausgerüstete Egoismus seinen eigenen, sich gegen ihn selbst wendenden schlimmen Folgen
auszuweichen sucht, und nun Jeder das Wohl Aller befördert, weil er sein eigenes mit darin begriffen
sieht.“
220
Vale lembrar que para Schopenhauer a monarquia constitucional hereditária tripartida se aproxima da
forma de governo mais perfeita.
221
Aqui faço referência à célebre passagem do autor que enuncia que a vida, vontade, é como um pêndulo
que oscila entre dor e tédio. “Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a
dor e o tédio, os quais em realidade são seus componentes básicos”. MVR, §57, p.402, I 368. No original
alemão: „Sein Leben schwingt also, gleich einem Pendel, hin und her, zwischen dem Schmerz und der
Langenweile, welche beide in der That dessen letzte Bestandtheile sind.“
118

superpopulação de todo o planeta, cujo mal só uma imaginação audaciosa poderia agora
tornar presente.”222
A justiça temporal se origina e se produz no elemento mesmo do egoísmo; e
pelo fato de ser empírica, i.e., fenomênica, ela não pode ser mais que ilusão, ela não
pode deixar de ser falha, ela não pode transpor suas limitações. As precauções contra o
egoísmo não podem ser completamente eficazes porque elas são apenas aparência, elas
não melhoram moralmente o ser humano, nem extirpam seus desejos de buscar o que
querem e de eventualmente cometerem injustiças. Tão logo a ameaça do castigo ou a
promessa da recompensa sejam afastadas do indivíduo, os atos injustos retornam à
ordem do dia. Viver é tornar-se aquilo que se é, e o caráter suscetível às motivações
egoístas é a mais frequente configuração da concreção da vontade num corpo. Dessa
forma, a justiça temporal não pode ser plenamente realizável. Ela se realiza na medida
em que também é um não alcance de seu fim último e pleno.
O Estado, enquanto organização do egoísmo coletivo esclarecido, e o
direito, enquanto meio pelo qual se torna possível impor limites às manifestações do
egoísmo individual, não podem ser considerados o ultrapassamento do egoísmo mesmo.
Antes, são medidas de asseguramento da existência social, são a afirmação da diferença
entre um indivíduo e o outro, um enredamento persistente no princípio de individuação;
isso significa que viver no Estado é viver no seio do egoísmo coletivo esclarecido
organizado por regras jurídicas.
Conceitos como direito e moral, nucleares nesse ponto da argumentação do
filósofo da vontade, só são passíveis de serem entendidos em sua totalidade quando
colocados em relação um com o outro: a justiça temporal, i.e., a retaliação (Vergeltung),
o Estado, seria o elemento relacional entre a moral – o conceito sempre positivo, que é
referido ao ato, à parte ativa – e o direito – o conceito negativo, que é referido ao sofrer,
à parte passiva. A justiça temporal seria o elo entre esses dois conceitos na medida em
que relaciona o interior – a dimensão da experiência interna do indivíduo, o ser, o esse,
o caráter, o sentimento de prática da injustiça – com o exterior – o agir, o operari, a
motivação, o sentimento de sofrer injustiça. O conceito de consciência moral
(Gewissen) mostra, aqui, sua centralidade ao possibilitar a delimitação e a articulação da

222
MVR, §62, p.447-448, I 414. No original: „[…] das Resultat seyn, dessen entsetzliche Uebel sich jetzt
nur eine kühne Einbildungskraft zu vergegenwärtigen vermag.“
119

doutrina pura do direito com a ciência política, permitindo a determinação da base


teórica do Estado e do sistema penal, bem como o seu escopo, e a sua forma de atuação.
É possível, mediante o exposto, apresentar e defender a tese de que o Estado
pode ser entendido como o elo entre os âmbitos da vontade e da representação, como
aquilo que intermedeia as relações entre os indivíduos no mundo empírico, assimilando
e utilizando o reverso da pura doutrina do direito para fins práticos de organização
social. Dessa forma, a doutrina do direito ocupa o status nucelar da ética
schopenhaueriana, como a forma pela qual é possível conter as desvantajosas
consequências da natureza egoísta humana e possibilitar a vida em sociedade. O Estado
– quando justo, i.e., quando toma o direito natural como parâmetro valorativo para o
direito positivo – seria a linha intermediadora entre o justo moral e sua tentativa de
efetivação ou asseguração no plano empírico, através das leis.
Junto à filiação às teorias do direito natural racional pode-se notar o fato de
Schopenhauer, sem mencionar, recorrer ao conceito de justiça como equidade, i.e., ao
fato dele recorrer a um conceito de justiça que independe da lei positiva, um conceito
baseado e fundamentado em um sentimento do que se considera o justo – a negação da
injustiça.
A justiça temporal de alguma forma é falha porque limitada: por depender
das instituições humanas, por ser suscetível ao acaso e ao engano. Nesse aspecto ela
pode ser considerada oposta à justiça eterna. Talvez, a passagem da justiça temporal
para a justiça eterna possa ser entendida como a passagem do registro do direito para o
registro da moralidade.

2.2.20. Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça Eterna (ewige Gerechtigkeit)

Como mencionado anteriormente, o conceito de justiça é utilizado por


Schopenhauer em três registros: justiça voluntária (a justiça como uma virtude), justiça
temporal, e justiça eterna. Até esse ponto, tratamos quase que exclusivamente da justiça
temporal; agora nos ocuparemos da investigação acerca da justiça eterna.
A justiça eterna independe das instituições humanas e não está submetida ao
acaso e ao engano, não sendo, dessa forma, incerta nem oscilante, mas infalível, firme e
certa. Ela não requer a mediação do tempo, do espaço, e da causalidade para compensar
120

um ato maldoso, através de consequências ruins. Ela, assim, independe da experiência.


Ademais, apesar de ela reger o mundo, isso não significa que ela balanceie uma
injustiça cometida (ausgeübtes Unrecht) em um determinado lugar com um sofrimento
em outro local: nela, a punição tem de ser tão ligada à injúria que ambas se tornam unas.
Mas o que isso significa?
Isso significa que a justiça eterna reside, segundo Schopenhauer, na essência
do mundo, 223 na coisa-em-si, revelando, dessa forma, o seu caráter metafísico; ou seja,
ela não considera o mundo enquanto fenômeno, enquanto aparência, i.e., ela não
considera o sofrimento particular ou a mesquinhez de cada indivíduo, 224 não podendo
ser encontrada na experiência. Para ser apreendida, então, é preciso adotar o ponto de
vista transcendental. Esse ponto de vista permite entender que a finitude, o sofrimento, e
os tormentos deste mundo são expressões daquilo que a vontade quer, e,
consequentemente, configuram-se de maneira consoante com a forma da vontade
querer: tal qual é a vontade, é o mundo.225 Nesta chave de leitura, pode-se entender o
conceito de justiça eterna como uma tautologia: ele enuncia que o mundo é o que é. E o
que é o mundo? Um espelho do que é vontade. E o que é vontade? Um impulso cego e
irracional que traz em si a marca ontológica da sua insatisfação eterna, discórdia. Todo
ato de vontade satisfeito é apenas uma transição para um novo ato de querer da vontade.
Portanto, ela nunca pode ser satisfeita; ela é eternamente padecente. O mundo não é
mais que o espelho dessa volição, dessa autodeterminação da vontade.226 Essa
constatação, em sua última consequência, leva Schopenhauer a concluir que “[...] tudo o
que acontece ou pode acontecer a cada um, a justiça sempre lhe é feita, pois sua é a
vontade.” 227 Essa afirmação é mais bem formulada quando o filósofo escreve que:

Se os seres humanos, tomados como um todo, não fossem tão indignos, então
seu destino, também tomado como um todo, não seria tão triste. Nesse
sentido podemos dizer: o mundo mesmo é o tribunal do mundo. Pudesse

223
Cf. MVR, §63, p.449, I 415.
224
“Schopenhauer, nesse ponto, não está tecendo comentários acerca do sofrimento individual de cada ser
humano e da mesquinhez de cada um”. Tradução para: “Schopenhauer is not at this point commenting on
individual human suffering and individual human vileness”. HAMLYM, D.W. Eternal Justice. In:
Jahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft 1988. Band 69. Frankfurt am Main: Verlag Waldemar
Kramer, 1988, p.281.
225
Cf. MVR, §63, p.449, I 415.
226
Cf. MVR, §63, p.449, I 415.
227
MVR, §63, p.449, I 415. No original: „und in allem was ihm widerfährt, ja nur widerfahren kann,
geschieht ihm immer Recht. Denn sein ist der Wille.“
121

alguém colocar toda a penúria do mundo em UM prato da balança, e toda a


culpa no outro, o fiel permaneceria no meio. 228

O mundo é o tribunal do mundo significa que do ponto de vista metafísico o


mundo é perfeitamente retribuidor e retaliativo (vergeltend), 229 que a punição já está em
nós mesmos: nascer é um delito, pois nascemos chorando e, conforme uma lei eterna, a
morte vem em seguida como punição. 230 Essas asserções são expressas por alguns
comentadores de Schopenhauer de maneira pontual, como Alexis Philonenko, que
enuncia: “a fatalidade é a verdadeira justiça que se traduz em tragédia”,231 ou quando
Marie-José Pernin escreve que “somos o que temos merecido ser.” 232 Ambos se referem
a um tipo de justiça que vem-a-ser, com justeza, a partir da expressão da vontade
objetivada no agir, e que, assim, expõe a essência de dor e sofrimento do mundo.
Contudo, o indivíduo comum não consegue ter acesso para além do mundo
fenomênico, para além do princípio de individuação: ele não intui a coisa-em-si, a
essência das coisas, mas apenas experiencia os fenômenos fragmentados e situados
espaço-temporalmente em uma cadeia causal dessa vontade que é una noumenicamente.
Devido a essa inacessibilidade, dessa deficiência em perceber a mesma essência
metafísica nos diversos fragmentos de vontade objetivados no mundo como
representação, o indivíduo não consegue apreender e entender o significado da justiça
eterna, nem perceber a retaliação / retribuição no mundo, o delito que é viver.
Mas, qual seria a possível causa responsável por essa incapacidade dos
indivíduos em perceberem a univocidade metafísica de suas essências? Schopenhauer
utiliza-se de uma bela metáfora para explicar essa inferência. Ele compara o indivíduo
228
MVR, §63, p.450, I 415-416. Tradução ligeiramente alterada. No original: „wären sie nicht, im Ganzen
genommen, nichtswürdig; so würde ihr Schicksal, im Ganzen genommen, nicht so traurig seyn. In diesem
Sinne können wir sagen: die Welt selbst ist das Weltgericht. Könnte man allen Jammer der Welt in e ine
Waagschale legen, und alle Schuld der Welt in die andere; so würde gewiß die Zunge einstehen.“
Pode-se dizer que, em nossa chave de leitura, penúria e culpa são apenas rótulos diferentes para uma
mesma, por assim dizer, essência colocada em dois pratos de uma mesma balança.
229
Cf. Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, p.46. Deve-se frisar que essa retaliação /
retribuição (vergeltend) deve ser entendida do ponto de vista metafísico, uma vez que é necessário adotar
o ponto de vista transcendental para poder entender o significado da Justiça Eterna. Trata-se do em-si, da
essência íntima do mundo, do fato da humanidade, considerada em sua totalidade, ser o que ela não
deveria ser, ser o que ela tem merecido ser, ser o que ela é. Além do fato de que, do ponto de vista
fenomênico, a retaliação / retribuição implica a temporalidade, e como visto, a Justiça Eterna independe
do princípio de individuação. (Cf. MVR, §63, p.448, I 415).
230
Cf. MVR, §63, p.453, I 419.
231
PHILONENKO, A. Schopenhauer – una filosofía de la tragedia. Tradução de Gemma Muñoz-Alonso
López. Barcelona: Anthropos Editorial del Hombre, 1989, p.205.
232
PERNIN, M. Schopenhauer – decifrando o enigma do mundo. Tradução de Lucy Magalhães. RJ:
Jorge Zahar, 1995. p.34.
122

comum a um barqueiro que se apoia e confia firmemente em sua pequena e frágil


embarcação, em meio a um oceano sem fim. O barqueiro seria o indivíduo, o oceano os
sofrimentos e dores do mundo, e a pequena e frágil embarcação, na qual o indivíduo se
apoia e confia firmemente, o princípio de individuação.
Schopenhauer argumenta que as formas cognitivas do fenômeno separam o
indivíduo do mundo restante. Essa separação reside exclusivamente no fenômeno, não
na coisa-em-si, pois é no fenômeno que existe a pluralidade. E, como visto,
precisamente neste ponto, na coisa-em-si, na essência dos seres, é que repousa a justiça
eterna.233 Esta se furta ao olhar turvado pelo conhecimento que segue o princípio de
razão e o princípio de individuação. Como Icilio Vechiotti assinala: “a justiça eterna
consiste na tomada de consciência da unidade das coisas como vontade.”234
Se a essência do mundo é sofrimento, então cada indivíduo carrega em si,
enquanto fragmentação dessa essência, todos os sofrimentos do mundo como seus; cada
um traz dentro de si um inferno. Mas, para conceber e apreender o significado da justiça
eterna, o indivíduo precisa elevar-se por sobre o conhecimento que segue o fio condutor
do princípio de razão: ele precisa abandonar o ponto de vista da individuação e adotar o
ponto de vista transcendental. Ao conseguir realizar tal tarefa, o sujeito perceberá que,
em essência metafísica, ele e os demais fenômenos que lhe aparecem são expressão de
uma mesma vontade: ele apreenderá que oprimido e opressor são a mesma vontade, e,
portanto, unos; que a vontade, a todo instante, dilacera a si mesma. Essa apreensão, o
conhecimento do significado da justiça eterna, faz com que o indivíduo perceba a
impossibilidade de separação entre o malum culpae e o malo poenae. 235
São poucos os que conseguem realizar a tarefa de abandonar o ponto de
vista da individuação e, consequentemente, o princípio de individuação para apreender
o significado da justiça eterna. Não é na experiência que o indivíduo encontrará a justiça
eterna. Mas a transmissão de tal conhecimento pode ser feita por diferentes formas: (i)
de modo esotérico, aos iniciados, explica-se tal apreensão, via Upanixade, e dentro das
possibilidades e limitações dos conceitos, através da fórmula tat twam asi (isto és tu);
(ii) de modo exotérico, aos não iniciados, o povo, esse conhecimento foi traduzido para
forma do mito, o que não permite a apreensão direta de tal conhecimento.

233
Isto é, na vontade, o que está de acordo com a asserção dos demais comentadores citados.
234
VECCHIOTTI, I. Schopenhauer. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1990. (Biblioteca
Básica de Filosofia), p.44.
235
“Mal da culpa” e “Mal da pena”, respectivamente.
123

Schopenhauer, assim, observa que as religiões podem ser entendidas como uma
roupagem mítica para exposição do conhecimento que não pode ser apreendido pela
tosca inteligência comum. 236
O mito utilizado para explicar a justiça eterna é o mito da transmigração das
almas. Esse mito ensina que todos os sofrimentos infligidos em vida pelo indivíduo a
outros seres têm de ser expiados em uma vida posterior neste mundo e precisamente
pelos mesmos sofrimentos. Em contrapartida, o mito enuncia recompensas pelas boas
ações praticadas, como o renascimento em figuras excelentes e mais nobres. 237 Para
Schopenhauer, nunca houve, nem haverá um mito tão intimamente ligado à verdade
filosófica.238
Schopenhauer, em suas notas de aula, ainda especula sobre uma possível
objeção: “Se em linhas gerais o azar e o erro assenhoram-se sobre a vida humana e
sobre o curso do mundo, como pode haver lugar para a justiça?”.239 A primeira
observação a ser feita é a de que não se encontrará a justiça eterna na experiência, i.e.,
no mundo fenomênico. Muito pelo contrário, fenomenicamente os sofrimentos estão
repartidos de forma extremamente desigual, assim como os prazeres. 240 Não existe
proporção nem correspondência entre o valor do indivíduo e seu fatídico destino. 241 A
essência da humanidade é a essência do nosso mundo: vontade, i.e., discórdia,
contradição, carência, sofrimento.
Por fim, após uma pequena explanação de como Schopenhauer expõe o
conceito de justiça eterna, pode-se indicar (i) as formas pelas quais ela se revela e é
definida, e (ii) o papel sistemático que ela cumpre na filosofia schopenhaueriana.
Como exposto, o significado da justiça eterna pode ser apreendido ou
explicado: do ponto de vista de nossa essência metafísica somos uma mesma vontade, e,
portanto, compartilhamos a mesma essência de sofrimento. Por consequência, o mundo
é um espelho do que somos: somos o que merecemos ser. O sofrimento é a punição pela
nossa existência, e a justiça eterna é exatamente essa consequência, essa retaliação /
retribuição, ao que somos.

236
Cf. MVR, § 63, p.454, I 420.
237
Cf. MVR, § 63, p.454-455, I 420-421.
238
Cf. MVR, § 63, p.455, I 421.
239
HN, Metafísica dos Costumes, Cap.7, p.119, p.302. No original alemão: „Ueberhaupt beherrschen das
Menschenleben und den Weltlauf Zufall und Irrthum: wie sollte da die Gerechtigkeit Raum finden?“.
240
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, Cap. 7, p.119, p.302.
241
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, Cap. 7, p.120, p.302.
124

Quanto ao papel sistemático da justiça eterna, Schopenhauer aponta duas


funções relevantes: (i) a compreensão da relevância ética das ações, e,
consequentemente, (ii) a compreensão da natureza da virtude e do vício.
A partir do exposto, espera-se que os devidos contornos tenham sido dados
à exposição ao serem explicitados: (i) o que é e qual o significado da justiça eterna, (ii)
o ponto de vista que deve ser adotado para o seu correto entendimento, a saber, o ponto
de vista transcendental – postura metodológica que evita uma série de equívocos
engendrados pela apreciação fenomênica do conceito –, (iii) a apreensão do significado
e as duas formas de transmissão da justiça eterna, e (iv) a resposta a uma objeção
artificial formulada por Schopenhauer, oriunda da adoção do ponto de vista fenomênico.
Assim, espera-se que tenha ficado claro que a apreensão do significado da
justiça eterna consiste em perceber que, do ponto de vista transcendental, i.e., do ponto
de vista metafísico, somos a mesma essência. E, como consequência direta da apreensão
desse significado, que a justiça eterna não é uma equidade ou justiça no sentido de ser
um ato retribuidor / retaliativo no tempo, espaço e em uma cadeia causal. Ela é
retribuidora / retaliativa na medida em que é a expressão de uma tautologia e de um
paradoxo que enunciam que o mundo só pode ser o que ele não deveria ser; que o
mundo só pode ser o que ele tem merecido ser, que o mundo só pode ser o que ele é:
vontade, i.e., contradição, dor, carência, miséria, sofrimento, discórdia, falta,
sofrimento.

2.3. Situando as Doutrinas do Direito e do Estado: o Utilitarismo,

Kant e o Jovem Schopenhauer

2.3.1. Seria Moral o Fundamento das Doutrinas Schopenhauerianas do

Direito e do Estado?

A partir do exposto, é possível perquirir criticamente o fundamento das


doutrinas schopenhauerianas do direito e do Estado, investigando qual o estatuto
ontológico de tal fundamentação. O processo de fundamentação dessas duas doutrinas
parece estar situado na identificação e definição de uma certa moralidade – a qual
constitui a base para todo justo direito positivo, para o direito civil – e na descrição da
125

passagem do âmbito dessa moralidade para o âmbito da legalidade. Contudo, pode-se


observar que a reta-razão consiste em um cálculo de utilidade com vistas à adequação
dos meios ao melhor fim almejado possível, e que por um cálculo de utilidade constitui-
se o Estado.
Dessa forma, surge a seguinte questão: as doutrinas do direito e do Estado
possuem um fundamento moral ou utilitário (e utilitário entendido, aqui, como a
identificação do bom para com o útil)? Em primeiro lugar, para que seja possível avaliar
a questão com maior clareza e de modo mais acertado, deve-se separá-la em três
âmbitos: o que se refere ao (i) direito natural ou doutrina pura do direito, o que se refere
à (ii) instituição do Estado, e o que se refere ao (iii) direito positivo.
Como visto, a pura doutrina do direito, ou direito natural, é uma doutrina
moral. A exposição e o desenvolvimento da argumentação nesse ponto são claros e não
deixam qualquer sombra de dúvida sobre a natureza de tal tipo de direito. O problema
maior repousa sobre o estatuto constitutivo e originário do Estado, que posteriormente
institui e regulamenta o direito positivo. O direito positivo é uma ferramenta do Estado
que possui como tarefa auxiliar na determinação da estrutura básica da convivência.
Segundo Schopenhauer, o direito positivo deve ter o direito natural como parâmetro
valorativo para poder ser considerado justo. Assim, como visto, o Estado, a forma
moderna de direito à coerção pública, surge por um cálculo de utilidade que chega à
conclusão de que a existência da coação é mais vantajosa que sua não existência, i.e.,
que o estado de natureza apenas pode ser superado pelo reconhecimento de um
ordenamento jurídico que consiga se impor, por meio do direito positivo – i.e., por meio
do monopólio e utilização da violência –, sobre todos os indivíduos particulares,
assegurando que os pactos sejam cumpridos, ou seja, garantindo que os contratos
estabelecidos não sejam quebrados.
Schopenhauer, como já exposto, filia-se à corrente teórica contratualista no
que se refere à origem do Estado. Mas, a partir do exposto acerca da reta-razão, poder-
se-ia considerar esse contratualismo utilitário? Aqui a questão assume outras
dificuldades, como: (i) é possível associar contratualismo e utilitarismo, ou eles
possuem diferenciações conceituais incompatíveis?; (ii) de que forma é possível
entender utilitarismo sem cair em uma generalização manualesca?; (iii) não seria algo
artificial e estéril o empreendimento de aproximar a filosofia schopenhaueriana e o
utilitarismo?
126

A questão só é lícita de ser feita por conta da passagem pontual em que


Schopenhauer escreve que o Estado surge por um cálculo de utilidade da razão. 242 A
partir desta passagem pode-se inclusive cogitar que, se o Estado surge por um cálculo
de utilidade, Schopenhauer seria então um autor utilitarista. O termo utilitarismo pode
remeter, em sentido amplo – entendido como a identificação do bom para com o útil –, a
Epicuro (341-271 a.C.), e, em sentido estrito, aos filósofos ingleses – notadamente
Jeremy Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873).
Seria possível fazer tal aproximação em seu sentido amplo, entendendo o
utilitarismo a partir da identificação do bom para com o útil? A primeira associação
geralmente feita nesse caso refere-se à felicidade como finalidade da ação. Contudo, a
argumentação de Schopenhauer não permite que se identifique a origem do Estado e o
cálculo de utilidade efetuado pela razão com a busca pela felicidade.243 Como sabido,
para Schopenhauer, a felicidade é um fenômeno meramente negativo, a ausência da dor.
O Estado não tem como finalidade promover a maior felicidade possível aos seus
cidadãos, mesmo porque, como exposto, ele possui apenas três finalidades relativas à
proteção que estão de acordo com a finalidade da ação da maior parte dos indivíduos, a
saber, a autoconservação.
Para Schopenhauer, o conceito de bom (Gut) é essencialmente relativo e
indica a “adequação de um objeto com algum esforço determinado da vontade”
(Angemessenheit eines Objekts zu irgendeiner bestimmten Bestrebung des Willens). 244
Assim, de acordo com o autor, bom é tudo aquilo que é favorável à vontade em alguma
de suas exteriorizações e satisfaz seus fins, por mais diferentes que essas coisas possam
ser noutros aspectos. 245 Em suma, bom é tudo aquilo que é exatamente como o
indivíduo quer que seja.
O útil (nützlich), segundo Schopenhauer, seria uma subespécie do conceito
de bom, uma satisfação apenas mediata da vontade em relação ao futuro.246 Bom, sendo
dessa forma um conceito relativo, por ser a expressão positiva de uma referência a uma
vontade cobiçosa, parece relacionar-se, nesse caso (no caso da origem do Estado), com

242
Cf. MVR, §62, p.439, I 404-405.
243
Esse fato apenas corrobora o afastamento da ética schopenhaueriana do eudaimonismo clássico.
244
Cf. MVR, §65, p.459, I 426.
245
Cf. MVR, §65, p.459, I 426.
246
Cf. MVR, §65, p.460, I 426.
127

o egoísmo coletivo, constituindo-se na correlação entre utilidade particular (egoísmo


individual) e utilidade pública (egoísmo coletivo esclarecido). 247
Contudo, o contratualismo e o utilitarismo diferem-se pelo fato de o
primeiro estar baseado fundamentalmente no bem-estar (autoconservação) do indivíduo
e o segundo no bem geral da comunidade. Como exposto, o contrato social
schopenhaueriano é celebrado apenas como forma do indivíduo melhorar sua própria
situação, não com vistas à instauração do bem geral comum. Trata-se de um esforço
autointeressado de conservação, que nada mais é que o egoísmo esclarecido visando um
determinado bem – não sofrer injustiça. O bem geral comum, se ocorrer, é um mero
acidente na busca pela satisfação pessoal. Dessa forma, não é possível afirmar que na
formulação schopenhaueriana exista algum tipo de utilitarismo no que se refere à
instituição do Estado por meio do contrato, mesmo que seja em um sentido muito fraco
e amplo.
A última perspectiva a ser considerada, a saber, a perspectiva acerca do
direito positivo, depende diretamente do tipo de legislação que será instituída pelo
Estado: um direito positivo pautado pela consonância com o direito natural-moral, em
teoria, deverá ser justo e evitará/punirá ações injustas no âmbito da legalidade. Por outro
lado, uma legislação que ignore os parâmetros valorativos morais do direito natural será
considerada uma injustiça positiva (positives Unrecht), 248 mas ainda assim terá como
escopo garantir um ordenamento jurídico que exerça a coação pública e resguarde uma
certa estrutura política-jurídica-governamental instituída.
Dessa forma, pode-se, a partir do exposto, considerar moral o fundamento e
a fundamentação da doutrina pura do direito; também se pode considerar que a
metodologia de fundamentação e justificação da estrutura jurídica e política que
organiza a vida em sociedade por meio do monopólio da violência e da coerção, o
contratualismo, é uma metodologia pautada no princípio de autoconservação, i.e., no
egoísmo, e que, assim, uma concepção ampla do conceito de utilitarismo não poderia
ser empregada nesse contexto. Por fim, em referência ao último âmbito perquirido, o
direito positivo pode ser considerado justo se possuir como parâmetro valorativo o
ponto de vista moral provido pelo direito natural.
247
Deve-se frisar, contudo, que não se trata de um bom absoluto (absolutes Gut), uma vez que
Schopenhauer considera tal termo uma contradição. Isso porque tanto um bem supremo quanto um bom
absoluto pressupõem satisfações finais da vontade, o que é impossível, dado que a vontade é um
incessante querer nunca satisfeito.
248
Cf. MVR, §62, p.443, I 409.
128

2.3.2. As Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina Kantiana

do Direito

Apesar de se considerar um herdeiro da filosofia kantiana e denominar-se,


com orgulho, kantiano, Schopenhauer nega a filosofia prática desse filósofo com
veemência, em especial a doutrina do direito, formulada na obra Die Metaphysik der
Sitten (A Metafísica dos Costumes). Para ele, essa obra é fruto da senilidade de Kant, 249
e, por julgá-la um conjunto de erros, fraca e sem sentido, recusa-se a polemizar com ela
de modo aprofundado. O filósofo da vontade atém-se aos pontos que julga fundamentais
no escrito kantiano, formulando sua doutrina do direito em diálogo com esses.
As objeções são feitas em dois momentos dos escritos schopenhauerianos:
(i) na formulação de sua própria doutrina do direito (Rechtslehre), no §62 de MVR; e (ii)
em uma pequena seção dedicada, no apêndice de MVR intitulado Kritik der Kantischen
Philosophie (Crítica da Filosofia Kantiana), 250 à análise da Rechtslehre teorizada por
Kant. É no apêndice de sua principal obra que Schopenhauer faz suas críticas mais
duras, chegando ao ponto de afirmar que o texto da doutrina kantiana do direito é tão
ruim e cheio de erros que mais parece uma paródia satírica do estilo kantiano. 251
A partir da leitura dos textos schopenhauerianos mencionados, pode-se
destacar a dedicação do filósofo da vontade em refutar Kant em pelo menos cinco
aspectos, a saber, (i) a separação rigorosa entre direito e ética, (ii) a determinação
(Bestimmung) do conceito de direito, (iii) o direito de propriedade (o que funda e
legitima esse direito, e se ele existiria exteriormente ao Estado), (iv) o Estado orientado
a um fim moralizante, e, por fim, (v) a perspectiva acerca da punição.
Os dois primeiros aspectos são tratados de forma breve e pontual por
Schopenhauer, apesar de considerá-los como os dois principais e mais básicos erros de

249
É conhecida esta opinião de Schopenhauer: “Quanto a Kant, só a sua debilidade senil pode explicar a
sua doutrina do direito, este entrançamento estranho de erros, uns seguindo aos outros [...]”. MVR, §62,
p.431, I 396. No original: „Nur aus Kants Altersschwäche ist mir seine ganze Rechtslehre, als eine
sonderbare Verflechtung einander herbeiziehender Irrthümer […].“
250
Cf. MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.655-657, I 626-628.
251
Cf. MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.655, I 626.
129

Kant em sua teoria do direito. 252 Segundo o filósofo da vontade, a tentativa de separação
rigorosa entre a doutrina do direito e a ética é falha, porque torna o conceito de direito
oscilante, sem um ponto fixo. Isso significa que, segundo Schopenhauer, Kant não atrela
a doutrina do direito a uma legislação positiva, nem a uma coerção arbitrária, deixando
o conceito de direito subsistir por si mesmo, de maneira pura e a priori. Esse fato, de
acordo com Schopenhauer, produz duas consequências: ou toda arbitrariedade que pode
ser imposta é direito, ou adentra-se o domínio da ética. Ele acredita poder evitar tal erro,
admitindo que o conceito de direito pertence à ética:

[...] quando Kant diz: “Dever jurídico (Rechtspflicht) é aquele que PODE
(Kann) ser objeto de coerção”, este PODE (Kann) deve ser entendido ou
fisicamente, e assim, todo direito é positivo e arbitrário, e, portanto, toda
arbitrariedade que se pode impor é direito; ou este PODE (Kann) deve ser
entendido eticamente e estamos aqui de novo no domínio da ética. Em Kant,
conseguintemente, o conceito de direito oscila entre o céu e a terra, sem chão
algum no qual possa pisar. No meu caso, ele pertence à ética. 253

Deve-se atentar para o fato da objeção schopenhaueriana ser realizada a


partir dos pressupostos de seu próprio sistema filosófico: ela não é uma objeção
imanente à filosofia kantiana. A ética e o direito fazem parte da filosofia prática, e
assentam-se, em Kant, na ideia de liberdade e no imperativo categórico,254 ou seja, em
última instância, na razão prática:

252
Em última instância estas objeções se referem à definição do conceito de direito de Kant, que é
formulado na Doutrina do Direito deste autor nos seguintes termos: “O Direito é, pois, o conjunto das
condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei
universal da liberdade” („Das Recht ist also der Inbegriff der Bedingungen, unter denen die Willkür des
einen mit der Willkür des andern nach einem allgemeinen Gesetze der Freiheit zusammen vereinigt
werden kann“, MdS, Introdução à doutrina do Direito, §B, p.43, VI 230), e no Princípio universal do
Direito, que enuncia: “Uma ação é conforme ao Direito quando permite ou quando a sua máxima permite
fazer coexistir a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal”
(„»Eine jede Handlung ist recht, die oder nach deren Maxime die Freiheit der Willkür eines jeden mit
jedermanns Freiheit nach einem allgemeinen Gesetze zusammen bestehen kann«“, MdS, Introdução à
doutrina do Direito, §C, p.43, VI 231).
253
MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p. 656, I 626. No original: „Folglich wenn er [Kant] sagt:
»Rechtspflicht ist die, welche erzwungen werden kann«; so ist dieses Kann entweder physisch zu
verstehen: dann ist alles Recht positiv und willkürlich, und wieder auch alle Willkür, die sich durchsetzen
läßt, ist Recht: oder das Kann ist ethisch zu verstehen, und wir sind wieder auf dem Gebiet der Ethik. Bei
Kant schwebt folglich der Begriff des Rechts zwischen Himmel und Erde, und hat keinen Boden, auf dem
er fußen kann: bei mir gehört er in die Ethik.“
254
“Age segundo uma máxima que possa valer simultaneamente como lei universal!” („Handle nach einer
Maxime, welche zugleich als ein allgemeines Gesetz gelten kann!“, MdS, p.35, VII 225). Contudo, as
formulações mais conhecidas do imperativo categórico encontram-se na: (i) Crítica da Razão Prática
(“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de
uma legislação universal” – „Handle so, daß die Maxime deines Willens jederzeit zugleich als Princip
einer allgemeinen Gesetzgebung gelten könne“, KANT, I. Crítica da razão prática. Edição Bilíngue.
130

De fato, ambas [ética e direito] pertencem à filosofia prática, ao mundo do


dever e da liberdade, e a raiz de ambas é a segunda fórmula do imperativo
categórico (ou seja, o princípio da dignidade humana). 255

Tem-se, aqui, um choque incontornável de pressupostos entre um filósofo


descrente da supremacia da razão, e que, por isso, fundamenta e expõe o seu sistema
filosófico a partir de uma metafísica imanente do irracional, 256 que afirma tratar a ética
de modo descritivo, 257 que alega a incoerência das éticas prescritivas (Schopenhauer), e

Tradução, introdução e notas de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.103, B54; e (ii)
Fundamentação da Metafísica dos Costumes (“Age apenas segundo uma tal máxima que possas ao
mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” –„Handle nur nach derjenigen Maxime, durch
die du zugleich wollen kannst, dass sie ein allgemeines Gesetz werde.“, GMS, p.59, IV 421. Sobre as
figuras do imperativo categórico Cf. PATON, H. J. The categorical imperative. A Study in Kant’s
Moral Philosophy. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1971.
255
CATTANEO, M. Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre. In: Jahrbuch der
Schopenhauer-Gesellschaft 1988. Band 69. Frankfurt am Main: Verlag Waldemar Kramer, 1988, p.400.
No original: „[…] in der Tat gehören beide zur praktischen Philosophie, zur Welt des Sollens und der
Freiheit, ist die Wurzel beider die zweite Formel des kategorischen Imperativs (d.h. das Prinzip der
menschlichen Würde).“. Doravante abreviado por Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre,
seguido de indicação de página.
256
Pode-se considerar Schopenhauer metafísico porque seu sistema filosófico possui determinações
necessárias e princípios universais, oferecendo desta maneira o fundamento teórico para a realidade
sensível. Mas não se trata de uma metafísica dita dogmática, como a combatida por Kant. Schopenhauer
está sob a atmosfera do legado kantiano (ele mesmo, como mencionado, considera-se o verdadeiro
herdeiro da filosofia kantiana), das condições prévias de possibilidade da experiência presentes a priori
na consciência (espaço, tempo e causalidade). Ele utiliza-se, assim, de uma metodologia que alguns
comentadores denominam metafísica imanente. Essa se configura pela argumentação a partir da oposição
a uma explicação transcendente, oferecendo um relato fundamental da realidade, mas utilizando-se dos
dados acessíveis ao conhecimento como o único guia possível. Como o próprio Schopenhauer escreve:
“[...] a solução do enigma do mundo tem de provir da compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a
tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas compreendê-lo a partir de
seu fundamento, na medida em que a experiência, externa e interna, é certamente a fonte principal de todo
conhecimento;” („[...]die Lösung des Räthsels der Welt aus dem Verständniß der Welt selbst hervorgehen
muß; daß also die Aufgabe der Metaphysik nicht ist, die Erfahrung, in der die Welt dasteht, zu
überfliegen, sondern sie von Grund aus zu verstehen, indem Erfahrung, äußere und innere, allerdings die
Hauptquelle aller Erkenntniß ist; “, MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.538, I 507).
Sobre o conceito de metafísica imanente Cf. CACCIOLA, M. Schopenhauer e a Questão do
Dogmatismo, p.134-138; Cf. BARBOZA, J. Schopenhauer – A decifração do enigma do mundo. São
Paulo: Moderna, 1997, (coleção Logos), p.46-56; e BARBOZA, J. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003, (Coleção Filosofia Passo-a-passo.), p.23-24, e Cf. BRIANESE, G. Dire di no al mondo:
la metafisica immanente di Schopenhauer. In: SCHOPENHAUER, A. Supplementi a ‘Il mondo come
volontà e rappresentazione’. A cura di Giorgio Brianese. Torino: Einaudi, 2013.
257
“O ponto de vista dado e o modo de abordagem indicado já sugerem que neste livro de ética [o quarto
livro de MVR] não se devem esperar prescrições nem doutrinas do dever, muito menos o estabelecimento
de um princípio moral absoluto parecido a uma receita universal para a produção de todas as virtudes. [...]
Nossa tarefa filosófica, portanto, só pode ir até a interpretação e a explanação do agir humano e suas
diversas e até mesmo opostas máximas, das quais ele é a expressão viva, de acordo com a sua essência
mais íntima e conteúdo.” No original alemão: „Der gegebene Gesichtspunkt und die angekündigte
131

um filósofo que enxerga na razão o único sustentáculo possível para a fundamentação e


explanação de suas teses, e que propõe uma moral prescritiva que pode ser caracterizada
como procedimental (Kant). 258
Schopenhauer, ao admitir apenas dois pontos de vista para a análise do agir
(Handeln) dos indivíduos (o ponto de vista do significado ético, e o ponto de vista de
sua referência física), extrai duas consequências do que nos parece ser o ponto fulcral
dessa primeira objeção:259 (i) todo direito é positivo e arbitrário, e, portanto, toda
arbitrariedade que se pode impor é direito, e (ii) o direito acaba repousando na ética, isto
é, a separação entre direito e ética não é concretizada. 260
A própria divisão da Metafísica dos Costumes – em Doutrina do Direito
(Rechtslehre) e Doutrina da Virtude (Tugendlehre) – reflete a separação kantiana entre
direito e ética. A primeira parte da obra tem por objetivo fundamentar racionalmente o
direito, que regula a relação entre os indivíduos considerando, apenas, o móbil externo;
e isso significa que Kant não considera as motivações internas, mas unicamente a ação
realizada. A conformidade das ações realizadas, sem a consideração dos móbiles
internos com a lei configura a legalidade (Legalität). Por outro lado, quando o móbile
interno está em consonância com a liberdade de todos segundo uma lei universal, tem-se

Behandlungsweise geben es schon an die Hand, daß man in diesem ethischen Buche keine Vorschriften,
keine Pflichtenlehre zu erwarten hat; noch weniger soll ein allgemeines Moral-Princip, gleichsam ein
Universal-Recept zur Hervorbringung aller Tugenden angegeben werden. […] Unser philosophisches
Bestreben kann bloß dahin gehen, das Handeln des Menschen, die so verschiedenen, ja entgegengesetzten
Maximen, deren lebendiger Ausdruck es ist, zu deuten und zu erklären, ihrem innersten Wesen und
Gehalt […]“, MVR, §53, p. 354-355, I 320-321.
258
“A máxima será moral quando for universalizável. O imperativo é o procedimento para testar essas
regras subjetivas, isto é, para testar sua capacidade de universalização. Daí vem a caracterização da moral
kantiana como procedimental. Nesse sentido, pode-se dizer que a moral é formal e não material. Pois
Kant não estabelece uma lista de mandamentos (que seria material), mas propõe um procedimento
(formal) para testar qualquer princípio moral.” TERRA, R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2004, (Coleção Filosofia Passo-a-passo), p.12-13. Doravante abreviado como Kant & o Direito,
seguido de indicação de página. Contudo, é importante frisar que, mesmo a lei moral não dependendo do
objeto, do conteúdo, e da matéria a qual se refere, ela depende exclusivamente da sua forma de lei, uma
máxima do dever ser. O imperativo categórico serve como uma espécie de regra para testar e avaliar a
universalidade das máximas da ação com vistas ao cumprimento do dever. A ação moral, desse modo,
adentra o âmbito do normativo, cuja forma, segundo a interpretação de Schopenhauer, é a prescrição.
259
A separação entre direito e ética não é efetivada, uma vez que o conceito de direito, tal como
formulado por Kant, oscila por subsistir, segundo Schopenhauer, de maneira pura e a priori.
260
Neste ponto, o comentador Mario Cattaneo se pergunta: “Por que dever-se-ia conceber o direito apenas
em duas possibilidades opostas (ou puramente ética ou inteiramente arbitrária)?”. No original: „Warum
sollte es nur zwei gegensätzliche Möglichkeiten, entweder ein rein ethisches oder ein vollständ
willkürliches Recht geben?“, Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre, p.400.
132

a moralidade (Moralität) ou eticidade (Sittlichkeit), que é o escopo de investigação da


segunda parte da obra.261
Contudo, apesar do direito ter como escopo o móbil externo das ações, isso
não significa que a formulação kantiana do direito é baseada na observação empírica
dos fatos. A fundamentação kantiana é racional: “o direito natural é aquele que não é
estatutário, é o direito cognoscível a priori pela razão de todos os homens.”262
Quanto à determinação do conceito de direito, segundo Schopenhauer, ela é
completamente negativa, logo, insuficiente, por não produzir conceito positivo algum.
Sua refutação, nestes aspectos, restringe-se, apenas, a esses argumentos pontuais. 263

“Direito é aquilo compatível com a coexistência das liberdades dos


indivíduos um ao lado do outro segundo uma lei universal”. – Liberdade
(aqui empírica, isto é, física, não a liberdade moral da vontade) significa o
não-ser-impedido (Nichtgehindertseyn), e é, portanto, mera negação; por sua
vez, coexistência tem exatamente a mesma significação. Com isso
permanecemos em simples negações e não obtemos conceito positivo
algum. 264

É difícil entender o motivo dessa objeção de Schopenhauer. A afirmação do


filósofo de que a determinação do conceito kantiano de direito é meramente negativa
parece configurar o esquecimento de que a própria definição de direito/justiça (Recht)
fornecida por ele também o seja. 265 Schopenhauer parece notar a contradição em que se
encontra e, ao admitir o conceito de direito como negativo, complementa sua
argumentação ao afirmar que a explanação de tal conceito não pode ser totalmente
negativa. 266

261
“[...] O primeiro e verdadeiro critério de distinção entre moral e direito é o motivo (móbil) por que a
legislação é obedecida. Temos, assim, o motivo absoluto do dever pelo dever no caso da legislação moral
– que não pode ser senão interna – e um motivo empírico no caso da legislação jurídica (que é, portanto,
externa).”. LEITE, F. O conceito de direito em Kant: (na metafísica dos costumes). São Paulo: Icone,
1996, p.51.
262
TERRA, R. Kant & o Direito, p.27.
263
Cf. MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.655-657, I 626-627.
264
MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.656, I 627. No original: „»Recht ist das, was sich mit dem
Zusammenbestehen der Freiheiten der Individuen neben einander nach einem allgemeinen Gesetze
verträgt.« — Freiheit (hier die empirische, d.i. physische, nicht die moralische des Willens) bedeutet das
Nichtgehindertseyn, ist also eine bloße Negation: ganz dieselbe Bedeutung hat das Zusammenbestehen
wieder: wir bleiben also bei lauter Negationen und erhalten keinen positiven Begriff.“
265
Como vimos, o conceito de justiça/direito (Recht) é a mera negação da injustiça (Unrecht). Cf. a seção
2.2.6 Dedução e Explanação da Justiça e do Justo, p.70.
266
“Embora o conceito de direito seja propriamente um conceito negativo, em oposição ao de injustiça,
que é o ponto de partida positivo, a explanação de tais conceitos não pode ser totalmente negativa.” MVR,
Crítica da Filosofia Kantiana, p.656, I 627. Nota do Autor. No original: „Wenn gleich der Begriff Recht
133

A resposta a essa objeção pode ser dada a partir de uma indagação muito
simples: “Qual a diferença entre o conceito de direito ser definido como ‘negação da
injustiça’ e ‘não-ser-impedido’?.” 267 Ambos são determinações a partir da via negativa,
e Schopenhauer não explicita qual seria a via positiva para dissolver a contradição em
que ele se encontra; ele simplesmente passa à consideração do próximo ponto, sem
maiores aprofundamentos.
Pode-se inferir que estes dois aspectos sejam analisados pelo filósofo da
vontade de modo tão superficial devido ao fato de, segundo ele, conterem tamanho erro
que não merecem uma apreciação mais profunda. Contudo, essa simplicidade e
economia na formulação das objeções ao que o próprio objetor considera “erros
fundamentais e primários” coloca o leitor na difícil situação de ter de prenunciar os
pressupostos assumidos, comprometendo o entendimento do texto e prejudicando a
clareza expositiva, a qual sempre foi motivo de orgulho para Schopenhauer. Isso não
ocorre com os outros três aspectos enumerados: esses são analisados e refutados em
vários momentos da exposição do sistema filosófico do autor.
A terceira objeção a ser analisada refere-se ao conceito de propriedade
(Eigentum), e é feita em dois aspectos: (i) o aspecto originário, i.e., como é fundado o
direito de propriedade; e (ii) o aspecto da condição necessária para sua efetivação, qual
seja, da possibilidade de existência do direito de propriedade exteriormente ao Estado.
Segundo Schopenhauer, Kant fundamenta o direito de propriedade pelo
critério de primeira ocupação. A objeção do filósofo da vontade centra-se nesse ponto,
quando ele defende que nenhum direito legítimo de ocupação (keine rechtliche
Besitzergreifung) existe, mas apenas a legítima apropriação (Aneignung) ou a aquisição
(Besitzerwerbung) de uma coisa pelo emprego originário das próprias forças sobre ela.
A objeção de Schopenhauer ainda questiona o fato da declaração do querer de um
indivíduo excluir outros do fruir de um objeto, atribuindo ao sujeito declarante o direito
de propriedade sobre aquela coisa: “Mas como deveria a mera declaração (Erklärung)

eigentlich ein negativer ist, im Gegensatz des Unrechts, welches der positive Ausgangspunkt ist; so darf
deshalb doch die Erklärung dieser Begriffe nicht durch und durch negativ seyn.“
Sobre essa passagem do texto schopenhaueriano o comentador Mario Cattaneo escreve: “É como se
Schopenhauer, depois de ter tomado consciência desta contradição, imediatamente tentasse evitar um
mal-entendido. Mas ele não é bem-sucedido inteiramente.” No original: „Es sieht so aus, als ob
Schopenhauer, nachdem er dieses Widerspruchs gewahr wurde, sofort ein Missverständnis zu vermeiden
versuchte. aber ist ihm nicht ganz gelungen.“ Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre, p.404.
267
Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre, p.404. No original: „Welchen Unterschied gibt es
denn nun zwischen der ‚Negation des Unrechts‘ und dem ‚Nichtgehindertseyn‘?“
134

da minha vontade excluir aos outros do uso de uma coisa e até mesmo atribuir um
DIREITO a ela?.” 268
Para Schopenhauer, o chamado direito de primeira ocupação é, em termos
morais – ou seja, para ele em termos do direito natural –, por inteiro destituído de
fundamento. Tanto a primeira ocupação (erste Besitzergreifung), quanto a mera
declaração (Erklärung) do sujeito, não podem ser fundamentos do direito de
propriedade, não podem justificar a aquisição originária, como Schopenhauer afirma ser
feita a fundamentação de Kant; Schopenhauer não assenta o direito de propriedade na
detenção (Detention), mas na formação (Formation), embora a palavra ‘formação’ não
seja para ele a mais adequada, uma vez que “o despender esforços sobre uma coisa nem
sempre implica que se lhe dê uma forma.” 269 Apenas pelo trabalho elaborador pode-se
justificar o autêntico direito de propriedade, que é estabelecido por Schopenhauer como
um direito moral:

O mero usufruto de uma coisa sem nenhum trabalho elaborador ou nenhuma


defesa contra sua destruição dá tão pouco direito a ela quanto a declaração da
própria vontade em possuí-la exclusivamente. Por conseguinte, se uma única
família tivesse caçado por um século numa extensão de terra sem contudo ter
aí feito uma benfeitoria, não pode de modo algum, sem injustiça moral,
impedir que um estrangeiro ali cace, se este quiser. Portanto, o chamado
direito de primeira ocupação é, em termos morais, inteiro destituído de
fundamento 270.

A argumentação kantiana para a explanação da aquisição originária por


alguém de um objeto exterior, i.e., a fundamentação do conceito de direito de
propriedade, possui um longo encadeamento. Kant precisa, para explanar e fundamentar
seu conceito de aquisição originária e o direito de propriedade, analisar a possibilidade e
o modo pelo qual algo pode ser adquirido. Para os nossos objetivos é necessário
entender apenas as conclusões do argumento kantiano.

