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O LIMIAR DA MEIA-NOITE

Um roteiro de

Matheus Magre

Tratamento Datado de
26/07/2022

Coletivo Belacqua coletivobelacqua@gmail.com


matheusfmagre@gmail.com
1 INT. QUARTO DE ANA. NOITE 1

Uma menina, de nove anos, está deitada na cama de seu quarto,


mas não tem um dos olhos. Ela é ANA CRIANÇA. Seu cabelo está
bagunçado, e ela segura três brinquedos ao peito.

Seu rosto está aterrorizado. Os lábios não se encostam e ela


está tremendo. Onde costumava haver um olho, agora está um
buraco que escorre sangue, enquanto o outro escorre uma
lágrima.

ANA ADULTA(OFF)
A morte...acontece não uma, mas muitas
vezes, em muitas vidas e em muitos
tempos...

Uma imagem se forma nos seus olhos, até mesmo naquele vazio:
uma criança, igual ela. Com a pele ressecada e um aspecto
febril. É a ANA FANTASMA

Ela puxa o cobertor manchado de sangue até seu rosto em


choque.

CORTA PARA

2 INT. QUARTO DE CARLOS. NOITE 2

ANA FANTASMA está de pé, de costas, apoiando-se na parede.


Ela se vira, e caminha para frente. O sangue continua
escorrendo do olho arrancado.

ANA ADULTA(OFF)
...sempre morrendo, e sempre nascendo
de novo. Por motivos e de maneiras
diferentes.

CORTA PARA

CRÉDITOS INICIAIS

CORTA PARA

3 INT. QUARTO DE CARLOS. NOITE 3

OUTRA CRIANÇA: um menino, de nove anos, deitado na cama e com


o cobertor até metade do rosto. Seu nome é CARLOS. Ele é
iluminado por um abajur, mas a luz começa a falhar até que se
apaga.

O barulho, seguido pelo clarão, da tempestade o deixa


assustado, arregalando os olhos. Sua visão vasculha o quarto,

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2.

como se esperasse algo aparecer.

A porta abre e ele se assusta. Dela, entra uma mulher, de


quarenta anos, com um tapa-olho no rosto. É sua mãe, ANA
ADULTA.

ANA ADULTA
Não consegue dormir?

CARLOS
Não senhora.

ANA ADULTA puxa uma cadeira e se senta ao lado da cama.

ANA ADULTA
Está pensando em alguma coisa?

CARLOS
Em...uma menina. Ela não tem um dos
olhos, igual você.

ANA ADULTA
Onde você viu essa menina, Carlos?

CARLOS
Ela aparece...e some. Eu a vejo aqui
em casa às vezes, ela nunca faz nada.
Ela só...parece estar com dor.

Ele abaixa a cabeça.

CARLOS
Você...acredita em mim?

ANA ADULTA confirma, balançando a cabeça. Seu rosto é rígido


e suas expressões são duras. Ela não quer ter essa conversa.

ANA ADULTA
Eu acredito em você. Sabe, havia uma
princesa que, numa noite como essa,
também via coisas assim.

CARLOS
Que princesa?

ANA
Uma princesa que via fantasmas...

CORTA PARA

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3.

4 INT. CASA/SALA DE ESTAR. NOITE 4

A televisão está ligada, passando o filme "O Mensageiro do


Diabo". Assistindo o filme, uma criança, de pijama, com a
boca suja de pasta de dente e escovando mecanicamente, sem
perceber. ANA CRIANÇA, com os olhos intactos, está reagindo
com espanto e surpresa às cenas do filme. Seu olhar está fixo
na TV. Ela está com uma gata no colo, DUQUESA.

O PAI DE ANA desliga a televisão. Ele bate palmas uma vez.

PAI DE ANA
Hora de dormir, Ana. Termina de
escovar os dentes e ir pra cama.

ANA CRIANÇA
Mas eu queria ver o filme!

PAI DE ANA
Nada disso, você é muito nova pra
esses filmes e já são dez horas. Pra
cama, vamos. E coloca essa gata pra
fora.

ANA CRIANÇA
É Duquesa!

