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"ESTA NOITE SERÁS MINHA"

Escrito por
Pedro Andrade Almeida

Livre adaptação do conto "As Formigas", de Lygia Fagundes Telles.

Primeiro Tratamento
Data de Início: 13/07/2020
Data de Finalização: 15/07/2020
1 EXT. FACHADA DA PENSÃO - NOITE 1
Está chovendo torrencialmente.
Iluminação formalista, com azuis, verdes e vermelhos
gritantes, caracterizando uma noite de contos-de-fada:
onírica e assustadora.
Um táxi dá a partida e vemos CECÍLIA, 19 anos, carregando uma
mala. Olha para a pensão, incerta.
É uma casa antiga, de uns três andares, cercada por um muro
de arame farpado, e invadida por plantas mal podadas. Chamam
a atenção de Cecília as duas janelas ovaladas, que parecem
dois olhos de um rosto. O local se assemelha à uma casa de
bruxas do imaginário coletivo.
Cecília corre até o portão. Aperta o intercom. Depois de
alguns segundos, a porta se abre. Aliviada, mas ainda
apreensiva, Cecília adentra o estranho local.

2 INT. LOBBY - CONT. 2


Um lobby antigo, decorado com pinturas em preto-e-branco mal
emolduradas e empoeiradas.
Cecília se conforta um pouco pelo local, e vai andando até o
balcão.
Uma pequena fotografia na parede, atrás do balcão, chama a
atenção. Duas crianças de mãos dadas, um menino, uma menina e
um gato preto entre os dois. A menina, gorda, antipática. O
menino possui alguma deformação nas pernas e no tipo físico
do rosto. Os dois com cabelos loiros esbranquiçados. Cecília
fica um pouco amedrontada. Chega no balcão, que está vazio.
VOZ
(vindo de dentro de algum
local)
Já venho.
Chega AZUCENA, uma velha obesa, usando uma peruca negra
deslocada, e um desbotado pijama de seda japonesa. Acende um
charuto.
AZUCENA
(voz ríspida)
É você a estudante de medicina?
Cecília, intimidada, faz que sim com a cabeça.
2.

AZUCENA (CONT'D)
Vou mostrar o quarto, fica no
sótão.

3 INT. ESCADARIA - CONT. 3

As duas sobem a escadaria estreita de caracol, iluminadas por


uma luz vermelha onírica, representando o final do mundo
concreto e o início dos terrores noturnos.

AZUCENA
A inquilina antes de você também
estudava medicina. Tinha um
caixotinho de ossos que esqueceu
aqui. Estava sempre mexendo neles.
CECÍLIA
Ossos?

4 INT. QUARTO NO SÓTÃO - CONT. 4

O quarto não podia ser menor, com o teto em declive


acentuado, lembrando o expressionismo alemão. Uma cama, dois
armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No
ângulo onde o teto quase se encontra com o assoalho, está um
caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Tudo está
escuro, até que Azucena acende a luz. Fica mais iluminado,
mas o local ainda está inebriado pela escuridão. Cecília
larga a mala, e pondo-se de joelhos, puxa o caixotinho pela
alça da corda. Dentro do caixote, muitos ossos.

CECÍLIA
Mas que ossos tão miudinhos! São de
criança?

AZUCENA
De um anão.

CECÍLIA
(pegando o esqueleto)
De um anão? É mesmo, a gente vê que
já estão formados... Mas que
maravilha. É tão limpo, olha aí,
tão perfeitos, todos os dentinhos!

AZUCENA
Se te interessou, pode ficar com
ele. O banheiro é aqui do lado. Só
você é que vai usar, eu tenho o meu
lá embaixo. Banho quente, extra.
Telefone, também. E não deixa a
porta aberta, senão meu gato foge.
3.

Azucena deixa o quarto, adentrando a penumbra do corredor.


Barulho de seus chinelos na escala, e uma tosse encatarrada.
Cecília, sozinha, olha para os lados, um pouco triste.
Depois, esvazia sua mala, pendurando um pôster na parede.
Funga o ambiente, sentindo um cheiro desagradável. Vai até o
caixote e olha para os ossos, novamente. Agora, está com um
pouco de medo. Fecha o caixote, e coloca embaixo da cama.
Suspira. Apaga a luz.

5 INT. QUARTO NO SÓTÃO - MAIS TARDE 5


De repente, cerca o quarto a iluminação formalista e onírica
da primeira sequência, e conseguimos ver Cecília dormindo.
A porta se abre, e entra o ANÃO, vestindo uma camisa xadrez,
e um cabelo loiro bem repartido. É uma figura bizarra, não
pela baixa estatura, mas pela deformidade física no rosto e
nas pernas. Vai andando em direção a Cecília, que dorme de
camisola, e deita na cama. Ouvimos miados esganiçados de
gato.