268
MVR, §62, p.431, I 396. No original: „Denn wie sollte doch die bloße Erklärung meines Willens,
Andere vom Gebrauch einer Sache auszuschließen, sofort auch selbst ein Rec ht hiezu geben?“
269
MVR, §62, p.431, I 397, Nota do autor. No original: „Nur ist der Name Formation nicht recht passend,
da die Verwendung irgend einer Mühe auf eine Sache nicht immer eine Formgebung zu seyn braucht.“
270
MVR, §62, p.431-432, I 397. No original: „— Hingegen bloßer Genuß einer Sache, ohne alle
Bearbeitung oder Sicherstellung derselben gegen Zerstörung, giebt ebenso wenig ein Recht darauf, wie
die Erklärung seines Willens zum Alleinbesitz. Daher, wenn eine Familie auch ein Jahrhundert auf einem
Revier allein gejagt hat, ohne jedoch irgend etwas zu dessen Verbesserung gethan zu haben; so kann sie
einem fremden Ankömmling, der jetzt eben dort jagen will, es ohne moralisches Unrecht gar nicht
wehren. Das sogenannte Präokkupations-Recht also, demzufolge man für den bloßen gehabten Genuß
einer Sache, noch obendrein Belohnung, nämlich ausschließliches Recht auf den fernern Genuß fordert,
ist moralisch ganz grundlos.“
135

Kant afirma que existem três momentos da aquisição originária, a saber, (i)
a apreensão de um objeto que não pertence a ninguém, (ii) a declaração da posse deste
objeto e do ato do meu arbítrio de afastar qualquer outro dele, e (iii) a apropriação como
ato de uma vontade universal e exteriormente legisladora (na ideia), com que se obriga
os outros à concordância com o meu arbítrio. 271
Dessa forma, o direito de propriedade é fundado no conceito de detenção,
rejeitado por Schopenhauer. Para Kant “adquiro uma coisa quando faço (efficio) que
algo se torne meu”, 272 e isso se dá pela primeira ocupação, pela declaração, e pela
consonância com o arbítrio dos outros. Kant ainda recusa o que para Schopenhauer é a
única possibilidade de fundamentação do direito de propriedade, o trabalho elaborador:

[...] é necessária a laboração do terreno (edificação, cultivo, drenagem, etc.)


para a aquisição desse mesmo terreno? Não! Pois que uma vez que estas
formas (de especificação) são somente acidentes, não constituem de todo em
todo o objeto de posse imediata e só podem pertencer à posse de um sujeito
na medida em que a substância tenha sido reconhecida previamente como
sua. 273

Por fim, Kant desdenha daquele que plasmou um objeto exterior, que não
lhe pertence, com seu trabalho, ao afirmar que todo o esforço realizado foi em vão face
ao primeiro possuidor. 274
Na filosofia kantiana a posse não é das coisas, mas do uso delas: possuir
uma coisa significa estar legitimado para utilizá-la. Desta forma, como visto, a
ocupação é o fundamento da posse legítima, seguida por outros dois momentos da
aquisição: a declaração do sujeito que toma posse do objeto, e a apropriação como ato
da vontade (empregada aqui no sentido kantiano) universalmente legisladora. 275 Para
Kant, a posse de algo exterior a si só é possível em um estado jurídico, sob um poder

271
Cf. MdS, p.89, VII 258-259.
272
MdS, p.88, VII 258. No original: „Ich erwerbe etwas, wenn ich mache (efficio), daß etwas mein
werde.“
273
MdS, p.99-100, VII 265. No original: „[…] ist die Bearbeitung des Bodens (Bebauung, Beackerung,
Entwässerung u.dergl.) zur Erwerbung desselben nothwendig? Nein! denn da diese Formen (der
Specificirung) nur Accidenzen sind, so machen sie kein Object eines unmittelbaren Besitzes aus und
können zu dem des Subjects nur gehören, so fern die Substanz vorher als das Seine desselben anerkannt
ist.“
274
“[...] aquele que empenhou a sua diligência num terreno que não era já de antemão seu perdeu o seu
esforço e labor face ao primeiro possuidor”. MdS, p.106, VII 269. No original: „[…] und daß der, welcher
an einen Boden, der nicht schon vorher der seine war, Fleiß verwendet, seine Mühe und Arbeit gegen den
Ersteren verloren hat[…].“
275
Cf. o estudo preliminar de Adela Cortina em KANT, I. La metafisica de las costumbres. Madrid:
Tecnos, 1994, p. XLVII.
136

legislativo público, i.e., em um estado civil. 276 O estado de natureza é um estado de


insegurança, no qual não existem garantias, nem poder coercitivo que assegure a posse
exterior. Essa existe, mas é provisória, por existir apenas enquanto existe a posse
física.277 Somente no estado civil a posse exterior se torna peremptória. Schopenhauer
recusa a tese kantiana de que não existe direito de propriedade sem a existência do
Estado. 278 Pode-se resumir nossa argumentação na seguinte passagem do texto
kantiano:

Assim, só uma vontade que obriga cada um face ao outro, uma vontade
coletivo-universal (comum) e poderosa, portanto, pode oferecer a cada um
aquela segurança. Mas o estado submetido a uma legislação externa universal
(quer dizer, pública), acompanhada de poder, é o estado civil. Deste modo, só
no estado civil pode dar-se um meu e um teu exteriores.279

Schopenhauer argumenta que se tal condição fosse verdadeira, significaria


que todo direito é positivo, e, assim, o direito natural estaria, também, fundado neste
tipo de direito, quando o inverso deveria ser o caso, o direito positivo fundado no direito
natural. 280
Apresentada a objeção schopenhaueriana ao que se refere à propriedade
privada, pode-se, então, passar à quarta censura feita pelo filósofo da vontade a Kant.
Essa se refere à finalidade e fundação do Estado. O Estado, para Schopenhauer, tem sua
origem no egoísmo coletivo esclarecido e possui apenas três finalidades que se referem
a algum tipo de proteção. Dessa forma, a dedução da fundação do Estado a partir do
Imperativo Categórico (que torna o Estado detentor de um dever moral) engendra o erro
de que o Estado é uma instituição para o fomento da moralidade e se originou do
esforço em promovê-la.

276
Cf. MdS, p.69, VII 255.
277
Cf. MdS, p.87 VII 257.
278
É importante frisar a maneira como Schopenhauer entende a formulação kantiana. Kant afirma que
apenas em um estado civil é possível a posse peremptória da propriedade. Schopenhauer entende essa
asserção kantiana como ‘fora do Estado não existe propriedade, i.e., no estado de natureza não existe
nenhum direito à propriedade’.
279
MdS, p.85, VII 256. No original: „Also ist nur ein jeden anderen verbindender, mithin collectiv
allgemeiner (gemeinsamer) und machthabender Wille derjenige, welcher jedermann jene Sicherheit
leisten kann. — Der Zustand aber unter einer allgemeinen äußeren (d.i. öffentlichen) mit Macht
begleiteten Gesetzgebung ist der bürgerliche. Also kann es nur im bürgerlichen Zustande ein äußeres
Mein und Dein geben.“
280
“Isso significa propriamente: todo direito é positivo, e assim o direito natural está fundado no direito
positivo, quando o inverso deveria ser o caso.” MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.656, I 627. No
original: „[…] welches eigentlich heißt, daß alles Recht positiv sei, und wodurch das Naturrecht auf das
positive gestützt wird, statt daß der Fall umgekehrt seyn sollte;“
137

O Estado não pode ser moralizante porque a disposição íntima das pessoas,
o caráter inteligível (intelligibel Charakter), não pode ser mudada por um fator externo
– neste caso o Estado – porque ela é vontade: livre, eterna, cega, um impulso irracional.
Schopenhauer considera ainda pior o teorema de que “o Estado é a condição da
liberdade em sentido moral e, com isso, da moralidade.” 281
A visão de Schopenhauer de que o Estado, tal como pensado por Kant, é
fundado no imperativo categórico é uma visão recorrente entre os leitores e
comentadores da filosofia kantiana: “que a legitimação kantiana do Estado tenha uma
orientação jurídico-racional e moral parece praticamente algo óbvio a muitos interpretes
de sua filosofia política, de modo que eles dificilmente refletem sobre interpretações
alternativas.” 282
O Estado, pela ótica de Kant, por ser fundado no imperativo categórico e na
ideia de liberdade, garante os direitos das liberdades individuais, protegendo as pessoas
umas das outras através de instituições jurídicas eficazes. 283 Ainda mais, o Estado
estaria ligado a uma função moral essencial, que diz respeito ao progresso humano na
história; tese rejeitada por Schopenhauer em sua raiz. 284
Por último, tem-se a objeção à formulação do conceito kantiano de punição.
Segundo Schopenhauer, Kant concebe a punição como retaliação pelo desejo de
retaliação, o que se configura como uma visão totalmente perversa.285 Os kantianos,
segundo Schopenhauer, diriam que a punição trata os indivíduos como um simples
meio, o que é um absurdo, já que, para eles mesmos, os indivíduos devem ser tratados

281
MVR, §62, p.441, I 408. No original: „Noch verkehrter ist das Theorem, der Staat sei die Bedingung der
Freiheit im moralischen Sinne und dadurch der Moralität.“
282
HORN, C. Qual é o Fundamento da Filosofia Política de Kant? In: Studia Kantiana – Revista da
Sociedade Kant Brasileira, nº 8, maio de 2009, tradução de Luíz Marcos Sander, p.49. Doravante
abreviada por Qual é o Fundamento da Filosofia Política de Kant?, seguido de indicação de página.
283
Qual é o Fundamento da Filosofia Política de Kant?, p.41. Horn denomina esta forma de interpretação
da filosofia política kantiana por interpretação focada na implementação.
284
Para Schopenhauer a História (Geschichte) não consegue apreender a coisa-em-si, apenas o fenômeno,
não sendo suficiente para o entendimento e explicação do mundo. A História é apenas aparência. “A
história do gênero humano, a profusão dos eventos, a mudança das eras, as formas multifacetadas da vida
humana em diferentes países e séculos: tudo isso é tão somente a forma casual do fenômeno da Idéia”.
MVR, §35, p.251, I 215. No original: „die Geschichte des Menschengeschlechts, das Gedränge der
Begebenheiten, der Wechsel der Zeiten, die vielgestalteten Formen des menschlichen Lebens in
verschiedenen Ländern und Jahrhunderten, dieses Alles ist nur die zufällige Form der Erscheinung der
Idee.“
Sobre o conceito de História Cf. MVR, §35, MVR II, Kapitel 38 – Ueber Geschichte, II p.499, e Historical
Dictionary of Schopenhauer's Philosophy.
285
Cf. MVR, §62, p.445, I 411.
138

como fim. O filósofo da vontade afirma que tal proposição não passa de verborragia,286
de uma proposição sem sentido. Ele afirma que o criminoso pode e deve ser utilizado
como meio para realização do fim último do Estado, a saber, a segurança pública. Para
ilustrar seu ponto de vista, ele utiliza o exemplo de um preso condenado à morte: tal
atitude servirá como contramotivo a uma possível ação criminosa, i.e., ela desmotivará a
realização de um ato injusto pelo medo da punição, neste caso, com a morte. 287 O
indivíduo punido serve, assim, como meio para manutenção da ordem. 288
Na Metafísica dos Costumes, este enunciado kantiano aparece como a
primeira fórmula da Divisão geral dos deveres jurídicos (Allgemeine Eintheilung der
Rechtspflichten) e, posteriormente, na obrigação derivada do direito da humanidade na
nossa própria pessoa (Verbindlichkeit aus dem Rechte der Menschheit in unserer
eigenen Person):

1. Sê um indivíduo honesto (honeste vive). A honestidade jurídica (honestas


iuridica) consiste no seguinte: em afirmar o seu valor como indivíduo na
relação com os outros – dever que se exprime pela proposição: “Não te
convertas para os demais num simples meio, mas sê para eles, ao mesmo
tempo, um fim”. 289

Esse enunciado kantiano aparece em outras obras desse filósofo, de forma


que Schopenhauer pode estar se referindo, por exemplo, à formulação do Imperativo
Prático feita na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 290 e em outras
passagens da mesma obra, como:

286
Cf. MVR, §62, p.446, I 412.
287
Cf. MVR, §62, p.446, I 412. Consultar também Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686-687.
288
Para corroborar seu ponto de vista, Schopenhauer cita a antiga fórmula inglesa de acusação
(indictment): “If this be proved, you, the Said N.N., ought to be punished with pains of Law, to deter
other from the like crimes, in all time coming”. (“Se isto é provado, então você, o chamado N.N., tem de
sofrer a punição legal, para impedir outros crimes semelhantes em todo o tempo futuro”. Tradução da
edição brasileira de MVR). Cf. MVR, §62, p.445-446, I 412.
289
MdS, p.53, VII 236. Grifo nosso, tradução ligeiramente alterada. No original: „Sei ein rechtlicher
Mensch (honeste vive). Die rechtliche Ehrbarkeit (honestas iuridica) besteht darin: im Verhältniß zu
Anderen seinen Werth als den eines Menschen zu behaupten, welche Pflicht durch den Satz ausgedrückt
wird: »Mache dich anderen nicht zum bloßen Mittel, sondern sei für sie zugleich Zweck.«“
290
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (Handle so, daß du die Menschheit
sowohl in deiner Person, als in der Person eines jeden andern jederzeit zugleich als Zweck, niemals bloß
als Mittel brauchst). GMS, p.69, IV 429.
139

Mas o ser humano não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser
utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser
considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo. 291

Schopenhauer, desse modo, constrói sua teoria dos princípios do direito


como “uma espécie de peça de contraditório em relação à doutrina do Direito da
Metafísica dos Costumes kantiana”,292 assentando suas bases na refutação desses cinco
pontos apresentados e construindo-a a partir de pressupostos avessos aos kantianos.

2.3.3. As formulações das doutrinas do Estado e do Direito elaboradas pelo

jovem Schopenhauer: extensão, limites e mudanças em relação à

publicação de sua obra principal.

Diversamente dos escritos éditos do autor, que se caracterizam pela


exposição mais acabada de seu sistema filosófico, podemos encontrar em seus
manuscritos póstumos as anotações fragmentadas de um jovem inquieto e amargurado.
Essas anotações já continham em gérmen toda a essência do sistema filosófico da
vontade. Nesses escritos, principalmente em seus diários de anotações que datam dos
anos de 1804 a 1818, podemos verificar, como escreve Roberto Aramayo, a “lenta
gestação da obra schopenhaueriana”.293 Além do processo de composição do filósofo,
os manuscritos que chegaram até nós postumamente contém passagens preciosas, que
muitas vezes complementam as lacunas argumentativas e expositivas deixadas pelo
filósofo, tornando-se uma fonte extremamente rica para o melhor entendimento de sua
filosofia. A análise histórico-filológica do espólio de juventude do autor representa uma
complementação necessária à compreensão adequada da obra publicada, uma vez que
permite contemplar dois aspectos de sua produção intelectual, que são enunciados por
Safranski da seguinte forma:

291
GMS, p.70, IV 429. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Der Mensch aber ist keine Sache,
mithin nicht etwas, das bloß als Mittel gebraucht werden kann, sondern muß bei allen seinen Handlungen
jederzeit als Zweck an sich selbst betrachtet werden.“
292
GIACOIA, O. A Mentira e as Luzes, p.22.
293
ARAMAYO, R. Los Bocetos del Sistema Filosófico Schopenhaueriano. In: SCHOPENHAUER, A.
Escritos inéditos de juventud 1808-1818 sentencias y aforismos II. Seleção, introdução e tradução de
Roberto R. Aramayo. Valencia: Pre-Textos, 1999, p.10.
140

A obra final pretendia resolver problemas; em troca, o manuscrito permite


entrever o sentido existencial contido nesses mesmos problemas. Foram os
cadernos de anotações que apresentaram as questões, enraizadas no corpo e
na vida humana, a que a obra se destinou a responder. 294

Recorrer ao Nachlass representa um ganho na medida em que (i) é possível


entrar em contato com exemplos diversos dos que foram empregados na obra publicada
– muitas vezes mais explícitos, simples, e intuitivos; (ii) é possível entrar em contato
com diferentes formulações que intentam explicar um mesmo evento, o que expõe a
forma como o autor abordou o problema e lança uma luz diferente sobre o objeto
analisado.
O trabalho de análise dos manuscritos de juventude nos revela que tanto a
doutrina do direito, quanto a doutrina do Estado – e as temáticas a elas relacionadas e
implicadas – foram objeto de reflexão do jovem pensador dos anos de 1810 até 1818.
Ao menos onze fragmentos que expressam esse momento de reflexão do filósofo devem
ser considerados, 295 em especial o fragmento 286, datado de 1814.
A argumentação para a doutrina do direito de Schopenhauer – termo
emprestado de Kant que designa tanto o direito natural quanto o direito positivo 296 –
pode ser dividida em, pelo menos seis momentos da argumentação: (i) a manifestação
do conflito interno da vontade no âmbito fenomênico, responsável pela guerra de todos
contra todos, ou seja, a caracterização do egoísmo (Egoismus); (ii) como esse conflito,
resultado da afirmação da própria vontade para vida, é a origem da injustiça (Unrecht);
(iii) a caracterização, pela via negativa, da justiça; (iv) a definição, a partir dos conceitos
anteriores, do direito natural, que para Schopenhauer é um direito moral; (v) a origem e a
finalidade do Estado (Staat); (vi) e como o direito moral é utilizado como parâmetro

294
Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, p.361.
295
São eles: Fragmento 25 – Folhas Iniciais 1-2 1812, Fragmento 27 – Folhas Iniciais 2-5 1812,
Fragmento 64 – Berlin 1812 – Folha D, Fragmento 255 – Dresden 1814 – Folha LL 5-8, Fragmento 286 –
Dresden 1814 – Folha QQ 7-8 e RR 1-3, Fragmento 535 – Dresden 1816 – Folha iiii 2-3., Fragmento 536
Dresden 1816 – Folha iiii 3, Fragmento 537 – Dresden 1816 – Folha iiii 3-7, Fragmento 567 – Dresden
1816 – Folha pppp – qqqq 1-2., Fragmento 693 – Dresden 1817 – Folha 17, Fragmento 714 – Dresden
1818 – Folha 19. Para sua leitura e análise foi utilizada a edição alemã: Der handschriftliche Nachlaß.
Ed. Arthur Hübscher Munique: Deutsche Taschenbuch Verlag, 1985, 5 vols. As traduções são de minha
autoria a partir do texto alemão.
296
“O termo doutrina do direito (usado por Kant) é excessivamente genérico, ele designa o gênero que
compreende as duas espécies de doutrinas do direito, o natural e o positivo.” HN I, Fragmento 567,
Dresden 1816 – Folha ppp. – qqqq, p. 383. No original alemão: „[...] das Wort Recht s le hr e (das Kant
gebraucht) ist zu allgemein, es bezeichnet das genus, das die 2 Species natürliche und positive
Rechtslehre begreift.“
141

valorativo pela política para a instituição do direito positivo, fundamentando o direito


penal (Strafrecht).
O primeiro aspecto que seria interessante notar é o processo de
desenvolvimento e aperfeiçoamento do conceito de egoísmo. A identificação entre o
corpo e a vontade já era operada pelo jovem filósofo nas suas anotações a partir de 1814:
“A vontade é o conhecimento a priori do corpo; e o corpo é o conhecimento a posteriori
da vontade.” 297 No fragmento 286, datado de 1814, o qual parece ser um dos primeiros
rascunhos do que viria a constituir a redação final do §62 de MVR, o jovem Schopenhauer
desenvolve a tese de que somos seres físicos (physisches Wesen): somos um corpo (Leib),
que é objetidade (Objektität) da vontade, afirmando-se no espaço e no tempo, e que quer
se preservar e continuar a existir da melhor forma possível. Schopenhauer denomina esse
processo de interesse físico (physisches Interesse): a vontade de autoafirmar-se no mundo
fenomênico, de ser e de continuar sendo, nas melhores condições possíveis. Isso pode
desdobrar-se como, por um lado, invasão da esfera de afirmação da vontade alheia, e, por
outro, como o enfrentamento de toda negação de vontade proveniente do exterior, i.e., o
enfrentamento da negação do próprio corpo e da afirmação das outras vontades sobre a
própria. Isso significa, segundo Schopenhauer, ser moralmente interessado em não sofrer
injustiça. E injustiça, aqui, já é entendida como invasão da vontade para vida objetivada
num corpo alheio. Contudo, a noção de interesse físico deixa de ser utilizada pelo
filósofo, e nos fragmentos posteriores apenas o termo egoísmo é empregado.
Nos textos éditos de Schopenhauer, o egoísmo é tido como a motivação
fundamental entre os seres dotados de entendimento – os animais humanos e não
humanos – porque ele pode ser entendido como um ímpeto para existência – uma
existência desejada incondicionalmente – e para o bem-estar, o que o identifica com a
afirmação da vontade para vida e leva os indivíduos a afirmarem a própria vontade até a
invasão da esfera de afirmação de um outro indivíduo. Em termos gerais, apesar da
variação da palavra com a qual se designa o conceito, o seu conteúdo já estava bem
delimitado nas anotações analisadas.
A injustiça, como mencionado acima, já é concebida pelo jovem pensador
como a invasão da esfera de afirmação da vontade, i.e., como a afirmação da vontade

297
HN I, Fragmento 255, Dresden 1814 – Folha LL, p. 153. No original alemão: „Der Wille ist die
Erkenntniß a priori des Leibes. Und der Leib ist die Erkenntniß a posteriori des Willens.“
142

que vai até outro corpo e o nega. 298 No fragmento 286 (1814), Schopenhauer admite a
injustiça como uma invasão realizada por meio do canibalismo, do homicídio ou pela
utilização das forças alheias pertencentes a uma vontade objetivada em um corpo por
outro corpo para seus próprios fins e interesses. Desse último caso deriva-se a injustiça
que configura a escravidão – embora Schopenhauer já vislumbre escusas para justificá-
la, as quais enuncia de forma mais demorada apenas no §125 de PP (1851), como
pudemos observar acima – e a injustiça que se refere ao dano à propriedade.
No fragmento 714, datado de 1818, aparecem pela primeira vez as formas
pelas quais Schopenhauer considera o exercício da injustiça: pela astúcia (List) e pela
violência (Gewalt), com praticamente o mesmo teor apresentado na redação final de
MVR. A única diferença que parece ser substancial é a de que, nos manuscritos,
Schopenhauer considera toda mentira como injustiça,299 posição que se altera, como se
sabe, em seus textos éditos.300
Além do canibalismo, do homicídio e da sobreposição de vontades (que no
fragmento mencionado configura a injustiça por escravidão e a injustiça relativa ao dano
à propriedade), a mera lesão do corpo de um outro indivíduo é considerada como uma
forma de praticar injustiça e o ataque à propriedade se torna o quinto grau de injustiça,
ganhando consideração à parte na formulação do autor.301
Contudo, o que é mais marcante nos manuscritos de juventude é o fato de
Schopenhauer destacar por diversas vezes que os indivíduos temem a possibilidade de
sofrer injustiça, não propriamente a sua prática – que até é prazerosa. 302 Por conta desse
primeiro motivo ela é denunciada e condenada. Definir a injustiça e estudar as formas
de evitá-la também são temáticas abordadas pelo jovem Schopenhauer, e fazem parte do
desenvolvimento argumentativo das doutrinas do direito e do Estado em suas anotações.
O conceito de justiça é definido em todos os escritos de Schopenhauer como
um conceito moral originado da negação da injustiça: a manifestação individual da
vontade não deve ultrapassar o seu próprio fenômeno, i.e., a esfera de afirmação do

298
Cf. HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha QQ – RR, p.174-176 (o qual parece constituir o
primeiro rascunho das ideias centrais do §62 de MVR), e HN I, Fragmento 693, Dresden 1817 – Folha 17,
p.482-483 (trata-se de um fragmento com o texto mais próximo da redação final).
299
Cf. HN I, Fragmento 714, Dresden 1818 – Folha 19, p.490.
300
Cf. a seção 2.2.9 Direito Moral à Mentira, p.78.
301
Aqui é importante mencionar que os apontamentos mais essenciais relativos ao direito de propriedade,
como sua identificação com a vontade do indivíduo através do trabalho elaborador, sua exterioridade ao
Estado, podem ser encontrados nos fragmentos 286 (1814), 563 (1816), 672 (1817), e 693 (1817).
302
Cf. Fragmentos 64 (1812), 286 (1814), 535 (1816), 537 (1816), 693 (1817), e 714 (1818).
143

outro não deve ser invadida. 303 Por ser definida a partir da negação da injustiça, pode-se
afirmar que essa é a condição de existência da justiça, a qual é toda ação praticada sem
causar dano ao corpo de um outro indivíduo, que não afete a esfera de afirmação da
vontade do indivíduo em sua pessoa, em sua liberdade, em sua propriedade, e em sua
honra.
A vontade que intenta negar a outra vontade pode ser tratada, segundo
Schopenhauer, como uma força natural, operando cegamente, e que deve ser evitada de
toda forma. 304 Quando se evita a sobreposição da própria vontade pela de um outro,
permanece-se sem cometer injustiça, afirmando o próprio corpo, a própria vontade, sem
negar a vontade do outro. E se for necessário compelir a vontade alheia, que intenta
infligir algum tipo de injustiça, é lícito forçá-la a desistir de tal ação. Em outras
palavras, possui-se um direito de coerção:

Se eu agora afastar de mim uma tal penetrante negação da minha vontade (em
seu fenômeno, [i.e.], meu corpo), então eu apenas nego essa negação, e isso
ainda é apenas a afirmação do meu próprio corpo (i.e., vontade), não uma
negação de uma vontade alheia, mas sim apenas a sua negação da minha
[vontade]: consequentemente isso não é injustiça: tal afastamento é assim um
direito, o qual poderia aparecer como se quisesse, por exemplo, a morte de
um corpo alheio, quando não existiu outra [maneira] de deter uma ameaça a
minha vontade. 305

Enquanto ser físico sou um corpo, e esse corpo é uma objetidade da vontade
que se afirma no tempo e no espaço; isso significa dizer que busco a manutenção do
meu próprio corpo, a continuidade da minha existência, nas melhores condições
possíveis. Oposto a esse meu objetivo está toda vontade que se coloque em
enfrentamento com a minha própria vontade, toda negação do meu corpo que seja
oriunda do exterior, que seja oriunda do ultrapassamento das fronteiras de afirmação de
vontades estabelecidas. Enquanto ser físico, tenho natural interesse em não sofrer
injustiça e, exatamente por essa razão, devo negar a negação do meu corpo, em um
processo no qual permaneço me afirmando, sem necessariamente negar o corpo do

303
Essa definição pode ser encontrada, por exemplo, nos fragmentos 535 (1816) e 693 (1817).
304
Cf. HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.175. Nesse ponto fica novamente claro o
acento que Schopenhauer dá ao horror em sofrer injustiça.
305
HN I, HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.175. No original alemão: “Wenn ich nun
eine solche auf mich eindringende Verneinung meines Willens (in seiner Erscheinung, meinem Leibe)
abwehre; so verneine ich nur jene Verneinung, und dies ist immer nur noch die Bejahung meines eignen
Leibes (d.i. Willens), nicht aber Verneinung eines fremden Willens, sondern nur seiner Verneinung des
meinen: folglich ist dies nicht Unr ec ht : ein solches Abwehren ist also Recht, es möge erscheinen wie es
wolle, z.B. als Tödtung eines fremden Leibes, wenn dieser nicht anders von der Beeinträchtigung des
meinem abzuhalten war.“
144

outro. O meu interesse físico, i.e., o meu egoísmo, estará de acordo com meu direito, e
nisso, segundo o jovem Schopenhauer, consiste propriamente esse direito. O direito, e
melhor dizendo, o direito natural, é definido nesse contexto da seguinte forma:

O direito é, assim, a compatibilidade do interesse físico com a moralidade,


na medida em que o direito vai apenas até a afirmação da própria vontade.
Isso é propriamente o direito, e esse conceito pertence à Ética, o qual poderia
conservar o nome de direito natural, e que conserva a distinção com o
[direito] positivo. Então deduzimos até aqui o direito natural. 306

Apenas no fragmento 567 (1816) o jovem Schopenhauer identifica o termo


direito natural com o termo direito moral, apesar de anteriormente ter concebido
injustiça e justiça como conceitos morais. Essa identificação consiste no fato de que, por
serem determinações morais, os direitos derivados dos conceitos de injusto e de justo
podem ser denominados naturais, no sentido de que não estão definidos por convenções
humanas nem são instituídos pelo Estado, mas existem de maneira inata – valem por si e
em si –, e são universais e imutáveis – pois valem para todos os indivíduos, em qualquer
localidade, e em qualquer época. Como são conceitos morais e a base do direito natural,
Schopenhauer pôde concluir que o direito natural é um direito moral – tal como aparece
na formulação de MVR:

Essa significação puramente moral é a única que a justiça e a injustiça têm


para os seres humanos enquanto seres humanos, não como cidadãos do
Estado, e que, portanto, subsistiria inclusive no estado de natureza, sem lei
positiva. Significação que constitui a fundação e o conteúdo de tudo aquilo
que, por esse motivo, se denominou Direito Natural, que se poderia melhor
denominar direito moral, pois sua validade não se estende ao sofrer, à
efetividade externa, mas só ao ato e ao autoconhecimento oriundo desse ato da
vontade individual, autoconhecimento que se chama consciência moral. 307

A moral teria como objetivo que eu não fizesse injustiça (neminem laede),
mas, como visto, o anelo maior é não sofrê-la (ab nemine damnum accipere). O meio

306
HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.176. No original alemão: „Das Recht ist also die
Kompatibilität des phys is c he n I nt er esse s, so fer n es nu r bis zur Be ja hu ng de s e ig ne n
Le ibes ge ht , mit de m mo r a lisc he n. Dies ist das eigentlich Rec ht , dessen Begriff zur Et[h]ik
gehört, und das den Namen des Nat ur r echt s, den es zur Unterscheidung vom positivem erhalten hat,
behalten mag. Wir haben also bis hieher das Nat ur r echt deducir t . “
307
MVR, §62, p.437, I 403. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Diese rein moralische
Bedeutung ist die einzige, welche Recht und Unrecht für den Menschen als Menschen, nicht als
Staatsbürger haben, die folglich auch im Naturzustande, ohne alles positive Gesetz, bliebe und welche die
Grundlage und den Gehalt alles dessen ausmacht, was man deshalb Naturrecht genannt hat, besser aber
moralisches Recht hieße, da seine Gültigkeit nicht auf das Leiden, auf die äußere Wirklichkeit, sondern
nur auf das Thun und die aus diesem dem Menschen erwachsende Selbsterkenntniß seines individuellen
Willens, welche Gewissen heißt, […].“ Nota-se neste excerto a primeira inversão na ordem dos termos:
injustiça e justiça, empregados até então sempre nesta ordem, para justiça e injustiça.
145

racional para obtenção desse fim é o Estado. O Estado surge do meu interesse em não
sofrer injustiça, não de que ela não seja praticada. Na medida em que os indivíduos são
corpos, seres físicos, e há um interesse físico de cada um em não sofrer injustiça, cria-se
o acordo para que ninguém faça injustiça, já que, assim, ninguém sofreria injustiça. O
Estado é concebido, dessa forma, como um instrumento de prevenção, mais
precisamente como um instrumento de prevenção ao sofrimento de injustiça. Dessa
forma, no fragmento 286 (1814), Schopenhauer define o Estado como “a comunidade
de pessoas que não desejam sofrer qualquer injustiça.” 308 No fragmento 537 (1816),
corroborando o fragmento anterior, o pacto social que dá origem ao Estado é concebido
como renúncia ao fazer injustiça. Desta forma, na argumentação levada a cabo nos
manuscritos de juventude, em comparação com os textos éditos, a separação entre
Estado e moral parece se constituir de modo mais explícito, embora fique aparente que
os indivíduos realmente renunciem à prática da injustiça ao invés de instituir um
dispositivo coercitivo que, através de contramotivos, desestimule ações injustas.
O Estado surge por um acordo, por um pacto, e utiliza-se do inverso 309 da
doutrina pura do direito para garantir que seus protegidos não sofram injustiça. Segundo
o fragmento 536 (1816), o objetivo principal de uma exposição da doutrina do direito é
mostrar que o direito positivo é o emprego e uso do direito natural em seu reverso. Em
uma nota de um fragmento posterior, a saber, 567, datado do mesmo ano, Schopenhauer
elenca quais ele considera serem os pontos principais de que todas as doutrinas do
direito se ocuparam:

Os pontos principais do direito natural são: 1) a definição do conceito de


justiça / direito, e a demonstração de sua origem e sua relação com a moral e
o direito natural; 2) A constituição e finalidade do Estado; 3) A dedução do
direito de propriedade – o conteúdo restante de uma doutrina do direito
natural é apenas a aplicação dos seus princípios, a determinação do que é
possível nas relações da vida, que assim são reunidos sob certos conceitos

308
HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.176. No original alemão: „Er ist also eine
Vereinigung von Menschen die Kein Unrecht leiden wollen.“
309
Nos manuscritos de juventude Schopenhauer utiliza tanto a palavra alemã umgekehrte, quanto a
palavra Kehrseite para se referir à dinâmica que consiste no fato da política utilizar-se do reverso / inverso
/ avesso do direito natural para estabelecer o direito positivo. E o que significa empregar o direito natural
em seu reverso? Significa que a doutrina pura do direito tem como base o dado a partir da moral, do
caráter, do âmbito interno da experiência, enquanto que a teoria do Estado considera o que é dado a partir
da motivação. Ou seja, estabelecidos o injusto e o justo como padrão objetivo de medida (quais sejam: o
injusto se configura pela invasão da esfera de afirmação da vontade no corpo alheio e que o justo é a
negação do conceito de injustiça), invertem-se a perspectiva e a ordem dos valores: a legislação vigorará
de acordo com o limite do justo estabelecido, que não pode ser transcendido no âmbito da experiência
externa.
146

gerais no direito, isto é, como os seres humanos agem em todos os lugares


para que nenhum sofra injustiça. Todas as doutrinas do direito concordam
nesses pontos particulares, assim, elas também discursam de forma diferente
sobre aqueles três pontos principais, e assim em seus princípios. 310

O Estado é concebido, assim, como o egoísmo contra as consequências


desvantajosas do egoísmo (ou, em termos mais simplórios consoantes com as primeiras
formulações do jovem filósofo, do interesse físico pela preservação e prevenção),
operando a inversão do conceito de justiça moral para o de justiça legal: o ponto de
partida é alterado do lado ativo (agir), para o lado passivo (sofrer a ação injusta). No
fragmento 535 (1816), já é possível notar o significado latente de dois tipos de egoísmos
nessa questão, a saber, egoísmo coletivo, ou – por assim dizer – superior / esclarecido, e
o egoísmo individual:

Aqueles que acham que o Estado é uma instituição moral; eles pensam que o
Estado é orientado contra o egoísmo mesmo: mas, pelo contrário, ele é
orientado contra as consequências do egoísmo, a saber, contra as
consequências do egoísmo alheio, contra as quais o próprio se volta: assim, o
Estado se originou inteiramente do egoísmo e ele está aí para servi-lo com a
razão, conforme exposto de maneira excelente por Hobbes. 311

Assim, tem-se constituído, já nos manuscritos de juventude, aspectos da


filosofia schopenhaueriana que permeiam toda a doutrina do direito e do Estado
conforme sua redação mais acabada. A separação entre moral e Estado é apenas um dos
aspectos engendrados pela dicotomia vontade e representação: a moral é eterna, perene,
constitui a unidade, tem como escopo de investigação a disposição em cometer
injustiça; o Estado, por sua vez, é temporal, aparência, regido pelos princípios de
individuação e de razão e, assim, pelo conflito da multiplicidade, possuindo como
escopo de investigação o ato, o feito. 312 Apenas o ato pode ser punido pelo Estado. Da

310
HN I, Fragmento 567, Dresden 1816 – Folha qqqq, p.382, nota de rodapé. No original alemão: „Die
Hauptpunkte des Naturrechts sind 1) die Definition des Begriffs Recht, und Nachweisung seines
Ursprungs und seines Verhältnisses zur Moral und zum Naturrecht. 2) Die Entstehung und der Zweck des
Staats. 3) Die Ableitung des Eigenthumsrechts. – Der übrige Inhalt einer Lehre des Naturrechts ist bloß
die Anwendung jener Principien, die Bestimmung, was in den möglichen Verhältnissen des Lebens, die
deshalb unter gewisse allgemeine Begriffe vereinigt sind Recht, ist, d.h wie Menschen überall zu handeln
haben damit keiner Unrecht leide. Alle Rechtslehren stimmen in diesem mehr Besonderen überein, so
verschieden sie auch von jenen 3 Hauptpunkten reden, also in den Principien.“
311
HN I, Fragmento 535, Dresden 1816 – Folha iiii, p.358. No original alemão: „Die, welche meinen, er
[Staat] sei eine moralische Anstalt; denken er sei gegen den Egoismus selbst gerichtet: er ist aber
vielmehr gegen die Folgen des Egoismus gerichtet, nämlich gegen die Folgen des fremden Egoismus,
gegen die der eig[e]ne sich auflehnt: er ist also ganz aus dem Egoismus entstanden und ist da um
demselben zu dienen mit Vernunft, wie Hobbes vortrefflich auseinandersetzt.“
312
Cf. HN I, Fragmento 25, Folhas Iniciais 2-5 1812 -, p.16-17.
147

mesma forma como o historiador é um profeta às avessas, o legislador (der Lehrer der
Rechte) seria, assim, um moralista às avessas – e que conste aqui: para o jovem de 22
anos, o político seria um ético às avessas. Todavia, esse exemplo foi suprimido da
conclusão do §62 de MVR,313 talvez pelas ambiguidades que sua interpretação poderia
gerar.
Por fim, resta a consideração de que a essência do direito penal, tal como
formulada na obra do filósofo da vontade, não encontrou grandes alterações dos
fragmentos de juventude para a versão mais acabada de seus escritos. De fato, é mantida
a definição de que a punição (Strafe) é orientada em essência ao futuro (Zukunft), não
ao passado (Vergangenheit), fator que a difere da vingança (Rache). 314
A partir do exposto, foi possúvel mostrar que o núcleo teórico conceitual e
as principais linhas argumentativas que se referem às doutrinas do Estado e do direito,
já se encontravam de forma latente ou em desenvolvimento nos fragmentos de
juventude de Arthur Schopenhauer, apesar do aspecto fragmentário, da não
sistematização precisa, e, portanto, da não complexidade da redação final da obra
publicada. Assim, com base no confronto e na leitura histórico-crítica dos manuscritos e
da obra publicada, foi possível trazer à luz e verificar o processo de refinamento
conceitual e de redação das doutrinas do direito e do Estado desde seu gérmen até sua
forma mais acabada.

2.4. Compaixão: Da Justiça Voluntária ao Rompimento com a Ética

2.4.1. A Compaixão (Mitleid) como Origem das Virtudes Cardeais

Schopenhauer identifica três motivações morais para o agir humano: 315 (i) a
maldade (Bosheit), a qual possui como finalidade o mal alheio; (ii) o egoísmo

313
Cf. HN I, Fragmento 25, Folhas Iniciais 2-5 1812 -, p.16-17.
314
Sobre a punição, a vingança e o direito penal, Cf. os Fragmentos 413 (1815), 568 (1816), 574 (1816), e
620 (1816).
315
Em uma polêmica e muito discutida nota de rodapé do capítulo 48 de MVR II, Sobre a Doutrina da
Negação da Vontade para Vida (Zur Lehre von der Verneinung des Willens zum Leben), Schopenhauer
admite uma quarta motivação: “Desde que se aceite a ascese, no entanto, a apresentação das últimas
motivações da ação humana, descritas no meu ensaio concorrente ao prêmio acerca do fundamento da
moral, a saber, 1) o próprio bem-estar, 2) a dor alheia e 3) o bem-estar alheio, deveria ser completada por
uma quarta [motivação do agir humano]: o próprio mal, o qual eu menciono aqui casualmente e apenas
148

(Egoismus), que tem como finalidade o próprio bem e a autoconservação, e, como visto,
é intrinsecamente ligado à justiça temporal; e (iii) a compaixão (Mitleid), a qual tem
como finalidade o bem-estar alheio e na qual o sofrimento do outro se torna o motivo do
agente. É nesta última onde o autor identifica o amor puro – “Todo amor (ágape,
caritas) é compaixão”, 316 “Todo amor puro é compaixão”317 – e uma via de salvação
para os sofrimentos do mundo. Para o filósofo, toda ação humana tem de ser
reconduzida necessariamente a uma dessas motivações, embora elas possam agir
conjuntamente.
Segundo Schopenhauer, a maldade tem no mal alheio sua finalidade,
podendo chegar até a mais extrema crueldade. Ela pode ser explicada pela seguinte
máxima: imo omnes, quantum potes, laede (prejudica a todos quanto possas). 318 No que
se poderia imaginar como o outro extremo do agir humano, tem-se a compaixão. A
palavra compaixão é uma das possíveis traduções para a palavra alemã Mitleid, cuja
tradução literal para o português seria “padecer / sofrer com”. Ela consiste em graus de
olhar através (Durchschauen) do princípio de individuação que permitem conhecer e
reconhecer a identidade da essência metafísica do mundo como unidade, i.e., reconhecer
que a diferença entre o eu e o outro é mera aparência. Mas não se trata de apenas
reconhecer a identidade da essência metafísica entre si mesmo e os outros. É preciso o
conhecimento intuitivo, cuja expressão é afetiva: o sentimento319 de compaixão.
Enquanto que na compaixão tem-se o sentimento de que o eu e aquele outro ser
compartilhamos a mesma essência, de que o muro entre o eu e o outro não existe, o
egoísmo atua na direção contrária: o enredamento do indivíduo ao princípio de

pelo interesse de uma coerência sistemática. Pois ali, naquele ensaio, essa quarta motivação teve que ser
ignorada, pois a questão do prêmio fora posta no sentido da ética filosófica em vigor na Europa
protestante”. MVR II, Kapitel 48 – Zur Lehre von der Verneinung des Willens zum Leben, II 695. No
original alemão: „Sofern man hingegen die Askese gelten läßt, wäre die in meiner Preisschrift über das
Fundament der Moral gegebene Aufstellung der letzten Triebfedern des menschlichen Handelns, nämlich
l) eigenes Wohl, 2) fremdes Wehe und 3) fremdes Wohl, noch durch eine vierte zu ergänzen: eigenes
Wehe: welches ich hier bloß im Interesse der systematischen Konsequenz beiläufig bemerke. Dort
nämlich mußte, da die Preisfrage im Sinn der im protestantischen Europa geltenden philosophischen
Ethik gestellt war, diese vierte Triebfeder stillschweigend übergangen werden.“
Assim, parece-nos que o filósofo analisa e expõe três motivações do agir humano, admite a existência de
uma quarta sobre a qual ele não entra em maiores detalhes, e, ainda, concebe o que seria o contrário de
um motivo – que engendra uma ação –, o quietivo – o qual resulta na inação do indivíduo.
316
MVR, §66, p.476, I 443. No original alemão: „Alle Liebe (αγαπη, caritas) ist Mitleid.“
317
MVR, §67, p.478, I 444. No original alemão: „Alle reine Liebe ist Mitleid.“
318
Cf. SFM, §7, p.72, III 628.
319
Ver nota 107, p.72.
149

individuação intensifica a concepção de pluralidade e assimetria, criando e reforçando a


ilusão da diferença entre o que sou eu e o que é o outro. Sobre esse ponto a professora
Maria Lucia Cacciola escreve:

É do ponto de vista da representação que existem, pois, indivíduos separados,


e, aí, o egoísmo se faz presente como o motivo antimoral por excelência. Em
contrapartida, do ponto de vista da Vontade, é a mesma essência que se
manifesta, tornando possível o surgimento da compaixão, que é o
fundamento das demais virtudes, a justiça e a caridade, e de toda ação que
tenha um valor moral. 320

A ausência de toda motivação egoísta é o critério de uma ação dotada de


valor moral.321 A autêntica bondade de disposição é desinteressada, i.e., desprovida de
motivações egoístas, e não se origina do conhecimento abstrato, mas do sentimento. As
ações motivadas pela compaixão, i.e., as ações morais, podem ser exteriorizadas a partir
de dois graus distintos: (i) em um grau menor, ainda negativo, a compaixão, opondo-se
a motivos egoístas ou maldosos, impede o agente de causar sofrimento aos outros.
Negativo, nesse contexto, deve ser entendido no sentido de que a ação do indivíduo
apenas evita o dano a um outro, sem, com isso, fazer-lhe o bem, o qual seria o aspecto
gradual positivo. Desse grau inferior surge a máxima neminem laede (não prejudicar
ninguém), que é o princípio da virtude da justiça voluntária (freiwillige Gerechtigkeit),
da justiça entendida como virtude; (ii) em grau maior, positivo, a compaixão não apenas
impede o indivíduo de causar dano a um outro, como leva o agente a ajudar o próximo.
A máxima aqui extraída por Schopenhauer é omnes, quantum potes, iuva (ajuda a todos
quanto puderes), a qual se refere à virtude da caridade (Menschenliebe, literalmente
amor à humanidade). Por conseguinte, a compaixão é mais evidente nas ações
caritativas que nas ações justas, o que relega a virtude da justiça a um patamar inferior
ao da caridade, e a faz perder, no sistema filosófico schopenhaueriano, o status de
virtude por excelência, status que gozava em outros sistemas filosóficos.
A compaixão aparece, assim, como a condição de possibilidade da justiça
voluntária e da caridade, e pode ser entendida como uma superação das motivações
egoístas, erigindo-se como o fundamento das ações dotadas de valor moral. Ela é

a participação, totalmente imediata, independente de qualquer outra


consideração, no sofrimento de um outro e, portanto, no impedimento ou

320
CACCIOLA, M. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, p.158.
321
Cf. SFM, § 15, p.131, III 674.
150

supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em que consiste todo o


contentamento e todo o bem-estar e felicidade. 322

A compaixão, como fonte das ações altruístas, como base da moralidade,


não precisaria ser explicitada de forma conceitual, através de representações abstratas.
Antes, ela pode ser apreendida em casos concretos, sem a mediação do intelecto, isto é,
de forma intuitiva. Ao reivindicar a comprovação da compaixão como fundamento da
moral, Schopenhauer acaba por recorrer a Rousseau em um argumento de autoridade:

[...] minha fundamentação tem por ela a autoridade do maior moralista de


toda a época moderna; este é, sem dúvida, Jean-Jacques Rousseau, o
profundo conhecedor do coração humano que bebeu sua sabedoria não dos
livros, mas da vida, e destinou à sua doutrina não à cátedra, mas à
humanidade. 323

Todavia, até que ponto esse recurso pode ser considerado válido? Para
Rousseau, existem dois princípios que servem de apoio à razão do indivíduo selvagem e
dos quais derivam todas as regras do direito natural: o princípio da conservação
(conservation) e o princípio da piedade (pitié).324 O primeiro se refere aos meios
apropriados para se alcançar o bem-estar, a preservação, e a prevenção contra danos e
perdas. O segundo funcionaria como uma espécie de instinto natural que tornaria o ser
humano capaz de padecer com o seu semelhante, i.e., a piedade tornaria o ser humano
capaz de apreender o sofrimento de outrem através do desprendimento do eu e da sua
identificação com o não-eu. Dessa forma, os princípios de conservação e de piedade
seriam princípios reguladores das relações humanas no estado de natureza, ocupando o
lugar das leis, dos costumes e da virtude, e, em apoio à razão, evitariam que os
indivíduos se tornassem monstros uns para os outros. A partir desse raciocínio,
Rousseau sustenta que o estado de natureza não poderia ser um estado de guerra de
todos contra todos325 – tese, como exposto, rejeitada por Schopenhauer e em completa

322
SFM, §16, p.136, III 678. No original alemão: „der ganz unmittelbaren, von allen anderweitigen
Rücksichten unabhängigen Theilnahme zunächst am Leiden eines Andern und dadurch an der
Verhinderung oder Aufhebung dieses Leidens, als worin zuletzt alle Befriedigung und alles Wohlseyn
und Glück besteht.“
323
SFM, §19, p.184, III 716. No original alemão: „Dagegen aber hat meine Begründung die Autorität des
größten Moralisten der ganzen neuern Zeit für sich: denn dies ist, ohne Zweifel, J.J. Rousseau, der tiefe
Kenner des menschlichen Herzens, der seine Weisheit nicht aus Büchern, sondern aus dem Leben
schöpfte, und seine Lehre nicht für das Katheder, sondern für die Menschheit bestimmte.“
324
Cf. Segundo Discurso, p.236-237.
325
Cf. Segundo Discurso, p.258.
151

contradição com a forma pela qual o filósofo da vontade funda e justifica a existência
do Estado.
Ambos os conceitos, o rousseauniano (pitié) e o schopenhaueriano
(Mitleid), 326 remetem ao fato do ser humano possuir a capacidade de “padecer com”, de
sentir o sofrimento alheio como seu. O que distingue a formulação deste conceito entre
os dois filósofos é a forma pela qual a apreensão do sofrimento alheio se dá. Se em
Schopenhauer a compaixão é fruto da apreensão de uma mesma essência metafísica dos
indivíduos, e essa apreensão ocorre por um sentimento imediato, por um olhar através
do princípio de individuação, em Rousseau a piedade pode ser entendida como um
instinto natural – e pelo papel que desempenha no estado de natureza pode ser
entendida, também, como um instinto de preservação humana – que se dá pela
apreensão do sofrimento do outro através do desprendimento do eu e da identificação
com o não-eu – que não se dá a partir do reconhecimento da partilha de uma mesma
essência metafísica no plano representacional.

2.4.2. As Virtudes Cardeais: A Justiça Voluntária (freiwillige Gerechtigkeit)

e a Caridade (Menschenliebe)

Na continuação do processo de elucidação do conceito de compaixão – o


conceito que serve como condição de possibilidade, existência, e efetivação das ações
morais e da virtude –, é necessário discorrer acerca do terceiro sentido de justiça
empregado pelo filósofo da vontade em sua obra, a saber, a justiça voluntária entendida
como uma das virtudes cardeais.
As ações justas consistem na equiparação entre si próprio e os demais, em
dar a cada um o que é seu. Isso significa manter-se nos limites da própria esfera de
afirmação da vontade, sem transgredi-la, sem irromper a esfera de afirmação da vontade
do outro. E isso se dá pelo fato de que o princípio de individuação, a barreira de
impedimento da apreensão da comum essência metafísica, não é mais uma barreira
instransponível. Quem age de forma justa não precisa ser coagido a agir de tal forma: o

326
Sobre uma ética da compaixão envolvendo os conceitos de Mitleid e de Pitié Cf. HAMBURGER,
K. Zum Problem der Mitleidsethik. Rousseau und Schopenhauer. In: Philosophisches Jahrbuch,
Freiburg, München: Karl Alber Verlag, v.92, n.1, p.68-78, 1985.
152

indivíduo respeita as fronteiras éticas que medeiam o justo e o injusto e as faz valer,
mesmo quando não existe nenhum Estado ou outro poder regulador para sancioná-lo ou
puni-lo, não levando sua afirmação da vontade para além dos limites do próprio corpo
até a negação da vontade alheia. 327 O indivíduo justo encontra no outro a si mesmo e
desiste de praticar injustiça. Contudo, o justo ainda age no plano da individuação.
É preciso, contudo, afastar a possibilidade de confusão e erro no que se
refere ao fato da compaixão ser tomada como condição de existência e origem da justiça
voluntária: seria uma imprecisão e um equívoco atribuir a toda ação justa, e, por
conseguinte, a todas as ações legais, valor moral. Se a ação praticada não for
desinteressada, i.e., se a ação praticada possuir uma motivação egoísta, a ela não é
possível atribuir valor moral:

Há, antes, entre a justiça que os indivíduos exercem e a lealdade do coração,


na maioria das vezes, uma relação análoga a que há entre a expressão de
cordialidade e o genuíno amor ao próximo que supera o egoísmo, não apenas
aparentemente como aquela, mas efetivamente. 328

Schopenhauer, assim, identifica o grau mais baixo pelo qual as ações


compassivas são exteriorizadas como a justiça voluntária. Em um nível de intensidade
maior, observa-se um segundo grau das ações motivadas pela compaixão: a virtude
cardeal da caridade (Menschenliebe), sobre a qual faremos alusão agora. O caminho
para se chegar à caridade envolve o olhar através do princípio de individuação em um
grau mais elevado que o da justiça. Aquele que age de forma caritativa ajuda o próximo
na medida das próprias forças, sobrepondo o sofrimento alheio ao próprio bem-estar,
tornando, nesse sentido, o sofrimento do próximo a sua própria motivação. Não para
regozijar-se no sofrimento do outro, mas para evitá-lo ou diminui-lo. Dependendo do
grau pelo qual essa motivação afeta o indivíduo, pode-se afirmar que o egoísmo é de
certo modo suprimido: dessa forma, observa-se que a caridade pode chegar a suprimir
completamente o egoísmo individual ao desconsiderar totalmente a própria afirmação
da vontade e o próprio bem-estar, enquanto que a justiça realiza tal tarefa apenas em
parte.