O PAI DE ANA sai da sala.

A garota olha para ter certeza que ele não está olhando e
pega o controle da televisão e liga. Ela coloca uma fita no
videocassete e aperta um botão: aparece que está gravando.

Ela levanta animada e rindo, e corre para seu quarto.

CORTA PARA

5 INT. QUARTO DE ANA. NOITE 5

A porta do quarto se abre, e uma mulher vestida com uma


camisola, a MÃE DE ANA, entra. Ela tem trinta e sete anos e
caminha com o pai da menina até a cama, onde a criança está
deitada.

ANA CRIANÇA
Mãe, por que sou muito nova pra esses
filmes?

MÃE DE ANA
Princesa...esses filmes tem muita
maldade. Você é muito nova pra ver

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4.

essas coisas.

ANA CRIANÇA
Maldade? O que é maldade?

Os pais não respondem. Ela dá um beijo na testa da criança e


o pai passa a mão no cabelo da garota.

MÃE DE ANA
Durma bem, meu amor.

PAI DE ANA
Boa noite, princesa.

CORTA PARA.

6 INT. QUARTO DE ANA. NOITE 6

O relógio na parede ao lado da cama marca meia-noite,


enquanto gotas de chuva caem na janela. A criança se levanta,
com a coberta ainda entre as pernas. Ela olha para a porta do
quarto, como se esperasse algo. Em seguida ela desce o braço
para debaixo da cama, pegando uma lamparina. ANA CRIANÇA abre
uma gaveta da mesa e tira um estojo, algumas folhas de papel
e umas balas. Com os objetos em mão, ela se enfia debaixo das
cobertas, acendendo a luz.

A criança está concentrada, fazendo desenhos do filme que


estava assistindo, enquanto abre uma bala e coloca na boca.

Então algo desvia sua atenção.

Um assovio, fraco, ecoa até seu quarto, junto a um som, leve,


do vento. Está vindo da sua casa. A criança larga o lápis e
coloca a cabeça para fora do cobertor, olhando fixamente para
a porta. ANA CRIANÇA pega sua lamparina, se levanta da cama,
e começa a caminhar em direção a porta de seu quarto,
hipnotizada.

Ela abre a porta e sai.

CORTA PARA

7 INT. CORREDOR DA CASA. CONTINUAÇÃO 7

ANA CRIANÇA caminha pelo corredor, seguindo a música, ainda


hipnotizada.

CORTA PARA

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5.

8 INT. CASA/SALA DE ESTAR. CONTINUAÇÃO 8

ANA CRIANÇA olha de um lado para o outro na sala, mas não vê


nada. O assovio se torna mais alto. Ela tem um sorrisinho no
rosto, como se achasse tudo isso engraçado.

O assovio se intensifica. Um clarão de raio ilumina projeta


uma grande silhueta na parede: de um adulto, encapuzado.

ANA CRIANÇA se assusta e corre.

CORTA PARA

9 INT. QUARTO DE ANA. CONTINUAÇÃO 9

ANA CRIANÇA fecha a porta e dá alguns passos para trás,


recobrindo o fôlego. Uma luz verde começa a surgir, pela
fresta da porta. ANA CRIANÇA corre em direção a cama e se
joga debaixo das cobertas, desligando sua lamparina.

Uma voz, forte e arrastada, como um sussurro, ecoa pelo


quarto.

COSTUREIRO (OFF)
Ana...venha até mim.

Sentada na cama, debaixo das cobertas, a criança congela. Ela


leva a mão até o nariz e prende a respiração.

Uma sombra começa a engolir a coberta. É uma mão longa, com


unhas afiadas, cada vez mais próxima de tocar o cobertor.

A mão encosta no cobertor, mas então, algo estranho acontece:


como se a coberta fosse de borracha, a criança vê, por dentro
do lençol, o formato de uma mão esticando, tentando alcançá-
la, mas incapaz.

Um urro de fúria ecoa pelo quarto, ao mesmo tempo que o som


de um trovão. ANA CRIANÇA não aguenta mais prender a
respiração e tira a mão do nariz, respirando forte.

