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AQUILINO RIBEIRO

No cavalo de pau
com Sancho Pança

LIVRARIA BERTRAND * LISBOA


No cavalo de pau
com Sancho Pança
OBRAS DO AUTOR

".nlim das Tormentul conte... OEIRAS: mOl1ocn.f1...


" Vi. Si""O»., •........
.., c•• Cinco R'il de Gentil. • ..CUII
.....'••
LÁPIDES PARTIDAS, -rom.lI� I])lA LUZ AO LONGE: -l'Omauoe.
Terras do Demo, "011\0"'•. OAllOES. OAllILO. EÇA E ALGUNS
filhas d� Babilónia, "",..t.u.
lfAI8: estudo. 018 critica hiat6rloo­
Estrada de Sanlia,,,: 7Wnu...
-lit.erâria..
O GALANTE StCULO XVllI: terto do
C.v. de Olivei..... LUta DE OAlIOES, 'e.buloll&'I'erd..
Romance d", Raposa, 1'oIRoftC;'lho ,... deiro: eualo.
10"';1. PORTUGUESES DAS SETE PÀRTI.
Andam Faunas ".'os 80SQlllSI ..0- DAS: A'feDw'reiro.. rtr.,Jante•• t,ro.
mance. ca-tína..
O HOXElI: QUE HATOU O DIABO: GEOGRAFIA 8ENnMENTAL, bl.t6-
romanc.... ria, ...i.acem, rolelo....
B.�TALBA SEM: PUIl, romaDoe. LEAL DA CAXAl!.A, "d
i .
AS TEtS MULHERES DE SANUO: PRINClPES DE POBTUGAL. nu
110""'1... mitút.. : bJst6ri...
Cl'-.ndnu e
••ria BlMi.,..: roma"ttt,
t A GUERRA: di6.z-io da ooo.n. HUllILDADE GLORIOSA.: ro_DN.
..,. Arcas Encoiradall el�"'" opi....,-.. .
e.I.O mUDdial.
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ALEllANaA ENSANGUENT.UU.: --
derno d� "ilLjl.ote.
O HOllEl( DA NAVE: ....n.Do.. G&iI&­
QOANDO AO GAVlAO OAI A PENA: dore. e faulla ".ria.
CODto.. Abóboras no Telhado. ,rit,to e )101..
III Cla»eI co..to. paro
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Ana de Nd, "'i<4.
,ri4ft.j:OI. O Romance de Camilo. blO(lra/l<l I
AVENTURA M A R A V I L a O S A , n>- criU,o. 3 .01.
m..noe.. NOVELAS "EXEllPLARES, Ce"Iol1t.M.
S. eanaboi..o "..acoreta , Mir1ir: Tra.d. e. prllfáclo.
1'01114"" . A Casa Grande de Romari"'al cr6-
ANASTACIO DA CUNHA. O L"ENTE .. ic4
PE�nTENCrADO: "Id.. e ob",. O Malhadinhas, "O...lol.
A Retirada dos Oez Mih X,"o/"t,. Quando 'os LoboS Ui\lam; "-""U.
Trat!. , prefôcio.
"_ .. .
.....
D om Fre,- Butolameu, 1<10_
O PIUNCIPE PIÕRFEITO: Xe.nofoot.e.
O. Quixote de la Manclla. C,",o"u..
Trad. e "rel...,o.
POR OBRA E GRAÇA: etludo..
Trad. 3 '001.
No Caralo de Pau oom Sancho Pal\Oal
EX PROL DE ARISTOTELES: An\,
_W.
de Oou,oe..... Tr:od. e prefácio.
O SERVO DE DEOS E A OASA ROO. Oe Meca a Freixo d, Espada � Cintai
IIIlwio. o�rioll4i••
BADA: 0.01'1'1....
Tombo no In'trno e O .anto d.
•n; AVOS DOS NOSSOS AVOS: bit-
\lIri... NoS$il Senhora) teacro.
YoU....mio: 1'om.a.." . Casa do EscorpiAo. no",laI.
O LII'RO DO MErr.""JN<�DEOS: O N....
tal D.' hiatõria r811"io.a e na ettlo-
Ir,ana.

Aldeia, Ttr1'o. "CIlt• • b�M".


NO PRELO

I
('UUNHOS ERR.u>oS: Do ul.... 0111: ESORlTOR OONFESSA-SE: m ..
M6nlca, • r01ll4ltCl. IDÓrilU'.
O Arcanjo Ne&r": .. rama"". O LIVRO DE KAltIANUo'"8.A: Ienp.-
OlNSTAl'''·T1NO DE DRAOUe... VO 111111:'&1 II toadUhu em proo ri­
VIZQ.REI DA nmu: ht.tõri.. ......
AQUILINO RIBEIRO

No cavalo de pau
com Sancho Pança
Ensaio
i2ün.atia 8attand
ARQUIVO
Dala.3.a/-"'.\./.GRei: n: .v;.


LIVRARIA B ER T RA N D * LISBOA
Todos 0$ e"emp14rn let'am o sinete de autor

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COmPQeto e im1I� 11.. IKP:l.BN8..l POJ,TUCJ.L-B1..l81L


BlI"HeanQ'Q6 de P&i'n COllceiro - V«Id.. No...a - Amado
....
Prefácio

A
H
VENDO-SE erguido do chão, com o tombo pu­
fabricado de Cravilenho, depois de sacudir o fato,
cofiar aS' barbas meio chamuscadas I desconfiado
no fundo do seu foro - e dizendo-o apenas a seus botões
- que tudo aquilo não passara de chuchadeira, confessou
para a duquesa que viera para o desfrutar:
-Ergui a venda pela mansa, sem que meu amo desse
fé. Pus-me, então, muito de soslaio, a olhar cá para
baixo. E quer saber, senhora, vi a Terra. . .
- Viste a Terra ! Homem, como póde isso ser?
. . .

-Vi, sim, senhora, vi a Terra. Era pequena como

A
um grão de mostarda e 0$ homens não me pareceram
maiores que avelãs.
duquesa fez-lhe notar o absurdo de tais dimensões
com ser o conteúdo maior que o continente. Sancho não
se desconcertou, acudindo D. Quixote a exPlicar pelo
encantamento a O'i"dem sobrenatural do que vira o bom
escudeiro.
- E que mais?
-Subindo, subindo, tão alto que quase tocava o céu
com a mão, chegámos às Sete Cabrinhas. Ett noutros
tempos fui cabreiro, e tenho um gosto particular por tal
gado. Sem dizer nada a meu amo, deixei-me escorregar


N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

pelas ancas do cavalo abaixo e fui-me para o meio delas.


Lá fui, lá estive, lá tornei a montar, que o Cravilenho
não arredou um passo.
Objectou D. Quixote que, para atingir a região do
céu onde está a Ursa Maior, tinham de atravessar a
região do fogo e ficariam abrasados. Por conseguinte,
ou Sancho mentia ou Sancho sonhava.
-Nem minto nem sonho-respondeu Sancho.­
Senão perguntem lá, que eu dou-lhes os sinais todos.
-Camo eram as cabrinhas?
-Duas eram verdes, duas vermelhas, duas azuis e
uma malhada.
-Nunca se viram cabras assim!
-Se não acreditam, podem ir verificar.. ,

-E não andava nenhum bode com elas ?-formulou


o duque, sQrd6nico.
-Ali não vi. Se andava, andava longe, lá para trás
dos cornos da lua.
o.ra eu também ergui a venda e pus-me a esp1'eita1',
ao passo de um corcel subtil, a bem armada farândola
do D. QuL-xote. Na nO'Vela., como aliás na vida, o sonho é
sempre mais saboroso 'que o real. Não se me pergunte
pois se estive em terra ou cavalguei um irrisório Cravi­
lenho. Ao justo, justo, não saberia responder.

Li o D. Quixote numa antiga versão portuguesa,


anterior à do visconde de Castilho. Não me despertou
nenhum interesse especial. A secciOtUlÇão do entrecho
em episódios distintos não amarra o leitor a isso que
podemos chamar o fio de Ariadne dos romances. Não o
li, pois, de fio a pavio como as obras que ao tempo

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N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

empestavam os esPíritos. todas elas dum lânguido e


barato romantismo, tais a Dama das Camélias, Werther,
As Pupilas do Senhor Reitor. Teria eu os meus 16 a 17
anos. Volvi a lé-Io na própria língua castelhana muito
mais tardeJ e comecei a tomar-me do engodo que este li­ ,
vro descerra para o mundo pensante e a compenetrar-me
da razão por que vive quando a Divina Comédia, Orlando
Furioso, Jerusalém Libertada, Henriade, são gl6rias da
bibliografia e, se não regelaram, devem-no à função
didáctica a que os obrigam nas escolas. Li-o ainda ter­
ceira vez, e fiquei empolgado.
D. Quixote não é em matéria de beleza imanente
coisa que se compare com a Odisseia. Pelo engranza­
. mento literário, é antes comparável à Bíblia. Esta tor"­
nau-se o condimento das obrigações religiosas do cristão,
de modo que é problemático o seu poder estritamente
literário sobre o intelecto.
Mas D. Quixote fala-nos, não pelo que tem de imagi­
nativo, embora seja um livro de imaginação-todas as
cenas sendo perífrases umas das outras - mas pelo que
tem de humanidade e singular imprevisto. P01'que é
mais que o mundo às avessas, mas um mundo descon­
certado, patente en� suas rodagens íntimas,
. a trabalhar
fora do ritmo comum.
Reli o D. Quixote e senti a riscar no meu ·subcons­
ciente a sua agulha diamantífera de disco em rotação,
se bem que tal e tal epis6dio, tirado do seu xadrez como
qualquer das contas do rosário, perca de todo o sen.tido
esotérico que lhe dá o conjunto. Um dia perguntei-me se
acaso CenJantes, senhor de grande sensibilidade, posto
que de magra cultura comparado com Fr. Luís de Le6n,
Calder6n, Quevedo, o pr6Prio Lcpe de Vega, não falando

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N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA NÇA

de Raimundo LuZe e Valdez, se não tornara, por assim


dizer, o polarizador do ser espanhol? Que, fazendo uma
caricatura, desenhasse o tiPo espanhol? Melhor, a Espa­
nha? Seria O Engenhoso Fidalgo, em hist6ria, o seu
ectoPlasma? Em pintura o seu retrato; em simbologia
o seu símbolo; em psicologia a sua .alma captada f
Para melhor me convencer de que o meu pensamento
mio era uma desmesurada e tonta fantasia� tendo-se-me
oferecido o ensejo de traduzir D. Quixote de la Mancha,
pus-me a fazé-Io com minuciosa atenção I desfiando-o
frase por frase, pensamento por pensamento, e, em se­
guida, as Novelas Exemplares. O melhor processo de
me integrar nos segredos estruturais do autor, reconhe­
cer-lhe os defeitos, sentir como eram delineadas as per­
sonagens, apreendendo a sua irradiação metaplástica,
seria este. Assim, filtrei pela minha pena tudo o que
passara pelo cérebro de Cervantes, nlas é claro, com o
parti pris dmn analista. Suponhamos que demoli wn
edijicio e tratei de o recon.struir nas suas linhas, alçado e
for'mas, pesando pedra por pedra na palma das mãos. E,
isto feito, pareceu-me que teria alguma razão em julgar
que não exorbitara de todo nc meu. conceito. Este Qui­
xote doido, esquizofrén.ico, capflz de todo o bem e de
todo o mal em. 'virtude mesmo da sua vontade desmedida
de consertar o mundo, era um tiPo bem ambiente, mas
colectivo, com os mil braços de Briareu e as mil almas t
numa s6 alma.
Portanto nc D. Quixote não era um homem que me
detinha com as suas tropelias, mas um povo, através
dos tempos, que me assombra'Ua com os feitos e a cons­
ciência em acção. Não era uma novela, mas a pr6Pria
.
hist6ria rediaJi'Ua.

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N O C A VA L O D E PA U C OM S A N C H O PA NÇA

Por certo que D. Quixote é um livro mal escrito. Mor·


mente a Primeira Parte. 'A sua virtude, porém, é que,
mal escrito e, depois" bem ou mal traduzido, é sempre
D. Quixote, isto é, perdura um grande li1)1'o. O milagre,
p-recisamente, está em que resiste a todas as dejOf'mações
para melhor ou pior. O livro mais bem escrito de Cer­
vantes é Persiles y Sigismunda. Apurado cemo estilo,
frase penteadinha J termos escolhidos, quedou todavia
intragável. Engano de autocrítica. Como se compreende '!
Cervantes, quando pegou da pena. para escrever D. Qui­
xo�e, era um homem desabusado e demagógico. De modo
geral, encontrava · se em oposição ao existente. Em
consequência, o D. Quixote tinha de ser um livro de
inconformidade. Contra o espírito de cavalaria, que con.
tinuava a reinar e dera a·Armada Invencível, ao serviço
da qual, como comissário para o seu abastecimento, gran­
jeara três prisões; contra a burguesia, da raça de Esquí­
vias, suspeitosa e avara; contra as letras, em especial o
género pastoril e o género dramático, sobrepujado por
Lope de Vega, uni, em que não conseguira lançar pé,
outro, que não conseguira dominar com sua fidelidade à
escola antiga, clássica, patrioteira e cediça; contra a
Igreja, os padres e os frades que ajudaram a levá-lo para
a cadeia; contra a nobreza, iletrada e pretensiosa, que
nunca lhe fora verdadeiramente afecta, e ainda p"Orque
(
a dele era menos que de meia-tigela. O enjeitado do
mundo, o escouceado, o sin-verguenza não podia fruti­
ficar senão no cavaleiro bota-abaixo e sandeu, fonnp
ainda de passar indemne na alfândega da censura, contra
o rei, o fidalgo e o monge, tudo o que era bem apega�o
na terra espanhola e continuava contente e ninadio.
Porque é que D. Quixote interessa ainda o homem de

II
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

hoje, tão diferente d e gostos e escasso da sensibilidade a


que podem dirigir-se as suas façanhas singulares f Pre­
cisamente porque é o poema da loucura que cada um
sente ser o alburnc da existência em que 'Vai levado como
uma Piroga no curso rápido dum rio. Não é a erasmistica
que salva, é a outra, esPécie de exsudação necessária à
vida do col6ide. 5eMO em corpo inteiro J lá está' a como
que meia lua do nosso ser plaMtário. Para cada um, a
grande significação do D. Quixote é esta. Por isso este
livro, escrito, parece-nos bem, median�micamente como o
Apocalipse) não deixa. de arrebatar as almas, ainda as
mais fugidas à gravitação antiga. Se se acrescentar que
tem como paisagem o povo espanhoL, com a psique mais
original de quantas segregou o bicho homem no vasto
mundo, produto duma terra excessiva e cheia de con­
trastes, queda exPlicada a sobrevivência duma obra na.
aparência tão estapafúrdio..

Um escritor, que traduz outro, abdica da personali­


dade, que é o principal timbre, se é escritor a valer, da
sua arte. Acontece-lhe como ao alferes que perdeu a
bandeira. Mas, repito, eu traduzi D. Quixote com O
objectivo didascálico de o estudarJ para mais numa hora
em que nos estão vedadas as fontes da originalidade, se
a linfa é outra que não a das bicas a que todos enchem o
cântaro.
Mas, devo declará-lo, entreguei-me a este labor,
menos por furtar-me ao abraço de Caliban do que com o
escopo bem assente de examinar a tessitura íntima da
composição de Cervantes com a secreção do pensamento,
tal o sirgo do bdmbix. A sua tapeçaria é Arras wrda-

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NO C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

deiTo: boa lâ; belos padrões; urdidura antiga de lei.


É isso que me traz ao proscénio público a expressá-lo,
uma vez que adquiri esse direito deSde que pretendi
nacionalizar, digamos, o engenhoso fidalgo e o escudei-ro
fiel.
E com vagar, pois cá pela casa é do que mais abun­
da, se cometeu a obra dificultosa. Os senhores espa­
nhóis nunca nos tomaram muito a sério. Nós também
não os tomamos a eles. De parte a parte, rimo-nos de
nossos defeitos. quando não nos desfazemos em loas às
nossas virtudes. recíprocas, das melhores, mais estupen­
das e Piramidais da incrível Criação!

,
I
C e rvantes e o 'tI1C'10 congénito das biografias.
O Príncipe dos engenhos espanh6is é visto do Ocaso
para o Oriente. A exemPlo de Luís de Camões.
A linhagem d o escritor. Pai barbeiro, mãe abelha�
-mestra da casa pobre. Manas salerosas e casqui­
vanas. Em bolandas de Ceca em Meca. A pena da
mão cortada. Foge que te agarram! Bufonaria poé­
tico-sentimental. Dislate tão grande como o PTO­
mont6ria de Gibraltar. A batalha de Lepanw e o
Manco Sano. O inútil troféu

M regra, o historiógrafo dos grandes homens exerce

E o ofício como um armador de charola. Pelo menos


cá por Espanha e Portugal. Dir-se-ia que a pecha
é comum aos dois povos como castanhas outoniças da
mesma castinceira. A laia de sinal-da-cruz, começa por
reencarná-los como aos predestinados . É necessário que
não sejam como os outros; que sejam bons; heróicos;
honrados, inteligentes, puros, em tudo no alto da cra­
veira: super-homens . O mal comezinho ou antes o imper­
feito e de circunstância está banido de suas naturezas.
Compreende-se lá Cervantes vagabundo; topa-a-tudo;
beleguim, fal.catrueiro ? Compreendia-se lá Camões, ho­
mem do Mal Cozinhado e da moina, sem ofício nem
benefício; com quitanda de versejador , para quem batia
à porta, como qualquer escriba, notário ou almotacé ' ?
Ambos pobretes e afogados na vulgaridade? .. Não,
senhor. A semelhança do autor dos Lusíadas, Cervantes

'S
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

tem de ser um homem admirável em tudo, emérito,


deduz-se duma biografia, Ultimamente aparecida, com .
certo interesse e grande espavento, que incorpora no
título o qualificativo pessoal de exemplar. Nada a dizer ?
Nada de frágil. do Menschliches A llzumenschliclles de
Nietzsche ? Como se explicam através destes peluqueros
da História Miguel de Cervantes e Luís de Camões e,
em reflexão no espelho literário, os heróis de que se
ocuparam ou que construíram, visto que em últim� aná­
lise a obra de arte define e retrata o artífice e vice-versa ?
Está entendido que a consciência peninsular se com­
praz do metafísico, para não dizer que se nutre desse
plâncton espiritual que sobrenada como o azeite sobre o
nosso sistema de conhecimentos. Por isso, tudo o que
lhe é mais caro ou singular projecta-o para lá das fron­
teiras 16gicas. Mercê de tal transporte, os seres de eleição
vão crescendo desmesuradamente até a demiurgia. Dir­
-se-ia que, por cada lustro que passa, tais e tais persona­
lidades engordam e se sublimam graças ao alimento
votivo que lhes depositam no túmulo. O pior é que, mal
se dá conta, perderam suas vidas extintas toda a terreni­
dade de que partiram e se formaram. Tempo, espaço, o
pão de que se nutriam, as pessoas que amavam ou detes­
tavam, as bocas que beijavam, tudo nelas desapareceu
ou queda reduzido a sílfides e quinta-essência volátil.
Demais desta crivagem, de vício grave enfermam os
bi6grafos de Cervantes: verem-DO à luz da gl6ria, de
diante para trás, quando devia ser descendo o rio crono­
lógico, a partir da fonte, como é a jornada da existência:
ao contrário, partem do acúmen, o mesmo é que do Ocaso
para o Nascente. Deste modo tudo neles é deformado, pois
que têm o sol DOS olhos. Como podiam ver. deslumbrados

16
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

pelos seus raios, a menos que possuíssem a vista fabulosa


daquela ave que o fitava a direito no meio-dia?! Mas,
breve nos damos conta que, por via de regra, têm a pu­
pila ocular das aves de capoeira. De modo que as figuras
primaciais da História redundam em figuras de papelão,
repletas de filaça por mitómanos.
Luís Astrana Marín, que armou em bolandista de
Cervantes, é o protótipo destes talentos especulativos.
Como tal, merece que os devotos da hispanidade o beati­
fiquem. Mas 56 esses. A sua pena foi molhar-se em todas
as pias de água benta do casticismo castelhano e das
confrarias. Mas também não esquece na galbeta o J erez
de la Frontera Nacionalista.

A linhagem dos Cervantes tem as raízes espalhadas


pela terra andaluza, Sevilha, Córdova, Talavera... com
rebentos em Alcalá de Henares, acontecendo porém que
não há burgo ou almuinha em Espanha que as não pro­
cure hoje nos penetrais do seu terrunbo. Os baldões
duma vida precária, a reboque dum ofício miserando,
baldearam os Cervantes, para o caso o ramo que nos
interessa, com a pequena tralha às costas, através de
Castela, Valhadolid, Toledo, Cabra, Madrid..
O patriarca, Rodrigo Cervantes, era barbeiro-cirur­
gião, mal-avindo de clientes devido à surdez. O que
lhe valia era ser pai de umas raparigas fanchonaças,
que representam sempre o melhor chamariz da freguesia
em qualquer ramo de negócio. Ao tempo, a arte médica'
consistia, mais que tudo, em sangrar, sarjar um leicenço
com a mesma lanceta da flebotomia, levantar a espinhela
caída. Encanar um braço ou. perna partida, mediante

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NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

uma chapada de pez e canas laminadas, era função par­


ticular dos algebristas, que mais correntemente chama­
vam endireitas. Ao tempo revinha ainda aos barbeiros
fazer a barba, enfeitar e vestir aos defuntos de qualidade"
e desta função piedo.sa auferiam os melhores réditos.
Na praxis, por via de regra volante, governavam-se em
Espanha pelo Libro de "las cuatro enfermedades corte­
sanas. de Lobera de Ávila, e a Pratica de ci1'urgia de
Juan de Vigo. Mas supõem alguns bi6grafos que o velho
Cervantes tivesse também loja onde barbeasse e tos­
quiasse a guedelha do camarada.
Rodrigo de Cervantes era casado com Leonor de Cor­
tinas, de Arganda, que parece ter sido na família quem
segurava na mão a faca e o queijo. Teve o casal a
seguinte prole: Andrea, Luísa, Miguel, Rodrigo e Ma­
dalena. As filhas saíram de estrela, beta e pé calçado.
Não reza a cr6nica se eram bonitas, mas pelo número
dos adoradores ou amantes deviam sê-lo, e salerosas e
fáceis, como apetece à santa madre natureza. Os rapazes,
esses, eram ágeis de ânimo e de inteligência e aventu­
reiros.
A penúria e a pouca sorte, que costumam andar asso­
ciadas, recalcaram a família Cervantes ,de Sevilha para
Valhadolid, onde os dias não lhe foram mais felizes. Em
Sevilha se educaram os meninos mais na escola da rua c
ao deus-dará que nos colégios, sendo de encarecer a porfia
dos biógrafos em conduzir Miguel pelas aulas dos jesuí­
tas no intuito de decorá-lo com diploma de boas letras.
Menéndez y Pelayo denega que tal pudesse acontecer,
pois os jesuítas na capital andaluza não ensinavam ao
tempo mais que o bê-á-bá.
Em Valhadolid, onde Rodrigo foi armar a quitanda

18
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

de barbeiro, as suas esperanças, porventura, de 'melhor


clientela não tardaram em gorar. A cidade, que era ao
tempo Corte, possuía hospitais, e um pessoal já outro
que esse empírico dos barbeiros e físicos, formados' à
matroca. Breve teve de recorrer a empréstimos e às
malas-artes dos encalacrados que o levaram ao cárcere
por insolvente. Foi então que, para se livrar de ferros
de el-rei como caloteiro, invocou a qualidade de fidalgo,
pois que a semelhantes mortais os pergaminhos serviam
de talismã contra tais assados. Mas tinha que aduzir
provanças, para,o que se instaurou o respectivo processo.
Um certo Frias veio depor que vira Rodrigo em Alcalá
de Renares jogar canas e alcanzias, e ainda a argolinha,
montado num bom cavalo. Outro �uviu dizer que os
ascendentes eram da mais estreme nobreza. É duvidoso
que as testemunhas, em despeito de ajuramentadas aos
Santos Evangelhos, depusessem com convicção\ Fidalgos
eram os Cervantes como todos quantos em Esp ' anha
Portugal vivem de costa direita, ao dia a dia, e trazem
as mãos brancas. Mas lá de tirar os pergaminbos da arca
e exibi-los, poucos seriam capazes, porque aos de vet­
dade tinham-nos roído os ratos. Não os deduziu o bom
barbeiro e as provas foram julgadas insuficientes, em
despeito de haver sido solto para que pudesse atender à
sua obtenção.
Em Córdova, seu pai fora juiz nos confiscos efec­
tuados pelo Santo Ofício, mas semelhante cargo não era
inerente à nobreza, nem conferia timbre especial mais
que o clássico, próprio de todo o filho de godo e acessível
ao parasita comum que não punha a mão na rabiça, na
espada, ou na pena de letrado. Foi a essa égide que, desi­
luso de Valhadolid, voltou a acolher-se com a prole, para

'9
�--- ---------�--�- �

NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

vir a exercer o papel de familiar do Santo Ofício, roendo


algum osso no . Paço da Inquisição, homem huraiio e
pela surdez incapaz de actividade útil.
EI Potro de Cordoba era a madre da birbantaria.
Cervantes, segundo Rodríguez Marín. teria cursado e
tirado graus em tal escola que, para novelista, lhe
valeria mais que ser doutorado em Salamanca. As gran­
des figuras que ao tempo dominavam em Andaluzia
eram Fr. João de Ávila e o duque de Gândia. Quem havia
de dizer que no perponte desleixado deste grande de Es­
panha, cara sobre o burráceo, estava a incubar o fervo­
roso e inclemente S. Francisco de Borja !
Em Córdova arrastaram os dias nesta meia penumbra
de lar farto até que com a morte do alto dignitário do
Santo Ofício lá se foi a indústria, e tiveram de se mudar
de novo para Cabra, às sopas de outro parente.
Aproximavam-se de Madrid. Miguel ia nos dez anos,
e para uma criança assim trasfegada, Sevilha, Córdova,
Valhadolid, era instilar-Ihe no espírito e hábitos a mobi­
lidade do azougue.
Em Madrid as raparigas logo se afirmaram ligeiras
e cascaroletas, para justo corolário de guapas e rebeldes
a uma mediania sem virtude nem honrª-, batendo, é de
supor, asas de lepidópteros. Todavia, uma delas pro­
fessou nas Carmelitas, e tal destino tanto pode repre­
sentar uma tendência como uma evasão. Chegou a priora,
sob o nome místico de Luisa de Belén. A outra, Andrea,
tomou-se de amores com um senhorito de boa família,
Nicolas de Ovando, que a abandonou com uma menina
nos braços, que veio a chamar-se Constança, e lhe pas­
sou as lampas. Astrana Marín, depois de inventariar
as grandezas da Casa Ovando, todo se desvanece em

20
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

mencionar os títulos do sedutor. No es estrano que doiía


Andrea se cegara, y que el padre de Ce1'vantes, y aun
Cervantes mismo, 'Uieran con buenos ojos aquellas rela­
ciones, si bien comenzaban a izquierdas.
Repudiada por Ovando, em circunstâncias que não
serão diferentes daquelas que tantas vezes emergem do
D. Quixote na novela de Cardénio, e que supõem pro­
messa de casamento jurado sobre o crucifixo, fórmula
extravagante do matrimónio que o Concílio de Trento
condenou sumàriamente, breve encontrou um mic1lé sé­
rieux em Juan Prancico Locade1o. Devia ser este um
homem na sen�ctude. desamparado da família, alma
convertida em altar de Jano, gratidão numa face, vin­
gança noutra. Fez doação a Andrea, o que se chama uma
rica doação, em escritura pública, com garantida firmeza
jurídica, de casa posta, trastejada do melhor e a primor,
além de 3 00 escudos de oiro, nad.a
casa· não faltava nada do que era bom, desde candelabros
de prata a lençóis em linho de Ruão. Fez a doaçãc a
título dos benefícios recebidos quando esteve doente e
para que tivesse um dote que lhe facultasse casar-se.
Andrea declara aceitar a dádiva munífica, em que não
faltavam' jóias de valor, e le besa las manos por cUo.
O teor da escritura revela de parte do testador a solici­
tude e..xtrema e cautelosa dum homem possuído de incon­
cebível carinho paternal.
A Madalena, a mais nova, baptizaram-na com o
nome de Pimentel Sotomayor. O apelido é tão deslocado
que quase não tem explicação suficiente à face do arbí­
trio com que nessa época os pais liberalizavam Domes
espampanantes aos filhos. Esta grandiosidade onomás­
tica, COl}l o andar dos tempos, transferiu-se para o pre-

21
NO CAVALO D E PAU COM SA NCHO PANÇA

nome. A cada passo há um Vítor Hugo, um João Jaures.


um Luís Filipe.
A esta menina, à parte uma vaga parentela com uns
primos da mão canhota, assim denominados, não se sabe
donde herdou tal nome. Mas prova pelo menos uma coisa:
O fraco conceito em que era tido o nome de Cervantes
Saavedra e eles mesmos o tinham.
Nasceu quando o pai estava preso nos cárceres de
Valhadolid por dívidas, sob maus auspícios pois. Os
documentos notariais mostram.no-la lograda nos amores
hoje, logo, sempre. O pai, por seu turno, revelou-se
muito afanado em mercaneiar o malogro. Dera o diapa­
são a irmã mais velha, Andrea. Aqui a temos nós na
sua fresca primavera renunciando ao com.pTomisso que
toma com ela em 1 575 um tal Alonso Pacheco Porto­
'carrero a troco de 500 ducados, pagos pelo São Tiago.
Mas foi ainda um timo. Mal vai quando se concedem
tais prazos a foragidos do amor. O que procuram é sub­
trair-se ao caduceu de Mercúrio como fugiram à rede
papilonar de Vénus. O sujeito foi pedindo esperas sobre
esperas a este, àquele, àqueloutro, a quem Madalena,
associada ao pai Rodrigo, ia endossando a dívida, en­
quanto o progenitor do trânsfuga, D. Pedro Portocarrero,
não esticasse o pernil e ele não entràsse na posse do
património. O pai esticou um pouco mais tarde o pernil,
não na cama, como pede a Deus o bom cristão, mas no
cativeiro, aprisionado pelos turcos na reconquista da
Goleta.
Em 1581, quando havia que ocorrer às derradeiras
despesas havidas com o resgate de Miguel, ainda não
tinha entrado desta procedência um maravedi furado.
E conclui Cristóbal Pérez, grande exumador destas mi-

22
NO CAVALO DE PAU COM SANCHO PANÇA

s�rias e opulências da Espanha filipina: Foi tão pouco


cavalheiro o filho como o pai foi m.au soldado.
Uns anos depois, caía Madalena na aboiz de um
D. Juan Pérez de Alcega, se não foi ele que deu no laço.
Era de Azpeitia, e traz·nos à memória o terrível bis·
cainha que falava língua de trapos e teve com D. Qui­
xote um encontro à espada e travesseirinha de que saiu
coberto de grotesco. Pois este Juan Pérez de Alcega,
da Casa de Vicufia, espreitava um emprego, ocioso de
todo, na capital, e namorava as belas. Avistando Mada­
lena, depois da sua ignorada viagem a Citera, catrapis­
COll-a. Prometeu casar com ela, e a certa altura aparece
a negociar a sua alforria contra 300 ducados, roo de
contado, 200 a prazo.
Além deste, há um terceiro, Fernando de Ludena,
de quem ela se queixa no testamento de modo tragi.­
cómico: Deve-me 300 ducados que lhe emprestei q1lando
solteiro; negou-mos diante da mulher, por vergonha;
depois, particularmente, pediu-me, sob ameaça, uma
declaração de que me 11ão devia nada, prometendo por
outra dar-me alimentos enquanto fosse viva. Assim que
se apanhou com a cédula, não quis mais saber. Os meus
herdeiros peçam-lhe o dinheiro, ou encarreguem-no de
sua consciência perant.e Deus do Céu, que lhe tirará
contas. Já então se consagrara ao serviço do Senhor­
como beata, longe do mundo odioso. Toda a sua vida era
rezar e chorar. Foi enterrada pela Confraria da Miseri­
córdia, com ajuda de seu irmão Miguel.
A filha de Andrea, Constança, seguiu as mesmas
alamedas que palmilharam tia e mãe. Por elas viria
também a enveredar mais tarde Isabel, filha de Miguel
de Cervantes e de Ana de Vilafranca ou Ana Franca.

23
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

Entretanto diga-se: que tinha Miguel de Cervantes


com a vidairada das manas e sobrinha, embora com pos­
sível beneplácito dos pais, quando toda a alcofaria e
condições de semelhantes conúbios entram para o clima
da época? Pouco ou nada. A atmosfera da casa paterna,
seja ou não legítimo tirar tais ou tais dedu;ões, é que
parece legítimo assentar que era aquela.
D. Leonor de Cortinas faria as voltas da casa en­
quanto o esposo, o Sr. Rodrigo, girava a visitar os doen­
tes, se é que o não detinha a cadeira na barbearia como
presumem alguns. De que viviam? Ao tempo meio
mundo em Espanha vivia com um pé no ar. O povo e
a classe média das cidades levavam uma vida de acaso,
mais que precária. Quem não tivesse latifúndios ou não
andasse no comércio das índias, não pertencesse à Igreja
ou não fosse homem de pena de trás da orelha, como
queria a velha, existia pela graça de Deus. A vida mili­
tar era um desaguadoiro de mandriões. A vida das letras
limitava-se a ser um acessório de outra actividade, muito
parca como fonte de reçeitas.
O Sr. Astrana, que às vezes não desdenha de definir
o conceito que decorre das mesmas realidades, embora
fuja descer às grandes profunduras, aventa que D. Leo­
Dor de Cortinas tivesse casa de hóspedes� Teria. A filhos
e filhas ê que se lhes ignora qualquer profissão civil,
sendo muito vagas as suspeitas de que Madalena tivesse
sido costureira. Presume-se que todas as manhãs, uma
das casquivanas pusesse a mantilha:
-Me voy, madre ...
-Onde te v4sf
-Me voy.
E lá iam para voltar de digressões de que ninguém

24
NO CAV,1LO DE PAU COM SANCHO P,1NÇA

lhes pedia contas, como mulheres livres e discretas,


muito educadinhas e amáveis ao sentir dos vizinhos,
sempre em regra com o cura e as variadas obrigações
paroquiais. O termo discreto, que em Cervantes assume
uma amplitude enciclopédica no sentido do bom enten�
dimento das coisas e decoro pessoal, aqui tem exacta
aplicação.
Uma das tias de Cervantes, Maria de Cervantes, era
barregã do arcediago D. Martín de Mendoza, filho duma
cigana e do 3.0 Duque do Infantado. Daí o aventurar-se
que foi sobre o trama destes amores que Cervantes bor­
dou La Gitanilla, novela que, pelo menos, é graciosa,
e colorida como as rampas dos caminhos em Maio.

Miguel de Cervantes, na idade em que a retina se


dispara a todas as coisas curiosas. do mundo, vai de urbe
em urbe através da velha Espanha. Primeiro Sevilha
com o bulício borbulhante do porto, a vida airada de ruas
e becos, com chalantes, almocreves e os lavradores de
los pueblos, em dias de mercado; depois Córdova quando,
em segqida à guerra das Alpujarras, a cidade se tornara
uma piolheira de pícaros, frades e mulheres de má nota.
Aos moiriscos, agarrados e austeros, que o cristão via
entrar para a huerta, muito sonsos a contar o dinheiro,
tinham sucedido os cristãos-velhos, s6rdidos e ralaços, a
cantar o bendito e louvado seja...
Os bi6grafos, solícitos em querer furtar Cervantes
ao falso labéu de autodidacta, aproveitam-se de duas
referências no Coloquio de los perTos para o fazerem,
como atrás se disse, aluno do Colégio de S. Paulo. Ali,
porém, não se cursava ainda gramática nem o Genuense,

25
NO CAVALO DE PAU COM SANCHO PANÇA

alqueives do jesuitismo. Matricularem-no ainda na Uni­


versidade de Sevilha, foi �ma tentação. Estava reser­
vado para os pagantibus, filhos do senhor seu pai. Tão­
-pouco houve modo de bacharelá.lo em Salamanca. Bulia
com o calendário.
Cervantes com alguém aprendeu a dirigir a pena bem
como o pensamento naquela sua cursiva e lúcida recti­
bilidade. Ao tempo, cortar letra redonda e rabiscar o
nome era uma arte rara. Os meninos começavam pelo
paleógrafo; seguia-se-lhe a cartilha. Miguel, espírito ati­
lado e altamente apreensor, não tinha grandes letras,
de facto, mas quando erra como ignorante, os seus desa­
certos .gão escandalizam.
Em 1566, a Corte, recentemente transferida para
Madrid, veio espertar a urbe dormente. O bulício do
Palácio de Santo Isidro, como o rumor dos tercios, reper­
cutiu por toda a Europa. Entretanto, aconteceu que a
epopeia se entrelaçasse na tragédia. Quando se teria
lembrado Ésquilo daquele inexpiável drama, o pai des­
fazer-se, muito provàve1mente a ferro frio, do filho,
herdeiro do trono? Bem certo que Filipe seria uma alma
à parte no pr6prio mundo dos monarcas orientais , onde
não são raros casos análogos de teratologia moral , assim
espantosos. Não importa que o príncipe D. Carlos fosse
enforcado às manápulas dum archeiro; esganado com
um laço de seda; envenenado no comer; ou simplesmente
vítima do desespero ao ver-se claustrado, excluído de
tudo no mundo, quando na véspera era o mocinho mais·
mimalho da terra, assim ou assado, Filipe, seu pai, foi
o algoz. Aquela face seca, um tanto de ofídio, com umas
farripas aneladas no cabelo e na barba, como se vê na
estátua do Escurial, de joelhos à ba.nda da mulher, mãos
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

postas e olhos fitos em Deus a rezar, é bem o monstro


que remói os crimes que praticou e a quem o remorso
místico sobe.à boca como o quilo bilioso dum orgíaco .
Que razões teria o déspota para assim proceder COD!
o filho ? Há quem diga que D. Carlos se tornara r�u de
incesto com a madrasta, D. Isabel de Valais. Quando
ambos eram crianças, a certa altura trocaram promessas
nupciais. Roubou·lha o rei que, tudo queria para si e
tudo fazià para si. A francesita, ao lado dele, lembra
uma passarinha bonita descuidosa, à beira de um ga­
tarrão pelado e de unhas mal recolhidas. Se ela e o
enteado se amaram, e tudo leva a crer que sim. segui­
ram o pendor da natureza. Que direito natural tinha o
homem batido, meio bordelengo, de todo freudiano,
àquela criança? Segundo os historiadores ingleses e fla­
mengos, a versão acreditada e havida como única plau­
sível para explicar aquele rancor impiedoso, é haver
surpreendido nos dois ternura ou amor, em qualquer
grau, que os ligava. Ela morreu no mesmo ano.
Madrid ador�ecia ruminando infinitas hipóteses de
perversidade, e a imaginação espanhola, por si fértil,
esporeada pelo gume do mistério, tornava-se um muladar
fumegante. Que admira que os hom�ns corrompessem e
na família não houvesse moral alguma embora com o
Cristo pregado do frontal a vigiá-los , ou com <). luz do
azeite a bruxulear às suas chagas verdes no oratório ?
O espanhol vivia exorbitado. E os grandes de Espa­
nha, recios e graves, dir-se-iam todos à uma imbuídos
duma pétrea sobranceria, posto que sobre o melancólico,
género de altivez como a fachada d a catedral de Pla­
cência. Na cabeça, chapéu de copa alta e bordos minús­
culos à maneira dum pequeno cesto vindimeiro embor-
NO CAVALO DE PAU COM SANCHO PANÇA

cada, capa até um pouco abaixo da cinta, ê espada no


tatim; ou chapéu quase raso, com plumas ao vento e
perponte de golpeados, eis como se exibia o espanhol rico
e' mediocrata,
De que vivia Cervantes com os 19 anos plet6ricos
de seiva e todo o desgarre de epopeia, que ao tempo tra­
balhava a alma espanhola.? Não vale a pena enunciar
as duas ou três oitavas à rainha, por azar vindas a lume
como acontece hoje com os versinhos dos poetas glo­
riosos, exumados dos almanaques. O que subsiste,
quanto a ele, desse ofegante lustro filipino resulta duma
provisão real contra un myguel de cerbantes, a bsente,
sobre Razon de aber dado ciertas heridas [ ] A anto­
. . .

nio de Sigura, andante en esta corte [ .. ] condenado


.

A que con berguença publica le fuese cortada la m.ano


derecha y en destierro de nuestros Reynos por tiempo
de diez anos.. .
Os bons rats dJarchive foram dar com um Ant6nio
de Segura, aparejador de las obras-mestre-de-obras,
dizemos n6s-dos reais alcáceres da vila de Madiid,
Aranjuez e Pardo, donde concluírem pelo b.manho da
pena e a letra das Ordenações que devia ter sido rixa
dos dois em Palácio ou pr6ximos arredores.
A pena de mão decepada, com efeito; apenas era ful­
minada, naquelas circunstâncias, a quem tirasse arma
nos paços reais ou em seu circuito, da porta para dentro,
não sendo fidalgo, mas apenas cavaleiro ou escudeiro de
menos consideração.

A fugir à pena da mão cortada, bárbara e desumana,


dos tempos dos reis vândalos, para um moço tão pavo-
NO CAVALO D. E PAU COM SANCHO PANÇA

rosa como a própria morte, eis Miguel de Cervantes


através de meia Espanha, esbaforido, cauteloso, as suas
astúcias raciocinadas de homem espaldadas de todo o
instinto de conservação duma raposa. Várias situações,
especialmente nas Novelas Exemplares, documentam
esta ludibriação da justiça absoluta à força de processos
rocambolescos. Como foi dar a Roma, não o sabemos,
nem o diz. A verdade da história anda segmentada pelas
suas personagens, d�pois de lhe aplicar um verniz que
a esconde ou aspectos que a enfeitam: .. seguí otTO ca­
.

mino diferente. deZ suyo, y en hábito de mozo de fraile,


a pie, salí con un religioso, que me dejó en Talavera.
Desde allí aquí he venido solo y luera de cami1W, basta
que anoche llegué a este encinal [ ] y con esta estra­
. . . . . .

tagema seguramente podré pasar hasta Cartagena, y de


allí a [talia, porque han de venir dos galeras . (LA. .

GITANILLA) •

Na carta dedicatória da Calateia tem ocasião de nos


dizer que foi camareiro do cardeal de Acquaviva, o que
é de aceitar, pois vendo-se em Roma sem eira nem
beira alguma ocupação devia exercer com que acudir
à própria mesa. Semelhante ofício não lhe exigia conhe­
cimentos particulares, 'muito menos de idioma, que um
espanhol digno falará sempre mal afora o seu. O Li­
cenciado Vidraça vem recheado' de citações italianas, no
geral corruptas ou erradas. As funções de camarero ele
as' menciona, mas é bem possível que obedeça à mesma
norma de exactitude que, noutros arrogos de chibança.
e prosápia, lhe havia de sair cara. Nas suas condições
de foragido, um homem resoluto e que não tem medo
de borrar as mãos, não podendo ser o que deseja, in­
clusive espadón de um cardeal ou chulo de uma prin-
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

cesa, à maneira dos gentis-homens franceses do sé­


culo XVII, será lavador de pratos e criado de copa. Cer­
vantes, perante os sucessos contrários da vida, não
escrupulizava a procurar a receita com que dar-lhes
remédio. Para um católico, ou que tem raízes subjecti-
vas no nateiro católico, todas as provações à Job eucou- •

tram homem e segunda resposta.


Mas quando pôde, despediu. No entanto, mandou
pedir, para Madrid, um certificado de limpeza de sangue.
Ser limpo de sangue era não ter judeu nem moiro na
ascendência, pronunciados pelo Santo Ofício. Sendo os
Cervantes de cepa visigótica incontroversa, fácil lhe
foi obter da alcaidaria de Madrid com duas testemunhas
ad hoc o atestado irrepreensível. Correspondia ao que
entre nós se chamava de cristão-velho. O outro, de re­
gisto criminal, fugiu ele de o pedir. Tais alcaidarias,
se não eram distintas, eram autónomas.
Mas aquela sorte de amane servir.lhe-ia de antifaz
com que se pôde apresentar e assentar praça no tercio de
Nápoles. Despiu assim a libré de pajem do cardeal
magnífico, onde tivera papança certa, para se vestir de
papagaio, como ele diz, envergando o dólman e o chapéu
de plumas do arreio militar.
Alistar-se no tercio era um pouco como boje entrar
para a Légion Etrangere. Não se requer ao recruta cer­
tidão de idade nem de costumes. Mede-se da cabeça aos
pés a pulsar-lhe o grau de robusteZ. Se aparenta de
rijo, está inscrito. Para as Oficinas do Despacho, a única
condição era que não fosse judio ou moirisco. O espanhol,
seja a chacinar um povo ou a impor um princípio, bá-de
pôr Deus acima de todas as preocupações terrestres.

I
NO C AVALO DE PAU COM SANCHO PANÇA

Na Viaje del Parnaso, Cervantes finge a certa altura


que acaba de despertar dum sono, ou, melhor, que se
acha na fase de estremunhado e, sob forma de tercetos,
vai dizendo: '\

Y díjeme a mí mismo: uNo 'me engano


esta ciudad es NáPoles la ilustre
que yo pisé sus rúas más de un ano.

Lleg6se en esta a mí disimulado


un mi amigo, llamado Promontoria,
mancebo en días, pera gran soldado.

Mi amigo tie·rnamente me abraza ba


Y con tenerme entre sus brazos, dijo
que dcl estar yo a llí lIIuclzo duda ba;

llam6me padre, y yo llaméle hijo;


quedo con esta la verd-ad en punta
que aquí puede llamarse punta fijo.

Díjome Promontorio: {( Yo barrultto,


padre, q-ue algún gran caso a vuestras canas
las trae tan lejos ya semidi/unto.))

« En mis horas tan frescas y tempranas


esta terra habité, hijo -Ie dije-
con fuerzas más briosas y lozanas.

Dijo mi amigo: <dquel que ves q'ue asoma. . .

3'
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

Certos biógrafos, no intuito de empapoilar a vida


sentimental de Cervantes, pobre como uma urze, de uma
personagem de sonho, a quem ele começa por tratar de
mi amígo, llamado Promontorio, nome de todo histrió­
nico, fazem um verdadeiro filho, fruto dos seus amores
na lânguida terra napolitana. Verdade que lhe chama
filho, como ele a Cervantes pai, mas assim falava n Ó
Col6quio dos penos a velha Canizares para o. cão Cipião:
filho Montiel. E no Promontório encarna tanto um filho
dele como no cachorro Cipião o filho da Camacha.
Procurando uma abonação cronológica, tomando como
dados do problema a idade de Cervantes à altura em que
esteve eIIl Nápoles. na idade louçã, e a data em que foi
editada a Viagem do Parnaso, teríamos que estê mancebo
em dias, pelo tempo em que o conde de Lemos ali estava
também, nunca poderia ter menos de 44 anos.
Só o nome, por si, prefabricado, se tornava suspeito.
Apenas nas novelas arcádicas e de cavalaria se �ncontra
uma onomástica assim estapafúrdia. Brumadilón, diz
o autor duma tragédia, que brumando los hombres tomé
nombre deZ hecho. Como Promontório, Pancrácio de Ron­
cesvales, Chiquiznaque, Franpagos, tunas da primeira
birbantaria, posto em entremez.
Os poetas têm carta branca para estas arremetidas
CQntra o bom senso, a começar pela terminologia. Com
Cervantes era um elastério. Para a vida intensa de um
homem, duas mulheres, três, é pouco. O espanhol tem
o mito da quantidade: D. Juan e as cem amantes, inclu­
sive freiras, ou esposas do Senhor. Ana Francisca de
Vila Franca, Catalina, e uma problemática moira, sob
o albornoz de Leia Zoraida, representam um recheio
depreciativo para a vida amorosa dum herói nacional.

32
NO CAVALO D E P A U COM SANCHO PANÇA

Peça-se a este Promontório passadiço para uma chica


naJX>litana, a seguir do balcãozito florido, via fora, im­
pregnada de lazaronismo, com olhos gris-pérola, apreen­
sivos de perdição, o garboso condottiP.1'e.
Que dúvida que Miguel de Cervantes se batesse com
denodo ? ! O espanhol, onde lhe seja preciso terçar armas ,
bate-se como ninguém no mundo : até a morte. Melhor,
a morte não o intimida. Todos os instintos que prendem
o homem à vida desaparecem para ele. Fica s6 o sentido
da sua fúria. É o que se chama na linguagem da meseta
portuguesa: um homem perdido. Perdido, quer dizer que
se soltou de todos os vínculos e obrigações. Atirar-se-ia,
pois, às cegas Miguel de Cervantes, e testemunha-o
a sua mão. Na coberta não apanharia a chumbada. De
ordinário, os cobardes só por acaso ou má sorte são
feridos. Quem cai senão os ousados? Só morre nas ondas
quem se abalança ao mar. E ficou para todo o sempre
maneta, sacoto, aleijado ? Ficou para todo o sempre el
manco sano. Mas há aqui um grande anfiguri.
Miguel de Cervantes teria ficado leso do braço, mas
não de modo que tivesse de abandonar, inutilizado, a
carreira das armas. Pois não está assente que figurou
na jornada de Tunes como praça do tercio de Figueiroa,
vindo dep:>is na sua nave hibernar à Sardenha? Para o
ataque, a mão direita é que dá ao gatilho, despede a
flecha, manda a lança ou assesta a espada, embora a
esquerda não deixe de ser uma auxiliar preciosa, atenta
aos seus frémitos. Disseram- e ele, talvez constrangi­
damente ou pro forma, o invocou numa das requestas
improcedentes de mercê -que tomou parte na expedição-.
dos Açores. Quem tomou parte foi Rodrigo. Verdade qu�

33
,
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

podia, sem embargo do estropiamento, ter tomado parte.


Bastava que estivesse na Manutenção.
Neste capítulo, o devocionismo espanhol acomoda-se
a todas as modalidades. Para uns é inválido da mão, para
outros maneta, para não poucos canhoto. Não raro, inde­
terminadamente mutilado. Para todos o manco glorioso.
De si próprio diz no Prólogo das Novelas ExemPlares:
Perài6 en la batalla naval de Lepanto la mano izquierda
de un arcabuzazo. . Porventura teria querido dizer que
_

perdeu o seu uso, não a mão por lha ter levado a arca­
buzada. Leonor de Cortinas, para fazer jus no Conselho
da Cruzada aos 60 escudos do resgate, alega que seus
dois filhos serviram na Itália, Flandres e galeras na ba­
talha naval, donde al uno de ellos le cortaron una mano
y aI otro mancaron. Se a pobre, como mãe, seria capaz
de dar o sangue dos braços, é legítimo que se lhe faça
agravo por ser me,Dos verdadeira com a secretaria sala­
frãria ?
Na Viaje del Parnaso Cervantes é mais restritivo.
Diz-lhe Mercúrio:

. . . . . . has respondido a ser soldado


antiguo y valeroso, cual lo muestra
la mano de que estás estropeado.

No Laurel de A polo o corrobora:

porque se dijo que una. mano herida.


pudo dar a su dueiio eterna vida.

34
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

Na Epístola a Mateo Vázquez) em verso, declara a


certa altura:

A esta dulce sazón. yo, triste, estaba


cm la una. mano de la espada asida
y sangre de la. otra derramaba.
E! pecho mio de profunda herida
sentia llagadoJ y la siniestra mano
estaba por mil partes ya rompida.