327
Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.144, p.211; e Cf. MVR, §66, p.471, I 437.
328
SFM, §13, p.109-110, III 657. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Vielmehr ist
zwischen der Gerechtigkeit, welche die Menschen ausüben, und der ächten Redlichkeit des Herzens,
meistens ein analoges Verhältniß, wie zwischen den Aeußerungen der Höflichkeit und der ächten Liebe
des Nächsten, welche nicht, wie jene, zum Schein, sondern wirklich den Egoismus überwindet.“
153

Da compaixão derivam-se a justiça voluntária e a caridade, das quais, por


sua vez, são derivadas todas as demais virtudes; e, por isso, elas podem ser consideradas
virtudes cardeais. Por conta da observação e constatação da intensidade com a qual a
compaixão se manifesta na ação dos indivíduos, sendo a causa de todas as virtudes
cardeais, é possível diferir entre graus da vida ética. Mas isso não significa que se trata
de uma gradação a ser percorrida pelo indivíduo, ou uma teleologia da vida ética em
busca do bem supremo329 – o que seria algo completamente contraditório com o sistema
filosófico schopenhaueriano, como foi exposto acima. Trata-se de graus, menores e
maiores, das ações consideradas morais. Contudo, a vida ética possui uma importante
limitação: ela não conduz à cessação do sofrimento, ela não conduz à redenção
(Erlösung); segundo Schopenhauer, apenas a ascese (Askesis), a negação da vontade
para vida, poderia conduzir à salvação, ao fim permanente do sofrimento. Ela seria uma
espécie de sumo bem emérito:

Todavia, caso queiramos conferir uma posição honorífica ou, por assim dizer,
emérita a uma antiga expressão que não gostaríamos de deixar por completo
em desuso [bem supremo, summum bonum], podemos metafórica e
figurativamente, chamar a total auto-supressão e negação da vontade, sua
verdadeira ausência, unicamente o que acalma e cessa o ímpeto da vontade
para todo o sempre e que exclusivamente proporciona o contentamento que
jamais pode ser de novo perturbado, a verdadeira redenção do mundo e que
logo mais adiante trataremos na conclusão de todo o nosso pensamento –
podemos chamar essa total auto-supressão e negação da vontade de bem
absoluto, summun bonum, e vê-la como o único e radical meio de cura da
doença contra a qual todos os outros meios são anódinos, meros paliativos.
Nesse sentido, o termo grego τελος [télos] e a expressão latina finis bonorum
funcionam melhor. 330

329
O bem supremo seria “[...] a satisfação da vontade além da qual nenhum novo querer apareceria,
noutros termos um último motivo cujo alcançamento proporcionaria um contentamento indestrutível da
vontade. Mas, segundo nossa atual consideração neste quarto livro, tal ordem de coisas é impensável.”
MVR, §65 p.462, I 427-428. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „[…] höchstes Gut,
summum bonum, bedeutet das Selbe, nämlich eigentlich eine finale Befriedigung des Willens, nach
welcher kein neues Wollen einträte, ein letztes Motiv, dessen Erreichung ein unzerstörbares Genügen des
Willens gäbe. Nach unserer bisherigen Betrachtung in diesem vierten Buch ist dergleichen nicht
denkbar.“
330
MVR, §65, p.462, I 428. No original alemão: „Sondern stets nur ein einstweiliges. Wenn es indessen
beliebt, um einem alten Ausdruck, den man aus Gewohnheit nicht ganz abschaffen möchte, gleichsam als
emeritus, ein Ehrenamt zu geben; so mag man, tropischer Weise und bildlich, die gänzliche
Selbstaufhebung und Verneinung des Willens, die wahre Willenslosigkeit, als welche allein den
Willensdrang für immer stillt und beschwichtigt, allein jene Zufriedenheit giebt, die nicht wieder gestört
werden kann, allein welterlösend ist, und von der wir jetzt bald, am Schluß unserer ganzen Betrachtung,
handeln werden, — das absolute Gut, das summum bonum nennen, und sie ansehen, als das einzige
radikale Heilmittel der Krankheit, gegen welche alle anderen Güter, nur Palliativmittel, nur Anodyna
sind. In diesem Sinne entspricht das Griechische τελος, wie auch finis bonorum, der Sache sogar noch
besser.“
154

2.4.3. Ascese (Askesis): A Negação da Vontade para Vida

A ascese, muitas vezes utilizada por Schopenhauer como sinônimo de


negação da vontade para vida (Verneinung des Willens zum Leben), é definida pelo
autor da seguinte forma:

Sob o termo, por mim já muitas vezes empregado, de ASCESE, entendo no


seu sentido estrito essa quebra PROPOSITAL da vontade pela recusa do
agradável e a procura do desagradável, mediante o modo de vida penitente
voluntariamente escolhido e a autocastidade, tendo em vista a mortificação
contínua da vontade. 331

A ascese é, assim, a condição de possibilidade, a via de salvação, constatada


pelo autor para o fim dos tormentos do mundo. 332 Segundo o filósofo, a ascese pode ter
como origem duas possibilidades: (i) uma carga de sofrimento pessoal brutal, ou a (ii)
compaixão no olhar mais completo e total através do princípio de individuação, no qual
a diferença entre o eu e o não-eu deixa completamente de existir.
No primeiro caso, do mais intenso sofrimento pessoal, 333 da mais profunda
dor transformadora, a qual, segundo o autor, muitas vezes acomete pessoas mais
suscetíveis a motivações maldosas ou que levam vidas consideradas desregradas, a
vontade é quebrada e o caráter do indivíduo é suprimido, o que ocasiona uma
transformação profunda e completa nesse indivíduo: “mesmo aqueles que eram pessoas
más, vemo-los às vezes purificados até este grau mediante a mais profunda dor: tornam-
se outros, completamente convertidos.” 334

331
MVR, §68, p.496, I 463. No original alemão: „Unter dem schon öfter von mir gebrauchten Ausdruck
Askesis verstehe ich, im engern Sinne, diese vorsätzliche Brechung des Willens, durch Versagung des
Angenehmen und Aufsuchen des Unangenehmen, die selbstgewählte büßende Lebensart und
Selbstkasteiung, zur anhaltenden Mortifikation des Willens.“
A ascese seria, assim, a quarta motivação aludida na nota de rodapé do capítulo 48 de MVR II supracitada.
332
Esse tipo de interpretação da ascese é o que permite afirmar, como Rudolf Malter, que a filosofia
schopenhaueriana é, na verdade, uma soteriologia. Cf. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie
und Metaphysik des Willens.
333
Schopenhauer cita como exemplo mais perfeito – embora literário – dessa via de conversão a obra
Fausto de Goethe, mais precisamente na história do sofrimento de Gretchen. Cf. MVR, §68, p.497-498, I
464-465.
334
MVR, §68, p.497, I 464. No original alemão: „Selbst Die, welche sehr böse waren, sehen wir bisweilen
durch die tiefsten Schmerzen bis zu diesem Grade geläutert: sie sind Andere geworden und völlig
umgewandelt.“
155

Quanto à negação da vontade para vida que brota da compaixão, ela consiste
no sentimento obtido no olhar através do princípio de individuação e no reconhecimento
da mesma vontade para vida em toda a natureza e, a partir desse conhecimento intuitivo,
do conhecimento das contradições e do sofrimento que é viver, resulta a repulsa pela
própria essência e, assim, um quietivo (Quietiv) universal do querer é produzido no
indivíduo: os motivos individuais se tornam, dessa forma, sem efeito. 335
Contudo, ainda parece legítimo perguntar ‘no que consiste a ascese?’. Como
exposto, no que tange à motivação, ao plano do agir, os indivíduos buscam a
autoconservação e a reprodução, sendo guiados pelo conhecimento abstrato para o
desenvolvimento e manutenção de seu caráter, de seu ser (esse). A ascese consiste
exatamente na autossupressão contínua do próprio caráter, na negação, não do
fenômeno, mas da essência do indivíduo. Com isso, ele acaba por negar a
autoconservação, e a reprodução, i.e., ele acaba por negar o seu caráter, seu ser, o seu
esse, e, por conseguinte, ele acaba por negar o seu agir, o seu operari. Aquele que nega
a própria vontade, aquele que suprime o próprio caráter, o asceta, não age, e acaba por
se colocar no plano da inação. Essa ocorrência evidencia uma contradição considerada
por Schopenhauer como o único ato de liberdade fenomênico: a contradição do
fenômeno consigo mesmo, na qual ocorre a ruptura da cadeia causal em que o então
indivíduo estava inserido.
A não diferença entre o eu e o outro é levada a um grau tão claro que esse
conhecimento produz uma repugnância da vontade por si mesma, transformando os
motivos que antes levavam ao agir em quietivos (Quietiv). O asceta, assim, seria aquele
que realiza de maneira mais plena possível a justiça eterna, na medida em que apreende
o sofrimento do mundo e o seu significado moral, fazendo com que seja possível a
supressão de todo sofrimento. A ascese consiste na abolição do princípio de
individuação e de todas as figuras do princípio de razão suficiente, o que significa a
fusão com o mundo e o fim mesmo desse, uma vez que sem sujeito não há objeto –
elementos que, ao estabelecer uma correlação de dependência, possibilitam a existência
do plano representacional: “Acompanhando a completa supressão do conhecimento,
também o resto do mundo desapareceria no nada, pois sem sujeito não há objeto.” 336
Todavia, quê é ascese não se pode explicar, dado que ela não pode ser reportada ao

335
Cf, MVR, §70, p.509, I 477.
336
MVR, §68, p.483, I 449. No original alemão: „Mit gänzlicher Aufhebung der Erkenntniß schwände
dann auch von selbst die übrige Welt in Nichts; da ohne Subjekt kein Objekt.“
156

princípio de razão, exatamente aquilo que é o explicar: reportar um fenômeno ao


princípio de razão em uma de suas quatro figuras. Assim, dada a impossibilidade de
explicar quê é ascese, sendo possível apenas a sua descrição, Schopenhauer alega que
tal evento constitui um grande mistério.
Ao assumir que a ética tem como escopo de investigação o agir dos
indivíduos, pode-se inferir que a ascese, ao ser caracterizada pela inação e pela quebra
voluntária e constante do querer, pode ser considerada como uma ruptura com a ética,
ou o seu ultrapassamento. 337 Em verdade, existe um grande debate hermenêutico acerca
da filosofia schopenhaueriana, e, consequentemente, de sua ética.
O próximo capítulo dessa tese visa um pequeno mapeamento das
contribuições que nos podem ser úteis na exposição de nossa temática, tal como os
estudos e o resgate do conceito de escola de Schopenhauer realizado pelo Centro
interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università
del Salento, encabeçados pelo presidente da seção italiana da Schopenhauer
Gesellschaft, o professor Dr. Domenico Fazio, os estudos e a contribuição incontornável
do professor Rudolf Malter, o foco na questão social proposto pelo professor Ludger
Lütkehaus, as contribuições do debate brasileiro sobre a filosofia schopenhaueriana,
bem como a construção da problemática acerca dos direitos humanos por Ernst
Tugendhat e a sua análise das contribuições da teoria schopenhaueriana para esse
debate.

337
A tese da ruptura entre a ética e ascese é tratada de forma detida e minuciosa por Jörg Salaquarda na
segunda parte de uma coletânea póstuma de escritos seus, a qual remeto o leitor que tiver curiosidade
sobre o assunto: SALAQUARDA, J. Die Deutung der Welt. Jörg Salaquardas Schriften zu Arthur
Schopenhauer. Konstantin Broese, Matthias Kossler, Barbara Salaquarda (Ed.). Würzburg:
Königshausen & Neumann, 2007.
3 Schopenhauer: Leitores e Leituras

Quando se trata da filosofia schopenhaueriana – e talvez do estudo de


filosofia em geral – é muito comum encontrar, por um lado, análises cuja abordagem é
feita de forma simplória e, por outro lado, análises muito competentes e densas. As
primeiras pecam, em geral, por não se aprofundarem e focarem apenas no que é mais
recorrente da filosofia do autor, não fugindo do lugar comum já enunciado diversas
vezes, e, não raro, acabam por ser injustas em sua exposição ao apenas repetirem os
jargões consagrados emitidos à obra pelos comentadores. O segundo tipo de análise,
quando fixado e imobilizado por uma rigidez metodológica de interpretação, acaba por
se tornar um rico exercício de exegese, que delimita o papel da teoria do autor na
história da filosofia, mas que não rompe os limites impostos à teoria pela sua própria
época, i.e., a análise não cria nem abre possibilidades de problematização diferentes do
cânone estabelecido. Ambas, quando procedem de tais formas, acabam deixando de
lado aspectos ricos, importantes, e potentes das teorias que analisam. No que tange à
ética schopenhaueriana, temáticas como as doutrinas do direito e da política são
consideradas assuntos ainda menores, 1 muitas vezes pelos próprios estudiosos que se
debruçam sobre a obra do autor. Podemos recorrer, para fazer uma contraposição a esse
fato que parece ser dominante na literatura sobre Schopenhauer, às palavras de abertura
da conferência do professor Ludger Lütkehaus por ocasião da inauguração do Centro
interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università
del Salento em 2006 na cidade de Lecce, Itália: “[…] Schopenhauer não pode ser
descrito, politicamente e socialmente, de maneira unívoca, como muitas vezes uma
historiografia caluniosa nos tenta fazer acreditar”. 2 As palavras do professor Lütkehaus

1
Podemos citar como exemplo o livro de Zoccoli que analisa “as duas obras menores de Arthur
Schopenhauer”. Segundo o autor os aspectos menores da teoria schopenhaueriana seriam: (i) sobre a
liberdade da vontade humana (Über die Freiheit des menschlichen Willens) e (ii) sobre o fundamento da
moral (Über das Fundament der Moral). Dentro desses aspectos menores, enquadra-se a doutrina do
direito, a qual recebe alguma atenção na análise. Cf. ZOCCOLI, E. Di due opere minori di Arturo
Schopenhauer. Modena: Libreria Editrice G.T. Vicenzi e Nipote, 1898.
2
LÜTKEHAUS, L. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo? In:
FAZIO, D.; KOßLER, M.; LÜTKEHAUS, L. (Orgs.). Arthur Schopenhauer e la sua scuola: Per
l'inaugurazione del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola
dell'Università del Salento. A cura di Fabio Ciracì, Domenico M. Fazio, Francesca Pedrocchi. Collana del
Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento
diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus, Vol. 1. Lecce: Pensa Multimedia,
2007, p.16. O artigo doravante será abreviado por Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il
pessimismo è un quietismo?, seguido de indicação de página. No texto italiano lê-se: “A vederci meglio,
158

são importantes porque apontam para um horizonte amplo de possibilidades


hermenêuticas em disputa, fato verificado pelas leituras e interpretações contrastantes
de diversos intelectuais e historiadores da filosofia. Esse capítulo será dedicado ao
mapeamento de algumas interpretações caras ao nosso estudo, as quais demonstram a
riqueza da filosofia schopenhaueriana, e que podem vir a corroborar e auxiliar na
estruturação e defesa de nossa tese.

3.1. A Escola de Schopenhauer – A contribuição dos Estudos Italianos

Uma das grandes contribuições do Centro interdipartimentale di ricerca su


Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento foi o resgate e a
consolidação do rompimento com uma certa tradição até então estabelecida – a qual
isolava Schopenhauer da atmosfera e panorama culturais de seu tempo –,
sistematizando, difundindo e publicizando o legado filosófico do autor e suas
influências em outros filósofos, o que foi possível mediante a análise histórico-crítico-
filológica da disputa em torno do conceito que conhecemos por Escola de
Schopenhauer (Schopenhauer-Schule). 3

tuttavia, lo stesso Schopenhauer non si descrive, politicamente e socialmente, in maniera univoca, come
invece vuol da sempre farci credere una maldicenza storiografica.”
3
Um primeiro texto no qual o professor Domenico Fazio apresenta uma introdução e sistematização do
desenvolvimento histórico e das disputas em torno do termo escola de Schopenhauer – em seus sentidos
lato e estrito – foi publicado por ocasião da fundação do Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur
Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento no primeiro livro da coleção Schopenhaueriana,
publicação do centro italiano que promove estudos relativos ao autor. Cf. FAZIO, D., La “scuola” di
Schopenhauer. Per la storia di un concetto. In: FAZIO, D.; KOßLER, M.; LÜTKEHAUS, L. (Orgs.).
Arthur Schopenhauer e la sua scuola: Per l'inaugurazione del Centro interdipartimentale di ricerca su
Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento. A cura di Fabio Ciracì, Domenico M.
Fazio, Francesca Pedrocchi. Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e
la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger
Lütkehaus, Vol. 1. Lecce: Pensa Multimedia, 2007, p.35-76. Doravante abreviado por La “scuola” di
Schopenhauer. Per la storia di un concetto, seguido de indicação de página.
Posteriormente, no ano de 2009, o segundo livro da coleção Schopenhaueriana é lançado, trazendo além
de uma contextualização mais pormenorizada e aprofundada do conceito de Escola de Schopenhauer,
uma antologia de textos dos – por assim dizer – membros dessa escola, traduzidos do alemão para o
italiano. Dentre esses discípulos – denominados evangelistas, metafísicos, heréticos e pais fundadores –
podem-se encontrar traduções de textos de Friederich Dorguth, Julius Frauenstädt, Ernst Otto Lindner,
August Gabriel Kilzer, David Asher, Carl Georg Bähr, Wilhelm Gwinner, Julius Bahnsen, Eduard von
Hartmann, Philipp Mainländer, Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Georg Simmel, Max Horkheimer, Paul
Deussen, Hans Zint, Arthur Hübscher, e Rudolf Malter. O livro oferece, assim, um cuidadoso, importante,
e denso material de estudo, reunido em torno da relação desses autores com a filosofia de Schopenhauer.
Cf. FAZIO, D.; KOßLER, M.; LÜTKEHAUS, L. (Orgs.). La Scuola di Schopenhauer: Testi e contesti.
159

O próprio Schopenhauer considerava ter uma escola de seguidores,


separando e classificando-os: os discípulos (Jünger) e apóstolos (Apostel) não
escreviam sobre ele, enquanto os evangelistas (Evangelisten) eram aqueles que
escreviam sobre a sua filosofia – “quem por ele [Schopenhauer] pega a pluma para
escrever era [considerado] um evangelista” (Wer für ihn die Feder ergriff, war ein
Evangelist), conforme relato de Robert von Hornstein. 4 Os apóstolos e evangelistas
possuíam relação direta e pessoal com Schopenhauer, e eram aqueles considerados por
ele, de fato, como a sua escola.5
Essa denominação foi difundida, como recorda Domenico Fazio, 6 por Kuno
Fischer no nono tomo de sua obra História da Filosofia Moderna (Geschichte der
neuern Philosophie),7 e é reconhecida pelo professor salentino como a escola de
Schopenhauer em sentido estrito, em contraposição ao que fora anteriormente definido
por Eduard von Hartmann 8 em seu artigo Die Schopenhauer’sche Schule (A Escola de
Schopenhauer)9 e largamente aceito na historiografia filosófica como o sentido lato do
conceito. Pode-se ler no texto de Hartmann:

A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola. In:
Schopenhaueriana - Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua
scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus,
Vol. 2. Lecce: Pensa Multimedia, 2009. Doravante abreviado por La Scuola di Schopenhauer, sendo
indicado o autor e artigo a que se refere, e a página da citação.
Em 2014 uma versão condensada e reduzida desse texto foi redigida pelo professor Fazio em português e
publicado pelo grupo APOENA: FAZIO, D. A Escola de Schopenhauer. In: CARVALHO, R.; COSTA,
G.; MOTA, T. (Orgs.) Nietzsche – Schopenhauer: metafísica e significação moral do mundo. Fortaleza:
EdUECE, 2014, v.II, p.11-36. Doravante abreviado por A Escola de Schopenhauer, seguido de indicação
de página.
4
SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauer Gespräche: Neue, stark erweiterte Ausgabe
Herausgegeben von Arthur Hübscher. Stuttgart Bad Cannstatt: Friedrich Frommann Verlag, 1971, p.219.
5
Cf. La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto, p.35.
6
La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.16; e A Escola de
Schopenhauer, p.11.
7
Cf. FISCHER, K. Schopenhauers Leben, Werke und Lehre [1893]. In: Geschichte der neuen
Philosophie, 9 Bde., Heidelberg: Gedächtnis-Ausgabe 1934, Bd. IX, p.103-113. Disponível em:
https://archive.org/stream/schopenhauersle01fiscgoog#page/n6/mode/2up. Acesso em 07 fev. 2017.
8
Sobre Hartmann consultar o cuidadoso estudo de Martia Vitale: VITALE, V. Dalla Volontà di Vivere
All'inconscio: Eduard von Hartmann e la trasformazione della filosofia di Schopenhauer. In:
Schopenhaueriana – Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua
scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus,
Vol. 8. Lecce: Pensa Multimedia, 2014.
9
VON HARTMANN, E. Die Schopenhauer'sche Schule. In: Philosophische Fragen der Gegenwart.
Berlin: 1885, p.38-57; La scuola di Schopenhauer, VON HARTMANN, E., La Scuola di Schopenhauer,
p.379-393.
160

Pode-se com direito falar de uma escola schopenhaueriana no sentido mais


largo do termo, se se compreende todas as tentativas, a partir dele, de uma
transformação de sua filosofia. 10

Dois anos antes da intervenção de Hartmann no debate sobre a definição do


conceito de escola de Schopenhauer, em 1881, uma aluna sua, Olga Plümacher,
escrevera uma monografia em polêmica com o neokantiano Hans Vaihinger, a primeira
monografia sobre a temática que “não só indicava as linhas metodológicas para a
identificação da escola de Schopenhauer latu sensu, mas esboçava um primeiro e
provisório elenco dos seus principais expoentes.”11 É de autoria também de uma
mulher, Esther Mon-Hua-Laing, a primeira tese de doutoramento, em 1932, sobre a
Escola de Schopenhauer, intitulada Die Ethik der Schule Schopenhauers. 12
Em linhas gerais, 13 tem-se, assim, a apresentação da grande divisão operada
no conceito de escola de Schopenhauer: (i) o seu sentido estrito, englobando aqueles
que mantinham relação pessoal e eram considerados a sua escola pelo próprio filósofo, e
(ii) o seu sentido lato, objeto de disputa teórica, da qual tomamos a definição dada
provisoriamente por Fazio como guia: “São schopenhauerianos em sentido lato todos os
pensadores que se dizem schopenhauerianos ou que foram considerados
schopenhauerianos”. 14
Em seu círculo de amizades e seguidores que não escreviam sobre a sua
filosofia, dois juristas se destacavam: Johan August Becker (1803-1881), 15 considerado

10
La scuola di Schopenhauer. VON HARTMANN, E., La Scuola di Schopenhauer, p.380. Nossa
tradução foi feita a partir da tradução italiana: “Ma si può a buon diritto parlare di una scuola di
Schopenhauer nel senso piú largo del termine, se vi si comprendono tutti i tentativi, partiti da lui, di una
trasformazione della sua filosofia.”
11
La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto, p.56. A passagem citada em italiano: “Olga
Plümacher, in questo modo, in quella che è la prima monografia sul tema della nostra indagine, non solo
indicava le linee metodologiche per l’identificazione della scuola di Schopenhauer latu sensu, ma stilava
anche un primo, provvisorio censimento dei suoi principali esponenti.”
12
La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto, p.69; Cf. MON-HUA LIANG, E. Die
Ethik der Schule Schopenhauers. Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwürde genehmigt
von der Philosophischen Fakultät der Friedrich-Wilhelms-Universität zu Berlin. Charlottenburg, 1932.
13
Como já indicado, uma apreciação detida, pormenorizada, e que reconstitui historicamente o
desenvolvimento e as disputas em torno do conceito de escola de Schopenhauer podem ser consultadas
em La Scuola di Schopenhauer e La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto.
14
A Escola de Schopenhauer, p.12; e La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di
Schopenhauer: I contesti, p.72. Nesse segundo texto lê-se em italiano: “[…] chi scrive ha proposto di
considerare facenti parte della scuola di Schopenhauer in senso lato tutti i pensatori che si sono detti
schopenhaueriani o che sono stati detti tali.”
15
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.21-22; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.18.
161

pelo filósofo como o seu apóstolo mais sábio e Adam Ludwig von Doss (1820–1873), 16
o apóstolo João, chamado assim por ser o mais jovem, e considerado por Schopenhauer
o seu apóstolo mais profundo. Schopenhauer tentou-os convencer, sem sucesso, a
escrever sobre a sua filosofia. De um outro apóstolo, David Asher (1818-1890), 17 o
apostolozinho, Schopenhauer esperava as traduções de suas obras para a língua inglesa.
Asher era chamado de apóstolo por Schopenhauer mesmo tendo escrito uma série de
artigos sobre o filósofo, os quais não o agradaram. Por essa razão, Schopenhauer não
concedeu a ele o título de evangelista.18 Não bastava escrever sobre Schopenhauer: para
ser um evangelista parecia ser necessário escrever algo que lhe agradasse.
Ainda no sentido estrito de sua escola, podemos elencar sete evangelistas.
Chamado por Schopenhauer de proto-evangelista, Friedrich Dorguth (1776-1854) 19 foi
o primeiro discípulo a escrever sobre o filósofo e foi o responsável pela célebre
definição do autor como o Kaspar Hauser da filosofia. 20 O chamado arquievangelista,
Julius Frauenstädt (1813-1879), 21 ativo divulgador da filosofia schopenhaueriana, foi o
primeiro editor dos manuscritos póstumos (handschriftlicher Nachlass) de
Schopenhauer. Por conta disso, envolveu-se em uma polêmica 22 acerca de um
manuscrito inédito do filósofo, o Eis eauton, com um outro evangelista, Wilhelm
Gwinner (1825-1917), 23 advogado e testamentário de Schopenhauer, o qual Frauenstädt
acusou de plágio e da destruição de tal manuscrito. Fazio, por conta de tal litígio, sugere
que Gwinner seja chamado de evangelista apócrifo.

16
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.31-32; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.18.
17
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.46-50; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.16.
18
Cf. A escola de Schopenhauer, p.16.
19
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.17-21; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.12-13.
20
Cf. A escola de Schopenhauer, p.13 e DORGUTH, F. Grundkritik der Dialektik und des
Identitätssystems, mit einem Anhange von Korollarien, Erläuterungen und Kritiken, insbesondere
mit Rückblick auf Bern. Magdeburg: Cottas Briefe über Alexander von Humboldt’s Kosmos, 1849, p.3.
(Disponível em https://books.google.com.br/books?id=sLsAAAAAcAAJ&hl=pt-
BR&pg=PA5#v=onepage&q&f=false. Acesso em 04 jan. 2015).
21
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.22-31; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.13-14.
22
Sobre essa polêmica Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I
contesti, p.37-41 e p. 43-46; Cf. também o ensaio de Franco Volpi na introdução ao livro
SCHOPENHAUER, A. A arte de conhecer a si mesmo. Org. de Franco Volpi; trad. Jair Barboza e
Silvana Cabucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
23
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.43-46; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.17-18.
162

Ernst Otto Lindner (1820-1867), 24 ao ter a sua venia legendi – a permissão


para lecionar na Universidade – suspensa por conta de suas escassas convicções cristãs-
religiosas, acabou por tornar-se jornalista. Foi tão ativo na difusão da filosofia
schopenhaueriana que acabou por receber o apelido de doctor indefatigabilis (doutor
incansável). Lindner destaca-se por pacientemente ter seguido as pistas, localizado e
transcrito de próprio punho o artigo em inglês Iconoclasm in German Philosophy de
John Oxenford, 25 o qual fez a esposa traduzir, publicando-o com diversos acréscimos
sob o título de Deutsche Philosophie im Auslande (A filosofia alemã no exterior), 26
Tratava-se do primeiro escrito sobre Schopenhauer fora da Alemanha. O responsável
pela descoberta desse artigo foi o advogado Martin Emden (morto em 1858). Sobre ele
são escassas as informações, sendo ele denominado por Fazio o sétimo apóstolo. 27
Depois da publicação desse artigo, a popularidade e, consequentemente, o número de
discípulos de Schopenhauer aumentaram.
O aprendiz evangelista, August Gabriel Kilzer (1798-1864), 28 ganhou esse
apelido de Schopenhauer por ter escrito apenas duas breves resenhas sobre a obra de seu
mestre, não se tornando, assim, um evangelista pleno. Por outro lado, Carl Georg Bähr
(1833-1893) 29 escreveu a primeira monografia crítica e científica sobre Schopenhauer,
recebendo grandes elogios do filósofo, e, mesmo assim, não recebeu o título de
evangelista por parte de Schopenhauer.
Ocorre ainda mencionar o desejo de Schopenhauer em ter outros dois
seguidores: Christian Weigelt (1816-1885), 30 um humilde pregador católico que havia
escrito uma história da filosofia na qual interpretava a doutrina da negação da vontade

24
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.32-41; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.14-15.
25
Cf. OXENFORD, J. Iconoclasm in german philosophy. In: Westminster and foreign quarterly
review, v. III, n. 2, jan. 1853, p.388-407. Existe uma transcrição do texto em formato digital disponível
em um site francês dedicado a Schopenhauer e sua filosofia:
http://www.schopenhauer.fr/oeuvres/iconoclasm.html (Acesso em 05 jan. 2015).
26
LINDNER, E. Deutsche Philosophie im Auslande. In: Königlich Privilegirte Berlinische Zeitung von
Staats - und Gelehrten Sachen, 1853. Este artigo foi traduzido para o italiano a partir da análise cotejada
entre o original em inglês e a tradução alemão. Dessa forma, na tradução italiana, as adições de Lindner,
tais como as alterações nos textos, foram grafadas. Cf. La Scuola di Schopenhauer, LINDNER, E., La
Filosofia tedesca all’estero, p.263-289.
27
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.42.
28
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.42; Cf. A Escola
de Schopenhauer, p.16.
29
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.50-65; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.17.
30
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.65.
163

em uma chave cristã, e no qual Schopenhauer vislumbrava a possibilidade de ganhar um


novo evangelista. Já G.W. Körber (1817-1885), 31 em 1857, ministrou um dos primeiros
cursos universitários sobre a filosofia de Schopenhauer.
Assim, no que se refere à escola de Schopenhauer em senso estrito,
podemos elencar esses dez seguidores e o desejo do filósofo em agregar mais outros
dois. Tal era, exposta de modo sucinto e resumido, a escola de Schopenhauer em
sentido estrito. Mas sobre o sentido lato, o que poderia ser dito? Tomemos duas outras
definições, além da definição provisória supracitada, como pontos de apoio para nossa
exposição. A primeira delas é de Olga Plümacher:

Nós interpretamos o conceito de escola em um sentido mais lato e


consideramos schopenhauerianos não só os que na doutrina dele encontraram
paz e trégua para o espírito, mas também ainda com mais razão os que se
afastam dele: e os schopenhauerianos são mais interessantes à medida que
menos certa é a consideração deles como schopenhaueriano. 32

A segunda, de autoria de Fazio:

Da existência, junto à escola de Schopenhauer em sentido estrito, de uma


escola de Schopenhauer tomada em sentido lato, ou seja, de um grupo de
pensadores que, mesmo não tendo sido discípulos diretos do sábio de
Frankfurt, eram de vários modos inspirados pelo seu pensamento e o
desenvolveram seguindo direções autônomas e muitas vezes originais,
discutiu-se longamente ao final do século XIX.33

Essas definições abrem as possibilidades para sistematização do legado


schopenhaueriano na história da filosofia de uma forma mais ampla. O centro italiano
propõe uma interessante hipótese de interpretação e organização dos autores
identificados como membros da escola de Schopenhauer em sentido lato.
Aqueles que tomam a metafísica da vontade, desenvolvendo-a e alterando-a,
seriam denominados metafísicos, 34 figurando entre eles a real-dialética de Julius

31
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.65.
32
PLÜMACHER, O. Zwei Individualisten der Schopenhauer'schen Schule. Wien 1881, p. 2 apud A
Escola de Schopenhauer, p.19.
33
La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.66. No texto em
italiano lê-se: “Dell’esistenza, accanto alla scuola di Schopenhauer in senso stretto, di una scuola di
Schopenhauer intesa in senso lato, ossia di un gruppo di pensatori che, pur non essendo stati discepoli
diretti del Saggio di Francoforte, si erano a vario titolo ispirati al suo pensiero e lo avevano sviluppato
seguendo direzioni autonome e talvolta originali, si è discusso lungamente alla fine dell’Ottocento.”
34
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.72-132; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.22-27.
164

Bahnsen (1830-1881), a filosofia do inconsciente de Eduard von Hartmann (1842-1906)


– citado anteriormente –, e a filosofia da redenção de Philipp Mainländer (1841-1876). 35
Considerado por Fazio como os padres da igreja, 36 tomando a definição de
Hans Zint – responsável, também, pela concepção de toda a sociedade Schopenhauer
como uma instituição religiosa 37 –, ou como os pais fundadores, enquadram-se aqui três
daqueles que presidiram a Schopenhauer-Gesellschaft (Sociedade Schopenhauer): o
fundador da Sociedade Schopenhauer, Paul Deussen (1845-1919) foi o seu primeiro
presidente (1911–1919); após Deussen, Leo Wurzmann presidiu a sociedade por quatro
anos (1920-1924), contribuindo apenas com um curto artigo sobre Schopenhauer no
Schopenhauer-Jahrbuch de 1922, 38 não sendo enquadrado nessa definição por Fazio.
Hans Zint (1882-1945) foi o sucessor de Wurzmann no comando da Schopenhauer-
Gesellschaft (1924–1936). Judeu, pacifista e socialista, teve importante papel na
manutenção da autonomia e na resistência à instrumentalização da instituição 39 durante
a ascensão do regime nacional-socialista. Foi obrigado a renunciar à presidência da
sociedade.
Após Zint, Arthur Hübscher (1897-1985) assumiu a presidência da
sociedade Schopenhauer pelo período de 1937 a 1983, sendo também ele considerado
por Fazio um dos padres da igreja. Hübscher foi um pesquisador incansável,
responsável pela edição de diversas obras de Schopenhauer, embora ele também tenha
sido responsável pelo período no qual a instituição ficou fechada a pesquisadores e
professores universitários – no que ele julgava um ato de coerência com a filosofia de
Schopenhauer.40

35
Sobre a filosofia de Mainländer Cf. CIRACÌ, F. Verso l’assoluto nulla: La filosofia della redenzione
di Philipp Mainländer. Lecce: Pensa Multimedia, 2006.
36
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.188-211; Cf. A
Escola de Schopenhauer, p.33-36.
37
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.188.
38
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.197 e Cf.
WURZMAN, L. Schopenhauer als Lebensretter. In: Jahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft für das
Jahr 1922, Band 11. Heidelberg: Carl Winters Universitätsbuchhandlung, p.108-113, 1922.
39
Para uma análise pormenorizada das tentativas de instrumentalização e nazificação do pensamento de
Schopenhauer Cf. CIRACÌ, F. In lotta per Schopenhauer: La “Schopanhauer-Gesselschaft” fra ricerca
filosofica e manipolazione ideologica 1911-1948. In: Schopenhaueriana - Collana del Centro
interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da
Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia, 2010. v.6.
40
É bem conhecida a opinião de Schopenhauer sobre a filosofia universitária. Cf. PP, Ueber die
Universitäts-Philosophie.; Cf. SCHOPENHAUER, A. Sobre a filosofia universitária. Tradução,
introdução e notas Maria Lucia Mello Oliveira Cacciola e Márcio Suzuki. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
165

Apenas para registro, não mais constando na denominação de padres da


igreja, em 1984 Wolfgang Schirmacher preside a sociedade Schopenhauer, antes de
Rudolf Malter (1937-1994) assumir o cargo. Malter presidiu a sociedade entre 1985 e
1992 e é lembrado pelo esforço na superação da organização da sociedade como uma
confraria religiosa, transformando-a em uma instituição moderna, em uma comunidade
aberta e dedicada à pesquisa científica. 41 De 1992 a 1999 a instituição foi conduzida por
Heinz Gerd Ingenkamp e, no ano 2000, Matthias Koßler assumiu a sua presidência,
sendo grande responsável pelo diálogo da matriz alemã com as seções da
Schopenhauer-Gesellschaft espalhadas pelo mundo, como a seção brasileira, indiana,
italiana, japonesa, e norte-americana.
Apesar do reconhecimento da misoginia do autor, surpreendentemente é
possível falar de uma escola de Schopenhauer em seu sentido lato formada por um
grupo de seguidoras suas, i.e., é possível falar das mulheres da escola de
Schopenhauer. 42 Já citamos o pioneirismo de Olga Plümacher e de Esther Mon-Hua-
Laing. É possível citar, ainda, Malwida von Meysenburg, Lou Salomé, Agnes Taubert e
a tradutora italiana de Schopenhauer Eva Kühn. 43
Após uma sucinta reconstrução da história do conceito de escola de
Schopenhauer e de seu contexto na história da filosofia e sua relação com o filósofo,
chegamos ao ponto de classificação mais interessante para o nosso estudo: os
denominados schopenhauerianos em sentido herético. Ao contrário da definição do
sentido estrito da escola de Schopenhauer, que dificilmente será alterada – e as
definições de metafísicos e pais da igreja parecem seguir o mesmo destino –, a lista dos
denominados heréticos parece estar destinada a aumentar cada vez mais. 44 A definição
dada por Fazio enuncia:

Em conformidade com os critérios metodológicos adotados, os quais


consistem no proceder mais por diferença do que por analogia e na

41
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.208.
42
Cf. FAZIO, D. Richard Wagner e as mulheres da escola de Schopenhauer. In: Labirintos da alma:
Festschrift aos 60 anos de Oswaldo Giacoia Jr. Organização André Luis Muniz Garcia e Lucas Angioni.
Campinas: Editora Phi, 2014, p.191-209.
43
Sobre Eva Kühn Cf. PASSABÍ, M. Eva Kühn e “L’ottimismo trascendentale di Schopenhauer”. In:
CIRACÌ, F.; FAZIO, D. (Orgs.). Schopenhauer in Italia: Atti del I convengno nazionale della sezione
italiana della Schopenhauer-Gesellschaft San Pietro Vernotico – Lecce 20 e 21 giugno 2013. A cura di
Fabio Ciracì e Domenico M. Fazio. In: Schopenhaueriana – collana del Centro interdipartimentale di
ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio,
Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia, 2013, p.131-140. V.7.
44
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.212.
166

consideração como expoentes da escola de Schopenhauer todos aqueles que


se dizem schopenhauerianos ou que são chamados assim, é possível
individuar um segundo grupo de pensadores que pertencem à escola de
Schopenhauer em sentido lato. Eles não aderiram à metafísica da vontade – e
por isso não podem ser inseridos entre os “metafísicos” – nem tentaram
completar o pensamento de Schopenhauer de modo sistemático, mas
desenvolveram sobretudo temas presentes na doutrina ética do sábio de
Frankfurt. Isso é, o que caracteriza este desenvolvimento não é a fidelidade à
doutrina originária do mestre, mas, ao contrário, a postura crítica e a pesquisa
autônoma e original. Por isso, esses pensadores, que não são simples
seguidores, podem ser considerados pertencentes à escola de Schopenhauer,
mas apenas na condição de serem considerados heréticos. 45

Os assim denominados heréticos – aqueles que não se mantiveram


ortodoxos ou completamente fiéis à doutrina schopenhaueriana – desenvolveram de
forma autônoma, até então e em especial, a doutrina ética de Schopenhauer. Entre os
autores identificados pelos estudos do Centro Leccese como schopenhauerianos
heréticos, temos Friedrich Nietzsche (1844-1900), 46 o qual tem em Schopenhauer o
mestre inspirador e educador em sua filosofia de juventude, mestre inclusive a ser
confrontado em sua filosofia madura; Paul Rée (1849-1901), 47 o psicólogo empírico que
elabora uma teoria pessimista sem a metafísica da vontade;48 Georg Simmel (1858-
1918), 49 um schopenhaueriano sem o pessimismo; 50 e Max Horkheimer (1895-1973), 51

45
La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.132. No texto italiano
lê-se: “Conformemente ai criteri metodologici adottati, consistenti nel procedere piú per differenze che
per analogie e nel considerare come esponenti della scuola di Schopenhauer tutti coloro i quali si sono
detti schopenhaueriani o che sono stati detti tali, è possibile individuare un secondo gruppo di pensatori,
che appartengono alla scuola di Schopenhauer in senso lato. Essi non hanno aderito alla metafisica della
volontà – e perciò non possono essere compresi tra i “metafisici” – né hanno tentato di completare il
pensiero di Schopenhauer in modo sistematico, ma hanno sviluppato soprattutto motivi presenti nella
dottrina etica del Saggio di Francoforte. Ciò che caratterizza questi sviluppi non è la fedeltà alla dottrina
originaria del maestro ma, al contrario, l’atteggiamento critico e la ricerca di autonomia ed originalità.
Perciò, questi pensatori, che non sono dei semplici epigoni, possono essere detti appartenenti alla scuola
di Schopenhauer, solo a patto che li si consideri degli eretici.”
46
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.132-148 e p.443-
475; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.27-28.
47
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.148-164 e p.476-
504; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.28-30.
48
Cf. RÉE, P. Osservazioni psicologiche. A cura di Domenico M. Fazio. In: Schopenhaueriana - Collana
del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del
Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia,
2010. v.4.
49
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.164-176 e p.505-
525; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.30-31.
50
Cf. RUGGIERI, D. Il conflitto della società moderna: La ricezione del pensiero di Arthur
Schopenhauer nell'opera di Georg Simmel (1887-1918). In: Schopenhaueriana - Collana del Centro
interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da
Domenico M. Fazio, Mathias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia, 2010. v.3.
167

responsável por uma interpretação à esquerda no espectro político do pensamento de


Arthur Schopenhauer. É dele a célebre frase entre os estudiosos de Schopenhauer: “Os
dois filósofos que influenciaram de maneira decisiva o nascimento da Teoria Crítica
foram Schopenhauer e Marx”. 52 Essa mesma frase é quase completamente ignorada
pelos estudiosos da Teoria Crítica.
É possível notar, assim, pela potência dos nomes elencados e pela
importância deles na história da filosofia, como interpretações e desenvolvimentos
heréticos da filosofia schopenhaueriana podem ser frutíferos e produtivos, apontando
para novos horizontes e desdobramentos no enfrentamento dos mais variados problemas
postos.
Mantendo essa importância e potencialidade em mente, passamos à análise
de dois estudos hermenêuticos sobre a filosofia de Schopenhauer: o primeiro estudo, de
Rudolf Malter, tornou-se referência da interpretação da filosofia schopenhaueriana, ao,
a partir de uma leitura do conceito de pessimismo como um conceito crítico, entendê-la
como uma soteriologia, ao entendê-la como uma filosofia da salvação na qual o
pessimismo desempenha um papel, além de crítico, quietista; o segundo estudo teve as
bases lançadas pelo professor Ludger Lütkehaus. Ele indaga a existência de uma
esquerda schopenhaueriana – em oposição a uma, por assim dizer, direita
schopenhaueriana – e o que ela seria, a partir da investigação do conceito de
pessimismo e da recusa em interpretar tal conceito como um conceito quietista, que
acabaria por desaguar na inação. Ao contrário, Lütkehaus vê no pessimismo a
possibilidade de repensar a filosofia prática de Schopenhauer.

3.2. Rudolf Malter e o pessimismo crítico schopenhaueriano

Presidente da Schopenhauer-Gesellschaft entre 1985 e 1992, Rudolf Malter


é conhecido principalmente pelo sério trabalho empreendido na pesquisa sobre

51
Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.176-188 e p.526-
548; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.31-33.
52
HORKHEIMER, M. Kritische Theorie gestern und heute. In: Gesammelte Schriften. Org. A. Schmidt.
Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, v.8, p. 336. No original em alemão: „Die Beiden
Philosophen, welche die Anfänge der Kritischen Theorie entscheidend beeinflußt haben, waren
Schopenhauer und Marx.“
168

Immanuel Kant e Arthur Schopenhauer, tendo publicado sobre o último livros e artigos
que se consolidaram como clássicos da interpretação do autor. 53
No nono capítulo de seu livro Der eine Gedanke: Hinführung zur
Philosophie Arthur Schopenhauers (O pensamento único: introdução à filosofia de
Arthur Schopenhauer) intitulado Abschließende Charakteristik: Pessimismus – ein
kritischer Begriff (Característica conclusiva: Pessimismo – um conceito crítico) Malter
analisa o conceito de pessimismo para além do seu sentido mais trivial – a disposição
em sempre esperar o pior –, expondo a sua função sistemática e sua importância para a
constituição da filosofia do autor.
O termo pessimismo (Pessimismus) aparece oito vezes na obra de
Schopenhauer,54 mas apenas em quatro ocorrências o termo se refere ao pessimismo do
próprio autor, sendo duas delas em seus manuscritos e as outras duas em sua
correspondência, ou seja, em nenhuma das ocorrências o termo aparece em seus escritos
publicados: em 1828, no fragmento póstumo 66 dos Adversaria; 55 em 1833, no
fragmento póstumo 49 dos Pandectae II; 56 na carta de 15 de julho de 1855 a Julius
Frauenstädt; 57 e na carta de 16 de julho de 1860 a Davis Asher, na qual ele fala sobre
seu isolamento e menciona argumentos ad hominem em benefício de seu pessimismo. 58
Segundo Malter, a filosofia de Schopenhauer só pode ser denominada
pessimista se pessimismo for entendido como um conceito crítico a partir de um duplo
ponto de vista formal:

53
Cf. MALTER, R. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens.
Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman-Holzboog, 1991; Cf. MALTER, R., Der eine Gedanke: Hinführung
zur Philosophie Arthur Schopenhauers. Darmstadt: Wiss. Buchges., 2010. Doravante abreviado por Der
eine Gedanke, seguido de indicação de página.
54
Cf. DEBONA, V. A outra face do pessimismo: entre radicalidade ascética e sabedoria de vida. 2013,
Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p.20. Doravante abreviado por A
outra face do pessimismo, seguido de indicação de página.
Outro texto importante para consulta sobre o pessimismo alemão e que reúne autores como Schopenhauer
e seus discípulos é INVERNIZZI, G. Il pessimismo tedesco dell’Ottocento: Schopenhauer, Hartmann,
Bahnsen e Mainländer e i loro avversari. Firenze: La Nuova Italia, 1994.
55
Cf. HN III, Adversaria, p.464.
56
Cf. HN IV (1), Pandectae II, p.160.
57
Cf. SCHOPENHAUER, A. Der Briefwechsel. In: Arthur Schopenhauers sämtliche Werke 14., 15.
und 16. Band Ergänzungen um neu Aufgefundenes aus den Jahrbüchern der
Schopenhauergesellschaft u. Arthur Schopenhauer Gesammelte Briefe. Hrsg. von Paul Deussen.
München: R. Piper, 1911-1942, 558, XV 393. Abreviado por Briefwechsel, seguido de indicação do
número da correspondência, tomo e página.
58
Cf. Briefwechsel, 809, XV 821.
169

1. O conceito de “Pessimismo” destaca-se como um tipo do entendimento do


mundo empírico dado, em respeito a um outro tipo de entendimento (que –
como ainda se deve realizar – é designado de um lado como eudemonismo, e,
de outro, como otimismo). Pessimismo é um modo no qual a razão reflexiva
se dirige à experiência da dor. 2. O conceito de “pessimismo” indica o tipo
correto do conceito racional dessa experiência, os outros dois termos referem-
se ao falso tipo da conceituação racional da existência da dor. Pessimismo é,
portanto, um conceito valorativo: ele fala da compreensão correta ou falsa da
experiência concreta dada ao ser humano. 59

O pessimismo pode, assim, a partir desse duplo ponto de vista formal, ser
entendido como a exata identificação do valor da existência humana. 60 Malter precisa a
forma pela qual ele entende o significado de pessimismo na filosofia de Schopenhauer:
segundo ele, em geral, o julgar de maneira pessimista o mundo e, em particular, a
existência humana significa julgar ambos como possuidores de uma tendência ao não
ser. 61 Esse juízo é alcançado pela razão reflexiva apenas através da
facticidade/concretude (Faktizität) da dor, mas tal facticidade/concretude só é possível
se sob o domínio do princípio de razão suficiente.62 Tomado como juízo sobre a dor da
existência, constitui-se, por isso, como um juízo sobre o ser e sua finitude no tempo,
finitude esta que consiste na constante ameaça do ser vir-a-ser um não-ser. 63 Ser
ameaçado pelo não-ser é o indicador (Index) do fato de que, embora seja, o ser não
deveria ser. E que esse não-dever-ser indica também que em cada ser submetido ao
princípio de razão encontra-se o caráter da culpa (Charakter der Schuld). Assim,
segundo Malter, tomado de forma abstrata em geral, o pessimismo é a visão do caráter
de culpa e da nulidade a serem superados pelos seres submetidos ao princípio de razão64
– superação essa que envolve necessariamente o ultrapassamento de tal princípio.
Malter localiza na obra de Schopenhauer dois pontos fundamentais nos
quais é indicado claramente a função crítica do conceito de pessimismo

59
Der eine Gedanke, p.103. No original alemão: „l. Der Begriff „Pessimismus" hebt sich als eine Art des
Verstehens der empirisch gegebenen Welt von einer anderen Art des Verstehens ab (die- wie noch
ausgeführt werden wird- zum einen als Eudämonismus, zum anderen als Optimismus zu kennzeichnen
ist). Pessimismus ist eine Weise, in welcher sich die reflektierende Vernunft der Leidenserfahrung
zuwendet. 2. Der Begriff „Pessimismus“ nennt die richtige Art des vernünftigen Begreifens dieser
Erfahrung, die beiden anderen Termini beziehen sich auf die falsche Art des vernünftigen Begreifens der
Leidensexistenz. Pessimismus ist demnach ein wertender Begriff: er redet von richtigem und falschem
Begreifen der konkret dem Menschen gegebenen Erfahrung.“
60
Cf. Der eine Gedanke, p.103.
61
Cf. Der eine Gedanke, p.103.
62
Cf. Der eine Gedanke, p.103.
63
Cf. Der eine Gedanke, p.104.
64
Cf. Der eine Gedanke, p.104.
170

[...] o primeiro [ponto] na avaliação da aspiração individual para o


desempenho na existência afirmativa da vontade dominada pelo princípio de
razão; o segundo na avaliação do mundo dado em geral, enquanto esse é
elevado a produto de um criador sábio e bom. No primeiro caso, o
pessimismo é uma crítica do eudemonismo, no segundo, crítica do otimismo
(que deriva de um pensamento teodicéico). 65

Tomando a afirmação expressa em MVR II, de que a busca pela felicidade é


o único erro inato do ser humano, 66 Malter estabelece uma relação identitária entre a
vontade auto afirmar-se e a busca pela felicidade.
A busca pela felicidade resulta na experiência continua de fragilidade de
cada momento, seja no curto intervalo de prazer que se torna rapidamente tédio, seja na
esperança do querer ser satisfeito e sua frustração, seja na desilusão do querer não
satisfeito. Nesse contexto, o pessimismo, tomado como postura de vida, ganha o papel
de um corretivo da existência (Der Pessimismus als Lebenshaltung gewinnt so die Rolle
des Korrektivs). 67 Assim, nas palavras de Malter:

O pessimismo é uma postura teórica e prática, que surge da reflexão racional


e da concreta experiência da dor, a qual reconcilia o ser determinado pelo
princípio de razão, e uma vez que a forma explícita de uma tal reflexão
abstrata fundada na experiência é a filosofia, o pessimismo é a postura
genuinamente filosófica, no confronto da existência temporal. 68

Rudolf Malter, prosseguindo na derivação das consequências de sua


definição de que o pessimismo é um conceito crítico, acaba por chegar ao ponto em que
não é possível chegar a uma satisfação (Erfüllung) da afirmação da vontade no espaço-
tempo, i.e., não é possível uma solução para o sofrimento no mundo enquanto se está
submetido ao princípio de razão, enquanto se está no plano representacional. O
pessimismo da felicidade (Glücks-Pessimismus) implica no reconhecimento da dor da
existência como a forma de existência efetiva e da fragilidade da existência em meio a

65
Der eine Gedanke, p.105. No original alemão: „[…] zum einen in der Beurteilung des individuellen
Strebens nach Erfüllung in der durch den Satz vom Grund beherrschten willensbejahenden Existenz, zum
anderen in der Beurteilung der gegebenen Welt im ganzen, insofern diese zum Produkt eines weisen und
gütigen Schöpfers erhoben wird. Im ersten Fall ist Pessimismus Eudämonismuskritik, im zweiten Fall
Kritik des Optimismus (der aus dem Theodizeedenken hervorgeht).“
66
Cf. MVR II, Kapitel 49 – Die Heilsordnung, II 729.
67
Der eine Gedanke, p.105.
68
Der eine Gedanke, p.105-106. No original alemão: „Da Pessimismus eine aus vernünftiger Überlegung
entstehende, auf der konkreten Leidenserfahrung aufruhende theoretische und praktische Haltung zum
Satz-vom-Grund bestimmten Dasein ist, und da die explizite Form einer solchen erfahrungsfundierten
abstrakten Reflexion die Philosophie ist, ist Pessimismus di e genuin philosophische Haltung gegenüber
der zeitlichen Existenz.“
171

essência de dor, em contraposição à expectativa de ausência de dor e à satisfação dos


sentidos. 69
Ao expor todos os martírios deste mundo para alguém – e Malter ilustra essa
passagem com exemplos que podem ser encontrados nos diários de viagem de
Schopenhauer, nos quais o filósofo descrevera a própria experiência de observação da
miséria do mundo por ocasião de sua viagem pela Europa quando ainda jovem 70 – o
comentador crê no desmonte da tese leibniziana do melhor dos mundos possíveis: diante
da experiência mais elementar da nulidade da existência individual, seria
incompreensível sustentar qualquer otimismo.
A argumentação de Malter acaba por abrir caminho para duas importantes
consequências: (i) a forte contraposição entre o teísmo e o pessimismo – que se tornam,
assim, para ele, termos antitéticos que não podem coexistir, 71 dado que, segundo o
comentador, para o pessimismo uma justificativa do mal do mundo estaria fora de
questão, justamente o que o teísmo faz – justificar o mal no mundo; e (ii) pavimenta-se
dessa forma uma das marcas de sua interpretação sobre a filosofia schopenhaueriana: o
seu traço soteriolológico, da redenção (Erlösung) ser alcançada apenas por aqueles
poucos eleitos que atingem a negação da vontade, i.e., da salvação ser obtida para além
das amarras do princípio de razão.
A partir da avaliação pessimista da dor da existência dada, não se segue a
sua falta de sentido e não se recai no niilismo, mas ao contrário: é precisamente com
esta avaliação que o pessimismo se mostra um meio de instrumentalizar o fato dado da
dor e permite o indivíduo ser capaz chegar à negação da vontade. O pessimismo, assim,
é interpretado por Malter como uma das chaves para o quietismo e para a redenção, o
que torna lícito, desse modo, a caracterização da filosofia schopenhaueriana como uma
filosofia soteriológica.