O rosto do espectro encosta no cobertor, mas novamente, este


protege a criança. Como se fosse de borracha, o rosto do
COSTUREIRO se estica pelo cobertor, mas nunca o atravessa.

De forma sorrateira, ANA CRIANÇA coloca a cabeça para fora do


cobertor, de soslaio, e vê a silhueta do espectro. Um homem,
com a pele quebradiça e inumana, ressecado, com olhos brancos
e um capuz. É o COSTUREIRO.

Ele percebe que a criança está vendo-o. ANA CRIANÇA se

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6.

assusta, e puxa o cobertor até a cabeça, ficando deitada na


cama.

Ele então sobe no móvel, e ANA CRIANÇA sente a cama balançar


com o peso dele. O espectro coloca a perna em cima do corpo
da garota, esmagando-a. O campo de visão dela se torna ainda
mais fechado e claustrofóbico. Encolhida debaixo das
cobertas, ela começa a perder o ar.

COSTUREIRO
Saia...apareça para mim...

Existe segurança na sua fala. Com dificuldade para pronunciar


as palavras, a criança tenta mostrar mais coragem.

ANA CRIANÇA
Eu não...vou sair...você não...pode
encostar...em mim...

COSTUREIRO
Eu não preciso. Você mesma vai se
oferecer pra mim.

ANA CRIANÇA
Quem...é você?

O COSTUREIRO sorri. Uma agulha sai de dentro da sua boca, e


ele a segura com a mão.

COSTUREIRO
A razão para as crianças terem
pesadelos. A razão para o coração
delas apodrecer. A razão para terem
vergonha, e a razão para temerem o
escuro. Em todas as histórias de
monstros debaixo da cama, à espreita
no escuro, rondando a noite...eu sou
todas estas histórias.

ANA CRIANÇA
Por...que...?

COSTUREIRO
Ah! Por que eu posso.

ANA CRIANÇA
Você...não pode passar pelo
cobertor...

O espectro morde o lábio, com raiva, mas a criança não vê.

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7.

COSTUREIRO
Então eu vou fazer uma visitinha aos
seus pais...você não se importa, não
é?

ANA CRIANÇA
Espera...espera...vamos trocar...

O COSTUREIRO ri.

COSTUREIRO
O que você poderia me oferecer além de
si mesma, criança?

A criança engole em seco, segurando o choro.

ANA CRIANÇA
A...Du...quesa...

COSTUREIRO
Ah! Uma alma inocente...por outra.

O espectro sorri.

ANA CRIANÇA retira o cobertor e se senta na cama. Seu olhar


percorre o quarto, vazio. ANA CRIANÇA segura os joelhos,
apoiando a cabeça neles.

Uma lágrima escorre do seu olho. Ela não se move,


permanecendo parada, enquanto o barulho da chuva continua.

CORTA PARA.

10 INT. CASA/COZINHA. DIA. 10

A Luz do Sol ilumina o cômodo. ANA CRIANÇA entra na cozinha,


esfregando as mãos no rosto. Ela se senta à mesa, pega uma
garrafa de café e despeja na xícara.

MÃE DE ANA
Vai beber café, princesa?

ANA CRIANÇA
Quero ficar acordada.

Ela prossegue, bebendo, sem adoçar. Seu pai está andando de


um lado para o outro, falando ao telefone. Sua mãe está
colocando manteiga no pão, também agitada. Os dois andando de
um lado para outro.

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8.

MÃE DE ANA
Seu rosto está horrível, demorou a
dormir? Eu sabia que ia ficar assim
com aquele filme...

ANA CRIANÇA
Não foi o filme mãe, foi um monstro,
estava no meu quarto ontem...

MÃE DE ANA
Não, não. Você está proibida de ver
esse tipo de filme, fala com ela...

Por um pequeno momento, o pai tira o telefone do ouvido.

PAI DE ANA
Você já está muito velha pra isso
filha, e bicho-papão não existe.

Ele volta ao telefone, e a mãe sai da cozinha, apressada. ANA


CRIANÇA olha para baixo, engolindo em seco.