Esta prosopopeia se destoa é no nosso tempo sem ideal


e sem mística, e pronunciada a sangue.frio por boca que
não de espanhol. Fora disso, aquele por mil partes ya
romPida é a verdade épica, mentirosa apenas na prosaica
realidade.
O equívoco que se manteve entre aleijado e canhoto
foi obra desnecessária dos bi6grafos fanáticos, quando na
voz de Cervantes era apenas poesia e nos memoriais
modo piedoso de presumir fazer-se ouvir das orelhas
moucas. Cervantes não teria perdido o uso integral da
mãÇl, mas permitia-se, ao gosto tão castelhano , de fazer
gléria da sua manquedad. O soldado de Lepanto, no
discurso quanto à superioridade das armas sobre as
letras, não se esquecia nunca do convés da sua fragata.
Mas o conceito espiritual que perpassava nas palavras
proferidas é que vai sendo relegado, para bem do género
humano, ao mundo das coisas obsoletas.
Em 1590, perto do fim da sua vida, Cervantes, pobre
e atulhado de miséria, dirigiu um memorial a e1-rei pe­
dindo lhe faça mercê de um ofício nas 1ndias, recomen­
dando-se com dizer que ele e irmão fuerO'/1. seruir a V. M.
en el Reyrw de Portugal y as las terceras con el marqués

35
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

de S.r- Cruz. Estube en la batalla Naval, donde le dier'on


muchas heridas, de las cuales perdió una mano de un
arcabuçaço [ . . . ] estube en Navarino y despues a la de
Tunes y a la Goleta.
Foi-lhe denegado com as palavras seguintes: busque
por aeá en que se haga me;rced.
Pobre Cervantes, levado a sofisticar o aleijão para ter
de comer ! A �rvir-se dele como um velho lázaro no
arraial ! E com que v�nia o trata a politicagem e que
despacho lança em seus requerimentos ? ! Coitado, agi­
tava a mão lesa e tornada inútil pela zagalotada, como
se tal diminuição merecesse dos governantes ser compen­
sada com alguma conezia ! As conezias eram reservadas
para os amigalhaços. os influentes, os corifeus, os afi­
lhados do bispo, quantos na cboldraboldra dos cortesãos
têm braços de légua para açambarcar e unhas, as tais
unhas de Durandarte, e de modo algum para quem que­
brou as suas a bem servir, e não poderão jamais arra­
nhar, nem dar ou parar referta a tempo e horas.
II
o Magrebe e a nwbilidade. Ceuta. e a megalomania
inconsequente. Argel, nwdrigueira de piratas. A s
Ordens Religiosas da -rede.nção e resgate. Cervantes
cativo e escravo. BUTla histórico-bibliográfica. Diego
de Haedo autor dum livro que não escreveu. Um
suposto ou ignorado po-rtuguês, grande cid4dão e
humanista. Sousa ou Sosaf Frei Luis de Sousa e
Cervantes. À legenda poética e a realidade. Lágri-
mas e risas do ergástulo

MA
U
das épocas mais assinaladas na vida de Miguel
de Cervantes foi o seu cativeiro em Argel. Nada
que mais o afectasse. O Magrebe tocou-o como
um Sinai.
Magrebe é todo o Norte de Africa, desde o Egipto à
orla atlântica. Areia, oásis, tribos nómadas, simum, e
uma característica inerente a seres e coisas , à história e
à lenda: mobilidade. Porém a mobilídade não é condão
apenas das dunas, mas das raças, dos sentimentos, do
carácter, das profissões e, dentro do Islam estável no
:sistema planetário das religiões , da sombra· de Alá, o
Grande. O árabe do deserto sente-a em sua alma como
a asa dum abutre, escorregando de alto sobre a plaga
abrasada do meio-dia.
Quem se fia em moiros ? Palavra, para eles, no bom
sentido de lealdade e sujeição ao compromisso, foi uma
figura literária de Chateaubriand, que nunca teve ágio.

37
NO CAVALO DE PAU COM SANCHO PANÇA

Fixo, sob o selo determinista da metafísica, sim, o isla­


mismo. Mas é como as paredes do tubo em que turbi­
lhonam as partículas do caleidoscópio. Mobilidade im­
plica inconformação e um contínuo e fluido bater de vaga.
Onde passaram os fenícios com as famosas Tiro e Si·
d6nia ? Cartago e Útica ? A Numídia e os cavaleiros fa­
mosos, as fatais e românticas Sofonisbas?
Depois dos romimos, dos vândalos, dos sarracenos,
dos turcos, dos normandos, quantos povos até os fran­
ceses assentarem ali arraial, arraial condenado a desar­
vorar em algumas década s ? Antes de Rogério II, ainda
na alta Idade Média, é provável que por lá tivessem es­
tanciado os navegadores algarvios. O geógrafo florentino
Canuto, douto organizador da cartografia que abrange
do século x ao século XIV, parece identificar com a
oppidum quod dictum fuit de Saneto Carolo, em Mar­
rocos, a Casa-Branca dos portugueses. Depois estes, em
1415, tomaram Ceuta, ((chave de todo o mar Medyoter­
raneo)). Para. quê ? De quem fechavam eles as portas do
Estreito? Dos piratas ? .
Perguntam-se ainda hoje os historiadores que foi ali
fazer D. João I. Argumentam alguns-e a razão pare­
ce-DOS fútil - que concebeu aquela diversão, depois do
tratado de paz com Castela, como pábulo a dar aos seus
turbulentos homens de armas. Assim se lê em Azurara:
ha'Vendo perdido a ocasião de fazermos nossas entradas
per aquelle regno de cujos rrOubos enrrequeceramos toda
nossa terra � os nobres homens teveram tempo e azo de
exercitar $ua5 forças e valentias segundo pertence aa
viveza de sua. idade.
Não encavaquem os patriotas honrados perante a con­
fissão do cronista ingénuo. Àquela altura dos tempos,
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

guerra era, sobretudo, latrocínio. Se ainda hoje o agar­


rado - como diz o outro-é do agal'rante, quem agarrou
agarrou, quem não agarrou agarrara, muito mais era
esta a lei geral naquela época semibárbara. 'Tudo rou­
bava: nações a naçõesj condes a condes; filhos a pais.
Seria então para os {(fidalgos e homens-bons pos­
suírem onde exercer a actividade e não desarvorar a fazer
danos aos de Castela)) que se organizou aquela custosa e
arriscada empresa. Mas repugna admitir que lhe fosse
estranho o móbil religioso. O inimigo nato da Cruz
'
era o Crescente. Os cavaleiros, quando velavam armas
juravam acrescentar de espada em punho a seara de
Cristo à custa do infiel. Cortar o caminho da pirataria
que vinha do Levante e Norte de Africa ? Com as duas
chaves em punho, Ceuta e Gibraltar, os piratas atraves­
savam e tornavam a atravessar o estreito em suas naus
velozes e hergantins, como se palmilhassem o corredor
de suas casas.
Em Argélia e na Tunísia iguais vicissitudes se desen­
cadearam com a dominação dos heis, subordinados estes
à Sublime Porta ! Argel e Tunes haviam-se tornado
ergástulos de cristãos. Sucessivamente lançaram-se con­
tra as suas muralhas e fortalezas Espanha-, Inglaterra e
França. A França varreu a pirataria e introduziu a civi-
.
lização ocidental. E agora ?
A mobilidade é condão do Norte de Africa, nas popu­
"
lações, nas harkas que descem da Cabília, do Atlas e de
outros montes, nos rebanhos que vão e vêm através do
bled e imensidades desérticas, e nos pr6prios senti­
mentos. Que mais volúvel que o coração de um moiro ?
Depois de Lepanto, voltou o turco ao contra-ataque.
Retomou a Goleta, e com ela Espanha perdeu Tunf'C'

39
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

Os expedicionário" que não ficaram a alimentar os sagres


do Atlas, trataram de regressar a Espanha. En tre eles,
na Sol, .depois de curta demora n a Sicília, estavam os
manos Cervan tes. A galera, acometida por quatro navios
piratas de Argel, teve de render-se destroçada e presa
das chamas. Miguel de Cervan tes ia aprender o que vale
a liberdade, seiva nutriz do homem e das civilizações.
Aconteceu. em TângerI os represe n tantes das três sobera­
nias principais do Magrebe procurarem, remon tando o
curso da História, levantar uma tranqueira comum que
os defendesse, diziam eles, do imperialismo ociden tal.
Não seria, porém, caso de perguntar se não estavam mais
uma vez a escrever n a areia ?

Uma literatura vastíssima, particularmente hispâ­


nica, con sagrou-se a descrever Argel, com as galeras
subtis, aptas ao corso, batalhas n avais, saque das popu­
lações costeiras da Europa Meridion al, compra e venda
de escravos, desbragamento do meio bárbaro, fereza rai­
vosa dos berberes, e misérias e lástima infinita dos cati­
vos. Comparado com o regime a que estes eram subme­
tidos, o cativeiro de Babil6nia represe n tava uma magní­
fica vilegiatura à beira do Eufrates. Os judeus podiam
cantar as saudades de Sião e pendurar as liras nos sal­
gueiros frondosos da terra mesopotâmica. Em Argel, os
pobres europeus trabalhavam debaixo de chicote nos
barinéis e nos campos, e eram objecto de veniaga, tro­
cados e vendidos nos mercados, denominados badistans,
que os nossos cronistas, induzidos pela consonância, vie­
ram a chamar batistães. Ali se punha à prova o seu
estado de robustez, tal como os troquilhas faziam com
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇA

os animais, experimentando-Ibes os reflexos, com bater­


-lhes na contracurva dos joelhos e no cogote, passando-
-lhes revista aos dentes, obrigando-os a marchar a chouto
e a galope na parada, etc.
Da massa destes cativos, sem nome, sem medo e
sem responsabilidades, saíam os renegados. O sofri­
mento tinha limites. Uma vez que abjurassem da lei em
que haviam nascido e abraçassem o novo estado de coisas,
acabava-se o cativeiro.
Era disso que se temia o P .. Graciano no Tratado de
la, l"edempción de. capti'i./os. Por toda a Berberia se veri­
ficava andar a" grande maioria dos cristãos esquecida da
lei de Deus e em riscos de perder-se. Os moiros empe­
nhavam-se particularmente em conduzi-los a renegar,
casand<H>s com as filhas, às vezes ricas e bonitas.
E acrescenta na mesma ordem de ideias o padre: Doze
mil escudos, ouro, prometia certo moiro a um sacerdote
cativo em Tunes se quisesse renegar e casar com a sua
menina de 15 anos, a qU4l era extremamente bem-Pare­
cida. Com semelhantes tentações por um lado, sevícias
por outro, os trânsfugas para o arraial de Mafoma eram
aos cardumes.
Y para que se entienda la obligacián pastoral de acudir
a los captivos, quiero dezir e1 gran numero que ay dellos:
la falta de sacramentos y abundancia de supersti-ciones, y
ocasiones urgentes de pecar en que estan enlazados. Hize
con mucho cuydado averigU4ción que en Tripol, Su-sa,
Tunez, Biserta, Bona y Argel, se hallan oy dja mas de
veynte mil Christianos captivos, sin los que ay en Cons­
tantinopla y toda Turquia, y en los Reynos de Fez, Mar­
rocos y Tituan. Y los mas dellos (segun experimenté en
los que tenia comigo, y me informé) hallé que estavan

4'
----- --- -

N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

caydos en vicios abominablesJ y "avian llegado aI pro­


fundo de la maldad J obstinados en sus pf!cados, ensu­
jiados con deshonestidad de toda suerte, manchados con .
blasPhemias, adios, rabos, desprecio de Sacramentos,
desesperaciones, palabras mal sonantes contra la fé y
aun heregias claras, castigo, doctnna y buen exemplo,
y sobra de ocasiones, libertad para pecar, y têtaciones
deZ demonw. Pues hanse de quedar estas hermanos
caydos en el barranco sin luz, sin sol, sin guia, man­
dando Dias que se saque el buey deI proxima, aunque
sea en Sabado ? [ . ] Es cierto que no ay avejas en todo
. .

el Tebano de Christo, mas necesitadas del cuydado de


los pastores. [ . ] Es cosa muy a�Jeriguada que de los
. .

muchos que cada aiic vã captivos, 'mas de la mitad, y


aun las tres partes reniegan la fé. . . .
E falando do processo de sedução usado para com os
rapazinhos europeus, diz: A uno destas di una patente
pOf' la Inquisición.
Por isso mesmo, os seus senhores preferiam guardá­
-los atraindo-os à sua causa. Os cabedais de que dispunha
a Ordem da Santíssima Trindade não chegavam a tudo.
E era dentre os que tinham de ser preteridos, gente da
arraia-miúda, sem frio nos olhos , desamparados e ambi­
ciosos, capazes de lançar o mundo pela borda, que saíam
os temíveis arrais , capitães das galés piratas.
Quase durante 3 00 anos Argel fez derramar muitas
lágrimas às mães cristãs. De princípio, no tc;:mpo dos
Barbarroxas, respondiam: Unha por unha, dente por
dente. Não expulsaram os moiriscos de Espanha, os rou­
baram, mataram, desgraçaram, queimaram nos autos­
-de-fé e deixaram apodrecer nas masmorras ? Depois,
com o dobar do tempo, a única filosofia com que justifi-

42
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA NÇA

cavam a abominável veniaga era a cínica necessidade.


O corso tinha-se tornado a única e rendosa indústria dos
povos do Norte de Africa. João Carvalho de Mascare­
nhas, que viajava na nau Conceição, da carreira da índia,
e sucumbiu ao ataque de 17 galeras argelinas, depois de
her6ica defesa e grande morticínio nas tripulações, conta
o que viu e passou como cativo. É uma das mais dra­
máticas e coloridas páginas da História Trágico-Marí­
tima. Contemporâneo de Haedo, é mais impressivo e
empolgante do que ele. Os ingleses eram os únicos que
entravam em Argel e saíam com todas as imunidades e
franquias. Ao tempo,. os seus barcos içavam o jack de
corso tão fácil como os capitães abriam a Bíblia.
A França amansou e civilizou aquela corda de terras
agarenas que andavam fora de toda a lei, arrasando os
antros abomináveis. E agora pesam aos argelinos e tuni­
sinos os grilhões que outrora deitavam aos outros. A his­
tória vai-se desdobrando segundo um ciclo sem fim e
mal é que paguem os homens dois dias de sol com cem
anos de tempestade.

Nos tombos do Arquivo de índias, de Sevilha, exumou


Céan Bermúdez o documento mais curioso que se podia
imaginar sobre o cativeiro de Cervantes. Ficou a titular­
-se pela primeira palavra da epígrafe, como as encíclicas
do papa: Informaci6n. No ter:ceiro centenário do Quixote,
Pedro Torres Lanzas publicou-o na íntegra. Salvo esse,
apenas um livro antigo derramava alguma luz sobre o
trânsito do escritor pelos ergástulos da pirataria. Foi,
ao que parece, Martín Fernández Navarrete o primeiro
a chamar para ele a atenção. Trata-se dum in-f6lio,

43
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

pequeno, 2IO págs. fora o índice, numeradas no anverso,


duas colunas:
TopograPhia, / e Histo- / ria general de Ar- / gel, re­
partida en cinco t1'a- / tados, do se veran casos estra- I
nos, muerles e/pantolas, y tO'rmentos exquifitos, I que
conuiene le entiendan en la Christian- I dad: con mucha
doctrina, y ele- / gancia curiosa. / Dirigida al llustis­
simo (sic) seMr Don Diego / de Haedo Arçobifpo de
Palermo, Prefidente, y Capitan Gene1'al / dei Reyno de
Sicília. / Por el Maestro jray Diego de Haedo A bad de
FrOmefta, de la Orden del Patriar / ca. fan Benito, na­
tuml de VaUe de Ca1'rança / (armas episcopais) Con
Privilegio / En Valladolid, por Diego Fernandez de
Cordova y Oviedo lmpreffor / de libras. Ano de
M.DC.XII . / Acoita de Antonio Coello mercader de libros.
Da carta dedicat6ria ao mesmo arcebispo de Palermo,
de que vamos extractar a 'parte capital , verifica-se que
nem Diego de Haedo, sobrinho, é o autor dos tratados,
reunidos em livro, nem tão-pouco D. Diego de Haedo,
tio, se pode inculcar de averlos compuesto. Nada mais
que dos períodos que se seguem, é latente a usurpação
de Heado sobrinho, senão dos dois reverendos Haedos ,
associados.
Entre otras muchas razones ii me mueven (Ilustris­
simo sencr) para de (sic) didicar a V. S. I. estas escri­
tos: dos tego por mas princiPales. La primera es: que
en su persona (sin lisonja alguna) cabe muchas alaban­
ças y excelC'f1Cias; pera es tan modesto y humilde V. S.
que las aborrece, y huye dellas, como de ofensas. Y assi
suPlico a V. M. me de licencia para dezir algo, ya ii no
sea todo. La segunda es averlos compuesto V.S. siendo
informado de Christianos cautivos: especialmente de los

44
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

ii se contienê en los dialogos que estuvierõ muchos anos


en Argel, y 4'l1ernOS los entregado, estando yo en Palermo
en su semeio.. aumque en borrõ: de manem ii s1n el t,.a­
baja y diligência ii en ellas he puesto, dãdoles la ultima
forma y essencia, no se podiã imprimir, ni sacar a luz:
pues son de V.S.I. se los buelvo y ofrezco para ii 5ean
Tecebidos y estimados como el mucho valor deZ autor
merece, €n" los quales se conoeero, el zelo santo ii en
V. S. I. mora, compadeciendose de los inmensos traba­
jas, ii los Christianos cautivos padecen en Argel, y de
los grandissimo� danos ii a la Christiandad de aqui se
siguen, manifestãdolos aI müdo en esta historia: para ii
todos los ii luere piadosos, se mue-uã a buscar su renu­
dio: en lo qual muestro, biê V . S . I. 51.1. pio, y generoso
animo, y la noble sangre de su nacimieto derivada de
aquel ilustrissimo Duque de Cantabria, senor de Biz­
caya, llamado D. HedU<J . . .
Portanto Diego de Haedo, abade de Fromesta, não
é o autor original destes escritos, pois que confessa rece­
bê-los do tio, o bispo de Palermo, que por sua vez os
redigiu sobre informes, diz primeiro, debaixo da forma
de borrõ, que lhe entregaram, estando ele ao seu serviço
no Paço, os cativos que residiram muito tempo em Argel ,
diz depois, metendo os pés pelas mãos . Acrescenta que
lhes deu. a última forma e essência. A última forma
ainda era possível , a essência evidentemente que não.
Mas esta mal trafulhada página, confusa, cheia de con­
tradições} denuncia à saciedade qual o estofo do frade
bento. A natureza do contexto, primeiro, ° bosquejo
de Argel e seu termo, depois os diálogos afastam a ideia
de uma interferência, mais que perfunct6ria, na confec­
ção do lívro, de pessoa que não tivesse pisado e demorado

45
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

e m terra argelina. Isto, de resto, deixava entender. Mas


tão-pouco lhe deu a forma. A forma revela a mão inegá­
vel doutro cunhador. A cada passo se encontra a marca
pessoal: eu, eu, eu. Ora nem estas dedadas dactilosc6pi­
cas apagaram os Haedos. � que nem sequer se impor­
tariam de revisar a obra.
Como se verá, os Haedos não passam d e gralhos
que, com penas d e outrem, armaram roda pavónica de
escritores. E é imerecida a lápide que em 1905 se pôs na
casa de Carranza como sendo Haedo o primeiro biógrafo
de Cervantes.
A bibliografia espanhola menciona um D. Diego de
Haedo y Gallart, autor da Viage / Sucessos, I y guerras
deI / Infante Cardenal / Don Fernando / de A ustria . . .
lmprenta del Reyno, Ió37- mas supomo-lo apenas apa­
rentado pelo nome. Ao Haedo da Topografia não se me
afigura calúnia havê·lo por um perfeito falsário. Mas
. isso não bole com a fidedignidade dos sucessos que re·
lata, pois que se limitou a ser o seu ocasional e furtivo
estivador, à cabazada. Celebra o sobrinho as virtudes do
tio que ia, pelos dados que fornece, nos 86 anos. Não
admira que, leitor de boas letras divinas, fosse excelente
criatura e desprendido dos bens terrenos, tanto assim
que pôs o manuscrito alheio à disposição do sobrinho.
Começa a Topografia por descrever Argel, a sua
evolução como cidade e como povo, e logo se sente, de
quando em quando, o testemunho ocular: bien lo mues­
tran las antiguas mesquitas, el puerto que oy dia vemosJ
mormente quando descreve a cidade com suas ruas e
portas, como quem por elas entrou. e saiu muitas vezes.
Depois de descrever as muralhas e bastiões, a parte con­
sagrada a costumes, à recenção de galeotas, baixéis e
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

corsários, com seus bancos e arrais J pelo que respeita ao


ano de 1581, e à língua de trapos que falam formada de
vocábulos de todas as plagas, ainda de pcwtugutses de
poco aCG, despues que de Tetuan y Fez truxel'on a Argel
grandissimo numero} que perdieron en la batalla deZ
Rey de Portugal, don Sebastian, é perfeita e acurada.
Em tudo, palpita-se o observador que dia a dia foi to­
mando as suas notas J corregendo-as. e de modo algum
aquele que, ouvindo outrem dar fé do que viu, gatafu­
nha o apontamento, usando até a terminologia, prolixa e
agteste para '!lD. ouvido europeu, em que se tropeça a
cada passo.
À crónica, cuja tessitura geofísica e etnográfica im­
plica presença efectiva e. demorada, sucede-se uma Se­
gunda Parte ou hist6ria de Argel desde Barbarroxa até
Jafe-r Baxá. E fecham semelhantes anais: Hasta oy, los
acho de Março de 1581, que son ocho meses, que Reyna
y govierna (lafer Baxá), quando esto se escrive. Conti­
nua e remata no Epitome de los Reyes de Argel, bas­
tante sumário, que vai desde 1581 até fins de Setembro
de 1596, com Mustafa Baxá, trigésimo-primeiro hei de
Argel. Pelo estilo, fácil é de reconhecer que o autor deste
suplemento é doutra mão.
A segunda metade do in-fólio é ocupada pelos Diá­
logos, e interlocutor em todos eles o Dr. António de
Sousa, que evidentemente os escreveu. Chama-se o pri­
meiro da Captividade, o segundo dos Mártires e o último
dos Morabutos, onde se entrança a história dos trabalhos
e vida do cárcere com a fábula e lugares pitorescos da
crónica antiga.
Logo quase a abrir, fala António:
- A 19un dia os mostraré unos papeles que aqu1

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N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

tengo: en los quales recogi con la mayor diligencia que


pude las muertes y martyrios de muchos, ii les dierõ los
turcos en efta ciudad de Argel y CTeo ii hallareys en ii
alabar e1 Seiíor.
Ap6s vénia do contracenador volta Sousa:
-A 514. tiempo ansi será, porq aun no los he aca­
bado de límPiar y poner en perfeci6n.
Mais adiante:
- Y quien, de quantos estamos en Argel, es el que
deste caliz no beve SU$ tragos? Porque si a mi (que 50y
un pobre Clengo) han hechoJ de $14. propria autoridad
& plenitude potestatis, Obispo y despues Secretario
intimo y de la puridad deZ Papa, ii estava acho horas
cada dia encerrado cm 514. Santidad en una camara, y
solos tratando gravissimos negocias de la Christiandad,
y despues me hizieron Cardenal, y despues castellano
deZ Castilno'Uo de Napoles: y (l()rQ me hazen confessor
y maestro de la Reyna de Espana: y para esto han so­
bornado Turcos y Moros, ii lo afirmassen: y.aun no fal­
tarDn maIos Christianos (como sabeys) desta casa y de
/uera que, por contentar a mi patron, le dixeron que era
ass1: hasta traerme aqui delante Turcos huydos de Na­
poZes poco ha (segun tenian acordado) que dixeron y
publicaron que, en Castilnovo de Napoles, avian sido
mis esclavos y servian de cocineros. A vos tambien hazen
gran senor, riquissimo ca'Uallero de Malta, pariente de
grandes senores y prelados de [talia y Portugal, y a Juan
Botto (que esta aqui) tambien riquissimo y gran Comen­
dador de Malta, y a Antonio Garces, nuestro compafíero,
ca'Uallero muy princiPal y muy noble en Portugal. Y fi­
nalmente tomando nuestra galera de Malta san PabIo
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

("" que todos fuymos captivos) hasta a /os forçados y


buena.s boyas no los baptizaron por cavalleros f
Páginas mais longe , já no diálogo segundo dos Máf'­
tires, volve Sousa para o amigo:
- Tome V. M. He ai los papeles, lea cm atenci6n.
Segue.se a Mem6ria de alguns suplícios, e a pâginas
184 - 185 a fuga preparada por Miguel de Cervantes,
un hidaZgo princiPal de A lcalá de Henares, de concerto
com mais 15 cristãos escondidos na furna do hortelão
de Assan-Baxá.
Com estes rápidos enunciados queda exemplificado
que os Haedos pouco ou nenhum prego ou estopa mete­
ram para a composição do livro precioso. Ant6nio de
Sousa é na mais verosímil das hipóteses o seu autor,
à parte o pequeno suplemento do epítome histórico, es­
crito a pedido dos Haedos, admitamos, por um terceiro
que regressasse de Argel.
Quem era este subentendido autor da Topografia,
Dr. António de Sosa, ou de Sousa , sendo português
como entendem os estudiosos espanhóis, a começar por
Pérez Pastor ?
Em princípios de 1576 ou 77-ia em menos de ano
o cativeiro de Miguel de Cervantes, àquela altura iden­
tificado como grande de Espanha, sem mais importân­
cia, porém, que a da sua presunçosa grandeza, mas como
tal avaliado caro pelo síndico, vago poeta de água doce
nas horas de ócio-entrou para os cãrceres da pirataria
um homem de aspecto venerável e já entrado nos anos.
No pendor da vida, licenciado em cânones : o Doctor An­
tonio de Sosa.
Tinha sido aprisionado por um corsário judeu, Maha­
met, a bordo da galera de Malta , S. Paulo, junto às

49
4
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

costas d a Sardenha, ao que parece quando se dirigia para


Roma. Donde vinha ? Não o diz ele nem a acta da prisão.
Pelo saber e acendrada espiritualidade, breve deu nas
vistas. Os piratas, a inferir do seu aspecto grave e
composto, consoante o hábito de realçar o valor da presa ,
supuseram logo um alto dignitário eclesiástico. Ele pró­
prio se lhe refere e queixa-se como vimos.
Daqui resultou o cativo merecer um regime especial :
cadeia no pé, calabouço subterrâneo, incomunicabilidade
·ou severa quarentena nas relações. Mas isentaram-no,
como tal, do trabalho forçado da derrubada de árvores
nas matas, cava dos ca.mpos, corte de pedra nas marmo­
reiras, limpeza das ruas , e doutras tarefas braçais em
que era utilizado o comum dos escravos.
Sem que hajam penetrado o mistério que, em geral,
envolve a pessoa do ilustre cativo, os biógrafos de Cer­
vantes tratam-no com unânime consideração, dir-se-ia,
gratitude patriótica. Além de homem mansíssimo, dado
às letras e consumado latinista, ganhou-lhes o coração
ser uma das personagens benignas do drama cervan­
tino no cativeiro. Seria realmente de nacionalidade por­
tuguesa como enuncia Pérez Pastor : clerigo portugues,
amigo de Cervantes, cauti-uado em 1577 y rescatado em
158r. ?
. .

O·mesmo autor, porém , o dá como vizinho de Madrid,


ao extractar do protocolo de Juan de Yarza a página nota­
rial em que o humanista se obriga perante uma Maria
Ramirez da quantia de 1.320 reais que ela lhe entregou
para remissão da filha, cativa em Argel. ::e certo que
tal circunstância não briga com o facto da nacionalidade,
tanto mais que se reporta a uma data em que Portugal
estava unido a Espanha. O que há de singular é que
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

ele próprio assine Antonio de Sasa. Que os espanhóis


tenham adoptado esta grafia , e assim se vê no Trato de
Argel, no diálogo de Cervantes com Leonardo-os dois
Sosa-não é argumento pois a trazer a favor ou contra
a sua origem. Porém, muda de figura sendo do seu pró­
prio punho que dimana semelhante forma de escrita.
Tratar-se-á. apenas, duma grafia de ubiquação? Em
Roma sê romano.
Que era um humanista de primeira envergadura res­
salta dos diálogos publicados por Haedo, de que nin­
guém aliás lhe' nega a autoria, pois ele é o primeiro
interlocutor com cativos de verdade, como D. António
Gonzalez de Torres, cavaleiro do hábito de S. João, e
Jerónimo Ramirez, capitão dos terços da Lombardia .
. Segundo Pérez Pastor é ainda o autor: do Memorial
dirigido ao Papa Gregório XIII e príncipes da cristan­
dade, em prol de Fr. Jorge do Olivar, cativo dos moiros,
inserto no livro Gloriosa Fecundidad de Maria. A his­
t6ria do cativeiro deste frade, .tão de perto ligada à sorte
de Cervantes·, merece ser contada e é sucinta. Era um
dos padres da Santissima Trindade por Filipe encarre­
gados do resgate, que, de ordinário, como desde que o
mundo é mundo, começava sempre pelos ricos ou que
gozassem de algum relevo social. A igualdade é· só para
o céu, não para as coisas da "Terra, mesmo quando são
sacerdotes a superintender. Não era a primeira vez que
este religioso vinha a Argel com o seu taleigo de duca­
dos. Duma de tantas, porque se lhe esgotasse a escar­
cela ou os resgates a que os trinitários procederam repre­
sentassem um discrime clamoroso para os humildes,
provocou a revolta dos cativos. A revolta revestia este
aspecto extremista : renegarem com todas as consequên-

5'
NO CAVALO DE PAU COM SANCHO PANÇA

cias que comportava o facto. Modo de aplacar o alevante,


que ameaçava 5-11hverter nos banhos o credo cristão sob
a vaga das apos..a.5��.:.. ajustou.se que fossem restituídos
à liberdade, dando-se Fr. Jorge em reféns até Assan ser
embolsado da som3 estipulada pelo resgate. O contrato
foi fechado nestes termos, que não eram in'éditos, mas
o dinheiro é que nunca mais chegava a vir dos cofres
reais de Espanha. Daí o tomarem-no debaixo de olho,
suhmetendo-o, embora decepado dos anos, a tratos inu­
maníssimos, não 56 para forçar a liquidação pecuniosa,
como por espírito de represália. para mais suspeito
de conivência nas fugas que se haviam dado, ao mesmo
tempo que exercia o papel de redentorista. Perto de dois
aDOS decorridos, o pobre padre chegara à última das
misérias. Para os cativos o egoísmo é uma das leis de
defesa da pessoa. Que se importavam com ele? A morte
com que o ameaçavam ora e sempre ser�lhe-ia refrigério.
Foi então que o Dr. Sosa endereçou aquele Memorial,
redigido em latim; expondo a situação de Fr. Jorge do
Olivar. Assinaram os cativos notáveis, entre eles Cer�
vantes. O geral da Ordem tratou então do resgate do
seu freire, compu�do em 4.000 ducados de ouro e a
pagar na palma da mão. Durante a detenção, que durou
13 meses, diz o Memerial, não obstante impenderem
sobre a sua cabeça terríveis ameaças, mostrou sempre
conduta irrepreensível, sereno, moderado com todos, e
era sempre o primeiro que se encontrava à cabeceira
dos enfermos e com a assistência de quem cohtavam os
aflitos.
Pérez Pastor publica ainda um segundo extracto
dos protocolos: o Dr. António de Sousa, clérigo, estante
em Madrid, dá poderes a Ruy Fernandes Pereira, portu-

52
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

guês, residente em Sevilha, para vender uma licença


que S. M. lhe concedeu para exportar destes reinos mil
coiros de vaca, dos que vêm das índias, pelos portos indi­
cados na cédula passada em Lisboa a 1 9 de Dezembro
de '58!.
Semelhante documento, porém, pouca ou nenhuma
luz traz ao problema da origem do Dr. Ant6nio de Sousa.
Os eruditos portugueses que se ocuparam com o autor
do D. Quixote, desdenharam ou não tiveram vento al­
gum deste homem. Todavia ele foi , segundo se depreen­
de, durante os inclementes anos que Cervantes penou
no cativeiro, o seu anjo custódio, por assim dizer, uma
espécie de Nestor. O balo de uma personalidade incon­
fundível , a bizarria e franqueza de carácter, que inegà­
velmente eram constitucionais erp Cervantes, teriam
conquistado o velho humanista, que parece lhe foi mesmo
útil em mais de um passo difícil. Para isso, calcule-se
o que numa sociedade primária, rendida aos móbiles
quase exclusivos do instinto, se não exigiria de ascen­
dente, ganho mercê de reais dons de simpatia e altitudl!,
não apenas mental, mas de carácter. Tal prestígio, verl­
ficado vezes sucessivas, garante-nos que o Dr. António
de Sousa era homem pouco ordinário. Não há dúvida
que a sua voz se impôs sempre que bateu a hora crítica.
E a aura do respeito, criada tanto pelo fulgor das suas
virtudes como da sua sabedoria, conferira-lhe vulto dis­
tinto no cativeiro, e uma autoridade de juiz à maneira
do Antigo Testamento.
Seria, de facto, português o homem, misterioso,
à parte a apregoada preclaridade? Na bibliografia portu­
guesa figuram com este nome escritores de terceira ou
quarta ordem, que não parecem à altura da craveira

53
"

N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

por que o medem os biógrafos de Cervantes. Referem


que era também dado às musas, e que uma das suas
ocupações, "mal entrou para o banho, foi reunir elemen­
tos com que escrever a história de Argel e a vida 'dos
cativos. Mas não vimos a fonte de que deriva tal atri-
.
buição.
Das vezes que Cervantes tentou evadir-se, pelo que
se deduz da Informaci6n, Sousa esteve a par da maranba
e conjura. E se bem que de todas elas se abstivesse de
abraçar o plano, homem cauto e desiludido do mundo
ou timorato, se não impossibilitado pela vigilâ.ncia par­
ticular de que era objecto, prestou-lhe sempre o melhor
amparo e conselho. -Porventura fosse ele, ainda, me­
diante o alto crédito que desfrutava junto dos árabes
principais, que teria conseguido amortecer os efeitos
desses sucessivos malogros, que de ordinário rematavam
com a execução pública dos desastrados. Escravo que
tentasse fugir só por milagre escaparia ao cutelo, ao
empalamento, ou a ser enganchado vivo como as reses
nos matadoiros em altas estrepes de ferro às portas da
cidade. Cervantes por várias vezes roçou estes suplicios
inauditos e fim pavoroso, safando-se das evasões abor­
tadas com umas tantas bastonadas e um redobre de gri­
lhões. Que talismã o preservava do destino comum ? Pois
além do possível patrocínio de árabes influentes, da mão
fina e rútila de qualquer ínclita moirinha, protótipo
de Zoraida do D. Quixote, da intervenção patriarcal
de Sousa, o facto, sobretudo. de a sua pessoa ser havida
por grão-senhor e em consequência valendo um alto res­
gate. Por via de regra, só eram executados os cativos
pobres e insignificantes, plebeus na maioria. peças de
baixo preço. Fidalgos e eclesiásticos, que valiam os

54
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

olhos da cara, poupavam-nos. Atormentavam-nos, mas


não lhes davam a morte. Doutro modo saía-lhes cara
a execut6ria.
A lei processual de Argel era tão simples a deliberar
como a concluir. Ditada a sentença de morte, o mes1Ul1',
ou executor da justiça, entrava logo em funções. Condu­
zia o réu para casa, considerando-o como objecto seu J e
dispUnha a máquina patibular a talante DO mais breve
espaço de horas.
De outros Antonios de Sosa se fala nos registos do
cativeiro. Um que não se resgatou em 1 581 é dado
como natural da 'cidade de Córdova. A mesma lista men·
ciona os portugueses. Tomé de Pina, Pantaleão Portu­
guês, Diego Lopes , de Penafiel. A esse tempo os mer­
cedários não faziam distinção entre naturais de aquém
e além-raia. Cita-se um Qutro Antonio de Sosa, com o
distintivo de Dr. e cónego de Alcalá, a quem onera certa
hipoteca em Madrid, 1612, levantada dois anos depois.
Tanto no nobiliário como no onomástico português
não e.xiste o patronímico Sosa, sincopado de Sousa. Pelo
conteúdo da Topografia não se pode concluir, pois,
quanto à �acionalidade do cativo. Sem referenciação pes­
soal fala nos Diálogos de Gaspar de Barros e de Heitor
Pinto, e a António Garcês o denomina apenas de nues­
tro companero, cavallero muy principal y muy rnJble de
Portugal. Também na Topografia se lê esta passagem,
sem indício aproveitável para a sua identificação:
ccCheguem-se ao traço da porta e olhem para os lados.
Estão ali uns cinco ou seis cristãos portugueses que vie­
ram de Fez e Tetuão. Jazem na tef'f'G nua, a tif'itaf' com
o frio que agora faz, sem outra coisa pelo COf'PO que uns
coçados capotes. Já lá vão duas semanas que chegaf'am,

55
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

e ali padeceram as teníveis ardências da canícula. Mui.


tas vezes ao dia passa o dono e nem para eles olha, quanto
mais compadecer-se e mandar-lhes dar pão e água ! Um
dia destes dizia, cheio de noio, para o porteiro, que é
um cristão-velho: - Não acabam esses perTos f Logo
que estiquem o pernil, toca a deitá.los ao monturo para
que os cães e aves de rapina tenham um fartote !))
Segundo Navarrete, D. Diego de Haedo foi inqui­
sidor de Aragão, Catalunha e Valência, e bispo de Agri­
gento. Transferido para Palermo com dignidade ar­
quiepiscopal, aí demorou desde 15�9 até .1608, e aí
veio a falecer na idade provecta. Era ao mesmo tempo
Presidente e Capitão-general do reino da Sicília. Por­
tanto, uma autoridade de tal patente e hábitos não dei­
xaria de mandar exercer uma vigilância aturada sobre
quem desembarcava na ilha. vindo de Africa. terra ini­
miga e infiel. Essa vigilância e."rercer-se-ia, particular­
mente) sobre papéis manuscritos e impressos trazidos
de fora. De maneirª, que. de preferência a interrogar os
cativos) poderia se quisesse confiscar-lhes a bagagem
documental e livresca. O sobrinho) Diego de Haedo) sçu
secretário e fâmulo) a quem cumpriria rever e examinar
tal mercadoria) poderia reter tudo o que fosse papéis
escritos e acabar por guardá-los e chamar-lhes seus.
Podia até) desintencionalmente) isso suceder. Aquela
sua embrulhada explicação de que os compusera o ilus­
tre senhor seu tio) não se vê bem se ouvindo apenas os
cativos) se ouvindo e aceitando os borrões a que ele deu
a ({última forma e essência)) , três mãos, pois, de artífices,
justifica todas as conjecturas. Tenha-se em conta, repe­
timos, que as descrições) não falando já nos Diálogos,
que o presumido cronista enfeixa à sua paternidade,
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

vindo apenas luzes póstumas a garantir-nos da pessoa


do autor. apartam a ideia de colhidas de viva voz. Tudo
aquilo é obra morosa de placitude , escrita dia a dia por
uma testemunha ocular. O apêndice, chamado a com­
pletar, enchumaçar a obra, e porventura a cobrir a usur­
pação, é que acusa outra pena.
Quanto a serem ou não confiscados os papéis ao pobre
cativo, que os trazia, fosse ele o Dr. Ant6nio de Sousa,
Jer6nimo Ramirez, António Veneziano, ou Bartolomé
Ruffino de Chambery J na tralha da repatriação, per­
tence ao domínio da problemática. Dada a natureza e
trama do texto� tanto na Topografia, como na Segunda
Parte do Epítome, nenhum autor entregava o manus­
crito a S . R. o arcebispo de mão beijada. Nada mais que
o encaixe escandaloso dos Diálogos na obra autorizaria
meter arcebispo e abade na lista dos usurpadores.
O mais provável é que chegassem ao Paço arquie­
piscopal por conduto do Dr. António de Sousa, tendo
voltado à Sicília, seu poiso sabido. Confessa-o no' Diá­
logo da captividade quando, a propósito de gigantes, diz
que teve em mãos os seus ossos, recolhidos das caver­
nas . . en los aiios que estuve en aquel Reyno de Sicília,
.

como sabeys . . .

Um dos episódios que são de assinalar no cativeiro


. de Cervantes foi o seu encontro com o português Manuel
de Sousa Coutinho, que havia de celebrizar-se na reli.
gião e nas letras sob o nome de Frei Luís de Sousa.
Ia em 22 para 23 anos Manuel de Sousa Coutinho,
quando foi aprisionado pelos corsários a bordo de uma
nau de Malta. E muito provável que nutrisse o propó-

57
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

sito de alistar-se com o irmão na Ordem de S. João de


Jerusalém, ou dos Cavaleiros de Malta, restaurada por
Carlos V no antigo .esplendor. que constituía uma car­
reira militar como outra qualquer. Os filhos de Lopo de
Sousa Coutinho, autor do Cerco de Dio, deviam ser,
como o pai, pobres, aventureiros e , sobre isso, ambicio­
sos . A nau navegava nas costas da Sardenha, onde os
argelinos possuíam valhacoutos para o caso de tempes­
tade e melhor praticarem o salto, de entendimento pré­
vio com os naturais.
Dali levaram-no para Argel, a madrigueira-mor da
pirataria. Encontrou Miguel de Cervantes, cativado
quase nas mesmas condições a bordo da galera Sol, com
a diferença de que levavam rumos opostos, um para
Levante e outro para Espanha. No ergástulo tiveram
os dois ocasião de se conhecer e porventura de atar rela·
ções. Estreitas ou meramente passageiras é que não reza
a história. Mas deviam ser tão efémeras como efémera
foi a estadia de Manuel de Sousa Coutinho em Africa,
onde demorou, ao que consta. coisa de poucos meses.
Com efeito, tendo ficado seu irmão André como penhor,
pôde ir a Valência tratar do resgate, no que foi bem
sucedido. Entretanto, Cervantes continuava no cativeiro
e continuou até que os padres da Santíssima Trindade
puderam reunir a soma em que foi cortado, como diziam.
Esta desigualdade de tratamento tem hermenêutica
plausível : enquanto Cervantes se inculcou como fidalgo
de alta estirpe e se empavonou de toda a filáucia caste­
lhana, além de que lhe foram encontradas na algibeira
cartas de altas personagensJ o português, avisado ou
manhoso como o prior do Crato, que depois do desbarato
de -Alcácer Quibir se fez passar por simples cura de a1-

58
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA NÇA

deia, devia ter apoucado a sua condição e as suas posses,


no que não faltava à verdade pelo que respeita a bens
materiais. Seu pai não passava de soldado de chusma e
homem dado às letras J o que até certo ponto era incom­
patível com a chatinagem, meio de enriquecer naquele
século, e os filhos seguiram-lhe as pisadas que não iam
costeando as margens de nenhum PacteIo.
Que os dois notáveis cativos tivessem algum trato
na metrópole do corso por excelência, é fora de dúvida.
Mas que estas relações não passaram de superficiali­
dades está em que Manuel de Sousa Coutinho, tratando
do seu resgate,' não se ocupou coisíssima nenhuma do
de Cervantes, sendo ali, em Valência, que especialmente
corriam tais transacções . Por outro lado, o Dome dele,
se figura no Trato de A rgel, comédia que teatraliza com
mais ou menos fantasia a vida de Cervantes no cativeiro,
é debaixo do todos os pontos de vista muito gratuita.
mente :

Y en esta mi oPinión me han ,


confirmado
dos caballeros Sosas. portugueses.

Manuel de Sousa Coutinho não teria prestado �ten·


ção de maior a Miguel de Cervantes Saavedra, e�bora
este fosse mais velho do que ele, 33 anos, e a sua pessoa
gozasse no banho de certo ascendente. Tanto assim que
na publicação das obras de Jaime Falcão, o poeta da qua�
dratura do círculo, meio orate, que trazem a data de
Madrid, Operum poeticarum Jacobi Falconi, 1600 , com
um prefácio seu, evidentemente preparado no clima va·
lenciano, se não refere a Cervantes, embora fale do cati·
veiro. Este, por sua vez, paga-lhe na mesma moeda,

59
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

pois que também o omite-não obstante muitas pro­


duções poéticas dde correrem sob forma de missanga
pelos livros do tempo-na Viagem do Parnaso e na Ga­
lateia, entre os vates de cajado. Mas fixou o nome, lá
que lhe desse no goto por sonoro ou pelo acento de fidal­
gJlia, que era um dos fabordões de Cervantes.
Os escritores portugueses, entre eles o erudito e aba.
lizadíssimo professor Rodrigues Lapa, fundamentam-se
com dá-los como unidos de amizade em aparecer Manuel
de Sousa Coutinho protagonista de uma aventura de
amor contada em Persiles y Sigismunda. Nada nos
garante, porém, que o nome seja mais que uma sim­
ples reminiscência acústica, aproveitada ocasionalmente
quando no entrecho da novela se entressacham pessoas e
coisas da vida portuguesa. A historieta versa um ve­
lho e cediço tema, não comportando mais que varian­
tes de forma. Certo fidalgo Manuel de Sousa Coutinho
entretinha amores com uma menina fidalga, sua vizinha ,
estupendamente formosa CQmo eram todas as heroínas
dos romances àquela altura dos tempos. Pedira-a em
casamento. -É muito nova - respondeu-lhe o pai. ­
Vá ganhar nome em Africa e volte que cá a tem. E ela ?
Ela jurou que, a casar, só casaria com ele. Ao cabo de
dois anos voltou o enamorado com a espada cheia de
bocas e o coração em labareda: - Venhà domingo à
igreja da Madre de Deus . Foi e encontrou Leonor, a
. .

sua amada, nos degraus do altar, quando as freiras se


preparavam para lhe cortar as formosas madeixas dos
cabelos. Titubeou, mas não morreu. Morreu só mais
tarde, mal acabou de contar a história aos amantes
felizes Periandro e Auristela, soltando o próprio estas
últimas palavras : . . .y ahora por la misma causa vengo

60
'l O C A VA L O D E PA U C O � S A N C H O P.A NÇA

a perder la vida.. y dando un gran suspiro se 1e sali6 e1


alma, y di6 consigo en e1 suelo.
A novela de Persiles y Sigismunda veio a lume em
I617. já Manuel de Sousa Coutinho e sua mulher,
Madalena dé Vilhena, tinham vestido o hábito, mortos
para o século. No mesmo ano saiu nova edição, a 4 .",
em Lisboa, dos prelos de Jorge Rodríguez. Nada mais
natural que chegar às mãos do agora Fr. Luís de Sousa,
consagrado exclusivamente às divinas letras. Que im­
pressão teria sido a dele ao ver o nome ligado a uma
aventura tão profundamente mundana e sem correspon­
dência J a mais remota sequer. com a realidade da sua
vida? Decerto ficou a imaginar que se tratava de outro
que assim se chamasse, não dele. Ter-se-ia ao menos
lembrado do companheiro transit6rio que encontrara no
banho de Assan�Baxá ?
Vicente Espinel dizia que não havia ninguém mais
doido que um português. Era esta uma forma de e1ogiá�
-los , pois que não é com bom senso que se forjam os
heróis, nem dos sensatos e prudentes saem os grandes
homens em qualquer coisa, mesmo com m!llheres. Para
Cervantes os portugueses, haja ainda em vista o que diz
na Galateia, são os únicos que morrem de amor. Con�
tando a história-escreve ele - la. creyerán, por tener
casi en costumbre el.morir de amor los portugueses.
Na lousa que o irmão piedoso consagrou ao infor�
tunado amante lia�se um epitáfio, que é o remate da
aventura e encerra um fino sainete, além de curioso pela
universalização dos caracteres :

A quí yace viva la memoria


del :)ia muerto

6,
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Manuel de Sousa Coutiiio,


caballero portugués,
que á no sef' pOf'tugués aún fuem vivo;
no mUf'i6 á las manos
de ningún castellano,
StnO á las deZ amor, que todo lo puede;
procura saber su vida,
'Y envidiarás su muerte,
pasajero.
III
Um comissário do Santo Ofício de que ninguém
dera conta. Caiu do céu, trouxe-o que na'1le1 EsPião
de FiliPe e de Deus. A besta do ApocaliPse dos ce,,­
'Uantistas. A s fugas frustradas de Cervantes e o
frade denun.cWdoT. Loas suavíssimas à Virgem
Maria. O ql,te vale a Infonnación em prol de Cer­
vantes. lmP01"tância de semelhante instrumenta.
Mordedura de c& cura-se com o pêlo dQ -mesmo cão.
Poesia e drama do ergástulo. O resgr'e de Cervan­
tes. Fuminho calunioso. O oxigénio da libe-rdade:

M
E
meados de Agosto de I577 deu entrada no banhe
de El-rei , em Argel, um clérigo de missa, Juan
Blanco de Paz. Todos os escritores espanhóis.
sagrados e profanos , desde Menéndez y Pelayo a Rodrí.
guez Marín, o têm por feio bicho. Era estrábico do olhar,
faltavam-lhe dois dentes de cima e, se não era bexigoso,
ficava-<> a dever. Fora, disse·se depois, aprisionado no
mar pelos piratas, sem mencionarem o capitão, numa
nau de alto bordo que navegaria de Roma para Espanha.
Entrou para as turmas de Assan.Baxá.
A verdade é que apareceu ali como caído do céu.
Não há na Topografia, de Haedo, prolixa em geral a
relatar as proezas dos piratas, menção de nenhum feito
desta ordem por aquela altura. Tão.pouco houve notí.
cias de que tivesse companheiros na desdita. Era ele só,
como as reses antigas, extraviadas, só pele e ossos , que
chamam do vento.
N O C A VA L O DE P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

Estas circunstâncias, sem falar na provável antipa­


tia pessoal, deviam motivar a suspicácia com que foi
recebido pelos demais cativos, em cujo número contava
oDr. António de Sousa, O nosso humanista de alto mérito,
Manuel de Sousa Coutinho e irmão, Miguel de Cervan­
tes, António Veneziano, poeta máximo da Sicília, Bar­
tolomé Ruffino de Chambery, escritor, o capitão sardo
Domingo Lopino, Diego Castellanos , alferes dos ter­
ços, o Dr. Domingos Bezerra, letrado, Francisco de
AguilarJ de Vila Real de Trás-os-Montes, pessoas de
condição e gozando de maior ou menor respeitabilidade.
O homem era, segundo os testemunhos, aliás pejo­
rativos, um misto de licantropo e recalcado sobre si e,
todavia, viam-no a cada passo intrometer-se onde não
era chamado. A essa data havia nos cativeiros da Ber­
beria gente de todas as desvairadas partes da cristan­
dade.
Os piratas tinham-nos apartados em categorias, como
os chalantes fazem ao gado: alta remonta, fidalgos e
personagens da Igreja-e a estes saíam caro os perga­
minhos e as dignidades, mesmo que pertencessem a or­
dens mendicantes; preços módicos : a plebe. Na plebe em
primeiro contavam os homens válidos, bois do trabalho,
e os rapazes, se eram bem feitos e .fortes, destinados de
ordinário aos serviços particulares dos moiros princi­
pais. As mulheres, por via de regra, e.."Cpediam-nas ao
grão-turco, quando eram bonitas e novas , para servir
nos serralhos e com as damas aristocratas. Os meninos
eram apartados dos pais, se tinham vindo juntos na
redada, para serem instruídos no Corão.
Os banhos, sorte de grandes caravansarás, misto de
prisões e de quartéis, encerravam toda a bicharada hu-
N O C A VA L O DE P A U C O M S A N C H O P A N Ç A

mana. Cheios de santa porfia, infatigáveis, os religiosos


passavam a existência neste vaivém: encher a abada na
Península para logo a ir despejar nas cidades malditas
do Magrebe.
Contribuir para o resgate tornara - se, piamente,
uma das modalidades religiosas ou arte de conquistar
a bem-aventurança, como rezas e encomenda de octavã­
rios a el cura. No testamento das pessoas fortunadas.
das fidalgas fins de raça e sem herdeiros, dos grandes
pecadores contritos, com as arcas atestadas de dobrõe5,
da mesma maneira que hoje se deixam legados para os
hospitais, as Misericórdias, as cantinas das escolas e
até para os sinos das igrejas, figurava a redenção dos
cativos.
Argel, Tetuão, Fez, tinham-se tornado com esta
comercializada espiritualização o mealheiro das almas.
Quem acalentava a cobiça de salvar-se contraía daquelas
caridosas hipotecas.
Foi nesta tortulheira de desgraças que o misterioso
indivíduo, assim plantado de estaca, teve a propriedade
de granjear o desagrado quase geral. Além de arreve­
sado de temperamento, o que se deduz dos testemunhos
que vieram a lume, era-lhes mentalmente superior, com
a bagagem de graduado em cânones, o que nem sempre
se perdoa. Que o era de facto, viu-se mais tarde quando
lhe imputaram, se bem que desacertadamente;ter escrito
sob a máscara de Avellaneda a Segunda Parte do Enge­
n1wso Fidalgo, enigma que continua por desvendar.
Seja como for, devia avantajar-se a todos pelo saber,
salvo o Dr. António de Sousa, que deu provas de eru­
dito no género de Fr. Tomé de Jesus ou Fr. Amador
Arrais.