69
Cf. Der eine Gedanke, p.108-109.
70
Cf. SCHOPENHAUER, A. Die Reisetagebücher von Arthur Schopenhauer. Hrsg. von Ludger
Lütkehaus. Zürich: Haffmans, 1988.
71
Cf. Der eine Gedanke, p.112-114.
172

3.3. Ludger Lütkehaus: Esquerda e Direita na Interpretação da

Filosofia Schopenhaueriana

A quase totalidade dos manuais de filosofia acabam por descrever a filosofia


schopenhaueriana da mesma forma: uma filosofia pessimista, que vê esse como o pior
dos mundos possíveis – em paráfrase satírica ao melhor dos mundos possíveis
enunciado por Leibniz 72 –, na qual não ser é melhor que ser, e que a única saída para a
supressão dos sofrimentos e dores do mundo seria a ascese, a negação da vontade para
vida.
Interpretações mais sofisticadas também enunciam a preponderância e o
peso de um pessimismo metafísico que deságua em um quietismo e dão ensejo à
definição da filosofia de Schopenhauer como uma Gelassenheit (serenidade) frente à
essência de sofrimento do mundo, uma Erlösung (redenção), i.e., uma soteriologia, 73 ou
em um niilismo, baseados, principalmente, no exame da ética da compaixão e do
ascetismo.74
O professor Ludger Lütkehaus, justamente tomando o quietismo como
critério de classificação, propõe uma distinção entre esse tipo de interpretação citada
acima, a qual pode-se denominar “direita schopenhaueriana”, e uma interpretação em
contraposição a essa, designada “esquerda schopenhaueriana”. Através da indagação
“Seria o pessimismo um quietivo? (Ist der Pessimismus ein Quietismus?), 75 o professor

72
“Mas mesmo às evidentemente sofísticas demonstrações leibnizianas de que este é o melhor dos
mundos possíveis, pode-se opor séria e honestamente a demonstração de que esse seja o PIOR dos
mundos possíveis.” MVR II, Kapitel 46 – Von der Nichtigkeit und dem Leiden des Lebens, II 667. No
original alemão: „Sogar aber läßt sich den handgreiflich sophistischen Beweisen Leibnitzens, daß diese
Welt die beste unter den möglichen sei, ernstlich und ehrlich der Beweis entgegenstellen, daß sie die
sc hlec ht est e unter den möglichen sei.“
73
Como visto na seção anterior, Rudolf Malter é um importante exemplo de intérprete da filosofia de
Schopenhauer como soteriologia. Cf. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik
des Willens e Der eine Gedanke.
74
Vilmar Debona denominou essa esfera de análise, a esfera da ética da compaixão e do ascetismo, de
Grande Ética. Contraposta à Grande Ética, a Pequena Ética englobaria a esfera da sabedoria de vida, i.e.,
da vida prudente no mundo. Sobre esse aspecto, conferir a próxima seção 3.4 Schopenhauer no Brasil: a
esquerda schopenhaueriana ganha força.
75
Cf. LÜTKEHAUS, L. Einleitung II: Pessimismus und Praxis. Umrisse einer kritischen Philosophie des
Elends. In: EBELING, H.; LÜTKEHAUS, L (Orgs.). In: Schopenhauer und Marx: Philosophie des
Elends - Elend der Philosophie?. Herausgegeben und eingeleitet von Hans Ebeling und Ludger
Lütkehaus. Königstein/Ts.: Hain, 1980, p.23-39. Na qual a primeira seção – Ist der Pessimismus ein
Quietismus? – coloca a questão do pessimismo ser um quiestismo, e na segunda seção – Ansätze zu einer
Praxisphilosophie des Als-Ob – na qual ele introduz a possibilidade de formulação de uma moral do
“Como-se” (Als-Ob). Cf. também Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un
173

inicia sua reflexão. O primeiro passo que ele toma é estipular o significado mais básico
dos termos a serem analisados, pessimismo e quietismo, nesse contexto. Sobre o
pessimismo ele escreve:

E o “pessimismo”? Trata-se de um termo que, como a sua contraposição


“otimista”, serve para definir como filosoficamente relevantes os estados de
ânimo, os aspectos das sensações da vida, assim como uma constituição
psicopatológica de tons depressivos. Aqui, porém, eu gostaria de afrontar o
tema a partir de um ponto de vista ontológico, entendendo por “pessimismo”
a teoria schopenhaueriana do pior dos mundos possíveis e da identificação da
vida com a dor. 76

E sobre o quietismo:

O quietismo designa aquela teoria herética dos séculos XVII e XVIII, que
esperava obter um nível máximo de união mística a partir da completa
renúncia do eu, com a total submissão à vontade de Deus, e com a renúncia a
qualquer esforço ou atividade – dito nos termos dos adversários: através da
total passividade, indiferença e autodestruição – e que, portanto, sob o véu
da religiosidade, escondia um culto niilista ao nada. 77

Para Lütkehaus, o pessimismo, considerado ontologicamente, não pode ser


entendido como um quietismo, porque ele não pode significar a manutenção do status
quo político e social; ao contrário, ele acaba por engendrar uma filosofia da práxis do
como-se (Als-Ob). 78
A investigação do professor baseia-se na constatação de uma compaixão
ativa, a qual ele interpreta como uma possibilidade de desenvolvimento das
potencialidades da esfera prática da filosofia do autor, e no que resulta na tentativa de
minimizar o máximo possível os sofrimentos no mundo. Ele identifica três

quietismo?; e Cf. LÜTKEHAUS, L. Schopenhauer Metaphysischer Pessimismus und „soziale Frage“.


Bonn: Bouvier, 1980.
76
Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.15. No texto em
italiano: “E il ‘pessimismo’? Si tratta di un termine che, al pari della sua controparte ‘otimistica’, serve a
definire come filosoficamente rilevanti gli stati d’animo, gli aspetti delle sensazioni della vita, cosí come
una costituizione psicopatologica dai toni depressivi. Qui di seguito, però, vorrei affrontare il tema da un
ponto di vista ontologico, intendendo per ‘pessimismo’ la teoria schopenhaueriana del peggiore di tutti i
mondi possibili e dell’identificazione della vita con il dolore.”
77
Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.15. No texto em
italiano: “Il quietismo designa quella teoria eretica dei secoli XVII e XVIII, che sperava di pervenire ad
un livello massimo di unione mistica con la completa rinuncia dell’io, la totale sottomissione alla volontà
di Dio, la rinuncia a qualsiasi sforzo e attività – detto nei termini degli avversari: attraverso la totale
passività, indifferenza e autodistruzione – e che quindi, sotto il velo della religiosità, nascondeva un culto
nichilista del nulla.”
78
Cf. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16. Deixaremos
para entrar em detalhes sobre o que viria a constituir uma filosofia da práxis do como-se na próxima
seção deste trabalho.
174

características mínimas do que ele chama de “esquerda schopenhaueriana”: (i) o


impulso crítico, (ii) a vontade de mudança, e (iii) a doutrina do menos pior ou do
relativamente melhor. 79
Assim, o marco distintivo entre uma direita e uma esquerda
schopenhauerianas seria o fato de, na primeira, os sofrimentos no mundo levarem à
resignação, e, na segunda, à ação na tentativa de tornar esse um menos pior dos mundos
possíveis. Como o comentador escreve: “Schopenhauer se vê de frente à miséria da
vida. Essa miséria transforma-se na sua musa, o impulso do seu despertar.” 80 Diante do
sofrimento do mundo, ao invés de resignação, encontram-se as forças que detêm o
potencial transformador.
É muito provável que essa não tenha sido a intenção do professor José
Thomaz Brum quando ele escreveu o posfácio à edição brasileira de MVR II traduzida
por Eduardo Ribeiro da Fonseca, mas ele expõe de forma muito precisa o que seria uma
interpretação precisa da filosofia schopenhaueriana à direita:

Os suplementos ao quarto livro de O mundo como vontade e representação


reapresentam ou prolongam os aspectos “graves” e “sérios” da filosofia de
Arthur Schopenhauer: a sua ética da negação da Vontade e a sua concepção
da existência como um mal. [...] As grandes linhas da filosofia
schopenhaueriana lá estão: a sua concepção da onipresença de uma Vontade
como força impulsiva, a sua decidida opção pela contemplação como
antídoto para a ação, a sua descrição premonitória de um mundo sem Deus
“entregue à sua guerra perpétua”, a sua ênfase na renúncia e na negação
aponta para um interlocutor incontornável em um mundo mergulhado no
ativismo compulsivo e na cega obediência aos ditames do desejo. 81

O professor Jair Barboza, retomando o texto de Lütkehaus, escreve o artigo


Sabedoria de vida e práxis em Schopenhauer ou sobre uma possível “esquerda”
schopenhaueriana, no qual pode-se ler:

Entendo aqui por direita aquela interpretação da obra de Schopenhauer que


vê em sua filosofia uma mera desqualificação teórica da existência e nega a
eficiência dessa práxis em vista de uma vida menos ruim em meio a este
mundus pessimus.
Meu objetivo aqui é evidenciar [...] a possibilidade dessa esquerda que se
contrapõe à interpretação da sua filosofia como simples Gelassenheit,
simples serenidade em face da nulidade da existência, isto é, uma filosofia

79
Cf. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16.
80
Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.17. No texto em
italiano lê-se: “Schopenhauer si vede di fronte alla miseria della vita. Questa miseria diventa la sua musa,
l’impulso del suo risveglio.”
81
BRUM, J. Posfácio. In: O Mundo como vontade de representação, tomo II. Tradução de Eduardo
Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Editora UFPR, 2014, p. 393-394.
175

encharcada de “perfume fúnebre” (Nietzsche), ou comparável a um “belo,


moderno e luxuoso hotel à beira do abismo”, como o quer Lukács. 82

A filosofia schopenhaueriana pode dar ensejo a ambas as interpretações. Se


recordamos a questão da escravidão como exemplo,83 encontramos e evidenciamos nela
certas divergências, certas nuances e perspectivas acerca dessa questão em diferentes
textos e em diferentes momentos de escrita de Schopenhauer, e verificamos em que
medida esses excertos de sua obra poderiam justificar interpretações feitas de sua
filosofia por outros autores. Aqui, podemos tomar como modelo de polarização entre as
interpretações de direita e de esquerda György Lukács e Max Horkheimer,
respectivamente.
Dentro desse cenário de uma simples contextualização, ou seja, de modo
simples e em linhas gerais, Lukács, no capítulo intitulado Schopenhauer de seu livro
Die Zerstörung der Vernunft (A Destruição da Razão),84 argumenta que o filósofo da
vontade faz uma apologia indireta ao capitalismo – o que segundo ele seria ainda mais
perigoso –, o que o faz caracterizar Schopenhauer como um dos principais expoentes da
filosofia burguesa, da filosofia que defende a ordem social vigente, da filosofia que
prega a falta de sentido da atuação política. Podemos resumir ainda mais o ponto de
vista defendido por Lukács ao afirmar que a interpretação apresentada por ele entende o
pessimismo de Schopenhauer como um quietismo, o qual obstrui a ação e mudanças
políticas e sociais. Esse é o cerne da questão para o filósofo húngaro e o fator que
engendra as duras críticas por ele efetuadas. No que se refere exclusivamente ao
conceito de escravidão, algumas das passagens de Schopenhauer poderiam corroborar o
ponto de vista de Lukács, como as passagens já citadas acima de MVR II e o capítulo IX
de PP.
Por outro lado, teríamos – também de forma extremamente simplificada –
Horkheimer e o peso que ele dá à ética da compaixão, baseado em como ele interpreta o

82
BARBOZA, J. Sabedoria de vida e práxis em Schopenhauer ou sobre uma possível “esquerda”
schopenhaueriana. In: Filosofia alemã de Kant a Hegel. Organização de Marcelo Carvalho e Vinicius
Figueiredo. São Paulo: ANPOF, 2013, p.264.
83
Cf. a seção 2.2.5 O Subjugar a Vontade de Outro Indivíduo: Pobreza, Proletariado, Escravidão e
Servidão, p.64 do nosso estudo.
84
O capítulo foi editado no livro Schopenhauer und Marx. Cf. LUKÁCS, G. Schopenhauer. In:
EBELING, H.; LÜTKEHAUS, L. Schopenhauer und Marx: Philosophie des Elends - Elend der
Philosophie?. Herausgegeben und eingeleitet von Hans Ebeling und Ludger Lütkehaus. Königstein/Ts.:
Hain, 1980. p.60-83.
176

pessimismo de Schopenhauer em seus textos85 – em especial Schopenhauer und die


Gesellschaft86 (Schopenhauer e a Sociedade), de 1955, e Die Aktualität
Schopenhauers87(A Atualidade de Schopenhauer), de 1961 –, como fatores de
resistência ao imobilismo social. Para Horkheimer, a compaixão universal é a forma
pela qual é possível combater e diminuir os sofrimentos no mundo que nos circunda e
fomentar a solidariedade entre os seres humanos, solidariedade essa que é tão cara à
tradição marxista.88
Horkheimer enxerga em Schopenhauer uma consolação, porque a
compaixão e a solidariedade entre os seres viventes seriam os dois verdadeiros e únicos
elos entre eles e, por isso, uma possibilidade de melhoria da condição no mundo. Trata-
se de uma solidariedade que pode unir os seres humanos por meio da miséria comum,
do sofrimento compartilhado em um mundo hostil, ou seja, trata-se da possibilidade de
fazer frente às consequências ruins da vontade cega e irracional.89 Pode-se inferir que
Horkheimer enxerga em Schopenhauer o filósofo que ensina a olhar a realidade para
85
Horkheimer escreveu cinco textos sobre a filosofia de Schopenhauer: (i) Schopenhauer e a sociedade:
HORKHEIMER, M. Schopenhauer und die Gesellschaft. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft
für das Jahr 1955, Band 36. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.49-57, 1955; (ii) A atualidade de
Schopenhauer: HORKHEIMER, M. Die Aktualität Schopenhauers. In: Jahburch der
Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1961, Band 42. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.12-
25, 1961; (iii) Religião e filosofia: HORKHEIMER, M. Religion und Philosphie. In: Jahburch der
Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1967, Band 48. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.3-9,
1967; (iv) Pessimismo hoje: HORKHEIMER, M. Pessimismus heute. In: Jahburch der
Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1971, Band 52. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.1-7,
1971; (v) O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião: HORKHEIMER, M.
Bemerkungen zu Schopenhauers Denken im Verhältnis zu Wissenschaft und Religion. In: Jahburch der
Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1971, Band 53. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.71-
79, 1972. Esse último texto foi traduzido e comentado pelo professor Flamarion Caldeira Ramos: O
pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. In: Cadernos de Filosofia Alemã São
Paulo, v.XII, p.99-128, jul. – dez. 2008.
Para uma análise crítica sobre a hipótese da influência de Schopenhauer nos anos de formação de
Horkheimer Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.176-
188.
86
Cf. HORKHEIMER, M. Schopenhauer und die Gesellschaft. In: Jahburch der
Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1955, Band 36. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.49-
57, 1955.
87
Cf. HORKHEIMER, M. Die Aktualität Schopenhauers. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft
für das Jahr 1961, Band 42. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.12-25, 1961.
88
Lütkehaus escreve: “Aquilo que nos Chandogya-Upanishad é apresentado na fórmula ‘Tat twan asi’,
‘isto és tu’, o qual aparece no marxismo como um termo fascinante chamado ‘solidariedade’, em
Schopenhauer é identificado na compaixão”. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il
pessimismo è un quietismo?, p.24. Em italiano lê-se: “Ciò che nella Chandogya-Upanishad è reso nella
formula ‘Tat twan asi’, e cioè ‘questo sei tu’, cioè che, nel marxismo, con un termine affascinante si
chiama ‘solidarietà’, in Schopenhauer si identifica nella compassione.”
89
Cf. VINCERI, P. Studi su Schopenhauer. Centro Stampa Baiese: Bolonha, 1990, p.48.
177

além dos esquemas ideológicos, abrindo a possibilidade para que a solidariedade entre
os seres viventes seja a via de transformação do mundo e do estar no mundo.90
No penúltimo parágrafo de seu texto Die Aktualität Schopenhauers é
possível ler uma passagem que condensa alguns dos motivos pelos quais é possível
acreditar no fato de o teórico crítico apreciar tanto Schopenhauer:

Agora posso dizer claramente por que Schopenhauer é um professor atual. A


doutrina da vontade cega e eterna retira do mundo o falso fundamento de
ouro, o qual a antiga metafísica apresentava. Ao mesmo tempo que, em
oposição ao positivismo, ela exprime o negativo e o preserva no pensamento,
é exposto o motivo da solidariedade dos seres humanos e seres em geral, o
abandono. Nenhuma miséria será compensada em outro mundo. O ímpeto a
remediar esse mundo nasce da incapacidade de considerá-lo com pleno saber
dessas pragas e tolerá-las se existir a possibilidade de freá-las. Para tal
solidariedade, originada da falta de esperança, o conhecimento do princípio
de individuação é secundário. Quanto mais sublime e quanto menos
endurecido é um caráter, mais indiferente é para ele a proximidade ou
distância ao próprio eu, e muito menos ele diferencia o distante e o próximo
ao trabalhar ambos, trabalho que ele não pode deixar mesmo quando se torna
igual a Sísifo. O temporal presta auxílio contra a cruel eternidade, e isso quer
dizer moralidade em sentido schopenhaueriano. Mesmo o mito da
transmigração das almas, no qual depois da morte a alma sem tempo e sem
espaço encontra o corpo, que deverá refletir o estado do seu processo de
purificação, não possui influência sobre a moral, caso contrário ele
permaneceria um cálculo. A cruel estrutura da eternidade foi capaz de gerar a
comunidade dos abandonados, assim como a injustiça e o terror na sociedade
tiveram como consequência a comunidade dos resistentes. Os estudantes
fugitivos do Oriente, os quais nos primeiros meses depois de sua chegada
estavam felizes, porque predomina a liberdade, acabaram por ficar tristes,
porque não possuem amizades, possuem tal experiência. Com o horror, com
o qual eles reúnem-se para resistir desaparece também a felicidade. O
conhecimento da realidade foi capaz de renová-los. A perseguição e a fome
são as regras da história da sociedade ainda hoje. Se a juventude reconhece a
resistência entre o estado das forças humanas e o estado da terra, e não se
deixa turvar o olhar nem pelo fanatismo nacionalista, nem pelas teorias sobre
uma justiça transcendente, é esperado que a identificação e a solidariedade
em suas vidas sejam decisivas. O caminho que leva a isso passa pelo
conhecimento tanto da ciência e da política, como das grandes obras da
literatura.91

90
Cf. VINCERI, P. Studi su Schopenhauer. Centro Stampa Baiese: Bolonha, 1990, p.49.
91
HORKHEIMER, M. Die Aktualität Schopenhauers. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für
das Jahr 1961, Band 42. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, 1961, p.24. No original alemão: „Jetzt
kann ich deutlicher sagen, warum Schopenhauer der zeitgemäße Lehrer ist. Die Doktrin vom blinden
Willen als dem Ewigen entzieht der Welt den trügerischen Goldgrund, den die alte Metaphysik ihr bot.
Indem sie ganz im Gegensatz zum Positivismus das Negative ausspricht und im Gedanken bewahrt, wird
das Motiv zur Solidarität der Menschen und der Wesen überhaupt erst freigelegt, die Verlassenheit. Keine
Not wird je in einem Jenseits kompensiert. Der Drang, ihr im Diesseits abzuhelfen, entspringt der
Unfähigkeit, sie mit vollem Wissen dieses Fluchs mit anzusehen und zu dulden, wenn die Möglichkeit
besteht, ihr Einhalt zu tun. Für solche, der Aussichtslosigkeit sich verdankende Solidarität ist das Wissen
des principii individuationis sekundär. Je sublimer, je weniger verfestigt ein Charakter ist, desto
gleichgültiger ist ihm die Nähe oder Ferne zum eigenen Ich, desto weniger unterscheidet er Fernstes und
Nächstes in der Arbeit an beidem, die er nicht lassen kann, auch wenn sie der des Sisyphus gleichkommt.
Wider das unbarmherzige Ewige dem Zeitlichen beizustehen, heißt Moral im Schopenhauerschen Sinn.
178

Novamente, as passagens que evidenciam a repulsa para com escravidão


baseadas na compaixão ou na constatação de que ela é uma injustiça a ser evitada –
encontradas principalmente em O Mundo como Vontade e Representação (MVR) e em
Sobre o Fundamento da Moral (SFM) – acabariam por sustentar a leitura à esquerda
feita por Horkheimer em seus escritos tardios.
Certo é que a forma como Schopenhauer trata a escravidão não é uniforme,
e acaba, dependendo do contexto, por produzir elementos corroborantes para os dois
tipos de leitura, tanto à direita, quanto à esquerda. Dessa forma, mais uma vez o
enunciado supracitado do professor Lütkehaus mostra-se extremamente preciso e feliz
quando afirma: “Schopenhauer não pode ser descrito, politicamente e socialmente, de
maneira unívoca.”92
Ao se posicionar contra uma interpretação do pessimismo meramente
quietista, formula-se a possibilidade de interpretação da filosofia de Schopenhauer por
um viés alternativo, cujo foco não se limita a um pessimismo quietista, a uma ética da
salvação limitada aos poucos agraciados, mas que engloba, também, o seu âmbito
prático e o combate e diminuição do sofrimento inerente à vida: surgem, assim,
proposições hermenêuticas que desenvolvem as possibilidades de uma ética da melhoria
(bessernde Ethik)93 ou uma práxis do menos pior dos mundos possíveis.
Aproveitando de forma herética a designação cunhada pelo centro italiano,
poderíamos dizer que a interpretação de Lütkehaus é ela mesma uma interpretação
herética – e o próprio comentador reconhece tal fato quando brinca ao escrever que
Schopenhauer se reviraria em seu túmulo se soubesse de uma esquerda

Selbst der Mythos der Seelenwanderung, daß nach dem Tod die Seele ohne Zeit und ohne Raum den
Körper finde, der dem Stand ihres Läuterungsprozesses entsprechen soll, hat keinen Einfluß auf Moral,
sonst bliebe sie Berechnung. Die unbarmherzige Struktur der Ewigkeit vermöchte die Gemeinschaft der
Verlassenen zu erzeugen, wie das Unrecht und der Terror in der Gesellschaft die Gemeinschaft der
Widerstrebenden zur Folge haben. Jene aus dem Osten geflohenen Studenten, die in den ersten Monaten
nach ihrer Ankunft glücklich sind, weil Freiheit herrscht, aber schließlich traurig werden, weil es keine
Freundschaft gibt, besitzen die Erfahrung davon. Mit dem Schrecken, dem zu widerstehen sie sich
zusammenfanden, schwindet auch das Glück. Kenntnis der Wirklichkeit vermöchte es zu erneuern.
Verfolgung und Hunger durchherrschen die Geschichte der Gesellschaft auch heute. Wenn die Jugend
den Widerspruch zwischen dem Stand der menschlichen Kräfte und dem der Erde erkennt, und weder
durch fanatisierende Nationalismen noch durch Theorien transzendenter Gerechtigkeit den Blick sich
trüben läßt, steht zu erwarten, daß Identifikation und Solidarität in ihrem Leben entscheidend werden. Der
Weg dahin führt durch die Kenntnis sowohl der Wissenschaft und Politik, wie der Werke der großen
Literatur.“
92
Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16.
93
Cf. SFM, §20, p.199, III 725.
179

schopenhaueriana, embora ele devesse ficar contente pela fundação de um centro de


estudos sobre a sua filosofia na Itália94 – e que esse tipo de exegese abre caminho para
um novo filão no que diz respeito à interpretação e desdobramentos da filosofia
schopenhaueriana: estudos à esquerda ganham força, e devemos ressaltar que no Brasil
ele vem logrando êxito. A próxima seção dessa tese apresentará hipóteses
hermenêuticas da esquerda schopenhaueriana que compõe o debate da pesquisa
brasileira sobre Schopenhauer.

3.4. Schopenhauer no Brasil: a esquerda schopenhaueriana ganha

força

Em 1982, o primeiro trabalho acadêmico sobre a filosofia de Arthur


Schopenhauer no Brasil, uma dissertação de mestrado intitulado A crítica da razão no
pensamento de Schopenhauer sob orientação do professor Rubens Rodrigues Torres
Filho, foi defendido pela professora Maria Lucia Cacciola no departamento de filosofia
da Universidade de São Paulo (USP). 95 Seu livro Schopenhauer e a Questão do
Dogmatismo, 96 publicado em 1994, logo se tornou leitura obrigatória em língua
portuguesa para quem se interessasse pela filosofia do autor no Brasil. A tradução, em
2005, do primeiro tomo da principal obra do filósofo para língua portuguesa de forma
integral a partir da língua alemã, realizada por Jair Barboza, facilitou o acesso daqueles
que desejavam se aventurar ou estudar de forma sistemática a filosofia
schopenhaueriana. O interesse crescente na obra do autor – tanto pelo público
especializado, quanto pelo grande público – incentivou a tradução de outros textos de
sua autoria.97

94
Cf. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16.
95
Cf. CACCIOLA, M.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. A história e a atual situação dos estudos
schopenhauerianos no Brasil. In: Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v.4, n.1, p.146-150,
2013.
96
Cf. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo.
97
Até o momento nem toda a obra publicada por Schopenhauer possui tradução para o idioma português,
e muitos dos textos traduzidos para o nosso idioma não foram traduzidos de forma integral – sendo
lançados parcialmente, caso, por exemplo, dos PP e de E, ou recebendo novos títulos, caso de diversos
livros publicados a partir da organização de coletâneas textuais ou de passagens dos manuscritos
póstumos schopenhauerianos – e/ou não foram traduzidos diretamente a partir do idioma alemão.
Contudo, os avanços na última década no que se refere a traduções de qualidade – realizadas, em maior
180

Em 2004 foi criado o Grupo de Trabalho Schopenhauer (GT-


Schopenhauer) na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) e em
2005 fundada oficialmente a Seção brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft por
ocasião do III Colóquio Internacional Schopenhauer, realizado em São Paulo. 98 Na
agenda de eventos realizados no Brasil sobre o filósofo, firmavam-se, assim, o bienal
Colóquio Internacional Schopenhauer99 – o qual conta com a participação das seções
alemã, italiana, e japonesa da Sociedade Schopenhauer –, o também bienal encontro
nacional da ANPOF, e, regionalmente, os encontros anuais Nietzsche-Schopenhauer do
grupo APOENA 100 em Fortaleza, e o evento anual itinerante nas regiões sul-sudeste
Para Saber mais Schopenhauer.
Em 2010, um grupo de então pós-graduandos concebeu e efetivou a criação
da Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer. 101 Esses espaços privilegiados
fomentaram as discussões e a aproximação dos estudiosos e interessados na filosofia
schopenhaueriana, não apenas entre professores, mas também entre estudantes de
graduação, mestrado e doutorado, nos âmbitos nacional e internacional. Construía-se e
consolidava-se no Brasil uma rede de pesquisadores, de debates, e de troca de
informações dedicados à filosofia do autor. Professores e pesquisadores da filosofia
schopenhaueriana passaram a ocupar papéis de destaque em vários centros
universitários espalhados pelo país, como, por exemplo, na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), 102 na Universidade Estadual do Ceará (UECE), na
Universidade Federal do ABC (UFABC), na Universidade Federal da Bahia (UFBA),

parte, por estudiosos acadêmicos da obra do filósofo a partir do idioma alemão – são impressionantes e os
prognósticos futuros, animadores.
98
Cf. CACCIOLA, M.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. A história e a atual situação dos estudos
schopenhauerianos no Brasil. In: Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v.4, n.1, p.146-150,
2013.
99
A primeira edição do Colóquio foi realizada no ano de 2001, em Curitiba. O evento foi realizado
posteriormente nas cidades de Salvador (2003), São Paulo (2005), Rio de Janeiro (2009), Florianópolis
(2011), Fortaleza (2013), Salvador (2015). Em 2017 o evento retorna a Curitiba para a sua oitava edição.
100
As atividades do grupo APOENA podem ser consultadas em http://apoenafilosofia.org/ (Acesso em 10
mar. 2017).
101
O periódico pode ser acessado através do endereço eletrônico www.revistavoluntas.com.br. (Acesso
em 10 mar. 2017).
102
Em 2009 foi fundado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) o grupo de pesquisa CriM
– Crítica e Modernidade, liderado pelos professores Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP) e Bruno
Machado (Universidade Federal de Sergipe - UFS). O grupo de pesquisa agrega, entre outros interesses, o
estudo da filosofia schopenhaueriana, a qual possui uma linha de pesquisa específica: “Schopenhauer:
metafísica, estética, ética e política.” Cf. dgp.cnpq.br/dgp/espelholinha/1186251938377689284330
(Acesso em 10 mar. 2017).
181

na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), 103 na Universidade Federal


de Santa Catarina (UFSC), na Universidade de São Paulo (USP), entre outros centros
universitários públicos e privados do país.
Nesse contexto, publicizaram-se interpretações já existentes – como a de
Lütkehaus – e emergiram debates sobre aspectos mais específicos – e, muitas vezes
negligenciados – da filosofia schopenhaueriana, como a sua filosofia prática e aspectos
pertencentes e/ou relacionados a ela, como, por exemplo, a sabedoria de vida ou
eudemonologia – presentes em textos como os Aforismos para Sabedoria de Vida
(ASV), contido nos Parerga e Paralipomena (PP), e no texto organizado e publicado
por Franco Volpi a partir dos manuscritos póstumos do filósofo da vontade sob o título
de Die Kunst, Glücklich zu sein (A arte de ser feliz). 104
Um dos debates que vieram à tona nos últimos anos é justamente aquele
acerca do papel e da contradição ou não de uma eudemonologia, de uma sabedoria de
vida, de uma filosofia da práxis voltada para a tentativa de tornar a vida menos infeliz
possível, no interior sistemático da obra schopenhaueriana. As interpretações que
reconhecem, desenvolvem, problematizam, e acentuam a importância dos aspectos da
filosofia prática do autor, como estas interpretações de cunho eudemonológico, podem
ser entendidas como alinhadas ao que vimos ser uma interpretação schopenhaueriana de
esquerda. Nesse debate, a obra ASV e a coletânea póstuma organizada por Volpi são
centrais.
Em ASV, logo nas primeiras linhas do texto, Schopenhauer explica o sentido
pelo qual entende os conceitos de eudemonologia, de sabedoria de vida, bem como a
estranheza inicial provocada por um capítulo de sua obra empenhar-se na abordagem do
tema. Como é possível notar na citação abaixo, os termos assumem significado um tanto
diverso do utilizado correntemente:

Tomo aqui o conceito de sabedoria de vida num sentido totalmente imanente,


a saber, o da arte de conduzir a vida da maneira mais agradável e feliz
possível, cuja instrução também poderia ser chamada de eudemonologia: ela
seria, por conseguinte, a indicação para uma existência feliz. 105

103
Foi fundado recentemente o Núcleo de Estudos Schopenhauer e Nietzsche da UFRRJ.
104
SCHOPENHAUER, A. A arte de ser feliz. Org. de Franco Volpi; tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
105
ASV, p.7, IV 347. No original alemão: „Ich nehme den Begriff der Lebensweisheit hier gänzlich im
immanenten Sinne, nämlich in dem der Kunst, das Leben möglichst angenehm und glücklich
durchzuführen, die Anleitung zu welcher auch Eudämonologie genannt werden könnte: sie wäre demnach
die Anweisung zu einem glücklichen Daseyn.“
182

É bom lembrar que existência feliz (glückliches Daseyn) para o filósofo é


um mero eufemismo, algo que não existe, uma contradição,106 sendo o máximo
alcançável frente às dores e aos sofrimentos do mundo uma vida heroica (heroischer
Lebenslauf). 107 É nesse sentido que ele emprega o termo “vida feliz” (glückliches
Leben). 108 O mais próximo do que poderia ser chamado de vida feliz, que consistiria em
conduzir a vida da forma menos infeliz possível, ocorre “quando desejo e satisfação se
alternam em intervalos não muito curtos nem muito longos, o sofrimento ocasionado
por eles é diminuído ao mais baixo grau, fazendo o decurso de vida o mais feliz
possível.” 109
Além disso, Schopenhauer admite uma certa contradição no estudo de uma
eudemonologia, de uma sabedoria de vida, na busca da vida menos infeliz possível, caso
não se atente algumas ressalvas:

Desse conceito de existência segue que nos apegaríamos a ela por ela mesma,
e não meramente por medo da morte; e disto, por sua vez, que gostaríamos de
vê-la durar infinitamente. Agora, se a vida humana corresponde ao conceito
de tal existência, ou se sequer pode corresponder-lhe, é uma questão
conhecidamente negada por minha filosofia, enquanto que a eudemonologia
pressupõe sua afirmação. Isso porque ela repousa sobre o equívoco inato cuja
refutação abre o quadragésimo nono capítulo do segundo volume de minha
obra principal. Para, apesar disso, poder ainda elaborar uma eudemonologia,
tive, pois, de me desviar completamente do ponto de vista metafísico-ético
mais elevado ao qual a minha filosofia propriamente dita conduz. Por
consequência, toda a discussão que aqui será feita repousa em certa medida

106
“Antes, verifica-se uma completa contradição em querer viver sem sofrer, contradição que também se
anuncia com freqüência na expressão corrente “vida feliz”. MVR, §16, p.147, I 108. No original alemão:
„Es liegt vielmehr ein vollkommener Widerspruch darin, leben zu wollen ohne zu leiden, welchen daher
auch das oft gebrauchte Wort »säliges Leben« in sich trägt.“
107
“Uma vida feliz é impossível: o máximo que uma pessoa pode atingir é um curso de vida heroico”.
PP, §172a, p.185, V 349. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Ein g lück l i che s
Le be n ist unmöglich: das höchste, was der Mensch erlangen kann, ist ein her o isc her Le be ns lau f. “
108
Apesar da utilização do termo vida feliz, é importante notar que Schopenhauer não toma estritamente o
conceito tal qual sua significação estóica. Sobre a forma pela qual Schopenhauer assimila e interpreta a
filosofia estóica Cf. DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão – O teórico, o prático e o ético-
místico. São Paulo: Annablume, 2010; Cf. CHEVITARESE, L. Schopenhauer e o estoicismo. In: Ethic@
– Revista Internacional de Filosofia da Moral, vol. 11, n.2. Florianópolis: UFSC, 2012, p. 161-172,
doravante abreviado como Schopenhauer e o estoicismo, seguido de indicação de página; Cf.
VIESENTEINER, J. “Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer. In: Revista Voluntas:
Estudos sobre Schopenhauer, v. 3, n.1 e 2, p.3-19, 1º e 2º semestres de 2012. Doravante abreviado por
“Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, seguido de indicação de página.
109
MVR, §57, p.404, I 370. No original em alemão: „Daß Wunsch und Befriedigung sich ohne zu kurze
und ohne zu lange Zwischenräume folgen, verkleinert das Leiden, welches Beide geben, zum geringsten
Maaße und macht den glücklichsten Lebenslauf aus.“
183

sobre uma acomodação, a saber, na medida em que permanece no ponto de


vista empírico comum, atendo-se a seu equívoco.110

A passagem supracitada mobiliza elementos decisivos para a justificativa da


escrita de um texto que tenha como finalidade a sabedoria de vida, e elementos para a
justificativa de uma leitura da filosofia schopenhaueriana à esquerda. Em primeiro
lugar, ela afirma que uma sabedoria de vida funda-se em uma torção do conceito de
existência, como se a existência fosse desejada; em segundo lugar, uma eudemonologia
estaria situada no âmbito da afirmação da vontade, o que o autor admite não ser o
expediente mais adequado, dado que isso se configura quase como uma contradição em
relação ao que enuncia sua própria filosofia; por fim, ele reconhece uma mudança do
âmbito, da perspectiva na qual se assenta a discussão: não mais na chave de uma ética-
metafísica, mas de uma ética-empírica. Essa alteração de perspectiva é chamada por ele
de desvio, 111 de acomodação (Akkommodation), visando o afastamento da contradição
que seria tratar a questão envolvida em um âmbito ético-metafísico.
Tal contradição consistiria no fato de, após averiguar e explicitar em outras
obras os problemas decorrentes da afirmação da vontade e da sua impossibilidade e
limitação de se constituir como a solução para os sofrimentos do mundo, e de constatar,
por outro lado, que a negação da vontade seria a via de supressão dos sofrimentos,
Schopenhauer insistir na primeira como possibilidade de resolução dos problemas mais
centrais de sua filosofia. A contradição é evitada de modo muito sutil, através de um
desvio, de uma acomodação, de uma mudança de perspectiva na consideração da
questão.
Essa mudança de perspectiva, para ser entendida de forma a dissolver a
contradição possível, envolve a adesão a algumas formas de interpretação da filosofia

110
ASV, p.7, IV 347. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Aus diesem Begriffe
desselben folgt, daß wir daran hiengen, seiner selbst wegen, nicht aber bloß aus Furcht vor dem Tode;
und hieraus wieder, daß wir es von endloser Dauer sehn möchten. Ob nun das menschliche Leben dem
Begriff eines solchen Daseyns entspreche, oder auch nur entsprechen könne, ist eine Frage, welche
bekanntlich meine Philosophie verneint; während die Eudämonologie die Bejahung derselben voraussetzt.
Diese nämlich beruht eben auf dem angeborenen Irrthum, dessen Rüge das 49. Kapitel im 2. Bande
meines Hauptwerks eröffnet. Um eine solche dennoch ausarbeiten zu können, habe ich daher gänzlich
abgehn müssen von dem höheren, metaphysisch-ethischen Standpunkte, zu welchem meine eigentliche
Philosophie hinleitet. Folglich beruht die ganze hier zu gebende Auseinandersetzung gewissermaaßen auf
einer Ackommodation, sofern sie nämlich auf dem gewöhnlichen empirischen Standpunkte bleibt und
dessen Irrthum festhält.“
111
O verbo utilizado em alemão, abgehen, pode ser traduzido, também, por desprender-se, afastar-se,
deixar. Fica marcado, assim, o sentido de afastamento da forma até então utilizada no desenvolvimento da
argumentação de outras obras e a mudança de perspectiva.
184

do autor. O professor Leandro Chevitarese, em sua tese de doutoramento, foi um dos


pioneiros na abordagem da questão no Brasil, 112 reflexão que levou para outros de seus
textos. Tomando como ponto de partida uma passagem do livro de Safranski –
“supondo que a vida valha a pena ser vivida, como então deveríamos conduzi-la de tal
modo a obter a melhor medida de felicidade alcançável?” 113 –, a qual ele considera a
pergunta norteadora dos ASV e a base de uma ética do “como se” (Als-ob), o professor
estabelece quatro sentidos para que seja possível entender a mudança de perspectiva
operada nessa obra, tornando-a possível de ser escrita:

1) Façamos como se a vida valesse a pena ser vivida e nos empenhemos na


“arte de conduzir a vida do modo mais agradável e feliz possível” – neste
primeiro sentido, o “como se” aplica-se à própria vida e à possibilidade da
felicidade; 2) Passemos a agir como se a nossa própria conduta fosse um
efeito absoluto de nosso pensamento, ou seja, como se pudéssemos agir de
modo diferente do que somos – neste segundo sentido, o “como se” aplica-se
à nossa conduta; 3) Continuemos a viver como se os males desnecessários
jamais nos aconteçam e os inevitáveis venham sempre a tardar – neste
terceiro sentido, o “como se” refere-se ao curso dos acontecimentos da vida;
4) Enfrentemos a vida de maneira positiva como se não estivéssemos
entregues à inexorabilidade de tudo que acontece, como se não houvesse um
destino – neste quarto sentido, o “como se” faz referência à problemática da
necessidade. Portanto, a “ética do como se” aplica-se à vida, à conduta, aos
acontecimentos desagradáveis e ao destino. 114

O “como se” seria a tradução do que Schopenhauer chama de acomodação,


desvio, ou afastamento, i.e., o “como se” seria a explicação e a significação da mudança
de perspectiva, do plano ético-metafísico para o plano ético-empírico, que possibilita o
desenvolvimento de uma eudemonologia dentro do sistema filosófico
schopenhaueriano.
Chevitarese, então, assimila a tese do professor Thomas Brum de que a
proposta eudemonológica consistiria em uma “espécie de sabedoria teatral”. 115 Essa
consistiria em uma metáfora que explica o modus operandi da eudemonologia:

[...] a própria vida poderia ser compreendida como um grandioso espetáculo


teatral, o teatro da vontade: personagens diferentes, em variados cenários,

112
Cf. CHEVITARESE, L. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta” para a prática de
vida? Rio de Janeiro: Departamento de Filosofia, PUC-Rio, 2005. Doravante abreviado como A ética em
Schopenhauer seguido de indicação de página.
113
SAFRANSKI, R. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: uma biografia. Tradução de
Willian Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011, p.621.
114
Schopenhauer e o estoicismo, p.170.
115
BRUM, J. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998,
p.51.
185

interpretando o mesmo drama, a tragédia da vontade. Conquistar a


“sabedoria teatral” significa ser um bom ator do papel que lhe cabe. 116

Assim, ele toma a ética do como se e a sabedoria teatral como bases


hermenêuticas para compreender e explicar como a sabedoria de vida, como a
eudemonologia schopenhaueriana, são possíveis. O “como se” como justificativa da
mudança de perspectiva; a sabedoria teatral como finalidade mais bem executada da
eudemonologia.
A grande parte dos pesquisadores e comentadores que se debruçam sobre a
questão acabam por reconhecer a mudança de perspectiva como questão chave para
compreensão e justificativa da presença de um capítulo da obra do “filósofo do
pessimismo” que verse sobre eudemonologia, afinal, como escreve Volpi, “[...] ninguém
iria querer aprender felicidade com um professor de pessimismo.”117 Nota-se, contudo,
o emprego de diferentes nomenclaturas para esse mesmo movimento textual. 118
O professor Jorge Luiz Viesenteiner localiza a mudança de perspectiva, essa
acomodação, na passagem de um ponto de vista superior, ético-metafísico para o que
ele denomina de grande pessimismo: 119

[...] Schopenhauer também executa a trajetória que vai de um “ponto de vista


superior, ético-metafísico”, típico do pessimismo de O mundo, para aquilo
que denominamos de ‘grande pessimismo’, i.é., uma “acomodação” na vida
que faz o autor se distanciar de um pessimismo absoluto, para vislumbrar as
possibilidades de ‘viver menos infeliz’. O ‘grande pessimismo’ é a
prerrogativa daquele que agora pode executar em si as possibilidades de uma
vida ‘menos infeliz’, somente porque vivenciou até a medula o próprio
pessimismo, ou se quisermos, um ‘otimismo prático’ que é o privilégio
daquele que foi suficientemente pessimista, experimentando cada um dos
seus padecimentos na própria carne. 120

E completa, explicando o que deve ser entendido por ‘grande pessimismo’:

[...] ‘grande pessimismo’ não consiste mais nas hipóteses de negação do


querer viver, mas do distanciamento do mundo e dos outros, voltando-se para
si mesmo a fim de esboçar as possibilidades de uma vida ‘menos infeliz’. 121

116
Schopenhauer e o estoicismo, p.170.
117
VOLPI, F. Apresentação. In: SCHOPENHAUER, A.A arte de ser feliz. Org. de Franco Volpi; trad.
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. VIII.
118
Os termos empregados para designar essa duplicidade de perspectivas podem variar entre, de um lado,
ético-metafísico, metafísica dos costumes, Ética da compaixão, Pessimismo metafísico, Grande Ética, em
contraposição a termos como ético-empírico, ético-eudemonológico, grande pessimismo, otimismo
prático, Pequena Ética.
119
Cf. “Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, p.9.
120
“Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, p.9.
121
“Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, p.9.
186

O professor e tradutor Jair Barboza define o pensamento de Schopenhauer


como pendular, um pensamento que oscila entre pessimismo metafísico e otimismo
prático,122 no qual o íntimo de cada um é caracterizado pelo sofrimento, mas no qual
também é possível atingir uma certa espécie de felicidade limitada, ainda mais se o
sujeito for guiado por uma sabedoria de vida. 123 Talvez a imagem não seja a mais
acertada para explicar o movimento textual realizado pelo filósofo, dado que não é
operada uma oscilação de um âmbito ao outro: tem-se marcadamente duas perspectivas
de análise que se suplementam, que coexistem, mas que não são totalmente
codependentes, e nas quais, durante a exposição, o filósofo não alterna de registro.
Quando o discurso está situado no âmbito ético-metafísico a argumentação desenvolve-
se nele; quando adentramos a eudemonologia, adentramos um outro registro, um outro
âmbito, uma outra perspectiva da argumentação que se assenta sobre uma acomodação,
como visto, de forma a evitar a contradição que o próprio autor nota e da qual nos
adverte no início dos ASV.
A tese de doutoramento de Vilmar Debona, A outra face do pessimismo:
entre radicalidade ascética e sabedoria de vida, 124 tem, dentre outros, o mérito de
esmiuçar essa questão. Debona diferencia dois âmbitos, duas perspectivas da filosofia
schopenhaueriana, as quais ele denomina Grande Ética e Pequena Ética.
A Grande Ética seria o âmbito da ética da compaixão, do ascetismo, da
metafísica dos costumes, dos assuntos comumente tratados pelo cânone
schopenhaueriano e pelas interpretações ditas de direita de sua filosofia; a Pequena
Ética seria referida à sabedoria de vida e à vida prudente no mundo, não englobando a
questão das virtudes, da moralidade, sendo restrita à legalidade das ações. Na letra do
comentador, podemos ler:

Este pessimismo pragmático pode ser tomado em paralelo com algumas


formulações específicas do âmbito da sabedoria de vida, mas também com
alguns contextos e formulações da fundamentação da moral. Estes últimos
aparecem, por exemplo, como “ética da melhoria” (bessernde Ethik) e como
moral do “como se” (Als-Ob). O conjunto destas formulações, principalmente
por não participar da moral propriamente dita (pois pertence ao âmbito
eudemonológico ou empírico), pode ser chamado de pequena ética, critério a
partir do qual seria possível diferenciá-la em relação a autêntica moralidade
metafísica e ao ascetismo místico, que aqui denomino de grande ética [...]. A

122
Cf. BARBOZA, J. Schopenhauer.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, (Coleção Filosofia Passo-a-
passo), p.53.
123
BARBOZA, J. Em favor de uma boa qualidade de vida. In: SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a
Sabedoria de Vida. Prefácio e notas de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.XIII.
124
Cf. A outra face do pessimismo.
187

hipótese desta divisão entre grande e pequena ética não é pensada a partir da
conhecida classificação das obras aristotélicas ou de outras conceituações da
história da Filosofia, mas pode ser captada a partir daquele mesmo parâmetro
(ofertado pelo próprio Schopenhauer) que serve para o caso do pessimismo
pragmático, ou seja, na esteira do próprio “desvio” da metafisica na medida
em que o ponto de vista ético-metafisico é considerado como um “ponto de
vista superior”. Isto é, pelo fato de a filosofia schopenhaueriana considerar
[...] a esfera ético-metafisica como a perspectiva “mais elevada”, então ela
poderia ser chamada também, em algum sentido, de “grande perspectiva”.
Nesse caso, a perspectiva oriunda do desvio deste patamar superior, horizonte
no qual repousa uma acomodação ou adaptação ao princípio de
autoconservação (assim como ao principium individuationis), no qual se
“permanece preso ao ponto de vista comum, empírico”, representaria um grau
“menos elevado”, ou inferior, da ética. Destaco, então, que embora
Schopenhauer não tenha usado as expressões grosse Ethik e kleine Ethik para
apresentar sua doutrina moral, o farei aqui a partir do pressuposto
interpretativo acima indicado. 125

Assim, ainda segundo Debona, a fundamentação ética do agir, e a sua


significação íntima seriam objetos de escrutínio da Grande Ética; o agir mediato,
direcionado, e refletido diriam respeito à esfera da Pequena Ética. 126 Em algumas partes
de seu texto, Debona toma como sinônimos a Pequena Ética e uma Ética Sugestiva:

Schopenhauer, nesse sentido, não teria apenas demonstrado as contradições


intrínsecas a uma ética prescritiva, tal como elaborada por Kant, e, em lugar
dela, insistido na pertinência de uma ética descritiva. Em paralelo a esta
última – e, inicialmente, com o mesmo método descritivo – o pensador teria
indicado também uma espécie de “ética sugestiva”. A ética da compaixão
detém-se em descrever os casos em que, misteriosamente, uma motivação
apresenta-se suficientemente forte para originar uma ação altruísta. Já a
mencionada dimensão sugestiva da ética, isto e, à pequena ética, caberia a
função de indicar ao indivíduo – apoiando-se no estrato cognitivo do
intelecto – que, por exemplo, um caráter naturalmente egoísta não
necessariamente produzirá sempre ações misantrópicas; que um caráter cujas
ações tendem a ser motivadas pela maldade, não necessariamente se tornará
um serial killer; ou mesmo que um caráter mais receptivo a motivações
compassivas nem sempre produzirá ações filantrópicas. Seja qual for a índole
íntima, as máximas de sabedoria de vida e as próprias experiências colhidas
do “histórico do caráter” permitiriam a exposição de cada uma dessas
personalidades inatas as circunstancias variegadas – e até mesmo opostas –
em relação aquelas as quais elas tendem naturalmente. 127

Nota-se que os comentadores mobilizam, cada um a seu modo, elementos e


conceitos para dar conta de explicar e justificar uma sabedoria de vida no interior da
obra schopenhaueriana, como ela se configura, a sua finalidade, bem como a forma pela
qual ela pode se realizar sem realmente constituir uma contradição com a filosofia do
autor. Todos concordam que existe uma diferenciação de perspectivas nas quais a
eudemonologia, a sabedoria de vida, é desenvolvida – seja ela uma acomodação, um

125
A outra face do pessimismo, p.197-198.
126
A outra face do pessimismo, p.199.
127
A outra face do pessimismo, p.202.
188

desvio, um afastamento, ou uma cisão – e que a eudemonologia serve como uma


espécie de guia para diminuição dos sofrimentos na vida prática empírica.
Nesse viés hermenêutico, nota-se a função central exercida pelo caráter
adquirido e pelo intelecto. É o caráter adquirido que possibilita o melhor conhecimento
de si no mundo, fornecendo motivos e contramotivos que, através do intelecto, podem
sugestionar a vontade em agir da forma mais adequada ao caráter do indivíduo e,
consequentemente, auxiliá-lo no experienciar a vida do modo menos infeliz possível,
evitando ao máximo os tormentos que são desnecessários, diminuindo aqueles que são
inevitáveis, e buscando a sua atmosfera mais adequada (angemesse Atmosphäre),
fazendo, em uma situação ideal, “o que nos é possível nos limites do que nos é
inevitável”. 128 O caráter adquirido permite a ampliação da constelação de motivos do
indivíduo – os próprios ASV, a educação, e o código penal podem ser entendidos assim:
o primeiro e o segundo como um elenco de motivos que possuem a finalidade de ajudar
o indivíduo a viver de forma prudente; o último, uma lista de contra motivos, como
tentativa de evitar ações consideradas ilegais.
Apresentado em linhas gerais, com vistas a contextualizar o leitor no debate
que se desenrolou durante o período mais recente no Brasil sobre essa questão, é
possível nos situar e explicitar a posição que pretendemos adotar, justificando-a. De
forma “herética” exploraremos as possibilidades de desenvolvimentos da filosofia
schopenhaueriana ampliadas a partir de uma interpretação que assume a perspectiva
ético-empírica à esquerda da filosofia do autor.