Sua gata, entra na cozinha. A menina levanta ela, e lhe dá um


beijo.

PAI DE ANA
Eu botei ela pra fora ontem, como ela
entrou? Ana já falei que não é pra
deixar ela dentro de casa.

ANA CRIANÇA se levanta, com a gata nos braços.

CORTA PARA.

11 INT. CASA/SALA DE ESTAR. TARDE 11

Sobre a mesa da sala, estão abertos diversos livros


diferentes: coleções de contos de fadas, As Mil e Uma Noites,
antologias de folclore, e livros de mitologia. São livros
grandes e ilustrados.

ANA CRIANÇA está sentada e, na sua frente, um grande livro


aberto que ela está folheando e do lado, um copo com café.
DUQUESA está deitada no chão, ao lado da mesa. Ela termina de
folhear e coloca o livro de lado.

ANA CRIANÇA
Tem que ter alguma coisa por aqui...

ANA CRIANÇA pega um livro, de capa vermelha, dentre a pilha.


É O LIMIAR DA MEIA-NOITE. Ao virar as páginas do livro, seus

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9.

olhos aterrissam em uma ilustração, de um homem com pele


anormal, putrefata e um capuz de rostos humanos. Ela começa a
ler a página ao lado, intitulada "O Conto do Costureiro".

Os olhos, de ANA CRIANÇA se arregalam, reconhecendo o


espectro. Na página ao lado, ela começa a ler em voz alta.
Existe temor em sua voz, mas também um certo fascínio. A
curiosidade vem junto do medo.

ANA CRIANÇA
Não acredite no que ele diz, nem nas
promessas que ele faz. Pois o
Costureiro é a razão para as crianças
terem medo do escuro.

CORTA PARA

12 MONTAGEM. 12

EXT. RUA. NOITE

O COSTUREIRO, encapuzado, caminha por uma rua na solidão da


noite.

ANA CRIANÇA(OFF)
O verdadeiro nome do Costureiro se
perdeu com o tempo, até ninguém mais
saber diferenciar o que é real e o que
é lenda em sua história...

CORTA PARA.

INT. CASA. NOITE

STOCKSHOT: IMAGENS DO RIO ANTIGO (COMEÇO DO SÉCULO XX)

Fotos antigas e amareladas, dispostas em uma parede. Os


portas retratos revelam um homem e uma mulher, vestidos com
roupas do século XIX e olhares sérios. O homem, rígido, a
mulher com olheiras bem marcadas.

ANA CRIANÇA(OFF)
A muito tempo, um casal muito rico e
poderoso do Rio de Janeiro, teve um
filho. Ao nascer, a criança fraca e
magricela, foi rejeitada pelo pai que
buscava um herdeiro forte e valente.
Também foi rejeitado pela mãe, que
nunca quis um filho, muito menos de
seu marido.

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10.

Ao lado da foto, uma outra, de uma criança, com não mais que
dez anos, vestindo um terno, com o rosto borrado.

ANA CRIANÇA(OFF)
Sobrevivendo sem amor, a criança
matava pequenos animais do bairro para
se divertir. Mas o que ela preferia
mesmo era machucar outras crianças.

A outra foto, quase igual, a anterior, tem o homem vestindo


um terno semelhante, porém agora, como um adulto, de quarenta
anos, com olhar vazio.

ANA(OFF)
Anos depois, a doença levou sua mãe. A
criança que tinha crescido e virado
Costureiro envenenou seu pai para
ficar com a riqueza da família.
Histórias de uma fera que atraía
crianças para nunca mais serem vistas
eram escutadas. De um lado e do outro
contavam que o homem da agulha era
culpado, mas como ele era rico
fingiram não ver.

CORTA PARA.

INT. CASA ABANDONADA. NOITE.

STOCKSHOT: IMAGENS DO RIO ANTIGO (COMEÇO DO SÉCULO XX)

O espectro sentado no chão, de costas, e em suas mãos o


cobertor que ele costura, fora de vista.