5
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

Quem não ignora o que é a psicologia dos desterrados


avalia o que era naquele estarim imenso o referve­
douro das paixões, dos pareceres . desencontrados, das
inimizades, das intrigas e insídias , em suma, da desor­
dem e confusão em toda a linha. A noite, quando os
cativos recolhiam dos trabalhos forçados, o casarão ficava
repleto como um ovo. A essas boras, com chauzes de pi­
quete tolerantes , não era quartel mas uma feira. O des­
terrado, e quem diz desterrado com dobrada razão diz
cativo, nunca está contente nem conforme com coisa
alguma deste mundo. Tudo é mau e nunca a seu gosto.
Do mais pequeno gesto contrário faz um acinte e de opi­
nião divergente um ultraje. Exacerbam-se nele todas
as inclinações do civilizado , como seja brio, honra, tim­
bre, justo orgulho e a vaidade, que é a primeira plu­
magem que mais se engrifa no pescoço do galo e, por
metáfora, no coração do homem. Os amigos por uma
futilidade tornam-se adversários rancorosos , e tanto se
anavalham em suas dignidades pelas costas como jogam
o pugilato. Em suma, a disc6rdia é a epidemia dos exi­
lados, provocada pelo estado especial de enervamento
em que se encontram, e fruto ácido da morbidez de
quem está fora do seu clima e em luta com dificuldades
essenciais. Ora nada mais natural que, segundo a ten­
dência da razão humana, as doutrinas religiosas, na sua
estrutura política , se não na origem, fossem ventiladas
despreocupadamente por aqueles espíritos ociosos. Quase
todos eles tinham passado pela Itália onde as ideias da
Reforma, em particular as de Erasmo, concitavam a pai­
xão de muitos. Quanto a costumes, quem caía em Argel
deixava-se impregnar muito ou pouco. Vivia-se na de­
vassidão ou, melhor, à rédea solta.

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N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

Para os cativos, o facto mesmo de terem sido postos


à margem da sociedade, como detritos da ressaca, impe­
lia-os automàticamente, ou seja como um termo de ins­
tintiva revindicta, para o desfrute daquilo que a e.xistên­
cia podia oferecer de mais próximo e recuperador. P<;>r
certo que criaturas do jaez daqueles alferes, aprisio­
nados, daqueles homens de letras com suas ambições
quebradas, embora entre elas houvesse eclesiásticos,
quando se achavam juntos, decerto se não punham a
rezar o terço.
Juan Blanco âe Paz devia ter-se tornado o fantasma
dos cativos e, por sua vez, o bode expiatório no banho de
El-rei. Prestaria também o flanco por estar sempre a
meter o nariz na vida do próximo, parecendo intrigar
quando o seu objectivo era destorcer as meadas dos suces­
sos menos ortodoxos que s e fossem dando, inquirindo e
tomando nota.
Porque este homem de má catadura, misantropo e
enigmático, que, sendo clérigo, raro praticava os actos
do culto, que surgira no banho por milagre, quem havia
de ser : uma sentinela da fé, comissário do Santo Ofício
da província de Leão junto dos cativos do Magrebe, que
orçavam então por uns vinte mil, destacado, tudo leva
a crer que e..""tpressamente, por Filipe II, o cavidoso.
O Demónio do Meio-Dia tinha espiões em toda a
parte, a seu serviço e de Deus. Podia deixar aquele lugar
tão crucial sem esculca ? ! Juan Blanco de Paz, homem
com menos de 40· anos. porventura dominado por uma
ascese de mártir, semelhante aos amoucas no espírito
de sacrifício, ter-se-ia oferecido para desempenhar o lu­
gar precioso e arriscado. Mas, caluda, que ninguém o
soubesse !
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

Foi a Roma sobrevestir-se, talvez, da cruz roxa do


se� martírio, receber o beneplácito ou beijar o anel do
Pescador. Não era lá, ora e sempre, o posto de comando
do �ristianismo ? Ninguém supôs, no entanto, que estava
ali, para os espiar em tudo o que eles dissessem ou prati.
cassem contrário aos mandamentos da Igreja' e registar,
um comissário do Santo Ofício delegado pelo tribunal da
Fé e referendado pela Real Secretaria. Que ele se absti­
vesse de o dizer J compreende-se. Primeiramente em
virtude do sigilo profissional, a que o Regimento o obri­
gava J depois porque sem essa reserva absoluta não p0-
deria exercer cabalmente naquele lugar o seu múnus.
Ainda porque declarar-se equivalia a lavrar-se, por seu
punho, guia de marcha para os anjinhos. Os moiros eram
implacáveis com quem pertencesse à Inquisição, que em
Espanha e Portugal continuava a prover os autos-de-fé
de moiriscos, pertinazes na antiga lei. A título de pedir
represálias pelo que se fazia em Espanha, em determi­
nada altura se levantou mesmo o populacho de Argel.
Dois espanhóis importantes , D. Miguel de Villanueva,
cónego de Valência, e D. Juan de Lanuza, filho do Jus­
tiça-Mor de Aragão, foram condenados, como bodes ex­
piatórios , à morte, depois de umas -últimas surtidas
como remadores no banco das galés . Estas atardaram-se
no mar, entretanto houve jeito de se pôr em marcha a
máquina do resgate, e um deles, pelo menos, salvou-se.
Juan Blanco de Paz contentara-se de princípio em
fazer-se passar por presbítero e formado em cânones.
Mas parece que não celebrava, a despeito de existirem
no banho todos os apetrechos do santo mistério e os
chauzes nesse capítulo serem perfeitamente indiferentes.
Em matéria de liberdade religiosa, os cristãos podiam à

68
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

vontadinha praticar todo o seu devocional. Mas o povo do


banho mostrava-se refractário à prática do sagrado culto.
Antes pendia para todas as licenças. tentações e aven­
turas como era de prever num meio sem rei nem roque.
Do fácil escorregadoiro para tudo o que era antiestru­
turaI num espanhol se queixava o padre Graciano numa
das suas páginas sentidas J espectador aflito desta per­
dição de almas.
De modo que Blanco de Paz achava-se de cajado, me­
nos para guardar aquelas ovelhas dos lobos do inferno, do
que impedir que, voltando para Espanha J viessem con­
tagiar de sua tinha o rebanho cristão, mantido na sau­
dável pastagem pelos malassos de S. Domingos. E ia
anotando o que se passava à sua volta, estudando o
carácter deste e daquele. procurando insinuar-se nos
ânimos no intuito de ver bem onde doía o axe. As notí­
cias do que se passava teria muitas maneiras de as fazer
chegar a quem de direito, que nunca faltam beleguins
para recados de fe10nia a troco da devida esp6r:tula. Os
cativos uma vez resgatados tinham de passar pela alfân­
dega da fé, para p:xier circular sem perigo em Espanha.
A cédula de cristão repurificado era um salvo-conduto
indispensável a quem não queria dares e tomares com o
Santo Ofício.
No seu papel pois de escuta, ia-se inteirando dos
projectos e histórias das evasões, logradas ou em potên­
cia, que eram a grande marotte de cada um, mormente
dos cativos de sangue na guelra como Cervantes. Assim,
aconteceu que , no mês de Setembro de 1 579 , Cervantes
tivesse concertado com um renegado granadino, que aca­
bara por inspirar-lhe confiança, evadir�se dali com quan­
tO$ cativos o desejassem. Para isso, teriam adquirido
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

uma barca de doze bancos com o concurso de dois mer­


cadores valencianos endinheirados. Juan Blanco de Paz
fazia parte da conjura. Subitamente, quando tudo estava
� postos, chegou ao conhecimento do bei o plano da fuga.
Quem traiu, não traiu, culparam primeiro um renegado,
.
depois Juan Blanco de Paz.
Entretan�o o hei. não podendo apanhar em flagrante
os conjurados, que amocharam ao vento de que haviam
sido descobertos , como só faltasse um no depósito, Mi­
guel de Cervantes, lançou um bando ameaçando com a
pena de morte quem o agasalhasse. Que podia o homi­
ziado fazer senão sair do seu reparo e oferecer a cabeça
ao cutelo ? Quem lhe garantia agasalho com a justiça
expeditiva argelina ?
Cervantes apresentou-se com todo o desengano e
garbo de um homem pronto ao que desse e viesse.
- Quem são os outros que se propunham abalar ? ­
perguntou.lhe seu dono e senhor.
-Ninguém se propunha abalar. Eu é que tudo pre·
meditei e me reservava convidá-los a vir comigo, se o
entendessem-teria, mutatis mutandis, respondido.
lndignou.se o hei, mas Cervantes dali não saiu.
Quem lhe valeu para não ser esquartejado, empalado,
enganchado à porta de Barbizon ? As almas boas a pedir
por ele ? Os bons ofícios de alguém influente e todo·pode.
roso ? O que lhe valeu, de certa certeza, antes de mais
nada foi a sua prosápia de pretendido grande de Espanha
e o alto preço em que estava avaliada a sua pessoa. O hei
havia de fazer em terra os 500 ducados em que ele
estava C01"tado, a troco de castigar um intento de fuga
sem consequência ? Não era tolo nenhum. E deixou ir
com vida o tresloucado homem, que valia o seu peso em
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

oiro, gentil.homem que entretinha comércio com D . João


de Áustria e o duque de Sessa. segundo as cartas que lhe
haviam sido apreendidas no momento da captura. Carre­
gou-o de cadeias e devolveu-o às masmorras, onde 1ao­
guiu até que vieram os frades de Redenção resgatá-lo.
Mas à.d'eI-rei quem o entregou foi o Dr. Juan Blanco
de Paz.
Ninguém o demonstrou, mas a imputação correu.
Teria sido, de facto ? Se foi. compreende-se ainda, até
certo ponto, dentro das obrigações do cargo que ali
exerCIa.
Por aquele f;cto, que se nos afigura controverso, Juan
Blanco de Paz, o pretendido delator, passou a ser o Judas
encartado dos eruditos espanh6is e não menos dos patrio­
tas. Todos à uma lhe vestem a carocha de perro. Pior
que o discípulo de Cristo, que vendeu o mestre por trinta
dinheiros, aquele entregou Miguel de Cervantes, virtual­
.mente autor do D. Quixote, por um ducado de oiro e uma
malga de manteiga, dizem uns, outros apenas pela malga
de manteiga. Uma execranda paparrotada !
Para Rodríguez Marín como para Menéndez y Pelayo,
o Dr. Blanco de Paz é um sinistro traste. Benjumea
encarapuça-lhe todas as figuras equívocas ou burlescas
do tablado quixotesco, desde o triste cura de Alcobendas,
da perna partida, ao astroso Sansão Carrasco. E, por­
que não, o Dr. Pedro Récio de Tirteafuera ? Supondo
que fosse o delator, este corvo branco não estaria convicto
que denegrir-se de todo era preferível a deixar de exe­
cutar à risca a missão de que fora investido ?
Ignora-se se tivera tempo ou lhe fora azado lavrar a
ficha secreta de cada um e expedi-la à Mesa da Santa

7'
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

Inquisição, premunindo a cristandade dos riscos da pes­


tilência. Mas não se culpe para lá dos seus pecados.
Que havia de fazer o comissário da Santa Inquisição
senão exercer o múnus ? Se lhe não estava na massa do
sangue espiar o pr6ximo e atalhar à gangrena moral do
corpo cristão, estava-o na letra da jurisdição 'que automà­
ticamente o obrigava ali ou em qualquer parte do globo.
E desde que chegou ao banho, não teve outro cuidado.
Os cativos, se é certo que tinham acabado por desconfiar
dele. precataram-se. Semelhante atitude, COm relegá-lo,
mais lhe exacerbaria o zelo.
Perante a planeada fuga, que abarcava o maior nú­
mero daquele cenáculo de incréus e viciosos J suponhamos
que o familiar do Santo Ofício jogou a cartada, primeiro
traindo. E ora e sempre cumpria o seu papel . Antes
atirar com eles à perdição, que vê-los derramar pela Es­
panha filipina, cat6lica .até a , medula, seara em flor de
Cristo, a derrancada semente do erasmismo e filosofias
afins. E preferiria ser Judas dos compatriotas e compa­
nheiros de cárcere a deixar de cumprir os seus deveres
de agente da Santa Inquisição.
Cervantes e corifeus safaram-se como puderam, e ele
que viu ° santo voltar-se contra a esmola, isto é, o seu
zelo tornar-se matéria de infâmia e culpabilidade, pe­
rante os resgates colectivos anunciados pelos redento­
ristas , tratou de conjurar o perigo na medida do possível.
Para isso empreendeu a organização dum processo, em
que eram indiciados estes e aqueles cativos romo incur­
sos em crimes contra a Santa Igreja por palavras e obras.
Ce-:-vantes figuraria à cabeça. Como era forçoso que fos­
sem comprovadas as S'!las acusações, buscou testemu­
nhas, para o que teve de invocar a qualidade de comis-

72
NO CAVALO D E PA U COM SANCHO PANÇA

sário do Santo Ofício. O capitão Domingo Lopino voltou­


-lhe as costas. Frei Juan Gil, trinitário, ficou perplexo.
O Dr. António de Sousa enxotou-o, prevenindo da sua
tentativa proterva o frade redentorista, e encarecendo,
como não? as virtudes cristãs de Cervantes, com citar
mesmo as suas composições poéticas de acrisolada fé.
No Trato de Argel, comédia que subiu à cena em Es­
panha anos depois, vêm de facto p:>esias da maior inspi­
ração religiosa, que os biógrafos reputam, ainda que pro­
blemàticamente, compostas no cativeiro. Estas estrofes
certamente denotam uma alma fervente J cuja súplica se
ala para a Virgem, a Leia Mariem do Cativo, como úl­
timo porto de esperança:

Virgen de Monserrate,
que esas ásperas sierras hacéis cielo!
Enviadme rescate,
sacadme de este duelo,
pues es hazana vuestra
al mísero caído dar la diestra.
Entre estas matas quiero
esconderme, porque es entrado el dia;
aquí morir espero;
Santísima María,
en este trance amargo,
el cuerpo y alma dejo a vuestro cargo.

Contra esta requisit6ria levantou Cervantes a lnfor-


o maci6n, ou conjunto de depoimentos abonat6rios , .publi­
cados por Pedro Torrez Lanzas, que o anteparam das
torpidades e opiniões libertinas de que o agente do Santo

73
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

Ofício o arguia. Todos os cativos de prol fizeram perante


Pedro de Ribera, notário apostólico, a declaração conve­
niente, que assinaram à uma. Estava imunizado uo fi­
dalgo complutensell, o glorioso estropiado de Lepanto,
contra o veneno da víbora. Poderia Nossa Senhora de
Monserrate mandar-lhe o resgate. que já não correria o
risco de livrar-se dos cárceres de Argel para · cair DOS
cárceres de S. Domingos.
A lição ficou.lhe de emenda, que passou a ter cuida­
dos dobrados com as suas opiniões J a aprender o bom
conselho do provérbio: com a Santa Inquisição, chitão !
-e mesmo, mais tarde , a forjar-se um pára-raios no
próprio inquisidor-mor contra os prováveis coriscos de
tão imprevisível Olimpo.
Comprazem-se os biógrafos de Cervantes em ver em
Juan Blanco de Paz um homem movido pela inveja. In­
veja de quê ? Das mercês que Cervantes recebia dos ba­
xã.s e renegados de Argel ? E recebia-as ? Mas, não se­
nhor, não era dessas , era inveja das suas virtudes. Roída
el alma pO'r la serpiente de la mala envidia . . Assim o
.

proclama entre outros Rodríguez Marín. Ora não é


apenas especiosidade tal maneira de ver, é irrisão. Tem­
-se acaso inveja das virtudes doutrem? Tem-se inveja dos
resultados práticos que a virtude ou méritos podem gran­
jear para o indivíduo. Inveja das virtudes é platonismo,
intrinsecamente ainda uma virtude.
Juan Blanco de Paz fez o que qualquer comissário,
razoàvelmente cumpridor e compenetrado das suas obri­
gações, teria feito. De resto, pedem-lhe contas da felonia
cometida para com Miguel de Cervantes Saavedra, autor
de D. Quixote de la Mancha, primeiro monumento lite­
râ.rio de Espanha, e não para com o soldado Saaved.ra,

74
N O CAVALO D E PAU COM SAN CHO PANÇA

arvorado em fidalgo complutense, nada mais que vago


poeta , homem amável, audacioso e irradiando a relativa
fascinação pessoal. Não seriam todos os familiares do
Santo Ofício cortados no lenho do Dr. Blanco de Paz?
Não consistia a sua função, ouvir, calar. estar alerta à
acometida dos lobos ao redil da Igreja e arcabuzá-los à
mão-tente na hora oportuna ?
Assumira, pois, Miguel de Cervantes todas as respon­
sabilidades da tentativa malograda. Interrogado sobre os
nomes dos pretendidos fugitivos , negara-se com subter­
fúgios mais ou menos 16gicos a denunciá.los. Assim reza
a InfOf'maâ6n -elaborada para acudir à peçonhenta requi­
sit6ria de Juan Blanco de Paz. Mas ainda aqui há uma
sofisticação. Era preciso. ouvir da boca de Cervantes os
nomes dos conjurados ? Ignorava-os acaso o denunciante ?
Os nomes destes fugitivos não andavam de boca em boca
e não os conhecia Juan Blanco de Paz, tão' bem oomo o
padre-nosso, uma vez que ele fazia parte da conjura e
era um dos que se propunham embarcar na nau fretada
para a evasão ?
Por este simples enunciado se vêem as malhas fala­
ciosas da lnformacién que havia de ilibar Cervantes.
Dizemos ilibar à face dos articulados do Santo Ofício,
que é possível não houvesse cometido outros desgarres
que não fossem liberdades de pensamento, frouxidão reli­
giosa com seus laivos de materialismo, e aversão instin­
tiva pelo comissário secreto do Santo Ofício.
Todavia objectar-se-á quanto ao desempenho da mis­
são de Blanco de Paz: não era mais óbvio que os tivesse
acompanhado na fuga, visto pertencer ao número da­
queles que estavam falados ? E, deste jeito, o rebanho
podia tresmalhar, mas, embora, daria conta, assim ou

75
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

assado, de cada uma das ovelhas tinhosas. Responde-se:


E os que ficavam ? E a consigne não teria sido manter-se
ali a pé firm e ?
Os cervantistas carecem de lógica, obcecados em en­
grandecer dramàticamente a figura dà her6i, que não
precisa desse ouropel para ser famoso e digno de admi­
ração.
O facto ê que Cervantes foi resgatado, entretanto que
Juan Blanco de Paz, apontado como o cão hidrófobo do
banho, ficou no banho. Hidrófobo era ele, de facto, me­
nos em virtude do que fizera, do que membro contami­
nado da instituição que representava.
Mas tal devia ser a sua cólera e indignação, na mais
verosímil das hipóteses, para; vendo-se lançado ao des­
prezo, coberto 'de odioso, jogar a cartada mais perigosa
que podia haver contra a integrid�de do físico: desmas­
carou-se e em alta voz proclamou a uns e outros, aos
padres teatinos portugueses e aos padres mercedários :
-Eu sou comissário da Santa Inquisição. Devem-me
preitesia.
Depois que se remontaram do pasmo, objectou-lhe
um:
-Mostre a cédula. . .
-Cédula não trago, mas averigúem } . .

Não quiseram crer ou fingiram. Bem decerto que não


trazia cédula nem em tal cairia um homem sensato. Se
entrara em Argel pela porta do cavalo, sabe Deus como,
trazer tal título consigo ç. mesmo era que a sentença de
morte.
Não pensaria em tal circunstância o comissário do
Santo Ofício, cego de furor. Mesmo assim tratou de
levar a sua por diante. O pior inimigo, causador de todo
N O C AVALO D E PAU COM SA N CHO PA NÇA

o labéu que caíra sobre ele , provàve1mente com cuw.as


no cartório, era Miguel de Cervantes. E tratou de erguer
contra ele o respectivo auto.
Teve porém Cervantes o bom senso de parar aquela
ofensiva' peçonhenta com a contramina. Era, de resto,
prática corrente de quem pretendia voltar a Espanha.
Mas naquela ocasião levava o duplo fim de repelir o ata­
que de Juan Blanco de Paz e poder requerer mercê a
e1-rei.
Juan Blanco de Paz, resgatado Cervantes e outras
pessoas de certo vulto, que faziam parte da facção for­
mada contra ele, permaneceu no cativeiro, como disse­
mos. Porque assim lhe exigia o múnus ou porque não
alcançara reunir a quantia em que fora cortado ou seja
mil escudos de ouro, o dobro por que fora resgatado Cer­
vantes, havido como gentil-homem e fidalgo principal de
Espanha ? Por todo o Argel constara a sua qualidade de
comissário do Santo Ofício. O gesto tivera o esperado
recochete. Milagre foi que não lhe cortassem o pescoço
ou o não empalassem, pertencendo a uma judicatura que
os moiros· particularmente detestavam et pour cause.
Mas com a ajuda das esmolas da redenção e o que ele
puxou de seu bolso. quinze partes do resgate, que pode­
riam ser o produto dos vencimentos próprios e .chegado
de Espanha por baixo de capa. lá apresentou a soma
grandiosa e se remiu a I de Janeiro de I592. Se extor­
quiu os renegados cristãos a título de os habilitar com
instrumento que lhes permitisse volver a Espanha e
reingressar na comunidade cristã, não reza a crónica,
mas foi e.."'íequível. Embarcou com outros na sestia Santa
Maria de la Serena. Ia nos 54 anos. Entrara para ali,
portanto. na força da vida, com 39 anos.

i7
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

A essa altura, o banho estaria· esvaziado de suas fi­


guras principais, que convinha trazer debaixo de olho,
ou Blanco de Paz teria cumprido à saciedade o seu papel.
Mudava de patena e cálix. Desfortunado, cativo em 15 77 J
resgatado em 1592, aguentou em Argel, portanto, 15
anos. exercendo a temível função. Era tempo de lhe ti.
rarem dos ombros o escabroso madeiro.
Partiu para Espanha, depois de breve estadia em
Roma., onde o acusam de ter burlado certo beneficiado
gaditano, mais ou menos prestamista.
Apresentou-se na Corte e recebeu de Filipe II, além
de uma letra de 200 escudos de ouro, uma prebenda na
igreja Colegial de Baza, em cujo diploma se não diz
a que título. Para isso teve de correr o processo de sua
limpeza de sangue, o que foi, a coberto do cargo de comis­
sário, rápido e de despacho favorável. Christiano viexo,
limPio de padre y madre, sin ninguna rraza de linage de
judios, reza a carta de apresentação. Rodríguez Marín,
em despeito de ver no seu nome Blanco de Paz, e circuns­
tâncias locais da terra que lhe foi berço, Miramolim,
sangue judio ou pelo menos moirisco, pressupondo-o
daqueles que se Hacercaban a la lámpara de la Iglesia por
huir deI fuego de la lnquisición)) , nada teve que referir.
Lá estava o auto na Câmara do Segredo do Santo
Ofício, quando recebeu o título de comissário, depois de
jurar guardar segredo e hazer el dever. . . a comprová-lo.
Hazer el dever equivalia a aceitar a incumbência que lhe
fosse atribuída . . . e sair-se bem. E bem se saiu, pois que
o recompensaram. Essa é a prova insofismável de que
não s6 fora delegado para Argel como sentinela da Fé,
com o agrément do monarca, mas que desempenhou o
cargo a contento.
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Os 200 escudos deviam compreender o seu venci­


mento especial quando fora da província, er;n diligência
particular. Paralelamente, tais vencimentos estavam con­
signados no parágrafo 9 do título 8.° do Regimento do
Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal. Por­
tanto, os ducados seriam devidos ao seu salário, a ração
o prémio real do e,.xcelente comissário da Inquisição na
cidade de Argel.
Podem durante algum tempo seguir-se os passos
deste homem que, positivamente , basta o seu encarte,
não era nenhum anjo. Além de redigir um memorial
contra os padres trinitários pela maneira como se compor­
tavam DO resgate dos cativos - alegando a sua expe­
riência pessoal -queixa examinada por dois procura­
dores J foi processado pelo presbítero de Cádis por insol­
vência e burla. Depois este homem equívoco apareceu em
Baza a tomar conta da prebenda de racionário. E Ro­
dríguez Marin, com observar que é inverosímil ter sido
ele o autor do apócrifo D. Quixote, Segunda Parte , nota
ucómo un aseglarado clérigo, fraile desgarrado de su
Orden, hombre de pésima condición moral, logró, a los
pocos meses de volver a Espana, sin duda por su ousadía
y desaprensión, muy a propósito para hacerle por extremo
adaptable, dos Mercedes dei austero Felipe II, mientras
que Miguel de Cervantes, herido gloriosamente em Le­
panto, cautivo en Argel, donde su proceder fué siempre
noble, y a veces heroico, y , en conclusión, autor dei
Quijote, que es cuanto hay que decir, murió treinta y
seis afias después de su rescate, sin haber obtenido en .
todos ellas galardón alguno)) .
Em verdade não havia o rei católico de recompensar
o leal beleguim ? Que era Cervantes para ele mais do

79
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

que um soldado, inválido ou não que importava ? Um


dos infinitos servos e cabouqueiros da sua gl6ria, por
direito dinástico e divino ? De resto, os adjectivos com
que o cervantista ilustre mimoseia a besta de Apocalipse
do frade representam a fustigação legítima da felonia
debaixo do seu ponto de vista, não do lado de quem lhe
conferiu o diploma de comissário com o respectivo bene­
plácito real. Em despeito do génio de Cervantes, da alta
mensagem que traria a Espanha e ao mundo, há necessà­
riamente que aceitar que o padre se limitou a satisfazer
uma faxina.
Tomou posse do cargo de Taci01Wf'O� o que foi cele­
brado com o cerimonial da praxe, reunido o cabido no
coro da Sé, onde, depois de prestar juramento nas mãos
do Mestre-escola, tendo-lhe sido posto um saltério
diante; leu o salmo inc, quid gloriaris in malicia qui
potens es etc. sentado na cadeira n.O 7 ao lado do coro
e prior e, enfim, se praticaram os mais actos litúrgicos
de circunstância.
Feito isto, pediu quatro meses de licença para ir a
Madrid cobrar os 200 escudos de que Sua Majestade lhe
fizera mercê, quantia, alegou, a abater naquela que lhe
teriam emprestado para perfazer o preço do resgate.
Foi e não voltou. Deixada vacante a ração, outro foi
ocupã-Ia. Para onde se sumiu ? Perderam-se, ou melhor,
calaram-se os seus passos. Assim se infere da acta de
posse da ração de Baza por Cristóbal Rodríguez , vaca por
aber sido frayle professo el doctO't' blanco su ultimo pos­
sedar provàvelmente no mosteiro de San Estebán de
. . .

Salamanca. Refugiou-se pois no claustro. Desiludido do


mundo; repeso dos pecados; porque lho pedia o ânimo
místico ? Decerto que foi a fugir às trabuzanas do século,

80
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

o que, por qualquer lado que se olhe, lhe confere carácter


bem diferente do que lhe dão os bi6grafos de Cervantes,
de quem ficou a béte noire. Interprete cada um consoante
estiver no seu entendimento, que provas disto ou daquilo
não as há concludentes.

Miguel de Cervantes fora POis resgatado ao preço


de 500 escudos de oiro, como logo de princípio o haviam
cortado . O banho tinha a sua gíria, e com este termo se
queria significar- que avaliaram o seu resgate em tal
quantia, embora cortado na linguagem mesteiral se em·
pregue diferentemente: cortar um metro de chita ou
�ortar uma árvore.
Uma vez pago o resgate, o que fizeram os padres
redentores na última extremidade, quando estava prestes
a ser expedido para Constantinopla, deixou de ser escra­
vo, a cédula de forro permitindo-lhe ir onde quisesse e
quando quisesse.
Cervantes aproveitou o tempo para se armar dessa
espécie de salvo-conduto, graças ao que lhe seria permi­
tido requerer mercê de el-rei. Era comum entre cativos
munirem-se de semelhante formal. Ao mesmo tempo
precavia-se do cadafalso que O Dr. Juan Blanco de Paz,
comissário do Santo Ofício, prQcurava erguer-lhe. Bem
dera conta que o homem desprezado exercia ali a missão
temível que, num arranco de exaspero, confessara em
público e lhe havia de sair caro. Embora os cativos, tanto
os laicos como os eclesiásticos, fizessem semblante de
não acreditar, pois que não pudera exibir, e com­
preende-se, títulos de tal função, no fundo, estavam mais

SI
6
N O C A VA L O D E PA U C OM S A N C H O PA N ÇA

que capacitados que era bem um agente do Santo Ofício,


expedido adrede pelo rei.
Todavia a táctica mais indicada seria continuar a
ignorar a sua existência, fingindo que se tratava dum
embusteiro que se arrogara prerrogativas que. não pos­
suía, � ir rebatendo aqueles pontos em que poderia ter
dado o flanco e viriam a constituir cavalo de batalha con­
tra ele. Tais pontos estavam implícitos na amplitude dos
quesitos de que se compõe a Informaci6n, que ele próprio
redigiu e de que requereu se fizesse devassa sob autori­
dade do padre redentorista, Fr. João Gil, à falta de juris­
dição própria. A ela seriam chamados a depor tais e tais
indivíduos, perante o notário apostólico, no tocante à
sua vida e costumes do cativeiro, e várias coisas, que lhe
dissessem respeito, com o fim de apresentar a dita infor�
mação, se fosse mister, a Sua Majestade e pedir a justa
recompensa.
Se o comissário ia bater à porta de uns e de outros,
procurando instruir o libelo, questionando-os acerca desta
e daquela matéria, bel;1l fácil era parar o golpe sabendo
a que artigo visava. A Información, mais particular�
mente contraminuta e ataque cerrado ao P.· Juan Blanco
de Paz, que rol de serviços, é 'ijm longo e redundante
documento com a deposição das pessoas mais abalizadas
do banho" incluindo o Dr. Ant6nio de Sousa e o padre
redentorista Fr. João Gil. Os testemunhos, evidente�
mente prefabricados, regulam�se pela mesma pauta, e
às vezes decalcam�se tão de perto que as palavras se
repetem. De notável s6 há no de Rodrigo de Chaves
declarar ele que o Dr. Juan Blanco de Paz acusava o
Dr. Bezerra de ter sido o delator da conjura de que Cer�
vantes fora o agenciador. E que por isso e pelo prejuízo
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

que individualmente lhe causara , ainda lhe havia de


partir a cara. Mas ninguém acreditava na sinceridade de
Blanco de Paz. Verdade seja que chegado o tempo da Se­
mana Santa, quando os cristãos limpam sua alma no
confessionário antes de comungar, o Dr. Juan Blanco de
Paz compareceu à mesa da sagrada eucaristia sem antes
pedir perdão ao dito Dr. Domingos Bezerra, o que deu
lugar a murmúrios de teor contradit6rio.
Outro, Fernando de Vega, dirá que Juan Blanco de
Paz era um homem impulsivo, que ousara tratar a
murro um frade siciliano, mestre de teologia, e que Cer­
vantes era pessoa Clprincipal y lustrosal). além de discreto
e de bons costumes . . .
Juan de BalcázarI de Málaga, vem com a hist6ria de
que Miguel de Cervantes tratou de aconselhar cinco
muchachos, que ao serviço de moiros principais haviam
renegado, segundo su mala ynclinaci6n, a regressar à
fé cristã e fugir ao primeiro ensejo para Espanha. Sabido
que espécie de serviço era este , o parágrafo escorregadio
foi interpretado do seguinte modo pelo Sr. Herrero-Gar­
cia, cervantista notório, no livro A Vida de Cervantes.
Dialogam os cativos principais à volta do cativo de Al­
calá de Henares:
-Nos acusará de herejes o bugarrones ! -exclam6
Rodrigo de Chaves.
- O de lo uno y lo outro -afinoo Cervantes. -Lo
creo capaz de cualquier cosa.
-No andas descaminado- rePlic6 Juan de Balcáza'J'
-pues a mis oídos ha llegado que ese foragido intenta
sacarle punta a la amistad que dispensaste a aquellos
muchachos renegados . . .
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA NÇA

- Qué muchachos dices f' - salt6 vivamente Cer­


vantes.
- A quelws tres mocitos deZ caPitán mayor de A rgel�
'A rnaute Mamí, y los otros dos que pertenecíam a nues­
tra común patrón, Ali Mamí, a los cuales estuviste cate­
quizando e industriando para que huyeran a Espana,
gracias a lo cual se libraron de esta pestilente mOTeria. . .
Um padre, Fr. Feliciano Henriques, da Ordem de
N : S.a do Carmo, ouviu a uma pessoa dizer certas coisas
viciosas e feias contra o dito Miguel de Cervantes. Mas,
inquirindo bem, achou por grande mentira o que lhe
tinha dito a tal pessoa, e queimado seja em vida se assim
não é.
Nos tempos de hoje a homossexualidade deixou de
ser um pecado nefando para se tornar o jardim viçoso em
que se alteiam as mais esquisitas e redolentes espécies
literárias. Veja-se <> partido que tiraram dela Gide, Co­
lette, Proust. De resto, não fizeram mais que reatar a
tradição clássica que vinha dos gregos , desde Sócrates , e
dos romanos com Augusto e Petr6nio.
No Levante e Africa setentrional, estava mesmo den­
tro da moral consuetudinária.
A sodomia- lê-se em Haedo consideram-na uma
-

honra, sendo timbre para um moiro apresentar o maior


número possível de garçones. Recatam.nos mais que às
pr6Prias mulheres e filhas, salvo às sextas·feiras e o
tempo da Páscoa, em que saem com eles, ricamente ves·
tidos, a most1'á-los no passeio público, a que não deixam
de concorrer quantos galantins há na cidade, e muitos
que p1'esumem de graves, a requeb1'ar-se com eles. Ofe1'e­
cem-lhes raminhos de flores e dirigem-lhes os Piropos
mais chochos e apaixonados. Um pai que tem um filho,
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

se quer preservá-lo deste vicio, o que dá logo no goto,


tem de trazer nele seus setf. olhos de Argos. Não lhe
faltam chichisbéus a assediá.lo, mandando-lhe presentes
e passeando-lhe diante da porta. A lcaide que saia tora,
turco que vá à guerra ou à bufarinha, cOTsário ao corso,
tudo esquecerão menos levar o seu garçon, que lhes
serve de cozinheiro e lhes faz companhia na cama. Ter
trato com eles aos olhos do mundo não escandaliza nin­
guém.
Portanto, se Cervantes houvesse mantido comércio
socrático com o� cristãozinhos renegados não caíam os
espanhóis à lama. Era legítimo que os herdeiros da civi­
lização antiga lhe fizessem disso um desaire imper­
doável ? Para os menigrepos , que o talharam à imagem
de S."" Inácio, depois dos estigmatasJ que pela primeira
parte da sua vida ninguém responde, é que tal possibili.
dade seria uma nódoa indelével. Para o nosso humor,
tais factos não tiram nem põem, embora não se desdenhe
do seu conhedmento por trazerem no esfuminho pato­
lógico as velaturas próprias de todo o retrato.
O Dr. António de Sousa enviou a deposição por es·
crito por estar em ferros e não ter liberdade para ir depor:
((Conhece Miguel de Cervantes há três anos e oito meses,
com quem tem tratado amiúde e familiarmente. Tinha-o
o seu patrão como um dos principais cavaleiros de Espa.
nha e por isso o maltratava a fim de que, importunados
os seus, o resgatassem . u Miguel de Cervantes posait
. .

em Argel a grande de Espanha. Os homens superiores


têm estas falhas, se é que não significam já uma letra
descontada sobre a gl6ria . Mas todos os espanhóis que se
prezam participam· deste timbre . Ao tempo nem todos
botavam dom. Hoje bota-o qualquer toureiro de inverno.

85
N O CAVALO D E PA U COM SAN CHO PANÇA

Homens e Deus passavam por uma elevação condigna.


O humilde filho de José e Maria era don Jesus Cristo.
.
Já no-lo dizia Gonzalo Berceo :

En el nomb-re deZ padreI que fizo toda. cosa,


El de doo Jesu--Chrnto, fi de la Gloriosa,. .

o próprio Cervantes fazia alarde da sua fidalguia.


No soneto que escreveu a Ruffino de Chambery com que
decorar o ádito do manuscrito Sopra la desolatione deIla
Goletta e f01'te di Tunis, se lia: Soneto de Miguel de
Cervantes, Gentil Hombre espaiúJl.
O gentil.homem, que levava cartas de D. João de
Áustria e do duque de Sessa, desta vez safou-se da
morte mercê de sua pretendida pedra de armas.
Para os piratas, um jovem espanhol com aquela arro­
gância toda I o nome a soar a alta fidalguia como os dis­
cos dum pandeiro a gitano, sublinhada ainda pelas car­
tas que trazia na algibeira, era uma presa de estalo.
Teve logo as honras do banho principal, isento, sim,
de trabalhos forçados, mas particularmente vigiado, que
cada um dos seus cabelos representava um dobrão de
olro.
,

Quanto ao que foram os anos de ergástulo de Cer­


vantes, a requisitória do Dr. Blanco ê que devia ser o
documento preciso, embora se houvesse de sujeitar à cri­
vagem. Não chegámos a vê-la, nem encontrámos men­
ção dela, se ê que alguém a viu e se ê que existe nos
Tombos de Espanha. Da Informaci./m alguma luz se
côa, porém, difusa, dificilmente se traindo da penumbra
a pessoa emotiva e ardente de Cervantes.

86
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Fechado numa masmorra, 9 Dr. António de Sousa


declarou nada poder jurar quanto á Jnan Blanco de Paz
cumprir ou não as obrigações de sacerdote.
Fr. João Gil abona a escrita e dizeres do depoente
�m nome do trato familiar e contínuo que teve com ele,
quando estava em Argel, afirmando que pessoa de tanta
honra e brio seria incapaz de faltar à verdade.
E assim terminou a devassa de que Cervantes pediu
um treslado a Fr. João Gil, com o qual se embarcou, con­
fiadamente, para Espanha a bordo do navio de Maese
Antón Francés . Quando chegou a Dénia, ao sentir-se
restituído à terrà , às águas, aos ares, a si próprio. vi­
ram-DO cheio de comoção murmurar a palavra que a
cada passo andará DOS lábios do Engenhoso Fidalgo :
-A liberdade é o primeiro bem do homem.
IV
Lisboa em fins de Quinhentos. Cervantes chegou
já no dia seguinte. A Tomar dos TemPlá:rios na
preia-mar. A sombra de Camões. Um rei enredado
nos seus enredas. Ocupação de Portugal. A batalha
dos A çores. A a�'Ugada. De casa de Herodes para
casa de PilatQs. Estratégia clássica dos altos man­
gas-de-alpaca. O triste Mcumento denunciador.
Que vale a imortalidade. Porque é que a jib6ia
não digeriu o láParo

IGUEL DE CERVANTES , uma vez resgatado, mal

M teve tempo de arrebanhar do saquinho das ma­


nas, de mistura com o boião dos arrebiques,
uns magros maravedis, e correu a Lisboa. Com a con­
quista de Portugal era de supor que houvesse um mare­
moto nas funções públicas e cargos, lançados uns indiví­
duos ao mar, outros que espontâneamente iam ao fundo.
Alguém havia de preencher os postos de direcção. Por­
ventura a ele, Miguel de Cervantes, em nome dos servi­
ços prestados, se não recusasse um desses lugares vagos.
O problema era estar ali à hora do desbanque, quando
a ressaca deixa ver a plaga burocrática, batida pela con­
vulsão, coalhada de náufragos e afogados.
Era por alturas de Dezembro, com um destes inver­
nos mornos, quase caraíbicos, de que só resta memória
nas crónicas e nos livros dos viajantes. Lisboa enlan­
guescia à beira do Tejo, que hoje também já perdeu a
graça e lume claro de espelho para náiades, ralaça, mole,

88
NO CAVALO D E PAU COM SANCHO PANÇÃ

pelintra e deliciosa. O período das vacas gordas estava


a expirar. Mas do fundo dos armaúns, nos becos es­
treitos, exalava-se o rescendor inextinto das especia­
rias e da madeira de sândalo trazida da índia e Safala,
<:om que construíam as trastes das casas. ü que o ho­
mem mais sente é a natureza, e o sol, a luz, as águas ,
a brandura do ar esta�leceriam para Cervantes um ver­
dadeiro contraste climático com Madrid, a terra dos seis
meses de inverno e seis de inferno, e recordavam Argel,
a branca.
Cervantes teve a má sorte de aparecer apenas no
dia seguinte. A fidalgaria castelhana estava para Tomar
com nuestro buen rey, como ele pr6prio chama a Filipe,
a ungir-se, pelos príncipes de Igreja e os três Braços ,
senhor do velho reino afonsino. Ali reuniram as Cortes.
Aguardar era correr o risco de perder o resto do ensejo.
E correu à cidadezinha dos Templários. Até chegar a
Mateo Vázquez, arqui-secretário de Filipe, a quem diri­
gira de Argel uma carta, em verso, de patriota em deva­
neio heróico, como se tal facto houvesse criado uma
plataforma ao favor, foi um castigo. Os novos mandan­
tes tinham-se aboletado no próprio claustro, onde os frei­
res do templo haviam erguido uma fortaleza inexpugná­
vel e celas sobre celas para sua exigente milícia. Até
se atingir o reduto do comando havia infinitas barreiras
e contrabarreiras a transpor.
Mateo Vázquez não lhe deu ouvidos, e António de
Eraso, secretário e valido, com quem a certa altura
parece haver atado relações de ordem literária, lá se
dignou recebê-lo. Porém a' resposta foi mandá-l� es­
perar . . . que ia ver. . . tudo dependia do que se votasse
em Cortes . . .
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA N ÇA

Assinaram-se as capitulações e Filipe jurou obser­


var as usanças e costumes do reino ; nomear exclusiva­
mente portugueses para os cargos e lugares públicos;
reservar para os portugueses o trato da 1ndia, Brasil e
Mina; não conferir jurisdições, direitos reais, prelazias,
abadias, benefícios, senão a portugueses etc. etc. Por
sua vez, prometia vir residir para o novo Estado,
sempre que lhe fosse possível ; admitir ao serviço da
casa real portugueses conjuntamente com castelhanos,
segundo o uso de Borgonha; as aias da rainha seriam
portuguesas, e procuraria casá.las na sua pátria e em
Castela; franquearia ao comércio portos na raia seca;
facilitaria a exportação de cereais, etc. etc. e , mais isto,
mais aquilo, vinha buscar o peso e teria de deixar o peso
mais cinco pesetas. Em vez -duma soberania, granjeava
sujeições. Mas Filipe queria conquistar o reino de seus
avós maternos menos pelas armas do que pela blandícia
e os santos óleos, e subornava, comprava, fazia todas as
promessas e condescendências, a maioria das quais o
levaria para o Inferno por incumpridas.
Quando Cervantes volveu com o requerimento, abri­
ram-lhe os braços num rotundíssimo ncn possumus. De
resto, para Filipe II, um cativo -porque continuavam a
chamar-se cativos aos remidos de Argel eomo hoje bra­
sileiros aos portugueses de torna-viagem-era o preten­
dente menos recomendável. Cheirava a piolhos, farrapos
sórdidos, maus costumes contraídos com a miséria, calos
das cadeias nos tornozelos. Era um vetho soldado de
Lepanto ? ! Ora adeus, adeus, não havia bicho-careta
que não houvesse tomado parte na Batalha Naval !
E Filipe II, que tinha o hábito de receber e dar despa­
cho a todas as d-eprecadas e ofícios , faria um largo gesto
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

com a mão esquerda, pois que a direita começava a ficar


entanguida pela gota, acompanhado duma topetada da
cabeça .
Talvez Eraso o não desiludisse inteiramente e foi-se
deixando ficar pela terreola, donde os Três Estados
principiavam a desarvorar com a parte dos 60.000 du­
cados que El-rei lhes mandou distribuir a título de des­
pesas de jornada e ajuda de custas. Bem sabia Filipe II
com que visco se caçava esta sorte de passarões.
Entretanto constou a Filipe II que o almirante turco
illuch Ali saíra das madrigueiras do Levante com uma
esquadra poderosíssima. Com que prop6sitos? Por outro
lado, os governadores e fronteiros dos antigos presídios
de Portugal na costa marroquina pareciam mostrar-se
indecisos quanto a prestar-lhe obediência. Havia que
despachar um próprio ao capitão de Orão, Martín de
Córdova, com instruções oportunas I pois que aquela
cidade era o ouvido de Espanha para terras do Magrebe.
Precisou-se então de um correio que conhecesse os
lugares, homem de expediente e desembaraço, e lem­
braram-se de Cervantes, como idóneo para o recado.
Passaram-lhe uma cédula de 100 ducados, 50 a cobrar
antes da partida, os outros 50 do pagador da armada em
Cartagena, e ala. Como se desempenhou? NaturalIIl:ente
pelo melhor, pois que mais tarde , voltando a renovar o
pedido de mercê, invocou aquela missão. Tendo partido
a 2 1 de Maio de 1581, em fins de Junho estava de re­
gresso a Lisboa. A vaga cortesã refluíra já totalmente
das margens do Nabão.
Entre1uziu.lhe a esperança de forçar o postigo das
mercês e hospedou-se na capital. Preparava-se a expe­
dição aos Açores em rebeldia , e seu irmão Rodrigo

91
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

estava ali, alistado no terço de Lope de Figueiroa.


Fora requisitado boleto para um contingente de mais de
2 .CXX> homens, e cada soldado se instalara, de bom grado
ou à força, no lar do cidadão. O quartel general era no
Castelo. A ocupação definia-se.
Miguel de Cervantes teve então lugar e tempo de se
impregnar da cidade. Na novela póstuma Persiles y Si­
gismunda decantou-a como a primeira e maior do mUD­
do, a mais amena, mais amável, mais digna, pelo sítio,
pelo céu, pelos moradores, de ser babitada por um casal
feliz. E porventura os dias lhe corressem propícios e
alados, pois que a suprema consolação, para um homem
ou cão batido, é não os ver correr. Quando há cidades
que se fica a amar para sempre é porque natural.
mente a vida não teve as mãos ferradas no pescoço da­
quele que lá viveu. Quanto às povoações que se detes­
tam, é porque à sua lembrança se reacende o revolve­
doiro das fezes. Lisboa ficou para ele a terra marcada
no calendário com uma pedra branca. Como Lisboa fo­
ram seus amores Sevilha, Toledo, Barcelona. Hermes
tinha-lhas mostrado na encruzilhada dos caminhos, com
a face a flectir para a direita.
O que ele diz de enormidades simpáticas J de menti­
rosas virtudes, de falsos dons acerca de Lisboa, a pobre
cidade pestiferada, com cadáveres de negros e e'Scra vos
a apodrecer a céu aberto sob nuvens da moscaria ondu­
lante , andadores de almas e frades mendicantes de há­
.bito roto inçando ruas e praças, cheiro de carne quei­
mada nos autos-de-fé a impregnar a atmosfera, excede
a melhor disposição de alma, disparada às fantasias.
Soube ele em Lisboa o que isso era?
O 'certo é que nem Filipe II nem os áulicos se impor-

02
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

taram mais com ele. Na Corte imperavam outros cuidados.


embora entretecidos de regozijos e parabéns. Os portu+
gueses çla nobreza I um a um, em carreiro de formigas.
apaparicados por Cristóvão de Moura, corruptor de pri­
meira, iam-se chegando ao beija-mão. Chovia-lhes o
-maná e as codornizes do farto relamb6rio. Para com­
prazer com eles, o rei taciturno despiu mesmo a sua
roupa negra, assotainada, com gola severa de canudos,
tal como trajam os cavaleiros do Esp6lio. Deitou camisa
de holanda, gibão claro de veludo, e cavaqueava fami­
liarmente, chalaceava até com os grandes de Portugal,
récua macambúúa e crepuscular como ele, em estado
normal, quando não representava. Não teve a coragem
de mudar a capital para Lisboa, mas prestou a melhor
ajuda a um italiano que, através do Tejo, por Toledo,
imaginou uma via rápida para Madrid. À força de fazer
a boquinha doce a uns e outros, tornou-se corriqueira
entre as colarejas esta frase de louvaminha: mal empre­
gado rei paTa os castelhanos !
O próprio duque de Alba, figura sobranceira e ave­
lhentada, olhos encovados, faces sumidas, tez cor de
cera, barba de neve, em tudo ar de homem antigo, des­
tes que saltam dos retratos colgados da parede dos velhos
palácios quando se acendem as velas no lustre de Veneza,
lançava a sua gracinha:
- A duquesa de Bragança, ah ! que grande e ceri­
moniosa dama ! Julgam que na visita que lhe fiz alguma
vez me deu o tratamento de senhoria, excelência ou
alteza ? ! Qual, foi muito mais longe. Chamou-me Jesus.
-Jesus, senhor duque, muito me honra com a sua vi­
sita ! Jesus, ainda agora chegou, já se vai embora ? ! . . .
O valido Cristóvão de Moura, cerimonioso e elegante

93
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O P A N Ç A

em despeito da anemia que o trabalhava, olhos grande!


na fronte escantoada e alta, era o repartidor das benes­
ses. Tinha chegado a Primavera, e mar e terra entor­
navam na leve e imponderável noite seus odores capito­
sos. Lisboa rebalsava-se como odalisca numa atmosfera
de luxúria barata I entre lausperenes e cavalhadas.
Damas faceiras em barda e fidalgos semiscarunfiosJ
cujos brasões vinham de Vitiza, seguiam de caudatários
ao rei usurpador. No meio da espampanante feHeia,
posto que mais ou menos artificial, Cupido tinha que
fazer das suas e fazia. O próprio Cervantes escrevera:
para galas Milão, para amores a Lusitânia.
Ê possível que na cidade edénica. vista através de
lente assim cor-de-rosa, passasse Cervantes alguns bre­
ves e ditosos dias. A Naval , como diziam os espanhóis
em orgulhosa prosopopeia, se não o inutilizara para a
guerra, muito menos o deformara para as lides do amor.
Não era o seu braço como o de Valle lnclán um braço
representativo, precisamente porque a este faltava deve­
ras. Àquele lá estava inamputado. Pelos vistos a mão,
sim, é que ficara morta, flácida, privada da nervação
muscular, mas lá assistia, haurindo através do pulso a
competente seivá sanguínea. Que daqui levou uma filha,
Isabel, era a opinião comummente aceite até há pouco.
Parece que não, a filha nasceu espanhola dos quatro cos­
tados e cerca da Gran Via.
Cervantes não é nenhum santo, mas um homem.
Como tal, à maneira de Byron, de Goethe, de Camões,
de Benevenuto Cellini, imagino que lhe realçariam a

humanidade quanto mais amadas melhor. Amadas e


coisas correlativas com o pleno gozo sensual, que é o mais
possessivo no homem.