3.5. Permitir-nos-emos ser heréticos em nossa interpretação

A teoria schopenhaueriana fornece elementos interessantes que, se


atualizados de um modo não anacrônico, poderiam ser utilizados para refletir sobre
questões referentes aos direitos humanos. Atualmente, até que ponto é possível dissociar
a proteção física da proteção econômica? Até que ponto a proteção contra o protetor
pode ser entendida apenas como uma proteção às arbitrariedades físicas e de liberdade
de expressão perpetradas pelo Estado? Ela não poderia ser entendida, também, como
garantia de que a tutela do Estado atue de forma a não impedir as condições de
possibilidade para que os indivíduos possam desenvolver-se em todas as suas
128
A ética em Schopenhauer, p.120.
189

capacidades? Podem novas funções serem atribuídas ao Estado? Seria lícito, dado o
novo contexto, o Estado assumir o papel positivo em determinadas questões para suprir
determinadas demandas? Quais seriam essas questões e demandas?
No âmbito empírico, Schopenhauer desenvolve, como visto nos primeiros
capítulos dessa tese, as suas teorias do direito e da política de um modo que elas
poderiam ser classificadas de liberais. Seria possível, contudo, uma outra forma de
desenvolvimento das teorias do autor a partir de pressupostos de sua própria filosofia?
Seria possível utilizar, por assim dizer, Schopenhauer contra Schopenhauer nesse caso
em específico?
Tal qual foram possíveis um desvio e uma acomodação para justificar e
desenvolver uma eudemonologia no interior do sistema filosófico schopenhaueriano,
talvez seja possível, a partir de uma interpretação à esquerda de sua obra, em uma
perspectiva ético-empírica, ampliar e ressignificar alguns dos conceitos pertencentes às
doutrinas do direito e da política para enfrentar problemas contemporâneos dessas áreas
no que se refere aos direitos humanos.
Para tanto, admitiremos o papel positivo que o conhecimento, a experiência,
a educação, o aprendizado, o meio no qual o indivíduo está inserido, e a cultura possam
ter ao influenciar o intelecto, e esse impacto no indivíduo e no indivíduo inserido,
convivendo e organizando-se em sociedade. Nesse ponto teríamos uma primeira torção
da filosofia schopenhaueriana, a qual pode ser melhor explicitada se tomarmos o
enunciado já citado “A cabeça é esclarecida, mas o coração permanece incorrigível”
(Der Kopf wird aufgehellt; das Herz bleibt ungebessert) 129 e, sem prejudicar o seu teor,
inverter a ordem da formulação: “O coração permanece incorrigível, mas a cabeça ainda
pode ser esclarecida” (Das Herz bleibt ungebessert, aber der Kopf wird noch
aufgehellt).130
Faz-se necessário, para cumprir os objetivos apresentados acima, apresentar
e formular os problemas contemporâneos em relação aos quais a filosofia
schopenhaueriana, no que tange o direito e à política, pode denotar importante

129
SFM, §20, p.199, III 725.
130
Sobre essa inversão, Debona escreve: “Ao invés de se considerar somente o pressuposto segundo o
qual “a cabeça é aclarada, mas o coração permanece incorrigível”, poder-se-ia inverter a ordem da
formulação, sem que o teor da mesma fosse comprometido: ‘o coração permanece incorrigível, porém a
cabeça ainda pode ser aclarada’. Ou seja, é possível pressupor aquela que é uma das teses centrais deste
pensamento – a de que o caráter e o coração são imutáveis –, mas, ao mesmo tempo, frisar, como
decorrência dela, a possibilidade de uma outra, isto é, a de que a incidência do aprendizado e do
conhecimento sobre o intelecto não seria nula[...].” A outra face do pessimismo, p.211.
190

relevância. Esse é o objetivo do próximo capítulo, mas, antes de iniciá-lo, cumpre


encerrar o nosso terceiro capítulo com uma questão que serve de transição entre este
capítulo – o qual procurou apresentar leitores e leituras da obra schopenhaueriana e
situar a nossa posição hermenêutica em relação à leitura e interpretação da obra do autor
– e o próximo capítulo – no qual introduziremos o tema dos direitos humanos em sua
origem e desenvolvimento: a apresentação, análise, e leitura que Ernst Tugendhat faz da
teoria schopenhaueriana no que diz respeito aos direitos humanos e ao fundamento da
moral.

3.6. O Engano de Ernst Tugendhat

Ernst Tugendhat (1930-) explica os direitos humanos a partir da hipótese de


fundamentação na moral. E, para tanto, ele empreende um rigoroso exame acerca das
condições de possibilidade e plausibilidade dessa fundamentação, esforçando-se em
ampliar os horizontes de uma reflexão ética contemporânea.
No seu livro Vorlesungen über Ethik (Lições Sobre Ética)131 de 1993,
motivado por questões contemporâneas que no seu entendimento possuem caráter
moral, Tugendhat constrói suas teses em diálogo com os principais sistemas ético-
morais da história da filosofia, levando em consideração os problemas engendrados pela
empreitada de se fundamentar universalmente a moral.
Ele organiza suas quinze lições fictícias sobre ética de modo a abordar
questões pertinentes da história da filosofia e sistematizar sua exposição. Nas primeiras
cinco lições ele expõe uma concepção de ética, em que fica explícito ao leitor a intenção
de tornar plausível o conceito kantiano de moral. Nas lições seguintes – da sexta até a
décima – Tugendhat critica várias abordagens éticas existentes na história da filosofia e
expõe os motivos pelos quais, segundo ele, elas não podem ser sustentadas no interior
de seu projeto ético. Nas lições de número seis, sete, e oito, ele aponta razões formais
para as suas críticas; nas lições nove e dez, razões de conteúdo. Nas lições posteriores,

131
TUGENDHAT, E. Vorlesungen über Ethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1993. Tomamos a tradução
brasileira para uma leitura cotejada: Lições sobre ética. Tradução do grupo de doutorandos do Curso de
Pós-Graduação da UFRGS, revisão e organização da tradução de Ernildo Stein e Ronai Rocha.
Petrópolis: Vozes, 1996. Doravante abreviado por Lições Sobre Ética, seguido de indicação de página na
edição alemã e brasileira.
191

ele toma como ponto de partida a análise de temas importantes relativos à ética para,
então, realizar uma leitura e argumentação originais dos problemas colocados.
Um dos embates realizados sobre o conteúdo das diversas éticas aventadas
durante a história do ocidente se dá com o sistema schopenhaueriano, cuja ética da
compaixão é matéria de escrutínio do nono capítulo de seu livro; esse capítulo aborda
não só o texto schopenhaueriano, tomando-o como principal expoente dessa vertente,
mas também questões éticas relativas aos animais, crianças, e nascituros – ou, em
tradução literal, vida não nascida (o capítulo é intitulado Die Mitleidsethik, Tiere,
Kinder, ungeborenes Leben).
A partir da análise de SFM – e não de MVR –, Tugendhat defende a posição
de que o conceito schopenhaueriano de moral não é plausível e nem mesmo moral,
sendo diametralmente oposto à ética kantiana pelo fato de ter como base para a
argumentação um sentimento, um afeto (Affekt). 132 Apesar disso, segundo o autor,
Schopenhauer faz uma importante contribuição para o debate e reflexão
contemporâneos: a moral schopenhaueriana englobaria, também, os animais.
Por que o conceito schopenhaueriano não seria plausível e nem mesmo
moral? O autor enxerga nas duas máximas do agir moral schopenhaueriano, neminem
laede (não prejudicar ninguém) e omnes, quantum potes, iuva, (ajuda a todos quanto
puderes), uma estreita relação com a regra que, para ele, constitui o núcleo comum de
todos os conceitos morais, a saber, a regra de ouro 133 – não faça aos outros o que não
queira que façam a você.
É precisamente na regra de ouro que Tugendhat encontra elementos para
refletir sobre a moral.134 A moral baseada no respeito universal e igualitário seria uma
pretensão plausível para a efetivação do ser humano capaz de cooperação, o qual está

132
Cf. Lições sobre Ética, p.177, p.191.
133
Cf. Lições sobre Ética, p.67, p.71.
134
Na quinta lição de seu livro, Tugendhat localiza na segunda figura do imperativo categórico kantiano–
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” –, que ele interpreta como “não
instrumentalizes ninguém”, o conteúdo da moral, afirmando que “esta concepção pode ser denominada
como a moral do respeito universal” (Cf. Lições sobre Ética,p.80, p.87).
A segunda figura do imperativo é elabora em KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes.
Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986, p.69, IV429. No original: „Handle so, daß du die
Menschheit sowohl in deiner Person, als in der Person eines jeden andern jederzeit zugleich als Zweck,
niemals bloß als Mittel brauchst“. Sobre as figuras do imperativo categórico, como indicado
anteriormente, Cf. PATON, H. J. The categorical imperative. A study in Kant’s moral philosophy.
Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1971.
192

intimamente relacionado à concepção de Tugendhat sobre o que seria um ser humano


bom, justamente aquele que é parceiro de cooperação. O comportamento moral consiste,
para ele, em reconhecer o outro como sujeito de direitos iguais. 135 Ele reivindica, assim,
a moral do respeito universal e igualitário como ponto de partida seguro para a reflexão
sobre temas morais.
É possível entender a aproximação realizada pelo autor entre a teoria
schopenhaueriana e a regra de ouro a partir da explicação analítica que ele fornece ao
escrutinar o segundo conceito. Segundo Tugendhat, é possível dividir as regras que
resultam da regra de ouro em três grupos: (i) as regras de não prejudicar os outros (die
Regeln, anderen nicht zu schaden), que são regras de obrigações negativas, i.e., regras
de não fazer certas coisas; (ii) as regras de ajudar aos outros (die Regeln, anderen zu
helfen), i.e., as regras de obrigações positivas; e (iii) as regras especificamente
cooperativas (die spezifisch kooperativen Regeln), como sobretudo as de não mentir e
de não faltar com suas promessas – as quais são comumente incluídas nas regras
negativas. 136
Entretanto, no confronto entre a norma do respeito (kantiana) e a do não
prejudicar o outro (schopenhaueriana), Tugendhat acaba por concluir que a primeira
possui um alcance maior que a segunda, servindo melhor aos seus propósitos. Nesse
ponto é necessário refletir: sob quais condições, sob quais pressupostos, e com quais
objetivos, é lícita essa conclusão?
Para Tugendhat, o princípio kantiano fornece, diferentemente do princípio
schopenhaueriano, critérios para decisão sobre a moralidade ou não de uma ação. Aqui
apontamos o que parece ser uma interpretação não acertada acerca da filosofia
schopenhaueriana: de fato, o princípio schopenhaueriano da compaixão fixado na
máxima neminem laede, não prejudicar ninguém, não oferece um critério de
ponderação. O critério de ponderação para Schopenhauer, como apresentado acima, 137 é
a consciência moral, de forma a posteriori, a partir das sensações causadas no sujeito
pela ação por ele praticada. A máxima neminem laede não é uma prescrição do como se
deve agir, mas para a filosofia schopenhaueriana ela funciona como uma descrição, uma
espécie de rótulo, uma classificação, de uma ação moral já ocorrida, da qual a

135
Cf. Lições sobre Ética, p.336, p.362.
136
Cf. Lições sobre Ética, p.73, p.78-79.
137
Cf. a seção 2.2.7 A Consciência Moral (Gewissen), p.72.
193

veracidade – i.e., se a ação realizada foi realmente efetuada com base no sentimento de
compaixão – na maior parte das vezes é insondável.
Um segundo ponto da interpretação de Tugendhat a ser colocado em xeque,
com base na argumentação até então empreendida no nosso trabalho, refere-se à
seguinte passagem:

As duas dificuldades [alcance limitado e a falta de um critério de ponderação]


também mostram que o princípio de Schopenhauer (como então naturalmente
também sua concepção de motivação) é completamente sem serventia para
uma ética política. Na ética política, trata-se quase sempre de ter que
ponderar entre os interesses de muitos (vários); trata-se além disso de
direitos, os quais novamente são pressupostos, ao se afirmar que alguém
sofre quando estes não lhe são garantidos; assim, por exemplo, no direito à
participação política. 138

Tal afirmação desconsidera o potencial e a abrangência da filosofia de


Schopenhauer: para além das indicações textuais sobre o assunto, são notáveis a
recepção e o desenvolvimento da filosofia do autor no que se refere à filosofia prática,
principalmente pela chamada esquerda schopenhaueriana, conforme exposto acima. 139 É
preciso salientar, também, que todas as questões éticas relacionadas à política na obra
schopenhaueriana ocorrem e são referidas no registro do egoísmo, não no registro da
compaixão, o que foge do escopo da fundamentação de Tugendhat. Este procura e
persegue uma fundamentação moral para a práxis política; Schopenhauer oferece o
âmbito da amoralidade, do egoísmo, e do cálculo de utilidade individual para descrever,
analisar, e explicar as questões referentes à política.
Em seguida, a argumentação de Tugendhat adota certa dose de sarcasmo e
ironia, exprimindo de forma negativa a seguinte afirmação acerca da filosofia de
Schopenhauer: “Se julgamos como moral uma ação boa ou a abstenção de uma má
somente quanto ela ocorre por compaixão, então parece resultar daí que somente podem
ser morais, quanto ao conteúdo, aqueles tipos de ações que ocorrem por este motivo.” 140

138
Lições sobre Ética, p.181, p.194. No original alemão: „Beide Schwierigkeiten zeigen auch, daß
Schopenhauers Prinzip (wie dann natürlich auch seine Auffassung von der Motivation) für eine politische
Ethik vollständig unbrauchbar ist. In der politischen Ethik geht es fast immer darum, zwischen den
Interessen mehrerer abwägen zu müssen, und außerdem um Rechte, die zum Teil wiederum vorausgesetzt
werden müssen, wenn behauptet wird, daß jemand, dem sie nicht gewährt werden, daran leidet, so z.B.
beim Recht auf politische Partizipation.“
139
Cf. 3.3 Ludger Lütkehaus: Esquerda e Direita na Interpretação da Filosofia Schopenhaueriana e 3.4
Schopenhauer no Brasil: a esquerda schopenhaueriana ganha força.
140
Lições sobre Ética, p.181, p.195. No original alemão: „Wenn wir eine gute Tat der die Enthaltung von
einer schlechten nur dann als moralisch beurteilen, wenn sie aus Mitleid geschieht, dann scheint zu
194

Todavia, o sarcasmo e a ironia são utilizados em referência a uma afirmação que do


ponto de vista da filosofia schopenhaueriana é precisa e correta. Tugendhat prossegue:

Existem certamente seres humanos que, diante de qualquer sofrimento,


reagem espontaneamente com compaixão, mas a maioria faz isto apenas
parcialmente, e em alguns existe, mais forte do que a compaixão, o seu
sentimento contrário da alegria maligna, e o prazer na crueldade. 141

Também essa afirmação é precisa e correta. A compaixão não é a motivação


principal para as ações realizadas e ela responde em diferentes graus – com maior ou
menor intensidade – de acordo com a disposição particular do caráter inteligível de cada
indivíduo. Em Schopenhauer, portanto, não é possível extrair uma regra constante e
universal de como e em que grau a compaixão influencia as ações dos indivíduos, sendo
apenas possível afirmar que uma ação que decorre de uma motivação compassiva é
moral, mas sem a possibilidade de sondar e afirmar categoricamente que a compaixão
foi a responsável mesma, a causa e motivação, pela ação praticada.
Ademais, no que se refere às dificuldades e impedimentos encontrados por
Tugendhat no que tange à plausibilidade de fundamentação da moral a partir da filosofia
schopenhaueriana e seu conteúdo, o autor das Lições Sobre Ética busca um fundamento
para a moral que obrigue, o que parece ser o ponto nevrálgico do não enquadramento de
Schopenhauer no programa ético vislumbrado por Tugendhat:

Pode afinal um tal sentimento, naturalmente pré-dado e existente em graus


diversos, ser o fundamento para uma obrigação? Somos nós obrigados por
compaixão? 142

É um tanto trivial para o leitor que acompanha de forma consequente a


argumentação schopenhaueriana que o sentimento de compaixão não pode ser o
fundamento de uma obrigação no sentido empregado por Tugendhat.
O autor mais uma vez afirma sarcasticamente que “não podemos extrair
magicamente nada de universal e de normativo da compaixão”;143 e Schopenhauer

folgen, daß auch nur diejenigen Handlungstypen inhaltlich gut sein können die aus dieser Motivation
folgen.“
141
Lições sobre Ética, p.182, p.196. Tradução alterada. No original alemão: „Es gibt wohl Menschen, die
jedem Leid gegenüber spontan mit Mitleid reagieren, aber die meisten tun das nur partiell, und bei
manchen ist der umgekehrte Affekt der Schadenfreude und der Freude an Grausamkeit stärker vorhanden
als das Mitleid.“
142
Lições sobre Ética, p.183, p.196. No original alemão: „Kann denn aber ein solches natürlich
vorgegebenes und in verschiedenen Graden vorhandenes Gefühl überhaupt Grundlage für ein
Verpflichtetsein sein? Sin wir verpflichtet zum Mitleid?“
195

estaria de acordo com tal afirmação, porque sua filosofia não trata a motivação da
compaixão como fator universal determinante – ela não é a motivação recorrente e
predominante do agir humano nos mesmos termos empregados por Tugendhat, senão
poder-se-ia afirmar a partir da própria filosofia schopenhaueriana que esse não é o pior
dos mundos possíveis –, e ela vai justamente de encontro à normatividade. Uma moral
do respeito universal, nesses termos, exigiria que cada um de nós nos comportássemos
universalmente de modo ético-compassivo, ou que cada um de nós escolhêssemos nos
comportar assim, o que, como vimos, não são possibilidades admissíveis a partir das
premissas enunciadas pela filosofia schopenhaueriana.
Schopenhauer, dessa forma, não cumpre diversos requisitos exigidos na
proposta de fundamentação da moral empreendida por Ernst Tugendhat, estando em
desacordo com uma série de fatores centrais para o filósofo analítico, uma vez que o
conceito de compaixão schopenhaueriano (i) não é a base do respeito universal e
igualitário, (ii) possui um alcance limitado, (iii) não serve como critério puro de
ponderação para a classificação de uma ação como moralmente boa ou má – o critério,
para Schopenhauer, é a consciência moral (Gewissen) –, (iv) não nos obriga
(verpflichtet) em relação uns aos outros, i.e., ele não pode ser entendido de modo
normativo e não torna os seres humanos parceiros de cooperação,144 (v) ele não serve à

143
Cf. Lições sobre Ética, p.186, p.200. No original alemão: „[…] aber man kann aus ihm selbst [Mitleid]
nichts Universelles und Normatives herauszaubern.“
144
Não, ao menos, no sentido em que Tugendhat entende cooperação. Importante lembrar que a
sociabilidade é explicada por Schopenhauer através do Tédio (Langeweile), o qual faz seres que não se
amam – os humanos – procurarem uns aos outros (Cf. MVR, §57, p.403, I 369). É também conhecida,
sobre esse assunto, a fábula (Fabel) dos porcos espinhos: “Em um dia frio de inverno, um grupo de
porcos-espinhos apinha-se de modo bem próximo para que através do calor recíproco possam se proteger
de morrer de frio. Contudo, rapidamente eles sentem os espinhos uns dos outros, motivo pelo qual, então,
eles novamente se afastam uns dos outros. Quando a necessidade de aquecimento os traz novamente para
perto uns dos outros, repete-se uma segunda vez aquele mal, de modo que eles iam daqui para lá passando
por ambos os sofrimentos, até que eles encontrassem uma distância mediana na qual eles pudessem
melhor se suportar. – Da mesma forma surge a necessidade da sociedade, nascida do vazio e da
monotonia do próprio interior, os seres humanos são impelidos uns aos outros; mas as suas muitas
características repugnantes e erros insuportáveis os fazem se rejeitar. A distância mediana, que eles
finalmente encontram, e pela qual pode-se manter um convívio, é a cortesia e os bons costumes. A
Aquele que não mantém essa distância se diz na Inglaterra: keep your distance! (mantenha distância!) –
Em virtude disso, a necessidade de aquecimento recíproca é satisfeita inadequadamente, mas a picada do
espinho não é sentida. Quem, contudo, possui em seu interior muito calor próprio, permanece com prazer
fora da sociedade para evitar assim fazer e receber reclamações.” Cf. PP, §396, V 717. No original
alemão: „Eine Gesellschaft Stachelschweine drängte sich, an einem kalten Wintertage, recht nahe
zusammen, um durch die gegenseitige Wärme, sich vor dem Erfrieren zu schützen. Jedoch bald
empfanden sie die gegenseitigen Stacheln; welches sie dann wieder von einander entfernte. Wann nun das
Bedürfniß der Erwärmung sie wieder näher zusammen brachte, wiederholte sich jenes zweite Uebel; so
196

filosofia ético-política, tal como entendida por Tugendhat, (vi) ele é um sentimento
“pré-dado” existente em diversos graus, e (vi) ele não é a principal e recorrente
motivação que causa o agir humano.
Tugendhat, a partir dessas constatações, acaba por abandonar o fundamento
moral apresentado por Schopenhauer. A tentativa de entender a correspondência entre
obrigações morais e direitos morais o conduz ao que ele considera ser o conceito central
da moral política, a saber, os direitos humanos. 145 Segundo o autor, ser portador de
direitos legais significa que existe uma instância jurídica na qual esses direitos possam
ser exigidos, e, para ele, não é possível entender o significado de direito moral sem a
existência dessa instância de exigibilidade. Dessa forma, compreender a moral
relacionada a direitos significa para ele necessariamente pensá-la como realizável em
uma ordem jurídica.
Apesar do ponto de partida para reflexão dos direitos humanos ser a moral,
para Tugendhat, esses direitos não podem ser entendidos como inatos ou naturais, mas
como oriundos das relações morais estabelecidas entre os seres humanos, i.e., eles
devem ser entendidos como direitos moralmente concedidos. 146 E, segundo a
argumentação do autor, “na medida em que nos colocamos sob a moral do respeito
universal, somos nós mesmos que concedemos a todos os seres humanos os direitos que
dela resultam”, 147 como uma espécie de acordo, de contrato celebrado, o qual é
orientado na sua confecção pela moral, e, justamente por isso, é ele também moral.
Mas em qual instância poder-se-iam tornar efetivos esses direitos morais, e
de onde eles podem receber a sua força? Surge então, segundo Tugendhat, a
necessidade moral da instituição do Estado como órgão garantidor da observância

daß sie zwischen beiden Leiden hin und hergeworfen wurden, bis sie eine mäßige Entfernung von
einander herausgefunden hatten, in der sie es am besten aushalten konnten. —So treibt das Bedürfniß der
Gesellschaft, aus der Leere und Monotonie des eigenen Innern entsprungen, die Menschen zu einander;
aber ihre vielen widerwärtigen Eigenschaften und unerträglichen Fehler stoßen sie wieder von einander
ab. Die mittlere Entfernung, die sie endlich herausfinden, und bei welcher ein Beisammenseyn bestehn
kann, ist die Höflichkeit und feine Sitte. Dem, der sich nicht in dieser Entfernung hält, ruft man in
England zu: keep your distance! — Vermöge derselben wird zwar das Bedürfniß gegenseitiger
Erwärmung nur unvollkommen befriedigt, dafür aber der Stich der Stacheln nicht empfunden. — Wer
jedoch viel eigene, innere Wärme hat bleibt lieber aus der Gesellschaft weg, um keine Beschwerde zu
geben, noch zu empfangen.“
145
Cf. Lições sobre Ética, p.337, p.363.
146
Cf. Lições sobre Ética, p.345, p.372.
147
Cf. Lições sobre Ética, p.345-346, 372. No original alemão: „[…] dass wir selbst es sind, insofern wir
uns unter die Moral der universellen Achtung stellen, die allen Menschen die sich aus dieser ergebenden
Rechte verleihen.“
197

desses direitos, o qual deve positivar um conjunto de prerrogativas e garantias que


contemplem a proteção à integridade física e a direitos sociais e econômicos básicos que
possibilitem viver de forma humanamente digna – o que acabaria por extrapolar os
limites estabelecidos pela tradição liberal. Assim, para Tugendhat, os direitos humanos
devem ser entendidos como uma concepção de justiça mínima qualitativa, na qual
direitos a meios mínimos de subsistência – bens matérias e a oportunidade de adquiri-
los, tais como o trabalho, cuidado, treinamento, educação, etc. – e as prestações de
serviço pelas quais possam ser efetivados são assegurados e observados pelo Estado.
A ética da compaixão de Schopenhauer foi descartada por Tugendhat, pelas
razões apresentadas acima, da reflexão do que ele, Tugendhat, considera ser o ponto
mais importante da ética. Talvez Tugendhat tenha considerado apenas os aspectos da
filosofia schopenhaueriana que realmente não servem a uma consideração ético-política.
Seria possível pensar a questão referente aos direitos humanos a partir de uma chave de
leitura schopenhaueriana, mesmo que o filósofo não tenha escrito diretamente sobre a
questão, e mesmo que ele não tenha procedido nos escritos dedicados às temáticas da
política e do direito através de um conceito de moral que obrigue e que seja normativo?
Para responder a tais questões, é necessário realizar uma breve e sucinta
exposição acerca da espinhosa questão dos direitos humanos, tema do nosso próximo
capítulo.
4 Direitos Humanos: entre o Problema de sua

Fundamentação e sua Efetividade

Debater direitos humanos é uma tarefa complexa. O debate ocorre em um


terreno assaz pantanoso e amplo, pois não existe uniformidade no que diz respeito a sua
origem, definição, forma, estrutura, conteúdo, e finalidade, e, em geral, são exatamente
esses termos que estão em disputa. A despeito disso, é um debate que permanece na
ordem do dia no que se refere aos campos da ética, da política, da justiça, da moral, do
direito internacional, e das relações político-diplomáticas estabelecidas entre os Estados
componentes da comunidade internacional, para citar apenas alguns exemplos. O
terreno é pantanoso e amplo, precisamente porque é um terreno plural que comporta e
coaduna diversas perspectivas de análise.
Dada a impossibilidade de abarcar todos os principais pontos de um debate
tão extenso – e que por vezes é conduzido de forma irresponsável e superficial –,
limitar-nos-emos a reconstituir em linhas bem generalistas uma hipótese de
interpretação da história do conceito, a saber, a tese da afirmação histórica dos direitos
humanos, a qual encontra em Bobbio o seu principal expoente, acenando algumas
divergências suscitadas por aqueles que se ocupam da questão, seja no âmbito
estritamente prático, seja no âmbito teórico. Tal recorte permitirá que nos situemos
nesse debate de forma a construir e apresentar uma interpretação – dentro das diversas
possíveis e existentes – acerca do conceito de direitos humanos e das questões correlatas
a ele, sempre com a finalidade de refletir sobre as atualidades da filosofia
schopenhaueriana no que se refere à questão dos direitos humanos.
Muitos intelectuais, juristas, e autores identificam e definem os direitos
humanos como sendo sinônimos do termo direitos naturais; 1 outros, entretanto, rejeitam
essa associação,2 traçando os vínculos existentes entre eles, mas ressaltando e

1
Vide, por exemplo, as definições dadas por Ferrari e Hunt. Cf. FERRARI, V.; BOFFI, M. (Coaut.
de). Giustizia e diritti umani: osservazioni sociologico-giuridiche. Milano: F. Angeli, 1997, p.144; e Cf.
HUNT, L. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p.19. Doravante abreviado por A invenção dos direitos humanos: uma
história, seguido de indicação de página.
2
Podemos citar aqui todos aqueles autores que trabalham a questão de uma perspectiva do juspositivismo
ou da afirmação histórica dos direitos humanos. Dentre os autores e comentadores utilizados nessa
pesquisa, poderíamos citar, por exemplo, Fábio Konder Comparato, Michael Freeden, Norberto Bobbio.
Cf. COMPARATO, F. A afirmação histórica dos direitos humanos. 10ª edição. São Paulo: Saraiva,
2015. Doravante abreviado por Afirmação histórica dos direitos humanos, seguido do número de página;
199

sublinhando as suas diferenças. Levando em consideração essa contenda, parece-nos


que um dos pontos chave para a abordagem inicial dos direitos humanos é a análise do
conceito de direito natural. Passemos, então, à exposição em linhas gerais do conceito, o
qual é também referido nos compêndios de história da filosofia e de direito por
jusnaturalismo.

4.1. O Direito Natural ou Jusnaturalismo

Em nosso segundo capítulo, temáticas como o jusnaturalismo e o


contratualismo foram abordadas, embora o foco dado aos conceitos tivesse sido limitado
ao contexto que a ocasião demandava. Esta seção constitui-se, dessa forma, como um
complemento ao que foi escrito ali, mas que naquele momento não encontrava lugar na
exposição, sob o risco de os objetivos traçados para o capítulo serem extrapolados e
desviados, prejudicando a clareza e o desenvolvimento de nossa argumentação.
O direito natural em sua acepção mais geral e reducionista é comumente
identificado como uma espécie de direito que independe das leis e do Estado, como algo
que existe de modo universal, atemporal, consistindo em um direito dado – seja pelo
ordenamento natural do mundo, seja pelos deuses ou deus, seja pela razão 3 –, o qual é
evidente por si e em si, 4 sendo necessário apenas que ele seja revelado, descoberto, ou
deduzido pelos seres humanos. A sistematização da explicação do direito natural, i.e., o

Cf. FREEDEN, M. Rights. Minneapolis: Univ. of Minnesota, 1991; Cf. BOBBIO, N. L'età dei
diritti. Torino: Giulio Einaudi, 1995. Doravante abreviado por L'età dei diritti, seguido de indicação de
página.
3
“Sua origem [doutrina jusnaturalista], portanto a autoridade superior sobre a qual se fundamenta, pode
ser Deus, a natureza, a razão humana ou a história”. FACCHI, A. Breve história dos direitos humanos.
Tradução Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p.29. Doravante abreviado por Breve
história dos direitos humanos, seguido de indicação de página.
4
Sobre a questão da autoevidência, Hunt levanta boas questões, entre elas um possível paradoxo: “Essa
afirmação de autoevidência, crucial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um
paradoxo: se a igualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afirmação tinha de ser feita e por
que só era feita em tempos e lugares específicos? Como podem os direitos humanos ser universais se não
são universalmente reconhecidos?”. Cf, A invenção dos direitos humanos: uma história, p. 18. Para
desenvolvimentos ulteriores, ver a introdução desse mesmo livro Cf, A invenção dos direitos humanos:
uma história, p.13-33.
200

jusnaturalismo, figura como uma das mais antigas tentativas de compreensão teórica do
fenômeno jurídico.5
O professor Celso Lafer oferece uma excelente e sucinta caracterização do
aspecto mais basilar e generalista do conceito de direito natural em seu livro A
reconstrução dos direitos humanos:

O Direito Natural se contrapõe ao Direito Positivo, localizado no tempo e no


espaço, e funciona, neste paradigma, como um ponto de Arquimedes para a
análise metajurídica: tem como pressuposto a ideia de imutabilidade de certos
princípios que transcendem a Geografia. A estes princípios, que são dados e
não postos por convenção, os homens têm acesso através da razão comum a
todos, e são estes princípios que permitem qualificar as condutas humanas
como boas ou más – uma qualificação que promove uma contínua vinculação
entre norma e valor e, por isso, entre Direito e Moral. 6

Na tragédia grega Antígona, escrita por Sófocles, já era possível notar,


como assinala o professor Oswaldo Giacoia em seu texto Sobre direitos humanos na era
da biopolítica – seguindo a observação de Lafer, 7 e como fizera antes Aristóteles –, a
evocação de um tipo de direito que estaria em consonância não com as leis escritas da
Pólis, mas com as leis da natureza, com as leis dos deuses; o direito estaria justificado a
partir de, por assim dizer, cosmoteologias:

Desde a Antigüidade clássica, filósofos e juristas têm se dedicado a uma


reflexão profunda sobre o inesgotável tesouro espiritual de Antígona. Em sua
Retórica (1373 b e seguintes) já observava Aristóteles: “Pois realmente há,
como todos de certo modo intuem, uma justiça e uma injustiça naturais,
compulsórias para todas as criaturas humanas, mesmo para as que não têm
associação ou compromisso com as outras. É isso que a Antígona de Sófocles
claramente quer exprimir quando diz que o funeral de Polinices era um ato
justo apesar da proibição; ela pretende dizer que era justo por natureza.”.
Em complementação, pode-se recorrer ao texto magno da mesma
Retórica de Aristóteles 1375 a 31: “Devemos enfatizar que os princípios de
equidade são permanentes e imutáveis, e que a lei universal tampouco muda,
pois se trata da lei natural, ao passo que as leis escritas muitas vezes mudam.
Esse é o significado dos versos da Antígona de Sófocles, onde Antígona
defende que, ao enterrar seu irmão, violou as leis de Creonte, mas não violou
as leis não-escritas.”. 8

5
BARRETO, V (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, verbete Direito Natural, p.240. Doravante abreviado como Dicionário de filosofia do
direito, seguido de indicação de verbete e página.
6
LAFER, C. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1988, p.16. Doravante abrevido por A reconstrução dos direitos
humanos, seguido de indicação de página.
7
Cf. A reconstrução dos direitos humanos, p.35.
8
GIACOIA, O. Sobre direitos humanos na era da bio-política. In: KRITERION, Belo Horizonte, nº 118,
Dez./2008, p.267.
201

Como vimos, Grotius é um dos responsáveis pela mudança de paradigma no


modo de fundamentação dos direitos naturais, 9 ao deduzi-lo daquilo que era tido por ele
como a natureza humana, daquilo identificado como uma das marcas distintivas do ser
humano em relação aos demais seres viventes: a sua racionalidade. Tal mudança marca
a passagem do que poderia ser chamado de jusnaturalismo clássico para o que é
comumente chamado de jusnaturalismo moderno,10 e ela é apenas uma das várias
mudanças que o debate filosófico e o desenrolar histórico vieram a nos revelar. Esse
processo acabou por distanciar cada vez mais o direito das fundamentações
cosmológicas e teológicas, como indica Goyard-Fabre: “As reviravoltas filosóficas da
modernidade contribuíram para apurar o conceito de direito arrancando-o de seu
invólucro cosmoteológico”.11
As teorias modernas do direito natural, i.e., o jusnaturalismo racional, bem
como as teorias contratualistas enunciadas nos séculos XVII e XVIII foram
fundamentais para o advento da Modernidade tal como a interpretamos
contemporaneamente. 12 Sobre as teorias contratuais, pode-se ler no livro de Facchi,
Breve História dos Direitos Humanos, a seguinte interpretação:

O contrato é a manifestação por excelência da autonomia individual,


enquanto pressupõe um indivíduo livre, capaz de julgar o bem e o mal por si
mesmo e capaz de vincular-se, de assumir um compromisso e mantê-lo. É a
expressão de uma racionalidade instrumental, que calcula custos e benefícios,
da livre vontade do homem que se autolimita através do exercício da razão. 13

As teorias contratualistas desempenharam importante papel na ruptura com


o paradigma tradicional da vida política, uma vez que elas foram o recurso encontrado
para subverter a forma pela qual a política era até então abordada: a teoria aristotélica

9
Além do nosso segundo capítulo, Cf. GOYARD-FABRE, S. Os fundamentos da ordem jurídica. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, p.58. Doravante abreviado como Os fundamentos da ordem jurídica,
seguido de indicação de página. Cf. também A invenção dos direitos humanos: uma história, p.117. Nesta
obra, Hunt escreve: “Já em 1625, um jurista calvinista holandês, Hugo Grotius, propôs uma noção de
direitos que se aplicava a toda a humanidade, não apenas a um país ou a uma tradição legal. Ele definia
“direitos naturais” como algo autocontrolado e concebível separadamente da vontade de Deus. Sugeria
também que as pessoas podiam usar os seus direitos – sem a ajuda da religião – para estabelecer os
fundamentos contratuais da vida social.”
10
“O jusnaturalismo moderno, cujo lugar de excelência, dizem, seria a escola do direito da natureza e
das gentes, teria se edificado sobre as ruínas do jusnaturalismo clássico.” Os Fundamentos da ordem
jurídica, p. 50.
11
Os Fundamentos da ordem jurídica, p. XX.
12
“Na busca dos fundamentos do direito, a referência à natureza das coisas é, com efeito, substituída
pouco a pouco pela referência à natureza do homem. Essa mutação conduzirá ao advento da
‘modernidade’. Os Fundamentos da ordem jurídica, p. 40.
13
Breve história dos direitos humanos, p.43.
202

do homem como animal político havia se consolidado como a teoria que embasava
direta ou indiretamente a explicação de que a vida em sociedade seria algo natural,
sendo uma das consequências da natureza humana. Entender a sociedade como uma
consequência da natureza humana envolve uma série de outras consequências diretas e
tangenciais no que se refere à forma pela qual as relações jurídico-políticas são
constituídas, i.e., como, em última instância, as relações de poder são construídas e
justificadas.
A primeira consequência fundamental da tese do homem como animal
político se dá pela forma como a sociedade é explicada: como um organismo, na qual as
partes são dependentes e existem em função do todo,14 i.e., existe uma preponderância
da esfera coletiva em relação à esfera individual, e não existe uma dissociação entre
Estado e sociedade civil; uma outra consequência fundamental refere-se ao fato de que
nascer no seio familiar – um grupo organizado de forma hierárquica – significa
necessariamente não nascer livre, dado que as condições de nascimento já comportam
uma série de limitações e fatores, tais como o indivíduo nascer submetido à autoridade
paterna, e não nascer igual, porque já está estabelecida um relação assimétrica de
superioridade e inferioridade entre pai e filho.
A passagem do paradigma aristotélico – a tese do animal político – para o
paradigma da sociedade como um artifício é justamente operada pelas teorias
contratualistas. O recurso ao estado de natureza permite que os indivíduos sejam
pensados como nascidos livres e iguais e que a sociedade e o Estado são constructos
humanos, e isso significa deslocar e alterar a forma pela qual as estruturas de poder são
fundadas: como Bobbio aponta, em uma concepção orgânica da sociedade as partes
estão em função do todo, enquanto que em uma concepção individualista o todo é
resultado da livre vontade das partes15 – e o próprio termo que passaria a ser empregado
nas cartas de direito, associação, é já reflexo dessa mudança de paradigma, dado que a
associação é um ato de vontade derivado de uma convenção e, portanto, uma
enunciação frontal às teorias organicistas.

14
Essa é uma tese enunciada muito claramente por Aristóteles: “É evidente que a cidade é, por natureza,
anterior ao indivíduo, porque se um indivíduo separado não é auto-suficiente, permanecerá em relação à
cidade como as partes em relação ao todo. Quem for incapaz de se associar ou que não sente essa
necessidade por causa de sua auto-suficiência, não faz parte de qualquer cidade, e será um bicho ou um
deus”. ARISTÓTELES. Política. Tradução e notas António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho
Gomes. Lisboa: Vega, 1998. Livro I, 1253a 25-29.
15
Cf. BOBBIO, N. L'età dei diritti. Torino: Giulio Einaudi, 1995, p.128. Doravante abreviado como
L'età dei diritti seguido de indicação de página.
203

Durante esse período – o moderno –, era muito recorrente ao tratar de


temáticas de filosofia política, como ficou explícito no próprio caso de Schopenhauer, o
emprego conjugado do expediente jusnaturalista e do recurso ao contratualismo. O
jusfilósofo Norberto Bobbio também observa esse aspecto característico da época:

Uma das representações mais constantes do direito natural é aquela em que


ele é apresentado como o direito que regula as relações entre indivíduos
singulares e isolados uns dos outros no estado de natureza, isto é, em um
estado em que ainda não existe um direito púbico [...]. A passagem do estado
de natureza para o estado civil ocorre com a instituição dos órgãos do poder
público, encarregados de fazer respeitar as obrigações assumidas pelos
indivíduos, recorrendo, em última instância, à força, na sociedade pré-
estatal. 16

Essas complementações de caráter mais abrangente ao jusnaturalismo


moderno e ao contratualismo acabam por permitir o desenvolvimento da argumentação
em outras direções, lançando nova luz sobre o conceito de direitos humanos e em seus
desdobramentos.
Bobbio identifica na teoria do direito natural uma espécie de absolutismo
ético, na medida em que ela é pautada em regras universais, as quais são obtidas a partir
da dedução da natureza humana;17 não só como absolutismo ético, mas ele também a
interpreta como principal ideologia do período em questão. Tal concepção, a da
existência de direitos naturais individuais, inatos, e universais, logrou grande êxito e foi
muito difundida na cultura popular europeia,18 chegando ao ponto de jusnaturalismo e
filosofia do direito serem confundidos e tratados como termos intercambiáveis. Bobbio
não o classifica, entretanto, simplesmente como uma teoria jurídico-científica; antes,
para ele, o êxito e a difusão do jusnaturalismo constitui-se e funcionou tal qual uma
ideologia:

O jusnaturalismo não é uma teoria (científica), mas uma ideologia, ou, em


outras palavras, não é uma teoria racional de um campo particular da
experiência humana, mas é racionalização póstuma de uma necessidade
fundamental, que é, geralmente, a de conservar o status quo. 19

16
BOBBIO, N. Da estrutura à função. Barueri: Manole, 2007, p. 155. Doravante abrevido por Da
estrutura à função, seguido de indicação de página.
17
“Na história do pensamento jurídico, o absolutismo ético é representado pela teoria do direito natural,
que pretende deduzir regras de conduta universalmente válidas do estudo objetivo, ‘científico’, da
natureza humana.” Da estrutura à função, p.193.
18
Breve história dos direitos humanos, p.45.
19
Da estrutura à função, p.194.
204

Essa permeabilidade e fluxo das concepções fruto das reflexões jurídico-


políticas da escola do direito natural foram decisivas para os rumos da história:
enquanto celebrava-se os triunfos da razão, emergia e cristalizava-se ainda mais a noção
de que as sociedades e os Estados são construções humanas sustentadas e justificadas
pela escolha individual. A ideologia preponderante passa, então, a reverberar, seja como
guia de movimentos insurgentes, seja em documentos históricos, como cartas de direitos
proclamadas por tais movimentos, as quais seriam posteriormente integradas às
constituições dos países que atravessaram períodos de profunda mudança na ordem
social, como, por exemplo, os EUA e a França.
Antes de apresentar propostas de análise e interpretação para as cartas de
direito, verificando o impacto delas para o processo histórico do advento dos direitos
humanos, é interessante observar os problemas envolvidos na fundamentação dos
direitos naturais.