6 INT. QUARTO NO SÓTÃO - DIA 6


Cecília acorda, aterrorizada. Olha ao redor, tudo bem
iluminado. Perde o medo. No entanto, o caixote está aberto,
longe de sua cama.
Cecília vai andando até lá, e percebe que metade do corpo do
anão está montado dentro da caixa, e a outra metade, ainda
dispersa em ossos. Ela estranha, fecha o caixote e coloca
debaixo da cama novamente.
Tira a camisola, e fica nua, com um medo irracional de estar
sendo observada. Veste roupas de estudante, e sai do quarto,
carregando alguns livros.

7 INT. QUARTO NO SÓTÃO - NOITE 7


Cecília volta para o quarto exausta. Apaga a luz e se atira
na cama, e nem percebe que o caixote está de novo aberto, e o
esqueleto do anão está montado até os braços.

8 INT. QUARTO NO SÓTÃO - MAIS TARDE 8


Iluminação formalista novamente: azuis, vermelhos e verdes
acentuados. Cecília é acordada por barulhos do lado de fora
do quarto e uma valsa de Strauss tocando ao fundo.
4.

Vai andando lentamente, desnorteada, até a porta do quarto e


ao sair se depara com um

9 INT. SALÃO DE FESTAS VITORIANO - CONT. 9


Vários convidados de ternos e gravatas dançando valsa. O
lugar é decorado como uma montagem de ópera de Luchino
Visconti. O salão é suntuoso, barroco, iluminado pelo fogo
amarelado das velas do século XIX. De camisola, e muito
confusa, continua andando, e desperta olhares nos convidados
burgueses.
De repente, seus braços são puxadas por mãos pequenas.
Cecília está forçosamente rodopiando uma valsa com o Anão
deformado.
Agora, veste um vestido branco luxuoso de noiva. Ela começa a
gritar, e tenta sair da dança. Todos os convidados param de
dançar e começam a cercá-los. A luz das velas morre e dá
lugar a uma iluminação de um vermelho neon fortíssimo.
ANÃO
(com uma voz gutural,
quase ininteligível)
Esta noite, serás minha! Tentas
fugir de mim há dois séculos, mas
estás finalmente sob o meu domínio!
A menina loira e gorda da foto, acompanhada pelo gato preto,
traz as alianças de casamento. Vemos então, uma foto antiga,
do casamento de Cecília com o anão.
Cecília solta um grito de pavor.

10 INT. QUARTO NO SÓTÃO - CONT. 10


Cecília acorda em um salto. Olha ao redor, e se alivia. O
caixote não está aberto fora de sua cama, desta vez. Ela
levanta e olha, relaxada, debaixo da cama.
Puxa o caixote, e o abre. Os ossos não estão mais lá. Cecília
fica novamente apreensiva. Se arruma rapidamente e sai do
quarto.

11 EXT. FACHADA DA PENSÃO - NOITE 11


Noite chuvosa, onírica, replicando a mesma atmosfera do
início do curta. Cecília corre até o portão, que está aberto.
Entra na pensão.
5.

12 INT. LOBBY - CONT. 12


Escuridão completa. Um só foco de luz azul, como um holofote.
É em Azucena, que sentada na cadeira sorrindo. Ouvimos miados
de um gato. Cecília está congelada de medo.
Azucena solta um sorriso aterrorizante para Cecília, e o gato
sai de seu colo: o animal é um cadáver, em formato de
esqueleto. Azucena, rindo, tira sua peruca de cabelos pretos,
e revela um couro cabeludo calvo, com alguns fios de cabelos
loiros em volta.
Cecília tenta sair correndo, mas o gato-esqueleto pula em sua
face, miando e a arranhando. De repente, as luzes oníricas se
acendem e estamos outra vez no

13 INT. SALÃO DE FESTAS VITORIANO - CONT. 13


A iluminação está mais agressiva do que nunca. Valsa de
Strauss acelerada no fundo. Os convidados estão todos em
decomposição, recheados de vermes nas entranhas, e dançam
apaticamente: mortos-vivos. Cecília grita, desesperada.
Percebe que está, agora, vestida de noiva.
Do fundo, vem o anão de terno: um esqueleto deformado com
pedaços de carne em decomposição cobrindo seu corpo.
AZUCENA
(O.S)
Manrico, meu irmão! Esta noite
finalmente, depois de tanto tempo,
casa-se com sua amada!
ANÃO
(com sua voz gutural)
Casados já somos. Agora é hora de
consumar este casamento!
Começa a tirar as calças, no meio do salão infernal. Os
convidados começam a despir Cecília, que grita, impotente. O
anão se aproxima, já nu.

14 INT. LOBBY DA PENSÃO - CONT. 14


Vemos, novamente, ao fundo do lobby da pensão, a foto
vitoriana de Cecília e Manrico, casados, datada de 1819.

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