94
N O C A VA L O DE P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

É de supor pois que em Lisboa, corno em Argel, se


entregasse ao desfrute da sua mocidade ardente e im­
pulsiva . Se não teve em Lisboa amores com a senhora
portuguesa, que por má leitura do paleógrafo ou canhes­
tria do escriba alcançou um nome de revista, ficou-o a
dever. E é pena que não namorasse e amasse não apenas
uma, mas dez, cem pÔrtuguesas, que seria mais bonito.
Passaria Cervantes o seu tempo a estudar portu­
guês e a ler o Camões, como pressupõe Tomás Ribeiro
Colaço ? Nenhum espanhol, a menos que movido pelo
interesse particular da ciência filológica, estuda o por­
tuguês, do mesmo modo que nenhum português estuda o
castelhano. Mormente àquela altura em que a diferen­
ciação era muito menor que boje. Com mais silabada,
menos silabada, os dois povos peninsulares, idiomàtica­
mente, entendem-se menos mal. Quem viaja , cá ou lá,
não precisa de acocorar-se e cacarejar como a inglesa
globe-trotter a pedir ovos. Então escritas, as duas lín­
guas são transparentes como vidro, redprocamente ,
para castelhanos e portugueses. É intuitivo. Trata-se de
vergônteas da mesma cepa, e que brotaram na mesma
Primavera.
No ano a que nos reportamos ainda se pareciam
mais uma com a outra. Pareciam-se como irmãs gémeas
a debruçarem-se do berço e a tagarelar. Teriam mais
acentuadamente que hoje fisionomia igual, já não digo
temperamento. Neste particular, divergiam e mais vão
divergindo, como acontece com todos os seres, ainda que
criados em idêntico clima e gerados no :Q1esmo· ovário,
.
depois que tomaram altura.
Cervantes não teria pois necessidade de estudar o
portuguê� para perceber Luís de Camões . Camões era,

95
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

mais que um luso, um hispano no bom sentido da pala­


vra. A sua própria obra é bilingue, embora em quanti­
dades desproporcionadas. Esta circunstância define a
propinquidade que haveria para o espírito de um espa­
nhol, e demais indivíduo de escol como era Cervantes,
do �nsamento e finura do lirismo camoniano. E todavia
Cervantes apenas uma vez aludiu a Camões , uO exce­
lente poeta Camões)), e bem impràpriamente, enquanto
o faz pela boca de duas pastoras de arcádia, que se pro­
punham, à maneira dos figurantes dos autos populares
por jeitosos da terra, interpretar-lhe duas églogas.

Durante o tempo que aguardou em Lisboa despacho


às suas pretensões ou remédio à sua inópia, teria Cer­
vantes, por conseguinte, ócios de sobejo para se compe­
netrar da terra, de usos imediatos e do que nela havia
de excepcional. Àquela altura, sob o signo de Filipe,
qualquer espanhol não pedia meças a outro em amor
pátrio. Jurava por D. João de Austria, dado que não fosse
pelo Cid. Cervantes não cantou a tomada de Portugal
na Profecia do Douro, estrofes que fazem parte do Cerco
de Numância r
Entretanto Filipe II procurava conciliar à ·sua causa
a aristocracia portuguesa com dar-lhes a chuchar toda
a espécie de cana-doce, embora no sumo viesse mistu­
rado sal amargo e teriaga. Incumbidos por ele, o bispo
de Leiria e Crist6vão de Moura haviam tomado a cargo
o almoxarifado das mercês. Mas foi tal a sofreguidão
e concorrência que todas as terras, honras e rendimentos
de dois reinos maiores que Portugal não seriam cabon­
des para saciar os famintos e cobiçosos. O principal

96

.�_..
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

cuidado de Filipe II, entretanto, era aparelhar uma


armada suficientemente forte com que renovar a em­
presa sobre os Açores. sem correr o risco de sofrer o
descalabro que tivera em Angra a expedição de Pedro
de Valdés. E posto que o erário estivesse exausto, fosse
preciso reforçar as tripulações, escasseassem navios de
transporte, de tal modo proveu, com a demão do almi­
rante, Alvaro de Bazán, marquês de Santa Cruz, que a
esquadra necessária surgiu. Enquanto em Lisboa se
entregavam aos últimos trabalhos da arqueação, o pr6-
prio Bazán foi presidir em Sevilha ao armamento das
galés. Estavam tom receio de que a esquadra inimiga,
às ordens do prior de Crato, interceptasse a armada das
índias Orientais, e mal apanhou a artilharia a bordo e
as velas nas adriças deu-se pressa em partir, deixando
mesmo atrás umas vinte naus e doze galés. A 10 de
Julho a frota transpunha a barra do Tejo, de velas pan­
das, bem municiada e com aguerrida equipagem. Com­
punha-se de trinta e uma naus e galeões.
Para os biógrafos da primeira camada, Miguel de
Cervantes teria tomado parte na expedição. -Está averi­
guado que não tomou, mas sim o mano. Dado que
Cervantes houvesse formado na empresa da Terceira,
algum sinal haveria deixado nos seus escritos , e não
deixou. Rodrigo teria embarcado no galeão S. Mateus,
do comando do mestre de campo general Lope de Figuei­
roa, cabo de guerra quase perc1uso duma perna, mas
decerto um dos mais experientes e prestigiosos das for­
ças armadas espanholas. A equipação somava 5.500 sol­
dados, incluindo a infantaria de desembarque, con­
tingente considerável sem proporção com o objectivo:
desbaratar a esquadra, segundo os espiões , de potência

97
,
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

muito aleatória, que o prior do Crato conseguira levan­


tar nos portos franceses e britânicos, comprando, alu­
gando toda a espécie de xavecos graças às jóias da
Coroa, subtraídas dê Portugal e jogadas às rebatinhas.
Submeter depois aquelas ilhotas, isoladas no meio do
mar, à desmão do mais pequeno socorro, era negócio de
perna às costas. Mas Filipe, que a História cognomi­
nou de Prudente, gostava de proceder à larga e pelo
seguro, sem minimizar os obstáculos.
Uma vez face a face, os franceses, que se deixaram
escamotear. por hábil manobra de Alvaro de Bazán, da
magnífica posição estratégica com vento a favor e sol
pelas costas, investiram distribuídos em cinco esqua­
dras. Ao todo, patachos, caravelas, velbas urcas, perfa­
ziam umas sessenta embarcações ligeiras. Um bando de
gaivotas. Em mobilidade levavam a melhor às pesadas
quilhas espanholas. Mas que era isso na abordagem e
perante uma artilharia mais poderosa ?
Abriu fogo a capitânia de Strozzi, soltando suas flâ­
mulas ao vento e tocando arma. Ao pelouro mandado
contra a frota castelhana, respondeu o galeão S. Marti­
nho com um tiro de bombarda. E cresceram naus con­
tra naus em linhas paralelas , rompentes.· Uma das es­
quadras de Strozzi, comandada por Sainte Soline, apenas
se empenhou o combate, porque visse o negócio mal
parado e preferisse às contingências do encontro ir espe­
rar as naus da carreira das índias, desertou logo no
princípio da acção. Dando conta que a força dos espa­
nhóis residia nos galeões S. Mateus, S. Martinho e
S. Pedro, Strozzi pretendeu isolá-los do grosso da ar­
mada, e com este intuito os acometeu. O galeão S. Ma­
teus, descomunal e verdadeiro ouriço de canhões, mais
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

lento que os outros, foi o àlvo escolhido. A nau almi­


rante francesa abalroou...o pela proa, de par que a capi­
tânia de Brissac, com três naus auxiliares, o aferrava
pelos lados e a ré. Figueiroa mostrou-se o soldado des­
temido que sempre fora. As peças vomitavam da borda
pelouros sem cessar; os seus mosqueteiros carregavam
e descarregavam com perfeita cadência. E na coberta, a
cada acometida, a sua infantaria varria os assaltantes
para o pego. No convés combatia Rodrigo Cervantes.
Conta-se que, no mais acesso do combate, D. Lope
se voltara para ,8. Mateus pintado à proa, meio face­
cioso, meio desabrido, contente do andamento da peleja :
-Santinho, larga a pena. com que escre'Ves, não é a
hora, e pega de uma espada ao nosso lado, que 11.6s tam­
bém somos por Deus !
No auge do perigo, acudiu-lhe a nau almirante de
Álvaro de Bazán, e a batalha recrudesceu de encarniça­
mento. Aqui um patacho do Havre rompeu a arder como
um archote, além umas tantas gal�s inimigas, que se
esquivavam ao fogo ou resistiam, acabaram por ser des­
troçadas e postas em fuga. O mesmo estava a suceder
nas duas alas.
Durou a acção cinco horas. Strozzi, arrastado cam­
baleante, a esvair-se em sangue , à presença do marquês
de Santa Cruz , ouviu esta sentença da fera:
- Está a sujar a tolda ! A cabem com ele.
Depois de trespassado a golpes de adaga, lança­
ram-no ao mar. Os franceses perderam dois mil ho­
mens, tudo mocidade generosa e aventureira, se bem
que condottieri na quase totalidade. Os que escaparam
foram degolados nos dias seguintes, arcabuzados na
praça ou enforcados. O marquês de Santa Cruz, ((rayo

99
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

de la guerra, e1 padre de los soldados, jamás vencido


capitánlJ} só perdoou aos soldados que tinham menos de
dezoito anos. E relata um cervantista encartado com
sucinta tumidez castelhana: en cinco dias s'Ustanció e1
proceso don A 1V41"0 Bazán a toda aq-uella caterva. Erán
gente que, a espaldas de su Rey, habián empreendido
una guerra de piratas contra la paz publica, la seguridad
deZ comercio maritimo y la fé jurada contTa las caronas
de Espana y de Francia.
Em verdade, aqueles fidalgos pobres, cadets de Gas­
cogne sans peur et sans vergogne, tinham vindo sob o
balsão aventureiro do Prior. Sem mais que o placet da
sua rainha. Assalariaram-se com mira no saque e na
tomadia das naus do Oriente e remoendo consigo todos
os maus pensamentos dos mercenários. Vencidos, s6
ficava bem ao triunfador dar-lhes o destino consignado
pelo direito de guerra e de reconhecida beligerância.
Pois não arvoravam uma bandeira de lei? Bazán, cat6-
lico até a medula, preferiu a f6rmula sumária, preconi­
zada por Jeová contra os filisteus.
Cervantes não assistiu à açougada, sem o quê os
elogios que faz a este fero capitão se tornariam vi­
tupérios contra si pr6prio. Os antigos cervantistas
patrioteiros e de ressaibo filipino, que prezam a gesta
mav6rtica, prefeririam que sim. As datas, que são omni­
potentes, contrariam-lhes os desejos. Hoje em dia, pal­
pita-se porejar um certo asco, subtil como um gás muito
rarefacto, das páginas de qualquer livro. saído bem em­
bora da pena mais humilde, contra a gesta das armas.,
Asco inominado, antropo16gico, de expoente acentuada­
mente humano. A par com o desdém 6ptico com que se
lhe esbate o panorama das sangueiras e chagas hUII.Ia-

100
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

nas, lateja em sua consciência uma pronunciada revolta


pelo assassino legal e acutilador. Cervantes veio numa
fase da humanidade , como Camões e como Tasso, em
que a glória guerreira se prevalecia de invejáveis louros.
Estamos .em vésperas do Juíw Final, e o menos que
pode suceder às estátuas de bronze dos grandes capitães
é serem fundidas para patacos ou CODvertidas. em pane­
las de cozinha.

Em princípios de Fevereiro de 1582, estava Miguel


de Cervantes de regresso a Madrid . Testemunha-o uma
carta , recentemente encontrada no arquivo de Siman­
cas, datada de 1 7 de Fevereiro desse mesmo ano. Por
ela se demonstra à saciedade que todas as suas passa­
das . súplicas e zumbaias, tinham sido infrutíferas .
É reportando-nos ao seu conteúdo que se pode recons­
tituir com mais acerto, menos acerto conjectural, o que
terá sido a odisseia do pretendente, além do que nos
inculca o molde consabido desta noção de factos.
Era a carta dirigida a António de Eraso, do Conse­
lho das índias, e nela se lia:
El secretario Valmaseda ha mostrado conmigo lo que
yo, de la que vuestra merced me había de hacer, espe­
raba; pera ni su· solicitud ni mi diligencia pueden con­
trastar a mi poca dicha: la que he tenido en mi negocio
es que el oficio que pedia no se provee por Su Majestad;
y ansí, es forzoso que aguarde a la carabela de aviso, por
ver si tray alguno de alguM vacante: que todas las que
acá habia están ya provejdas, según me ha dicho el sei ior
Valmaseda, que con muchas veras sé que ha deseado
saber algo que )10 pudiese pedir. Deste buen deseo

lOl
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

suPlico a vuestra merced dé el agradecimiento, en las


suyas, que merece, 5610 porque entienda que no 50y yo
desagradecido. En este interin me entretengo 8n criar
a Galatea, que es el libra que dife a vuestra merced es­
taba componiendo. En estando algo creeida, irá a besar
a vuestra. merced las manos y a recibir la correci6n y
enmienda que yo no le habré sabido dar.
António de Eraso, um dos inumeráveis burocratas
de Filipe II, membro do Conselho das 1ndias, filho bas­
tardo do primeiro secretário de Carlos V. Francisco de
Eraso, impontou-o de Lisboa, onde estava , para Madrid
como o processo mais airoso de se descartar do impor­
tuno. Valmaseda, alto manga-de-alpaca do ministério,
também do Conselho das índias, a quem ia dirigido , não
descobriu nenhum lugar vago, é claro, que lhe pudesse
convir. Era forçoso esperar a caravela da carreira transe­
ceânica para se saber se lá pelos guatemaltecos não have­
ria algum cargo caído ao chão. Não dependia-alega ­
de Sua .Majestade, como se alguma coisa se fizesse em
Espanha e seus domínios que não levasse o selo da mão
régia. Não fora ele o monarca que numa caçada mandara
degolar o açor que vencera uma águia em combate, por­
que nela subsistia o símbolo que personificava a sua
garra sempre presente? A técnica com que se logram
os pretendentes, que não é de boa política sacudir ex
abrupto, é velha como o mundo nas dilações e miragens.
Mas há-de haver sempre pessoas de boa fé e inscientes
das tramóias ministeriais a deixar-se enganar como o
autor do Quixote. A questão é alumiar-lhes um luzei­
Tinha de esperança, essa fada interior que tudo trans­
verte e redoura .

102
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N "Ç A

A carta de Cervantes, pródiga em salamaleques e


de redacção retorcida, endereçada já de Madrid para
Lisboa, parece mais a de um demandante vulgar, COf­
rido, mas sempre delicado, acalentando em si voltar com
o cantil, pois que evita queimar as pontes, mas de letras
mal estreadas nestas maranhas. Afinal , denuncia o es­
tado de espírito e a situação do homem aux abois com
aquele estilo tão fora das normas do cursivo burocrático,
esse para o qual os escritores de raça têm visceral inapti­
dão. O enrodilhado da frase constitui ainda a prova ini.
ludível de quanto o escritor se via contrafeito, sabe-se
lá em que hora de desnudez absoluta. Quem em seme­
lhantes auges escreve uma carta com altivez e rectitude
mental ? O mesmo acontece ao postulante que se apre­
senta à potestade, de corda ap pescoço. Entaramela-se­
-lhe a voz e as palavras que profere carecem de proprie­
dade, se algum nexo encerram . O infeliz é canhestro.
Odioso. Vendo-se ao espelho, seria o primeiro a reco­
nhecer que merecia ser corrido a pontapés. Em geral
despedem-no com requintes de cerim6nia e compostura.
Na carta de Cervantes há ainda a-considerar -a letra
que um bi6grafo, seu devoto, classificou de ({preciosa)) .
Ela é com efeito trabalhosamente regular, cheia de es­
crúpulos no desenho, quase aflitiva de simetria, dir-se­
-ia obra de um calígrafo profissional que tem de agra­
dar para que o tomem a soldo, mas de mão levemente
trémula. E nada mais que em si caracteriza, melhor que
a redacção rebuscada, tão ao avesso da maneira larga do
criador de D. Quixote, a posição de subalternidade em
que estava e aceitava estar o pobre perante os magnates.
� um humilde que implora. Implorava emprego lá em
cascos de rolha, naquele ano da Graça de I582, e voltaria

'°3
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

a pedi-lo, igualmente debalde, em 1590, depois que


purgou na cadeia um pretendido peculato.
Para cúmulo, nesta carta até fala ao manga-de-alpaca
DOS trabalhos que traz em mãos, a Caloteia, que lhe
mandarâ, para receber a correcção que não sabe dar-lhe,
quando estiver mais crescidinha. A calvíssima lisonja
do infeliz desvaneceu-se em fumo como acontece por via
de regra a todos os mimosos do espírito com estes man­
darins e batoteiros da sorte. Quem sabe hoje que espécie
de homem era o secretário real ? Apenas por milagre do
génio, reflexo de um seu refle.xo, emergiu da cisterna
negra da eternidade, que um cervantista cat6lico encheria
de pez a ferver, para volver a mergulhá-lo nele por todos
os séculos dos séculos, ámen. Nem nas 1ndias, quanto
mais na metr6pole, havia colocação para o veterano de
Lepanto !

Na conjunção de sessenta anos de Portugal com Es­


panha, o que mais admira não é o movimento libertador
de 1640, que nós ampliámos até a epopeia e que em todas
as cortes se chamou conjura e nem atingiu sequer o grau
de motim. Com efeito, não se despencLeu mais que um
tiro, o que matou o secretário de Estado Miguel de Vas­
concelos. O que admira é que a Espanha, durante ses­
senta anos de domínio, não houvesse digerido Portugal.
Como é que se e..-xplica que o l�paro resistisse ao estômago
'da jib6ia ? Reunia o povo português tais qualidades de
auto-independência, havendo-se tornado um ser colectivo
tão fortemente compleicionado, que a assimilação fosse
impossível ? Pelo contrário. Mercê, segundo é notório,
das virtudes negativas que lhe vinham cultivando desde
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

D . João III, perdera a virilidade e o carácter. A vis de


uma nação é feita da sua consciente cidadania. Esta
existe consoante o grau de liberdade e de bem-estar que
usufrui. Ora em Portugal . com O andar dos tempos:
deixara de haver cidadãos para 56 haver pedintes, es­
cravos e áulicos. Nem uns, nem Qutros contam para a
estruturação de uma pátria. No sentir de Oliveira Mar­
tins. a tragédia da sua aniilação fora decorrendo em
lágrimas e desesperos. Tudo isso é falso �pos . A ver­
dade é que o co16ide perdera todas as condições de vibra­
tilidade. Respondia com indiferença absoluta a males ,
misérias, extorsões e indignidades do Poder. O português
contentava-se em rilhar, metido dentro da sua broa. Não
houve sequer pânico. Foi perante um imenso nirvana que
se encontraram os Filipes . Mal assomaram à fronteira
com certo rompante, abriram-se-Ihes as portas de par em
par e caíram , tão fácil como em Jericó, os muros dos
castelos .
Posto isto, parecia que a integração efectiva, corpo e
alma, se efectuasse entre Espanha e Portugal por simples
impregnação como a da levedura na masseira. Para mais,
o ocupante saíra da mesma cepa, falava uma língua irmã,
era similar em costumes e religião, uma fronteira comum
e bem vadeável corria de Norte a Sul. Além disso,
levava-lhe vantagens em dinamismo, dispor de 'recursos
militares superiores, ser cinco vezes mais populoso e
com uma economia muito mais sólida. A absorção não se
deu, porém. Mas com certeza ter-se-ia dado, se a Espa­
nha pusesse em jogo os elementos de que virtualmente
dispunha.
E porque o não fez ? Filipe II era um homem cheio
de dons, mas de defeitos improporcionalmente superio-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

res. O grande óbice dos seus projectos foi querer abarcar


e dilatar o mundo, que lhe legou Carlos V. com os res­
tritos braços espanhóis. Sonhava com a monarquia cató­
lica universal, e sonhos destes, imperialistas, deram sem­
pre com o sonhador em pantanas. Para mais, ao propósito
de domínio político associava o intuito proselitista, e o
espiritual torna-se o insaisissable de todos os conquista­
dores. Afinal, foi o rei das grandes frustrações. Preten­
deu avassalar a Inglaterra, e as duas ou três vezes que
o tentou falhou mais ou meDOS estrondosamente. Pri­
meiro, casando com Maria Tudor, que não lhe deu o
filho que almejava. Mal lui en prit de cette union que
fut celle d�un pavé et d�un tison ardent, escreve Charles
de Coster. Depois, projectando consorciar o filho com
Maria Stuart, resultou-lhe o plano igualmente falaz. Fi­
nalmente, procurou subjugar a Inglaterra pelas armas,
e a A rmada Invencível foi o grande desastre, primeiro
degrau da ruína galopante. Desde esse dia, a Espanha
ficou com chaga aberta no flanco. Não houve porém logo
sinal. Estas mazelas corrompem o organismo, mas não
doem. O diagnóstico não fixa, tão-pouco, prazos. E com­
preende-se, as doenças das nações, sejam graves septice­
mias ou passageiras furunculoses , duram o tempo, com­
parado com o organismo do indivíduo, proporcional ' à
sua longevidade.
Nos Países Baixos e Flandres movia ao braço espa­
nhol o mesmo absurdo ideal : cortar a cabeça à hidra
luterana. E a Flandres tornou-se o açougue da flor de
Castela e dali, em despeito das espoliações fiscais, não
se apurou um dobrão. O mesmo .s.e pode dizer de Itália
que, mais flácida, mais acomadatícia com o invasor, re­
presentou uma sangria constante das energias nacionais.
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

Se a Espanha se não distrai com a Flandres e com a


Itália e concentra a sua ofensiva sobre Portugal, bem
certo que seria absorvido. Mas com os conquistadores dos
povos sucede o que é comum com todos os Pedras de Ma­
las-Artes deste mundo. Adiantam um braço e ficam ila­
queados do corpo todo. Mesmo que a Espanha cedesse ao
espírito diab6lico, não lhe era fácil desligar-se das ante­
riores conquistas. A Espanha preferiu conservar-se abra.
çada ao espectro da Monarquia Universal e relegou o
problema do país insurgido a segunda leitura. Foi o que
salvou a frágil nacionalidade, que ao tempo carecia de
fibra e espinha própria para resistir ao empalme . Senha­
Tear-se efectivamente de Portugal era questão, mais que
de força, de tacto político. Observaram a Filipe, quando
chegou a Lisboa, se não foi ele que o concebeu ou o duque
de Alba, que era homem astucioso e com largas vistas :
-Deixai a Portugal suas leis e usanças; cativai seus
fidalgos e sacerdotes com benesses e honrarias; não to­
queis em nada qu,e lhes seja sagrado. Esta é a boa táctica
e o melhor processo de governar este povo brando e bas­
tante acarneirado. Agora, senhor, se quereis fazer de
Portugal uma província espanhola, como o é a Galiza ,
por exemplo, de modo que jamais se quebrem os vínculos,
e que nem ele dê conta , cultivai-lhe o orgulho e a . vai­
dade, mudai a capital de vossos reinos para Lisboa .
.,
O português fàcilmente se ilude; julga que foi ele que
ganhou a partida, que é ele que dá leis e , dentro de duas
ou três décadas, não há mais nação lusitana nem coisa
que se pareça.
Filipe ainda encarou essa hipótese infernal , mas não
lhe deu corpo. Realizou a primeira parte, a mais pronta.
Nunca vieram bem a lume as razões que lhe tornaram

1°7
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

inibit6rio o projecto na totalidade, pelo que devemos con­


siderá.las como de ordem muito particular. Alguma relu.
tância íntima se haveria formalmente deparado à sua
prática. Os interesses criados que pesavam a favor de
Madrid não eram pequenos, mas Filipe não temia objec­
ções nem escolhos. Não tinha transferido já a capital de
Valhadolid r As razões de ordem financeira tão-pouco o
demoveriam, embora trouxesse os súbditos escaldados.
A psicanálise ajuda a compreender muitos sucessos
do reinado de Filipe. A avaliar pelos historiadores in­
gleses e belgas, e por certa cr6nica peninsular, Filipe
reunia todas as características do tipo vincadamente freu­
diano. O seu erotismo, segundo Mottley I era tão pertinaz
como vingativo. Várias mortes que mandou executar,
entre outras a de Escobedo, a perseguição a António
Pérez, a morte do filho e sabe Deus se, resultante dessa,
a morte de Isabel de Valais, são actos comprovativos.
A corte de Santo Isidoro ser-lhe-ia precisa como um
serralbo. Lisboa, para isso e a seus olhos, devia repre­
sentar uma sorte de paraíso pobre, paraíso das meias
Onze Mil Virgens.
v
Paratk nos umbrais de mundo. Pior q1U numa jan­
gada à deriva. A moTes fortuitos e equívocos. A na
de Vilafranca, Ana Francisca de Vilafranca e Ana
Franca, a mesma tabuleta. A luz dos seus olhos.
Uma viúva alegre filiPina. Mouro na casta de
Esquívias. A boa tena de fidalgos e galgos. Uma
rolinha pr01lincial. Pícaros e rufiões. Erros de com.­
preensâc de parte a parte. Enfartanunto da como­
didade burguesa. Fuga ao pequeno paraíso tCffeal.
Outros horizontes. Sevilha, a feiticeira

EGUIR
S
Miguel de Cervantes, através do espaço de
tempo que vai da sua desilusão de 1 7 de Fevereiro
de 1582 ao seu casamento a 12 de Dezembro de
1584 . é seguir pisadas na areia. Passou aqui ? Passou
ali ? Aqui está marcada a planta do seu pé. Ali é proble­
mático que seja a dele.
Há interesse em reconstituir o itinerário? Há, como
de todo o caminhante que superou a craveira comum e
cuja humanidade andou a rastos de inauditas provas e
contingências.
Em princípios de Fevereiro de 1582 encontrava-se,
pois, Miguel de Cervantes de regresso à casa paterna,
sem possuir, de seu, ofício ou benefício. Ia entrar no
terreno mORO, vago, indeterminado como o deserto, onde
um homem de bem mal ouve o relógio da personalidade
marcar a pulsação. Que fez ? À sua forma de existência
corresponde um longo e mudo hiato. De início parece que
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

se deu ao trabalho de acabar. fundir e refundir a Gala·


teia. Sente·se que o cepilho passou aqui e além, uma,
duas, D;lais vezes. Tarefa dç Danaides. Depois, quando
viu terminada a Primeira Parte, ou sejam <)5 Seis
Livros, em que aliás se suspendeu para todo o sempre,
deitou olhos à roda à procura de Mecenas, antes do editor.
Deparou-se-Ihe o abade de Santa Sofia, Ascânio Colona,
como pessoa idónea, essa, que corresponde aos requisitos
de que Frei António de Fuentelapena lavrou acta no pre­
fácio-dedicatória do EI ente dilucidado . Oferecendo este
livro a D. Gonzalo Messia CarrilIo Portocarrero y Meu­
doza, marquês de la Guardia, escreve : Estilo ha sido
siempre (se11or) dedicar los libras à personas eminentes,
para assegurar sus rumbos, tener segura su protfCción.
A tendiendo , pues, yo a esta loable costumbre, entre mu­
chos eminentes, y 1Wtabilissimos suje tos , que me requi­
rió esta obra, para salir debaxo de su amparo , hije
elección de la persona de ,V. S. cuja nobleza es tan castiza,
tan noble y antigua que casi no se puede dar alcance,
ya por parte deZ nobilissimo linage de Messia, ya por e1
celeberrimo de Carrillo etc. etc.
Na casa paterna não havia fartura. Os panos de tafetá
que ornavam as salas da' mana Andreal.. dádiva do mu­
nífico velho Juan Locade1o, foi a condescendente Mada­
lena empenhá-los por trinta ducados. Nunca mais saíram
das mãos do prestamista. Napoleão Lomelin, um geno­
vês, que dois anos depois acedia a saldar por 523 reais,
deduzidos os trinta ducados do penhor.
Na algibeira das duas manas, cuja formosura rendia
mais que uma quinta, iria arrebanhando os maravedis
do diabo, que na sua mão ganhavam asas.
Entretanto, tentou uma incursão pelo teatro, esse que

no
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

se representava DOS Pátios, e tinha por clientela principal


a arraia-miúda. a quatro e até dois reais, preço de bilhe­
teira de Maese Pedro com o Retábulo de Melisendra.
Compuse en este tiempo hasta veinte comedias ou
treinta comedias- que todas ellas se recitaron sin que
se les ofreciese ofrenda de pepinos. [" 0 ] Tuve otras
cosas en que ocuparmej dejé la Pluma y las comedias, y
entr6 luego el monstruo de naturaleza, el gran Lope de
Vega . . .
A primeira comédia que compôs foi EI trato de Argel
e seguiram-se as outras a uma cadência que não é fácil
surpreender, dàdo aquele salto facecioso no trapézio pita­
górico de vinte para trinta. Diz-se umas duas ou três,
ou umas seis ou sete, mas umas vinte ou trinta é esta­
belecer um lapso desmedido de que só é capaz um es­
panhol e volantim.
Foi durante esta actividade cenográfica que decorre­
ram os seus amores com uma madrilena, Ana Francisca
de Rojas ou Ana de Vilafranca ou simplesmente Ana
Franca , sendo absurdo que, por seu pai, que era um
topa-a-tudo, tratante , contratador de lãs e até presta­
mista , se chamar Juan de Vilafranca, herdasse o apelido
de Franca, aférese que é contrária à economia da língua
e às leis comuns da pros6dia. A meu ver, por descuido
do escriba ou má leitura do transcritor, se desmanchou
a grafia da abreviatura, ficando um nome de farsa com
a concomitância de coincidências, aparentemente descon­
certadoras. Note-se que uma avó ou tia-avó recebera o
prenome baptismal de Francisca, o que devia servir de
premonição aos linhagistas.
Ana havia-se casado à volta de IS80 com um homem
que teria sido ajudante de Juan de Vilafranca ou pelo

III
'
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

menos andava ao mesmo negócio, Alonso Rodríguez ,


natural de Oviedo. Na escritura de dote em que vem
enunciada toda a ridicularia do casal -uma sertã, uma
caçoila, um assador. . . -consignam-se os 100 ducados
que , a título de parenta e criada, lhe legara Damiana de
AlfaTo, os quais se lhe dariam aI tiempo que se casal'e
ou mudare estado.
Viesse ou não Alonso Rodríguez ao visco dos 100
ducados, em 1585 o casal estava estabelecido com uma
taverna na calle de los Tudescos. Taverna era uma casa
de comes e bebes, meia botequim, meia restaurante, cujo
grau de importância dependia do local que ocupava.
À beira do Palácio Real seria um estabelecimento mun­
dano e com boa freguesia, no Rastro ou em Cannas Vie­
jos uma tasca para cavalariças, moços de recados e bir­
bantes. Cedo lhes terá nascido uma menina que recebeu
o nome de Ana de sua mãe e que, seguida no fluir dos
anos, vimos ser contemplada no testamento de Isabel de
Saavedra, filha de Cervantes, primeiro como uma pa­
rente pobre , com uns farrapos, depois, no codicilo, com
uma quantia decente, posto que problemática, e em que
lhe chama irmã.
Com efeito, Miguel de Cervantes interpusera-se na
vida do casal e é de presumir que da maneira mais cala­
mitosa. Não há luz do enredo, mas afigura-se fora de
dúvida que Cervantes , autor buliçoso de comêdias e
dado, por consequência, à frequentação com actores e
histriões, ao tempo a gente mais impensada e fantástica
do universo, contagiado por eles e dentro da pr6pria mo­
bilidade psíquica da coreografia, desencaminhasse Ana
de Vilafranca dos deveres matrimoniais. Mais tarde
ou mais cedo, ter-se-ia dado o rompimento com o marido,

II2
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

apartando-se os cônjuges, para não admitirmos, com


todos os pejorativos, que aquele se contentasse en teni,.
la chandelle, e tudo como dantes , quartel general em
Abrantes. Com efeito, destes amores, evidentemente
ilícitos, resultou uma menina que desde o berço se cha­
mou Isabel de Saavedra, e a quem o pai, em despeito das
irregularidades próprias de quem andou sempre às do
chão, queria como à luz dos olhos . Mas saiu brava, cas­
quivana de todo , destas que pela má cabeça, se é que em
última análise não é a boa , são capazes de dar um pontapé
numa estrela. ,
Dissemos acima rompimento, o que implica separação
absoluta, sem o quê, tendo nascido no curral, como
saberia Cervantes que era sua filha e não do esposo legí­
timo?
Ê de crer que Isabel nascesse pois do contubérnio de
Ana Rojas ou Ana de Vilafranca com Miguel de Cer­
vantes, e devia durar essa ligação até o seu casamento
em Esquívias. Entretanto, o marido logrado continuara
na taverna da calle de los Tudescos, com a filha de
contrapeso. Um belo dia a esposa infiel, chorando o seu
arrependimento ou escondendo em lágrimas e protestos
° repúdio, sabe-se lá, reapareceu com uma nena nos
braços. A situação é tão trivial no mundo, embora revista
aspectos vários , que é supérfluo descrevê-la. A infeliz
acabaria por se reconciliar com o marido, que nos apraz
imaginar um pobre diabo , brando e amorável , antes que
coe1./. complacente, contrapartida daqueles castelhanos
tremendos à Calder6n , que haviam de lavar sempre a
honra no sarrabulho dos tredos.
Agora, repetimos, para que Cervantes desse o seu
nome a Isabel , nascida na constância do matrim6nio de

"3
8
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

sua mãe, Ana Franca, com Alonso Rodríguez, havendo


antes uma filha legítima do casal, forçoso seria que se
separassem, voluntàriamente ou batendo com as portas,
pouco importa. Poderia ainda supor-se que Ana Franca
casasse , levando já a filha de Miguel de Cervantes nos
braços, tanto mais que há umas palavras amblguas no
legado de Damiana . . . para ayuda a su rremedio. Mas não
se compadece tal hipótese com as datas positivas destes
sucessos. Cervantes passara, sem interrupção, dez anos
fora de Espanha. Quando regressou estava Ana casada
com Alonso Rodríguez. Este teve curta vida. Em Outu­
bro de 1587 , o cura de S . Martín cantava-lhe o requiem
na terra da verdade. A viúva ficou com a taverna e as
duas meninas, onde por sua vez a morte a surpreendeu
em Maio de 1598, relativamente nova, supõe-se que à
volta dos quarenta. Isabel orçava então pelos catorze
anos e a irmã dezasseis, quando muito dezassete.
Em 9 de Agosto de 1599 comparecia perante o alcaide
de Madrid Isabel de Saavedra. (( . . . por si y Ana Franca,
su hermana, hijas que 9uedaron de A lonso Rodriguez e
Ana Franca, su muger, di/untos, e dixo que por ella y
la dicha su hermana son mayores de doce anos e menores
de veinte y cinco y tienen nezesidad. de que le cobren
sus bienes [ . . . ] portanto que nombraba por su curador
ad litem a Bartolomé de Torres. . .
Este , dois dias depois, substabelecia em D . Mada­
lena de Sotomayor, com obrigação de lhe ensinar lavor
e costura, dar-lhe cama, mesa e camisa lavada pelo es­
paço de dois anos , ao fim dos quais cobraria ainda 20
ducados de soldada. D. Madalena era a irmã de Miguel de
Cervantes; a rapariguinha era colocada, pois, com ama,
que por acaso era a tia . . . E Ana Rojas, a irmã mais
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

velha ? Sobre essa não teria nem exerceu Cervantes ne­


nhuma espécie de jurisdição, sendo de supor que Isabel
tivesse sido registada com o seu nome, embora indevi­
damente, dado que nascera na constância do matrim6nio
de Ana e Alonso Rodríguez. Dava-se assim uma circuns­
tância paradoxal, compreensível com a Ligeireza com que
eram lavrados os assentos de baptismo: ter Isabel dois
pais numa mesma ordem de legalidade , o verdadeiro e o
putativo.

Lopez de Hoyos J padrinho de Miguel de Cervantes


Das letras, Pedro Laínez seu mestre na lírica . . . ? Não
.
se pode computar por uma medida inalterável o que
sejam na linguagem castelhana os termos afectuosos e os
requintes da galantaria. Sempre o espa-nhol foi uItra­
cortês e sociável. A cada passo, o primeiro quidam nos
trata de querido amigo e até de compadre. ilustra estas
fórmulas de civilidade aquele dito tão proverbial:
- Qué rico anillo !
- A la disposici6n de Ud.
Portanto, quando, na Galateia, Cervantes liberaliza
epítetos de primeira grandeza a Pedro Laínez -se, de
facto, devemos individualizâ-Io na personagem de Da­
món, ficamos de pé atrás. O mesmo se pode dizer do
encarecimento de Cervantes por Lopez de Hoyos: ca·ro e
amado discípulo. Quando o foi e onde ?
São muito discutíveis as relações de familiaridade de
Pedro LaÍDez com Cervantes , embora tenham nascido
ambos em Alcalá de Henares, este, pobretão, homem dos
caídos, e Laínez em tudo pessoa bem cotada, meio aris­
tocrata, poeta esotérico, ayuda de cámara do príncipe

"5
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

D . Carlos, áulico, pois, de primeira plana, que prefaciou


a tradução dos Lusíadas por Benito Caldera e manejou
mesmo o lápis de revedor de livros.
As conjecturas de Astrana Marín, operoso e amical
biógrafo de Cervantes, não passam de ultrapresuntivas
e filhas da boa vontade de o enaltecer. Não ê que todas
as suas e1ucubraçães obedecem ao mote implícito no
título: Vida exemPlar e her6ica de Miguel de Cervantes
Saavedra r Mediante tal conduto, eis Cervantes introdu­
zido pela mão de Laínez na Corte de Santo Isidro: Tal
yo veo a Miguel, en lcs dorados dias de 1567 Y 1568,
poeta tambien asistente a Palacio . . .
Decerto a amizade literária, restrita ao comércio
ideal de autor com autor , é uma coisa, e a de pessoas, na
vida de relações , é outra. Mas nem aquela está assente
que existisse entre LaÍnez e Cervantes. Segundo parece,
era Laínez dado a amorios, à direita e à esquerda, tanto
assim que um dos episódios das suas aventuras dom-jua­
nescas remata com uma perna que lhe partiram. Uma
sátira que correu àquela altura nos meios palacegos des­
creve-o como quarentão, vegete, de sobrancelhas pintadas
oe usando capachinho. Foi ele que pelo Conselho de Sua
Majestade deu a aprovação ao Pastor de Fílida, de Mon­
talvo, editado pela segunda vez em Lisboa em 1600 , na
qual Filipe II figura debaixo do nome de Bandaleón,
palavra de formação fantasiosa, sobre uma raiz pejora­
tiva, como bandolero, et paur cause, uma vez que obri­
gou a casar, depoi1? de pretendente repelido e larga­
mente presenteador, a D: Madalena Girón-que o poeta
amava- com o filho do duque de Aveiro, Jorge de Len­
castre.
° LaÚlez finou-se em Março de 1584, presumivelmente

n6
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

com 54 anos de idade, deixando inédito o Callcionero,


que levaria Cervantes a conhecer. através da viúva,
Juana Gaitán, sua futura mulher Catalina de Vozme.
diana. Naturais de Esquívias, Catalina era séria e pro.
vineial , J ualla cascaroleta J com todo o traquejo madrileno
de estrela, beta e pé calçado. Pelo que se viu, doidinha
retinta. A dar ff às declarações que prestou pela morte
de Ezpeleta, teria os seus 13 anos quando casou com
o camarista do príncipe D. Carlos. Ia Catalina nos 19
anos. Mas é de supor que Juana em tal circunstância
tenha fornecido idade inexacta. Ao tempo nada permitia
ser mais arbitrário, por não existir registo civil, insti­
tuição inoportuna para mulheres casquilhas e velhos gai­
teiros. Quando se apresentou na alcaidaria a manifestar
os bens herdados, forneceu igualmente uma relação de
todo diminuta , cingindo.se a dar os trastes da casa sem
importância, inclusive um par de botas velhas, e entre
eles a obra famosa do defunto marido: 1m libra Cancio·
neTO con la cubierta negra, en el cual están los papeles
tocantes a elo
Dois meses depois casava·se com um mocete de 1 7
anos, Diego de Rondara, « andante en Corte de Su i\'Ia·
jestad)), segundo ' declarou o próprio ao testemunhar
numa escritura com seu criado Garnica, de 14 anos ,
parelha em que estamos a ver Rillcollcte y Cortadillo,
correctos e aumentados . Então, sim, deu um rol plausível
da herança, em que havia jóias caras, bens valiosos, mil
e quinhentos ducados em dinheiro, tudo, segundo uma
avaliação de que se nâo pode medir a amplitude - um
pingue dote.
Se Pedro LaÍnez era o Tenório clesapoderado que
inculca a sátira e perversor de solteira e casada, esteve·

"7
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

-lhe bem que, dois meses depois de falecido, surgisse


Rondaro que, aliás, era pessoa da sua roda. Ainda a
terra o não comera, mas quem com ferro mata , com ferro
morre. O alfange verosímil empunhava-o agora esse tal
amigo das dúzias, filho de Juan de Hondaro, vizinho de
Sevilha, senhores ambos sem leira nem beira, ' embora
com grandes castelos na lua.
O casal , celebrado o casamento com escritura pública,
em que ele trazia para o matrimónio 1.500 ducados, bem
seguramente fictícios, para contrabalançar aqueles que
constavam do dote de Juana, além de duas casas em Es­
quívias e outras em Madrid - ao criado de quarto do
infeliz príncipe D . Carlos, meio português pela mãe,
Filipe II contemplou, se é que não foi para calar a boca
bem calada , com uma tença anual de 100.000 maravedis
- acolhera-se à aldeia de Esquívias. A terra era exce­
lente, boa produtora de fidalgos 1'epa1'ones -nada menos
de trinta e sete contados pelas pedras de armas - galgos ,
vinho e azeite que ardia no prato. Ali um pândego s6
tinha que abandonar-se à graça de Deus para levar vida
direita, com cerdo na ucha, a pipinha cheia, e os padres
por miríades IJ.O funeral a encomendá-lo para os anjos.
Que D . Juana Gaitán não devia lig.ar importância à
obra do marido, está na maneira desleixada como o Can­
cione1'o foi arrolado , e se lhe havia de referir por várias
vezes, e ainda na circunstância de nunca ter sido dado à
estampa, não obstante Cervantes, ao que parece , ter
requerido a licença de impressão. Mas o manuscrito pres­
tou o seu obséquio de talismã, desempenhando, com
efeito, à maravilha o papel de pau-de-cabeleira. Que as
musas lhe sejam leves que lá continua no limbo, até o fim
dos tempos, com menos esperança de vir à luz que os

n8
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

santos padres. As cinzas reais de Laínez �ssas desapa­


receram na consumição universal, muito mais cedo que
as poéticas ! Juana era de origem moçárabe, e metade do
seu ânimo perdia-se no paraíso das buris como a voz das
sereias no mar alto.
Quando Cervantes se apresentou em Esquívias a
J nana· Gaitán para que lhe permitisse dar à estampa o
Cancionero, teremos de ver em tal diligência apenas um
pretexto. Na altura, orçava pelos 3 7 aDOS e era um homem
batido e desiluso do mundo, herói de mil feitos raros e
imaginosos, como a Naval. o cativeiro, as tentativas de
fuga de Argel, a's andanças por Itália e Lisboa , não fa­
lando na sua auréola de autor cómico. 'S natural que o
Rondaro, com os verdes anos, por certo jovem moinante
da hampa, tivesse sempre liç.ões a receber de Miguel de
Cervantes, mestre baldeado dos vaivéns, supondo que
fosse por inclinação o mais sisudo e circunspecto dos
homens.
Temos pois Cervantes em Esquívias, cepueblo alejado
de las vias generales de comunicad6n)) e que andara sem­
pre longe do seu sentido, destes cujos ventos , pela vida
fora, nem aquentam nem arrefentam ao bom quidam. Se
não foi hóspede de Diego de Rondara , de quem havia de
ser ? E'estamos a ver Vicente de la Roca , o soldado pin­
tado pelo cabreiro, com quem D . Quixote se trava de
batalha, e ainda o soldado do Casamento Enganoso, face
a face com a senhorita da blanca mano. Os seus cintillos,
as suas plumas, as façanhas por mar e terra não deixa­
riam de exercer o inevitável sortilégio. E assim se estreou
o entremez , mais ou menos prefabricado, como tudo
leva a crer , entre a rolinha provincial, de 1 7 anos, boba
de todo, simplória e boca-aberta, e o sujeito de rabo

II9
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA NÇA

pelado, vagamente homem de letras, como eram ao tempo


todos os homens de letras, senhor de boa lábia, corredor
das sete partidas e doutras que estava no seu destino
correr. segundo se lhe soletrava no livro aberto da fisio­
nom1a.
Y se fué a este pueblo escreve D . Ráfael Peralta
-

Maroto, general-de-divisão, na obra Cosas deZ Quiiote


- lo hizo con el plan premeditado de casarse con Cata­
lina. E acrescenta, tendo desconhecido os elos da cadeia
Laínez, Juana Gaitán, Rondaro que levavam a Catalina :
De quién había partido la idea de este casorio fi A causa
essencial deu - a Astrana , arúspice e pressuroso bió­
grafo de Cervantes, e é esta uma das suas ilações justas:
a desnudez e abandono em que se via.

Catalina Vozmediano era uma criança, decerto inex­


periente da vida, mas muito senhora do seu nariz. Em
todos os seus actos not6rios, sente-se uma vontade cons­
tante e deliberada. íamos dizer que foi do seu molde que
Cervantes tirou algumas das heroínas, enriquecidas de
tão especiosa grinalda. Que outros dotes não apresentem,
nunca lhes faltarão os basilares, formosura e firmeza.
Formosura é um ingrediente barato dà paleta literária ,
mas firmeza, que transcende do exterior para a psique,
tem de ser aviada com vários simples e bezoárticos, im­
plicando por conseguinte uma ciência do carácter, que
não é para todos.
As amorosas de Cervantes, com efeito, são frágeis
apenas em obedecer aos mandatos do coração. Depois
defendem o seu amor ou cartel de amantes como ama­
zonas temíveis. Revelam-se imaginativas e porfiosas.

I20
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Se me disserem que um compleicional destes não deixa


de se acompanhar de certa cegueira e casmurrice, dir­
-lhes--ei que, sim, são umas obstinadas.
Aqui temos Catalina, protótipo de todas essas amoro­
sas inocentes , Zoraida, Preciosa , Doroteia, Cornélia , etc.
Deixou-se fascinar como uma doninha pela cobra
cascavel e nada poderia demovê-la do intento, uma vez
arraigado no seu ser. Em poucos dias se urdiu aquele
idílio e uns meses depois se atou pelo matrimónio. Em
matéria de presteza, dir-se-ia que o entremez se passou
com uma mulherzinha moderna, dessas que, governadas
pelo capricho, se entregam boje para renegar amanh�.
Os casamentos antigos levavam tempo a incubar e pres­
cindiam do relógio. Antes de mais nada, também porque
relógio era traste que não possuíam. Olhavam para as
estrelas, mas tinham presente a história de Jacob e
do menino Isaac. Pois Catalina, pouco tempo depois de .
ver pela primeira vez o homem das sete partidas e após
muito poucas "horas de convívio, ligava.se com ele de
matrimónio, esse sacramento que a Igreja Católica cons·
truiu de pedra e cal e, não se tratando de príncipes , resis­
tente a todos os furacões.
Daquele alfobre de pequenos proprietários, vinha·
teiros de uma pipa, duas pipas, e fidalgos de meia-tigela,
brotou esta rapariga em que se haviam pOlarizado
rijas virtudes castelhanas. Devia fazer um perfeito
contraste com as cunhadas, salerosas e madrilenas em
tudo, com quem , parece, raro lidou e alimentou muito
limitada privança.
::e fora de dúvida que Catalina teve de colocar.,.se de
mal com' a 'parentela em persistir levar a sua avante.
Que con"ste," ninguém assistiu à cerimónia. Celebrante

121
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

foi o tio, o licenciado Juan de Palácios, porque não podia


deixar de ser. pároco colado da freguesia. É verdade que
poderia ter delegado noutro, coadjutor ou padre substi­
tuto. Não sabemos. Seria completo o acinte e abandonar
de todo o campo de batalha, e estes desquites na província
são comedidos, tendo em conta o prejuízo menor.
Cervantes tinha cobrado direitos de autor da Galateia
pois que houve um livreiro, Blas de Robles, que se aba­
lançou a comprar-lhe a prqpriedade pelo espaço de dez
anos, por 1. 3 66 reais, 1.I60 pagos de contado, os res­
tantes em fins de Setembro, conforme o contrato que
assinaram em 14 de Julho de 1584- Na escritura dotaI.
que é mais um balanço de teres e haveres que um compro­
misso, vem designada a verba de 100 ducados, teóricos,
não há que ver, com que ele entraria para o consórcio.
Essa escritura só viria a ser ratificada em 9 de Agosto
de 1586, e compreende-se. Onde iria ele desencantar
quantia tão devada ? Que a Galateia, uns panos de ta­
fetá, que eram da irmã, e ele empenhara a Napoleão Lo­
melin, sendo revalorizados em 10 de Setembro de 1585,
e os bolsos das manas, bem vasculhados, fornecessem a
pecúnia para gastos emergentes e. avulsos, vá, e viva o
velho. Mais do que isso era ir com a bilha a uma fonte
exausta.
A casa de Esquívias era modesta e o pater-famílias
Fernando Salazar Vozmediano, que falecera meses antes
e por quem Catalina trazia luto rigoroso, deixara-a bas­
tante alcançada. Mas todas as dívidas a Confrarias e à
Igreja, mercê muito provàvelmente da presença do cura
Juan de Palácios, não os massacrariam por então. A
Igreja, quando se trata dos seus, é contemporizadora
para tais misérias. O pai de Catalina era católico como

122
N O C A VA L O D E PA.U C O M S A N C H O PA N ÇA

os que o eram e estão à mão direita de Deus padre na


comitiva espanhola. Como tal, sentia-se sem grandes
escrúpulos ou, melhor, um certo à-vontade familiar em
coisas de Igreja. Porque se diz Madre ? Naquele tempo,
metade da Espanha ocupava-se em salvar a alma da
Espanha toda. Do mesmo modo que os Faraós haviam
organizado o Egipto com o fim de prolongar a vida ã,ié;:;.·
-túmulo, os espanhóis organizavam a eternicade celeste
à força de dotações onerosas de sufrágio. No fundo era
um artesanato muito semelhante. Fernando Vozmediano
deixou DO beII\ de alma 100 missas à conta dos seus
pecados, outras 100 por alma dos pais, ainda 20 por alma
dos sogros. Perante tal volume de encomendações, a fis­
calidade eclesiástica hesitaria ao ter de proceder ao
arresto dos seus bens. Fê�lo só muito mais tarde, palpi�
tando a dívida em perigo.
Diz o rifão: quem longe vai casar, ou vai enganado ou
vai enganar. É provável que Catalina visse naquele ho­
mem- . que chocalhava mundos e fundos-uma melhoria
substancial de vida, ambição que não envergonha qual­
quer carochinha de província e não briga com a prática
dos doze mandamentos. Por sua vez, ele, que devia igno�
rar tudo da economia agrícola, inclusive o preço dum cela�
mim de azeitonas , teria visto ali a solução do seu pro­
blema crónico de pelintra. Breve um e outro dariam.conta
de suas santas ilusões. Esquívias esfumou�se e cerraram­
�se os horizontes de terra prometida para o homem erra­
bundo. E todavia ele não faltaria em pensamentos e obras
ao credo e moderação de homem simples, conciliáveis
em tudo com a cartilha do bom cristão, mesa posfa,
lençóis de linho, perna estendida, e o tempo a correr
sobre o mundo lixado.