4.2. O Problema da Fundamentação dos Direitos Naturais

No artigo Sul fondamento dei diritti dell’uomo (Sobre os fundamentos dos


direitos do homem), publicado no livro L’età dei diritti, Norberto Bobbio apresenta a
questão dos fundamentos dos direitos humanos – aos quais ele se refere textualmente,
na maior parte das vezes, como direitos do homem – com grande esmero.
O texto é conduzido por três questões fundamentais: a primeira delas
questiona (i) qual seria o sentido do problema que nos pusemos acerca do fundamento
absoluto dos direitos humanos; a segunda investiga (ii) se um fundamento absoluto para
os direitos humanos seria possível; e a terceira avalia (iii) se, dado que fosse possível
um fundamento absoluto, se ele seria também desejável. 20
A primeira dificuldade que Bobbio aponta no que se refere à fundamentação
dos direitos é a distinção que deve ser feita entre (i) a busca por fundamentos de um
direito que se tem – ou seja, daqueles direitos que se referem a um ordenamento jurídico
positivo existente do qual o indivíduo faz parte e possui, dessa forma, direitos e deveres,
e no qual deve ele, indivíduo, buscar uma norma válida que possa justificar, reconhecer

20
Cf. L'età dei diritti, p.5.
205

e especificar o seu direito –, e (ii) a busca de fundamentos para os direitos que se


desejaria possuir, o que envolve e implica uma outra gama de questões21.
O esforço em fundamentar um direito que se desejaria ter envolve reunir e
apresentar boas razões que o justifiquem, na tentativa de convencer o maior número de
pessoas, e de obter o mais amplo reconhecimento possível. E tanto melhor e mais
eficiente se aqueles que estão convencidos da importância desses direitos forem os
detentores do poder de criar normas.
Segundo Bobbio, de um ponto de vista filosófico, partimos do pressuposto
de que os direitos humanos são desejáveis e que eles precisariam de um fundamento, de
que eles precisariam da exposição e da apresentação de motivos que os justificassem e
que os tornassem aceitos ou desejáveis pela maioria. Decorre-se, então, duas
consequências: a primeira delas é uma constatação feita pelo jusfilósofo de que assim os
direitos humanos passaram a ser relacionados de algum modo aos chamados direitos
naturais; a segunda, de que a busca por essa fundamentação criava um certo problema, a
saber, o problema da busca por uma fundamentação absoluta. Um fundamento absoluto,
i.e., um fundamento que não pode ser refutado, é por definição inquestionável e perene,
e, portanto, deve ser aceito por todos. Ele se constitui como um problema na medida em
que é criada a ilusão, segundo Bobbio, de que ele seja possível.
No que se refere à possibilidade de fundamentação absoluta, Bobbio
identifica, ao menos, quatro dificuldades: 22 (i) a expressão direitos humanos é uma
expressão vaga; (ii) os direitos humanos constituem uma classe variável; (iii) a classe
dos direitos humanos é uma classe heterogênea; e (iv) o quão eficiente e recompensador
essa empreitada pode ser. Vejamos cada uma destas mais de perto.
Definições vagas possuem a aparência de delimitar e distinguir a
significação do conceito, mas se mostram imprecisas ou vazias de conteúdo, ou são
apenas, ao final, o enunciado de tautologias: “direitos humanos são aqueles direitos que
dizem respeito ao ser humano enquanto ser humano”, ou “direitos humanos são aqueles
direitos que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os seres humanos, ou dos quais
nenhum ser humano deveria ser despojado”, ou ainda, “direitos humanos são aqueles
direitos dos quais o reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da
pessoa humana ou mesmo para o desenvolvimento da civilização, etc., etc.”.23 Tais

21
Cf. L'età dei diritti, p.5.
22
Cf. L'età dei diritti, p.7-8.
23
Cf. L'età dei diritti, p.8.
206

definições são meras tautologias, ou enunciam o que se gostaria que os direitos


humanos fossem. O conteúdo, elemento mais importante, continua passível de
interpretações variáveis conforme ideologia e visão de mundo, e é na aplicação, i.e., na
tutela ou na positivação dos direitos, que as contradições derivadas dessa vagueza do
conceito são mais bem visualizadas, porque é exatamente nesse ponto, nesse momento,
que elas não podem ser mais ignoradas ou contornadas.
Bobbio ainda atenta para a lógica de tal tipo de fundamentação: o
fundamento seria a condição para a justificação e a realização de valores últimos,
valores os quais não são justificados em si mesmos, mas são assumidos. Assumir os
valores últimos significa debater qual o conteúdo desses valores, o que envolve
concessões, renúncias, escolhas políticas, e o confronto de orientações ideológicas. Os
valores assumidos são, nesse sentido, valores construídos de acordo com o contexto
histórico, político, social, econômico, em um jogo de correlações de força. Segundo
Bobbio, a impossibilidade de definir precisamente o que são direitos humanos
impossibilita a própria busca por um fundamento, seja ele absoluto ou não.24
Que os direitos humanos constituam uma classe variável significa, em
consonância com uma das três principais teses de Bobbio, 25 que os direitos se
modificam ao longo do processo histórico. Isso significa que os direitos são suscetíveis
à influência das necessidades e interesses existentes em cada período histórico, de que
eles dependem da classe ou classes sociais que detêm o poder – daqueles que podem
criar as normas –, dos meios e das condições disponíveis para que eles possam se
realizar, do progresso técnico e científico a que estamos sujeitos. Em suma, os direitos
são sempre uma construção histórica, e, portanto, passíveis de mudança, porque
justamente dependem da história e dos contextos social, político, econômico,
ideológico, etc.
Logo, do ponto de vista bobbiano, se demandas e necessidades emergem
historicamente e elas podem alterar o que é tido como direito, o direito é
necessariamente variável. E é possível comprovar tal possibilidade de interpretação ao
atentar aos exemplos fornecidos ao longo da história: o direito à propriedade fora
inicialmente declarado um direito humano sacro e inviolável, mas posteriormente
24
Cf. L'età dei diritti, p.9.
25
Bobbio afirma nunca ter se afastado em seus escritos de ao menos três teses: (i) os direitos naturais são
em verdade direitos históricos; (ii) o conceito de direitos humanos nasce no início da era moderna,
juntamente com a concepção individualista da sociedade; (iii) os direitos humanos tornam-se um dos
principais indicadores do progresso histórico. Cf. L'età dei diritti, p.VIII.
207

acabou por se transformar e por adquirir novos contornos e nuances de acordo com as
necessidades engendradas por novas demandas e pelas mudanças sociais, econômicas, e
ideológicas ocorridas ao longo da história – necessidades e demandas que não poderiam
ser vislumbradas ou não pertenciam ao rol de reivindicações do grupo ou grupos
organizados ou detentores do poder no momento da declaração de tal direito.
Do mesmo modo, seguindo a mesma lógica, Bobbio admite que
futuramente, com o surgimento de novas demandas e novas necessidades, emergirão
novos direitos, os quais, atualmente, talvez não possam nem mesmo ser vislumbrados.
Bobbio fornece ao menos dois exemplos, no período quando escreve, de demandas que
começavam a dar indícios de que viriam a ser objeto da reflexão jurídico-filosófica em
um futuro próximo: (i) o direito ao genoma humano ou patrimônio genético, em
decorrência dos avanços científicos na área, e (ii) o direito à privacidade, devido ao
aumento do fluxo e controle de informações. Tanto as pesquisas, os desenvolvimentos,
e os horizontes sobre o genoma humano, quanto os recentes casos de violações dos
direitos de privacidade cometidos, tais como aqueles praticados globalmente pela
Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) e trazidos à tona por um ex-analista da
CIA, Edward Snowden, vieram a comprovar que o diagnóstico de Bobbio sobre a
sensibilidade dessas questões era acertado.
Todo o raciocínio reproduzido acima pode ser resumido a uma simples
observação: “Aquilo que parece fundamental em uma época histórica e em uma
determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas”. 26 E
essa variabilidade do direito impossibilita uma fundamentação absoluta.
Nas teorias jusnaturalistas modernas27 é possível observar a tentativa de
colocar o direito acima de qualquer refutação a partir da derivação direta do que seria a
natureza humana, ou seja, essa seria a forma e a estratégia para obter um fundamento
absoluto. Em outras palavras, a natureza humana funcionaria como fundamento
absoluto, porque ela mesma era entendida como universal e forneceria as razões
evidentes e incontestáveis a todos os seres humanos da irrefutabilidade do fundamento.

26
L'età dei diritti, p.10. No original italiano: “Ciò che sembra fondamentale in un’epoca storica e in una
determinata civiltà, non è fondamentale in altre epoche e in altre culture.”
27
Historicamente foi possível observar a limitação de um fundamento absoluto de base teológica, uma
vez que, apesar de possível, ele seria razoável, efetivo, e eficiente apenas entre aqueles que comungassem
da mesma crença, e isso significa que ele seria absoluto somente para um grupo de pessoas, i.e., ele não
poderia ser afirmado como universal. A busca por um fundamento absoluto e universal levou os teóricos
modernos a buscarem um fundamento absoluto e universal na natureza humana.
208

Mas aqui é variável até mesmo o que é tomado como natureza humana:28 desloca-se o
ponto da polêmica, mas a polêmica mesma permanece irresoluta.
Contudo, o autor logo rejeita a possibilidade de, pela falta de um
fundamento absoluto, resultar daí um relativismo. Segundo ele, os direitos ainda devem
ser justificados, mas tal justificação comporta mais de um fundamento; dessa maneira,
não se abandona a fundamentação dos direitos: o fundamento absoluto não é possível,
mas fundamentos – no plural – ainda o são. Admite-se, assim, a pluralidade, e essa
pluralidade repousa exatamente sobre a existência de fundamentos diversos, e essa
diferença de fundamentos significa, segundo Bobbio, que os direitos humanos não
podem constituir uma classe homogênea.
Os direitos humanos não serem homogêneos, i.e., eles serem heterogêneos
por conta dos diferentes fundamentos que possam possuir, explica e justifica o fato de
alguns direitos serem válidos e estendidos a todos, enquanto outros concorrerem entre
si. Essa concorrência, segundo Bobbio, engendra uma relação antinômica entre eles, a
qual consiste no fato de que para que alguns tipos de direito possam ser efetivados, seja
implicada necessariamente a não garantia de outros tipos de direito. E isso significa que
não é possível garantir paralelamente de modo pleno dois tipos diversos de direitos
quando eles são incompatíveis entre si.
Bobbio utiliza como exemplo para tornar mais clara a antinomia a relação
antitética existente entre os direitos individuais tradicionais, i.e., os direitos de
liberdade, e os direitos políticos e sociais. Segundo ele, os direitos de liberdade são
dependentes da não intervenção do Estado na vida de seus cidadãos, em obrigações
puramente negativas, e surgiram da demanda histórica de liberdade de religião, 29
imprensa, opinião, etc., da demanda de restringir o poder do Estado sobre os seus
súditos ou cidadãos. Em contrapartida, os direitos políticos e sociais – identificados por
Bobbio como o direito ao trabalho, à instrução, e à saúde –, requerem, necessariamente,
a intervenção estatal, obrigações positivas, como meio de fomentá-los e garanti-los. É
fácil notar a antinomia e a contradição geradas entre dois tipos de direito que expressam
concomitantemente “O Estado não deve intervir na vida de seus cidadãos para assegurar

28
“[...] a julgar a partir da história do jusnaturalismo, a natureza humana foi interpretada das formas mais
diversas, e o apelo à natureza serviu para justificar sistemas de valores que seriam até mesmo opostos
entre si”. L’età dei diritti, p.19. No original em italiano: “[...] a giudicare dalla storia del giusnaturalismo
la natura umana è stata interpretata nei modi diversi, e l’appello alla natura è servito a giustificare sistemi
di valori anche opposti tra loro.”
29
Cf. A invenção dos direitos humanos: uma história.
209

determinados direitos” e “O Estado deve intervir na vida de seus cidadãos para


assegurar outros tipos de direitos determinados”. Dessa forma, a lógica de
funcionamento revela que quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, i.e., seus
direitos políticos e sociais, tanto mais diminui os direitos de liberdade desses mesmos
indivíduos, e vice-versa.
O jusfilósofo notou a antinomia e tomou como exemplo para explicá-la a
colisão entre os direitos de liberdade e os direitos políticos e sociais. Contudo, se forem
considerados os direitos ambientais, também eles estão em contradição com os outros
dois tipos de direitos mencionados anteriormente: assegurar um meio ambiente saudável
para as próximas gerações significa limitar, ao menos, o direito de propriedade e os
direitos políticos e sociais da geração atual. Áreas ambientais protegidas limitam o
acesso e uso das mesmas – e a tensão, disputa e pressão criadas por essa dinâmica
coloca em confronto aqueles que desejam explorá-las e aqueles que desejam protegê-
las; em relação aos direitos sociais, o argumento recorrente utilizado pelas potências
econômicas para não participar dos acordos globais sobre proteção e preservação do
meio ambiente é de cunho econômico, mais especificamente ao que se refere aos postos
de trabalho que poderiam ser fechados e no colapso econômico que poderia ser gerado
ao serem adotadas medidas restritivas. O argumento já fora utilizado pelos EUA para a
não assinatura do Protocolo de Quioto (1997) e, mais recentemente, no primeiro ano de
governo de Donald Trump (2017), para que o país se retirasse do acordo global sobre o
clima em Paris.30 O então presidente dos EUA alegou na ocasião:

O Acordo de Paris sobre o clima é simplesmente o mais recente exemplo de


que Washington cedeu a uma resolução que penaliza os Estados Unidos para
beneficiar outros países. Deixa os trabalhadores americanos, que eu amo, e o
contribuintes [sic] absorverem o custo, em termos de perda de empregos,
menores salários, fechamento de fábricas e enorme redução na produção
econômica. 31

Direitos com eficácia, finalidade, e meios tão diversos de serem assegurados


são, para Bobbio, a comprovação de que eles não podem possuir um mesmo
fundamento e que, portanto, o fundamento não pode ser de modo algum absoluto; o

30
O texto do Acordo de Paris está disponível na página online das Nações Unidas. Cf. ONU.
Framework Convention on Climate Change. Disponível em
http://unfccc.int/resource/docs/2015/cop21/eng/l09r01.pdf. Acesso 02 jun. 2017.
31
KINKARTZ, S. O que é verdade na fala de Trump sobre o Acordo de Paris?. Deutsche Welle, Bonn,
02 jun. 2017. Notícias / Mundo. Disponível em: http://p.dw.com/p/2e3xQ. Acesso: 02 jun. 2017.
210

caso das antinomias é só a expressão clara e mais evidente dessa lógica que é
contraditória em sua efetivação.
Além de serem uma impossibilidade, dados os argumentos apresentados,
segundo Bobbio, o fundamento absoluto pode funcionar, também, como pretexto para a
defesa de posições conservadoras e reacionárias. Assim foi feita resistência aos direitos
denominados políticos e sociais: alegando-se um fundamento absoluto para os direitos
de liberdade, um fundamento que não legitimava as respostas dadas aos novos tipos de
demandas que emergiam historicamente (direitos políticos e sociais), afirmava-se ser
incompatível um novo tipo de direito com os direitos já existentes, e que os já existentes
seriam preponderantes e deveriam ser mantidos.
Para além dos problemas e dificuldades referentes à efetivação de uma
fundamentação absoluta dos direitos, existe também o problema de saber se ela seria
eficaz. Segundo Bobbio, além de ela não ser possível, caso o fosse, ela não seria nem
mesmo eficaz. A primeira ilusão estaria assentada na possibilidade de um fundamento
absoluto, a segunda, de que um fundamento absoluto bastaria:

Aqui chega à discussão o segundo dogma do racionalismo ético que é, assim,


a segunda ilusão do jusnaturalismo: que os valores últimos não são apenas
demonstráveis como teoremas, mas que basta tê-los demonstrado, isso é, que
eles se tornem em certo sentido irrefutáveis e irresistíveis, para que seja
assegurada sua realização. 32

Não basta demonstrar um fundamento, é preciso assegurar os direitos que


seriam deduzidos dele. E a experiência histórica, de acordo com Bobbio, desmente a
primeira ilusão jusnaturalista ao mostrar que não são possíveis fundamentos absolutos, e
a segunda ilusão é desfeita por conta de três constatações/argumentos; 33 (i) de que os
direitos humanos não foram mais respeitados nas épocas em que existiu acordo e
consenso de um fundamento tido como absoluto; (ii) de que com a declaração das
Nações Unidas em 1948, a busca por fundamentos foi de certa forma superada; (iii) de
que, já que a declaração da ONU serve como um ponto base para orientar o debate

32
L'età dei diritti, p.14. No original italiano: “Qui viene in discussione il secondo dogma del razionalismo
etico che è poi la seconda illusione del giusnaturalismo: che i valori ultimi non solo si possano dimostrare
come teoremi, ma che basti averli dimostrati, cioè resi in un certo senso inconfutabili e irresistibili, per
assicurarne l’attuazione.”
33
Cf. L'età dei diritti, p.15-16.
211

sobre direitos humanos, não se trata mais de fundamentá-los, mas de assegurá-los, o


que desloca a questão do âmbito filosófico para o âmbito político. 34
A impossibilidade de encontrar um fundamento absoluto para os direitos
humanos conduz aqueles que se aventuram nessa empreitada em buscar os vários
fundamentos possíveis. O problema em fundamentar os direitos humanos, i.e., o que
Bobbio chama de crise de fundamentos, é um problema filosófico e não pode ser
dissociado da forma pela qual os direitos humanos são construídos, ou seja, é um
problema filosófico que não pode ser dissociado dos fatores históricos, sociais,
políticos, econômicos, etc.
É historicamente, i.e., na análise de documentos históricos e da marcha da
história, que é possível notar a importância dessa questão para a constituição e a
afirmação dos direitos humanos como os conhecemos atualmente. Analisemos, pois, o
conteúdo e importância das cartas de direitos das quais se noticiou a influência do
jusnaturalismo.

4.3. As Cartas de Direitos como Reverberação das Teorias

Jusnaturalistas: a Passagem do Plano Teórico para o Plano

Prático

Bobbio classifica como primeira fase histórica da emersão dos direitos


humanos o processo no qual é possível verificar a influência das teorias filosóficas nas
Declarações de Direitos: estas nascem de teorias filosóficas, como reverberações dos

34
Aqui temos um ponto da análise bobbiana sobre direitos humanos que é disseminado de forma um tanto
distorcida por grande parte de seus intérpretes: Bobbio não abandona o problema da fundamentação dos
direitos humanos, e não alega que ela seja uma questão menor ou sem importância. Bobbio abandona
apenas a fundamentação absoluta dos direitos humanos, apontando os limites das proposições
apresentadas pelas teorias jusnaturalistas. Ele desloca o debate para a questão dos fundamentos, termo
empregado agora no plural, e dos direitos humanos enquanto construção histórico-político-econômico-
social. Os quatro primeiros capítulos do livro L’età dei diritti se configuram exatamente como uma busca
por fundamentos dos direitos humanos a partir de quatro perspectivas de análise para a questão: do ponto
de vista filosófico (primeiro capítulo – Sul fondamento dei diritti dell’uomo [Sobre o fundamento dos
direitos do homem]), jurídico (segundo capítulo – Presente e avvenire dei diritti dell’uomo [Presente e vir
a ser dos direitos do homem]), da filosofia da história (terceiro capítulo – L’età dei diritti [A Era dos
direitos]), e da sociologia do direito (quarto capítulo – Diritti dell’uomo e società [Direitos do homem e
sociedade]). Os fundamentos encontrados, obtidos através da construção de consensos acerca dos direitos
humanos, residem na carta de Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948.
212

ideais e dos valores jusnaturalistas modernos e contratualistas, os quais acabaram por


ganhar concretude e amplitude prática exatamente nessas declarações e por causa delas.
Admite-se que o ser humano enquanto tal é detentor de direitos inatos, oriundos da sua
própria natureza, e que ninguém poderia, nem mesmo ele ou o Estado, tolher, alienar ou
negar esses direitos.
Essas teorias expressavam não aquilo que o direito era, o seu ser, mas o que
era desejável que ele fosse, o seu dever ser, a partir de um conteúdo que tinha a
pretensão de ser universal e voltado a uma entidade racional alheia às categorias de
tempo e de espaço. Além disso, tais teorias tornaram-se a base de novas concepções do
Estado e do direito que se consolidavam, nas quais o Estado deixaria de possuir um
poder absoluto e ilimitado e de ser a finalidade da organização social, e na qual a
afirmação dos direitos não seria mais uma exigência, mas o ponto de partida. 35
O processo de transição pelo qual efetivamente ocorrem essas mudanças se
deu por meio da acolhida que essas teorias recebem das Declarações de Direitos, o que
inaugura uma segunda fase histórica do processo de formação dos direitos humanos: a
passagem do âmbito teórico, i.e., do âmbito do enunciado de princípios e do
conhecimento especulativo acerca de um direito tido como natural, para o âmbito
prático, i.e., a positivação dos princípios até então teóricos 36 nas cartas constituintes e a
realização do direito através da sua efetivação.
Segundo o professor Fábio Konder Comparato, historicamente é possível
notar algumas diferenças nesse processo: enquanto os ingleses consideravam que a
proteção jurídica necessitava de recursos que não se limitavam a simples declarações,
como, por exemplo, garantias judiciais, i.e., a mobilização do aparato técnico-jurídico, a
tradição francesa encarava uma declaração de direitos como algo dotado de grande
poder político-pedagógico. 37 Tomemos alguns exemplos para ilustrar a questão: 38 (i) a
Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689, consequência da Revolução Gloriosa;
(ii) as declarações de direitos envolvidas no processo histórico de independência dos
EUA, tais como a Carta de Direitos de Virgínia de 1776, a própria Declaração de

35
Cf. L'età dei diritti, p.23.
36
Sobre o processo histórico de afirmação dos direitos humanos Cf. Afirmação histórica dos direitos
humanos.
37
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.101.
38
Sobre as cartas de direitos Cf. MARQUES, V. Direitos humanos e revolução: temas do pensamento
político setecentista. Lisboa: Colibri, 1991. Doravante abriado por Direitos humanos e revolução, seguido
de indicação de página.
213

Independência do país (1776), e a Declaração dos Direitos e Garantias da Constituição


Federal Norte-Americana (1791); (iii) as declarações oriundas do processo
revolucionário francês, dos anos de 1789, 1791, 1793 e 1795; e (iv) a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas
(ONU) de 1948.

4.3.1. A Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689

A Declaração de Direitos (Bill of Rights) 39 inglesa foi um dos resultados da


Revolução Gloriosa ocorrida ao final do século XVII, 40 produto da animosidade
fomentada, principalmente, por conflitos religiosos, e que foi impulsionada pela disputa
da sucessão do trono de Inglaterra, o qual poderia ter como sucessor um professante da
religião católica. O Parlamento, que não era convocado havia alguns anos, reuniu-se por
iniciativa própria e declarou vago o trono de Inglaterra41 após o então monarca, Jaime
II, ser obrigado a fugir para a França. A carta de direitos resultante do processo foi a
condição para que o Príncipe de Orange, esposo de Maria, a qual era protestante e filha
de Jaime II, pudesse assumir o trono de Inglaterra. 42 Ela foi a primeira carta de direitos
a limitar os poderes de um Estado absoluto, mais precisamente, a limitar uma
monarquia absolutista. Dessa forma, foram criados os primeiros mecanismos de garantia
e proteção à existência e ao funcionamento do Parlamento – como a institucionalização

39
Sobre o termo “bill”, Hunt ressalta um ponto importante e que depois seria decisivo na opção dos
movimentos posteriores: A história da palavra “declaração” fornece uma primeira indicação da mudança
na soberania. A palavra inglesa “declaration” vem da francesa “declaration”, de mesma grafia. Em
francês, a palavra se referia originalmente a um catálogo de terras a serem dadas em troca do juramento
de vassalagem a um senhor feudal. Ao longo do século XVII, passou cada vez mais a se referir às
afirmações públicas do rei. Em outras palavras, o ato de declarar estava ligado à soberania. [...] Em 1776
e 1789, as palavras “carta”, “petição” e “bill” pareciam inadequadas para a tarefa de garantir os direitos
(o mesmo seria verdade em 1948). “Petição” e “bill” implicavam um pedido ou apelo a um poder
superior (um bill era originalmente “uma petição ao soberano”), e “carta” significava frequentemente um
antigo documento ou escritura. “Declaração” tinha um ar menos mofado e submisso. Além disso, ao
contrário de “petição”, “bill” ou até “carta”, “declaração” podia significar a intenção de se apoderar da
soberania”. Cf, A invenção dos direitos humanos: uma história, p.114.
40
Uma excelente análise histórica da Revolução Gloriosa pode ser encontra no livro de Christopher Hill,
em especial nas suas terceira e quarta partes. Cf. HILL, C. The century of revolution: 1603-1714.
London: Routledge, 1980.
41
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.105.
42
Segundo Marques, é possível interpretar a carta como um contrato, como um acordo entre o monarca e
o povo: “[...] trata-se antes do termo do contrato entre o povo e o seu monarca, na linha da concepção do
duplo contrato de Pufendorf.” Direitos humanos e revolução, p.89.
214

da permanente separação de poderes43 – frente ao chefe de Estado, neste caso, frente ao


monarca.
Apesar da carta de direitos inglesa diferir das cartas de direitos posteriores,
como, por exemplo, das cartas de direitos dos EUA e das Declarações de Direitos do
Homem e do Cidadão francesas, escritas cerca de cem anos após o Bill of Rights inglês,
este foi pioneiro no sentido de proteger direitos admitidos como fundamentais, iniciando
o processo prático de limitação do poder do Estado.
O Bill of Rights, contudo, não pode ser considerado o garantidor da
liberdade religiosa; ao contrário, apesar de toda a querela religiosa que deu ensejo à
Revolução Gloriosa, da restrição do poder do Estado, e de prevenir institucionalmente a
concentração de poderes, a carta de direitos instituiu o protestantismo como religião
oficial a todos os súditos do rei.
Pode-se, por assim dizer, afirmar que a carta de direitos inglesa foi resultado
pioneiro no que diz respeito à resistência e limitação do poder absoluto do Estado;
resistência e limitação que ainda não garantiriam os direitos tradicionais de liberdade,
mas que, constituíam, assim, os primeiros passos para a consolidação de tais
reivindicações. Estas cresceriam, ganhariam força, e ainda poderiam ser verificadas no
processo de independência estadunidense e, exatos cem anos depois, no processo
revolucionário francês.

4.3.2. As Cartas de Direitos Estadunidenses

Ao menos três documentos históricos estadunidenses são relevantes para a


nossa análise, a saber, A Declaração de Direitos da Virgínia (1776), A Declaração de
Independência dos Estados Unidos da América (1776) e A Declaração dos Direitos e
Garantias da Constituição Federal Norte-Americana (1791).
A Declaração de Direitos da Virgínia (1776) foi redigida poucas semanas
antes da declaração de independência dos EUA. De autoria de George Mason, a carta de
Virgínia é a primeira e mais conhecida Declaração de Direitos das antigas treze colônias
inglesas na América do Norte 44. Composta de dezesseis artigos, essa carta de direitos
retoma e enuncia – atribuindo o status de direitos fundamentais – princípios e ideais

43
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.105.
44
Direitos humanos e revolução, p.93.
215

advogados pelas teorias jusnaturalistas e contratualistas, concedendo maior grau de


concretude ao que foi posteriormente classificado como direitos tradicionais, ou direitos
de liberdade, ou ainda, direitos de primeira geração / dimensão, a saber, o direito à vida,
e às liberdades de religião, de opinião, e de expressão.
Logo em seu primeiro artigo ela enuncia “Que todos os seres humanos são
por natureza igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos”, 45 em
clara referência às teorias do direito natural, “dos quais, quando eles entram em estado
de sociedade não podem ser por qualquer pacto privados ou despojados de sua
posteridade”, 46 na qual reconhece-se elementos das teorias contratuais, além de
enunciar, no mesmo artigo, que a vida e a liberdade são exatamente esses direitos
inatos, bem como os meios para fruí-las, a saber, os meios de aquisição e posse da
propriedade, a busca pela felicidade, e a segurança.
O segundo artigo desloca o lugar onde até então residia o centro de poder e
a figura que o detinha e o exercia: se antes o poder era concentrado no Estado e nas
figuras do monarca ou de chefes religiosos, enuncia-se agora que o poder pertence e
deriva do povo. 47
Além desses dois artigos, é possível ler no décimo segundo artigo da
Declaração a enunciação do direito de liberdade de imprensa,48 i.e., de liberdade de
opinião, e no décimo sexto o direito de liberdade de livre exercício da religião, embora
seja previsto que todos pratiquem a indulgência cristã. 49
A Carta de Virgínia reúne, assim, importantes elementos dos direitos
tradicionais de liberdade. Elementos esses que estariam presentes e seriam reivindicados
com maior radicalidade, i.e., com maior extensão e profundidade, nas cartas de direitos
posteriores, tais como a limitação dos poderes do Estado frente aos seus cidadãos – o
que significava, basicamente, impostos menores, o fim de prisões arbitrárias, e dispor de
processo legal justo –, o direito à vida, às liberdades de imprensa / opinião e de religião.

45
Cf. Direitos humanos e revolução, p.93. (“That all men are by nature equally free and independent and
have certain inherent rights”). É possível ter acesso a uma versão digital em inglês da declaração, bem
como do documento original digitalizado, no site eletrônico da George Manson’s Gunston Hall:
MASON, G. The Virginia Declaration of Rights: Final Draft, 12 June 1776. Disponível em:
http://www.gunstonhall.org/georgemason/human_rights/vdr_final.html. Acesso: 11 abril 2016.
46
Cf. Direitos humanos e revolução, p.93. (“[…] of which, when they enter into a state of society, they
cannot, by any compact, deprive or divest their posterity;”).
47
Cf. Direitos humanos e revolução, p.93. (“That all power is vested in, and consequently derived from,
the people;”).
48
Cf. Direitos humanos e revolução, p.94.
49
Cf. Direitos humanos e revolução, p.95.
216

A Declaração de Independência estadunidense foi adotada pelo Segundo


Congresso Continental ocorrido na Filadélfia em 4 de julho de 1776. O professor
Comparato faz duas observações relevantes sobre esse documento: a primeira de que (i)
tratar-se-ia da primeira vez que se decide publicar as razões de um ato de
independência, por um respeito devido às opiniões da humanidade; 50 e a segunda, de
que (ii) esse é o primeiro documento histórico “a afirmar os princípios democráticos, na
história política moderna”. 51
Nela, declara-se que todos os homens nascem iguais e são dotados de
direitos inatos e inalienáveis: vida, liberdade, e busca pela felicidade.52 É possível notar,
ao menos, o alinhamento com dois aspectos constantes na Declaração de Virgínia, a
saber, que o governo é instituído para garantir os direitos naturais dos indivíduos, e que
a nova legitimidade política não está centrada nos monarcas ou nos chefes religiosos,
mas na soberania popular, i.e., o povo é o detentor e centro do poder, e essa soberania
popular está assentada justamente nos direitos inalienáveis citados acima. Ou seja, a
soberania popular repousa no direito à vida, na liberdade e na busca pela felicidade.
Nesse sentido, é importante notar como também a Declaração de
Independência dos EUA assume os princípios teóricos do jusnaturalismo, das ideias
políticas predominantes e norteadoras do período. Deve-se atentar, também, para o fato
de que na Declaração de Independência não foi incluída uma declaração de direitos
fundamentais do cidadão,53 uma vez que tal tipo de declaração já constava nas
Constituições estaduais as declarações de direitos, salvo na Constituição de Nova
York. 54
Em 1789 foi apresentada uma proposta de emenda constitucional aditiva
para que se anexasse à Constituição em âmbito federal uma declaração de direitos com
outros doze artigos, os quais comporiam uma emenda constitucional cada um. Dois
desses artigos não foram aprovados por três quartos dos Estados, e em 15 de dezembro

50
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.118.
51
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.117-118.
52
“A importância histórica da Declaração de Independência está justamente aí: é o primeiro documento
político que reconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes a
todo ser humano, independentemente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social.”
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.119.
53
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.132. Sobre as razões da Declaração de Independência não
possuir uma declaração de direitos Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.132-137.
54
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.133.
217

de 1791 foi proclamada a adição das dez emendas aprovadas pelas duas casas
legislativas à Constituição Federal dos EUA.
A primeira emenda constitucional enuncia a não interferência do Estado –
não promulgando leis que estabeleçam ou que proíbam o livre exercício de cultos
religiosos – em relação à liberdade de opinião/expressão e de imprensa, e à liberdade de
reunião e de petição;55 a sexta emenda enuncia a garantia de um julgamento justo, i.e., a
pessoa acusada teria direito a um julgamento público, um júri imparcial, o direito de ser
informado sobre a natureza e a causa da acusação, de ser acareada com as testemunhas
de acusação, do comparecimento de testemunhas de defesa, e de ser representada por
um advogado designado para a sua defesa. 56
As nona e décima emendas enunciam os direitos inerentes ao povo que não
podem ser negados, uma espécie de garantia do asseguramento de direitos naturais
contra direitos legais quando esses se encontram em conflito,57 e da reafirmação dos
poderes reservados aos Estados e ao povo. 58
O que é interessante notar nos documentos estadunidenses de acordo com o
nosso recorte de investigação e análise? Em primeiro lugar, é possível constatar o acerto
de Bobbio ao verificar a influência das teorias filosóficas que predominavam no período
na confecção das duas cartas e da declaração;59 em segundo lugar, a limitação do poder
Estatal e da mudança do centro desse poder, ao enunciar que todo poder emana do povo;
em terceiro lugar, que essas declarações de direitos consideram os direitos naturais e
atribuem a eles, através da positivação – de transformá-los em direitos postos, direitos
legais –, o status de direitos fundamentais, i.e., de direitos básicos reconhecidos pelo
Estado; 60 como consequência direta desse terceiro aspecto, pode-se afirmar que foi
inaugurada, assim, a própria concepção de Constituição nos moldes como a
entendemos, i.e., como uma série de direitos acima da legislação ordinária;61 e, em

55
Cf. Direitos humanos e revolução, p.97.
56
Cf. Direitos humanos e revolução, p.99.
57
Cf. Direitos humanos e revolução, p.99.
58
Cf. Direitos humanos e revolução, p.100.
59
Comparato aponta como principais fontes filosóficas dos documentos apresentados aqui as teorias de
John Locke, Jean-Jacques Rousseau, e Montesquieu. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos,
p.124. Bobbio reconhece, ao menos, a grande influência de Locke. Cf. L'età dei diritti.
60
Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.124.
61
Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.124.
218

quarto lugar, que as declarações de direitos estadunidenses são, essencialmente,


declarações de direitos individuais. 62
Os direitos declarados nesses documentos enunciam direitos nos âmbitos da
liberdade e da igualdade – e aqui deve-se frisar, trata-se de uma igualdade meramente
formal.63 Em nenhum dos artigos da Declaração de Direitos ou da Declaração de
Independência abordou-se direitos que poderiam ser considerados como direitos
coletivos – os quais seriam classificados posteriormente, seguindo o lema do processo
revolucionário francês, como direitos de fraternidade. Apesar de as declarações
estadunidenses possuírem forte viés individualista, e, em momento algum fazerem
referência a direitos de fraternidade / coletivos tal como as cartas e declarações
francesas que exprimiam a fraternidade como um de seus principais lemas, é possível
afirmar que o processo francês foi mais individualista que o estadunidense. As cartas e
declarações de ambos os países exprimiam noções essencialmente individualistas, mas
enquanto as cartas estadunidenses referiam-se diretamente à finalidade da associação
política, relacionando os direitos individuais ao bem comum da sociedade, os
constituintes franceses afirmavam primária e exclusivamente os direitos dos
indivíduos. 64 É nesse contexto que passamos, pois, à análise das Cartas de Direito
resultantes do processo revolucionário francês.

4.3.3. As Cartas de Direito Resultantes do Processo Revolucionário

Francês65

O processo revolucionário francês produziu ao menos quatro cartas de


direitos que merecem um olhar mais atento de nossa parte 66: são elas (i) A Declaração

62
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.123.
63
Hunt aponta claramente esse fenômeno, tanto na Declaração de Independência estadunidense, quanto
na Declaração francesa de 1789: “A igualdade, a universalidade e o caráter natural dos direitos ganharam
uma expressão política direta pela primeira vez na Declaração da Independência americana de 1776 e na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.” A invenção dos direitos humanos: uma
história, p.19.
64
Cf. L'età dei diritti, p.98.
65
A bibliografia sobre o processo revolucionário francês é demasiadamente extensa. Restringimo-nos a
indicar a leitura de dois textos: Cf. O terceiro capítulo de HOBSBAWM, E. A era das revoluções: 1789-
1848. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013; e Cf. TOCQUEVILLE, A. O antigo regime e a
revolução. Brasília; São Paulo, SP: UnB: Hucitec, 1989.
219

dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789, (ii) A Declaração de


Direitos da Constituição de 1791, (iii) A Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão da Constituição Francesa de 24 de Julho de 1793, e a (iv) Declaração dos
Direitos e dos Deveres do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 22 de
agosto de 1795.
A Declaração de 1789, apesar de marcadamente adotar o ponto de vista
individual e não coletivo, i.e., partir da consideração do ser humano considerado
singularmente, é dirigida não apenas aos franceses, mas ao gênero humano como um
todo. Como bem recorda Bobbio ao citar Tocqueville, a Revolução Francesa foi uma
revolução política que operou como uma revolução religiosa,67 uma vez que ela tinha
como objetivo reformar todo o gênero humano e de fundar um novo mundo, o qual,
como observou Comparato, não seria simplesmente a sucessão de um mundo antigo,
mas a construção de novas relações que se opunham radicalmente a ele. 68 Não era
apenas questão de suceder um regime que estava minguando e em decadência, de
ocupar os espaços deixados pelo Antigo Regime (Ancien Régime), mas de apresentar-se,
de colocar-se, e de realizar-se como a causa e o motivo da destruição e do solapamento
desse regime. 69
Algumas das transformações engendradas pelo processo revolucionário
francês como forma de contraposição ao Antigo Regime foram pequenas, outras
lograram produzir impactos muito mais acentuados. Algumas foram breves, i.e., tiveram
curta duração – como a adoção de um novo calendário que aboliu o calendário cristão;
outras foram duradouras – como a adoção do sistema métrico decimal.
Considerada a partir da perspectiva histórica, a Revolução Francesa foi, de
fato, um marco incontornável da história ocidental, justamente por fomentar e

66
Para uma análise mais abrangente Cf. o quinto capítulo de Afirmação histórica dos direitos humanos,
p.140-178.
67
“[...] a Revolução francesa foi uma revolução política que tinha operado como as revoluções religiosas
[...] porque ‘parecia ter como objetivo a regeneração do gênero humano, mais do que a reforma da
França.” TOCQUEVILLE, A. L’acien regime et la révolution. In: Œuvres complètes. Tomo II. Paris,
1952, p.89 apud L'età dei diritti, p. 112. O excerto, tal como reproduzido por Bobbio, é grafado da
seguinte forma: “[...] la Rivoluzione francese era una rivoluzione politica che aveva operato come le
rivoluzioni religiose, […] perché ‘sembrava tendere alla rigenerazione del genere umano, più ancora che
alla riforma della Francia.”
68
Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.142.
69
“[...] a Revolução Francesa, desde logo, apresentou-se não como a sucessora de um regime que
desaparecia por morte natural, mas como a destruidora voluntária do regime antigo por morte violenta.”
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.144.
220

desencadear uma série de consequências políticas, jurídicas e sociais – as quais foram


ganhando força e amplitude a partir das teorias filosóficas disseminadas; 70
consequências que foram sentidas e que reverberaram por séculos – se é possível negar
que os seus efeitos ainda são sentidos. O processo francês também inaugurou um novo
sentido para a palavra “revolução”: 71 não mais como uma espécie de volta às origens,
tal como empregada pelos então falantes de língua inglesa para a palavra revolution,
utilizada no sentido político e não mais apenas astronômico pela primeira vez para se
referir à restauração monárquica de 1660 72 – e daí o sentido mais próximo ao seu
significado primevo, i.e., de executar um movimento circular ou elíptico de retorno a
uma posição original –, mas como o marco de uma renovação completa e profunda,
nesse caso, das instituições políticas, jurídicas, sociais, na qual é observada a
reconfiguração dessas instituições e de suas estruturas.
Em dois de seus artigos do livro L’età dei diritti, 73 Bobbio apresenta
ponderações sobre estudos que suscitaram a polêmica e o debate sobre qual carta de
direitos – dentre as cartas dos EUA e de França – seria superior. Ainda segundo o autor,
não seria possível paragonar de modo preciso os eventos estadunidense e francês, dado
que o primeiro estava voltado à resolução de suas próprias dificuldades políticas, i.e., de
lidar com as questões implicadas de seu próprio regime político, e o segundo pretendia
pôr fim a um regime político inteiro, levando a liberdade a todos os povos. Entre as
disputas de juízos de fato, juízos de valor, entre a superioridade moral e a superioridade
política dos dois processos, Bobbio afirma que é possível discutir o conteúdo das cartas,
mas que deve-se considerar que existe um fator incontestável em toda essa disputa, a
saber, que as teorias filosóficas europeias influenciaram os revolucionários
estadunidenses,74 e que, por sua vez, a estratégia estadunidense em promulgar cartas de

70
Hunt aponta também o romance como importante veículo de disseminação de ideias e ideais: “O
romance exerce o seu efeito pelo processo de envolvimento na narrativa, e não por discursos
moralizadores explícitos.” Cf, A invenção dos direitos humanos: uma história, p.56.
71
Do latim, revolutio, e, em francês, révolution.
72
Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.140.
73
Tais ponderações podem ser encontradas nos artigos La Rivoluzione Francese e i diritti dell’uomo (A
Revolução Francesa e os direitos do homem) e L’eredità della grande Rivoluzione (A herança da grande
revolução). Cf. L'età dei diritti, p.89-142.
74
Como atenta Comparato ao citar Carl J. Richard “os líderes revolucionários procuraram substituir, a
uma sociedade dominada por uma aristocracia de nascimento, uma sociedade dirigida por uma
aristocracia de mérito. No século XVIII, mérito significava cultura – e cultura significava conhecimento
dos clássicos.” (RICHARD, C. The founders and the classics: Greece, Rome, and the american
englightenment. Harvard University Press, 1996, p.51 apud Afirmação histórica dos direitos humanos,
p.118). Além de conhecer os clássicos, os Pais Fundadores dos EUA também conheciam bem os textos de
221

direitos influenciou diretamente os franceses. 75 Bobbio pode fazer tal afirmação porque
é bem sabido que La Fayette, militar francês considerado um herói do processo de
independência estadunidense, foi um dos responsáveis pela apresentação do primeiro
projeto da Declaração Francesa, sob a orientação e aconselhamento de Thomas
Jefferson – envolvido diretamente na redação do documento estadunidense, sendo ele
um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos –, então embaixador dos EUA em Paris. 76
Dentro da tensão estabelecida entre (i) resolver e se resguardar de questões
relativas ao ordenamento político do Antigo Regime e (ii) de lançar as bases para um
novo mundo vindouro, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é
redigida e promulgada. Tal tensão é bem descrita na seguinte passagem:

Ela [Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789] representa,


por assim dizer, o atestado de óbito do Ancien Régime, constituído pela
monarquia absoluta e pelos privilégios feudais, e, neste sentido, volta-se
claramente para o passado. Mas o caráter abstrato e geral das fórmulas
empregadas, algumas delas lapidares, tornou a Declaração de 1789, daí em
diante, uma espécie de carta geográfica fundamental para a navegação
política dos mares do futuro, uma referência indispensável a todo projeto de
constitucionalização dos povos. 77

Essa não era a única tensão existente nessa carta de direitos. É possível
também notar a amplitude desejada por ela, já apontada acima, do caráter universal, ao
referir-se ao gênero humano 78 – a carta se refere aos Homens (Homme), mas o termo
abarcaria os dois sexos biológicos –, e o seu caráter particular / nacional, ao referir-se
aos direitos políticos de cada um dos cidadãos do Estado francês. Trata-se de um

John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, teóricos de extrema importância para ambos os
processos históricos e para ambas as cartas de direitos, estadunidense e francesa (Cf. Afirmação histórica
dos direitos humanos, p.162). E Hunt escreve: “Grotius, Pufendorf e Burlamaqui eram todos bem
conhecidos dos revolucionários americanos, como Jefferson e Madison, que eram versados em direito.”
(Cf., A invenção dos direitos humanos: uma história, p.119).
75
Enquanto Bobbio é mais cauteloso, apresentando apenas ponderações sobre estudos que avaliam as
relações de influência entre os dois casos, entre aqueles que defendem e aqueles que negam a influência
direta do processo estadunidense no processo francês, Comparato defende a primeira hipótese, em
especial por conta do fato de que as Declarações, sobretudo a do Estado de Virgínia, haviam sido
traduzidas para o francês e contavam com várias edições. Cf. L'età dei diritti, p.89-141; Cf. Afirmação
histórica dos direitos humanos, p.160.
76
Cf. L'età dei diritti, p.122-123.
77
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.163.
78
“Primeiro documento de direitos humanos a falar na ideia do universal ético: a Declaração de Direitos
do Homem e do Cidadão na França, de 1789.” MEDEIROS, A. Direito internacional dos direitos
humanos na América Latina: uma reflexão filosófica da negação da alteridade. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juirs, 2007, p.15.
222

documento cuja pretensão é, ao mesmo tempo, de caráter universal, de caráter nacional,


e que possui como base teórica a perspectiva dos direitos individuais.
Composta por dezessete artigos, logo no preâmbulo da Declaração de 1789
é possível verificar o peso que as teorias jusnaturalistas exercem também no processo
francês e a ambivalência de escopo citada acima: a corrupção governamental e os
problemas e as mazelas da vida em comunidade estão estritamente relacionados à
ignorância, ao esquecimento, e ao desprezo dos direitos naturais do ser humano. É tarefa
dessa Declaração explicitar quais seriam esses direitos e quais seriam os deveres e
obrigações que eles engendram entre governo e governados; direitos e deveres os quais
serviriam para os cidadãos franceses – para os quais ela possuiria valor legal – e,
também, a todo o gênero humano:

Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia nacional,


considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do
homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos
governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais,
inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração
constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes recorde
sem cessar os seus direitos e os seus deveres. 79

No preâmbulo nota-se, também, a enunciação da separação dos poderes 80


segundo a difundida tese de Montesquieu. No primeiro artigo estão grafados os valores
de liberdade e da igualdade formal perante as leis. Dois dos ideais pertencentes à
famosa tríade “liberdade, igualdade e fraternidade” (Liberté, Égalité, Fraternité),
aparecem já aqui: a liberdade e a igualdade. E ambos são diretamente deduzidos de
teorias dos direitos naturais e das teorias contratualistas.
E é precisamente no segundo artigo que temos a menção às teorias
contratualistas: “O objectivo de qualquer associação política é a conservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a

79
Direitos humanos e revolução, p.101. (« Les Représentants du Peuple Français, constitués en
Assemblée Nationale, considérant que l'ignorance, l'oubli ou le mépris des droits de l'Homme sont les
seules causes des malheurs publics et de la corruption des Gouvernements, ont résolu d'exposer, dans une
Déclaration solennelle, les droits naturels, inaliénables et sacrés de l'Homme, afin que cette Déclaration,
constamment présente à tous les Membres du corps social, leur rappelle sans cesse leurs droits et leurs
devoirs ; »).
80
Cf. Direitos humanos e revolução, p.102. Apesar da declaração de separação dos poderes, essa não foi
rigidamente observada. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.148.
223

propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.81 O termo associação possui


conotação que remete claramente ao âmbito da política, referindo-se a uma convenção
derivada de um ato de vontade, podendo ser, desse modo, entendido e relacionado, por
assim dizer, à forma empírica da ideia de contrato. A associação política tem como
finalidade a conservação dos direitos naturais, quais sejam, a liberdade, a propriedade, a
segurança e a resistência à opressão.
Nesse segundo artigo é possível observar, também, o tensionamento entre
lançar as bases do novo e vindouro, e resolver pendências com o regime anterior;
enquanto os direitos naturais de liberdade, propriedade, e segurança podem ser
entendidos como os direitos que serão os alicerces do novo, o direito de resistência
aparece como um recurso a ser utilizado em casos extremos, quando um dos outros três
direitos naturais é violado, e, acima de tudo, como uma justificativa póstuma ao
abatimento do Antigo Regime. 82 A tutela do direito de resistência pelo Estado em
última instância consistiria no Estado ter de decidir agir ou se omitir em questões que
dizem respeito ao próprio exercício de seu poder, i.e., o Estado deveria agir contra si
próprio, constituindo uma relação que é por si mesma contraditória. Nesse sentido, a
enunciação do direito de resistência serve muito mais como uma justificativa aos fatos
já consumados da ruptura e queda do regime anterior, e de precaução e temor de um
novo levante aristocrático, do que efetivamente um direito de fato. Pode-se ler nas
palavras de Bobbio:

De forma estritamente lógica, nenhum governo pode garantir o exercício do


direito de resistência, que se manifesta precisamente quando o cidadão não
reconhece mais a autoridade do governo, e o governo por sua vez não tem
mais nenhuma obrigação para com ele. Com uma possível alusão a esse
artigo, Kant dirá que, “para que o povo seja autorizado à resistência, deveria
existir uma lei pública que a permitisse”; mas uma tal disposição seria
contraditória porque no momento em que o soberano admite a resistência
contra si próprio, ele renuncia a sua própria soberania e o súdito torna-se
soberano em seu lugar. Não é possível que os constituintes não tivessem
percebido a contradição. Mas, como explica Georges Lefebvre, a inserção do
direito de resistência entre os direitos naturais devia-se à recordação imediata
do 14 de julho e ao temor de um novo assalto aristocrático, e, portanto, não
era outra coisa além de uma justificação póstuma da luta contra o Antigo
Regime. 83

81
Direitos humanos e revolução, p.102 (« Le but de toute association politique est la conservation des
droits naturels et imprescriptibles de l'Homme. Ces droitssont la liberté, la propriété, la sûreté, et la
résistance à l'oppression. »).
82
Cf. L'età dei diritti, p.134-135.
83
L'età dei diritti, p.107-108. No original italiano: “A stretto rigore di logica, nessun governo può
garantire l’esercizio del diritto di resistenza, che insorge proprio quando il cittadino non riconosce più
l’autorità del governo, e il governo a sua volta non ha più alcun obbligo verso di lui. Con una possibile
224

É no quarto artigo que finalmente encontramos uma definição para o termo


liberdade e no que ele consiste, embora tal definição seja ampla e não se refira a
nenhum tipo de liberdade em específico:

A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique o


próximo: assim o exercício dos direitos naturais de cada homem tem como
únicos limites aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o
usufruto desses mesmos direitos. 84