ANA CRIANÇA(OFF)
Um dia, uma criança conseguiu fugir. O
Costureiro a perseguiu pelas ruas, mas
foi atropelado por uma carroça. Quando
acordou, já estava morto. Seu corpo
quebrado se tornava cada vez menor,
enquanto uma força o puxava para além
das nuvens. Chegando no Céu, o
Costureiro viu um portão, e quando
tentou abrir, foi atirado até um lugar
vermelho e muito quente. O Inferno.
Mas ele não ficou lá por muito tempo.
Enganando o próprio Diabo, O
Costureiro voltou, das entranhas da
terra.

A capa dele se torna mais visível. O COSTUREIRO o segura em

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11.

mãos. Ele é branco, com diversas faces costuradas, umas sob


as outras. Buracos abertos no lugar dos olhos e das bocas.
Uma agulha perfura um dos rostos infantis que compõem o
cobertor.

ANA CRIANÇA(OFF)
Como um morto-vivo sem lugar no Céu e
precisando se esconder do Inferno, o
Costureiro voltou a matar crianças
para costurar sua capa feita de
inocentes, que engana os demônios
atrás de sua alma.

Ele veste a capa.

CORTA PARA.

13 INT. CASA/SALA DE ESTAR. TARDE 13

O grito de várias crianças ecoa.

ANA CRIANÇA vira as páginas do livro, e exclama com animação


para sua gata que está deitada no chão:

ANA CRIANÇA
Aqui! Para salvar-se do costureiro, a
criança precisa arrancar sua capa!

CORTA PARA.

14 INT. CASA/SALA DE ESTAR. FIM DA TARDE 14

ANA CRIANÇA está sentada em uma poltrona, brincando com três


brinquedos na mão: um dragão, uma princesa e um cavaleiro.
Ela tem uma voz diferente para cada um deles.

ANA CRIANÇA(PRINCESA)
Oh, nobre cavaleiro, um dragão está
atacando a vila e eu devo me entregar
para ele.

ANA CRIANÇA(CAVALEIRO)
Um dragão?

ANA CRIANÇA(PRINCESA)
Sim, um dragão horrível! Você acredita
em mim?

ANA CRIANÇA(CAVALEIRO)
Mas é claro princesa! Não se preocupe,
eu matarei esse dragão!

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12.

Ela bate o boneco do cavaleiro no dragão algumas vezes. ANA


CRIANÇA levanta o rosto, e olha a luz dourada iluminando o
cômodo e seu rosto.

Ela interrompe a brincadeira.

CORTA PARA.

15 INT. VARANDA. FIM DA TARDE 15

ANA CRIANÇA caminha até o portão. Pela grade alta, ela olha a
rua, enquanto seu rosto é iluminado pela luz dourada. Ela
assiste com atenção o pôr do Sol.

STOCKSHOT: IMAGEM DO PÔR DO SOL

CORTA PARA.

16 INT. QUARTO DE ANA. NOITE 16

STOCKSHOT: LUA NO CÉU EM NOITE TEMPESTUOSA

O relógio bate meia-noite. ANA CRIANÇA liga sua lamparina,


que está na mesa de cabeceira, até que escuta o mesmo assovio
da noite anterior.

A garota tira o cobertor da cama e coloca sob o corpo, em pé.


Dessa vez, a coberta tem dois buracos, por onde ela coloca os
olhos. Na sua frente, o espectro se materializa e caminha até
ela, com a agulha em uma mão, cujo fio se estende até a outra
mão.

COSTUREIRO
E o animal?

ANA CRIANÇA aponta, para debaixo da cama. O COSTUREIRO segue


até o móvel, com um sorriso no rosto e sem tirar os olhos da
garota.

Ele para de olhá-la apenas quando mira para baixo da cama.


Ele estende o braço para puxá-la. ANA CRIANÇA começa a
caminhar, com cautela, por trás dele. Ela puxa a capa do
COSTUREIRO.

Em um susto, o COSTUREIRO rapidamente se vira, enfiando a


agulha em um dos olhos da criança, espirrando sangue no
cobertor. A garota cai para trás, para fora da coberta, com
as mãos no rosto. O COSTUREIRO começa a andar em direção à
ela.