I2�
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

Mas, em suma , devia chorar a s'ua rica vida airada,


livre e sem açaimo. E para um génio assim, a fugir à
smnização como em Calipso, o que lhe valeria eram os
saltos constantes a Madrid, a vila alegre e descuidosa, e
a Toledo, cabeça eclesiástica da Mancha, sorumbática
e grave como os concílios visig6ticos, mas colorida e
cheia de feitiços com seus chalantes e pantomineiros. As
com!dias, a família, os negócios, eram explicações sufi·
cientes para estas fugas da terra beata e emorrinhada .
Catalina coabitaria com ele em Madrid na pobre casa
paternaJ nua e inconfortável ? :e muito problemático que
a galinha de campo se adaptasse à capoeira de grades
pintadas. Em Junho de 1585 faleceu o pai de Miguel .
Rodrigo de Cervantes. Era um tropeço que andava no
mundo. Não deixou dívidas, sinal de extrema pobreza.
Os ricos , os proprietários, a quem todos fiam, que com­
pram e não pagam logo, é que deixam sempre passivo,
por vezes superior à legítima dos herdeiros. Os pobres
.
comparecem limpinhos destas sarandalhas perante o
divino juiz. Figuraram de testemunhas no testamento,
tão radical em mandas, dois frades das Mercês e dois
calceteiros. Para Cervantes e família, foi uma semanada,
duas, que houve de consagrar à morte do velho. Em I de
Agosto do mesmo ano, Cervantes comparecia no tabe­
lião a assinar uma escritura como fiador dum empre­
sário de comédias. Lá voou outra semanada em Madrid.
De maneira que com um pé em Esquívias, outro alIá,
escoou-se um ano, .aquele tépido ano de 1585, e ele
sem dar rumo definido à vida, nem se resolver a pôr em
ordem legal o seu ingresso na casa dos Vozmedianos.
Se Esquívias representava para ele, sob o ponto de
vista econ6mico, apenas um. refúgio, literàriamente a
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

terra era fecunda como a mina do Rand. Até então Cer­


vantes pervagara de vila para vila, e, sobretudo, travara
relações com gente de pesponte, jubão de anta e espada,
soldados, fidalgos, frades, e pícaros e mais pícaros , que
são a moscaria zumbidora de tão interessantes classes.
Agora gente de burjaca e safões, não. Só lhes ouvira o
passo da bota ferada. Faltava ao seu coro tragicómico
Sancho Pança & C."'. Por aqueles soalheiros, por aqueles
vinhedos de terra amarela como ocre I tangendo duas
mulas guedelhudas, pelos caminhos vidrados pelo cara·
melo e com os píncaros do Guadarrama a luzir damas­
quinados de neveJ chamando-se cão e proferindo as piores
juras por Dios y su Madre, era agora o bicho que mais
lhe aparecia.
No redondo de muitas léguas, impunha-se pelo bor­
bulhante. De mistura, Quijanos , os bons , Salazares,
ávidos e demandistas, e toda a fidalguia provincial de
meia-tigela, poupadinha, cautelosa, prestando ouvido
empolgado ao mexerico, lidos do A madis e do Livro de
Carlos Magna, poucos os que assinavam mais que de
cruz, no geral honrando-se todos de suas letras gordas.
Se a estes figurantes do Quixote, das novelas e entre­
mezes, nem sempre os não trasladou dali, tais quais,
com o pr6prio nome , forneceu-lhe Esquívias bom madei­
.
rame para a sua oficina de ficcionista. Pelo processo dos
enxambladores, tirando deste e ajuntando daquele, afei­
çoando tal outro , corregendo além, assim perfez a lota-
ção da sua romanceada arca de Noé. ;.
Ao homem, tal como Cristo, sem uma pedra a que
encostar a cabeça para dormir, teriam aparecido como
um maná os bens de raiz de Catalina, com terras de
vinha e seara, nesta uma oliveira grande, naquela tantas

125
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O F A N ÇA

amendoeiras, a confrontar com tais e tais senhorios aos


quatro pontos do quadrante. Sabia ele o que era uma
aguilhada de terra, um moio de trigo, e o almude de
vinho? Mas, que soubesse, à sua capacidade de sonho
era necessária aquela miragem de coisas atê ali entre­
vistas de cima da burra J significando pequena burgue­

I
sia, quietude, pipinha cheia , salgadeira, pão fresco a
horas, e um leito quente com uma borrega de carnes
tenras para o gozo. No rol dos haveres lá figurava uma
boa e repleta capoeira de casa remediada, nada menos
de 45 bicos, frangas e galinhas a pôr, um galo sultão,
e quatro cortiços de abelhas para as gemadas matinais e
los duelos y quebrantos.
Esquívias, na pessoa dos seus quarenta maiores,
devia tê-lo recebido na ponta das lanças. Não apenas
porque se apresentasse ali de corpo bem feito, com as
mãos a abanar, homem sem reforma , nem mester. O ser
poeta, autor da Galateia-como livro de versos, apenas
de Saetas à Virgem e vilancicos ao Menino lhes tocava
o entendimento -não const!tuía matéria de dignificação.
Mas tornara-se comum em Espanha o homem de costas
direitas. Não se lhe perguntava quem era, mas, quando
muito, donde lhe vinham os cabritos que comia e sem
dúvida que lhe olhavam para os dedos. 'Cervantes devia
trazer anéis, berloques e correntes dobradas à vista, como
o seu alferes Campuzano.
Todavia, a sorte de sua mulher, majorada tempos
depois da terça que lhe fez a mãe - contanto que não a
pudesse alienar, o que equivale a ter-lhe imposto o re­
gime dotaI, havendo por bem recatá-la das unhas do
genro , no que aliás Catalina viria a reincidir mais tarde,
expressamente, no testamento-daria para matrim6nio

126
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

género burguês, regradinho, estes casais onde o marido


faz de barca e a mulher de arca, um a trazer, outro' a
guardar. Para isso era necessário que Cervantes tomasse
o papel a sério, ao mesmo tempo que fidalgo dando
leis na arcada, pegando à vara do pálio aos domingos
terceiros e dias santos, fosse um verdadeiro proprietário
de Esquívias. Como tal, teria que à sua altura pegar do
podão e podar as cepas, limpar as oliveiras dos galhos
mortos e ramagem parasita, plantar o cebolinho, assis­
tir à vindima, à pisa das uvas, à encubação do mosto,
ir todas as noites e todas as manhãs encostar o ouvido
ao batoque do tonel para avaliar pelo rumor se a fer­
mentação se ia operando satisfatoriamente, não ter es­
crúpulo de aparelhar as mulas, ser mestre regatão a ven­
der e aprovisionar aos almocreves com o produto das
fazendas, etc. etc. Tais funções para Cervantes eram
grego. Todavia, com um homem de engenho superior,
como era o seu, a agronomia oportuna encontra-se no
seguimento da alameda rústica que se trilha. Tivesse
ele a pachorra necessária, e sobrar-lhe-ia capacidade
para se instruir duma arte que tudo demanda do bom
senso, do jeito e do tacto previdente e minucioso. Mas
seria preciso que o Cervantes farandoleiro se desdobrasse
em . a b
homem que foi soldado de pré e poeta que se entregou
ao sonho a perder de vista terra e mar, para mais aven­
tureiro e corredor das sete partidas, era meter o vento
numa arca.

Cervantes devia sentir-se recalcado em sua pessoa,


objecto de suspicácia dos parentes da mulher, a começar

127
N O C A VA L O D E PA U C O M S A i'i C H O PA N ÇA

pela sogra. Uma das razões é que faltava rotundamente


ao paradigma do homem local, outra que não realizara
a promessa consignada na pré-escritura de núpcias, tra­
zer de seu bolso 100 ducados. Onde iria buscar uma
soma, de si já importante para indivíduo de dinheiro,
imensamente taluda para quem como ele andava na rosa
divina ? Este facto devia estribar-se daquela leviandade,
que demonstram os seus figurantes nas cómédias e nove­
las ao tratar-se de pecúnia, e lhe eslava na massa do
sangue. De facto, tal quid lá surge fatal. inexorável,
quase sempre resolvido às três pancadas, à vara larga.
ou por malas-artes, sem conta nem medida. Compreen­
de-se semelhante sem-cerimónia numa pessoa que nunca
avezou cheta. Para um pobre tanto monta um ducado
como um real. Para um rico ou um possidente, um
ducado sem um morabitino já não é um ducado. Falta ?
Vá arranjá-lo ! Cervantes tinha a moral das pessoas de
pouco dinheiro, acrescida da moral dos homens do seu
tempo. Supor que havia de proceder como o conde de
Pufionrostro, cujo solar se erguia ali perto, onde havia
.dinheiro como terra, ou como S. Nicolas Factor, que
trincava os piolhos em gozo de pobreza e humilhação,
é não ter nada o sentido das realidades. Para ser o autor
do Quixote e de tantas obras de relevo,' forçoso era que
fosse um homem bem penetrado do tonus da sua época.
Diego de Rondaro, que teria sido o introdutor de Mi­
guel de CeI"\': I'tes naquela corte de rainha Quintanhona.
casara a I2 de Junho de I584 com a viúva do poeta
inédito Pedro de Laínez. Ano e meio decorridos. aba­
lava de Esquívias, depois de deixar à esposa uma carta
de plenos poderes datada 22 de Novembro de I585=
otorgo y conozco que doy e otorgo todo mi poder cum-

I28
N O CAVALO D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

pUdo e licençia bastante, según que yo lo tengo, e para


más valer de de-recho se requ1ere, a dona Juana. Gaitdn,
mi 111/1.tger, especial y generalmente para que po.,. mi y.
en mi nombre pueda pedir y demandar, rescibir, haber
y cobrar en. juicio y fuera dél, todos e cualesquier mam....
vedís que a eUa y a mi son e fUC1'en debidos e se nos
deben e debieren, pe-rtenecen e pe1'tenecieren por escri­
turas de obligaciones, conocimientos, cartas mesivas
[ . ] y ansi mismo 1e doy este dicho poder para que
. .

pueda vender e venda cualesquier casas, viiias e majue­


los suyos e mias, e cualesquier bienes raíces o muebles. . .
Semelhante outorga equivalia a dizer-lhe : adeus, por
aqui me ':('lI, �, governa-te, ou como diúa o outro: saúde
e bichas ! Significava um despique e o lavar-se as mãos
como Pilatos de tudo o que viesse a agravar a casa,
que passaria a ter, iPso facto. um s6 responsável. Por­
que desceria Hondaro a este extremo, Rondaro, homem
de 21 anos, que tinha obrigação de não haver desbotado
ainda os dentes a trincar a maçã da vida, embora madri­
leno. e decerto tipo da hampa ? Precisamente porque o
era ? Teria ele em sua sofreguidão ancestral devorado
a legítima da mulher ou abalaria com o melhor, aqueles
1.500 ducados que figuram no rol dos' bens da viúva,
para emparelhar com os quais, pro forma. ele trazia
outros 1.500, bem seguramente teóricos, não fosse
como o pai, massa falida ? Estava farto do pot-au-feu
de Esquívias ? E quando se foi, teria deixado aquela
carta de acordo ou pelo menos com o conhecimento de
Cervantes ? � de supor.
Segundo os documentos publicados por Pérez Pastor,
em 2 de Dezembro de 1585 Cervantes recebia da mão de
Gómez de Carrión, emprestados upor me hacer plazer e

I29
9
N O C A VII L O DE PA U C O M SA f.," C H O PA N Ç A

buena obra» , 204.000 maravedis para restituir no prazo


de seis meses, faltando ao quê se obrigava por escritura
a que uma pessoa lhos fosse cobrar de seus bens ao lugar
de Esquívias, ou onde estivesse a residir ou houvesse
terras, ganhando 500 maravedis enquanto durasse a exe·
cução , etc. etc.
No mesmo cartório de Sevilha e mesma data, o tal
Gómez de Carrión endossava a Miguel de Cervantes a
dívida de I<X) ducados, de que era cessionário de parte
do licenciado Rodrigo Zamorano, a cobrar. pelas for·
mas da lei, de Diego de Rondaro, vizinho da Vila de
Madrid , sobre seus bens e de quem de direito, dívida
essa contraída a 20 de Agosto do mesmo ano de 1585-
Diego de Rondaro estaria presente, como tudo in­
culca ? O facto de a dívida, contraída por si, ser tres­
passada a outro, endossada a terceiro, sem arras , nem
penhor, autoriza a suspeitá-lo. Como se compreende ?
Tudo isto, desde longe , deve ser uma imensa tramóia,
negócios sofisticados entre Cervantes e Hondaro. Quando
Cervantes aparecesse perante Juana Gaitán com a letra
protestada, seria caso para ela lhe dizer, dado que man­
tivessem relações de boa " izinhança e compadrio, C011l0
tudo leva a admitir: ,
-Então o senhor prestou-se a semelhante papel ? !
Cervantes teria boa treta para explicar a uma IllU­
lher, que de"ia ignorar túdo o que não fossem os sells
arrebiques e a intrujice de agradar, esta abu�ão e maior
que fosse. O problema para ele é que ela pagasse e de­
certo pagou . Que desatasse os cordões ii bolsa sorrindo
e brincando . ou com língua de palmo, é já questão de
forma. Pagou e, se sabia fazer contas, com os seus bo­
tões, é possí\'e1 :que tivesse bufado :
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

-Com que tios estou metida !


Que remédio para ela senão liquidar uma dívida con­
traída na constância do matrim6nio, quando o aceitante
era cabeça de casal ? Chamá-lo a responsabilidades? Não
tinha ele deposto Das suas mãos todo o direito e acção?
Uma segunda pergunta: receberia Cervantes aquela
quantia de mão beijada de Rondaro ? Várias hipóteses
cabem nesta pergunta. A carta de poderes conferia-lhe
a faculdade de cobrar aquela dívida, mas não de respon­
der por ela. No fundo era como uma dádiva. Mas só um
rei, rei de reinos ou rei de tunos, fazia assim presentes.
Recebidos da mão de G. de Carrión os 2°4.000 mara­
vedis, dirigiu-se Cervantes dois dias depois, 5 /12/1 585 ,
a um banqueiro onde tomou uma letra de câmbio de
18 7 .000 maravedis, a dez dias de vista, sobre Madrid.
E os 1 7 .000 maravedis que faltam à conta ? Guardou�os
no bolso para despesas-explica o biógrafo meticuloso
e cândido, Astrana Marín, nestes termos: por temor,
muy fundado entonces, a que le robaran aquel dinero
en el camino, apa7ta 500 reales para gastos, o sea 17.000
maravedís, entrega el resto a un banco e recibe la letra
siguiente. . .
Isto feito, decorrido o prazo da lei, apresentou�se
Cervantes aos banqueiros madrilenos, que lhe pagaram
a letra em três prestações, a primeira a 2 3 do mesmo
mês. Descontando os dez dias de prazo, temos que no
dia 13 estava em Madrid, de sorte havendo gasto numa
semana os 500 reais que pusera de parte. Portanto, a
primeira razão invocada por Astrana Marín revela�se
mais que precária. A outra razão-que cambiara o di�
nheiro com medo aos ladrões - não o parece menos.
A título de elementar prudência não estava indicado que

13 1
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

acautelasse boa parte dos 500 reais como acautelou a


outra quantia , em vez de os guardar na algibeira ?
A nosso ver, qualquer dos motivos invocados é falso.
segundo a intuição psicológica. Os 500 reais deviam
constituir o juro e prémio antecipado do agiota Gómez
de Carrión, e nem chegaram a sair-lhe das 'mãos. Para
operação tão arriscada, prelevar 20 % era um pau por
um olho. Que garantias trouxera Cervantes ao usurá­
rio? Decerto, o negócio teria sido pulsado desde lon­
ge, amadurado, dispondo o prestamista de tempo para
colher os "informes indispensáveis. Hondaro poderia ter
sido um dos negociadores na impossibilidade de caucio­
nar a ' operação. Uma vez ciente o prestamista do que
valiam os bens de Catarina Vozmediano, de que para
todos os efeitos Cervantes era o administrador, os ter­
mos em que foi lavrada a escritura garantiam.no do
reembolso. A letra sobre Madrid e o recibo em notário
-formalidade inusitada-com a provável pública-forma
poderiam muito bem representar a segunda parte da
mistificação. Com essa pública.forma, que não traía a
procedência do dinheiro, poderia ele apresentar-se e sa­
tisfazer a quota com que entrara para ° casal.
Sim, se este raciocínio não peca pela premissa, Cer·
vantes tivera a intenção reservada de esconder a origem
do capital. Era-lhe mais fácil dizer: estão aqui os meus
direitos de autor , cobrados em tais e tais banqueiros
madrilenos, do que deixar no vago a sua proveniência
e, sobretudo, dar a saber que o obtivera por emprés­
timo e em que leoninas condições do usurário sevilhano,
que lhe endossara também a dívida de Diego de Hon­
daro. Mas pode não ser assim e a causa de toda a
embrulhada envolver outra sorte de motivos. Reflec-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

tindo bem, esta versão parece-nos porém a mais vero­


símil. Mercê daquele capital , contado na palma da mão,
a suspicácia da sogra e muito provàvelmente da própria
mulher cairiam pela base. Cervantes era um homem que
ganhava de salto todo o crédito, e é de crer que não
visasse a outra coisa.
Com efeito, a sogra passou-lhe uma procuração de
plenos poderes, para gerir tudo o que era seu e vender.
trocar, alienar, cobrar rendas, etc. Como se aproveitou
Cervantes de tal jurisdição ? Ao certo não se sabe. Em
29 de Março de 1586, vendia um majuelo à sobrinha
Maria Cardenas, com terra confinante, pelo preço de
I l .900 maravedis. Fez a terça a Catalina e um quinto
remanescente , mas em regime dotaI. A 9 de Agosto
de 1586 fFau Cervantes a carta dotaI, em que se ins­
crevia com 100 ducados. Teve que apresentá-los ? Nin­
guém o forçaria legalmente a isso. Mas podia muito bem
fazê-lo, pois que teria à disposição o grosso do dinheiro
que lhe emprestara G6mez de Carrión .. Para o caso, tra­
tava-se de contá-lo com a direita e sumi-lo com a es­
querda. Um pouco como sucede com a água dos alca­
truzes. E os 100 ducados cobrados sobre D. Juana ? E o
produto do majuelo r o limite da zona, em que ele se
achava a coberto com Gómez de Carrión quanto ao reem­
bolso dos 204.000 maravedis J expirava a 2 de Maio de
1586 . lt certo que o reliquat do dinheiro atrás enun­
ciado, acrescido das verbas r�ultantes da· venda de gé­
neros, nomeadamente do vinho, montaria a soma sufi­
ciente com que resgatar a imperiosa letra. A mãe de
Catalina expirou sem ter deixado onde cair morta, tudo
o que era seu se havendo sumido na voragem. Não se
percebe bem se derreteu a sua parte em doações se em

'33
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

quê. Escasseiam os documentos, mas fosse como fosse,


Cervantes, homem de todas as prodigalidades e grande­
zas, não seria estranho à dissipação.
Cervantes estaria pelos cabelos em Esquívias. Se
teve interferência activa na ruína da casa, a s�a situa­
ção tornava-se insustentável. Todos os sucessos poste­
riQres parecem confirmar uma maquiavélica atitude.
A 28 de Abril, datada de Toledo, passava uma carta de
plenos poderes a sua mulher Catalina Vozmediano, em
tudo, circunstâncias, pessoas, transe, semelhante à de
Rondare. Se não é a fórmula tabelionar consagrada,
copiaram-na um do outro.
E assim acabou, pode dizer-se, o romance de Cer­
vantes em Esquívias, depois de vida conjugal pelo es­
paço de dois anos e quatro meses e meio. Catalina era
uma mulher de carácter e guardou longo e altivo res·
sentimento do porte do homem que não tinha dois paI.
mos de terra onde cair morto e a quem ela ofereceu um
lar e a sua ternura. Na velhice, apenas muitos anos de·
pois, perdoou. Atê: então, só fugazmente, por piedade,
em despeito do seu halo de glória, reaparece na vida de
Cervantes. Rondaro evaporou·se de todo do tablado cer·
vantino. Só quando da morte de Ezpeleta passa de re·
lance a sombra opaca do seu espectro. Tinha morrido.
J uana Gaitán prosseguia na carreira de segunda vez
viúva alegre.
VI
Homem desaruoradc. Sevilha, maga enliçador4,
escola de pícaros, madre de la flamenca. Ao serviço
do rei. Maldito seja el a1cabalero ! A Invencível
Armada. Seu cant<w e ec6nomo. Excomungado peJo
bispo e preso. O cárcere, fMja muito hiPotética de
D. Quixote. Contrastes e inibições. Os espinhes 11U1-
vitáveis cW cargo público, O labéu improvado: con-
cussion4.rio e pobre como Job

ERVANTES
C
despediu de Esquívias muito provàve1-
mente sem advertir da intenção que o levava. Sa­
bia-o ele ? Deu-se a circunstância de se encontrar
Filipe II em Toledo , no que os biógrafos de índole pro­
videncial acharam o mptivo fortuito que explica o ele vir
a abandonar o lar tão desamoràvelmente com o intuito de
imprimir novo rumo à vida. Com efeito, foi da velha
cidade imperial que mandou, por um sobrinho de Cata­
lina, . a carta de plenos poderes (28/4/1587) lavrada no
tabelião. E , ou porque lhe apontassem desde ali com uma
colocação em terras andaluzas ou na mira de procurá-la,
meteu de espora fita para Sevilha. Por toda a Espanha
se tinha como pónto assente que Filipe II preparava
uma expedição contra a Inglaterra. A capital da Anda­
luzia, com ser o ancoradoiro da frota, entrarem as suas
tercenas em plena actividade , contar como centro de
uma província farta, estava destinada a tornar-se a ofi­
cina máxima da expedição. Admite-se, pois, que ao

.'3 5
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

tomar o rumo de Sevilha, o fez com objectivo determi­


nado. Sem isso, tomaria o caminho de Madrid, onde era
maior o concurso de possibilidades a seu favor, pois
ali tinha os livreiros, ali contraíra relações, algumas
mesmo poderosas, em suma, como capital de Espanha,
ali haveria sempre lugar para mais um. Existiriam ou­
tras causas que o obrigassem a abalar tão insolitamente
do lar adoptivo? Ter-se-iam conjurado contra ele as
pedras das calçadas esquivianas por isto, mais aquilo?
O seu apartamento foi tão exclusivo e subitâneo que to­
das as suposições são admissíveis.
Astrana Marín neste ponto exclama como teria feito
Cide Hamete Benengeli : Era la pobreza que arrancaba
deZ hogar a Miguel y le compelia a buscar el sustento
lejos de la llanura toledana. Oh, pobreza, pobreza !
Estava-se no mês de Abril e, se o ano houvesse sido
morno, a Serra Morena, por onde cursava o caminho
mais curto da Mancha para a Andaluzia, ficaria estre­
lada de flores. Nada melhor para dissipar os cuidados
e amarguras da vida do que a natureza com suas tintas
e louçanias, muito mais quando se é poeta. Cervantes
era-o de raça, além de qUf' representava um regalo para
ele, como para toda a gente, rever os lugares, aquelas
tavernas e aqueles albergues à beira' da estrada, que
conhecia como as mãos e em que havia de armar o seu
guinhoI de novelista. O que há na sua obra de fresco
naturalismo deve-o à experiência e à vida vivida.
Aquele autor, que justifica com a pobreza ° aparta­
mento da mulher, instala Cervantes na pousada da CaBe
de Bayona, onde desciam os duques de Alba e de Osuna,
e congéneres magnates, só porque aparece mais tarde
o !lome de Tomás Gutiérrez, o hospedeiro, a servir-lhe
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

de fiador. Hóspede gratis pro Deo numa loranda daque­


las, e homem desenterrado das verças, só por milagre
do Cristo de la Macarena !
Em Setembro, apenas, isto é, seis meses depois, era
assalariado a contento pelo licenciado Diego de Valdívia,
alcaide da Real Audiência Hispalense, a 1 2 reais por
dia, pagáveis à sua hora, para ir pelos povos da comarca
requisitar e prover à recolha dos géneros necessários à
municiamenta da Armada. Para quem estava numa
hospedaria de príncipes , há muitos meses . com uma diá.
ria que montar.ia já a uma fortuna, aquele ordenado era
irrisoriamente desproporcionado, tanto mais se tivermos
em conta os percalços e condições estabelecidas. Comenta
o biógrafo encartado, depois de deitar o balanço à
ucharia, suputando as vertalhas destes neg6cios: Cuando
se maneja m u c h o dinero, sinl"lPre sobran piquillos,
siempre queda alguna cosilla , . ,Escusado é dizer pois
que na opinião deste panegirista Cervantes professava
a moral comum, e de facto, porque de outra maneira
não ttria aceito tal cargo, e ainda porque em tudo seria
homem do seu tempo. Que mais idóneo representante,
sublimado no que a sua humanidade encerrava de posi.
tivamente possessivo, da era filipina ! Era herqico, pa­
triota, susceptível ao bem e ao mal, fanático, de\'aneadol'
e doido.
Os abrolhos e vitupérios implícitos à função que ia
desempenhar saltam aos olhos, porque são próprios de
todos os tempos e lugares, e significam a extors50 do
poder a coberto da lei. Por isso mesmo tais funções têm
uma face duplamente, odiosa, exercerem-se a resguardo
da forç,a e implicarem uma das quebras ineXplicáveis do

'37
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

direito de propriedade , sagrado e· primordial naquelas


êpocas.
Com o çaso desta demanda de géneros para abastecer
uma expedição, ditada pela rivalidade político-religiosa,
em que o povo só era interessado pela satisfação que
dela recebia o patriotismo fanático, cultivado no nateiro
da crassa ignorância, o atropelo tornava-se tanto mais
sensível que envolvia ab initio uma parcialidade mani­
festa. Porque era escolhida a Andaluzia entre tantas
províncias. com economia igual. se não superior ? Por
uma questão de propinquidade em relação à frota. Em
vez porém de fazer as requisições e pagá-las logo ao preço
corrente, pagavam-nas com cédulas a cobrar a seu tempo
e a um preço arbitrário. Depois, como se tratava de
efectuar o fornecimento de relógio em punho, o primeiro
cuidado da alçada era desempenhar-se dq encargo o mais
ràpidamente possível. Chegavam a uma aldeia e, a bem
ou a mal, racionavam tulhas e celeiros . A bem, era
terem.os lavradores orçado o rateio entre eles e apresen­
tarem voluntàriamente a conta requisicionada das fane­
gas. A mal, era, para o caso em que os lavradores se não
houvessem entendido ou s'e rebelassem contra a requisi­
ção, vir a alçada com seus agentes e quadFilheiros, arrom­
bar as portas, fracturar as fechaduras das arcas , e encher
os sacos . Pode supor-se quantas vezes semelhante exac­
ção se não teria repetido através duma população natu­
ralmente ciosa do que era seu e das suas regalias, capaz.
de defender a fazenda a unhas e dentes.
Cargos tão escabrosos não convinham a quem não
fosse dotado de ânimo expedito e afoito e de cara dura.
Tanto lhe era preciso saber resistir a súplicas e lamen-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA NÇA

tações como dispor de coragem para rebater um ultraje


ou parar uma catanada.
Cervantes, se não por génio, evidentemente que por
necessidade, teve de desempenhar este árduo papel .
A certa altura , estava de mal com Deus e com os homens.
De mal com Deus J pois que foi excomungado duas vezes
pelo cabido e arcipreste, seus ministros na terra, e com
os homens, isto é, com os governantes, já que três vezes
o meteram na cadeia por não apresentar as contas certas
ou a tempo, sob acusação de se ter alcançado e cometido
indelicadezas com os dinheiros do rei.
Ê possível que Cervantes se prontificasse a exercer
tão execrável função, à falta de melhor sem dúvida, e
ainda na esperança de que, desta feita, os seus serviços
fossem galardoados com o almejado emprego nas lndias.
E então adeus letras !
Pobre e iluso homem ! Se malversações cometeu além
das que estavam implícitas no seu papel de comissário,
não lhe renderam com que s,!-ir da cepa torta ! Entrou
para ele pobre e saiu a tinir. Segundo os documentos exu­
mados do p6 dos tombos por Pérez Pastor , se quis, em
Novembro de 1590, vestir-se e comprar a Miguel de
Cavides & C.·, mercadores de Sevilha , contra O inverno
que se anunciava, raxa de mescla para se vestir , houve
de dar Tomás Gutiérrez como fiador dos dez ducados,
em que importava a fazenda . Além de excomungado, e
três vezes encarcerado, pago tão tarde e às más boras
que teve de levar o débito do seu ordenado para juízo,
quando acabou a enorme incumbência não lhe restava no
bolso com que manda.r cantar um cego.
Viu levantarem-se contra ele· os frades, os cabidos,
os bispos , personalidades gigantescas e preponderantes

'39
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

do grande mundo eclesiástico. Penou no cárcere de Se·


vilba, metrópole truculenta do vício, em que aprendeu
geringonça e flamenca, e entrou em contacto com pícaros
e delinquentes da alta moina. A sua experiência enrique­
ce:u-se à custa de sofrimento e de vexames .
Esteve preso por umas três vezes. Duas indefinida­
mente, a terceira, às ordens do juiz Vallejo, desde Se­
tembro de 1597 a entradas de Abril do ano seguinte.
Portanto, 56 desta feita sete meses. O juiz exorbitou, e
por alta recreação. Em dado momento, mandaram-lhe
dizer : solte-o para se justificar e prestar contas.
Exigiu fiadores o severo magistrado. Cervantes não
os tinha bons nem maus. Ficou a apodrecer à sombra.
Ao pret6rio abrange Astrana Marin, que era um homem
que genuflectia perante todos os concretos da ordem , no
conceito : sabido que este pájaro y los demás ((seiíores de
la Audiencia)), sus compaiíeros, vivian de amparar a los
ladrones, estafadores, regatones, jácaros, jugadores, tra·
ficantes, y, por consiguiente, a los presos, pues ins!ruían
sus causas, sacándoles a la calle, libres o en fiado, si se
lo pagabán bien [ J Pera Miguel no pudo untar a aquel
. . .

ministro de la justicia. . .
Seria então que Cervantes concebeu a ideia de D. Qui·
xote. Mesmo mais do que isso, engendrá.lo-.ia, formulam
os cervantistas. A nosso ver, o material humano que o
cárcere lhe podia ter fornecido condiz com Rinconete y
Cortadillo, El Rufián 'Uiudo, El Rufián dichoso etc.
Com D. Quixote, não parece. Mas vejamos o problema
em sua ubiquação, isto é, nas suas facetas. Um dos
que entendem que o cárcere foi a chocadeira do D. Qui­
xote é Rodríguez Marín, para cujo critério se escuda com
a frase do prefácio, quando Cervantes se desculpa de ter
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

dado à luz um filho seco, avellanado, antojadizo, e cis­


mático, bien como quien se engendr6 en una carcel. . .
Fitzmaurice-Kelly discorda, advertindo na sua His­
tória da Literatura Espanhola que aquela maneira de
falar se deve ter como metaf6rica e não na sua significa­
ção linear. Argumenta Rodríguez Marín com a frase do
pr6prio Ave11aneda, que faz trocadilho do vocábulo
yerros-ferro e erro-de que yerros está inçada a Pri­
meira Parte com uhaberse escrito entre los de una. careeI;
y asino pudo dejar de salir tiznada dellos.ll '
Ê evidente gue o mascarado Avellaneda não acalenta
outro intuito senão rebaixar Cervantes. Mas aqui não o
fez com o intuito exclusivo de que se soubesse que Cer­
vantes estivera em ferros de el-rei ? O trocadilho, com a
sua chalaça, podia ter-lhe vindo ao bico da pena, sem
segunda significação, para frisar um facto certo: ter
estado Cervantes preso, e não o outro, gratuitamente pre­
sumido, haver ali confeccionado o D. Quixote. Afigura­
-se mais plausível esta hipótese. No cárcere real, quer
porque àe duas vezes a estadia ali fosse curta, quer
porque em UltIma análise, não dispondo de cela, de sorte
teria ensejo ou pachorra para encetar, sequer, um tra­
balho de tanta monta, que sairia muitos anos depois,
seria o meio inapto de todo a tal espécie de lucubração.
A interpretação dialéctica de qualquer das passagens lite­
rárias citadas é susceptível destas hipóteses, lógicas,
mas indemonstráveis como realidades.
Lá que Cervantes tivesse rechaçado o asserto, como
sendo aleivoso, não se vê bem porque o era. Ideou ali o
D. Quixote, não ideou ? Não tem importância de maior.
Aceitemos que dali saísse o gérmen. A maravilha do
Quixote está menos no edifício que na planta do edifkio.
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA NÇA

Podia alguém encarreirar duas linhas naqude lugar


de treva, de escarcéu e confusão, com uma turbamulta
de perto de 2.000 presos ? Que se saiba , no inferno,
apenas Orfeu continuou a tocar lira.

Cierto autor de efemérides -observa Astrana Marín


-atento a la corteza de las cosas, no a los secretos mó­
viles que vienen de lo alto, escribe a este propósito:
ttDolor y fatiga causan aun hoy ver aI infeliz Ceruantes
bregar cm tantos miles de arrobas de aceite, de fanegas
de trigo y cebada, tratar cm arrieros, molineros, carre­
teros, bizcocheros, alguaciles y más gente de este jaez;
reMir tres, seis y acho veces una misma cuenta; prestar
multitud de fianzas; sufrir excomuniones inmotivadas y
encarcelamientos por quiebras ajenas; litigar pleitos in­
jus.tos; caminar de un lado a otro sin descanso, en in­
vierno y en verano. por diez y doce reales de salario; y.
aI cabo de todo este inmenso trabàjo, salir más pobre que
habfa entrado en éZ)).
Pero. sin este inmenso trabajo, se hubiera escrito
e1 Quijote ? Sin la observaci6n deZ mundo y de las cosas.
en que, !levando por delante como rudo maestro aI doIor,
le colocará la imPIacable persecuci6n de 'la Fortuna, ha­
bría sabido sonreír. mantenerse firme, desafiando $U
tirania, dar ((rienda suelta aI pecho melanc6lico y mO­
hino)) y abrazar, en fin, a toda la Humanidad? No. Ben­
digamos. pues. mil veces aI Dest'ino; que no era el Hado
adverso. sino la sabia Providencia de Dios. que le daba
el dolor para su beneficio y su inmortalidad.
Amen-digamos. Não o ámen que, à força de repe­
tido, acabou por entrar como uma locução adverbial na

' 42
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N CH O PA NÇA

linguagem espanhola. Mas o ámen litúrgico com que


finalizam as orações ao Altíssimo e a antífana , pronun­
ciada de voz atrida sobre a sepultura aberta de um corpo
glorioso. E ainda mais uma vez ámen, amen de todo lo
dicho. Todavia, não meteram em linha de conta a soma
provável de arruaças e motins populares , as vezes que
foi ultrajado, cuspido, moído a pontapés e a pau por
almocreves, empurrado ardilosamente pelos moleiros
para debaixo das asas girantes dos moinhos, espancado
por iangueses, encerrado em currais piores que jaulas,
desmontado da.. burra de aluguer pelos cavaleiriços dos
grandes lavradores vingativos, excomungado por frades
e curas. Em suma, saiu-lhe caro pôr mão de beleguim na
arca do vizinho, embora ao serviço do grande rei Filipe.
O pouco escrúpulo ou audácia e desassombro em acei­
tar uma missão daquelas pode dizer-se que os pagou do
seu corpo. Mas os biógrafos ante os frutos opimos de tal
experiência esfregam as mãos de contentes. Pondera o
autor citado : Alli le coloca (na percepção do trigo e do
azeite) la divina Providencia para que estudie a los hom­
bres. Pangloss não empregaria linguagem mais confor­
mista, considerando Cervantes fina e necessária mola ao
regular funcionamento do orbe literário espânhol desde
Afonso o Sábio até EI Caballero Audaz.
Aqueles anos foram para Espanha os anos cruciais da
grandeza. Deus experimentou o seu povo como a Job.
Mas o espanhol não se resignou a coçar as pústulas com
o caco da espada. Continuou arrastando-c. pelo caminho
de Damasco debaixo da túnica imperial. embora rasgada
em tiras.
Por todo o território e especialmente em Andaluzia,
naquele ano de 1588, subiram de temperatura as terçãs

"43
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

do povo impaludado de fé e de glória. Tanto nas aldeias


como nas cidades o estado de beligerância suscitava
exaltação, tumultos e desesperos. O andaluz amava o
triunfo, queria a destruição de Inglaterra , 3. morte dos
hereges, mas que lhe não saísse da arca. As requisições
haviam acabado por tornar-se um flagelo insuportável.
Mas, pai da vida, em Sevilha tocavam os clarins e nos
mastros da móvel floresta das naus desfraldavam-se
belas flâmulas de batalha.
Cervantes era tão patriota como o carvoeiro da rua e,
posto que comparsa na empresa, seria o l;I1enos culpado
de que o biscoito chegasse podre às galés "e nem os ratos
o tragassem. Duas vezes a sua tuba desferiu bélicos
acentos, uma primeira vez roufenha como em Aljubar.
rota:

Forma aquel san horrible


que el c6ncavo metal despide y forma
y aquel del atambor que engendra y cria
en el cobarde pecho 'Valentia
y el temO'T natural trueca y reforma.

Da st!gunda vez, com os nobres tons da dignidade e


dor reprimida:

Ea, pues, oh FeliPe, seiior nuestro


segundo en nombre y hombre sin segundo.
Coluna de la fe segura y fuerte !

A derrota equivaleu à derrocada moral da arrogância


espanhola, se neste plâncton meio mitológico, indeciso e
fluido, se podem verificar tais sismos invisíveis. Fisica-

144
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N CH O PA N ÇA

mente I o espanhol mal cambaleou das pernas, como


Filipe. As metáforas que daí surgiram são mais ou me­
nos de inventiva cortesã, salvo a carta circular que os
secretários expediram em seu nome. Nela Filipe reve­
lou-se tal qual aquele fidalgo minhoto, D. José de Enfar­
tauntos, que se fez pintar num retábulo em louvor do
Senhor dos Milagres porque, tendo caído duma escada ,
partiu uma perna quando podia ter partido as duas :
. . . pues según los tiempos contrarias y peligro en
que se vió toda e1 Ar/nada de un temporal l'ecio y deshe­
cllo que la dió, se pudier4 con raz6n temer peoT suceso,
y e1 q1te 1Ia tenido atribuyo a las oraciones y Plegarias
que con tanta devoci6n y continuación se han hec"ho . . .
Que os soldados levassem ou não ordem , pondo pé
vitorioso em Inglaterra, de passar" à naifa homens, mu·
lheres e meninos maiores de 7 anos, e assinalar os me­
nores com o ferro em brasa da escravidão, será calúnia
britânica. Os descendentes dos conquistadores do Peru,
se encarregariam de fazer obra limpa e asseada. Pelo
que respeita a recatolizar Inglaterra e dar cumprimento
à bula de Sisto V, renovando a excomunhão fulminada
pelos seus predecessores contra Isabel I , o que ninguém
nega, calculamos a que extremos iriam parar as demons­
trações da justiça divina exercida pelo braço castelhano.
Seguramente à prisão da rainha e entrega ao Papa. Defe­
rida por esta à Santa Inquisição, tínhamos crematório
certo do real corpo luterano na praça pública para rego­
zijo dos anjos e não menos regozijo do poviléu, que dava
o cavaquinho por tais festas. Havia, ainda, a consi­
derar a elevação das boas almas, em justa contrapartida,
aliás, do que a soberana protestante fizera à catolicís­
sima Maria. Tudor.

'45
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Filipe nas Instruções não se cansara de incutir ânimo


aos eXpedicionários e rogar-lhes que rezassem muito
((por que las vitorias san don de Dios e el las da y quita
como quiere)).

Uns sete anos esteve Cervantes sem ir a Esquívias.


Apenas uma vez se encontrou com Catalina, sua mulherJ
e é de supor que, esta, só então comparecesse depois de
muito rogada e por comiseração com o prófugo nó car­
tório dum notário. Tão espaçado silêncio significa divór­
cio de pessoas e lugares. Quem deu causa? Pelo que se
conhece da vida de Cervantes, este é que devia ter forne­
cido à moça inteiriça, digna planta da terreola taledana,
suspicaz e apegada à cartilha de seus maiores, a razão
eficiente. Catalina seria daquelas que, quando se entre­
gam, a sua rendição é incondicional. Também, quando
lhes dão azo a terem como rompido o pacto jurado, nunca
mais este se solda como sucede com a faiança fina.
A esposa, ou porque Cervantes desse provas de can­
saço e bocejasse, ou a sua atitude fosse de desafecto,
pondo a descoberto o m6bil interesseiro que o induzira a
contrair o enlace, devia tê-lo visto partir sem mágoa.
Por isso, e ainda, porventura, porque o homem pobre
tivesse praticado actos discricionários ou desbaratado
a casa, como é de supor que sucedesse com ]uana Gaitán
nas unhas de ave de rapina de Diego de Hondaro. Pode
aceitar-se também que se tenham revelado temperamen­
tos diferentes e inconciliáveis, Catalina uma pobre alma
antiquada, Cervantes um aventureiro que provara todos
os venenos do corpo e do espírito. Convir-se-ia então que
seria este o desacordo perdoável. :Um zoilo ou um rea-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

lista dirá que para o homem batido do mundo, que beijara


muitas bocas, saboreara o prazer dos sentidos com o
requinte que reveste nas cidades e J particularmente, na
terra devassa de Argel, envolver-se num negócio de
amor. em tudo adamítico e insonso, com uma Eva rústica
e sem graça, só havia um remédio, fugir a sete pés. E ele,
de facto, fugiu a pés de lobo. Fugiu para Sevilha, e não
consta que �la fosse atrás dele ou alguma vez o chamasse.
Passara-lhe procuração com plenos poderes- pudera !
-e, mais tarde, em Julho de 1590. nova procuração
conjuntamente a ela e à irmã Madalena , que babitava
em Madrid, a cada uma de per si e in solidum, especial • .

mente para que por mí y en mi nombre y de la dicha mi


mujer pued�n pedir y demandar, rescivir, aver. . . Não
se compreenderia com que intuito renovara a concessão
de poderes, se se não soubesse que ele por si 56, casado,
não podia fazê-lo.' Mas, associando o nome da mulher
ao da irmã, com ludibriar a lei, obtinha ao que visava,
que era constituir Madalena sua bastante procuradora
em Madrid.
Catalina, para pôr e dispor dos · teres e haveres do
casal , não carecia de outro instrumento além do já exis­
tente em sua mão. Ignora-se com que lá.titude usou dele.
Mas daquele jeito, às suas espaldas, a cunhada passaria,
legalmente ou pseudolegalmente� a representar seu ma­
rido. Não há dúvida, pois , que se trata duma artimanha,
da invéntiva de Cervantes, do tabelião, ou com a cumpli­
cidade deste, tanto mais que Catalina não arredara pé de
Esquívias.
Lá que a interferência de Madalena podia ser taxada
em juízo de írrita e nula, estamos em crê-lo. Mas apenas
em Berlim haveria juízes para condenar estas e quejan-

'47
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

das tramóias. E m suma, torna-se manifesto que, mo­


rando a mulher legítima em Esquívias, quem em Madrid
se aproveitava da procuração só podia ser Madalena .
Não é crível, tão-pouco, que Catalina com a sua escru­
pulidão de carácter e de conduta-o que se. evidenciou
no testamento-acedesse a coabitar com as irmãs de
Cervantes , boas raparigas mas silfídicas de todo, pes­
cadoras impenitentes do chichisb-!u endinheirado. e certo
que a Corte devia ter os seus atractivos para uma moci­
nha da pategónia, mas tanto Madalena como Andrea ou
a filha de Andrea, Constança, que passou as marcas às
duas, eram companhias pouco recomendáveis. Cervantes
devia sabê-lo, e nem sequer terá cometido fazer esta liga
do azougue com a água pura. Quando houve de dar uma
curatela à filha, fruto de pecados velhos , anteriores ao
casamento, não estava indicado que era com a mulher
que devia entender-se ? Era coisa do outro mundo ? Fica­
va-lhe mal ? Catalina , que parece ter sido uma segunda
mamã dos irmãos mais novos - os seus biógrafos o dizem
-teria apreciado até semelhante gesto como uma prova
de franqueza e cordialidade. Ela, por sua vez , quando
testou, não deixou uma lembrança à filha, bastarda do
marido, sabendo muito bem que existia.
S6 tarde, bastante tarde, quando estava velho e de­
crépito, baldeado da vida, mas homem célebre e irmão
de S. Francisco, é que voltou a coabitar com ele. Eram
duas sombras do templo. Aqui está de que fina têmpe:'a
saiu a paloma de Esquívias.
A 21 de Maio de 1590 enviou Cervantes a El-rei,
que o remeteu ao Conselho das índias, um requerimento
em que invocava os serviços prestados, sucessivamente:
((a Batalha Naval- donde le dieron mucllas heridas, de
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N CH O PA N Ç A

las quales perdió una mano de un arcabuçaço--Navarino,


Tunes, Goleta, Argel, em cujo resgate gastou não s6 o
património como a fazenda dos pais e o dote das irmãs,
que ficaram pobres; Terceira, onde serviu cOm o mar­
quês de Santa Cruz ; foi ainda ele, requerente, que trOll.."<e
as cartas e avisos do alcaide de Mazagã.o, e esteve de
embaixador em Orão por ordem de V. �. a quem con­
tinua servindo; seu irmão é alferes e milita na Flandres;
ele, à data, ocupa-se, em Sevilha , no abastecimento da
armada , às ordens de António de Guevara: atendendo
a que nunca ref:ebeu mercê, suplica humildemente lhe
seja dado um lugar nas índias, dos três ou quatro vagos
ao presente, a Contadoria do novo reino de Grànada, o
governo da província de Socanuso na Guatemala. con­
tador das galés de Cartagena, ou corregedor da cidade da
Paz. É homem ((hábil, suficiente e benemérito)), e não
acalenta outro desejo que não seja continuar ao serviço
de V. M. e acabar a vida como fizeram os seus antepas­
sados, que en ello resciviran muy gran bien y mef'ced.))
A petição teve despacho igual ao que recebera ao
chegar de Lisboa: busque p01" acá ,en que se 1e haga mer­
cedo Madrid 6 de Junho de 1590.
Era de supor que a requesta não tivesse deferimento.
Paga o justo pelo pecador. Foram a apurar-se as contas,
prestadas pelos comissários, e descobriram-se tais irregu­
laridades, que não houve modo de fazer vista grossa. Os
desfalques, roubos , abusos, subtracções puseram Fili­
pe II fora de si: Antonio de Guevara, vaya a su casa.
Metanse a los otros en la cárcel. Foi nomeado o�ic�nciado
Hemando de Alcázar para proceder a uma devassa. No
relatório que fez cbegou até pedir a morte para os autores
de tão descarados cardanhos. Os delinquentes foram afer-

'49
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

rolhados na cadeia de Puerto de Santa ·Maria. Cervantes


teve artes de escapar ao chilindr6.
Depois deste escândalo funcional, tomou conta da
vara de provedor dos abastecimentos Pedro Isunza , que
acedeu a contratar Cervantes para continuar na recolha
do trigo e azeite , se bem que com o soldo diminuído de
dois reais. Não durou, porém, muito a função. Acharam
melhor volver ao processo antigo dos fornecimentos para
a armada por meio de concurso público. Entretanto,
Cervantes , vend�se de mãos livres, entregou-se de novo
à antiga paixão, escrever para o teatro. A 5 de Setembro
de 1592 , obrigav�-se em notário com o empresário Ro­
drigo a entregar-lhe seis comédias por 50 ducados cada
uma, representáveis dentro de vinte dias, estipulando-se
como condição capital que ((pareçam ser das melhores que
se hajam representado em palcos de Espanha)). E se cada
uma no es una de las mejores que se han representado en
Espana no seais obligado a me pagar por tal comedia
cosa alguma. . .
Mas nenhuma destas peças de teatro chegou sequer
a ser una de las mej01'es que viram em Espanha a luz da
ribalta, mas a escrever-se. Cervantes foi preso e encarce­
rado em Castro deI Rio, po� delitos perpetrados no cargo
que desempenhara. Uma vez posto em liberdade provi­
s6ria, dirigiu-se para Madrid, onde conseguiu ilibar-se
da acusação, havendo sacudido sobre Isunza a água do
capote. Mas não retomou por então a pena de comedi6-
grafo. Entretanto, Guevara morria ulcerado de desgos­
tos . .Também a mãe de Cervantes faleceu a 19 de Outubro
de 1593 com 73 anos de idade.
Em 1595 Cervantes arrumou -ele o diz- de uma
vez para sempre o título de criado de 'El-rei e passou a
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

ser exclusivamente escritor. Mas a prática das letras não


constituía mester. Só constituem mester social. como
aliás sempre e em todo o mundo, aquelas actividades que
nutrem o artífice e se autorizam da investidura de artesa­
nato. O homem de letras , na Península, trabalhou sem­
pre à mercê de Deus e dos fados, na maioria das vezes
por mero ideal. Inculcava-se pois como homem de letras
e agente de negócios, mas, pelo que concerne este quali.
ficativo, é possível que a título ainda mais gratuito.
Assim foi tornado patente, quando do assassínio de Ezpe­
leta, pelas declarações de Andrea:
-Mi hermaiio es un hombre que escribe e trata ne­
gocias e que por su buena. habilidad tiene amigos.
VII
- Arma, arma, D . Quixo t e ! - Contra q'lwm'f
Expressão TÚnica de uma vida atribulada.' Da Tea·
lidade trágica para a bufonaria. Baldões a 'Valer
para baldões a rir. Um homem cm guerra consigo
e com o mundo. A desesperada c forçosa subser-
1.Iiéncia. O drama da razão contra a inerte estupidez.
O peninsular desalgemado. Os grilhões da ances­
tralidade. Porque se gosta do D. Quixote de la Man­
cha. Razões da sua universalidade. O seu poder de
sedução e engodo . Fillo e inalterá1Jel como o dia-
mante. O requiem das 1W'lJelas de Cavalaria

EM-SE
T
ventilado e continua a ventilar-se a intenção
com que Cervantes escreveu o D . Quixote de la
Mancha. Há quem a explique como uma sátira
aos livros da Cavalaria e outros uma caricatura velada a
um magnate tal como Carlos V ou mesmo Filipe II. As
grandes carapuças servem a todas as cabeças e a psique
do Engenhoso Fidalgo tanto se ajusta a um simples
fidalgo de lança em astilleroJ que deu- com os burrinhos
n 'água da sua vesânia, como a um testa coroada exorbi­
tado e inconsequente .
Para bem compreender o D. Quixote forçoso será
desintegrar do século , o mais heróico e dissoluto da his­
t6ria de Espanha, o mundo de fenómenos que comporta
tal facto. Simultâneamente fixar as condições parti­
culares, do ponto de vista social e moral, de quem o
escreveu. Se é verdade que àquela altura do;; tempos não

'S 2
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

era fácil distinguir as fronteiras do pícaro e do homem


honrado, Cervantes, graças às descobertas dos arquivos,
está identificado.
Afinal esta novela, que mereceu um êxito sem prece­
dentes, livro que ora faz rir, ora faz s,?frer, � uma obra
edificante ou apenas destas em que os melancólicos e en­
calacrados da vida vão escavar símiles com que levar.
mais conformados . a cruz ao calvário ? Se a existência
do homem e porventura do cosmos se exerce no sentido
de um eterno retorno, como presumia Nietzsche, livros
assim serão sempre vistos na sua lição objectiva ou à
contraluz como verdadeiros guias de consciência. Daí
até cair na contradição retórica de Unamuno : es preciso
matar Don Quijote, para que vi'1..'a A lonso Quifano, el
bueno, sensato e cordo, ou, depois de o renegar como
Pedro a Cristo: Pégame tu locura, Don Quijote, péga­
mela por entero, e vive l - vai a sua distância.
Tanto Alonso Quixano não é a criatura apta ao oxi­
génio que respiramos, como livre-nos Deus que, com o
volume e amplitude que tomam as coisas neste século
da multiplicação, D. Quixote proliferasse. Tínhamos
Hítleres por uma pá velha . Uma das faces iluminadas .
indirectamente , deste livro é o seu ódio à aventura bélica
que não tem em conta a pessoa física e os direitos res­
pectivos do cidadão.
Quando Cervantes o compôs estava de mal consigo,
com os seus, com a roda literária, com o mundo inteiro.
É o livro de um espírito capaz de atirar com" todos os
"respeitos ao ar, sorte de Cris6stomo integral da Canção
do Desespero, e um incendiário de Roma , pelo I;Ilenos,
no foro secreto. Devia trabal-há-lo a psicose
" do indivíduo
que falhou em toda a linha.