Dos artigos quinto ao nono tem-se as especificações de igualdade formal


perante a lei; o décimo artigo refere-se à liberdade de culto religioso; o décimo primeiro
artigo refere-se à liberdade de opinião e imprensa; do décimo segundo ao décimo sexto
artigos enuncia-se a necessidade de uma autoridade institucional – o Estado – que possa
regular e assegurar os direitos dos indivíduos nas relações livremente concebidas entre
eles; o décimo sétimo artigo pode ser apontado como aquele que justifica a designação
do processo revolucionário francês como um processo burguês: trata-se do “direito
inviolável e sagrado” de propriedade. 85
Na primeira parte da Declaração de Direitos da Constituição de 1791 –
Título Primeiro: Disposições fundamentais garantidas pela Constituição –, a qual teve

allusione a questo articolo, Kant dirà che “affinché il popolo sia autorizzato alla resistenza, dovrebbe
esserci una legge pubblica che la permettesse”, ma una tale disposizione sarebbe contraddittoria perché
nel momento in cui io sovrano ammette la resistenza conto di sé rinuncia alla propria sovranità e il
suddito diventa sovrano al posto suo. Non è possibile che i costituenti non si rendessero conto della
contraddizione. Ma, come spiega Georges Lefebvre, l’inserimento del diritto di resistenza fra i diritti
naturali era dovuto al ricordo immediato del 14 luglio e al timore di un nuovo assalto aristocratico, e
quindi non era altro che la giustificazione postuma della lotta contro l’Antico Regime.”
Bobbio repete de forma atenuada tal tese no capítulo sucessivo de seu livro: “Rigorosamente, nenhum
governo pode garantir o exercício de um direito que se manifesta precisamente no momento em que a
autoridade do governo falha, e entre Estado e cidadão se instaura não mais uma relação de direito, mas
sim uma relação de fato, na qual vigora o direito do mais forte. Os constituintes haviam tomado plena
consciência da contradição. Mas, como explica Georges Lefebvre, a inserção do direito de resistência
entre os direitos naturais devia-se ao temor de um novo assalto aristocrático e, portanto, não era mais do
que a justificação póstuma da derrubada do Antigo Regime.” L'età dei diritti, p.134-135. No original
italiano: “A stretto rigore, nessun governo può garantire l’esercizio di un diritto che insorge proprio nel
momento in cui l’autorità del governo vien meno e tra stato e cittadino s’instaura un rapporto non più di
diritto ma di fatto, in cui vige il diritto del più forte. I costituenti si erano resi perfettamente conto della
contraddizione. Ma, come spiega Georges Lefebvre, l’inserimento del diritto di resistenza fra i diritti
naturali era dovuto al timore di un nuovo assalto aristocratico, e quindi non era altro che la giustificazione
postuma dell’abbattimento dell’antico regime.”
84
Direitos humanos e revolução, p.102. (« La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à
autrui : ainsi, l'exercice des droits naturels de chaque homme n'a de bornes que celles qui assurent aux
autres Membres de la Société la jouissance de ces mêmes droits »).
85
Cf. Direitos humanos e revolução, p.104.
225

como preâmbulo a própria Declaração de 1789, é possível constatar a obstinação em


findar com o Antigo Regime, explícita na repetição e insistência das garantias de
liberdade e de igualdade provenientes do direito natural e do contratualismo, e na
garantia de que as leis, por um lado, não poderiam obstruir o exercício do direito
natural, e, por outro, deveriam punir aqueles que atacam os direitos alheios e a
segurança pública. 86 Nela também aparecem as primeiras indicações dos direitos
sociais, no tocante à instrução, à saúde, e ao trabalho:

Será criado e organizado um estabelecimento geral de Assistência Pública,


para educar as crianças abandonadas, ajudar os enfermos pobres e fornecer
trabalho aos pobres válidos que não tenham podido encontrá-lo.
Será criada e organizada uma instrução pública comum a todos os cidadãos,
gratuita no que concerne às partes do ensino indispensáveis a todos os
homens; seus estabelecimentos serão distribuídos gradualmente, numa
proporção adequada à divisão do reino [...]. 87

Por conta de fatores externos e internos – como a Guerra de Primeira


Coalizão, o fim da monarquia, e a instituição do regime republicano, decidido por
unanimidade em 1792 pela Assembleia Constituinte, a qual era agora chamada de
Convenção, 88 e que fora convocada pela Assembleia Legislativa –, a vigência da
Constituição de 1791 fora revogada. O impasse se dava agora entre o grupo que
defendia a primazia dos direitos individuais sobre os direitos sociais, chamados
girondinos, e o grupo liderado por Robespierre, os jacobinos, os quais objetavam o
caráter inviolável da propriedade privada e a preponderância dos direitos sociais sobre
os direitos individuais. Nesse contexto de disputa, chegou-se à redação final do texto da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 24 de
Junho de 1793, composta por um pequeno preâmbulo e trinta e cinco artigos.
No preâmbulo é enunciado a função de uma Constituição: ela deve servir,
em primeiro lugar, como as declarações precedentes afirmavam, para evitar o
esquecimento do que são os direitos naturais, o qual era considerado a grande causa das
mazelas sociais; em segundo lugar, como forma do cidadão poder valorar e comparar os

86
Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.173.
87
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.173. (« Il sera créé et organisé un établissement général de
Secours publics, pour élever les enfants abandonnés, soulager les pauvres infirmes, et fournir du travail
aux pauvres valides qui n'auraient pu s'en procurer.
Il sera créé et organisé une Instruction publique commune à tous les citoyens, gratuite à l'égard des parties
d'enseignement indispensables pour tous les hommes et dont les établissements seront distribués
graduellement, dans un rapport combiné avec la division du royaume […] »).
88
Segundo Comparato, a mudança de nomenclatura deu-se por influência do processo estadunidense. Cf.
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.166.
226

direitos naturais que ele possui enquanto ser humano com as medidas governamentais,
podendo, dessa forma, avaliar se as ações governamentais às quais está submetido são
justas.
Em geral, apesar da grande disputa entre girondinos e jacobinos, a
Constituição de 1793 não apresentou grandes mudanças em relação às cartas
precedentes. O primeiro artigo enuncia que o objetivo da sociedade é a felicidade
comum, e essa só pode ser atingida mediante a garantia dos direitos naturais;89 o
segundo artigo enuncia quais seriam esses direitos: a igualdade, a liberdade, a segurança
e a propriedade90 – tais como nas cartas precedentes;91 os artigos de número três,
quatro, e cinco enunciam a igualdade perante a lei e perante a carreira: as profissões
estão abertas ao talento, abolindo qualquer tipo de privilégio de hereditariedade; 92 o
sexto artigo apresenta a famosa fórmula, contida já nas cartas precedentes – mas sem a
formulação que seria consagrada no imaginário popular –, da liberdade: “não faças ao
próximo o que não queres que te façam a ti”. 93
O sétimo artigo reafirma a liberdade de opinião, imprensa, e de culto; 94 o
décimo quinto artigo estipula a proporcionalidade da pena;95 o décimo oitavo artigo
posiciona-se contra a possibilidade de um ser humano vender-se ou ser vendido, 96 i.e.,
existe um posicionamento explícito contra a escravidão; os vigésimo primeiro e o
vigésimo segundo artigos enunciam direitos sociais, tanto no que se refere ao assegurar
trabalho e assistência àqueles que não podem trabalhar, quanto ao que se refere à
instrução;97 o vigésimo quinto artigo enuncia que a soberania reside no povo. 98
O vigésimo oitavo artigo é um tanto peculiar no que ele enuncia: “Um povo
tem permanentemente o direito de rever, de reformar e de modificar a sua Constituição.
Uma geração não pode submeter às suas leis as gerações futuras”. 99 Se os direitos

89
Cf. Direitos humanos e revolução, p.105.
90
Interessante observar que o conceito de igualdade fora colocado à frente – pela primeira e única vez nas
redações das cartas francesas – do conceito de liberdade.
91
Cf. Direitos humanos e revolução, p.105.
92
Cf. Direitos humanos e revolução, p.106.
93
Direitos humanos e revolução, p.106. (« Ne fais pas à un autre ce que tu ne veux pas qu'il te soit fait »).
94
Cf. Direitos humanos e revolução, p.106.
95
Cf. Direitos humanos e revolução, p.107.
96
Cf. Direitos humanos e revolução, p.107.
97
Cf. Direitos humanos e revolução, p.107.
98
Cf. Direitos humanos e revolução, p.108.
99
Cf. Direitos humanos e revolução, p.108. (« Un peuple a toujours le droit de revoir, de réformer et de
changer sa Constitution. Une génération ne peut assujettir à ses lois les générations futures »).
227

naturais são o fundamento e a base de uma Constituição, e se os direitos naturais são


admitidos como universais, imutáveis, válidos em si e por si, tal como formulado pelos
teóricos jusnaturalistas, como é possível consentir a afirmação de tal artigo, i.e., como é
possível assentir a possibilidade de que as leis possam ser variáveis entre as gerações?
Para responder a tal questão, pode-se aventar duas hipóteses: (i) tal artigo teria a função
de resguardar as futuras gerações e de justificar – tal como feito anteriormente – ações e
eventos ocorridos durante o processo revolucionário, e (ii) as Constituições devem ser
ajustadas e aperfeiçoadas para que possam se aproximar mais e mais do conteúdo
preciso dos direitos naturais; o problema permanece, contudo, na segunda parte do
artigo, a qual permite interpretar que a base das leis, i.e., o direito natural, pode não ser
permanente e constate.
Os trigésimos terceiro, quarto, e quinto artigos afirmam, mais uma vez, o
direito de resistência à opressão, seja ela praticada contra o corpo social, seja ela
praticada pelo governo.
Contudo, novamente os rumos da história afetam a Carta Constitucional: em
decorrência das guerras contra potências monárquicas, a Constituição de 1793 não
chegou nem mesmo a ser aplicada, dando lugar, em teoria, a um governo dito
republicano, o qual deveria durar enquanto durassem as guerras. Na prática, entretanto,
inaugurou-se o período que ficou conhecido por “Terror” (1793-1794), o qual foi
marcado pela perseguição e assassinato dos adversários políticos dos jacobinos. O clima
político levou à promulgação de uma nova Carta de Direitos em 22 de agosto de 1795, a
Declaração dos Direitos e dos Deveres do Homem e do Cidadão da Constituição
Francesa.
Contando com a inovação de ser dividida em duas seções, a Declaração é
fracionada entre Direitos – são vinte e dois artigos – e Deveres – outros nove artigos –,
totalizando trinta e um artigos, os quais, em relação às cartas precedentes, podem ser
entendidos como expressão da reação liberal à participação popular, na medida em que
é possível notar um certo recuo das demandas dessa Declaração no confronto com as
outras cartas francesas. Essa pode ser entendida como a declaração de direitos que
revela e explicita de forma mais aberta posicionamentos que justificam a interpretação
do processo revolucionário francês como uma revolução burguesa.
Dentre as alterações mais chamativas e destoantes, além da divisão do texto
em direitos e deveres, constata-se a supressão de qualquer referência aos direitos sociais
228

(trabalho, instrução, e saúde), ao direito de resistência à opressão, à liberdade de


opinião, à liberdade de expressão e de culto, a mudança do conceito de soberania – a
qual não mais reside no povo, mas “essencialmente na universalidade dos cidadãos” 100
–, a amplitude e potência que o direito de propriedade adquire, e o reforço dos
mecanismos de separação dos Poderes estatais.
Os Deveres aparecem como instrumento de limitação dos direitos daqueles
que não pertenciam à classe social que mais se beneficiou de todas essas mudanças e
conquistou a soberania política, conseguindo firmar-se na nova posição ocupada, a
burguesia.
É possível avaliar, então, as mudanças desencadeadas pelas teorias
filosóficas concebidas nesse período – encampadas principalmente pelo jusnaturalismo
moderno e pelas teorias contratuais – e que, como apontado, emergiram de forma mais
clara e ganharam concretude com as declarações e cartas de direito.

4.4. As Principais Mudanças Político-Sociais Engendradas pelos

Movimentos Revolucionários estadunidense e francês

Esse intenso processo de mudanças, iniciado lentamente no que


convencionou-se chamar de era moderna com as primeiras teorias que inauguraram o
jusnaturalismo moderno e o contratualismo e consolidado nas cartas de direitos
promulgadas pelos movimentos revolucionários, produziu e aprofundou rupturas que
transformariam as relações políticas e a organização social de modo profundo. O
pensamento político clássico, como apontado, assume e trata as relações políticas como
relações desequilibradas, desiguais, assimétricas:101 relações entre governante e
governados, dominador e dominados, príncipe e o povo, soberano e súditos, Estado e
cidadãos.102 São várias as metáforas que ao longo da história do pensamento político
assinalam essa assimetria: o governante representado como pastor e os governados

100
Direitos humanos e revolução, p.112. (« La souveraineté réside essentiellement dans l'universalité des
citoyens »).
101
Para Bobbio, “o tipo ideal de relação assimétrica é a ordem do soberano que instaura uma relação
comando-obediência.” BOBBIO, N. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira.
São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.111. Doravante abreviado por O futuro da democracia, seguido de
indicação de página.
102
Cf. L'età dei diritti, p.124.
229

como o seu rebanho; o governante como timoneiro e os governados como chusma – e,


como parte da metáfora, recorrentemente tal assimetria é reforçada com o fato de que
quando a chusma crê ser capaz de controlar a embarcação, ela naufragar; o governante
representado como um pai severo, porém zeloso e bom, ao qual os governados, filhos,
devem a ele uma obediência quase cega. 103 Esse modelo de Estado – que podemos
chamar de paternalista – considera os seus súditos como eternos menores, 104 e
justamente por isso justifica sua própria existência e a amplitude de seu poder.
A concepção de Estado absoluto ou despótico é extremamente compatível
com a concepção de sociedade orgânica, a qual, como visto, fornece as condições de
possibilidade para a preponderância do âmbito coletivo frente ao âmbito individual, i.e.,
a concepção coletivista de sociedade frente a concepção individualista. Dado que a
sociedade é um organismo, no qual as partes só possuem sentido e significado em
relação ao todo, e que, justamente por isso, nela não se nasce igual nem livre, os deveres
dos súditos e governados perante o corpo político são centrais para o bom
funcionamento do corpo político, um corpo político no qual sociedade civil e Estado
não estão dissociados.
Com as teorias jusnaturalistas e contratualistas105 a forma pela qual a
sociedade está organizada e suas estruturas são colocadas lentamente em xeque: a visão
de sociedade como um organismo é gradualmente deixada de lado para dar lugar a tese
da sociedade como um construto humano, e isso significa, consequentemente, que
também o Estado seria uma dessas construções. E, a partir dessas novas premissas,
dessa nova perspectiva de explicar a sociedade e o poder político, é possível afirmar que
no paradigma de sociedade orgânica, i.e., no paradigma que justifica o funcionamento
dos Estados absolutistas e despóticos, quanto mais poder um indivíduo possui no
interior de uma organização de tal tipo, ou seja, quanto mais sofisticada ou importante é
sua função e posto que ocupa no corpo político, mais livre ele é, menos o Estado
interfere na sua vida, tanto menos ele deve prestar contas aos demais concidadãos em
situação hierárquica inferior. Na prática tal evento era traduzido empiricamente em

103
Cf. L'età dei diritti, p.125.
104
Cf. L'età dei diritti, p.125.
105
Se Bobbio localiza o tipo ideal de relação assimétrica na ordem do soberano que instaura uma relação
de comando-obediência, ele enxerga no contrato a representação do tipo ideal de relação simétrica,
“fundada no princípio do ut des.” O futuro da democracia, p.111. Do ut des, Dou para que tu dês, é a
expressão que sintetiza a norma de contrato oneroso bilateral.
230

códigos de leis diversos conforme o estamento / classe social do indivíduo, ou seja, na


ausência da igualdade formal entre os membros da sociedade.
Com as teses da artificialidade da sociedade e do direito natural tornou-se
possível solapar as concepções que sustentavam as relações de poder estabelecidas e
constituídas até então. E, ao desmontá-las, erigiam novas possibilidades e alterava-se a
estrutura e o funcionamento da sociedade. As teorias do direito natural auxiliaram nos
confrontos e no fazer frente ao poder do Estado, limitando o seu poder e alcance; as
teorias contratuais, por sua vez, serviram como base para confrontar as divisões, a
imobilidade e as prerrogativas sociais que representavam obstáculos à consolidação da
igualdade formal.
As consequências mais relevantes desse processo, aquelas mais
recorrentemente apontadas pelos estudiosos que se ocupam do tema e do período,
transformaram profundamente a organização social e política, criando as condições de
possibilidade para o nascimento das formas de governo que vieram a se desenvolver e
constituir os modelos de Estado e Democracia que conhecemos atualmente.
Com a atribuição de direitos inatos a cada um dos indivíduos componentes
da sociedade, i.e., ao assumir que cada indivíduo é portador de direitos naturais,
subverte-se e desloca-se a primazia da esfera coletiva para a esfera individual, porque é
operada, assim, a mudança dos sujeitos de direito: não mais o Estado outorga direitos
aos seus membros – não é mais o Estado que detém o poder de conceder liberdades aos
seus membros –, mas ele apenas deve reconhecer e garantir os direitos que cada um dos
indivíduos que compõe a sociedade é portador – e isso significa que as liberdades dos
indivíduos são justificadas pelo direito natural e que elas garantem o poder do Estado. O
Estado que antes desenvolvia um papel positivo, no sentido de outorgar e conceder
liberdades, assume o papel negativo, de apenas garantir as liberdades que são inerentes
a cada um dos indivíduos.
Não se trata apenas de exercer o controle político do Estado, mas também de
resguardar-se dos mandos e desmandos dele e, principalmente, proteger-se de uma
possível restauração conservadora, como no caso de França resguardar-se do Antigo
Regime. A forma de resguardar-se dos abusos do poder estatal é justamente o
asseguramento da igualdade formal, o que ocorre mediante a subordinação de todos os
membros componentes da sociedade às mesmas leis, i.e., que todo indivíduo possua os
231

mesmos direitos, os mesmos deveres, esteja sujeito às mesmas normas, sanções, e seja
salvaguardado por um julgamento justo.
Com a alteração da primazia de perspectiva social ao individualismo e com
o asseguramento da igualdade formal, alteram-se, também, a finalidade e a função do
Estado. Não é mais o Estado que deve organizar, atribuir funções, e dar sentido à vida
dos indivíduos, mas ele passa a ser ordenado e orientado pela vontade desses
indivíduos, mais precisamente pelo grupo social que assumiu a hegemonia política e
obteve os maiores ganhos com esses processos. Esses novos fatores acabaram gerando
uma ruptura e efetivando a separação entre Estado e sociedade civil, e isso significa que
os contextos social e político acabaram por produzir a emancipação da sociedade civil
do poder político. O Estado deixa de ser um fim e passa a ser um simples meio. Dessa
conjunção de fatores origina-se (i) o modelo de Estado Liberal, 106 em sua primeira
versão recorrentemente chamado de Estado Guardião, 107 o qual é limitado e deve
respeitar os – e ser pautado nos – direitos naturais que cada um dos indivíduos é
portador, e, mais especificamente, (ii) as democracias modernas, 108 a forma primordial
de organização desse novo tipo de Estado, i.e., as formas de organização do corpo
político e social nas quais além da individualidade, fatores como a soberania popular e
valores como liberdade e igualdade são nevrálgicos.
Inverte-se com isso a ordem de primazia do Estado sobre o Direito. Não é o
Estado que outorga o Direito, mas o Direito que fundamenta o Estado, e isso significa
que não é mais o Estado que monopoliza a criação, conservação e desenvolvimento da
ordem jurídica, mas tal tarefa cabe agora à sociedade civil. Ao Estado resta o monopólio
do poder e da violência, não mais o do Direito,109 ao qual ele deve se submeter. Nessa
tensão é possível visualizar uma importante tese bobbiana:

106
“A ideia de monarquia absoluta, combatida por todos os pensadores do “século das luzes”, tornou-se
inaceitável para a nova classe ascendente, a burguesia. Tinha esta, de fato, sólidos argumentos para
retomar o movimento histórico em favor da limitação de poderes dos governantes, iniciado na Baixa
Idade Média com a Magna Carta, e seguido na Inglaterra pela Petition of Rights de 1628, o Habeas
Corpus Act e o Bill of Rights.” Afirmação histórica dos direitos humanos, p.153.
107
“A ideia de que o único dever do Estado seja o de impedir que os indivíduos provoquem danos uns aos
outros, ideia que será levada às extremas consequências e à máxima rigidez pelo liberalismo extremo de
Herbert Spencer, deriva de uma arbitrária redução de todo o direito público a direito penal (donde a
imagem do Estado guarda-noturno ou gendarme).” O futuro da democracia, p.126.
108
“[...] idealmente, a forma de governo democrático nasce do acordo de cada um com todos os demais,
isto é, do pactum societatis.” O futuro da democracia, p.111.
109
Cf. BIELEFELDT, H. Filosofia dos direitos humanos: fundamentos de um ethos de liberdade
universal. São Leopoldo: Editora da UNISINOS, 2000, p.196-197.
232

O Estado despótico é o tipo ideal de Estado de quem se coloca do ponto de


vista do poder; no extremo oposto encontra-se o Estado democrático, que é o
tipo ideal de Estado de quem se coloca do ponto de vista do direito. 110

Bobbio localiza os extremos que podem configurar o dispositivo do Estado


segundo a orientação ao poder ou ao Direito e segundo sua finalidade e função, e
enuncia, em uma de suas teses que perpassam todos os seus escritos sobre os direitos
humanos, a relação entre direito e poder: “Só o poder pode criar o direito e só o direito
pode limitar o poder”. 111 Nos Estados despóticos o poder era concentrado no próprio
Estado, o qual criava o Direito e, por isso mesmo, era absoluto, pois não limitava os
seus próprios poderes; com a mudança do centro de poder para a sociedade civil (povo)
e do Direito para cada indivíduo, a relação observada por Bobbio ganha novos
elementos que atuam sobre os resultados produzidos: além de poder e Direito, ao menos
sociedade e Estado passam a influenciar essa equação. É nesse contexto extremamente
complexo que se dão as relações de poder e as organizações da sociedade, do corpo
político, e do âmbito jurídico, figurando esse último como uma espécie de mediador
entre Estado e sociedade. Em meio a todas essas mudanças e tensões são produzidas
tantas outras alterações, e uma delas se mostra de grande importância por conta do papel
que cumpre na organização da sociedade: a função da punição e o código penal. A
passagem abaixo exemplifica e sintetiza as mudanças nesse domínio:

O âmbito no qual o iluminismo jurídico mais incidiu foi o do direito e do


procedimento penal. Inspirando-se em uma visão utilitarista e humanizada da
pena, são propostas reformas fundamentais tais como a substituição da
função retributiva com função de defesa social e de prevenção de crimes
futuros; o princípio de proporcionalidade da pena ao crime; a abolição dos
suplícios e, mais em geral, dos sofrimentos físicos impostos aos corpos dos
inquisitados e dos condenados; a atenuação das penas; a instauração de regras
de garantias do acusado durante o processo 112.

O professor Celso Lafer mais uma vez condensa em poucas linhas o


processo descrito até aqui:

Direitos inatos, estado de natureza e contrato social foram os conceitos que,


embora utilizados com acepções variadas, permitiram a elaboração de uma
doutrina do Direito e do Estado a partir da concepção individualista de
sociedade e da história, que marca o aparecimento do mundo moderno. São
estes conceitos os que caracterizam o jusnaturalismo dos séculos XVII e
XVIII, que encontrou seu apogeu na Ilustração.113

110
O futuro da democracia, p.23.
111
O futuro da democracia, p.23.
112
Breve história dos direitos humanos, p. 49.
113
A reconstrução dos direitos humanos, p.38.
233

A consolidação institucional dos direitos humanos se deu pela positivação


dos mesmos, resultado das condições históricas que comportaram uma série de fatores,
tais como as necessidades e interesses da sociedade, as classes que ascendiam e decaiam
do poder, dos meios disponíveis para a realização dos direitos. Tanto no caso
estadunidense, quanto no caso francês, Bobbio constatou a transição do direito pensado
para o que viria a se tornar o direito realizável, i.e., a transição da esfera teórica
(jusnaturalismo e contratualismo) para a esfera prática (direitos positivos e igualdade
formal).
Contudo, o autor nota, também, que apesar dos direitos considerados
humanos ganharem em concretude – agora eles possuíam instância de exigibilidade
onde poderiam ser requeridos –, eles perdem em universalidade, uma vez que os direitos
passam a ser protegidos no âmbito do Estado que os reconhece. Os direitos do Homem
passam a ser os direitos do cidadão no seio de um Estado particular.114 Os direitos
humanos, na análise histórica de Bobbio, nascem como direitos naturais universais; com
a difusão das doutrinas jusnaturalistas, desenvolvem-se como direitos positivos
particulares a partir das declarações de direitos no Estado de Direito,115 e,
posteriormente, depois da Segunda Guerra, no que Bobbio chama de uma terceira fase
do desenvolvimento da afirmação dos direitos humanos – internacionalização –, eles
adentram a esfera internacional iniciando o desenvolvimento gradativo de tornarem-se
direitos positivos universais, 116 os quais não dependeriam das cartas constitucionais dos
Estados nacionais, mas seriam reconhecidos e tutelados globalmente.
O processo de positivação dos direitos considerados humanos acabou por
destituir o jusnaturalismo do seu lugar enquanto concepção teórica que justificava as
bases do ordenamento jurídico, deixando-a de lado. Apenas o âmbito legal passou a ser
considerado, o que culminou na ruptura da relação de dependência entre o direito
natural e o direito positivo. Facchi, na esteira de Bobbio, resume o ocorrido na seguinte
passagem:

Os direitos do homem, portanto, surgem no âmbito do jusnaturalismo, mas se


afirmam institucionalmente por meio do juspositivismo, negando, assim, de
certo modo, sua origem, e marcando a ruptura da dependência entre o direito
positivo e o direito natural. Abre-se uma segunda fase na história dos direitos,

114
Cf. L'età dei diritti, p.23.
115
Estado de Direito é aquele no qual funciona regularmente um sistema de garantias. Sobre Estado de
Direito Cf. Dicionário de filosofia do direito, Estado de Direito, p.288-291.
116
Cf. L'età dei diritti, p.24 e p.44-45.
234

uma fase na qual “a afirmação dos direitos do homem ganha em concretude,


mas perde em universalidade. Os direitos são, daqui em diante, protegidos,
ou seja, são autênticos direitos positivos, mas só valem no âmbito do Estado
que os garante” (Bobbio, 1992, p.23). De direitos naturais se tornam direitos
positivos, de direitos do homem se transformam em direitos do cidadão, de
direitos universais serão direitos nacionais. 117

O resultado dessa ruptura tornou-se lugar comum e clichê na crítica ao


positivismo jurídico. Após a Segunda Grande Guerra, a comunidade internacional foi
obrigada a discutir e rever as bases para um debate sobre tutela e implementação dos
direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU de 1948 é
fruto dessa tarefa e empenho, e Bobbio atribuiu a esse documento extrema importância
por enxergar nele um contrato entre os Estados-nações signatários para o
estabelecimento de um ponto de partida para que os debates e a implementação dos
direitos humanos pudessem ser realizados. E é sobre a origem e conteúdo desse
documento que nossa análise e exposição será focada na próxima seção.

4.5. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

Apesar de negar a possibilidade de um fundamento absoluto dos direitos


humanos, Bobbio admite que a exigência do respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais nasce da convicção de que eles possuem fundamento. Por esse
prisma, o problema do fundamento é de certa forma inescapável 118 – uma vez que, para
além da convicção da existência de fundamentos, questões referentes às razões e
motivações de legitimação dos direitos humanos, que no fundo são questões referentes
aos próprios fundamentos, acabam por emergir. É uma questão inescapável porque não
é possível ignorá-la. Mesmo que o problema mais grave e imediato não seja
propriamente o de fundamentar os direitos humanos, mas sim o de implementá-los,
tutelá-los, e protegê-los, i.e., mesmo que o problema mais grave referente aos direitos
humanos não esteja situado na perspectiva filosófica, mas nas esferas política e jurídica,
é necessário ter um ponto de partida, uma base, um pedra angular que legitime e permita
a efetivação do processo de positivação dos direitos humanos em âmbito universal, o
que Bobbio denomina processos de universalização e internacionalização dos direitos
humanos. Esfera política e jurídica são, desse modo – ainda que a contragosto de

117
Breve história dos direitos humanos, p.82.
118
Cf. L'età dei diritti, p.18.
235

juristas, cientistas políticos e sociais –, dependentes da perspectiva filosófica, mesmo


que essa última seja considerada relativamente de menor importância.
Bobbio localiza a resolução do problema dos fundamentos dos direitos
humanos exatamente na Declaração Universal dos Direitos da Organização das Nações
Unidas de 1948. Mas em qual sentido poder-se-ia dizer que a DUDH resolve o
problema colocado? Pode-se dizer que ela resolve o problema na medida em que
funciona como fundamento, um fundamento assumido, que, em primeiro lugar,
possibilita que seja iniciada a discussão e o debate das formas de garantir e tutelar os
direitos humanos. O assentimento da Declaração como fundamento para os direitos
humanos é justificado de forma consensual, e, nessa forma de legitimação de um
determinado fundamento, tanto mais forte e mais legítimo ele é quanto mais é aceito.119
Por responder às exigências de um determinado período esse fundamento não pode ser
considerado nem universal – no significado corrente do termo –, nem absoluto; antes,
ele é denominado histórico. Universal assume um novo significado nesse contexto e
passa a ser entendido não mais como algo dado objetivamente, uma totalidade objetiva,
mas como algo subjetivamente aceito; e uma vez que as mudanças históricas e sociais
podem fazer com que a aceitação de tal fundamento oscile, aumentando-a, diminuindo-
a, ou até mesmo anulando-a, o fundamento não pode ser dito absoluto. E o fato dele não
ser absoluto possui vantagens e desvantagens: a principal vantagem seria o fato dele
existir e de responder aos anseios do seu tempo histórico, podendo ser alterado para
suprir novas necessidades e demandas, evitando que os direitos humanos se cristalizem
e percam o seu sentido histórico e que deixem de responder às necessidades e anseios de
seu próprio tempo:

Com isso quero dizer que a comunidade internacional se encontra hoje de


frente não só ao problema de apresentar garantias válidas a esses direitos,
mas também àquele [problema] de aperfeiçoar continuamente o conteúdo da
Declaração [DUDH], articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo

119
Nesse ponto, é possível destacar as críticas que condenam a DUDH por ela ser impregnada de valores
ocidentais, e todo o debate em torno do relativismo cultural e do multiculturalismo. Sobre esse debate a
bibliografia é muito vasta. Cf. BONANATE, L.; PAPINI, R. (ed.). Dialogo interculturale e diritti
umani: la Dichiarazione Universale dei Diritti Umani: genesi, evoluzione e problemi odierni (1948-
2008). Bologna, Italia: Mulino, 2008. Cf. FARELL, M. El alcance (limitado) del multiculturalismo. In:
BERTOMEU, M.; GAETA, R. VIDIELLA, G. (comp). Universalismo y multiculturalismo. Buenos
Aires: Eudeba, 2000; Cf. FREEDEN, M. Rights. Minneapolis: Univ. of Minnesota, 1991; Cf. SOUSA
SANTOS, B. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Revista Crítica de Ciências
Sociais, 48, 1997, p.11-32; Cf. TESÓN, F. International Human Rights and Cultural Relativism; In:
HAYDEN, P. The Philosophy of Human Rights. St. Paul, MN USA: Paragon House, p. 379-396, 2001.
236

a não deixá-la cristalizar e enrijecer em fórmulas tanto mais solenes quanto


vazias. 120

Para construir tal ponto de partida em tal grau de aceitação, além da


conjuntura que permitiu que isso acontecesse, 121 a pretensão de um fundamento objetivo
foi substituída pela legitimação de um ponto de partida consensual intersubjetivo, uma
vez que o fundamento objetivo não existia e, conforme o autor argumenta, seria
impossível ou extremamente incerto de ser alcançado.122
Para Bobbio, a DUDH desempenha não apenas tal papel, como é a maior
prova histórica de que é possível a construção de um fundamento coletivo que sirva
como ponto de partida para o debate sobre direitos humanos. Ele escreve:

[...] a Declaração universal dos direitos do homem pode ser aceita como a
grande prova histórica, que jamais havia sido dada, do consensus omium
gentium [assentimento universal de todos] sobre um determinado sistema de
valores. 123

A própria DUDH coloca-se nesse papel quando se proclama, logo após o


seu preâmbulo “como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações”.124 O autor recorda a desconfiança dos antigos jusnaturalistas em aceitar um

120
L'età dei diritti, p.29. No texto original italiano: “Con questo voglio dire che la comunità
internazionale si trova oggi di fronte al problema di apprestare valide garanzie a quei diritti, ma anche a
quello di perfezionare continuamente il contenuto della Dichiarazione, articolandolo, specificandolo,
aggiornandolo, in modo da non lasciarlo cristallizzare e irrigidire in formule tanto piú solenni quanto piú
vuote.”
121
Os horrores e o impacto das atrocidades produzidos pela Segunda Guerra Mundial foram tão grandes
que conseguiram reunir para a negociação desse documento histórico um mundo cindido entre os blocos
capitalista e socialista. O processo de discussão e negociação foi difícil e moroso. Hunt descreve o
processo do primeiro rascunho da carta até a sua versão definitiva ser aprovada da seguinte forma: “Esse
texto tinha de ser revisado por toda a comissão, posto a circular por todos os Estados-membros, depois
revisto pelo Conselho Social e Econômico e, se aprovado, enviado para a Assembleia Geral, na qual devia
ser primeiro considerado pelo Terceiro Comitê sobre Assuntos Sociais, Humanitários e Culturais. O
Terceiro Comitê tinha delegados de todos os Estados-membros, e quando o rascunho foi discutido a
União Soviética propôs emendas para quase todos os artigos. Oitenta e três reuniões (apenas do Terceiro
Comitê) e quase 170 emendas mais tarde, um rascunho foi sancionado para ser votado. Por fim, em 10 de
dezembro de 1948, a Assembleia Geral aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quarenta
e oito países votaram a favor, oito países do bloco soviético abstiveram-se e nenhum votou contra.” A
invenção dos direitos humanos: uma história, p.205.
122
Cf. L'età dei diritti, p.20-21.
123
L'età dei diritti, p.20. No texto original italiano: “[...] la Dichiarazione universale dei diritti dell’uomo
può essere accolta come la piú grande prova storica, che mai sia stata data, del «consensus omnium
gentium» circa un determinato sistema di valori.”
124
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela resolução 217 A
(III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Rio de Janeiro: UNIC / RIO /
005 – Dezembro, 2000, p.3. Disponível em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf Acesso: 12
ago. 2013. Doravante abreviada por DUDH, seguido de indicação de artigo e página.
237

fundamento baseado no consenso, porque para eles tal sorte de fundamento seria muito
difícil de ser encontrado. 125 Agora esse fundamento consensual passava a existir,126
concretizado em um documento, aprovado, assinado, e reconhecido unanimemente por
48 Estados nacionais e abstenção de outros oito, 127 um documento que passou a servir
de norte no processo de desenvolvimento dos direitos humanos na comunidade
internacional, uma comunidade não mais formada apenas por Estados, mas constituída
por indivíduos considerados livres e iguais: 128 “pela primeira vez um sistema de
princípios fundamentais na conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de
seus governantes, pela maioria dos homens que vivem na Terra.” 129
Segundo Bobbio, a partir do reconhecimento da DUDH, toda a humanidade
passa a partilhar certos valores, um sistema de valores universal não em princípio, mas
de fato “na medida em que o consenso sobre a sua validade e sua idoneidade para reger
os destinos da comunidade futura de todos os seres humanos foi explicitamente

125
Cf. L'età dei diritti, p.20.
126
“Os direitos, portanto, voltam a colocar-se como exigências universais do homem, mas, ao contrário
da Declaração de 1789, não são mais fundamentados em um suposto direito de natureza, mas no acordo
entre os Estados e no direito que daí deriva.” Breve história dos direitos humanos, p.131.
127
Bielorrússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, União Soviética, África do Sul e
Iugoslávia abstiveram-se na votação.
128
Cf. L'età dei diritti, p.20. E, com isso, tentava-se resolver o problema apontado por Hannah Arendt
sobre o direito a ter direitos. Comparato explica a questão do seguinte modo: “[...] o Estado nazista
aplicou, sistematicamente, a política e supressão da nacionalidade alemã a grupos minoritários, sobretudo
a pessoas consideradas de origem judaica. Logo após a guerra, Hannah Arendt chamou a atenção para a
novidade perversa desse abuso, mostrando como a privação de nacionalidade fazia das vítimas pessoas
excluídas de toda proteção jurídica no mundo. Ao contrário do que se supunha no século XVIII, mostrou
ela, os direitos humanos não são protegidos independentemente da nacionalidade ou cidadania. O asilado
político deixa um quadro de proteção nacional para encontrar outro. Mas aquele que foi despojado de sua
nacionalidade, sem ser opositor político, pode não encontrar nenhum Estado disposto a recebê-lo: ele
simplesmente deixa de ser considerado uma pessoa humana. Numa fórmula célebre, Hannah Arendt
conclui que a essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos.” Afirmação histórica dos direitos
humanos, p.245. Cf. também A reconstrução dos direitos humanos, ARENDT, H. Origens do
totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2000, e ARENDT, H. Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1999.
Os artigos VI, XV, e XXVIII da DUDH podem ser considerados tentativas de, por um lado, invalidar a
tentativa de supressão da nacionalidade de um indivíduo e da consequente perda de proteção jurídica e,
por outro, da universalização dos direitos humanos no sentido que Bobbio emprega o termo a partir dessa
carta, i.e., como direitos reconhecidos para além das fronteiras nacionais. Cf. DUDH, Artigos VI, XV, e
XXVIII, p.5; 7-8; 13.
129
L'età dei diritti, p.21. No texto original italiano: “[…] per la prima volta nella storia un sistema di
principî fondamentali della condotta umana è stato liberamente ed espressamente accettato, attraverso i
loro rispettivi governi, dalla maggior parte degli uomini viventi sulla terra.”
238

declarado.”130 E esse, para Bobbio, é o início de uma terceira fase do desenvolvimento


dos direitos humanos, uma fase na qual, quando realizada por completo, a afirmação dos
direitos seria, ao mesmo tempo, universal e positiva. Universal, nesse contexto, porque
os destinatários dos direitos seriam todos os seres humanos – e, talvez, aqui fosse
melhor empregar o termo global; positiva porque seria um processo que se
desenvolveria na transformação dos direitos dos cidadãos, i.e., dos direitos reconhecidos
em Estados nacionais, em direitos humanos que ultrapassassem as fronteiras nacionais e
que fossem efetivamente protegidos, inclusive contra o próprio Estado que os tenha
violado. 131 Como já apontado, a interpretação histórica bobbiana dos direitos humanos
enuncia, em suma, que os direitos humanos nascem como direitos naturais universais,
desenvolvem-se como direitos positivos particulares, e tornar-se-ão direitos positivos
universais 132 – processo que, segundo o autor, estaríamos atravessando.
A Declaração Universal seria exatamente o ponto de viragem entre o
segundo e o terceiro momento desse processo; ela seria o ponto de partida do processo
de universalização dos direitos humanos, o primeiro passo tímido de um ideal comum a
ser alcançado por todos em um longo processo cujo horizonte ainda é muito distante e o
seu fim sequer é possível enxergar: “A Declaração Universal é mais o início do
processo do que o seu apogeu.” 133 O papel temporal da DUDH pode ser interpretado
como o ponto de convergência entre a síntese do passado expressa na “consciência
histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade
do século XX” 134 e uma inspiração para o futuro, mas uma inspiração não estanque e
mutável, uma inspiração em progresso, porque suscetível às vicissitudes e necessidades
da vida em comunidade. E, como o próprio Bobbio admite, são coisas diversas mostrar
o caminho e efetivamente percorrê-lo. 135 O desafio posto agora seria o de percorrê-lo.
A DUDH é composta por um preâmbulo que enuncia sete princípios que
embasam a proclamação que se segue e os trinta artigos que compõe a carta. O primeiro

130
Cf. L'età dei diritti, p.21. O trecho citado no original italiano: “in quanto il consenso sulla sua validità
e sulla idoneità a reggere le sorti della comunità futura di tutti gli uomini è stato esplicitamente
dichiarato.”
131
“A Declaração de 1948 marca, pois, o início de uma nova época, na qual os indivíduos, e não mais
apenas os países, se tornam, progressivamente, sujeitos de direito internacional, que devem fazer valer
seus direitos também contra os governos, fazendo referência a Cartas e a órgãos transnacionais.” Breve
história dos direitos humanos, p.131.
132
Cf. L'età dei diritti, p.24.
133
A invenção dos direitos humanos: uma história, p.209.
134
L'età dei diritti, p.28-29.
135
Cf. L'età dei diritti, p.25.
239

princípio enuncia que o reconhecimento da dignidade, da igualdade formal e dos


direitos inalienáveis de cada indivíduo humano são os alicerces da liberdade, da justiça
e da paz; o segundo princípio enuncia a proteção às liberdades de opinião e de crença; o
terceiro princípio enuncia que os direitos humanos devem ser protegidos para que se
evite rebeliões contra a tirania e opressão, i.e., para a manutenção da paz; o quarto
princípio enuncia o estímulo de relações amistosas entre as nações; o quinto princípio
reafirma os valores estruturantes e norteadores da declaração: a confiança absoluta
(“fé”) nos direitos humanos fundamentais, a dignidade do ser humano, a igualdade
formal, a promoção do progresso social, e a liberdade; o sexto princípio reafirma o
comprometimento em cumprir o acordado na declaração; por fim, o sétimo princípio
enuncia que uma compreensão comum dos direitos e liberdades remetidos na declaração
é de suma importância para o cumprimento dos compromissos assumidos.
O preâmbulo apresenta o núcleo doutrinário e ideológico da Declaração, e,
por assim dizer, o sistema de princípios que constituem a sua base ideológica. Apesar do
distanciamento temporal de mais de 150 anos das declarações estadunidenses e
francesas, é facilmente percebida a proximidade com os valores exaltados pelos
revolucionários do século das luzes: liberdade, igualdade (formal), e fraternidade. 136
Esses valores são explicitamente proclamados no primeiro artigo da Declaração. 137
Sobre a proximidade e afinidade entre as cartas, pode-se ler em Comparato:

A formação histórica dessa tríade sagrada remonta à Revolução Francesa.


Mas a sua consagração oficial em textos jurídicos só se fez tardiamente. A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, tal como o Bill of
Rights de Virgínia de 1776, só se referem à liberdade e à igualdade. A
fraternidade veio a ser mencionada, pela primeira vez – e, ainda assim, não
como princípio jurídico, mas como virtude cívica –, na Constituição francesa
de 1791. Foi somente no texto constitucional da segunda república francesa,
em 1848, que o tríptico veio a ser oficialmente declarado. 138

Além da marcada influência dos valores modernos liberais enunciados nas


cartas anteriores, é possível perceber o confronto entre as posições ideológicas do então
mundo bipolar da Guerra Fria dividido entre os blocos capitalista e socialista: verificam-
se como princípios que alicerceiam a declaração não apenas os direitos tradicionais de
liberdade, mas é possível distinguir também a influência do estatismo dos países

136
Para uma análise pormenorizada do conceito de fraternidade e sua atualidade, entendida como
princípio regulador da comunidade política que é possível ser construída Cf. MANIERI, M. Fraternità:
Rilettura civile di un'idea che può cambiare il mondo. Veneza: Marsilio Editori, 2013.
137
Cf. DUDH, p.3.
138
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.240-241.
240

socialistas no que se refere “ao progresso social e melhores condições de vida”,139


princípio que subsidiará os denominados direitos sociais, os quais aparecem em ao
menos seis artigos da Declaração. 140
A Declaração enuncia ao menos quatro tipos de direitos: (i) os direitos
individuais, tais como o direito à igualdade formal, à vida, à liberdade, e à segurança; 141
(ii) os direitos dos indivíduos em relação aos grupos sociais dos quais fazem parte,
como o direito à privacidade, à vida familiar, ao matrimônio, o direito de ir e vir, o
direito a ter uma nacionalidade, o direito de propriedade, o direito à liberdade
religiosa; 142 (iii) os direitos políticos, tais como liberdade de expressão, de pensamento,
de reunião, o direito ao sufrágio; 143 e (iv) os direitos econômicos e sociais, tais como
instrução, saúde, trabalho e cultura. 144
Alguns desses direitos acabam por se sobrepor, como, por exemplo, o
direito enunciado no Artigo XV, ter direito a uma nacionalidade, que é um direito do
indivíduo em relação aos grupos sociais que pertence – no caso uma comunidade
situada dentro de limitações fronteiriças e reconhecida pela comunidade internacional –,
e, também, um direito evidentemente político.
Os artigos XXI e XXIX merecem menção especial pois eles enunciam a
concretização do processo de viragem da forma de organização política do Estado
despótico para o Estado de Direito: a única forma de governo legítima e compatível com
os direitos humanos, capaz de fomentá-los, é a democracia.145 A democracia é o sistema
político que por excelência pode organizar o direito com vistas a resolução pacífica de
conflitos e estabelecer a paz. É estabelecida, assim, a relação de interdependência da
tríade democracia, direito e paz. 146

139
DUDH, p.2.
140
Mais precisamente nos artigos XXII, XXIII, XXIV, XXV, XXVI, XXVII da DUDH.
141
Esses eram exatamente os quatro direitos naturais enunciados nas cartas francesas. Cf. os artigos I, II,
III, IV, V, X, XI, XVI, XVIII, XXII da DUDH.
142
Cf. os artigos VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XV, XVII, XVIII da DUDH.
143
Cf. os artigos IX, X, XI, XIV, XV, XVI, XIX, XX, XXI, XXVIII da DUDH.
144
Cf. os artigos XXII, XXIII, XXIV, XXV, XXVI, XXVII da DUDH.
145
“Outro traço saliente da Declaração Universal de 1948 é a afirmação da democracia como único
regime político compatível com o pleno respeito aos direitos humanos (arts. XXI e XXIX, alínea 2). O
regime democrático já não é, pois, uma opção política entre muitas outras, mas a única solução legítima
para a organização do Estado.” Afirmação histórica dos direitos humanos, p.246.
146
“Em princípio, a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato que ele está
estritamente ligado com os dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O
reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das constituições democráticas, e ao
mesmo tempo a paz é o pressuposto necessário para a efetiva proteção dos direitos humanos nos Estados
241

Hunt acaba por sintetizar o conteúdo e o significado político da DUDH na


seguinte passagem:

A Declaração Universal não reafirmava simplesmente as noções de direitos


individuais do século XVIII, tais como a igualdade perante a lei, a liberdade
de expressão, a liberdade de religião, o direito de participar do governo, a
proteção da propriedade privada e a rejeição da tortura e da punição cruel.
Ela também proibia expressamente a escravidão e providenciava o sufrágio
universal e igual por votação secreta. Além disso, requeria a liberdade de ir e
vir, o direito a uma nacionalidade, o direito de casar e, com mais
controvérsia, o direito à segurança social; o direito de trabalhar, com
pagamento igual para trabalho igual, tendo por base um salário de
subsistência; o direito ao descanso e ao lazer; e o direito à educação, que
devia ser grátis nos níveis elementares. Numa época de endurecimento das
linhas de conflito da Guerra Fria, a Declaração Universal expressava um
conjunto de aspirações em vez de uma realidade prontamente alcançável.
Delineava um conjunto de obrigações morais para a comunidade mundial,
mas não tinha nenhum mecanismo de imposição. Se tivesse incluído um
mecanismo para impor as obrigações morais, nunca teria sido aprovada.
Entretanto, apesar de todas as suas deficiências, o documento teria efeitos não
de todo diferentes daqueles causados pelos seus predecessores do século
XVIII. Por mais de cinquenta anos ele tem estabelecido o padrão para a
discussão e ação internacionais sobre os direitos humanos. 147

A DUDH possui o mérito de resolver o problema do fundamento que


consolidaria o ponto de partida e consequentemente possibilitaria o início dos debates
seguros sobre os direitos humanos ao instituir um norte para eles. Contudo, ela possui
uma grande limitação apontada acima: a DUDH não possui um mecanismo de
imposição dos direitos declarados. Ela é apresentada como um ideal comum a ser
alcançado por todos, ela é simplesmente uma expressão de boas intenções:

A Declaração precisamente foi aprovada como uma simples promessa


recíproca e solene, a qual era vinculante no plano ético-político, mas que não
comportava obrigações para os Estados. 148

Ela é mais que um sistema doutrinário, mas menos que um sistema de


normas jurídicas. Por não existir o monopólio da força no âmbito internacional, i.e., por
não existir aparato coercitivo que obrigue efetivamente a observância dos direitos

singulares e no sistema internacional.” L'età dei diritti, p.258. No texto em italiano: “In linea di principio,
l’enorme importanza del tema dei diritti dell’uomo dipende dal fatto che è strettamente connesso con i
due problemi fondamentali de nostro tempo, la democrazia e la pace. Il riconoscimento e la protezione dei
diritti dell’uomo stanno alla base delle costituzioni democratiche, e nello stesso tempo la pace è il
presupposto necessario per l’effettiva protezione dei diritti dell’uomo nei singoli Stati e nel sistema
internazionale.”
147
A invenção dos direitos humanos: uma história, p.206.
148
CASSESE, A. I diritti umani nel mondo contemporaneo. 6. ed. Roma (Itália): Laterza, 2000, p.43.
No texto italiano: “La Dichiarazione appunto fu approvata come una semplice promessa reciproca e
solenne, che impegnava sul piano etico-politico, ma non comportava obblighi per gli Stati.”
242

enunciados, emergem dificuldades jurídico-políticas no que se refere à implementação


dos direitos humanos.
A implementação dos direitos enunciados na DUDH depende das relações
entre os Estados e organizações, e isso significa que ela depende das correlações de
forças envolvidas na comunidade internacional. Como não existe uma via coativa, resta
o que Bobbio denomina de via diretiva (vis directiva).149 A via diretiva seria uma forma
de encaminhar e conduzir a um determinado fim sem o uso da coação. Ela dependeria
de ao menos uma das duas condições seguintes: (i) uma autoridade que deveria se impor
por temor ou respeito, e (ii) destinatários extremamente razoáveis, i.e., dispostos a
considerar como válidos não apenas os argumentos da força, mas também os
argumentos da razão. 150 A ausência dessas duas condições acarretaria no não
asseguramento dos direitos humanos, assim como no desprezo pelos direitos humanos
no plano interno de um Estado ou no escasso respeito à comunidade internacional.
Tanto a via coativa quanto a via diretiva são modos de exercer o controle
social, o qual, segundo Bobbio, pode ser alcançado de ao menos dois modos: (i) pela
determinação da ação do outro pela influência, i.e., o modo de controle que determina o
agir do outro atuando sobre a sua escolha, e (ii) pelo modo de controle que determina a
ação do outro pela impossibilidade do agir diferente, i.e., pelo poder. A proteção
jurídica serve-se da forma de controle social do poder; já as garantias internacionais se
dão, principalmente, pela influência. Os órgãos internacionais atuam no sentido de
influenciar a comunidade internacional através da dissuasão, do desencorajamento e do
condicionamento a respeitar os direitos humanos. Mas eles não possuem o poder de
coagir através da violência física, nem do impedimento legal, nem da ameaça de graves
sanções, 151 estas últimas correspondendo exatamente às formas de proteção que foram
convencionalmente denominadas de proteção jurídica.
As organizações internacionais atuam, segundo Bobbio, em três
perspectivas: na promoção, no controle, e na garantia em sentido estrito no que tange à
implementação dos direitos humanos. A promoção atua no sentido de desenvolver ações
orientadas para (i) induzir a implementação de medidas para tutela dos direitos humanos
e (ii) induzir o aperfeiçoamento das medidas existentes; 152 as ações de controle

149
Cf. L'età dei diritti, p.33.
150
Cf. L'età dei diritti, p.34.
151
Bobbio remete o seu leitor, nesse ponto, à teoria de Felix Oppenheim. Cf. L'età dei diritti, p.58.
152
Cf. L'età dei diritti, p.59.
243

englobam o conjunto de medidas para verificar o grau de acolhimento das


recomendações feitas. São basicamente duas as formas de controle: os relatórios e os
comunicados. Os relatórios são confeccionados pelos Estados signatários e apresentam
a descrição das medidas adotadas para proteger e tutelar os direitos humanos; os
comunicados são denúncias encaminhadas à comunidade internacional por um Estado
que informa o não cumprimento das obrigações decorrentes de um pacto por um outro
Estado.
Bobbio diferencia as garantias das garantias em sentido estrito. A primeira
seria referente ao reforço ou aperfeiçoamento do sistema jurisdicional de um Estado em
particular, i.e., seria relativa às garantias nacionais já existentes; a garantia em sentido
estrito seria referente à criação e organização de uma autêntica tutela jurisdicional de
nível internacional,153 a qual seria, por assim dizer, o ponto de chegada do processo de
internacionalização e universalização dos direitos humanos.
Resta, agora, abordar um último tópico importante para a nossa tese a
respeito dos direitos humanos, a saber, as suas gerações / dimensões historicamente
originadas.