Sua atenção se volta para a porta, e seu rosto é consumido de

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13.

pavor, até que tomba no chão. Uma luz vermelha surge pela
fresta da porta e pelo buraco da fechadura. A porta começa a
abrir, e a luz vermelha consome o quarto, seguida por vapor.
Um ser, alto, de pele vermelha e uma coroa de chifres entra
no quarto. Ao caminhar em direção ao COSTUREIRO, o relógio da
parede, úmido, derrete.

ANA CRIANÇA, com as mãos no rosto, corre para baixo do


cobertor, de onde observa tudo. Em um dos buracos de olho, é
visível o sangue ainda escorrendo no rosto.

Ela vê o ser demoníaco, de pé, em frente ao COSTUREIRO caído


no chão e sem capa. O DEMÔNIO estala os dedos uma vez, dos
quais saem faíscas, e o rosto de ANA CRIANÇA, com o cobertor
por cima, é banhado por uma forte luz laranja. Ela ouve o
grito do COSTUREIRO, enquanto este é incinerado, sem desviar
os olhos. Seu corpo treme.

Quando os gritos cessam, a criatura demoníaca caminha até


ela, parando ajoelhado na sua frente. Os olhos da criança se
arregalam e a urina desce, até molhar seus pés e vazar para
fora do cobertor. O DEMÔNIO estica a mão até o cobertor e
puxa. ANA CRIANÇA está paralisada, mas ele não faz nada. Os
olhos da criatura iluminam o rosto da jovem.

ANA CRIANÇA vê tudo sem piscar. Quando a criatura some, seu


quarto está de volta ao normal. Mas seu olho ainda está
arrancado, caído no chão, com a agulha do COSTUREIO fincada
nele.

CORTA PARA.

17 INT. QUARTO DE ANA. NOITE 17

O relógio bate uma hora da manhã. ANA CRIANÇA, com cabelo


bagunçado, caminha em direção à cama, arrastando o cobertor
em mãos. Ela deita na cama e, na mesa de cabeceira, pega os
três brinquedos que vimos antes, levando-os até o peito.

Seu rosto está aterrorizado. Os lábios nem mesmo se encostam


e ela está tremendo. Onde costumava haver um olho, agora está
um buraco que escorre sangue, enquanto o outro escorre uma
lágrima.

Uma imagem se forma nos seus olhos, até mesmo naquele vazio:
uma criança, igual ela. É ANA FANTASMA.

Ela puxa o cobertor manchado de sangue até seu rosto em


choque.

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14.

ANA ADULTA(OFF)
E naquele momento, a princesa passaria
a ver um fantasma, onde quer que
fosse. Um fantasma que nasceu naquele
momento de dor e que se prolongou no
éter...

CORTA PARA

18 INT. QUARTO DE CARLOS. NOITE 18

ANA ADULTA
Ela passaria a ver o que acontece com
as nossas partes que são mortas.

ANA ADULTA termina sua história, mas CARLOS está adormecido.


Ela se aproxima dele e acaricia seus cabelos. Ela vê uma
folha de papel por baixo do travesseiro do filho e a pega. No
papel, há o desenho da criança fantasma, com um olho
faltando.

A luz do abajur apaga. Um som abafado de respiração surge no


quarto. Uma silhueta se forma, no cobertor que veste CARLOS.
ANA ADULTA vira o rosto e vê, ANA FANTASMA parada à porta. É
o fantasma da sua infância, e igual à ela quando criança. Tem
uma expressão de choque no rosto, semelhante à quando perdeu
o olho.

ANA ADULTA beija a testa do filho, devolve o desenho de onde


pegou e caminha até a menina fantasma. Ela se ajoelha na
frente dela, e acaricia os cabelos dela. Ela a abraça, mas
esta não retribui, e desaparece. ANA ADULTA mantém o abraço,
mesmo não tendo nada ali. Ela aproxima os braços ao próprio
corpo, como se estivesse se aquecendo.

A mulher acende uma lamparina e a deixa na mesa de cabeceira


ao lado da cama do filho. A luz amarela dourada ilumina o
quarto.

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