' 53
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

De facto, como vimos de forma. sucinta, a vida rara­


mente lhe correra favorável.
Aos 20 anos , ei-lo em fuga desapoderada para Itália,
condenado à pena do degredo e mão cortada. Quem o não
vê no estouvado da Gitanilla, que corre à toa na noite,
alucinado, não sabe por onde , a quem assusta o ruído dos
próprios passos e as sombras moventes do luar ? Com
certeza é ele que se pinta naquela hora angustiada. Por­
que mereceu tal sentença ? Nunca se averiguou . Quando
regressou de Itália, a pena ominosa tinha-se obliterado
ou alguém lha riscou do cadastro. A culpa não devia ser
pois daquelas cujo remorso persegue pela vida fora o
fautor como um fantasma vagante. Alistou-se na milícia
e tomou parte na batalha de Lepanto, donde lhe resultou
lesa a mão esquerda. Seja como for) nunCa passou de sol_ o
dado raso. Postulou por vezes um lugar nas Américas,
negaram-lho. Sofreu cinco anos de cativeiro em Argel,
e tão-pouco a sua conduta heróica e abnegada lhe valeu
qualquer contemplação do poder. Voltou a Espanha,
quando Madrid, Valhadolid , Sevilha, Barcelona eram
metrópoles desaforadas da hampa. De que mester havia
de lançar mão o homem que não aprendera nenhum, salvo
jogar ·o chifarote e rimar·? Pois desatou a rimar.
No género pastoril compusera a Calateia, que depôs
no supedâneo de Ascânio Colona, grande senhor , na
esperança de que lhe de!,se a mão. Estes ex-votos mag­
níficos valiam muitas vezes ao hierofante safar-se do
atoleiro. O homenageado custeava a impressão do livro
e estabelecia uma tença ao ofertante, se é que o não admi­
tia entre a famulagem. O pobre Cervantes dedicou os
livros a este e àquele, ao javardo do duque de Béjar, a
D. Rodrigo de Tapia, e apenas o conde de Lemos , a quem

' 54
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA NÇA

consagrou a Segunda Parte do Quixote, as Novelas e


Pef'siles, foi Mecenas, um Mecenas restrito. Mas, em
suma; abriu a escarce1a, que era o que o escritor espe­
rava.
A Galateia não o tornou célebre, e tãO-pouco a Via­
gem do Paf'MSO lhe ganhou a simpatia das tertúlias, não
obstante distribuir coroas de louros a todos os verseja­
dores e poetastros. Tendo posto pé no music-hall de Mi­
nerva ficava no peristilo perplexo e de chapéu na mão.
Ninguém lhe dizia : - Cubra-se, senhor, que está em sua
casa ! . Que vinha fazer aqude sujeito a um lugar reser­
vado em Espanha a eclesiásticos e a dois ou três aristo­
cratas pobres e de língua tão afiada na maledicência
como a toledana ?
Supôs por um momento, tendo deslumbrado, como
no Casamento Enganoso, com sua lábia de corredor das
sete partidas. seus chapéus de plumas e cadeias de ori­
calco. sua glória de soldado. a burguesinha de 19 anos ­
ia ele nos 37 -de Esquívias. umas das velhas terras da
santa Castela. onde manavam rios de azeite e mel. e os
fidalgos punham gola de canudos e perponte para ir à
missa que ouviam com inalterável gravidade. salvo os
acessos da birrenta pulmoeira , haver escorraçado a mo­
fina de uma vez para sempre. A páginas tantas. a porta

! de Catalina de Vozmediano ter-se-lhe-ia mesmo fechado


na cara. com seu precário refúgio. talvez
. que desfalcado
nos haveres.
Veio depois o cargo de alcabalero nas terrinhas fartas
e pacatórias da Andaluzia . por onde se fazia acompanhar
de beleguins idóneos: ponham paTa cá tantas rasas de
trigo e de cevada; tantos almudes de azeite, tantos pre­
suntos. . . -moa-se o pão em tais moinhos; carretem-no

155
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O P A N ÇA

para Sevilha tais e tais almoc1'etles: Devia ter sido uma


rude e inclemente tarefa . Porventura as monumentais
tareias com que exorna a odisseia de D. Quixote não
representam mais que a transposição dos seus sucessos
desgraçados na região frumentosa. Sem embargo, foi
bater, depois de excomungado pelo bispo e cominado
pelas autoridades . duas ou três vezes com os ossos na
cadeia, por irregularidades nas contas. Que os alcances
não deviam ter sido grandes é que estava pobre como Job.
Foi depois destes boléus todos J de passar tão maus
bocados, de dormir na tarimba dos cárceres, hostilizado
por uns e outros, trazido de olho pelo Santo Ofício desde
Argel, repudiado dos fidalgos e da família da mulher,
execrado pelos lavradores da província, suspeitoso aos
alcaides e à Santa Hermandad , em guerra com o exis­
tente, que pegou da pena, a mais original que jamais
conheceram as letras hispânicas. Deixando-a de princípio
cçrrer ao sabor do seu desequilíbrio e ressentimento,
. soube escrever em tal garabulha- diríamos uma gara-
bulha de entendimento runico - a crónica da sua vida.
Pari passu na epopeia herói-cómica do fidalgo sem juízo,
pobre, bom no fundo, votado a grandes ideais e ao de
endireitar o mundo torto, erguia o símbolo, não apenas
do paladino que se queima por uma ideIa , que lhe subiu
à cabeça , mas da Espanha histórica , a nobre Espanha de
sempre.
Sim, tudo leva a crer que Miguel de Cervantes come­
çasse a escrever o D. Quixote em estado de crise. Não a
crise que resulta de um morbo e atira com uru homem
para o leito, mas de intoxicação psíquica, com inape­
tência por tud(" sorte de atrabílis ou escorbuto moral.
Quando pegou da pena. seria sem subordinação a prin-

'S6
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

cípios e sem um fim determinado. Teria encetado a


novela como quem, com a ponta duma vergasta, traça
riscos ociosos na areia : a sabor do espírito vagabundo,
pouco mais que à toa. Depois, o engenho subtil que é o
entendimento e trabalha autónomo da vontade, quer o
indivíduo queira, quer não-e seria para desejar que
obedecesse como obedece um comutador eléctrico que
tanto acende a luz como apaga-começou a produzir
com ordem e medida. e ele a ter gosto de o ver à obra.
A pena voltaria então atrás. rec�!ficando. expungindo,
submetendo a prosa às leis da lógica e da sintaxe. De­
pois, prosseguira, como S. João em Patroos, a verter
para o papel o mundo desconforme de coisas que lhe
vogavam no subconsciente.
Se é verdade que um escritor nunca sai fora de si
ou do seu quintal, isto é, tudo o que escreve será achacado
da sua psique, temos que no D. Quixote se sente o autor
que falhou em todos os quadrantes da vida, em desequi­
líbrio com o mundo, ele próprio desaparafusado em sua
racionalidade, e presa dum desespero manso que revestiu
a forma piedosa da ironia. Que no livro se espelha, mais
ou menos veladamente, a fisionomia de quem o fez está
na mesma ordem de fenómenos da personalidade que o
do escultor que, sem deixar de reproduzir a efígi.e que se
lhe pospõe, nos luaceiros da figura, esse quid que paira
acima das feições, embora inscritas com fidelidade, sem­
pre há-de retratar a sua expressão-carácter.
D. Quixote, em abstracto, reproduz Cervantes, pro­
fessando quanto ao mundo um sentimento pejorativo.
O Engenhoso Fidalgo correrá também de desastre em
desastre, tropeçando aqui, levanfando-se acolá. Susten­
tá-Io-á sempre a esperança, que é , em casos crónicos,

'5 7
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

uma espécie de idealismo tonto, e prossegue desencon­


trado da lógica terrena, batendo oom a cabeça pelas es­
quinas , debaixo duma mofina inexorâvel. O que parece
ter valido a Cervantes é que o desencantamento que
experimentava agora e logo era menos forte que o seu
poder de ilusão. Vencido, sim, mas vencido que não se
rende. Escarmentado de todos os bons e maus trabalhos
com o fidalgo e o vilão, o frade e o leigo, o alcaide e o
carabineiro, além de pobre, aperreado, era o cão malha­
diço que vai sempre ao direito do nariz, fungando, rabo
entre as pernas, depois de uma pedrada evitando outra.
Examinando bem, os passos da vida de Cervantes
são JX>is as patacoadas de D. Quixote, traduzidas para
ridículo. Compreende-se. O seu prazer de revel foi , ser­
vindo-se de um herói estapafúrdio e que ninguém toma­
ria a sério, zombar du monde et de son pM'e. Que regalo
revessar na cara de todos o seu fastio humano, quando
não é desprezo descomposto, e ninguém pode pedir-lhe
contas ? ! Ser um doido imenso e irresponsável como
Deus, o que em Espanha não é raro, J;Ilas se processa
sempre na escala homérica !
Teve alguma vez Cervantes o sentimento de que
estava a tirar da alma os imensos pesadelos que a ensom­
bravam e , dobando-os como lã da dobadoira, os traduzia
para uma linguagem susceptível de duas percepções ?
De facto, ele escrevia o seu auto-retrato e, num plano
superior, a his�ória de Espanha que, segundo um pro­
fessor universitário alemão, vista na versão oficial ou
acreditada, é uma gigantomaquia sinistra do princípio
ao cabo. Se assim é, para conseguir ser exacto, consciente
ou subconscientemente, pouco interessa, teve de abstrair
das noções estabelecidas, mexer com a ordem das coisas,

158
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

pôr. digamos , o chamado senso comum de pernas para o


ar. O que daí resultou- verdade das verdades-foi uma
odisseia de irrisão e de amargura.
Cervantes era coerente consigo mesmo e com o que
escrevia. Que fígados poderiam ser os seus depois da­
queles desgraçados anos ao serviço d'EI-rei , com o odioso
lápis e a caderneta de perceptor em punho, invectivado
e apupado pelos habitantes, apedrejado, batido, expul­
so ? ! Depois, chamado a resJX:mder pela porção de géne­
ros prelevados que não deixariam de maquiar moleiros,
almocreves, farneiros e coadjutores famélicos ? ! Que
havia de ter na mente senão alucinantes moinhos de
vento, absurdos odres de vinho e de azeite, curas nédios
montados em horsas do Apocalipse, fidalguinhos mario­
letes e fidalgarrães de branca barba fluvial, com a vasta
choldra de quadrilheiros e pícaros à roda, capazes todos
eles , filipinos como eram até a medula, de jogar a túnica
do Senhor dos Passos quanto mais de roubar a Manu­
tenção ? ! Cervantes, em rixa com os moleiros, deu,
transposto para burlesco, o D. Quixote que arremeteu
contra os moinhos de vento, transfigurados em titãs.
Excomungado pelos cabidos e alto clero, nada mais com­
preensível que o Engenhoso Fidalgo jogasse a sua lança
contra os gordos frades de S. Bento. A liteira, guardada
pelo biscainho, com a dama que vai ao encontro do seu
senhor, alto burocrata nas lndias, - é o dégonflement
da sua eterna obsessão de mercê, no Novo Mundo, como
o cura de Alcobendas representa o desfrute de seu
cunhado seminarista, que lhe havia de palmar a legítipu
da mulher, ou de seu tio por afinidade Juan Salazar de
Palácios, um sacerdote chato e honrado, figurações essas
da sua trovoada de sonhos nocturnais. E quem me diz

' 59
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

que não foi ele que mantearam se não em Eeija, em La


Rambla, se não em Castro dei Rio, em Carmona, uma
vez que é tão fora de razão ver aqueles birbantães, carda­
dores de Seg6via, vendedores de agulhas e alfinetes de
Córdova, belfurinheiros da feira de Sevilha, fazerem-no
a Sancho Pança, pobre diabo corno eles, tomando dores
pelo Canhoto estalajadeiro ? A Cova de Montesinhos não
é a Cova de Cabra , cujo boqueirão ficaria sempre a lebre­
guejar na imaginação pávida do menino, quando a fa­
mília, acossada pelo vendaval da vida, vinha acolher-se
à sombra do parente remediado ? E Dulcineia não terá
pedido emprestada a Catalina aquela sua cerebral e iDa­
I.."essível altanaria , distância idealizada e rigidez de res­
sentida em que petrificou para com o aventureiro? Não
foi com ela que aprendeu a volátil significação do amor ?
Este D. Quixote, que é um rio de pensamento, cau­
daloso como o Ebro, como o Tejo, reflecte no claro cris­
tal da sua linfa , com mais fidelidade que o pincel de
Jaurégui , o rosto moral do autor. Mormente nos traços
remansados , quando a acção não levanta ondas encape­
ladas, antes o discurso desliza plácido e parafrástico,
tão ao gosto dos clássicos espanh6is .
Cervantes era um instintivo, não de&provido de certos
resguardos espirituais, e o lume da sua inteligência
corusca crepitante, lúcido e por centelhas, à maneira do
ferro etp brasa batido na bigorna. Os liames da moral
reinante aparta-os como nadador às algas, e prossegue
a longas braçadas, que é o ritmo a que costuma desdo­
brar-se o seu pensamento. De modo geral , perante o
obstáculos, o seu etos reage incoacto ou soberano.
Também sobre outros temas, como os amores com
Ana Francisca de Vilafranca, ou Ana Franca, de que
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

proveio a menina, chamada Isabel, que o acompanhou


pela vida fora e o devia amargurar segundo a ordem cor­
riqueira dos sentimentos, se tem levantado farta con tro­
vérsia, não lhe sendo estranha a tendência que há n o
espírito espanhol para o absoluto. E m geral os devotos
de Cervantes, n o intuito de exalçar o ídolo, procuram
riscar da sua vida e carreira tudo aquilo que traga a
marca de trivialmente terrestre, como sejam amores de
ocasião e as necessidades econ6micas que o compeliram
a curvaturas de espinha lame n táveis e ainda o que se
chama hoje in delicadezas em matéria de dinheiros pú­
blicos. Ora a vida é in imiga do her6ico ao con trário do
pen same n to divinizador. Cervantes poderá não encarnar
o homem de rígido carácter que se comprazem em ver
nele os Catões do lado de lã da fronteira j nem um cató­
lico fervente como gostariam de apresen tã-Io curas e
ultramontanos; nem um tradicionalista ferrenho ao pa­
ladar do requetés. Mas n inguém nega que dispôs de uma
admirãvel fantasia e D. Quixote é um dos luzeiros ace sos
n a marcha titubeante da humanidade através da sua
longa, ínvia e tantas vezes tenebrosa caminhada. Poderã
não inculcar-se como modelo acabado de cidadão, nem
ele concorreu a tal categoria, sempre ficarã, em despeito
dos seus altos e baixos de humano, um príncipe do
pen same n tos e da moral literã ria. Mas este afã com que
acepilham a pessoa, a alin dam, a desbastam do terrenal,
como que obedecendo a um mandato subconscie n te, vem
dar razão a quem vê n o D. Qui.'"<ote o símbolo da Espa­
nha, sequiosa de absoluto e nada compreendendo para
fora destas coorde n adas.
Cervantes, homem pobre, prezando a vida n o que tem
de materialmente fruidor, nunca a logrou a seu gosto.

161
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

Indigente ele próprio se declara na Viaje aZ Parnaso.


Dá de cara com Mercúrio que lhe pergunta :
- Para onde é a ida, amigo? . . Nesse desalinho . . .
-Senhor, vou ao Parnaso, e como sou pobre . . .
Uma vez ali, diz-lhe Apolo a certa altura:
-Então que me tens a contar ? Mas, primeiro, sen­
ta-te. Dobra a capa e senta-te nela.
Responde Cervantes:
-Bem ia. mas não reparou, meu deus senhor. que
não tenho capa ?
Parece que dobrar a capa e servir-se dela como mo­
cho era costume antigo, ainda em uso, herdado dos aga­
renos que se sentavam em esteiras e alcatifas com almo­
fadas à roda.
O mesmo sucedera na Relação do Porto com o Juiz
de Barrelas quando foi chamado a esclarecer uma sen­
tença sua, toda salomónica e que deixara embatucados
os desembargadores. O homem, como não lhe houves­
sem posto cadeira, porque fossem raras tais alfaias ou
não o julgassem digno de tal honra, enrolou a capucha
muito bem enrolada e repoltreou-se em cima. Finda a
audiência, na despedida, ao meirinho que o advertia de
que deixava a capa, respondeu com �olene altanaria:
-O Juiz de Barrelas não leva a cadeira em que- se
senta !
Cervantes, ao contrário do bom juiz, carecia de capa,
de modo que a anedota só tem oblíqua aplicação. O que
não sofre dúvidas é que metade dos dias passou-os Cer­
vantes a resolver os problemas que para tantos imbecis
estão resolvidos de nascença. Dai a sua inconformidade,
menos ostensiva que visceral, contra o existente. Tão
em contra do seu temperamento, a sua constante condi-

162
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

ção foi servir. Acedia a servir para logo se furtar à


canga. Ele DOS esclarece que aceitou apajear o cardeal
Acquaviva, se é que o apajeou, na mira de se forjar um
paládio, ainda que temporário, ou enquanto não assenM
tasse pé em Roma. Isto obtido, ou apercebendo-se da
sujeição, ala ! Serviu nos terços, idólatra, como bom es­
panhol da era heróica, do príncipe D. João de Áustria,
e breve despia o uniforme, coacto não apenas pelo es­
tropiamento como, talvez, pelo tédio que o tomara. As
letras foram para ele um refúgio ou representam na sua
índole uma incoercível tendencia ? Antes de se expatriar
para Roma, já cultivara as musas. Por sinal que balbu­
cios poéticos, pouco auspiciosos. No cativeiro escrevera
poesia ditirâmbica, mormente versos ao divino, se não
se trata dum endosso piedoso dos amigos para antídoto
à requisitória de Juan Blanco de Paz, espião do Santo
Ofício. Desde logo, a pena de escritor não lhe era pois
novidade. Compôs El trato de Argel. O êxito relativo
animou-o a ca-rpinteirar outras peças. Entretanto, en­
tremeara este trabalho com a factura da GaZateia. Na
sua estadia em Lisboa, Cervantes tivera o palpite de
que o temperamento português, taciturno se não sau­
doso, se comprazia no bucolismo, como uma oxigenação
bronquial. O amor era ali uma espécie de voto subtil, re­
gulado por princípios trovadorescas, que poeticamente
se exprimia e deleitava na ode e na éc1oga. Não era a
Diana, de Jorge de Montemor, a emanação delicada e
capitosa desse clima raro, formado pelas fragrâncias da
vegetação lisboeta e os horizontes ledos que bordam o
Tejo ? ! A ficção ou pequeno conflito sem-idramático que
forma o nó da Galateia escreve Navarro y Ledesma
-

no Ingenioso hidalgo Miguel de Cervantes Saa1Jedra-


N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

alude a feito ocorrido na Corte, é prová'Uel que entre


dama portuguesa e cavaleiro espanhol " ou chassé-C'roisé
inverso. Não Ma raro, mas antes muito frequente, dada
a artificiosa natureza do género bucólico encobrir uma
história verdadeira, de que fossem actores altas perso­
nagens, sob traça e aparência de intriga pastoril. O pr6-
prio Ceroantes o confessa no prólogo.
Comédias , novelas de costumes, tudo isso levou pouco
além das raias de mediocridade, sem desprimor. Jorge
de Montemor e ainda Gil Polo ficaram longe de ser su­
perados por ele. Por ali não fazia carreira. Nem mesmo
a novela, em despeito do êxito retumbante da Primeira
Parte do Engenhoso Fidalgo, pareceu haver-lhe trazido
esse apego que o violinista de gema tem pelo violino.
No fundo, era e continuava a ser um homem de mal
com o e-,,<istente. Portanto consigo. Tratava o seme­
lhante sem grandes carinhos e, salvo a própria pessoa ,
com um desprezo que havia, mais tarde, de tornar-se
dó. Nos magnates de que foi traçando o perfil, naquele
antipático D. Fernando, em que se vê, segundo rezam,
como em espelho convexo o retrato do duque de Osu­
na, transpira a sua cerimoniosa aversão pelos grandes
de Espanha, inúteis e sobranceiros , - vegetes lúgubres
de Theotocopulos . Mas ainda nesta aversão, Cervantes
visaria à classe nobre mais que � indivíduos . O facto
é que uma antipatia emocional pulsa, sente-se pulsar
nele , posto que turbidamente subterrânea . Mas Cervan­
tes é acima de tudo homem da sua época, de modo que
seria deslocado pedir-lhe um desquite amplo de todos
os preconceitos e privilégios raciais representados pela
tradição, que está para lá do muro da consciência.
No capítulo da moral, vê-se em Miguel de Cervantes

164

,
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

o tipo perfeito da era filipina. E bem DOS apercebemos


dos chamados ditames da voz interior I a flutuarem
como cortiça ao sabor das águas, defendendo tantas coi­
sas indefensáveis, tal o proxenetismo e a censura nas
comédias, Dimbado aqui e além de sombras pérfidas que
nos inibem, que mais não seja, de o propormos como
modelo. Exemplar é que nunca foi . nem a essa jubilação,
se o consultassem, teria aspirado. Ramiro de Maeztu,
que se tornou o seu censor metafísico, com quem me
aconteceu , à volta de 1920, encontrar-me em Lisboa,
dizia-me dele, num relance de olhos pelo passado lite­
rário da Ibéria. o que basta para humanizá-lo no seu
tempo. Mas no livro D. Quijote, D. Juan y la Celestina,
desviou-se para terreno menos escorregadio.
Ao contrário dos assertos de Maeztu , que se servia
dos paradoxos como de definições, Cervantes, embora
não pintasse nenhum filósofo que d a cela iluminasse o
mundo com suas doutrinas nem nenhum santo, a olhar
para o umbigo, na via da purificação, terá influído nos
costumes de modo mais eficiente que El camino de per.
feccilm ou El C1'itic6n.

o homem peninsular, criado e nutrido na escravidão


régia ou eclesiástica através de séculos e séculos, nunca
teve a alma dum grego ou romano, muito menos o seu gé­
nio desempoeirado. Esses nossos avós espirituais, sim,
riam dos deuses e dos homens com igual à-vontade. Para
que o ibero plebeu chegasse a sentar-se ao lado do mag­
nate, antes lhe arrancaram o coiro e a camisa muitas
vezes. Já não foi pouco que, um tanto à maneira de Mon­
taigne, aparecesse um escritor meio filósofo que respei-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

tava, mas não de joelhos nem de face por terra, os mitos


absolutos e os privilégios de classe como no tempo de
Recaredo. Mas não se lhe peça um desassombramento
pleno. Naquele conto, em que figuram o filho segundo
dum potentado, estroina, sedutor . por sistema e des­
porto, homem largado à soltura dos sentidos, uma
burguesota, nada no feudo' ducal, e uma menina fi­
dalga de meia-tigela, ele é como o nebri que brinca, pela
razão simples de que herdou garra e penacho de aristo­
crata, com as duas rolinhas. Pela maneira como narra
o jogo da paixão sensual e a força bruta do seu querer.
reminisce, mais que uma superioridade do sangue, a
jurisdição aceita do jambage, em que se traduzia a pre­
potência dos barões e o aviltamento dos servos naquela
idade do mundo. O mal é que) por baixo das tintas
escuras com que pinta esses tipos, transluz a suserania
que Cervantes continuava, por vénia ancestral a acatar
em seu etos aos grandes de Espanha. Aqui e além ,
quando volta a funda contra a arce aristocrática, tem
sempre o cuidado de cobrir-se com a adarga.
Na Corte, o seu tanto de Roi Pausole, dos duques de
Aragão, Cervantes não dissimula o êxtase, posto o des­
critivo soe mais a ideação do que , a convívio com a
alta sociedade . O ditirambo redunda afinal em desfavor
das exce1sas senhorias, tão desbocado é o desfrute que
fazem do D. Quixote, o fidalgo mentecapto, e do rústico
escudeiro, atofado nas pilordices e insânias da arraia.
Tal atitude, com propor uma recreação bem terra à terra
à falta de melhor, denota de parte dele, senão home­
nagem ante a baixeza de sentimentos, o seu pouco tra­
pio de homem de salas. E já se não fala em crueldade ,
essa tara atávica dos barões oriundos do sovaco de Pe-

166
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O ·PA N ÇA

lágio, que passa a meta com Sancho, o seu arre-bur­


rinho, quando encartado de governador na ilha da Bara­
tária. Mas pode considerar-se efeito de uma vontade
de1iberaçla o emprego destas tintas a betume ? Ou deve­
mos tê-lo antes CQmo uma impregnação, a que seria vão
fugir do tempo e do meio ? � certo que há uma fereza
nata, peculiar ao temperamento espanhol , de cujo san­
guíneo se iluminam os quadros capitais da sua história .
Tão entranhada ela está que os próprios não dão bem
conta, a não ser pelo ar enjoado dos estrangeiros, quando
nas arenas de vária ordem os cavalos dos picadores vão
pisando e desdobrando com as patas o novelo de tripas
que lhes sai do abdómen. Herdaram-na do bom cavaleiro
Cid Bivar. dos infantes de Lara, foi-se sedimentando nos
autos-de-fé, arcabuzadas das guerras civis, matanças a
peito feito e pela traição, hecatombes de índios e inimigos
tombados em combate. A palavra de passe em todas as
Navas de Tolosa desta gente sem frio nos olhos foi sem­
pre : nada de quartel aos vencidos ! Deus lá está para lhes
perdoar. Também, prostrado, não era um espanhol que
pedia misericórdia.
Esta coragem perante a morte , esta frieza perante a
dor, esta capacidade para torturar e sofrer a tortura, são
privativas do grande e singular povo. Cervantes, que se
adiantou séculos à sua época, não podia deixar de trazer
o vírus no sangue . O soldado dos terços, cativo em Argel,
tinha de resto a alma couraçada para os respectivos en­
treactos. O marquês de Santa Cruz, sob cuja bandeira
delirava de patriotismo a sua geração, deu-lhe lições à
farta. O sangue-frio, dir-se-ia complacência, com que
pinta no D. Quixote as cenas de crueza mais descabelada,
como seja a rixa do cabreiro com o fidalgo, é a natural Te-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

sultante. Viardot, cervantista puro, indignou-se. Podiam


dois sacerdotes de Cristo, O P.· Pero Pérez e o c6nego
prebendado de Toledo, presenciar . não neutros, mas di­
vertidos J a pugna a unbas e dentes entre um louco, já
avançado nos anos, e um homem robusto e jovem ? Pois
batiam palmas e açulavam os contendores como a penos:
css, css ! Este endurecimento de alma está na idiossin­
crasia de uma raça que tem lutado incansàvelmente atra­
vés dos tempos com todas as potências do mal e do bem,
reais e imaginárias. Só desse modo se e.'"<plica a indife­
rença jupiteriana do autor nos epis6dios de c61era e fereza
de que sai frequentes vezes o fidalgo manchego com os
queixos partidos e Sancho Pança feito em salada.
Rodríguez Marín, tocado pela veemência com que
Viardot verbera o à-vontade notarial de Cervantes na
cena da zaragata, invoca o clima da época . De facto. Os
costumes da mais elevada dinamometria em violência e
tortura, adoçaram-se, pelo menos, na teoria do Código
Penal. Mas hoje ainda é admissivel que, sob cartaz de
certame, uma caterva de ratões, bem comidos e bebidos,
apeiem dos automóveis, e, de luvas , charuto na boca ,
com suas hammerless de luxo, sacadas de estojos de ca­
murça, se ponham a fuzilar pobres �mbos ·prisioneiros,
quando, logrados pela esperança de readquirir o que há
de mais precioso no mundo a todo O ser vivo, remontam
no céu, imaginando-se a são e salvo. ::e verdade, mas já
se não deitam os escravos às moreias para as engorda­
rem e tornarem, com a carne cevada a trigo e vinho,
mais saborosas aos epicuristas.
,
Tal seria o teor da época que reflecte aqui e além
o D. Quixote. Mas a novela, além de caricatura dos li­
vros de Cavalaria, querem os cervantistas que seja um

I68
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

libelo contra as prepotências, um idearium apologético,


e uma crítica aos costumes. E esta palavra de Cervantes,
que gostaríamos fosse um estigma, representa uma pura
contemporização: No quedaron a1"Tepentidos los duques
de la burla hecha a Sancho Panza deZ gobie-rno que le
dieron.
O arrependimento, já o dissemos , não faz parte do
emocional espanhol. Madalenas ali não se sabe o que se­
jam. Um castelhano nunca iamenta ter sido vingativo,
fero na desafronta, desmedido na chacina, mau na mal­
dade, excessivo no bem. Lamentarã apenas que o não
tenha sido em' grau superno, o mesmo é que esquiliana­
mente. Arrepende-se, sim, se procedeu com torpeza, quer
dizer, sem arte, no que a palavra encerra de recalc::a.
mento das forças activas ou estáticas do carácter. Esta
frase do D. Quixote equivale a uma definição: los más
quedaron tristes y melanc6licos de ver que no se habían
hecho pedazos los tan esperados combatientes, bien así
como los mucMchos quedan tristes cuando 1W sale el
ahorcado que esperan, porque le ha �erdonado o la parte
o la justicia.
Cervantes , em despeito do ressumbramento mefítico
que é lícito supor lhe contagiasse os sectores afins da
piedade, vibra de simpatia por todos os infelizes e irre­
gulares da terra. Posto seja condão dos príncipes do en­
tendimento, com ele é qualidade prima, como se esta sin­
gularidade fosse uma espécie de antibi6tico contra a
relice e apatia ove1hum do género ·humano. Assim se
comporta com Ginés de Passamonte, elevado a Maese
Pedro titeriteiro e homem de são juízo: muchacho, no te
metas en dibujos . Assim com Roque Guinart, bando­
. .

leiro dos quatro caminhos. Não será ele que pronuncie


N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

sentença condenatória contra semelhante gente anómala,


mas antes palavras, embora não formais, de tácito perdão.
Em regra, comporta-se como espectador imperturbável.
No fundo do seu temperamento, profundamente original,
nada lhe enchia as medidas. Já como homem de letras
penou o fadária das Danaides . Abordava um género e ,
realizada a Galateia, as Comédias, a Viagem ao Parnaso,
era, sem embargo do alarde deitado do alto de sua torre,
como se chegasse com o cântaro vazio.
Não obstante o descoroçoado pessimismo que" lateja
na sua obra, Cervantes seria boje um homem livre na
vanguarda dos que prezam sê-lo. Mas o panorama
arranca um brado de angústia: terra de Prometeus, con­
denada não sei por que mau fado a viver nove décimos
do tempo no cativeiro ! Como pode expandir-se-lhe o
génio, ocupar no concerto dos povos o lugar que cabe à
sua índole e insuperável sentido de beleza? !

D. Quixote começaria por ser, pois, uma desenfas­


tiada e desopilante hist6ria contada por um desiluso.
Os epis6dios engranzam-se ao fio como contas do rosário.
Ao invés, porém, das contas, os passos da novela são to­
dos diversos de conteúdo, forjados por u�a imaginação
de primeira ordem. O sentido que os anima é que procede
da mesma regra de jogo. Por isso, considerando o que
esta concepção tem de rara e genial - sua quota maior
de sublimidade- a Segunda Parte do Engenhoso Fi­
dalgo, do licenciado Alonso Fernandez de Avellaneda, é
um plágio matóide de que não eram capazes escritores
de envergadura, e ainda outros que marcam com honra
um lugar na segunda plana.
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

Não é ponto de fé que Cervantes tivesse a noção de


que havia descoberto uma receita preciosa, aquela amál­
gama de contrários : demência, humanidade e epopeia.
Se veio a notá-lo, foi s6 depois de publicada a Primeira
Parte. Até ali, possuído de inepta emulação, via singrar
nos céus da fama, com asas de tagarote, os Lope de Vega
e Argensola.
A universalidade vem-lhe, porém , doutras radiais: do
seu dimensional imensurável , em que cabe todo o hu­
mano, da propensão inata em ser compreendido e falado
em todas as línguas, sapientes ou de trapos; do gosto de
desobrigado, em todos os domínios, que sente a pessoa
comprimida pelas leis. a moral e as convenções, ao re­
ver-se à contraluz em D. Quixote e em Sancho, tornados
à natureza livre, um pela loucura, outro pelo primário;
em não recusar ao instinto a quota admitida pela fantasia,
que é na terra uma fada preciosa que nos não deixa deses­
perar da triste condição de viver; naquelas cambalhotas
de coliseu, comandadas pela varinha de Diógenes.
D. Quixote de la Mancha descerra porém mais ludí­
brios à vista que um prisma de cristal ao sol . Porque é
que sendo cheio de puerilidade e partes gagas resiste ao
tempo como qualquer séria e substanciosa obra, digamos
estes livros de granito e bronze no género do Velho. Tes­
tamento ou da Odisseia f Demais da indemnidade ao
tempo, bate a todos na concorrência do público, o mesmo
é que no seu poder de engodo e sedução.
O Engenhoso Fidalgo está dentro de anos a perfazer
quatro séculos. Em despeito de haver-se tornado, mor­
mente para os espanhóis , uma Sagrada Escritu1'a� por­
tanto uma dogmática com a sua mística, continua a ter
leitores que o folheiam com honra e devotos espontâneos

'7'
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N CH O P A N ÇA

que tomam banho mental na linfa das suas páginas como


os fiéis de Buda nas águas do Ganges purificador.
Um dos seus aspectos singulares é que se presta às
mais variadas interpretações . Cada qual conclui do COD­
teúdo a sabor das suas ideias e do seu credo. Para o
realista, é a magna carta; para o democrata , um evan·
gelho. Estão ainda recheadas de caricaturas e de símbo­
los, no parecer de Fulano mais de Beltrano, estas pá.
ginas febris .
O certo, certo-diga-se de passagem - é não conte­
rem charge individual, nem Cervantes ter visado a
nenhum símbolo. E se escreveu este Apocalipse dos ro­
mances de Cavalaria, metendo-os a ridículo, foi debaixo
da chamada divina inspiração.
Di-lo aliás e bem redondamente no prefácio e inúme­
ras vezes no decurso das sete partidas do herói. E nisso
reside a inventiva originalíssima : um louco, ou melhor,
um homem a quem ensandeceram as façanhas dos cava­
leiros andantes, superfetação romanesca da vida guer­
reira da Idade Média, que se veste segundo esses figu­
rinos e, obcecado, bate os caminhos prosaicos do mundo,
e propõe-se endireitar-lhes os tortos. O mundo torna-se
em conformidade com a sua psicose, um tavolado a que
virão fantàsticamente representar oportunos figurantes.
Ele, é claro, investido no papel de primeiro actor e con­
tra-regra, tudo sujeita à ordenação da pseudológica q.ue
resulta de suas deformadas interpretações sensoriais.
Quer dizer, disparatando, são coerentes os seus dispa­
rates. Tudo, pelo menos nas primeiras surtidas, é em
correspondência com este diapasão. Assim, não importa
que não haja já gigantes em circulação e que meçam
viageiros e fabianos sempre menos qne dois côvados.

1 72
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Ele, depois de endossar-lhes um vulto desconforme , pro­


jecta-os em moinhos de vento e frades escarranchados em
horsas altas como dromedários . Encantadores e magos
onde param ? llhas românticas, à espera de um Salomão
que as governe, existiram alguma vez no espaço geográ.
fico ? Pois ele a todas estas ficções dá realidade, encar­
nando-as, mediante o poder transfigurador do seu des­
vario, em seres e coisas hom6nimas . O singular é que,
uma vez fora da sua psicose, e depois de as águas do di­
lúvio patológico volverem à madre} tanto ele como o
mundo em' que se move passam a reger-se pela lei comum
'e a sintaxe estabelecida por Adão e Eva. E, baixado o
pano, acabou-se, o protagonista despoja-se do coturno
desmedido e balandrau de circunstância, para regressar
ao centro da gravidade do homem vulgar a que não falta
uma patriarcal e erudita cordura, mesmo o seu olho de
fidalgo pobre não morto de todo para a horta e o pres�pio.
Em despeito do intuito frequentes vezes proclamado,
pois que a novela exorbitara do seu caixilho por tão dila­
tados horizontes, os astr61ogos da literatura começaram
a ler nela uma judiciária ao seu paladar. As coordenadas
espirituais eram amplas e difusas e cabiam lá todos os
signos. E , vai, uns descobriram ali uma sátira a coisas
e 10isas coevas, outros uma prefiguração dos tempos
futuros. E não faltou quem, avantajando a alça , visse
no reticulado do megalómano personificado, não vemos
bem com que geometria, o tribunal do Santo Ofício. Fi­
nalmente, na mésma ordem de interpretações, Tomás
Ribeiro Colaço, no belo livro D. Quixote, Rei de Por­
tugal, sustentou com nutridos e calorosos argumenios a
tese de que o cavaleiro manchego, alcandorado a destem­
peras e loucuras sobre-humanas , era nem mais nem me-

' 73.
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

nos D. Sebastião, o Desejado, cuja mem6ria infeliz e


trágica, delirante e absurda-notou Cervantes - a pie­
dade do povo lusitano começava a revestir dum induto
exoráve1 d e lenda. E neste guindado símbolo, Ribeiro
Colaço não foi menos 16gico que os outros exegetas.
Mas podia lá ser, quando o Quixote, em última aná­
lise , não é mais que a alma penada d e um cavaleiro an­
dante ? ! Alma de conceito espanhol, que vaga de lobi­
somem pelo mundo a cumprir o fadário? ! Não deve tra­
tar-se pois de nenhuma intencional represen tação de per­
sonalidade, mas um espectro. Pode encarnar, em conse·
quência, quem nos apeteça: sagitário do Zodíaco ou da
era dos Filipes, santo do hagiológio, arlequim ou sico-
.
fanta.
Este livro grandioso tem a propriedade, pois, de ser
uma espécie de quadro parietal, fosforescente, de todos
os Ín tuitos filosóficos e sociais, ou apenas a torre ro­
queira, onde veio esbarrar a Cavalaria. Com igual vero­
similhança, o adaptaram a este e aquele padrão, sem
igualmente haver seguridade no desmentido.
Assim como assim, depois do Quixote, os romances
de Cavalaria caíram no limbo. Es tava o desfeêho implí­
cito na evol�ção natural das escolas liter4rias ? Ê indubi­
tável. Mas a durindana do cavaleiro manchego deu-lhes
o golpe de miseric6rdia. Não foi apenas para as novelas
de Cavalaria que soou o dobre a defuntos. Se-Io-ia, tam­
bém para a feudalidade, sobreviva ao Renascimento, com
seus condottieri, suas Ordens militares, seu direito abso­
luto, seu monaquismo absorvente e autocrata. Pelo me­
nos, por um longo período. Di-lo Byron n o D. Juan:
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N CH O PA N Ç A

Cervantes smiled Spain�s chivalry away


a single laugh demolished the righe arm
01 his own country; seldom since that day

has Spain had heroes. While Romame could charm


the world gave ground belore her bright arrayJ
and therefore have his volumes done such harm
that aIl their glory as a composition
was dearly purchased by his land's perdition.

((Zombando, Cervantes decepou o braço direito de Es­


panha, que era a sua Cavalaria. A partir dessa data,
acabaram ali os heróis. Pagou caro com tal perda a glória
de possuir semelhante livro.1I
-- - -----
-

VIII
Berço do D. Quixcte de la Mancha. O c47'cere ou os
caminhos ensoalhados da Mancha' lndole da novela.
A arraia-miúda i cham4da a figurar no presépio
castelhano. Sancho Panfa também é gente. G'f'ande
pe'f'sonagem 1'epresentativa: o dinheiro. A justa
nota realista em rodo o género. Censura ao er-6tico
obsceno. O amor no D. Quixote como fonte pura de
inspiração. Por onde se salvam os 1'omances de
Cavalaria. O esPírito dos Dialoggi di amare. Para
lá da felicidade plat6nica. Misoginia' e suas razões.
O pretória em que é julgada a innã Eva. Mas por-
que siio todas belas e frágeis, ele lhes perdoa

P
RETENDD.t: os cervantistas, sôfregos de espiritual,
que o Cárcere Real de Sevilha foi para Cervantes
o que O castelo de Iraurgui foi para Inácio de
Loiola- conceito de todo ridículo. Gostaria que me dis­
sessem como é que a leitura do livro mais sensaborão ,
mon6tono e artificial da Terra, o Flfs SanGtorum, p0-
deria agir de modo tão catalítico na psique do homem
convalescente e solitário a ponto de acender nela a cen­
telha do apostolado ! Tão-pouco se vê como é que a tru­
culência beduína do cárcere poderia sugerir num preso
ideia tão ágil e edificante como é o D. Quixote. Que
relação íntima pode haver entre o Engenhoso Fidalgo
e a turba facinorosa ou aviltada ? O D . Quixote devia
ter sido inspirado a Cervantes quando, reagindo nele o
homem de mal consigo e com o mundo, bifurcado no
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

lombo de uma mula passeira, através dos caminhos ve­


lhos da Mancha, via na terra desdobrar-se o mato florido,
as aves em seu bulício, o sol maravilhoso nascer e mer­
gulhar no catafalco da púrpura vespertina, sentindo em
suma o repululamento exaltador da vida. A pústula con·
duz à náusea e não ao arroubo sensorial. E , quanto a
elevação, o que medra e cresce desmesuradamente no
cárcere é o sentido de liberdade inato em todo o ser vivo.
Se os tiranos fossem coagidos a um estágio entre ferros,
como aula política, sujeitos ao regime comum, acabariam
por ter noção mais exacta e com certeza mais profícua
de humanidade.
S bem manifesto que D. Quixote? livro popular, deve
à sua índole o império que alcançou sobre a curiosidade
comburente do mundo. Tal como aBíblia� onde os grandes
capítulos são aqueles em que palpita e vibra o homem de
barro comum: Job, o livro de Rute , os Macabeus , etc.
Tal como a Odisseia. Ulisses é um príncipe dos gregos ,
está porém cortado no lenho vulgar) e os lances mais
patéticos acusam análogo contraponto. Assim D. Quixote,
em que Cervantes esgotou toda a experiência que adqui­
rira na fase mais atribulada da vida por estalagens, por­
tos e mercados , no trato com arrieiros e almocreves,
mulheres da vida e a púrria crapulosa dos cárceres e
antros urbanos , em suma toda a gandaia em levitação
de um povo. Po� isso D. Quixote é o poema da alma
popular, escarmentada e sofredora. Cervantes, como Te­
niers , deu foral ao Zé-Povinho nas novelas e entremezes,
sejam pegureiros, eguariços, moços de sege, donos e
servos de locanda, e todo o heteróclito pessoal de pau e
manta, saltimbancos e c6micos, padres e barbeiros . Fal­
tavam cavadores. Farto de andar pelas estradas e bode-

1 77
"
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

gas, nunca reparara bem em tal gente dobrada para a


terra, que nos dá de comer e nos come, a regá-la com o
suor do rosto. Militar, agente do fisco, pajem de gentis­
-homens, ocupou-se com a tropa-fandanga que topou no
caminho. Sancho Pança cobriu a lacuna. As andanças
capitais de Cervantes decorrem com a arrâia - miúda,
salvo a estadia em casa dos duques de Aragão, por certo
os passos menos interessantes da obra. Mas, já nas hos­
pedarias, os três estados ele os faz abancar indistinta­
mente à mesa de pinho. Observam, quando muito, uma
certa reserva hierárquica. Vêm as iguarias e paira entre
os comensais uma salutar confraternidade populacheira.
O Cativo, que está sentado ao lado do magnate, conta a
sua hist6ria ; o magnate, que terá de esposar a filha de
um seu lavrador, presta ouvido deferente. Faltava ali
Sancho. Para onde se meteu o homem que vem escravo
desde o princípio do mundo ? !
Debalde D. Quixote, quando recebe hospedagem dos
cabreiros, o puxa para a sua beira. Ele recusa, é certo
que não em nome dos respeitos plebeus, mas da sua como­
didade. Acha-se assim mais à vontadinha para comer.
beber, arrotar, limpar os beiços ao canhão da véstia, do
que muito direito ao lado do amo, v�lho fidalgo de eti­
quetas, consoante está afeito a ver, obrigado a trincar
com decência e a fingir de bem-educado. Mas nada mais
que as razões de semelhante escusa são um libelo.
Nos discursos, D. Quixote é um sofrível deputado
socialista conservador, se este amálgama político não é
heresia. As suas proposições, que nem sempre são para­
doxais, por vezes roçam pela trivialidade. Mas anima-as
um propósito de igualização social, não s6 pelo que lhe
\'e_lll da prática do mundo como pelo que corresponde ao
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA NÇA

seu etos de fundo humanitário. O discurso sobre as


armas e letras lembra uma destas tiradas de academia
em que todos os sócios, sonolentos, vetustos e conspícuos,
acenam com a cabeça aprovativamente e ao fim dão paI.
mas. Tais D. Fernando, o gabiru armoriado, Cardénio,
O licantropo, o Cativo, etc. Ao tempo esta arenga, COf­
tada ao padrão ciceroniano, devia ser um primor de dia­
léctica. Hoje o pr6prio mundo materialão confere a pri­
mazia ao espírito sobre qualquer outra actividade. Ao
tempo, o mester das armas estava à cabeça do rol , e com­
preende-se dado o estado do mundo, cheio de reisetes I
príncipes, grãos-duques ou simplesmente duques, rebota­
lho medieval, que se guerreavam como cães, e predomi.
navam a tudo o mais. D. Quixote é um livro vivo,
mesmo com toda esta cambada morta. O pouco que enve­
lheceu está na te6rica dos discursos aos cabreiros e par­
lendas eruditas do cónego prebendado. Mas que árvore
frondosa não tem ramos secos ?

Os contos, que amenizam como climas defesos a


longa e estapafúrdia jornada de D. Quixote, ligam-se
por enxamblaria maravilhosa, .mas 16gica, à construção
geral. A loucura do cavaleiro fornece o atilho à réstia.
O Cativo, em que perpassa um bom trecho da vida de
Cervantes, é delicioso com o seu sabor romanesco e exó­
tico ao mesmo tempo. Esse e o do Curioso impertinente
confluem de modo indirecto, com sua estranheza episó­
dica, para naturalizar O que há de desconchavo nas an­
danças de Triste Figura. Pertencem ao plano supranor­
mal da Vida , sem que todavia sejam destituídos de
realidade. Não é pelo que há de irreal ou de supra-real

1 79
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

nas cabeçadas de D. Quixote que ele nos apalXona e


empolga ?
Assim tem-se a impressão de que o fidalgo mau­
chego é a roca em que vêm enrolar-se acidentalmente
as estrigas de tais contos. Por um momento passa para
segundo plano. Mas nos outros, como o de' Cardénio e
Lucinda, D. Fernando e Doroteia, Marcela e Cris6s­
tomo , os figurantes calçam um coturno adequado ao
teatro melodramático que, não sendo oportuno, está longe
de ser supérfluo. Os dois primeiros , é certo, apenas por
ténues rebites foram articulados ao n6dulo da acção. Mas
era moda. A certa altura, Cervantes adverte-nos ainda
da existência de Rinconete y Cortadillo. O gracioso com­
pere que é o reverendo Pero Pérez vai-nos ler este conto
ao serão da pr6xima estalagem ? Não lhe lembra mais,
que o rio a monte, que é o D. Quixote, corre coalhado
de outros ilhéus e restingas, e s6 aparece mais tarde ,
nas Novelas Exemplares.
Tais variações são a meu ver um modo feliz de entre­
mear com as partes gagas do Fidalgo, à força de repe­
tidas fatigantes, estes aspectos versicolores da feira hu­
mana. Era de bom-tom enxertá-las tanto na novela
pastoril como na picaresca. No D. Quixote, posto dêem
ao livro odor de compósito, teremos ainda que levá-las
à conta de opulência. Mas que sejam estâncias ociosas,
lembram os terraços dum palácio antigo, cuja arqui­
tectura foi evoluindo mercê dos gostos do tempo e da
oportunidade, evolução essa que , representada por acres­
centamentos mais ou menos integrados no plano geral,
lhe não tira, antes pelo contrário, põe certo tom de bi­
zarria no conjunto. E sempre servirão, com a mudança
de cenário e de assunto, de poiais numa alameda.

18c
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

A Segunda Parte está limpa desta viridente rabugem.


Na Primeira Parte Cervantes abstrai da noção de tempo.
Dizer que toda ela ê um anacronismo de fio a pavio, não
é descoberta nenhuma. Somadas diurnidades da acção,
bora por bora, marcha através dos campos de Mantie1,
estadia na pousada, permanência na Serra Morena, re­
gresso à estalagem do Canhoto, teremos uma semana,
e não mais. Todavia tem-se a impressão duma extensa
jornada pelos tempos e o espaço. Quem saberá dizer há
que séculos o cavaleiro do elmo de papelão saiu a favor
do escuro da alba pela porta travessa da abegoaria?
Sancho perdeu a tramontana. Um sonho, como o dos
Sibenschlefer, pode durar séculos no teatro estrito duma
consciência. O sonbo não tem cronologia a regê-lo.
Na Segunda Parte, Cervantes soube eximir-se de todo
ao cômputo. O rio não leva margens. Sem pastorais nem
fabliaux, reconcentrada a acção, articulados os epis6dios
como num tronco franças e ramos, a pena do escritor
lavra direita e segura. O talento de Cervantes, em des­
peito das inibições e constrangimentos, à medida que
se vai expandindo sobe em altitude. Senhor do filão pre­
cioso, explora-o firmemente, 'sem titubear. A persona­
lidade dos figurantes turge-se cada vez mais de subjec­
tivo, de par com um inconfundível cunho de real, ao
contrário do Quixote de Avellaneda, que lhes torceu o
carácter para um burlesco de pacotilha, quando o infun­
dira o seu vero' criador em carne palpitante.
E que D. Quixote passe nas nuvens, meteórico, a
sua natureza não deixa de ser amassada bem humana­
mente segundo a receita de Adão, greda terrenal e cuspo
divino. Assim, ver-se-á assoberbado, tanto quanto é con­
sentâneo num homem lunático, por um dos problemas

181
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

que mais preocupam os homens: o do dinheiro. Diz-se


comummente que tal problema foi Balzac que o trouxe à
plana da exegese romanesca. Pois anterior a ele, fê-lo
com incisivo relevo Cervantes. Era de resto um dos tópi­
cos do realismo picaresco. Sancho dana-se a contar ma­
ravedi por maravedi o dinheiro da escarcela. Como não
ajustaram a soldada, 56 de pensar nisso lhe vêm dores
de cabeça. Mas deixa, quando for governador. serâ
mesmo negreiro como muito bom vizo-rei das 1ndias no
intuito de amealhar os seus bilhestres para a velhice !
D. Quixote, fidalgo pobre, esse , terá de vender duas ou
três courelas para prover às' necessidades de suas an­
danças . Previne-o o pretendido castelão que o armou
cavaleiro:
-Traga baguinho !
Este circunstancial, que na novelística era tema des�
denhado, torna-se no Engenhoso Fidalgo premen'te apuro
e objecto de indeclinável atenção. O pr6prio cavaleiro
se chora de não ser rico bastante para recompensar San�
cho como merece. As considerações que na maré opor­
tuna borda sobre a pobreza com tanto amargor, carrega­
das de tons escuros, pejorativos, traduzem bem a situa­
ção econ6mica do novelista :- Miserable de aquel que
tiene la honra espantadiza y piensa' que desde una legua
Se le descubre el remiendo deZ zapato, el trGsudo1' deZ
sombre1'o, la hilaza deZ her1'e1'uelo, y la hamb1'e deZ esto­
mago.
Cenas das mais patéticas ou de humor endiabrado,
como sejam a escaqueirada dos títeres de Mestre Pedro,
fazem ressaltar o aspecto da vida material suact.1 e tres­
suada segundo o anátema bíblico.
Sob este prisma, o obséquio que Cervantes rende à
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H"O PA NÇA

realidade excede de muito o que os escritores modernos


cultivam a preceito na enformação dos figurantes. Não é
apenas em artigo de pecúnia, isto é, na categoria econ6·
mica, que representam acertado e justo papel as perso­
nagens do Quixote. O mesmo escrúpulo observam quanto
à vida fisiol6gica, apetites, necessidades e funções or­
gânicas. Não me quero referir apenas aos epis6dios, à
Terêncio, de Sancho, na noite em que ouvem bater os
pisães, nem de D. Quixote dentro da jaula , clamando,
em resposta a uma pergunta indiscreta, que , sim, pre­
cisa sair dali, e já, por não poder esperar mais tempo.
A propósito de Belerma, na Cova de Montesinhos , não
se impede de escrever: Y no toma ocasi6n su ama1'illez
y sus oje1'as de estar con el mal men.sil, O1'dinario en las
muje1'es, porque ha muchos meses y afíos que no le
tiene ni asoma por sus puertas. Mais adiante, descre­
vendo os costumes dos enfeitiçados surpreendidos no
letargo, em que há traços vivíssimos de uma exploração
de espeleólogo, fornece detalhes de todo íntimos e re­
servados. Cervantes não omite o pequeno pormenor, lá
pelo receio de que a sua mesquinhez quebre a solenidade
do discurso. Assim, quando o Cativo aborda com outros
foragidos de Argel uma praia de Espanha, no sopé de
alta arriba, e se encontram com a guarda costeira, lá
vem a notazinha de nada que traduz de modo flagrante
a mesquinhez do gentio: uns tantos voltaram atrás com
intuito de le'Uaf" o barco para a pO'Uoação, assim que sou­
beram onde ficara encalhado.
Os' pequenos olvidos, como esquecer-se do roubo do
Ruço por Ginés de Passamonte , e na cena dos encami­
sados o reverendo licenciado Lope de Alcobendas por
duas vezes se pôr a caminho, variadíssimos quiproqu6s
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

tal o fio de Ariadne, S. Martinho por S. Bartolomeu,


não poucos equívocos e anacronismos a granel , como
esse, flagrantemente palmar. de diferir por um lado
D. Quixote a uma idade próxima da de Belianis da Gré­
cia e por outro fazer representar as éc10gas de Camões
num dos lugares onde toca em sua marcha de aventu­
reiro, além de ter a livraria pejada com autores dos
fins do século XVI e mesmo XVII, pequenas contradições
mais frequentes que a grama numa seara, demonstram
à saciedade que a Primeira Parte do grande livro foi
composta ao correr da pena.
Sem romper a simplicidade original, a retina de Cer­
vantes tinha o dom de fixar nos seus justos valores as
perspectivas mais variadas. Eis como pinta o engenhoso
fidalgo no acto de sair, de manhã, dos aposentos no pa�
lácio dos duques de Aragão: A rrojóse encima su mantón
de escarlata y pusose en la cabeza una. montera de ter�
ciopelo verde. . . [ . . ] Asió un gran rosario que consigo
.

continuo traía, y con gran prosopope.ya . . . .