4.6. Os Direitos Humanos e suas Gerações

Nas seções anteriores foi possível apresentar os direitos humanos como


fruto de um processo histórico que aponta para um dever ser dos modos de convivência
coletiva, em um Estado de Direito que possibilita a tutela de tais direitos. 154 E esse
dever ser varia de acordo com os contextos e as circunstâncias, das necessidades e
demandas, da luta pela defesa de novas liberdades contra velhos poderes. 155 Por conta
disso, os direitos surgem de forma gradual, ao longo da história, como reflexos dos
contextos, circunstâncias, necessidades, demandas e das lutas de períodos históricos
determinados.

153
Cf. L'età dei diritti, p.59.
154
Cf. LAFER, C. A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos. In:
AGUIAR, O. A. et allii (Org). Filosofia e direitos humanos. Fortaleza: Ed. UFC, 2006, p.14. Doravante
abreviado por A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos, seguido de
indicação de página.
155
Cf. L'età dei diritti, p.XIII.
244

Os diferentes tipos de direito que emergiram ao longo do processo histórico


foram classificados como gerações de direitos. O termo foi cunhado pelo jurista tcheco-
francês Karel Vašák, então diretor da Divisão de Direitos do Homem e da Paz da
UNESCO, em sua aula inaugural intitulada Pour les Droits de l’Homme et la Troisième
Génération: Les Droits de Solidarité (Sobre os Direitos Humanos e a Terceira Geração:
os Direitos de Solidariedade) aos cursos do Instituto Internacional dos Direitos do
Homem, em Estrasburgo no dia 2 de julho de 1979. 156
Segundo história reproduzida em diversos livros e artigos em língua
portuguesa, 157 Vašák confessou ao jurista brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade
que à época daquela conferência ele não disponha de tempo suficiente para preparar
uma exposição minuciosa e prestou-se a fazer uma reflexão na qual associava à
bandeira de França e ao lema “Liberdade, Igualdade, e Fraternidade” o que ele chamou
por gerações do direito: a primeira geração como direitos de liberdade, a segunda
geração como direitos de igualdade, e a terceira geração como direitos de fraternidade.
Norberto Bobbio toma de empréstimo a nomenclatura cunhada por Vašák, e
a incorpora como ferramenta hermenêutica em sua obra A Era dos Direitos (L’Età dei
Diritti). O fato dessa obra ter marcado as discussões sobre filosofia do direito e ser um
clássico até hoje utilizado como guia ou contraposição para o debate acerca dos direitos
humanos e da história dos direitos recentes, fez com que a nomenclatura geração fosse
disseminada e amplamente empregada.

156
Cf. BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 19ª edição. São Paulo, SP: Malheiros, 2006, p.
563.
157
Cf. MARCHI, W. Uma reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais. In: Revista Ius et
Iustitia Eletrônica, Volume 3, nº1, 2010, p.36-44. Disponível em:
http://revistaunar.com.br/juridica/documentos/vol3_n1_2010/UMAREFLEXAOSOBREACLASSIFICA
CAODOSDIREITOSFUNDAMENTIAS.pdf. Acesso em: 23 set. 2016. Doravant abreviado como Uma
reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais. O artigo faz a seguinte transcrição do discurso
proferido por Cançado Andrade na Câmara dos Deputados de Brasília: “[...] Em primeiro lugar, essa tese
das gerações de direitos não tem nenhum fundamento jurídico, nem na realidade. Essa teoria é
fragmentadora, atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividida, o que não corresponde à
realidade. Eu conversei com Karel Vasak e perguntei: ‘Por que você formulou essa tese em 1979?’. Ele
respondeu: ‘Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu fazer alguma reflexão,
e eu me lembrei da bandeira francesa’. Ele nasceu na velha Tchecoslováquia. Ele mesmo não levou essa
tese muito a sério, mas, como tudo que é palavra “chavão”, pegou. Aí Norberto Bobbio começou a
construir gerações de direitos etc.” TRINDADE, A. A Proteção internacional das mulheres. Discurso
de 25 maio 2000. Câmara dos Deputados, Brasília, DF. V Conferência Nacional dos Direitos Humanos
apud MARCHI, W. Uma reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais, p.9.
245

Existe atualmente um grande debate acerca da nomenclatura mais acertada


para designar tais tipos de direito:158 gerações, dimensões, categorias, espécies, naipes,
ondas. Também se discute sobre a existência de outras gerações dos direitos humanos.
Alguns autores discorrem sobre a quarta geração de direitos humanos, mas sem alcançar
exatamente um consenso sobre o seu conteúdo. Por outro lado, no que parece ser uma
hiperinflação da terminologia, alguns autores chegam a reivindicar a existência de
direitos de quinta, sexta, sétima, oitava e até nona geração. Optamos aqui pela utilização
do termo geração, para manter a uniformidade com o termo empregado por Bobbio,
autor que auxilia e embasa nossa argumentação, e também por entender que é o termo
mais preciso e acertado para descrever o fenômeno da origem dos direitos humanos. O
termo geração preserva o sentido histórico, de origem, e de afirmação dos direitos
humanos em momentos históricos distintos, conforme os determinados contextos. Nessa
perspectiva hermenêutica, a afirmação dos direitos faz parte de um continuum histórico
no qual as diversas gerações coexistem e podem se sobrepor; a possibilidade de
sobreposição, i.e., a possibilidade delas entrarem em conflito entre elas mesmas é uma
condição inerente à lógica de afirmação dos direitos humanos relatada por Bobbio como
uma antinomia dos direitos.
Para Bobbio, uma análise atenta da história mostra que os direitos não são
dados por governantes aos governados, mas conquistados através da reivindicação e do
embate:

[...] a liberdade religiosa foi o resultado das guerras de religião, as liberdades


civis, resultado das lutas dos parlamentos contra os soberanos absolutos, a
liberdade política e as liberdade sociais foram resultados do nascimento,
crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados,
dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que demandam ao
poder público não apenas o reconhecimento da liberdade pessoal e da
liberdade negativa, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego,
as primeiras demandas rudimentares contra o analfabetismo, e também a
assistência por invalidez e idade, tudo aquilo que os proprietários abastados
podiam prover por si mesmos. 159

158
Uma introdução sobre o debate referente à melhor terminologia a ser empregada pode ser encontrada
em Uma reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais.
159
L'età dei diritti, p.XIII-XIV. No texto em italiano: “[...] la libertà religiosa è un effetto delle guerre di
religione, le libertà civili, delle lotte dei parlamenti contro i sovrani assoluti, la libertà politica e quelle
sociali, della nascita, crescita, e maturità del movimento dei lavoratoti salariati, dei contadini con poca
terra o nullatenenti, dei poveri che chiedono ai pubblici poteri non solo il riconoscimento della libertà
personale e delle libertà negative, ma anche la protezione del lavoro contro la disoccupazione, e i primi
rudimenti d’istruzione contro l’analfabetismo, e via via l’assistenza per la invalidità e la vecchiaia, tutti
bisogni cui i proprietari agiati potevano provvedere da sé.”
246

Além disso, os direitos não nascem – ou são conquistados – todos de uma


única vez, mas apenas quando podem ou devem nascer. 160 Certas demandas nascem
somente quando nascem certas necessidades; e as necessidades nascem das mudanças
das condições sociais, e quando desenvolvimentos tecnológicos permitem satisfazê-
las. 161 Dessa forma, o contexto histórico-social deve reunir as condições de
possibilidade para que os direitos surjam como pontos norteadores ideais, ou já como
efetividades.
Alguns eventos históricos possuíram e criaram atmosferas fecundas para o
surgimento e a positivação de direitos. Pudemos analisar alguns deles em nossa tese,
dentre tantas possibilidades observadas ao longo de nossa história, como A Declaração
de Direitos (Bill of Rights) inglesa de 1689, 162 os documentos do processo de
independência estadunidense,163 e as Declarações e cartas de direitos frutos do processo
revolucionário francês. 164
Como fruto desses eventos históricos e nessa lógica de conceber a origem
dos direitos, eles foram classificados posteriormente por Bobbio da seguinte forma: (i)
direitos tradicionais, os quais lidam exclusivamente com as liberdades individuais e
políticas, mas apenas no sentido negativo, i.e., a liberdade entendida como ausência de
coação, como o não atuar do Estado, como a não ingerência do poder público regulador
das interações sociais na vida cotidiana dos indivíduos. Trata-se, aqui, basicamente do
asseguramento de direitos cuja titularidade corresponde unicamente ao indivíduo, aos
seus direitos civis, como, por exemplo, as liberdades religiosa, de expressão, e de
imprensa, o que o professor Celso Lafer chama de “legado da visão liberal de
mundo”. 165
Os direitos tradicionais, ao limitarem o poder do Estado – e também o da
Igreja –, acabaram por assegurar liberdades, instituir uma nova legalidade, modificar
profundamente a forma de organização social e política. Mas acabaram, também, por
deixar os indivíduos mais vulneráveis e em situação de maior desamparo:

[...] a perda da proteção familiar, estamental ou religiosa tornou o indivíduo


mais vulnerável às vicissitudes da vida. A sociedade liberal ofereceu, em

160
L'età dei diritti, p.XV.
161
L'età dei diritti, p.XVI.
162
Cf. a seção 4.3.1 A Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689, p.213.
163
Cf. a seção 4.3.2 As Cartas de Direitos Estadunidenses, p.214.
164
Cf. a seção 4.3.3, As Cartas de Direito Resultantes do Processo Revolucionário Francês, p.218.
165
A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos, p.15.
247

troca, a segurança da legalidade e nada mais. Foi preciso aguardar o advento


do Estado Social, no século XX, para que os grandes riscos sociais da
existência humana fossem assumidos, doravante não mais pelos grupos
tradicionais, mas pelo Estado. 166

A tentativa de reverter ou pelo menos minimizar essa situação resultou em


diversas organizações e lutas de movimentos sociais, 167 a partir das quais foram
conquistados os direitos classificados por Bobbio como (ii) direitos sociais, econômicos
e culturais (de igualdade), os quais são referentes àquilo que os indivíduos podem ou
devem ter acesso para alcançarem condições dignas de subsistência.168 Bobbio utiliza
como exemplos a instrução, o trabalho, e a saúde, embora outros autores tenham
acrescentado a esse tipo de direito outros aspectos, como moradia, previdência e cultura;
para que esses direitos possam ser fomentados e garantidos são necessárias a
intervenção e a atuação direta do Estado, porque esses são direitos que se efetivam
através desse. A concepção de Estado social tem justamente aí sua origem: na
ampliação dos poderes do Estado para garantir o fomento e a proteção efetiva dos
direitos sociais. Esse seria o “legado da visão socialista de mundo” 169 no que se refere
aos direitos humanos.
Mais recentemente em relação às outras duas gerações de direitos, os (iii)
direitos difusos ou coletivos (de fraternidade),170 os quais, a partir do século XX,
surgiram como a terceira geração de direitos, os quais, embora ainda constituíssem uma
categoria muito heterogênea e vaga para serem definidos de forma precisa, abrangeriam
a preservação do meio ambiente, numa clara preocupação com a manutenção da vida na
Terra.171 Isso significa que os titulares de direitos de terceira geração não seriam mais

166
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.123.
167
Em especial a Revolução Industrial. Cf. O seundo capítulo de HOBSBAWM, E. A era das
revoluções: 1789-1848. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013; Cf. HOBSBAWM, E. Mundos do
trabalho: novos estudos sobre história operaria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; Cf. HOBSBAWM, E.
Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000; Cf.
HOBSBAWM, E. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. Rio de Janeiro, RJ: Forense-
Universitária, 2011.
168
A primeira Carta Constitucional a prever e acolher os denominados direitos de segunda geração foi a
Constituição Mexicana de 1917. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.189-200. Dois anos
depois, os direitos sociais também compuseram a carta constitucional da Alemanha de 1919. Cf.
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.201-211.
169
A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos, p.15.
170
Também conhecidos por “direitos de solidariedade.”
171
Bobbio se refere aos direitos de terceira geração da seguinte forma: “o mais importante deles [direitos
abrangidos pela terceira geração de direitos] é o reivindicado pelos movimentos ecológicos, o direito a
viver em meio ambiente não poluído.” Tradução livre para “Il più importante è quello rivendicato dai
movimenti ecologici: il diritto a vivere in un ambiente non inquinato.” L’età dei diritti, p.XIV-XV.
248

indivíduos, mas uma certa coletividade social que se outorgaria o direito de preservação
e se obrigaria a cumpri-lo, uma vez que todo direito outorgado deve necessariamente
acarretar uma obrigação.
É bem verdade que muitos desses direitos não foram positivados e não
possuem ainda instrumentos assecuratórios próprios, mas isso não significa que não se
possa afirmar que tais direitos deixem de ser sentidos no meio social como exigências
impostergáveis, 172 e, dessa forma, possam ser reivindicados.
Dadas as linhas gerais e básicas sobre os direitos humanos e suas gerações,
pode-se dizer mais uma vez que, enquanto os direitos de primeira geração colocam
limites ao Estado, os direitos de segunda geração estabelecem as diretrizes para o agir
do Estado no tocante ao asseguramento do mínimo de condições necessárias no que
concerniria uma vida digna; e que os direitos de terceira geração – os direitos de
fraternidade e solidariedade – podem ser entendidos, basicamente, como a aspiração
coletiva de preservação e de conservação do meio ambiente, e, assim, eles apontam para
um horizonte de como os Estados e as sociedades devem se empenhar na preservação
do meio ambiente para a manutenção da vida e de condições adequadas para as futuras
gerações.
Após essa curta e condensada exposição, e após mobilizar e recuperar
alguns conceitos mínimos sobre os direitos humanos, é possível avaliar a extensão, o
impacto e a atualidade da filosofia schopenhaueriana sobre o tema.

172
Afirmação histórica dos direitos humanos, p.152.
5 Considerações Finais: Atualidades de Schopenhauer

Quando se escreve sobre a possível atualidade de um filósofo, acaba-se por


fazer um exercício de reflexão e reinterpretação de sua filosofia e de interpretação da
atual conjuntura local, regional, setorial, ou mundial, dependendo do aspecto a ser
analisado e trabalhado. Assumimos, como enunciado, uma postura de interpretação
“herética”, à esquerda, na perspectiva ético-empírica, da pequena ética, da inversão dos
âmbitos de primazia entre intelecto e caráter (o coração permanece incorrigível, mas a
cabeça ainda pode ser esclarecida), que dê ênfase aos aspectos práticos da filosofia
schopenhaueriana e que, como uma alternativa ao quietismo, seja focada na ética da
melhoria, na tentativa de tornar essa a vida menos infeliz possível, na tentativa de fazer
deste o menos pior dos mundos possíveis, i.e., em uma práxis cujo norte é a redução de
danos do que é existir.
É possível que um leitor ortodoxo da filosofia schopenhaueriana questione
os resultados alcançados e até mesmo se, após o novo enfoque adotado, ainda se trata da
filosofia schopenhaueriana, uma vez que toda tentativa de atualização de um autor
resulta necessariamente em adaptações e distorções – em maior ou menor grau – de suas
ideias. E aqui só é possível responder que se não se trata mais de Schopenhauer em
senso estrito, ao menos a questão é tratada em termos da filosofia schopenhaueriana. Os
resultados apresentados podem soar, assim, muito mais como provocações e como
apontamentos – ou como uma acomodação e desvio – de propostas de interpretação do
que como uma questão esmiuçada e já resolvida. E são exatamente esses os horizontes
que essa tese procurou alcançar: o da provocação e o do convite à reflexão das
possibilidades existentes, vislumbrando encontrar na filosofia schopenhaueriana pontos
de convergência para refletir acerca de questões atuais sobre direitos humanos.
Como se trata de pensar a atualidade de Schopenhauer, foi preciso construir
e pavimentar a via para que esse trajeto fosse tornado possível: (i) reconstruir as
doutrinas do direito e do Estado de Schopenhauer e os conceitos de sua filosofia
diretamente implicados nelas; (ii) mostrar que existem interpretações de sua filosofia
que fogem ao cânone estabelecido e que mesmo assim são bem fundamentadas e
extremamente ricas ao criar possibilidades de enfrentamento de problemas que nos
circundam; (iii) apresentar minimamente a temática e os conceitos implicados na qual
essa atualidade é pensada, ou seja, os direitos humanos.
250

Os direitos humanos ganharam, como visto, relevância e maior concretude –


mesmo que essa concretude possa ser amplamente questionável e discutível – após a
Segunda Guerra Mundial, em um contexto no qual os traumas e a brutalidade de tal
evento marcavam a atmosfera social, e no qual a humanidade passava a ter que lidar
com o aumento incontrolado da população, com o aumento cada vez mais rápido e
desregrado da degradação do ambiente, com o aumento cada vez mais rápido,
incontrolável, e insensato do poder armamentista, fatores que colocavam em
constantemente estado de iminência de extinção a vida planetária. 1
O historiador Eric Hobsbawn não por acaso denominou o período que
compreende os anos de 1914 a 1991 de A Era dos Extremos, 2 e é justamente nele em
que os direitos humanos emergem como, por assim dizer, um esforço comum
supranacional de barrar os perigos que a própria humanidade estava se impondo. Foi
necessária uma situação limítrofe para que as grandes potências mundiais aceitassem
compor uma mesa de negociação para estabelecer uma finalidade comum e tentar evitar
uma catástrofe maior. E esse esforço, i.e., a tentativa de implementação e tutela dos
direitos humanos, depara-se com questões que, quando analisadas, residem não só na
relação entre ética e política,3 mas também entre moral e a própria ciência jurídica. Os
direitos humanos emergem como imbricação de dilemas éticos e morais que necessitam
de resoluções políticas e jurídicas.
Há de se considerar, também, ao avaliar a atualidade e relevância de um
autor para um debate contemporâneo as mudanças ocorridas no mundo entre o período
em que sua obra foi escrita e o momento atual em que a questão é confrontada. No caso
de Schopenhauer, por exemplo, isso significa que, como o modelo democrático de
organização política se consolidou como o único possível para a resolução dos
problemas da sociedade de forma pacífica e com vistas a garantir a paz, i.e., o único
modelo possível de organização política para a implementação e tutela dos direitos
humanos é o regime democrático, não podemos considerar a monarquia constitucional
tripartida como forma de governo válida para suprir as demandas relativas aos direitos
humanos no mundo contemporâneo; tampouco podemos, pelo acumulo e volume de
discussões e debates sobre a função da pena nos últimos séculos, considerar o direito

1
Cf. BOBBIO, N. L’età dei diritti. Torino: Giulio Einaudi, 1995, p.45.
2
Cf. HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2002.
3
Cf. AGUIAR, O. A. et allii (Org). Filosofia e direitos humanos. Fortaleza: Ed. UFC, 2006, p.9-10.
251

penal schopenhaueriano integralmente como uma via válida e possível para a efetivação
dos direitos humanos e garantia da paz: a defesa da pena capital como uma possível
solução para os problemas de ordem social está visceralmente em contradição com o
significado e objetivos dos direitos humanos – mesmo que esse significado e esses
objetivos sejam extremamente abrangentes e estejam em constante disputa, a pena de
morte não é tolerada em uma sociedade voltada para as garantias de condições dignas de
vida e da solução pacífica dos conflitos. 4
Por outro lado, devemos considerar questões que para Schopenhauer, nesse
campo, eram ainda impensáveis à época, como, por exemplo, a tentativa efetiva de
implementação de um Estado de bem-estar social, e os direitos que viriam a ser
classificados como direitos humanos de segunda e de terceira gerações.
Para fins didáticos, as relações traçadas entre a filosofia de Arthur
Schopenhauer e os direitos humanos serão apresentadas seguindo a divisão geracional
proposta por Vašák e endossada por Bobbio.

5.1. Direitos Humanos de primeira geração

Schopenhauer acabou por ser atrelado a posições politicamente


conservadoras, tanto pelos seus escritos tardios – principalmente os PP –, quanto pelos
seus eventos biográficos. É muito disseminada e conhecida a anedota de que durante a
revolução germânica de 1848 Schopenhauer emprestara a sua luneta para ajudar os
soldados austríacos durante uma investida do exército contra os revolucionários em
Frankfurt:

Na sacada de seu apartamento, para onde a multidão se dirigia, empresta sua


luneta a soldados, para que pudessem melhor mirar a “canalha”. Jamais
apoiaria um evento que acarretasse perigo à sua fortuna multiplicada, a qual
lhe garantia o ócio indispensável ao filosofar. 5

4
Sobre a pena de morte conferir os capítulos Contro la pena di morte (Contra a pena de Morte) e Il
dibattito attuale sulla pena di morte (O debate atual sobre a pena de morte). Cf. L’età dei diritti, p.181-
234.
5
BARBOZA, J. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, (Coleção Filosofia Passo a
passo), p.22. Sobre detalhes desse evento Cf. o vigésimo segundo capítulo de SAFRANSKI, R.
Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: uma biografia. Tradução de Willian Lagos. São
Paulo: Geração Editorial, 2011, p.598-603. A carta de 2 de março de 1849 na qual ele descreve o ocorrido
a Julius Frauenstädt pode ser consultada em Briefwechsel, 645, XIV, 636.
252

A forma pela qual Schopenhauer escreve suas teorias do direito e do Estado,


como foi possível verificar em nossa exposição, expressa um tom que é comumente
associado aos ideais liberais e conservadores, e da manutenção da ordem vigente.
Poder-se-ia afirmar que Schopenhauer assume uma posição liberal por (i) defender,
justificar e fundamentar o direito de propriedade; por (ii) defender o direito de liberdade
de imprensa, desde que os autores não se escondessem atrás do anonimato (Anonymität)
6
– a imprensa funcionaria como uma válvula de escape da sociedade, evitando a
desordem social; por (iii) ser um ferrenho defensor do Estado guardião; por (iv)
defender a meritocracia nas carreiras; pelo fato de (iv) ele reconhecer as mazelas
oriundas das relações de escravidão, servidão, trabalho e pobreza, tentando justificá-las;
e pelo fato de (v) sua concepção egoísta do ser humano respaldar a concepção
individualista de sociedade, concepção que ganhou força a partir dos escritos dos
autores iluministas, os quais ele leu avidamente. Já a posição de conservador é atribuída
ao filósofo por este (a) defender a manutenção da ordem vigente contra qualquer tipo de
“perturbação” social que pudesse incomodar a sua tranquilidade financeira e emocional,
além do fato de (b) defender o regime monárquico – apesar de tripartido, uma
contribuição dos autores modernos – como a melhor forma de governo para a sociedade,
um fato curioso, contrário aos ideais republicanos iluministas e às lutas pela extinção
das monarquias absolutistas e do Antigo Regime, confrontos que se desenrolaram em
período relativamente próximo ao dele.
Schopenhauer escreve e fundamenta os direitos naturais, os quais para ele
são morais, e a importância desses para uma justa legislação positiva, i.e., como o
direito natural serve de parâmetro para que as leis sejam moralmente justas, e como esse
é o instrumento de orientação adequado do Estado para suprimir o máximo possível as
adversidades oriundas dos egoísmos individuais e para preservar a vida. O Estado
possui meramente uma função negativa, protetora, de evitar a guerra de todos contra
todos na esfera interna da organização política, de proteção às ameaças externas, e de
proteção aos seus membros dos abusos do próprio Estado. Excetuando-se o modelo que
Schopenhauer defende de Estado, a monarquia constitucional tripartida, podemos
aproximar tranquilamente a sua filosofia política e suas doutrinas do direito e do Estado
– com exceção de sua teoria acerca do direito penal – do que posteriormente foi
denominado por direitos humanos de primeira geração.

6
Sobre a questão do anonimato em Schopenhauer Cf. PP, Kapitel XXIII – Ueber Schriftstellerei und Stil.
253

Aqui os schopenhauerianos ortodoxos – a direita schopenhaeuriana –


estariam contemplados com essa asserção; e os schopenhauerianos que assumem uma
interpretação à esquerda não teriam saída para contra argumentar o apresentado.
Contudo, temos uma margem de manobra maior para apreciar as questões que se
referem aos direitos humanos de segunda e de terceira gerações.

5.2. Direitos Humanos de segunda geração

No que diz respeito ao que acordou-se denominar direitos humanos de


segunda geração a questão é mais delicada. Direitos humanos de segunda geração são os
chamados direitos sociais e culturais (saúde, instrução, trabalho, habitação) e estão
estritamente atrelados a uma postura do Estado que seja ativa, i.e., uma postura de
fomento e intervenção para a alteração das relações sociais estabelecidas com vistas a
garantir e assegurar o mínimo de acesso a tais direitos. Para que eles sejam garantidos, o
Estado precisar intervir de modo ativo na ordem social.
Schopenhauer entende a postura ativa do Estado como ações de
benevolência (Wohlthaten) e obras de caridade (Liebeswerken), e que não seria possível
nem viável que essas fossem atribuições do Estado:

Porém, o Estado não pode ir além desse ponto e não pode mostrar um
fenômeno semelhante ao oriundo da benevolência e do amor recíproco
universais. Pois vimos que o Estado, de acordo com sua natureza, não pode
proibir uma prática da injustiça à qual não corresponde um sofrer injustiça do
outro lado. Ora, simplesmente porque isto é impossível, proíbe então
qualquer prática da injustiça. Inversamente, em conformidade com sua
tendência dirigida ao bem-estar de todos, o Estado, de bom grado, até
cuidaria para que cada um EXPERIMENTASSE benevolência e obras de
caridade de todo gênero se estas não tiverem um correlato inevitável na
REALIZAÇÃO de benevolência e de obras de caridade. Só que, assim, cada
cidadão irá querer assumir o papel passivo, nenhum o ativo, não havendo
motivo algum para atribuir o segundo papel a um em vez de a outro cidadão;
por conseguinte, apenas o negativo, que constitui precisamente o DIREITO,
pode ser IMPOSTO, não o positivo, o qual se entendeu sob a rubrica de
deveres de caridade ou deveres imperfeitos. 7

7
MVR I, §62, p.442-443, I 408-409. No original alemão: „– Weiter aber als bis zu diesem Punkt kann es
der Staat nicht bringen: er kann also nicht eine Erscheinung zeigen, gleich der, welche aus allgemeinem
wechselseitigen Wohlwollen und Liebe entspringen würde. Denn, wie wir eben fanden, daß er, seiner
Natur zufolge, ein Unrechtthun, dem gar kein Unrechtleiden von einer andern Seite entspräche, nicht
verbieten würde, und bloß weil dies unmöglich ist jedes Unrechtthun verwehrt; so würde er umgekehrt,
seiner auf das Wohlseyn Aller gerichteten Tendenz gemäß, sehr gern dafür sorgen, daß Jeder Wohlwollen
und Werke der Menschenliebe aller Art er fü hr e ; hätten nicht auch diese ein unumgängliches Korrelat im
Le ist en von Wohlthaten und Liebeswerken, wobei nun aber jeder Bürger des Staats die passive, keiner
254

Em primeiro lugar, devemos suspender o entendimento de que a atuação e


intervenção do Estado devam ser percebidas apenas como obras de caridade,
benfeitorias, e qualquer outra acepção que reduza o agir ativo do Estado a atividades
assistenciais. Ao afastar esse tipo de entendimento o problema pode ser recolocado,
sendo possível retomar as questões formuladas anteriormente: podem novas funções
serem atribuídas ao Estado? Seria lícito, dado o novo contexto, o Estado assumir o papel
positivo em determinadas questões para suprir determinadas demandas? Quais seriam
essas questões e demandas? Atualmente, até que ponto é possível dissociar a proteção
física da proteção econômica?
Com o desenrolar histórico e a complexificação das relações sociais
emergiram novas demandas e novas necessidades. Como resposta, novos tipos de
direitos (os direitos de segunda geração), novas concepções, e novas atribuições de
Estado surgiram (o Estado de bem-estar social é um grande exemplo disso). O fator
econômico ganhou cada vez mais relevância e importância, tornando-se um aspecto
central da vida humana: sem recursos financeiros não é possível ter acesso às condições
mínimas de subsistência e dignidade. Tratar-se-ia, desse modo, de uma situação de
vulnerabilidade, de buscar um mínimo existencial para sobreviver, não de obras de
caridade e benevolência.
Mesmo assim, Schopenhauer não apresenta bons argumentos nem justifica
de forma convincente a razão do Estado não poder ocupar-se de obras de caridade e
benevolência. Limita-se a expressar que os cidadãos beneficiados se acomodariam na
situação (cada cidadão irá querer assumir o papel passivo, nenhum o ativo) e que não
existiria um critério de distinção para poder decidir quais cidadãos poderiam receber as
benfeitorias – ocupar o papel passivo – e quais deveriam desempenhar um papel ativo
na sociedade (não havendo motivo algum para atribuir o segundo papel a um em vez de
a outro cidadão).
Poder-se-ia argumentar – e aqui, como Bobbio mostrou, faz parte do
problema assumir uma determinada estratégia a partir de uma posição ideológica – que
não se tratam de benfeitorias e obras de caridade, mas que o agir do Estado em casos
que envolvam questões que podem sanar situações de vulnerabilidade, tais como acesso

die aktive Rolle würde übernehmen wollen, und letztere wäre auch aus keinem Grund dem Einen vor dem
Andern zuzumuthen. Demnach läßt sich nur das Negative, welches eben das Rec ht ist, nicht das
Positive, welches man unter dem Namen der Liebespflichten, oder unvollkommenen Pflichten verstanden
hat, er zwinge n.“
255

à saúde, à instrução, moradia e direito ao trabalho, i.e., as condições mínimas de uma


existência digna – e quais seriam essas condições mínimas de existência são apontadas
pelos direitos humanos – é desejável e poderia ser classificado como um tipo especial de
proteção: a proteção social (Sozialschutz).
A proteção social seria desejável porque, dada a relação cada vez mais
estrita e indissociável entre vulnerabilidade física e vulnerabilidade econômica, seria
uma forma de resguardo à integridade física – e também psicológica – dos indivíduos.
Acesso à instrução, trabalho e moradia, teriam como finalidade tanto preservar o
indivíduo quanto, de certo modo e em certo grau, motivá-lo a estar mais disposto em
seguir a vida dentro dos limites da legalidade.
Um possível critério a ser adotado para decidir quais cidadãos deveriam
receber tal tipo proteção é a necessidade, i.e., a condição de vulnerabilidade que o
indivíduo se encontra. Uma das possibilidades seria transpor a mesma lógica do
egoísmo esclarecido na justificação e legitimação da constituição do Estado para esse
caso, i.e., resguardar uma possível melhora individual com base em uma ação coletiva.
O asseguramento de um tipo de proteção social mínima garantiria ao indivíduo que as
consequências desvantajosas de um novo estado de vulnerabilidade – o econômico –
fossem reduzidas. Seria uma espécie de novo pacto: se, em um primeiro momento, o
pacto social garantiu a saída de uma situação pré-estatal de miséria, um segundo pacto,
agora econômico ou de proteção social, poderia garantir as condições mínimas para que
cada indivíduo possa com o auxílio e intervenção do Estado garantir as condições
mínimas para a sua dignidade.
Seria possível estabelecer, dessa forma, um quarto tipo de finalidade ao
Estado schopenhaueriano, a proteção social, que, ao contrário dos demais tipos de
proteção que são puramente negativos, seria uma proteção ativa, cujo resultado
esperado seria, ao menos, o da diminuição da violência entre os indivíduos.

5.3. Direitos Humanos de terceira geração

Os direitos de terceira geração – direitos de titularidade difusa, associados aos


direitos de fraternidade / solidariedade –, como visto, comportam a aspiração coletiva de
preservação e de conservação do meio ambiente.
256

Para Schopenhauer, a essência do mundo é querer, um querer que revela um


interesse pela própria preservação e manutenção da vida, nas melhores condições
possíveis. São várias as estratégias da vontade em se autoconservar e em se afirmar. A
obra Über den Willen in der Natur (Sobre a Vontade na Natureza), por exemplo, pode
ser entendida como uma tentativa de Schopenhauer catalogar várias dessas estratégias
da vontade que aparecem na complexidade de relações da biosfera terrestre; tudo isso
com a finalidade de comprovar empiricamente a sua filosofia da vontade. Mas é no ser
humano, o grau de objetivação mais alto que a vontade atinge, onde ela encontra a
possibilidade de manifestar-se e afirmar-se de modo pleno.
No ser humano é possível notar, seja no mais basilar egoísmo, ao procurar
apenas a autossatisfação e a autoconservação, seja no egoísmo esclarecido, o qual,
através da reta razão (recta ratio), concebe o Estado como forma de regular as relações
sociais e assegurar, assim, uma gama mínima de direitos e proteções, a vontade
procurando meios para conservar-se, para continuar sendo, nas melhores condições
possíveis. Dessa forma, o egoísmo aparece em sua perspectiva prática como sinônimo
da afirmação da vontade para vida e como uma consequência da busca pela
autopreservação e autossatisfação, sendo, assim, uma condição natural do ser humano.
Uma outra estratégia da vontade em se autoconservar poderia ser a
compaixão. A compaixão é uma das motivações fundamentais para o agir humano, 8 na
qual o bem-estar alheio e a diminuição do sofrimento do outro se tornam o motivo do
agente. Seria um tipo diferente da conservação egoísta, porque ela teria, ao mesmo
tempo, um aspecto prático e uma raiz evidentemente metafísica: no cuidado e na
conservação desinteressados do outro abre-se a possibilidade de pensar, não mais por
bases egoístas, o cuidado e a conservação coletiva; e no cuidar e conservar de forma
desinteressada o outro, acaba-se por conservar e cuidar de si mesmo, porque, no sistema
filosófico schopenhaueriano, compartilhamos a mesma essência metafísica.
Para criar um Estado que cumpra da melhor forma sua finalidade, a proteção
da existência de cada indivíduo, primeiro seria necessário criar seres cuja natureza
permita a eles sempre sacrificarem o próprio bem-estar em favor do bem-estar público.
Ou seja, estes seres devem ser capazes de abdicar da própria autoafirmação da vontade
para vida – devem abdicar de seu egoísmo – em prol do bem-estar coletivo. Trata-se do

8
Cf. SFM, §16, p.137, III 680-681.
257

indivíduo ético, justo, caritativo; aquele que preza a afirmação do outro e dá a cada um
o que é seu, não lesando ninguém.
Mas Schopenhauer classifica essa possibilidade como uma espécie de utopia.
Para além de utopia, parece-nos uma contradição com sua doutrina do caráter, na
medida em que seria o resultado de um programa racional, de uma deliberação da razão
que, de algum modo, atuaria como instância superior de orientação dos rumos da
vontade metafísica. Entretanto, a condição usual, o impulso motivacional recorrente e
predominante é o egoísmo. Como seria possível pensar a preservação global de nosso
meio ambiente e da vida planetária quando isso significa frear impulsos egoístas de
consumo e de satisfação ao mesmo tempo em que o esgotamento dos recursos naturais e
a ameaça da nossa existência ainda parecem uma distante possibilidade?
Apesar do constante alerta de organizações internacionais de proteção ao
meio ambiente, como a World Wide Fund for Nature (WWF) 9 e a Global Footprint
Network (GFN), 10 de que os recursos naturais de nosso planeta estão sendo utilizados de
forma predatória e insustentável, 11 e de que essa forma de exploração produz alterações
na dinâmica de funcionamento e equilíbrio de toda a biomassa de nosso planeta, pouco
tem sido feito de forma que se altere efetivamente a configuração estabelecida dos
modos de exploração do meio ambiente.12

9
A WWF produz e publica a cada dois anos um relatório sobre a situação da biodiversidade, dos
ecossistemas, e as demandas sobre recursos naturais. O último relatório, de 2014, pode ser acessado em:
http://assets.worldwildlife.org/publications/723/files/original/WWF-LPR2014-
low_res.pdf?1413912230&_ga=1.171834528.1276102506.1476325280. Acesso em 23 set. 2016.
10
É possível acessar os relatórios da entidade que alertam para o uso desmedido de recursos naturais no
seguinte endereço: http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/GFN/page/annual_report/. Acesso em
23 set. 2016.
11
Segundo estudo recente do Instituto de Ecología da Universidad Nacional Autónoma de México e do
departamento de Biologia da Universidade de Stanford publicado na revista Proceedings of the National
Academy of Sciences (PNAS), vivemos um período de aniquilação biológica, a sexta extinção em massa
do planeta, que é mais grave que as anteriores. Cf. CEBALLOS, G.; EHRLICH, P.; DIRZO, R.
Biological annihilation via the ongoing sixth mass extinction signaled by vertebrate population losses and
declines. In: PNAS, v. 114 n. 30, July 10, 2017. Disponível em
http://dx.doi.org/10.1073/pnas.1704949114. Acesso em 14 jul. 2017.
12
Como exemplo de resistência a medidas que visam proteger o meio ambiente, é possível lembrar da
recusa dos Estados Unidos em ratificar o Protocolo de Quioto sob a alegação de que isso prejudicaria a
economia do país; outros países ratificaram o Protocolo, mas não conseguiram cumprir as metas
estipuladas.
258

A questão financeira e mercadológica no mais das vezes possui


preponderância sobre a preservação ou o uso sustentável de recursos naturais.13 Tem-se,
assim, uma atmosfera desfavorável à efetivação dos direitos humanos de terceira
geração. A partir da filosofia schopenhaueriana, alguns cenários podem ser
vislumbrados no que concerne à questão desses direitos. Poder-se-ia pensar a questão,
ao menos, a partir de duas perspectivas: (i) a partir da perspectiva do papel e da
finalidade do Estado; e (ii) a partir da perspectiva dos motivos que fazem com que os
indivíduos ajam.
Schopenhauer é muito claro ao definir o que significa garantir a proteção
interna e externa dos cidadãos de um Estado. Significa impedir que as relações de
injustiça reinem no âmbito interno de um Estado, e, no âmbito externo, a proteção de
seus integrantes de ataques advindos de outros Estados. Trata-se de uma proteção que se
configura de forma negativa, vigilante, e repressora, que garante a integridade física e a
propriedade dos indivíduos. É, nesse sentido, um esforço coletivo em conservar a vida
de cada um dos cidadãos no seio da sociedade.
Como apontamos, a questão dos direitos humanos de terceira geração é uma
questão que ganhou forma e contornos mais delineados apenas recentemente. Trata-se
de uma nova demanda, nascida de uma nova necessidade, fruto de mudanças das
condições e relações sociais ao longo dos últimos séculos. Nesse ponto, se nos fosse
lícito questionar em que medida a garantia de conservação do meio ambiente em que o
indivíduo está inserido não pode estar dissociada da garantia de conservação do próprio
indivíduo, seria possível atualizar e, por assim dizer, alargar o conceito
schopenhaueriano de proteção, caracterizando a proteção interna, também, como a
garantia de um meio ambiente saudável para que o indivíduo possa viver. Se admitimos
esse alargamento conceitual, teríamos uma ligação estrita entre o direito à vida e o
direito a um meio ambiente preservado. E o Estado teria de aplicar seus esforços em
garantir ambos. Parte desses esforços residiria no fato de que o Estado teria de consentir
que crimes ambientais configuram um tipo de injustiça – o que em termos
schopenhauerianos seria o reconhecimento de uma sétima rubrica de injustiça, a saber,

13
Sobre esse tema conferir o minucioso estudo do professor Luiz Marques Filho. Cf. MARQUES
FILHO, L. Capitalismo e colapso ambiental. 2. ed. revista e ampliada. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2016.
259

os crimes ambientais –, adicionando ao código penal, 14 o índice de contramotivos às


ações criminais, um contramotivo mais forte aos eventuais motivos de não preservar o
meio ambiente.
Ainda sob a perspectiva da finalidade do Estado, podemos elaborar o seguinte
raciocínio: o ser humano é dotado de razão (Vernunft), uma faculdade secundária, mas
que exerce função de pronunciada importância. A faculdade de razão, ao possibilitar a
abstração, o raciocínio, e o alargamento da dimensão temporal, permite, também, que o
indivíduo, a partir da reflexão e da experiência, encontre meios mais adequados para
alcançar os seus fins. Isso não se dá pela alteração do caráter desse indivíduo, mas pelo
refinamento de sua constelação de motivos, que significa a correção e o clareamento do
conhecimento – o qual é o meio dos motivos. A educação, entendida pelo filósofo da
vontade como um prêmio, atua nos indivíduos pela correção do conhecimento, através
do ensino e do exemplo. Assim, a função pedagógica do educar tem como objetivo
influenciar o indivíduo a agir dentro dos limites da lei e a optar pelos melhores meios
para alcançar os seus fins – promovendo a melhoria civil e legal –, sem, com isso,
prescrever ou moralizar.
Contudo, apesar de Schopenhauer negar repetidas vezes que o Estado possua
alguma função moralizante, deve-se lembrar que os indivíduos possuem um caráter
adquirido que se “dá em seu uso no mundo (Weltgebrauch)”, 15 e também que essas
relações no mundo estão, em sua maior parte, pautadas sobre uma ótica econômico-
jurídica regulada pelos Estados existentes. Dessa forma, em última instância, as relações
dos indivíduos com o mundo são reguladas pelo Estado. Este, assim, agiria na formação
do caráter adquirido dos indivíduos, atuando no refinamento da constelação de motivos
desses, tornando-os, assim, menos toscos.
O refinamento da constelação de motivos dos indivíduos poderia ter como
norte mostrar a eles que possuir um meio ambiente preservado pode ser muito mais
vantajoso para a manutenção da própria vida que os ganhos econômicos em explorá-lo
de forma não sustentável. Esses motivos tendem a ganhar força e a se tornarem mais
persuasivos tanto mais a situação ambiental caminhe para o limite do catastrófico.

14
Alguns Estados nacionais já adotaram em suas cartas constitucionais leis nesse sentido, como é o caso
da emenda consticional de 1994 na Costa Rica, a qual estabeleceu o direito a um meio ambiente saudável
e ecologicamente equiblibrado, embora os titulares desses direitos, nesse caso, sejam ainda indivíduos.
15
Cf. MVR, §55, p.391, I 357.
260

Aqui iniciamos a adentrar a perspectiva das motivações que fazem com que
os indivíduos ajam. O movimento descrito acima seria uma espécie de novo
esclarecimento do egoísmo: uma nova situação limite – que no momento é hipotética,
podendo vir a se tornar real – faz com que os indivíduos percebam que é preferível
preservar o meio ambiente e arcar com o ônus e consequências envolvidas nesse ato de
preservação a arcar com as consequências dos perigos por concorrer por recursos
naturais em uma situação de precariedade, e, até mesmo, da própria ameaça de extinção.
É como se o indivíduo notasse que da mesma forma que renunciar à prática de injustiça
é vantajoso porque assim ele também não sofre injustiça, abdicar da exploração
insustentável do meio ambiente – embora esta lhe traga inúmeras vantagens – pode
garantir a sua sobrevivência.
No âmbito do egoísmo, todo o cálculo de utilidade é baseado nas vantagens e
desvantagens que o próprio indivíduo pode obter. É possível pensar em uma perspectiva
um pouco diversa se a compaixão fosse a motivação para a ação do indivíduo. Nesse
caso, se a compaixão fosse a motivação principal do agir humano, se fosse possível
constituir uma sociedade de indivíduos éticos, a preservação do meio ambiente poderia
estar ligada, também, à proteção dos animais não-humanos e das futuras gerações, não
apenas aos animais humanos.
A filosofia de Schopenhauer, apesar de não tratar de forma direta da questão
dos direitos humanos de terceira geração – e ela nem poderia –, fornece elementos e
ferramentas importantes para se pensar a questão. A partir de uma perspectiva teórica, é
possível criar hipóteses sobre como as motivações agiriam na constituição de uma
cultura do aparente respeito, do incentivo e da implementação dos direitos humanos que
partisse dos indivíduos – seja essa cultura auto interessada ou desinteressada, i.e.,
guiada pelo egoísmo, ou pela compaixão, e, neste último caso, ela seria moralmente
boa.
A partir de uma perspectiva prática, baseada nas finalidades e funções do
Estado, é possível admitir ações pautadas na promoção da preservação do meio
ambiente baseadas em ações institucionais fomentadas e implementadas pelo aparato do
Estado, visando a proteção de seus membros. Esse atua no combate às injustiças, que
ganha agora um novo registro, a saber, os “crimes ambientais”, e na constelação de
motivos dos seus cidadãos, mas, contudo, ele não alteraria – nem poderia – o que cada
indivíduo é e quer, mostrando apenas um melhor meio para que cada um alcance seus
261

fins. O Estado atuaria indiretamente, dessa forma, no fomento ao egoísmo esclarecido,


promovendo, assim, uma espécie de pedagogia do egoísmo.
A questão que nos resta, mas que, infelizmente, não é possível responder,
seria: “Nosso egoísmo perceberá em tempo hábil de evitar uma situação de catástrofe
ambiental que o melhor a fazer é preservar meio ambiente?”

5.4. A Pedagogia do Egoísmo como Caminho para Redução de

Danos: a Possibilidade do ‘Menos Pior dos Mundos Possíveis’

Muitos leitores de Schopenhauer depositam na compaixão a possibilidade


de redenção e salvação do mundo na negação da vontade, i.e., com a supressão do
mundo. Não descartamos essa possibilidade, muito menos o valor da compaixão e das
ações morais praticadas a partir dela. O problema é a sua limitação: ela é rara e não são
todos que recebem a dádiva de serem agraciados – apenas os santos e ascetas. Por outro
lado, ainda resta um grande problema: existe uma manifestação empírica de mundo, que
é a expressão daquilo que esse mundo não deveria ser, e que é considerado por
Schopenhauer o pior dos mundos possíveis. Seria possível tornar o pior dos mundos
possíveis, ao menos, o menos pior dos mundos possíveis? Seria possível, por assim
dizer, já que não podemos depositar nossas fichas na salvação dos sofrimentos do
mundo através da compaixão e da negação da vontade, reduzir os danos da existência?
Reduzir os danos da existência deve ser entendido aqui como o controle dos efeitos de
um problema sem que com isso se elimine as suas causas, dado que não é possível
extirpar a essência do mundo ou mudar o que os indivíduos são. Se não podemos nos
fiar na compaixão nem escolher negar a nossa vontade para vida, o que fazer?
O próprio Schopenhauer fornece uma alternativa, ou melhor, uma
acomodação ou desvio para tal situação. Levar a sério esse desvio, essa acomodação, é
adotar a perspectiva da pequena ética e a inversão proposta na frase “O coração
permanece incorrigível, mas a cabeça ainda pode ser esclarecida” (Das Herz bleibt
ungebessert, aber der Kopf wird noch aufgehellt). Trata-se de focar, por um lado, em
ações concretas – como as finalidades do Estado –, e, por outro, nas técnicas que
possam refinar a constelação de motivos dos indivíduos – e os Aforismos para a
Sabedoria de Vida são um grande exemplo disso; ter-se-ia, assim, um conjunto de
262

métodos que assegurassem o direcionamento da vontade dos indivíduos como forma de


tentar diminuir os sofrimentos inerentes à vida.
Se não é possível alterar aquilo que a vontade é, a sua essência, é possível
ao menos adotar medidas que visem direcioná-la. Alguns expedientes para essa
finalidade são possíveis de serem aplicados, tais como a ameaça de sanções e o
impedimento legal – ou seja, o ordenamento jurídico –, ou a promessa de recompensas
por um comportamento esperado; pode-se recorrer ao uso da influência, i.e., da
dissuasão, do desencorajamento e do condicionamento. Em todos esses casos, o
indivíduo é intimidado ou encorajado a agir de determinada forma.
Quanto mais for possível refinar a constelação de motivos, i.e., quanto mais
for possível aumentar o repertório de um indivíduo, tanto melhor. O resultado da
equação montada sempre dependerá do confronto do caráter individual e o motivo mais
forte dentre os apresentados, i.e., o produto da equação montada, que é a ação do
indivíduo, sempre dependerá da relação daquilo que cada indivíduo é com o motivo ao
qual ele mais responde.
Se o Estado não tem um fim moralizante porque é cônscio de suas
limitações em alterar aquilo que os indivíduos são, ele pode assumir a função de
empreender os seus esforços no sentido de esclarecer o máximo possível os indivíduos:
uma espécie de pedagogia do egoísmo. O egoísmo se alimentaria através do Estado de
si mesmo: o egoísmo individual, através do Estado, empreenderia esforços para
fomentar um egoísmo esclarecido coletivo para que ele mesmo, egoísmo individual,
melhore cada vez mais a sua própria situação.
Como vimos, a lógica que deu origem ao Estado poderia ser transposta para
o caso dos direitos humanos de segunda e terceira gerações. E, se adotada pelo Estado
como uma de suas funções, como uma de suas práticas, seria possível a tentativa de
direcionamento das vontades individuais para um tipo de organização social que, dentro
das condições de possibilidade, garantisse, ao menos, um mínimo existencial, a saber, a
integridade física, trabalho, instrução, saúde, e a preservação do meio ambiente para que
seja possível existir. A supressão das relações egoístas e do egoísmo, não seria uma
solução para tornar o mundo um lugar bom. Tratar-se-ia de confrontar o mundo a partir
da tentativa de torná-lo o menos pior possível, e os direitos humanos seriam – tal como
anteriormente foi a proposta de fundação do Estado – o esforço válido do momento
atual em ao menos tentar alcançar tal objetivo.
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