Este atributo do rosário que. bem manifestamente ,
não costumava trazer, pois que na Serra Morena se viu
obrigado para imitar Beltenebros na penitência a fazer
um de nós ou de bugalhos. herdou-o. Por ofuscação.
de A vellaneda. que daquele jeito pinta o seu híbrido
cavaleiro atravessando a praça a caminho da igreja. de
gorra com o alcaide. Que a sugestão é manifesta ressalta
mais que clara quando o vimos chamar ao seu teatro
D. Alvaro Tarfe. personagem importante de Avellaneda.
D . Quixote, não obstante as jaças de que está ma­
reado, jaças observáveis num belo mármore se o exami­
narmos à lupa, é um livro eterno. Eterno como o herói .
embora forjado com metal único. metal que só se e.ncon-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

tra no subsolo psíquico de Espanha. E , por muito que


o submetamos à pedra de toque gramatical, léxica, lite­
rária, fica pairando imune à análise mais severa e meti­
culosa. É que o cavaleiro, não obstante os vínculos lo­
cais, está completo dentro de qualquer homem. Bastas
vezes, sopitado como Durandarte sob os filtros de Mer­
limo �ão raro, imóvel no fundo da jaula convencional,
contemptar das leis morais e cívicas, e inveterado endi­
reita do mundo torto .
. Assim Pança , com o burro e a marranica atávica de
escravo, o seu misto de astúcia e de simplicidade, e todas
as taras e méritos do homem natural. Posto seja de barro
hispânico por índole , é tão cósmico como o amo. Não
mais que a truculência con;:t. que se move a sua animali­
dade, segundo por ordem de relevo no teatro cervantesco,
revela o poder de vida que lhe foi insuflado. Chama-se a
isso conhecimento do homem e imaginação. Quem diz
imaginação diz originalidade. Dela se prevalece Cer-
vantes com legítima arrogância . . . .soy el primero que
. .

he novelado en lengua castellana; que las muchas nove­


las, que en ella andan impresas, todas san traducidas de
lenguas estranjeras: y éstas son mías proPias, no imi­
·tadas, ni hurtadas. Mi ingenio las engendr6 y las pari6
mi pluma . . .
Possui ainda Cervantes um engenho plurim6rfico em
matéria de composição que lhe permite orquestrar os
temas mais díspares e inesperados. Em muitos contem­
porâneos seus é superior o pode,r descritivo. Mas poucos
como Cervantes esbatem os quadros com mais franqueza
e vivacidade. Nas veias dos figurantes corre sangue e
jamais ág�la childra. Nisto, a literatura picaresca "forne­
ceu-lhe uma experiência infalível , mercê do que ousará
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

construir atê nas nuvens os mais altívolos e mirabolantes


castelos. Arquitecto todavia dos castelos mirabolantes da
verdade, ou) melhor, servo da verdade através de todos
os caprichos e devaneios da fantasia se poderá chamar a
Cervantes.
O cónego prebendado de Toledo, introduzido no
último descanso da segunda surtida de D . Quixote,
censurava os livros de Cavalaria pelos pontos de contacto
que tinham com as fábulas milesianas, cujo objecto con­
sistia em deliciar os homens graças a enredos de que o
motivo principal era o amor. Precisamente por esse lado,
dirão outros, se salvam os livros de Cavalaria. Foi esta
a corda verdadeiramente humana e com ressonância
perdurável, que desferiram. Tudo era neles artificial.
menos este particular. Os cavaleiros e damas amavam-se
como nos romances da escola naturalista. É claro que os
Catões da moral, tanto da bem como da mal compreen­
dida , não podiam deixar de encarar como vício uma fran­
queza tão humana, praticada com liberdade e a título
de recompensa aos paladinos que perpetravam acções
memoráveis. Que melhor galardão lhes poderia oferecer
o bazar humano? Crachás ? Uma estátua ? A fama ? Tudo
isso, a vitória mais estupenda de Xerxes, valia pouco
comparado com a posse de um belo 'COrpo de adoles­
cente.
O morigeradíssimo Mayáns y Siscar. primeiro bió­
grafo de Cervantes, escreve a este "respeito : EI otro desig­
nio de los peroersos libros milesios es afeminar los ani­
mos, representando con 'lJiveza las cosas deI amorI Y
excitando cm las imagenes pensamientos y deseos amo­
rosos. En este genero de escritos mucho mejor es no
citar ejemplos, y cuando se alegue alguno seja el Asno de

186
N O C A VA L O D E PA U C OM S A N C H O PA NÇA

Apuleo, para que e1 mismo ejemplo sea rec'Ue1'do de que


la to-rpeza transf01'm4 los hombres en bestias.
O estrénuo bi6grafo de Cervantes escreve mais longe:
Si por esta se leen estos libros, menos mal se-rá Ieer
aquellos que tratan (permitid, Zetores, e1 termino) de a1-
cahueteria. . . [ . . . ] EZ Maestro Vanegas, con su acostum­
brado juicio, dijo : En nuestros tiempos cm detrimento
de las doncellas recogidas se escriven libros desaforados
de cavallenas, que no siruem sino de sef' unos sef'mo-
1J4nos deZ Diablo con que en los rincones caza los animas
tiernos de las doncellas.
Em boa hora para a imortalidade de Cervantes, esta
corda não deixou ele de tocar em gama livre e em todos os
diapasões. E como seria diferente para um realista da
sua força, se o fulcro em que o homem se move não é
outro senão o génio da espécie ? ! Aos falhos desse ins­
tinto, em arte e na vida, cabe apenas o conceito de infra­
-homens. O amor é a mola real do mundo e a fonte divina
de toda a inspiração e energia. Em literatura constitui,
sempre, um tema capital inesgotável. Cervantes observa
este preceito como um mandado, e sob este ponto de vista
se prende o seu livro aos romances de Cavalaria. O que
meteu a ridículo neles foi o estapafúrdio da aventura, a
superioridade bruta do músculo e o odioso empena�hado
do espírito feudal. Quanto a amor, que maior devoto que
D . Quixote ? Não ê o amante mais idealista e dedicado?
Existe Dulcineia ? Ele pr6prio põe o problema: Dios sabe
si hay Dulcineia o no en el mundo . . . Mas ele adDra-a do
fundo de si até às estrelas mais altas do céu. . .
Alonso Quijada leu tais livros e decerto não foram
as páginas consagradas ao amor que menos o entonte­
ceram.
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N CH O PA N ÇA

Miguel de Cervantes tinha a boa' escola de Fernando


de Rojas, tanto assim que se abalança a fazer, ainda que
com certo tom aleatório, a defesa do alcaiote. Cala-se a
íntegra moral castelhana perante tal pleiteação, desde os
graves Marín a quantos, conspícuos e de quevedos COD­
ceptuais DO nariz, se deleitam na leitura desta novela
não menos sublime que extravagante, ao engolir o mar­
melo de quejandos paradoxos. Em verdade, D. Quixote
via apenas homens miseráveis, seviciados, e como tal
arremetia contra os algozes sem inquirir da natureza das
vítimas. A razão do vexame <?u do atropelo, não queria
ele bem saber qual fosse. Incomodavam-no a dor e avilta.
mento do semelhante, e era quanto basta.
O que os livros de Cavalaria tinham de humano e
como tal com projecção no futuro era pois o culto que
professavam pela liberdade do amor. Sob este prisma,
o seu caricaturista e implacável demolidor foi-lhes obse­
quioso sequaz. Que é senão amor perfeito, formas do amor
perfeito como as teatralizaram os Lobeiras, o fogo sensual
que crepita entre Doroteia e D. Fernando. entre Zoraida
e o capitão cativo. entre Lucinda e Cardénio. entre Lean­
dra e o aventureiro Vicente de la Roca. e a clave na
bufonaria epitalâmica das bodas de Camacho? Com todos
estes figurantes. o amor está para lá das convenções e
dos preceitos da religião. Juraram pertencer-se; às vezes
juram-no sobre uma imagem sagrada. e têm-se por
esposos para a vida e para a morte. Tanto esta espécie de
ligação lhes parece válida que partem do princípio que
é canànicamente impeditiva de qualquer outra, embora
praticada consoante as regras litúrgicas. Onde ia parar
o sacramento do matrim6nio se vingasse a doutrina, e a
religião, já não digo a apadrinhasse, mas aceitasse tais

188

-
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

juramentos como actos irrevocáveis ? ! Pois assim o en­


tende Cervantes, a ponto de considerar írrito e nulo o
casamento à face do altar entre Lucinda e D. Fernando.
Não se tinha ela prometido a Cardénio ? Não estava
D . Fernando ligado a Doroteia por similar compromisso ?
Os veros esponsais eram esses, vinculados pela pala­
vra dada no acto divino do amor. E não reputa irrevo­
cáveis, como dissemos, as palavras ditas sob o laço da
estola e na presença dum sacerdote. Quem virá dar arru­
mação definitiva ao conjúgio, segundo o critério cervan­
tesco, é ainda o- bom-serás do P: Pero Pérez. Para este,
árbitro moral no tablado quixotesco, são esposos aqueles
que o eram de coração e haviam dado a sua palavra de
parte a parte. Querem lei do amor mais larga que esta ?
Foram mais adiante os negregados livros de Cavalaria,
que Cervantes procurou amesquinhar e de facto cobriu
dum ridículo de morte ?
O curioso é que a Censura eclesiástica, intratável à
altura, contemporizasse com o assoalhamento dessa fran­
quia sentimental. Para D . Quixote, mercê da protecção
do todo-poderoso arcebispo de Toledo, fecharam-se as
alfândegas da fé. E como não se a aprovação da Segunda
Parte, assinada pelo licenciado Marques Torres , a atri­
bui Mayáns y Siscar ao próprio punho de Ce�vantes ?

Em Cervantes, não obstante D. Quixote ser o pala­


dino das donzelas e viúvas diminuídas na honra ou lesa­
<la,s em seus direitos, sente-se uma 'certa misoginia, mas
muito oculta debaixo da delicadeza nata e espírito sem
preconceitos. Não é qüe plante o problema da inferiori­
dade da mulher e discorra afirmativamente. Mas em

IS<)
N O C A VA L O D E PA U C OM S A N C H O PA N ÇA

todas as situações, salvo conceder a esta e àquela um


ânimo decidido, mesmo afoito, coloca-as num plano infe­
rior em relação ao homem, ao mesmo tempo que faz
ressaltar a sua fragilidade escudando-a na maioria dos
casos por dons sublimados de astúcia e finura. Ainda
as mais simpáticas e que nimba dum halo de poesia,
como Zoraida, examinados à lupa os móbiles secretos que
animam seus actos, são de uma integridade moral muito
discutível. Palpita-se na pena deste escritor. tão bené­
volo e indulgente com o pr6ximo, uma dureza de critério
quando se trata das filhas de Eva. Porventura não foi
feliz com elas , à parte , segundo é de presumir, as que
conheceu no cativeiro e de que guarda uma capitosa e
subtil saudade . É da história, de resto.
Não foi feliz com a mulher, a meia fidalga de Esquí­
vias, ele, insubmisso, citadino, versátil, ela dócil, porém
difícil de sentimentos, quase satisfeita do destino. nem
lhe deram sossego as irmãs ligeiras e alevantadiças. Nas
suas testilhas com Lope de Vega, este dirigiu-lhe por
fas ou por nefas um horrendo soneto. cheio de insídias
e veneno:

Yo que no sé de la-, ·de li-. ni le-,


ni sé si eres. Ceroantes. co-; ni cu-

o D. Quixote, produto dos seus últimos anos, reflecte


um estado de alma , em geral pejorativo quanto ao belo
sexo. A própria Marce1a sai justificada da insensibili­
dade hiperbórea no tribunal da consciência, mas não do
coração. Estava no direito de não retribuir com amor
aos homens que a amavam, mas decerto é diferente a lei
da natureza. No fundo, esta novela implica uma crítica

19"
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

discreta às vocações monásticas, compreensíveis à luz


da vontade individual, mas, sob o ponto de vista dos
interesses da espécie e vínculos afectivos que prendem
todo o humano ao agregado social, condenáveis in li­
mine. O despejo que Camila imprime à sua doblez, re­
presentando com arte superior a comédia imprevista da
inocência, mostra o juízo implacável que Cervantes for­
mava das mulheres. A 10a que ela ergue à própria honra
e à virtude toca em hipocrisia as raias do artifício, é
certo. Mas se as vozes que ela então solta podem ter-se
não como as adequadas, o peito donde brotam está àquela
temperatura. Esta ferocidade psicológica, dir-se-ia re­
flexo de agravos pessoais, não é única na grande parada
de sentimentos e emoções do D. Quixote. Aqui há
tendas de toda a histrionia e bonecada. E, no seu desdo­
bre, raras mulheres se encontram que não sejam dissi­
muladas e não dêem disso provas exuberantes. As mais
ingénuas fingem admiràvelmente ° chilique. A cada
passo, com uma frequência irreflectida mas obstinada,
caem sem sentidos. Assim parece irem boiando semi­
mortas à superfície do rio turvo subjectivo, que corre
dentro delas. E , não, levam apenas os olhos fechados.
Desmaia Zoraida, desmaia Clarinha , as puras, ou as
mais transparentes em seu complexo. Não se fala.de Do­
roteia, Lucinda, Camila que desfalecem a cada passo,
quer a valer, quer a fingir, a Trifaldi e Altisidora, mes­
tra na teatralidade. Zoraida , que deve ser o romance
dos amores de Cervantes no cativeiro, sincera sem em­
bargo do entorse original, pois renuncia à família e aos
deuses do berço, deslaçada por factores que é de justiça
classificar patológicos, seja em obediência à sugestão re­
ligiosa, ou a uma anormalidade do instinto sexual, o
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

que parece transparecer por detrás daquela, numa dada


altura finge um fanico com tanta arte que logra o pai,
e nós ficamos banzados. Banzados, mas risonhos. A alma
da moirinha podia ser assim. A situação não saiu para
fora das três dimensões do amor.
Os homens que lidam com estas graciosas comedian­
tes não estranham. Acham mesmo naturalíssimo. · Para
eles a mulher é feita de todas estas cambiantes, alma
mais furta-cores que o matiz no colo arrufado duma
pomba. Lembram, em geral, o mar, fixo por baixo, ludi­
briante à tona de água segundo as irisações da luz. Cer­
vantes, as vezes que estas deliciosas rés comparecem no
seu pretório, absolve-as sem as julgar. Basta-lhe que
sejam formosas. D. Quixote, para além de cavaleiro
tonto, é o mais baboso e benigno dos magistrados.
Está entendido que, para que tal suceda, isto é, be­
neficiem de código tão passa-culpas, as mulheres que
representam no seu tablado têm de ser bonitas. São em
regra a última palavra da beleza. Num dado momento
juntam-se na estalagem pelo inteligente baralhador de
cartas que é o acaso dos bons novelistas , Lucinda,
a mulher mais sedutora do velho mundo. Doroteia, que
envergonharia qualquer das três Graças, Zoraida, que o
amante tem como a primeira jóia do Universo, e Cla­
rinha, que reúne prendas com que empanar a irradiante
especiosidade de todas três. A Cervantes não faltam tin­
tas na paleta para pintar umas mais espampanantes que
outras. E fá-lo com tanta espontaneidade e exornando
as beldades de tantas seduções que nós quedamos ine­
briados e incertos a qual delas cabe o diadema de rainha.
Quanto a discordar do desmedido epítalâmio, nem se
abre boca.
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

É um tipo curioso, se bem que bastante unilateral,


este da mulher cervantesca. Todas primam por bonitas,
melindrosas, e."{tremas no sentir. menos felinas que frá.
geis, brandas no malefício e melodramáticas na constân­
cia. Em geral, oscilam ao vento e voltam ao seu aprumo
como as corutas e últimas andadas de ramos das arau­
cárias. É. mercê desta fraqueza inata, que Cervantes
lhes atribui dons particulares de duplicidade, como um
meio de defesa. condão natural, semelhante ao veneno
na glande secretória da cobra.
Que mulher patentée ressai do confronto de retratos
de que D. Quixote, não falando na GalateiQ e Trabalhos
de Persiles y Sigismunda, é vasta galeria ? Pois a mu­
lher interessada, mais particularmente a mulher espa­
nhola, ou, como D. Quixote, visto na simbiose com San­
cho, pressente graças porventura a .uma clatividente
subconsciência psíquica ou esperta intuição, a mesma Es­
panha, absoluta nos rasgos, oscilando entre todos os
contrastes, bizarra e mesquinha , heróica e futre, ori­
ginal como não há segunda no mundo, mas perigosa,
tão perigosa que são para pôr de quarentena tanto os
seus afagos como as negaças.
As mulheres de Cervantes são pois cortadas segundo
certo molde, sem que ele pretenda com isso dignificá-las
ou diminuí-las. O retrato não deixa de ter os seus en­
cantos, mas nunca fiarj quando menos se espera, vem
a pincelada forte à Velázquez. Aquela Doroteia, sorte de
Briseida, subitamente resvala na chochice. Torna-se me­
xeriqueira, senhora comadre e bas-bleu. Mas, repeti­
mos, psicologicamente a figura está tão certa em seus
justos valores como qualquer das infantas DO quadro das
Meninas.

'93
'3
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Cervantes, de resto, nem sempre esconde o juízo re­


servado que lhe merecem as mulheres. Deliberadamente
é raro que o pronuncie, a não ser a meia voz : E como a
mulher tem engenho pronto tanto para amassar ouro
como rosalgq..,. . Quando Leandra se deixa raptar pelo
. .

aventureiro, que a despoja de quanto levava sobre o corpo


e vem dizer : enganou-me; era um ladrão refinado; mas
não quis nada com a minha honra não lhe importa
-

muito que acreditem nela, protótipo como é destas cria­


turas que se deixam guiar mais pelo instinto do que
pelo código moral ou religioso, naturezas portanto com
a queda própria da vida que reclama franca alforria.
E são elucidativas as seguintes palavras : . . pero los que
.

conocían 514 discrecián y mucho entendimiento no atri­


buy.e1'on a ignorancia su pecado, sino a su desen7.Joltura
y a la natural inclinaci6n de las mujeres, que por la
mayor parte suele ser desatinada y mal compuesta.
E nisto está a sua justificação. As leis da natureza não
falseiam elas.
Maritornes é liberal do corpo com toda a gente e esta
liberalidade tem o seu quê de cristão e caritativo que DOS
leva - e antes de mais ninguém o Criador - a per­
doar-lhe o que tem de boçal e repulsivo. É estarola, mas
boa. Não matou a sede a Sancho, melhor que a Samari­
'
tana, pois lhe deu vinho ? O que apetece é homem. Nas­
ceu um pouco para isso. A filha do estalajadeiro vai por
igual vereda.
Chama Rodríguez Marín às duas, com uma indul­
gência de velho católico, semidoncellas, reclamando para
Cervantes a honra de haver apresentado o tipo que cele­
brizou Marcel Prevost. O devotíssimo cervantista tinha
óculos cor-de-rosa na ponta do nariz quando escreveu

' 94
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N CH O PA N ÇA

tais palavras. A Maritomes era tão demi�vierge como a


av6 torta.
A bodegana, sexualmente uma pobre santa Maria
Egipcíaca, relegou-a Cervantes ao lazareto por feia e
com o hálito impregoado a cebola. Demais era atarra­
cada e corcunda. A estas malditas da natureza não deixa
entrar um cruel serafim no reino amável de Citera. Têm
de fazê.lo à traição ou pela porta do serviço. Para as
outras, talvez que mesmo dentro da clâmide de Medeia
ou Clitemnestra, entrada franca. A formosura para Cer­
vantes ê pois a qualidade prima necessária, da mulher.
Sem atractivos, sem O sex-appeal do nosso tempera­
mento, não as admite no tablado, com excepção da astu­
riana, por contraste. Em contraposição, com as formosas
é um mãos-rotas. Podem praticar os maiores dislates ou
até crimes, que não deixará de requerer para elas o nosso
compungimento, se não as nossas lágrimas. Mas ainda
esta unilateralidade é uma forma da misoginia de Cer­
vantes. Todo o capítulo em casa dos duques de Aragão
com aquela duquesa de encomenda, a àuena, Goya avant
la lett1'e, e Altisidora tão fátua e quebradiça que apenas
o génio de Cervantes seria capaz de no-la inculcar como
real , mostra a greda fantástica e versicolor com que mol­
dava as suas mulheres. Quanto à açafata, está-se ' à es­
pera quando Sancho, que tem olho marau , a surpreende
por detrás dum biombo a beijocar-se com o duque. Cer­
vantes não foi tão longe por assim o entender ou cobar­
dia. Falta porém tal contraponto no painel aristocrático.
Este homem, sem antolhos, respeitava os grandes. Sen­
te-se que se procedia assim não era por amor, mas pOr
c�lculo, operação elementar de quem não é parvo de todo
ou entende que o sacrifício tem os seus limites. A du-

'95
N O C A VA L; O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

quesa não faltam prendas, nem de inteligência nem de


coração. Parece uma deidade ossiânica. Mas lá vem o
reverso. No col6quio, ,altas horas, entre D. Quixote e
D. Rodríguez esta confessa-lhe, depois das reticências
costumadas , a respeito das graças de sua ama: Pues
sepa Vuesa Merced que lo puede agradecer primero a
Dios,' y luego a dos fuentes que time en las dos Piernas
por dond� se desagua todo el mal humor de quien dicen
los médicos que está Uena. . .
Tanto bastou para a duquesa, que era escutadeira, e
Altisidora, sua dama de honor e confidente, saírem a
campo e, levantando a fralda à velba, a açoitarem à
grande e à farta, e arremeterem depois para D. Quixote,
arranhando-o e beliscando-o de jeito que teve a impres­
são que se teria lançado sobre ele um exército de gatos .
E comenta Cervantes: . . porque las afrentas que van
.

derechas contra la hermosura y pl"esunci6n de las mu­


feres, despiertam en ellas en gl"an manera la ira y en­
cienden el deseo de vengarse.
IX
Controvérsias a quatro. Falam D. Quixote, o bacha­
rel, o ba1'beiro e o cura. O barbeiro, especialmente,
ouve. D. Quixote coça o toutiço, pouco ledor da teo­
logia. A s proposições ousadas de Sansão Carrasco.
A mola da grande vesánia. O problema do bem e
do mal. O mundo não se havia de curar'! A que
vieram os cavaleiros andantes. As prédicas de
D. Quixote. O que é direito natural. Sé justo com
teu irmão. Conceito de justiça. Sancho na Ilha da
Baratária. As suas sentenças de lucidíssima intui-
ção. Tal qual Salomão

UANDO D. Quixote despendurou do armeiro a ve·

Q lha espada dos Quixanos, bem certo que não foi


com o intento de ir à guerra. À guerra vai-se
para defender a causa da fé ou do rei, ele o diz.
A sua causa abraçava o género humano todo. Lá para
que a coroa de S. M. Cat61ica tivesse mais um fIorão,
ou uns tantos hereges da Flandres não comessem mais
chucrute, não arriscava ele duas cutiladas.
Endireitar os tortos de que o mundo estava coalhado ,
libertar os simples e os fracos das garras dos prepoten­
tes, fizeram-no a seu tempo Ti1'ant lo Blanc e Belianis, e
havia ele de fazê-lo agora, se não lhe faltasse a graça de
Dulcineia. Ia, pois, relampejar nas suas mãos o glãdio
da justiça como nas do querubim do Apocalipse. E ia
fazê-lo, dando conta que era bem mais preciso que nunca,
os patifes enxameando na terra filipina bastos e gordos

' 97
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

como tortulhos, C: as cadeias repletas de gente , sim, mas


de pobres e pilhos que não tinham onde cair mortos.
Sobrinha e ama, que o viam a limpar a ferrugem da es­
pada e o ouviam sonhar em voz alta, ralhavam com ele.
Não o refere, mas deixa-o entender, · Cide Hamete Be­
nengeli:
-Deixe-se estar na sua casinha, senhor nosso ! Que
lhe falta para ser um regalão ? ! Lá de acudir aos infe­
lizes pela força do seu braço, tanto monta como encomen­
dá-los aos santos do céu. O mundo é como ê e cada um
segundo o signo com que nasce. Uns são ricos e man­
dam, outros não têm nada de seu e pariu-os a galega
da mãe para servir e moirejar. E cara alegre , que é
ainda como lhes sai mais barato. Senão, O melhor que
lhes pode acontecer é malhar com o costelado nas galés
onde comem o pão que o Diabo amassa. Deixe lá o
mundo, que a Vossa Mercê bem lhe canta o rouxinol.
D. Quixote não se dignava responder sequer a estas
grilas da pilheira, produtos conformes da harmonia
preestabelecida .
Já com o padre, o barbeiro e o bacharel Sansão Car­
rasco, as disputas eram longas e acirradas, e todavia o
historiador moiro não se dignou registá-las. E salta aos
olhos porquê. Como tais altercaçães envolviam, não raro,
as verdades da santa religião, temera-se de que o acoi­
massem de sectário. Alonso Quixano turrava com um,
turrava com outro, e muitas vezes ficava-lhe na boca
o amargo dos silogismos e baboseiras, comparável a
arrotos chocos. O bacharel tomava às vezes por desen­
fado ou meia convicção, segundo lhe queria parecer, o
seu partido.
- O mundo, meus senhores - costumava dizer

198
N O C A VA L O DE P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

D. Quixote em surdina, à laia de estribilho-não ê


apenas �ssimo, é reles. Para onde quer que se deitem
os olhos, bão-de descobrir·se sempre injustiças e torpida­
des. Verdade seja que. sem este pano de fundo, não se
podia conceber a existência de cavaleiros andantes.
- Sr. Alonso Quixano, deixe lá os cavaleiros an­
dantes que 56 existiram na fantasia dos escritores de
patranhas - respondia o P.· Pero Pérez. - Quanto ao
mundo ser mau, é mau. E bem sabe Vossa Mercê que é
mau em virtude do pecado dos nossos primeiros pais.
Dê-lhe quantas voltas quiserJ ficará sempre achacado
até o fim dos tempos.
- E então a doutrina de Redenção ? - objectava
Sansão Carrasco.
- A doutrina da Redenção admite que o homem se
resgate, mediante as boas obras. Por outros termos, o
sacrifício de Deus vivo neutralizou-o para que seja ele o
senhor do seu destino imortal. Ele que escolha . . .
Alonso Quixano era menos lido em teologia do que
em novelística. Cristão-velho de gema, permitia-se cer­
tas liberdades de pensamento. Quanto a expressá-las, não
se departia das naturais reservas. que lá estava a regra
do bom viver a recomendar: Com a Inquisição, guar-te!
Uma coisa que não lhe entrava na cabeça era que, sendo
o cristianismo dono espiritual do mundo há mais de mil .
e seiscentos anos, a sua receita de bondade não o tivesse,
já não dizia sarado, mas temperado dos males cr6nicos.
A sociedade não seria mais pulha no tempo de Carlos
do que no tempo de César. mas era igualmente a mesma
imundície. Porque resultava inoperante a divina botica?
O padre voltaria à baila com o pecado original, prin­
cípio esse sobre que a verdadeira religião fundamentara

'99
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

a sua arce prodigiosa . E ele, Alonso Quixano, o Bom ,


com os miolos a arder 'à força de reflectir, acabava a
franzir os lábios. Um dia as suas cismas condensaram-se
e foi para a cavaqueira com os amigos como um homem
intoxicado.
- Repare o Sr. Quixano-voltaria à carga o P.· Pero
Pérez-que a doutrina da Redenção veio remir o bo­
mem das forcas caudinas disso que a santa teologia COD­
sidera anátema expiado, mas nãó indultado: O homem
nasce, como sempre nasceu , visceralmente mau, as
águas lustrais do baptismo é que o dealbam do vício con­
génito. Incumbe-lhe, depois, cumprir o Decálogo, que
coincide ordinàriamente com as leis civis, e os manda­
mentos da nossa Santa Madre Igreja} a única divina e
verdadeira. Se me pergunta porque pôs o Eterno no
Horto das Delícias um colono tão minus habens e pinga­
-amor em vez dum tipo teso, dotado duma faísca da sua
luz, dir-lhe-ei, ignorante como sou, que altos arcanos os
seus !
- Mas as outras religiões, que se prevalecem tam­
bém de origem divina, consideram-se, cada uma de per
si, detentoras da verdade-obtemperara Sansão Car­
rasco, julgando-se, como bacharel , obrigado a contra­
ditar mesmo verdades mais comuns que colondros. ­
De modo que um selvagem, que nunca teve a sorte de
adorar · a Deus nem a senti-lo, se num dado momento
quisesse abraçar a religião verdadeira, teria muitas ope­
rações a fazer até se desembaraçar daqu�las que são fal­
sas. E ouça, senhor licenciado, não poderia acontecer
que houvesse de repetir a pergunta do procônsul a Je­
sus Nazareno: Mas que é ve·:-dade?
Padre, mestre barbeiro e Quixano teriam ouvido o

200
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

bacharel, banzados de todo. Pero Pérez não voltava do


seu pasmo. E devia ser mestre barbeiro que, habituado
a manejar a tesoura, proferira para o caso, arvorado em
censor :
- Livre-o Deus, senhor bacharel Sansão Carrasco,
que algum familiar da Santa Inquisição ouvisse as suas
heresias. Estava aqui estava nos cafundós. . .
- Quem se exprime não é o católico que eu sou e
tem Cristo na alma. Repito por boca os sofismas dos
zoilos, para que os senhores padres e mesmo o senhor J
enquanto rapa,os queixos, aprenda a refutá-los. Demais
sei para quem estou a falar, pois não é verdade ? - res­
pondeu o bacharel imprimindo à cabeça o movimento de
rotação, indicativo de cautela, soltando, todavia, uma
risadinha lívida .
A Alonso Quixano preocupava-o sobretudo o pro­
blema do mal. No foro íntimo, não deixava de acalen­
tar um certo cepticismo quanto a que se pudesse extir­
par o pecado à face da terra segundo as operações cos­
tumadas do direito. Pelo que respeitava à sua origem,
continuava às escuras. O subconsciente , repleto de coi­
sas e loisas, tal uma cisterna com o estilicídio de muitos
dias, estimulado pelos arrazoados de Sansão Carrasco,
temia-se de crer que, existindo um problema do bem e
do mal, ou mais objectivamente um problema do mal, as
,
suas premissas não fossem de natureza teológica. Sansão
Carrasco, um dia à puridade, com brusquidão formulou o
terrível raciocínio: bem e mal em si não existem. Bem
e mal são os termos em que se processa a luta pela vida.
Podem considerar-se estados , jamais princípios. Da
mesma maneira que há o estado de quente e de frio, há
o estado de bem e o estado de mal. São produto, quase

201
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

físico, de fenómenos naturais : subsistir e procriar. Ter


mesa farta, fêmea ou fêmeas para o gozo, a habitação
que convém, vestir-se condicentemente com as estações,
ser respeitado e temido, eis grosso modo os requisitos
que na vida da espécie e, gradativamente, na do indi.
víduo , determinam os actos do bem e do mal. Ora no
dia em que o homem encontre a satisfação das neces­
sidades fundamentais , sem recorrer à violência, ao su­
borno, ao esbulho mercê de qualquer espécie de predo­
mínio, está conjurada a peste do mal humano. O homem
não será anjo, mas poderá chamar irmão ao seu seme­
lhante.
- E o me-q. senhor que faz dos templos ? -observou
sem acrimónia, mas com ar dissaborido, o licenciado Pero
Pérez, que ainda ouvira o resto das proposição.
-Resta sempre na vida muito de impenetrável que
fornecerá ao homem um pretexto plausível para conti­
nuar a tremer maleitas metafísicas -respondeu Sansão
Carrasco, com humor.
Para Alonso Quixano, admitindo que o homem, se­
gundo a lição do Resgate, tivesse recuperado o gozo
do livre arbítrio, desligad� por conseguinte da conde­
nação primeira, certas pessoas eram mais responsáveis
do que nunca pelo mal que continuava a' lavrar à super­
fície da terra. Sobretudo os poderosos. os fortes, esses
que faziam a lei e articulavam a justiça, e os seus exe­
cutores, que de coração venal ou leviano cometiam os
maiores atropelos contra a humanidade.
Por isso mesmo Alonso Quixano, o Bom, se sentia
impelido para a missão augusta que os livros de Cava­
laria inculcavam.
A certa altura daqueles colóquios e sabatinas os três

202
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

amigos desavieram-se e desarvoraram, possivelmente


suspeitosos uns dos outros. Mas não seria aceitar como
ponto de fé o tonilho de que o Santo Ofício dispusesse
de um espião para cada três espanh6is. Qual deles era
o esbirro ?
Alonso Quixano, à noite na livraria, sõzinho com
os seus fantasmas, e os Amàdis e Belianis de Grécia a
fitá-lo de dentro de suas vestiduras de coiro, alinhados
nas prateleiras como para um torneio, mais excitado do
que nunca, chamava em altos gritos pelo dia da justiça
universal. E rememorava , pesando...o na balança encan­
decida , o que dizia o bacharel. Era evidente que já se
haviam percorrido muitos estádios, tendo os fil6sofos
socavado por fas ou por ndas os alicerces clássicos ao
conceito de bem e de mal. Como, porém, houvesse uma
distância incomensurável entre progresso material e pro.
gresso moral, sendo aquele um assunto todo de ar livre
e este todo hermético e subterrâneo, podia dar-se o
caso que, predominando a vesânia, rabugem para temer
da mesma árvore do progresso, o homem destruísse
o mundo por suas mãos . E então, adeus ao paraíso !
De contrário, como' o congraçamento humano havia de
representar para os mitos o seu dobre a finados , eles,
aferrados aos dogmas, fariam, mais ou menos instinti­
vamente, em tanto que realidades espirituais, isto é, or­
ganismos vivos , interessados na perduração, guerra de
morte a todos proleg6menos da data para eles abomi·
nável.
Alonso Quixano delirava, balouçado entre situações
tão extremas, senão contraditórias. At� o dia do juízo
universal, o espaço a percorrer seria longo e, dados os
quindins a que está condenada a vida, conforme à pró-

2°3
NO C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

pria dinâmica da civilização, ia-se · apurando e recres­


cendo de eficiência o conjunto de rodagens sobre que
girava. Todavia, tratava-se , no geral, de expedientes,
uns mais ou menos paliativos e aleatórios , outros, mera·
mente moderadores, que os interessados punham todo o
esmero em aperfeiçoar.
Mas estes, com os seus institutos, estavam muito
longe de funcionar como desejariam os próprios mau­
tenedores, pois que favoreciam descaradamente o rico
contra o pobre, o forte contra o fraco, o inerme contra o
poderoso, o rábula e o publicano contra o simples. Como
instrumento de liça, eram tão falíveis e corruptos que
a própria lei de Deus previa que sanção justiceira, duma
verdadeira justiça.• apenas a encontrariam os que têm
sede dela no foro do supremo julgador.
Porque assim era, os cavaleiros andantes tinham
vindo ao mundo segotar o mal que, por inaptitude ou
perversidade, os homens deixaram em pé e a crescer à
rédea solta. De resto, os mesmos executores se deram
como suspeitos ou incapazes, uma vez que bateram pal­
mas ante os Amadises, os Tirant lo Blanc e os Pal­
melnns.
Alonso Quixano re10ucava de olhos abertos , espraia­
dos pelos seus livros e a sua durindana. Em verdade, o
chamado poder moderador, com esse instrumental com­
plexo de papel selado, beca, 6culos pretos , c6digos e chi­
canas , não satisfazia ao génio do homem. Por isso
mesmo se via quanto era fruste e artificioso. E Alonso
Quixano, movido por estas razões , prestes a investir-se
em cavaleiro andante teria lançado a ap6strofe aos ecos
da noite :
- Prebostes e bailios têm a alma mais negra que os

204
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

criminosos sentenciàdos por faltas manifestas e demarca­


das. Será mais fácil passar um camelo pelo buraco da
agulha que encontrar um só absolutamente puro e capaz
de repetir em seu infalível critério o justo juiz. Minos
voltaria a refugiar-se nos Infernos, porque só ali pode­
ria ser imparcial, nanja na terra filipina. Quando os
poderosos ou os governos estão à espalda do cadeirão
curul , haverá. que picar os olhos a T�mis para que, reti­
rando afrontada a venda, não veja a protérvia de quem
sentencia.
Foi abalado por este escarcéu interior, sobrevindo
em seguida à leitura dos livros maravilhosos, que Alonso
Quixano acabou por perder o siso. Cide Hamete Benen­
geli, pelos motivos atrás expendidos - o seu melindre
em matéria religiosa -fugiu de o dizer. Mas a verdade
verdadeira é que não o revolucionaram menos os diabos
do livre exame que os macaquinhos da Cavalaria An­
dante.
Um belo dia, com a alba, abalou pela porta do curral,
tendo reforçado o arnês com uma viseira de papelão, que
julgou apta a receber qualquer golpe de revés, e- com
uma lança , cujo pé pediu à pernada de um azinho.
Caminhando à aventura pela terra inçada de nequí­
cia, a febre do apostolado alucinou-o a ponto de lhe alte­
rar na retina a propriedade e forma das coisas. Salvou
o menino flagelado das mãos de um bruto, mas não fez
reparo que, ele a despegar, o mesmo bruto rompesse
muito a seu cómodo a arrancar a pele ao inocente. Ilibou
duas rameiras da vileza com a candura lustral da sua
alma, e elas nas costas desataram às gargalhadas. Com
a rópia toda, aqueles gigantes a espade1ar o azul a gran-
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

des pernadas aéreas, que princesa iam roubar ou que


alto malefício tinham na tineira ? - Esperai lá que
. . .

já vos arranjo. . . -disse consigo e arremeteu.


- Olhe que não são gigantes. são moinhos de vento !
-Escusas de gritar, Sancho ! Bem dou conta que
parecem moinhos. Mas só eu é que sei o que 'são. São
gigantes. Os meus pesadelos ensinaram-me a decifrar­
-lhes a expressão fantasmática. Deixa-me com eles !
E D. Quixote, persistindo na transfiguração das coi­
sas pelo mal, não se cansou de apanhar lambada, partir
os queixos, dar tombos, desiluso daqueles que tinham
por missão ministrar justiça.
Por isso, quando Sancho partiu a tomar o governo
da ilha, D. Quixote matou-lhe o bicho do ouvido com
a ponderosa matéria do direito natural. O mais impor­
tante das admoestações e conselhos visava à prática do
difícil ministério em causa. Governar era, acima de
tudo, ser justiceiro entre os homens. S. Luís, rei de
França , D. Pedro, o Cru, consideravam-se os primeiros
magistrados de seus Estados. Um ministrava a justiça,
sentado debaixo dum carvalho, o outro onde acertava,
no monte, quando bailava na rua, ou corria canas com
os seus cavaleiros. As Doze Tribos, pOr muito tempo,
não quiseram para governantes outros homens que não
fossem os Juízes. D. Quixote, entre os artigos do Código
por que Sancho devia reger-se, enunciou em primeira
mão:
-Se acaso tiveres de dobrar a vara da justiça, não
seja ao peso d" dádiva, mas sim da miseric6rdia. . .

206
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

.Um dos móbiles que levaram D. Quixote pelo mundo


seria, pois, a fome de justiça. Para haver fome de justiça
e alguém ter de se arvorar em seu instrumento, é que
os e."Cemplos da iniquidade avultavam a olho nu e bra­
davam aos céus . Na farsa da Ilha da. Baratária Sancho,
que sob inspiração de D. Quixote elaborou para si e seu
governo uma carta pragmática, primou em executor
íntegro da justiça, só com partir dos princípios de recti.
dão e imparcialidade que constituem. os fundamentos do
direito das gentes.
Seria curioso ao extremo, se não edificante, que juí­
zes medievais, do tempo dos Concilies de Toledo, vies­
sem julgar certos casos da vida contemporânea que caí­
ram debaixo da alçada do C6digo em vigor. Bem certo
que eles , quando se instauravam em pretório, ouviam
exclusivamente a voz da consciência. De resto, nada os
obrigava a ouvir outra, se é que alguma ousava pronun­
ciar-se. Podiam enganar-se, exagerar a sua severidade
ou não serem proporcionais nas sentenças, mas ao me­
nos procediam independentemente das auras externas,
libertos dos articulados que condicionam um veredicto,
que nem sempre conduzem à consagração da verdade.
A essa magistratura imparcial, sem embargo dos seus
defeitos de pessoalidade, erros de improvisaç�o e de
critério, podia chamar-se sacerdócio. Ministrar a jus­
tiça, para eles, era uma tarefa sacrossanta. Se remontás­
semos mais longe, ao escalão pré-orgânico da sociedade ,
os Salomões e os tiranos orientais procediam ao arbítrio
da vontade, mas pelo facto mesmo de concentrarem
em si o póder absoluto havia muitas probabilidades de
o seu discrime, em tal exercício, ser, não se diga o mais
justo, mas o de maior: isenção. Acaso não é este o pri-

2°7
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N CH O PA N Ç A

meiro requisito de quem julga ? Com os tempos , pro­


mulgadas as leis ao sabor das conveniências partidárias,
cada filósofo edificando o seu sistema como cada sapateiro
batendo a sua sola, julgar tornou-se um mester, tendo
perdido todo o carácter primevo de vocação e austera
dignidade. Na tentacularidade das profissões e artesa­
natos, o juiz é um funcionário . público e a justiça um
artigo de manipulação. Uma sentença é aviada como
uma receita de botica. Numa palavra, a magistratura
tornou-se uma carreira lotada e graduada como qual­
quer outra da vasta burocracia. Em consequência, tem
as suas tabelas e os seus cânones à maneira dos índices
farmacopaicos. Era inevitável talvez. Todavia, para que
na prática não descambasse numa função puramente me­
cânica, regendo-se pelos artigos do Código como um
secretário de Finanças pelos conhecimentos das matri­
zes, seria indispensável que gozasse de franquia plena e
que do emaranhado das leis, contraditórias algumas
vezes, aptas no geral à rabulice, mal expressas , omissas
não raro, se ressalvasse um princípio sem o quê tal com­
petência é logro: é que há uma verdade em tOdos os plei­
tos humanos, quer dizer, um fundo de razão suprema, de
acordo com a ética, de Pedro contra Paulo. Esse fundo
de razão constitui a verdadeira linfa- jurídica que deve
obrigar um juiz verdadeiramente juiz a procurá.la, a
cavar no terreno processual, joeirando deposições e ale­
gados , até descobri-la e trazê-la à superfície. Só assim
a justiça é justiça. A maior parte das vezes o juiz lava
as mãos como Pilatos : é contra a lei. E não é raro que
dite o acórdão em conformidade,. posto saiba que vinga
a iniquidade ou se inocenta o atropelo. A lei que o obriga
a contrariar o ditame que lhe aponta a consciência tor-
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

na-se uma monstruosidade moral, degradante em todos


os sentidos. [pso facto o juiz deixou de ser juiz para ser
um simples mesteiral, empregado ta.."'{ativo como esses
que vêm à nossa porta ler O contador da electricidade e
da água e nos passam a nota de consumo. A justiça qu�
se preza. a justiça colocada sob o signo de Témis, a deusa
de olhos preclaros I mas cobertos para se manter imper­
meáve1 ao exterior J não é isso. O magistrado deve gozar
de independência absoluta perante o mundo e particular­
mente perante os políticos para não atraiçoar a sua mis­
são. Deve possuir um entendimento ao mesmo tempo
bem formado e recto para s6 ter uma preocupação, des­
cobrir o quid que está para lá de todas as circunstâncias
de tempo e de lugarJ e que é o logos do seu múnus. Se
não se entrega a essa operação de perquiridor, opera­
ção subtil, mais atenta e minuciosa que a de um mi­
neiro nos campos diamantíferos , condena-se a não ser
mais que um oficial da vara, um autómato, e não lhe
vale a pena consumir a mocidade a aprender o Direito,
e nada mais que a meter o Código na cachimónia pê-á-pá
santa Justa, passando-se-Ihe carta de bacharel .
Como exalçar a judicatura à sua verdadeira altitude ?
Pois, antes de tudo, é forçoso que o seu prestígio seja
tal que nada de fora o ofusque, cerceando-Ihe autori­
dade. Julgar o nosso semelhante é um acto de ordem
transcendental , da máxima responsabilidade, já que
toca na relojoaria delicadíssima e sempre problemática
do eu, e não pretura de caracacá acessível ao primeiro
quidam . A lei moral J essa que rege o homem na vida
das relações, não tem princípio nem fim, e por conse­
.
guinte devia ficar ao abrigo do acidental no plano move-
diço dos Estados. Mas com a desvirtuação que o mundo

'4
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

vai sofrendo, porventura efeito da viragem que se está


a operar no seu âmago, também ela oscila como um cata­
-vento. Moisés se voltasse hoje quebraria infalivelmente
as tábuas de bronze na cabeça dos príncipes.
Todas as limitações, sofisticadas ou praticadas a
'
sugestão do poder J são contraproducentes e s6 podem
gerar o caos nas consciências, a começar pelas dos juí-
2íeS. Para que a magistratura esteja à altura do seu pa­
pel é indispensável que os seus representantes sejam .
livres, refractários a solicitações e influxos, lestos de eu·
tendime�to, sãos de critério e -repetimos - infatigá­
veis a cavar no terreno processual contra o espírito de
patranha dos litigantes, a rábula dos causídicos, a le­
tra imediata do Código, contra todas as aparências men­
tirosas ou susceptíveis de causar ludíbrio, até encontra­
rem a linfa pura que é a verdade imaculada. Assim a
justiça era como se promanasse dum santuário.
A justiça de Sancho correspondia a essa magistra­
tura incodificada, impressionista e animada do desejo de
acertar, como a exerceria um sátrapa oriental debonário,
desprovido de paixões e igualmente sem desejos. A única
diferença é que o senhor governador da Baratária não
mandaria por nada deste mundo cortar o pescoço a nin­
guém, nem meter um cidadão na cadeia por dez réis de
mel coado. Governar para ele cifrava-se em arbitrar
equidade.
Sancho chegou, sentop.-se, logo às primeiras horas
de Consulado, na cadeira de juiz-silla deZ jt�zgado­
e entrou a responder com argúcia de Édipo às pergun­
tas sibilinas que lhe fizeram. Não o embaraçaram as
causas mais árduas, que na jurisprudência oficial de
qualquer país culto, metido aos varais do Código, daria

210
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

água pela barba a advogados e juízes, com grande des­


barato de selos e papel azul. Porventura o agrado com
que vemos brotar os veredictos daquela cabeça de aldeão,
socorrido apenas do bom senso, derivará do frescor que
traz a nossos hábitos enfastiados de formal, óculos pre­
tos, tossicação de má higiene. becas, Pandeetas e diabo
a quatro, aquela magistratura viva e de boa vontade.
E Sancho conquista-nos pela simplicidade, antes de o
admirarmos pela esperteza.
Cide Hamete Benengeli é o mais rigorosamente fiel J
que lhe é possivel, na historiação dos juízos de Sancho,
se é que não encontrou os autos viciados ou foi mal in­
formado. Assim, quando se lhe apresentaram os dois
velhos demandantes, um de cana na mão a servir.lhe
de encosto, outro de mãos a abanar, parece ser verdade
que o processo de justificação decorreu de modo leve­
mente diferente:
- Senhor, emprestei a este tio dez escudos de ouro,
para mos tornar logo que pudesse, a menos que a qual­
quer altura eu tivesse necessidade e lhos pedisse. Passa­
ram-se tempos, matut�i que se estava a descuidar, e
fui-me ter com ele : - O amigo tenha paciência se aqui
me vê. Estou num grande apuro, volte-me a quantia que
lhe emprestei, que preciso dela. E não quer o senhor
saber, respondeu-me que não me devia nada. -Então O
senhor tem o descaramento de dizer que não me deve
nada f Não lhe emprestei o dinheiro em tal e tal hora,
estando presentes tais e tais fulanosf-Não, senhor,
não lhe devo nada. lá lhe paguei o que lhe devia. E, vai,
protesta e torna a protestar que me pagou bem pago, que
estou reembolsado de capital e juros. Está a compreen­
der Vossa Mercê ? Eu tenho testemunhas, mais de quan-

'II
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

tas pessoas que me viram a contar-lhe os escudos na


palma da mão, ele é que não é capaz de trazer uma
só que o visse a restituirmos. E agora ? O homem não
tem remédio senão puxar pelos cordões à bolsa. O diabo
é que não tem onde cair morto. Não sei, não sei o que
hei-de fazer à porca da vida. Se o senhor me não vale,
estou desgraçado.
-Você, lá o da cana, que tem a dizer ? -interro­
gou Sancho.
-Que hei-de dizer, senhor ? Que lhe restitui os dez
escudos.
- Restituiu-lhe -os dez escudos . . . ? ! É capaz de vir
jurá-lo sobre os Santos Evangelhos?
-Juro, pois então não juro !
Sancho Pança mandou vir a Sagrada Escritura que
servia para casos desta ordem. Entretanto perguntou ao
acusado:
- É você cristão ?
- Cristão-velho, senhor J desobrigado pela Páscoa de
Ressurreição, com cinquenta reais de côngrua para o
cura, e mais sou pobre.
- Sabe o que é jurar falso?
- Então não sei o que é jurar f.also ? ! Jurar falso,
ainda mais sobre os Santos Evangelhos, é o maior pe­
cado que um fiel de Deus pode cometer. É trair o justo
juiz e votar a alminha que o Senhor nos deu às penas
eternas do Inferno.
-Muito bem. Já vejo que não tenho diante de mim
nenhum renegado, nem judeu.
Vieram os Santos Evangelhos, e Sancho fez sinal ao
pretendido devedor. Ia a estender a mão, mas como a
tivesse ocupada com a cana, pediu ao queixoso que lhe

212
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

pegasse nela por um instantinho. Este assim fez e o


homem jurou :
-Juro S!'bre os Santos Evangelhos que entreguei a
este homem, de mão a mão, os dez escudos de oiro que me
emprestou numa grande precisão. Se os jogou, gastou
com as amigas ou perdeu , é lá com ele. Não mos torne
a pedir.
Entreolharam-se todos. O queixoso coçou a nuca, .
depois a barba com a unha, e disse confundido:
-Este homem jurou e não me passa pelo caco que
seja capaz de atraiçoar o santo nome de Deus. Não sei
como possa ser. Lá que estou desembolsado, estou.
Ter-mos-ia dado e eu, com o sentido noutra coisa, não
teria dado fé? Hum ! Eu não trago bolsos rotos . . .
Sancho Pança abriu os braços não menos perplexo
que o queixoso, e deu o neg6cio como arrumado. O velho
da cana tornou a pegar dela J fez uma vénia ao governador
e despediu muito direito pela porta fora. O outro velho
deixou-se cair sobre um banco , arrasado de todo. Sancho
dobrou a· fronte para o peito. Que estaria a magicar ? ­
perguntavam-se os presentes. Levou depois o indicador
à fronte, torceu os lábios, e disse :
- Meirinho, vá atrás do velho da cana . . . Chame-o
cá . . .
Volveu o homem à sala das audiências e Sancho dis-
se-lhe com muito bons modos :
-Empresta-me essa cana, faze favor ?
-Às ordens de Vossa Senhoria.
Pegou Sancho na cana e, sem mais aquela, passou-a
ao velhote -inconsolável, dizendo:
- Vá-se fV)m Deus, mas primeiro verifique se está
ou não está pago. . .

213
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

E estava. A cana era furada , obturada em baixo por


uma rolha. e tinha em seu vão os dez escudos de oiro.
E aqui está-não o disse Cide Hamete Benengeli, mas
podia dizê.lo um gracioso sem faltar à verdade- como
na ilha espanhola da Baratária se era tão probo que até
a razão hermftica encontrava a justiça competente.
x
Cervantes irmão do Santíssima. Referêncills Q() tri­
bunal da fé. Irrespeito, se não imPiedade. Pecados
que escapam pelas malhas. Veniais ou descuidO$os.
Licença à fantasia. Suponha-se Cervantes chamado
à Mesa da Santa Inquisição . Qualificador benévolo
e audiente perplexo. Exame doutrinal. Os passos
do te6logo através do D. Quixote. Capítulo por
capítulo. Suposto nwnit6rio . Como se explica o
longo jrousio que vai da Primeira Parte à Segunda.
Possíveis embargos

M
U
dos aspectos singulares na vida de Cervantes é o
das suas convicções religiosas, possíveis de ser
espreitadas através de mais de um prisma ao sabor
do variado pensamento criticista. Não há dúvida que ,
nado no grémio da Igreja cat61ica, nela expirou, nela
permaneceu sem quebra nem contumélia. Cervantes to­
mou, mesmo·, um ano antes de morrer, o hábito de
S. Francisco em sinal de humildade. À semelhança dos
grandes de Espanha. E não o era ele ?
Em Espanha, o homem acaba afinal por reconci­
liar-se com Deus , se é que andaram desavindos, embora
nem sempre o faça com os bons costumes. É o caso do
Diabo, de quem se diz que na velhice se fez eremita.
Devia dizer-se antes: naturalizou-se espanhol . O espa­
nhol, todo o bom espanhol, se pudesse, na senectude
entraria para um claustro. O arrependimento é bem um

215
------�-

N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

estado de alma do espanhol, mas na velhice, circunscre­


ve-se. Arrependimento de ser. sobrestar. não remorso
do que foi . Compreende-se que assim proceda quem sem­
pre se conduziu em inconformista e excessivo, zaraga­
teiro e diferente. Isto de ser diferente leva sempre a
Canossa. Raros os grandes homens que não acabam a
bater no peito. Não podiam aguentar diferentes. O que
podiam, mas não é questão, era não serem piores. Quem
diria que o Cervantes frondeur, chacoteiro, com um des­
dém anedótico contra os frades, acabaria irmão do San­
tíssimo ?
A bonificação no fundo é ao que aspira o estrénuo
homem. A bonificação nas suas diversas formas, cano­
nizado, congraçado com o rico e o cura e com as virtudes
teologais J mesmo depois de queimado em estátua. A irre­
verência é uma qualidade dos novos que raro se encon­
tra em pessoas espanholas para lá de uma certa idade.
Renegar o credo político é frequente em Espanha, a pa­
lavra de honra, ali, nunca sendo sequer ponto de fé e
termo de negócios. Nisto diverge o espanhol do portu­
guês" mormente o rústico antigo.
Na. Primeira Parte do D. Quixote, a cada passo se
nos defronta um autor pouco devoto, irreverente mesmo,
nada cumpridor das práticas do culto. ::e verdade que o
cronista chama-se Cide Hamete Benengeli, e se diz moi­
risco, mas um cronista -objectaria um doutor da mula
ruça-deixa a sua crença no tinteiro.
Não é aleivoso dizer que o Engenhoso Fidalgo, aqui
e além, falta aos ditames em que assenta a prática do
culto, se é que não bole com os seus princípios funda­
mentais. Estava-lhe na massa do atavismo.
São os alemães e espanhóis que fornecem ao mundo

216
NO C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

d o espírito maior contingente de teólogos. Mas enquanto


aqueles se ocupam de Deus no que tem de metafísico e
Das relações com o homem interior, a estes interessa-os,
sobretudo, no que tem de policial, se prende aos actos
externos do homem e nos deveres, pois, para com a Santa
Madre Igreja. Daqui, a uma banda, os filósofos desdo­
brados de sábios, a outra, os inquisidores e seus acólitos,
sob o manto de graduados em direito canónico e dog­
mático.
Estes, se não mandaram Cervantes para a câmara das
torturas J nem o encarceraram sequer, é muito provável
que não o deixassem em paz absoluta. Bem certo que
Cervantes, alfm de se achar premunido com uma boa
dose de resguardos, soubera cobrir-se com o escudo de
D. Bernardo de Sandoval y Rojas, arcebispo de Toledo
e grande inquisidor. e do todo-podero'so conde de Lemos.
vizo-rei de Nápoles. As víboras teológicas. se fossem a
morder, topavam aço de lima.
Todavia, o dilatado intervalo que vai da publicação
da Primeira à Segunda Parte do D. Quixote de la Man­
cha, ainda nenhum cervantista o explicou satisfatoria­
mente. Por muito grande que fosse a morosidade que
Cervantes punha a redigir, mais de dez anos. sem outro
mester conhecido que não fosse o das letras, repartidos no
tempo dariam um dia para muito menos que seis linhas.
O trabalho literário não é contínuo como a água nas tor­
neiras, mas supondo como bom aquele fluxo literário
cairíamos no absurdo. O emprego de alcabalero acaba­
ra-lhe de uma vez para sempre.
Uma vagorosidade de lesma será sempre um� inter­
pretação coxa daquele longo valo de anos, muito mais
em face do sucesso, explosivo para o tempo pode dizer-

21 7
N O C .4 VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

-se, d a Primeira Parte d o D. Quixou. :€ muito aceitável


pois que o autor sofresse os seus embargos e entraves
da autoridade eclesiástica, representada pelo Santo Ofí­
cio. Agora, tudo isto decorre no terreno problemático,
devo declarar. Quem poderia dizer se os houvera ou não,
ou apenas admoestação e advertência, seriam os tombos
do Secreto da Inquisição. Já foram compulsados os car­
tórios como os de protocolos da Província de. Andaluzia ?
E acaso existem semelhantes Arquivos ?
Há na novela certas leviandades de matéria religiosa,
opiniões condenáveis e mesmo sacrílegas, a que é muito
duvidoso terem os zelotas ficado indiferentes. Teresa de
Jesus, superiora das Carmelitas Descalças, Frei Luís
de León tiveram desaguisados sérios com o tribunal da
fé, e não os teria ele? O D. Quixote viera a lume e pas·
sara em julgado, sob capa de sátira de tema neutro, que
tais eram os livros de Cavalaria, havendo personificado
todo o achincalhe dum mentecapto. Por outro lado, o
nome do duque de Béjar, não obstante este prender.se
mais com a fátua ostentação da sua. pessoa do que com a
séria gravidade do seu papel de Mecenas, de algum pa­
ládio lhe havia de ser, quando menos porque era um
homem que contava pelos bens da fortuna. Mas o prin.
cipaI era a circunstância única e inédita para Cervantes
de o protagonista haver ensandecido e serem seus ditos
e feitos desconchavos de um sandeu. Sim, sendo um
doido o centro planetário de todas as enormidades, com­
preende.se que a censura eclesiástica deixasse passar em
julgado este jacobinismo pé.fresco a'Vant la lettre. A um
orate, sem dem6nios, tolera·se tudo. Tem alvará de cor­
rer. Zomba do sagrado e do profano, sem que seja legi.
timo qualquer processo de defesa além de fugir dele,

218
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

jamais castigá-lo. E, nesta ordem de licenças, são-lhe


permitidas todas as partes gagas , como entrar de chapéu
no templo, voltar as costas ao Santíssimo, rir do bom
Deus e tratar por tu, cordialmente, o infame Porco-Sujo
e o cura boníssimo.
Quando os superiores dos conventos, os bispos e o
conselho do Santo Ofício deram conta, já muitos milhares
de exemplares da novela corriam de mão em mão. E
agora ?
Se à fantasia fosse levantada a interdição de falar
nesta natureza de estudos, associando factos reais, mas
disseminados no espaço biográfico, diríamos :
Depois que a Primeira Parte do Quixote foi subme­
tida a um dos qualificadores mais considerados do Santo
Ofício, concluiu-se que havia ali matéria, um pouco mais
que venial , da competência da Mesa. Pelo que seria o
autor, Miguel de Cervantes, citado a comparecer em dia
e bora fixos . Tal alçada revinha a Toledo ou Madrid ?
Partindo do princípio que reatara com a esposa e vivesse
em Esquívias, a jurisdição pertenceria à cidade arquie­
piscopal. Em 161.2 , com efeito, Cervantes dá-se como
vizinho daquele lugar no testamento que assinou em
Madrid com Catalina de Palácios . Mas pergunta-se:
sendo assim, teria precisão de vir à Corte havendo em
Esquívias cart6rio de notário, e residindo ali os interes­
sados no instrumento com o p.e Francisco de Palácios,
a favor do qual iam resignar a terça e o remanescente
do quinto, herdado por Catalina de sua mãe ? Não teriam,
antes, vindo a Madrid, porque ali é que ele residia e só
ali podiam obter o seu assentimento ? E então o incul­
car-se como vizinho de Esquívias não passaria dum dado
arbitrário, explicável por sentimento de decoro ou sim-

2I9
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

plesmente ao desfastio, pois que ninguém lhe pediria


contas pela justeza de pormenores em artigo de tão
pouca fé.
Se Cervantes corresponderia à chamada , com a inquie­
tude pintada nos olhos e as maneiras excessivamente
tímidas e cortesãs no intuito de propiciar a boa vontade
dos inquisidores , é coisa fácil de prever. A contensão
que semelhante tribunal exercia nos espíritos paten­
teia-se em qualquer das passagens a que lhe alude na
novela. Suponhamos que lhe aconteceu encontrar·se
perante um destes frades à Zurbaran, negros e sombrios,
de ar ascético, que não sabiam rir. mas, por contraste,
dotados de uma voz blandíflua com raras inflexões azedas
e olhos de cole6ptero. Não lhe teria oferecido uma cadeira
de espaldar, fora do estrado, o que era reservado a
fidalgos e altas patentes eclesiásticas , mas um banco
raso. E o frade domínico, depois de cravar os olhos no
escritor, teria espremido esta arguição dos lábios desco­
rados:
-O Sr. Miguel de Cervantes começa por pintar a
sua personagem nos hábitos, na leitura , na IPesa, nas
manias, de forma, digamos, magistral, e não tem uma '
palavra, note bem, uma só palavra para com os deveres
espirituais que incumbem a todo o cristão. Pois não é o
seu Quixote um fiel de Deus ? Compreende-se um homem
retralado por dentro e corpo inteiro, sem que se frise
que vai à missa, cumpre as obrigações paroquiais , fre­
quenta o templo tal, é devoto particular de tal padroeira,
paga pontualmente a ementa e dízimos ao cura ? Onde
ficou a outra metade do seu herói, essa que contell:.de
com a natureza eterna do homem? Que tem a dizer I
Sr. Miguel de Cervantes?

220
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

Cervantes teria dobrado a cabeça e respondido depois


dum momento de reflexão:
-Nem de tal me lembrei. E não me lembrei, ima­
gino que por isto : não se compreende um espanhol que
não seja devoto da Virgem, a Virgem do Pilar, a Virgem
do Rosário, a Virgem de Atocha, consoante. Não é a
religião para nós como o ar que se respira sem se dar
conta que se respira ? Um espanhol nasce católico como
nasce e vive com pigmentação de moreno ou louro. Não
precisa de dizer que é branco, como não precisa de dizer
que come, bebe' e dorme. Morre e, como bom espanhol.
continua vivendo na família, mercê do bem de alma ­
missas t donativos e rogatórias que deixa para seu sufrá­
gio- como morrão de candeia. Mesmo mais, muito mais
que o morrão da candeia, pois que o morrão apaga-se e
o bem de alma prolonga-se pelos tempos fora, se Deus
quer até a eternidade, por intermédio de Ordens e Con­
frarias, e lança até raízes no passado, beneficiando no
purgat6rio pais, av6s e outros parentes e aderentes. O
meu her6i, apenas mentecapto no que respeita a sua
paran6ia de cavaleiro andante, no mais é tipo comum.
Em meu entendimento, rezava quando se deitava e er­
·
guia, quando se sentava e levantava da mesa, e trazia
ao pescoço numerosíssimos escapulários. De resto, como
a minha novela é feita segundo o traçado das novelas de
Cavalaria, é raro que os autores, versando os costumes
e baldas dos seus her6is, se detenham neste particular.
- Nunca é de mais proclamar o nome de Deus seja
no que forJ especialmente em escritos destinados ao pú­
blico, como dramas, comédias e novelas. No Céu não
estão os anjos e bem-aventurados sine fine dieentes: sane­
tus ! sanet1LS ! fi

22I
NO C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA N ÇA

Cervantes baixaria novamente·a cabeça, havendo deli­


berado de antemão conjurar, mercê de uma atitude mais
submissa que complacente, os certos e os prováveis riscos.
Volveu o censor, sem deixar transparecer. quer na voz
quer DO olhar, a impressão que lhe causara a réplica de
Cervantes:
-Na enumeração dos livros que constituíam a livra­
ria de D . Quixote , feita pelo licenciado Pero Pérez e
mestre Nicolau, não figura nenhum livro sagrado de
devoção ou entretenimento piedoso. Todavia, antes de as
leituras de tê\is perniciosos livros de Cavalaria subirem
à cabeça do fidalgo, era o homem culto vulgar. Como é .
isso, senhor J quando há nesses livros admiráveis, o Fios
Sanctorum, de Fr. Alonso de Vilhegas, a Vida de Santo
Inácio pelo P." Rivadeneira, a Vida de S. Nicolas Factor,
pelo P.· Fr. Cristóval Moreno, a Vida y milagros de 'la
bienaventurada Santa Caterina de Sena, pelo padre-mes­
tre Antonio ,de la Pena, vergéis de .factos maravilhosos ,
muito mais empolgantes que o A madis de Gaula, o A ma­
dis da Grécia, Tirant lo B lam fi !
- Reverendo Padre, o D. Quixote, antes de mais
nada, é uma farsa. Seria legítimo misJurar literatura tão
séria com a cacaborrada dos livros de Cavalaria ? !
-Não é tanto assim. Senão, para que mistura na
novela nomes de obras dignas da nossa estima e admira­
ção, como a Araucana, a Diana de Montemor, a Diana
de Gil Polo etc. etc. ?
- Tamb�m cito El Monserrate, que é um poema he­
róico-religioso. . .
O frade não respondeu e, mergulhando numa das
muitas notas que tinha inserido pelo exemplar fora do

222
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

D. 'QuixoteJ raiadas as passagens cominadas a vergões


de espessa tinta roxa , tornou:
-Aqui temos no capítulo VII, de modo bem con­
creto, uma cena de irreverência grave, mesmo muito
grave. Eu leio . . .
E escancarando a novela na página pr6pria, leu com
certa ênfase, que não desagradou a Cervantes, mas que
nele apenas tinha o propósito de frisar o acinte:
- Estando en estas razonesJ asomaron por el CG­
mino dos frailes de la Ordm de San Benito, caballeros
sobre dos dromedarios, que no eran nuis pequenas dos
mulas en que venian . . Saltando umas linhas, reatou no
.

brado que lhes lançara D . Quixote : Gente endiablada y


descomu1'fDl. . Ora responda o Sr. Miguel de Cervantes:
.

Admite-se uma voz tão irrespeitosa para com religio- .


sos de S. Bento, Ordem que deve impor, s6 a quem
lhe pronuncia o nome, veneração e afecto ? Mas o mais
grave estâ nos gestos e modos que acompanham tão abo­
minâvel lance. O mentecapto acomete os santos cami­
nhantes j um deles cai abaixo da montada com alardeado
desmancho e ridículo , sublinhado ainda por esta frase :
El seg1tndo religioso, que vió deZ modo que trataban a
su compaiíero, puso piernas al castillo de su buena mula,
y comenz6 a correr por aquella campa/ia, más ligero que
el mismo viento . . Não houve o propósito reflectido de
.

desconsiderar tão piedosa comunidade . . . ? Que tem a


objectar ?
-Longe de mim tal desígnio- respondeu Cervan­
tes . - O que tive em vista foi le"ar o meu herói a come­
ter o acto mais disparatado e imprevisto que se pode con­
ceber. Entrou tamhlm na cabeça de alguém que um

223
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

louco confundisse moinhos com gigantes, que serão


sempre de conformação humana ?
- E porque escolheu religiosos ? E porque haviam de
ser dromedários as mulas em que vinham montados ?
Parece-lhe que à manjedoira dos conventos há muito de
tal cavalaria ? Diga . . .
Cervantes quedou um momento cabisbaixo e respon­
deu, de ar sorridente, como a solicitar a aquiescência
benévola do frade a uma realidade graciosa, incontra­
ditável :
-Quem anda a cavalo pelos caminhos de Espanha ?
- Ora essa. não andam os fidalgos ? :!'-Jão andam os
almocreves ? Não anda meio mundo ?
- Sim, andam. . . mas a cavalo em mulas, poucos.
Os grandes fidalgos andam de sege ou cadeirinha . . . os
rústicos de burrico. Mula é um luxo.
- Com aquele espavento todo. . . uma visível intenção
de burlesco. . . ?
-De pitoresco, meu reverendo padre, de pitoresco !
O frade saltou mais urnas folhas no livro aberto
diante dele, fixou·se e volveu, 'encarando em Cervantes,
suspenso em expectativa:
- Aqui neste discurso aos cabr�iros, após a ceia,
não há urna palavra só de divino. De modo q,le, a seu
ver, a idade de ouro prescindia muito bem de Deus, de
seus mandamentos e do culto ?
-A idade de ouro é a idade de infância do nundo.
Salvo erro , os olhos dos homens não se tino'J.m aberto
ainda à luz do verdadeiro Deus . . . nem dos fal.:õos. A dou·
trina da Redenção, Vossa Reverendíssima sabe-o melhor
do que eu, estava longe de alvorecer.
- A idade do ouro, q.uer que lhe diga, é uma fábula

224
N O C ,I VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

dos poetas pagãos. O mundo começou com o Divino


Criador no Paraíso Terreal, depois com Abraão. depois
com Mois�s. e por aí fora. Deus nunca mais ergueu mão
da pessoa humana . . . Deus nunca mais saiu da história.
A voz do frade fora em oitava alta, c1arinetada, a cele­
brar jubilosa o seu triunfo dialéctico. Depois calou-se a
contemplar de olhos fitos o escritor soçobrado diante dele .
" - volveu, fitando os apontamentos.
-Temos mais . . . --
-Toda esta história de Crisóstomo cheira a paganismo
à légua. Que é isto� esta Canci6n desesperada em que
mistura alhos com bugalhos, o arcanjo S. Miguel , anjos
e santos com o Tântalo, o porteiro infernal de três fauces
e o cadáver do suicida enterrado ao pé duma rocha, em
pleno monte ? Para um cristão- e o espanhol é o pri­
meiro dos primeiros- não há sepultura fora da terra
santa. Esta é a terra da verdade. Nos cabeços abre-se a
cova para os cães. Nos cibórios ficam as almas dos que
morreram sem receber o baptismo e os suicidas. Mas no
ermo, abrenúncio ! Já na Grécia se dizia que andavam
errantes e clamando pelos caminhos os manes daqueles
cujos cadáveres jaziam insepultos, abandonados às aves
de rapina e à podridão. Não era menos ominoso entre
católicos negar-lhes terra sagrada. Ora não seria des­
denhar de tal sacramento pintar, sem mais nem ontem,
os pastores saudosos a cavarem uma sepultura à beira
duma penha, prescindindo de encomendação, de sacer­
dotes, de água benta ? ! O mesmo se pode dizer quanto ao
suicídio de Crisóstomo, apresentado como solução a um
passo difícil ou absurdo da existência. Tanto o enterro
como a morte naquelas circunstâncias poderiam revestir
formas aceitáveis, partindo-se do princípio que os pas­
tores não soubessem ou não curassem de apurar o que

225
'5
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA N Ç A

envolviam de doutrina herética, condenada pela Igreja.


Mas se a infracção se neutralizava por semelhante tan­
gente, inculcava-se outra, que era a de o Sr. Miguel de
Cervantes defender, mais ou menos tàcitamente , o di.
reito do indivíduo à morte voluntária. A doutrina da
Igreja neste particular é categórica. O senhor não des­
creveu uma prática piedosa da Espanha , católica das
unhas dos pés à coroa dos cabelos, mas o rito fúnebre
dum discípulo de Epicuro. Não tem desculpa , Sr. _Mi_
guel de Cervantes, não tem desculpa !
- O meu pensamento - explicou Cervantes - foi
intercalar uma cena de bucólica no chorrilho desenca­
deado de tonteiras de D. Quixote. A canção de Crisós­
tomo estava há muito feita, e dá-se bem conta que foi
ali metida a martelo, eu aqui lho confesso, reverendís..
simo padre. Toda a cena foi o caixilho , mau caixilho,
reconheço, em que a emoldurei.
-Pois só por si é escandalosa, senhor 1 . . Valia mais
.

rasgá-la. Para um cristão, valia mais rasgá-la . . .


-Talvez. Permito-me observar a Vossa Reveren­
díssima que o poeta lusitano Camões tinha também o
costume de entrelaçar os falsos deuses com Deus Nosso
Senhor que nos governa ! A censura eclesiástica deixou
passar . . .
,

- Não sabemos como a censura lusitana procedeu ­


redarguiu o padre. - Camões todavia retracta-se ou, me­
lhor, .vem depor a lira nos altares cristãos e faz a des­
trinça necessária. Mas o Sr. Miguel de Cervantes não
me queira fazer crer que se trata dum lapso. Aqui adiante
temos uma torpe paródia dos mistérios divinos quando o
estramontado do seu herói confecciona o bálsamo de Fer­
rabrás. -Lendo no livro: - Y luego dijo sobre la alcuza

226
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA N ÇA

más de ochenta paternostres y otras tantas avcmarfas,


salves y credos, y a cada palabra acompaiiaba una cruz,
a modos de bendici6n. São escárnio, escárnio puro, se­
nhor, a certas cerim6nias da Igreja as palavras de pseu­
domagia que o seu louco profere na estalagem ao condi­
mentar o unguento de Ferrabrás .
-Vossa Reverendíssima esquece que todas estas prá.
ticas da superstição popular se acompanham de orações e
arremedos da liturgia sagrada. Não fui eu que as in­
ventei . . .
-Mas todas estas formas de credulidade são repro­
vadas pela Igreja, muito mais quando podem parecer
uma paródia dos santos ritos . . .
-Eu sou , reverendíssimo senhor, um pintor de boas
e más costumeiras . Está no nosso foro de novelistas. . .
-Não está , não senhor. As costumeiras , que ma­
culam com sua amacacada imitação os actos do culto,
não podem ser evocadas por uma pena cristã , que não
seja para as anatematizar.
-Ê um critério. . .
- O único para um praticante da lei de Deus. . .
Perante a contradita, posto que mal esboçada e caute­
losa de Cervantes, o padre começava a exaltar-se. Já os
lábios descorados se lhe enrubesciam e os olhos fuzila­
vam por vezes. Esteve um instante com a mão em asa,
parada sobre o livro aberto, e revolveu mais folhas:
- Aqui mais adiante temos uma situação intolerável,
dum c6mico sacripanta, que deixa a perder de vista a
pantomima com os frades bentos. Ê a farsa dos encami­
sados. Diga-me, senhor, a sacerdotes e oficiais de igreja
devidamente paramentados de sobrepeliz e roquete, pode
aplicar-se esse vocábulo, que lembra a pessoa. a mulher

22 7
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

especialmente, nos seus hábitos menores mais recatados


e nocturnos ? Não é já uma terminologia sacrílega ? Se­
gue-se essa cena abominável com o defunto, a agressão
ao bom cura de Alcobendas e, pior que tudo, o arrazoado
que o eneriúmeno trava com o escudeiro. E foi rememo­
rando de cor. olhos fitos em Cervantes: PenSo que estou
excomungado pois que levantei a mão para um ungido
do Senhor. Levantei a mâo é como quem diz. Quem lhe
tocou foi o lanção I que o deitou abaixo da burra. É dife­
rente. Também nunca supus que se tratasse dum fe7.Je­
rendo. Seja lá o que for ! Cid Rui Diaz quebrou a cadeira
nas júcias do embaixador diante de Sua Santidade, que
o excomungou, ,ora, e ele nem por isso teve menos
saúde. Intolerável, senhor, intolerável ! O Exame dos
Confessores é explícito: ((Incorre em excomunhão contra
clérigo, aquele que lhe deu com a mão, com o pé ou com
um pau; se com violência lhe lançou a mão ao cavalo,
em que vai montado, pegando-Ihe pela rédea para o fazer
parar.)) Já não é apenas sacrilégio, mas heresia. Sabe o
que isso seja ?
Calou-se Cervantes, avaliando no, íntimo que aquele
teólogo prezava pouco a controvérsia, ainda a mais angé­
lica, e a melhor atitude, conducente à melhor saída, seria
deixá-lo na santa ilusão de que estava fulminado pelos
seus raciocínios como por um tiro certeiro de balesta.
Tornou o frade aparentemente mais calmo:
- Adiante deparamos mais uma vez com um arre­
medilho, de que é protagonista O: licenciado Pero Pérez,
das orações secretas e do ritual, a favor de que são opera­
dos certos mistérios da nossa santa madre Igreja. Não
abane com a cabeça, eu provo. Ora veja se se recorda . . .
Caem as J:jarbas ao mestre Nicolau, com que fazia de

228
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

velho aio da princesa Micomicoa, pedidas à cauda dum


boi barrosão, e já o doido clamava : Vive Dios, que es
gran milagro éste ! O seu cura pega delas, chapa-as na
cara do barbeiro murmurando sobre él unas palab1"4S que
digo que era cierto ensalmo aproPiado para pegar bar­
bas, como lo vúían. Está a ouvir ? Chama-se a isto
chasquear com. coisas sérias ! Mesmo que não fosse in­
tencional, a cena nem por isso deixa de regalar os ímpios.
-Por amor de Deus, reverendíssimo senhor, tra­
ta-se de um entremez sem maldade nenhuma. Fala-se
de ensalmo, que é um tonilho de crendeiros, e não de ne­
nhuma oração da eucologia cristã.
-Pois sim, pois sim, mas tais representações não
são mesmo liberdades, mas licenças. ::e muito grave. Es­
tes seus sacerdotes, posto que sejam de farsada, mentem
com quantos dentes têm na boca . . .
- Quando mentem, reverendíssimo senhor. é por
bem.
- E Cristo não foi julgado e sentenciado por bem da
paz romana ? Mas vamos adiante que a jornada não ter�
minou ainda. Não quero falar�lhe de cenas ·indecorosas,
como essa da Maritornes, que revolta as almas que amam
a pureza, e neste caso devemos contar as almas cristãs.
As suas ideias sobre a validade do matrim6nio extra�
-eclesiástico, mediante nada" mais que o consentimento
mútuo. deixa muito mal colocados os cânones . Eu sei,
aí anda muito da ignorância, a ignorância proverbial dos
autores que não se formaram numa Universidade utrius�
que juris. Também é verdade que se pode supor por
abstracto que, à hora em que as suas personagens vinham
representar em público, ainda aquele sacramento não era
regido pelos preceitos codificados do Concílio Triden.

229
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

tino. Já ouvi que os partidários do amor desenvergo­


nhado, o amor sem estola, o amor sem a sanção de Deus,
se prevalecem da mesma doutrina do Sr. Miguel de Cer­
vantes. Imundo, e aceitá-la seria a subversão da família
a que a Igreja é particularmente atenta J como se vê pela
"
consagração simbólica da trindade Jesus, Maria e Josf.
Mas a disciplina, neste particular, já estava há muito
estabelecida e , é-me lícito acrescentar, com a sua defi­
nição. Qual ela seja, eu lho digo, pois parece ignorá-la:
((A quele que prometeu fingidamente casar com alguma
mulher solteira não está por si obrigado a cumprir a
promessa? mas a compensar o dano que daí nasceu. Po­
rém, se com tal promessa induziu a moça a consentir
na cópula, está obrigado a casar com ela, salvo se ela
for de muito inferior condição. Por exemplo, sendo o
homem nobre e ela filha de agricultor. Mas satisfaz,
dotando-a. Agora, sabendo ela da desigualdade e consen­
tindo na cópula, perde O direito ao dote, porque se infere
que ela quis livremente ser enganada.))
O frade lia meio tibuteante, dando-lhe forma conver­
sada sem o conseguir, o formal do sexto sacramento nas
suas notas. E rematou o capítulo, ante Cervantes, de
alma aborrecida até a náusea, mas s�derado como a mu­
lher de Loth, depois de mineralizada em sal da cozinha:
- Como vê no caso de Lucinda, não havia que hesi­
tar. O senhor advogou ali a impureza.
Cervantes, posto que homem franco e leal , não era
destituído de certas cautelas e manhas. Não trazia ben­
tinhos ao pescoço como as pessoas compleicionalmente
simples ou estudadamente cavidosas, empenhadas em
tornar públicos os sentimentos de beneplácito comum,
mas ia à missa e nunca faltava à mesa da Sagrada Euca-

23°
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H.O PA N ÇA

ristia "pela Páscoa da Ressurreição. Comportava-se, em


suma, como um cristão-velbo que não precisa de estar
constantemente a bater no peito, de maneira ostensiva,
para que creram na sua religiosidade. Em sua consciência
bem secretamente devia prevalecer-se de uma regra
moral para lá da ética de qualquer credo. A espécie de
bill de indemnidade que gozou no cativeiro de Argel, s6
deste jeito, antecipada por um grande espírito de con­
temporização com a lei religiosa maometana, se torna
compreensível. Mas isso era o que estava no fundo fnn­
deiro do arcano e se não desvenda a ninguém ou então a
poucos.
- Eu sei -reatou o padre, depois duma longa pausa
em que ora olhava para o livro, ora para Cervantes, ora
para o Cristo, pregado contra a parede em corpo inteiro,
tão abstractamente que se via que toda a sua contensão
interior consistia em firmar o pensamento-eu sei que
o Sr. Miguel de Cervantes é religioso no sentido tradi­
cionalista, daí a sua tolerância de filósofo por um lado,
irrevisão de -doutrinas por outro. Não podemos admitir
tal con�ito do religioso praticante. Hoje em dia, depois
que a maldita Reforma meteu a foice envenenada na
seara de Cristo, requer-se muito zelo, muita fé, muita
rigidez no culto. Neste seu livro, bem como nos outros
em que passei os olhos, não se encontram proposições
escandalosas quanto à fé nem heresia caracterizada e
consciente. Mas há através das páginas do D. Quixote,
que vejo andar de mão em mão, e daí o seu perigo, uma
vegetação libertina que este santo tribunal não pode dei­
xar sem correcção .
O frade olhou para Cervantes, medusado na postura
do réu que vai ouvir a sentença de morte:
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç.1

-A Mesa, que eu aqui represento , ·vai usar para


com o senhor da sua benevolência costumada. Desta vez
não recorremos a disposições de ordem repressiva. Vá
em paz, meta a mão no seio, e faça exame de consciência.
Modere-se nas suas ambições de originalidade feitas à
custa de irreverências J desacato do legal e sagrado, e da
lei dos bons costumes. Anunciam os seus admiradores
uma Segunda Parte do D. Quixote de la Mancha. Veja
agora bem o que escreve. Daqui em diante trazemo-lo de
olho, fique sabendo. Reconcilie-se com Deus e os seus
representantes na terra é não afecte essa indiferença,
quando não é soltura I em' face das coisas da nossa santa
religião. A Igreja 'não se resigna a essa sorte de tibieza
e abstenção.
Tinha-se-lhe adoçado a voz e os seus olhos luziam de
amor místico. Cervantes oscilava entre os dois extremos,
beijar a mão desnevada do teólogo ou saltar�lhe ao pes�
coço como um cão de fila . Forçando a sua natureza de
impulsivo, limitou·se a fazer uma gran�e vénia e saiu,
conduzido pelo esbirro que assistira ao longo debate mais
pétreo que as estátuas nos pórticos dos templos, em passo
levemente cambaleado, mais curvo para o solo do que
lhe pedia a. arquitectura do corpo batipa de todos os maus
ventos , desgostoso da existência, mas no fundo da alma
com uma grata sensação de alívio.
XI
Segunda Parte. Um inquisidor toleran!i'. A de/eu­
são inesperada. Biblioteca de muitos eclesiásticos e
poucos leigos. Conceda-se alvará de correTo No�,;o
exame de fé. Um revedor pro forma. O escalrocho
dos moiTiscos. Pax vobis. Acabou o entreacto da
fantasia. A marca ungular de outro inquisidor.
Familiaridades que se tornam tegumentares. Até
o'nfle fOTam os cortes no D. Quixote depois da 1 . 4
edição. Antes, só Deus o sabe. Mas cá e lá más
fadas há. O salvo-conduto da loucura

E
S
a verdade hist6rica, que não a local, porque com
essa nos consideramos quites, permitisse, só mais
uma vez I qu� a fantasia ajoelhasse ao seu confes­
sionário, dir-lhe-íamos lisamente pelo ralo:
Aos que se desgostam por encontrar Cervantes na
Segunda Parte do D. Quixote de la Mancha escamado
de -irreverências e opiniões erasmísiicas, ortodoxo, no ge­
ral, em matéria religiosa, observaremos, com todos os es­
píritos imparciais, que tal era o seu carácter, e queda,
portanto, a coberto de repreensão. Deve ainda: não per­
der-se de vista o que sucedeu a muitos que pagaram nos
queimaderos, intercadentemente acesos em Espanha e
Domínios, a mais leve inconformidade com a lei de Deus
ou seu desrespeito. A lei do monarca, ao tempo, era
raramente posta em causa, pelo menos dentro da ,nação.
Poderia, mesmo assim, enunciar-se um problema: se
o zelo de Torquemada não formasse sobre Espanha uma

2 33
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

espécie de sobrecéu intolerante em que asfixiavam as


manifestações de livre inteligência, que velas não te­
ria dado o autor do Quixote ao seu sardonismo no capí­
tulo especial da obscuração fanática, das prepotências,
abusos e absurdos dos ministros e corifeus da arce cató­
lico-filipina ?
A Segunda Parte é bem diferente , com efeito, da
Primeira quanto à atitude perante o clero. Rareia e
custa a surpreender a ironia na pena de Cervantes.
D. Quixote perde o que tinha de sandeu disparatado e
fica apenas sandeu heróico. Está mais perto de Esplen­
dian que de Scaramoucbe. Quanto a costumes, nada
consta. Em matéria de religião e de civilidade , nunca
mais frades e curas representam papéis ridículos ou me­
DOS decorosos . O capítulo VIII significa uma verdadeira
exaltação da fé, o profano e o sagrado entrelaçando.se ,
como nos plintos dos jardins, numa espécie de deslei­
xado abraço de corriolas, para terminar à maneira de
Camões : tudo o que não é Padre, Filho e Espírito Santo
são falsos deuses da paganidade.
Haveria pressões, advertências, ameaças à volta de
Cervantes e quantos degraus teria descido na escala das
abdicações para que lhe deixassem sair a Segunda Parte ?
Não se sabe. Tudo é abalançar-se a 'imaginativa aos
ventos da conjectura. Não deve porém rejeitar-se a
hipótese de que no longo espaço que mediou entre as
Duas Partes Cervantes pudesse ter evoluído. Sempre os
indivíduos sofrerão um acendramento espontâneo e sur:..
do, que se opera em conformidade com a índole, nestes
pousios cronológicos , tanto no que respeita à inteligência
do mundo exterior como à disposição do eu. Sancho, se
não mudou de pele como as cobra� ruças que comiam os

234
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

ratos nas saibreiras da Mancha de Toledo, deixou de ser


palonço. Quando o é, fá-lo de maroto. Sabe rifões como
se houvesse estudado Virgílio Polidore. Parece a falar
um acertado doutor. Toma-se amiudadas vezes dessa
ronha, peculiar aos equilibristas da vida das relações,
fértil em cortesias e reticências, e é interessantíssimo.
Outras vezes prevalece-se da superioridade física que lhe
dão as circunstâncias em raptos de cólera, e é um ter­
rível filisteu. Então, saltam ao ar todas as idolatrias.
Numa palavra, refinou, como se se houvesse de"sembur­
rado em Salam.anca, o próprio amo lho diz, esquecido de
que saíram poucos dias antes do Eido. Mas o calendário
para Cervantes não existe. Peça-se-lbe contas de tudo,
menos do descompasso com semelhante monstro.
Ora também este Sancho podia ter passado pelo lu­
minho brando do Santo Ofício e requintar para o que é,
Salomão com sapatilhas de trança. Mas ao justo não
sabemos nada. O certo é continuarmos a vê-los ir por
toda a parte, entrarem muito anchos em palácio e ca­
bana, menos na igreja. Nunca para eles soou o dobre
alegre dos campanários a chamar para a missa domini­
cal. Talvez porque daria muito nas vistas, e para um
. cristão-velho, repetimo-Io, não é grandemente indispen­
sável. Tão-pouco amo e escudeiro, para efeitos de come­
zaina através das emaranhadas andanças, se preocupam
com dia de guarda ou de jejum. Comem a qualquer hora
e dia cebola ruda ou cerdo. Não há também maneira de
ver os sacerdotes cervantescos. que não são poucos , preo­
cuparem-se com ir celebrar o santo sacrifício da Missa •.

ler as Horas Can6nicas, ou sentarem-se e erguerem-se


da mesa entoando as proverbiais graças ao Senhor que
dita a abstinência e as épulas. E que tem lá isso que se

2 35
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

conduzam como ateus impensados se o cerne é católico


ferrenho?
E possível que tenha havido de parte do Santo Ofí­
cio para com Cervantes mais do que simples admonenda,
de que nos fizemos intérprete gratuito, mercê do quê
hesitasse uma e muitas vezes no teor das peripécias que
ilustram a terceira surtida. A prova está que Avellaneda,
que parece achar-se ao corrente dos problemas literários
de Miguel de Cervantes, se prevalece de qualquer facto
inibitório para continuar com o D. Quixote por sua conta
e risco, não se dispensando de dizer que parte do prin­
cípio que considera o silêncio dele como equivalendo a
uma desistência.
Acresce que é 56 depois de lhe chegar às mãos a con­
trafacção , que Cervantes se dói do acicate do plagiário
e larga à desfilada, sacrificando quem sabe lá que pla­
nos, deixando outros mal referenciados ou em seu esfu­
minho, atrav·�s de desfiladeiros e passos de que apenas
a intuição maravilhosa o previne do trambolhão esba­
forido.
Ah, se um dia os arcanos da Inquisição espanhola
se abrissem como as furnas nas plagas do Mar Morto !
D. Bernardo de Sandoval, arcebispo de Toledo .e
grande inquisidor, que Vicente Espinel chama o pai dos
pobres e gostava de ler o seu nome em letra redonda,
tomara, não se sabe bem por que abendiçoada carga de
água, Miguel de Cervantes debaixo de protecção. Quando
a Segunda Parte estava pronta para entrar no prelo,
indicou o capelão, o bom licenciado Márquez Torres ,
para revedor do livro. Bem sabia este que o amo tute­
lava o autor, antes mesmo de o ver celebrado 'no prólogo
ao lado do conde de Lemos. Por isso mesmo começou a
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

desonerar-se da incumbência com despacho, soprado seu


zelo por zéfiros favoráveis. Todavia foi estriando as fra­
ses que lhe pareceram equívocas ou arriscadas, pondo
colchetes em tal e tal passagem , que poderiam parecer
acintosas à primeira leitura, chamando a atenção com a
mão desenhada e indicador em riste para um período e
. às vezes 56 para uma palavra. E o manuscrito teria sido
devolvido ao autor com a benévola advertência de que
não perdia nada passando pelas partes assinaladas um
esmeril ligeiro.
D. Bernardo de Sandaval, inopinadamente, saiu a
defender Miguel de Cervantes onde ao revedor parecera
que havia menos obséquio e correcção em episódios ou
dizeres que contendiam com a letra e doutrina da Igreja !
-Repare bem, meu padre-mestre, Miguel de Cer­
va.ntes não aprendeu teologia. A que sabe é de ouvido.
Foi soldado , podia andar lá por sabatinas ! ? Não fez
reparo à mão esquerda do pobre homem, quase despro­
vida de movimentos ? ! Foi duma arcabuzada em Le·
panto. Em Lepanto, bem ? Refrega rija . . .
- Saiba Vossa Excelência Reverendíssima que só
aspei certos lugares que podiam dar no goto dos zelotas.
Não lhe disse mesmo para suprimir, mas emendar. . .
corrigir aqui e além. .
- Pois está bem. O padre-mestre não havia' de que­
rer que um arcabuzeiro soubesse dogma como um ecle­
siástico ! Onde o autor cincou foi por ignorância ou
descuido.
-Não duvido, mas tive receio que a Mesa, a que
.felizmente Vossa Excelência Reverendíssima preside ,
lhe pusesse dificuldades, senão embargos . Alguns dos
senhores ministros ficaram fulos com a Primeira Parte.

237
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

-Homem de Deus , é um livro de recreação; o her6i


é um maníaco; dá-se-lhe carta branca !
O capelão calou-se e, satisfeito com aquele silêncio,
volveu o cardeal:
- Quer que lhe diga, em Espanha há um critério
muito particular em matéria de literatura. Entendemos
que esta actividade devia ser reservada aos eclesiásticos
e, quando aparece um leigo, ficamos de sobreaviso e a
olhá-lo de soslaio. Tínhamos esta lavra como nossa e
não gostamos da intromissão. Estes Cervantes, Salas
Barbadilho, Mateo Alemán, mesmo Quevedo, não são
os perigosos . Perigosos são, aqui para n6s, os Frei Luís
de Le6n , os Martinhos de Azpilcueta, quando descam­
bam. Então, sim, lá vai tudo quanto Marta fiou. Temos
louça partida. Aqueloutros riem - se às vezes de n6s ?
Deixe rir. Quenquer não é tolo ! Redobraremos de
cuidado com nossas reverendíssimas pessoas. Bem vê. o
inimigo não é o escandaloso, mas o escândalo.
Deu dois passos pela câmara , foi à janela, voltou :
- Abarrotamos de literatura mística . . . escolástica,
comentários e apostilas . . . aos livros de Esdras, de Enoch,
Paralipomenon . . . Para contraste surgiu a aluvião dispa­
ratada das novelas de Cavalaria. Cervantes e outros
trazem agora o antídoto. Deixe-mos, ainda quando inova­
dores, senão morremos asfixiados em silogismo e faça­
nharia de três em pipa .
Riu-se ; riram-se ambos consoladamente e satisfeitos
com a consciência.
O cardeal pôs-se a contar em voz alta os escritores
espanh6is de índole sagrada. Eram. desde que se escre- ·
via o castelban9. quase todos . Foi dizendo pela ordem,
que era erudito � bem lembrado:
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

-Juan de Mena, Juan de Matorel, Tirso de Molina,


Calderón, Baltasar Graciano, Lope de Vega . . . Garcilaso
de la Vega, Gôngora . . . Argensola . . . Guevara . .
.

-Sim, os maiores abriram coroa.


-Os que a não abriram são excepção, pequeníssima
excepção. Não se fala naqueles para quem a ordenação
se conglutinou com o Dome como Soror Teresa de Jesus,
P." Feijó, Frei Luís de Granada, Frei Luís de León . . .
Mal empregada cabeça a deste agostinho. Custou-lhe a
emendar-se . . .
- E então,DO passado, o Arcipreste de Hita, Alonso
de Erzila, António de Nebrija, Fernando ReITera . . . To­
dos , todos tinham tomado ordens, Excelência Reveren­
díssima.
-Sim, todos . Quer dizer, neste verdadeiro rosário
de ébano há duas ou três contas que luzem. E das boas ,
cristal de rocha, hem ? !
- E justo dizê-lo. Mas uma andorinha, duas, três,
não fazem a Primavera.
-Mas anunciam-na. Deixe-mas vir. Não lhes meta
medo ! Percebeu-me , não percebeu ? Pois seja indulgente
com este Miguel de Cervantes, padre-mestre . . .
O licenciado Francisco Márquez Torres, capelão es­
moler do arcebispo e seu mestre de pajens, deliciara-se
com a leitura da Primeira Parte , tomando como facécias
veniais as partes gagas em que intervinham curas e pre­
bendados. Estava de antemão predisposto a acolher com
° melhor despacho a Segunda Parte do Engenhoso Fi­
dalgo. Por isso, quando Miguel de Cervantes lhe trouxe
o manuscrito, expurgado e limado,� foi mais pro forma
e regalo que voltou a lê-lo do que com o propósito de
verificar até que ponto haviam sido tomados em conta

2 39
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA NÇA

os senões d e revedor. Estava escrito naquela caligrafia


miúda e cursiva , muito regular, de Cervantes, nada
parecida com a letra notarial que se usava ao tempo e
lembrava evoluções de anelídeos. caligrafia para tras­
ladar a letra de forma, na qual o licenciado cortava
como n'água. Muito deferente, de sorriso nos lábios , er­
gueu mão amável, como a desempenhar-se de tarefa mais
que .perfunctória, para o original:
-Louvo-o, Sr. Miguel de Cervantes, pelas opor­
tunas . . . como hei-de eu dizer J oportunas afirmações que
fez na Segunda Parte do seu livro. Louvo-o e congra­
tulo-me. Assim, nem zoilos nem Aristarcos lhe metem
dente. Muito de longe em longe, lá escapou um ou outro
grão de joio, no meio da meda do pão joeirado. Mas,
por mim, não lhe ponho 6bices . . .
Pôs-se a folhear o manuscrito:
-Sim, senhor, esta declaração de Sancho Pança no
capítulo III-para ser bem, bem, havia de vir no I,
no pórtico, mas compreendo que a disposição das mat�­
rias não lho permitisse -: A fé de buen escudero que si
hubiera dicho de mi cosas que no fueran tnuy de cris­
tiano viejo, como soy, que nos habían de oír los sordos.
Esse Avellaneda é uma aberração. Sabe-se já quem pôs
'
tal máscara ?
Cervantes correspondeu ao sorriso, lisonjeiro para
ele, depreciativo para o contrafactor, franzindo os lábios .
- Sabe, mas não quer dizer. Não diga, não diga !
Lá .em as suas razões . O dito de Sansão .Carrasco vem
no bom ensejo a reforçar, logo a seguir, a afirmação
de Sancho, quando louva com justos encómios a Pri­
meira Parte desta grandiosa história: . . . en toda ella no
se desct.w't'e. ui por semejanza, una palabra deshonesta
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

ni un pensamiento menos que cat6lico. E este remate,


de parte do próprio Cervantes, é conclusivo : . y los
. .

historiado-res que de mentiras se valen habían de se1'


quemados, como los que hacen moneda falsa.
Cervantes estava imóvel diante do licenciado, reco­
nhecendo nele um homem de bom fundo, mas penetrado
do horror das responsabilidades, porque não obstante
D . Bernardo de Saudaval ser o pára-raios, há viver e
morrer, e o 3.Tcebispo podia faltar de um momento para
o outro , que era homem gasto e de idade provecta. Cer­
vantes ia iazendo estas considerações Íntimas no espelho
de alma que era a cara daquele padre, róseo, redondinbo
e optimista , e saboreando a sua vitória à Pirro, sem dizer
palavra.
- Este capítulo VIII é uma autêntica profissão de
fé que o absolve de qualquer interpretação err6nea que
tenha cometido da doutrina cristã , ou, mesmo. de lance
menos irrepreensível. Vou mais longe, alcançou com ele
alvará de correr. O mundo é emanação divina, bem en­
tendido, e o santo preleva em mfrito a qualquer criatura
humana, seja qual for, perante Deus e os homens de
são entendimento. Muito bem, muito bem ! Más vale ser
humilde frailecito de cualquier orden que sea, que va­
liente y andante caballero. Receberam completo desa­
gravo os nossos irmãos em S. Bento , que o louco em seu
arremesso destravado arrancou ao selim das mulinhas.
Muito bem ! E quer que lhe diga, a partir deste capítulo
Sancho espiritualiza.se. Mas a metamorfose está feita
com muita arte e mal se dá conta. O labrego torna-se
esperto, arguto, e com a sua dose de humor. O Espírito
Santo desceu sobre o camp6nio, como olim sobre os rudes
pescadores de barbo de Tiberíade. Basta ouvi-lo declarar

241
,6
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

para o compadre Cecial, sinal de que lhe caíram as esca­


mas dos olhos : aqui para nós, que ninguém nos ouve,
estou persuadido que o meu amo tem pancada na bola.
D . Quixote é que permanece rígido e hierático, talvez um
pouco mais cordo em matéria de alucinaçõe� visuais.
Estas passam a ocorrer-lhe no domínio da consciência.
Perfeito ! O seu her6i locupleta-se de ouro psíquico, do
melhor quilate.
Cervantes mantinha a mesma cara dura, sem ser
desaprovativa nem inconsolada. O bom clérigo tocou à
frente:
-No desafio do cavaleiro da Triste Figura aos leões
-de que desconchavo o Sr. Miguel de Cervantes se
havia de lembrar ! -aplaudo-o pelo modo como emen­
dou a mão' na inversão das pessoas que entram no jura­
mento: encomendándose a Dios de todo coraz6n, y luego
a su seJlora Dulcinea. . . Sim, meu amigo, primeiro
Deus, primeiro o Primeiro. Foi este um dos pontos que
na parte publicada deram no goto dos senhores inquisido­
res. A edição de Lisboa, para que me chamaram a aten­
ção, amputou a passagem. Reparou ? Convenço-me que
se trata de uma inadvertência da sua pena, mas assim
é que está certo. ,
O licenciado foi folheando. Pegavam-se as folhas.
Passou o polegar pelos lábios . Cervantes ouvia como
um menino de escola a quem emendam o tema.
-Nas bodas de Camacho é que subsiste um resto de
incompreensão. Porventura não me expliquei com cla­
reza suficiente. O sacerdote não podia, nem devia inter­
vir naquela farsa, ministrando aos amantes a bênção
nupcial. É uma cerimónia que exige os seus resguardos
e prevenções. Mas, em suma, no domínio da bambochata
N O C A V.4 L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

foi mais uma licençazita. Estamos muito longe do que


se passou na estalagem do Canhoto-foi lá, não foi
todo aquele pandemónio ? - com casamentos anulados,
uns de pé fresco, contraídos outros na ponta da unha.
Oxalá que não reparem no restinho de despejo que ali há
em matéria de tão delicado sacramento.
Volveu a folhear. Pôs mais saliva no dedo:
-Dou conta que lhe custou a sacrificar o capítulo
consagrado ao ermitão e à ermitoa, capítulo XXIV. Vêem­
-se os restos da cena como as pedrás no alicerce de uma
casa demolida. Estes servos de Deus não são entida.
des canónicas por quem a Igreja quebre lanças e se
responsabilize. Vivem um tanto à sombra da Igreja, mas
a Igreja não pode expungi-los do seu grémio, em des­
peito dos abusos e até escândalos a que têm dado pre­
texto. Andou muito bem. Quem semeia ventos, colhe
tempestades. Aqui , para ter pilhéria, só pondo a soprar
o vento da impiedade.
Tornou a folhear, a folhear, retrogradou, parecia
andar à procura, esgarrado ou hesitante . E proferiu,
deixando entender que saltara um, dois, três valadozitos,
para se deter neste :
- Os capítulos na Báratária são estupendos . Cheios
de sainete e humanidade. Já tive ocasião de lho notar,
mas agora que poliu o trabalho, felicito-o. S6 lhe esca­
pou uma pequena jaça, a meu ver, na qual ninguém
dará topetada, esperemo-lo. Aceita-se que , tratando-se
duma entrudada, Sancho Pança seja conduzido em
grande pompa à Catedral a dar graças a Deus ?
Fitava-o em silêncio e , perante a atitude que o licen­
ciado houvera até ali, mais encomiástica que recrimina-

243
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

tiva, Cervantes decidiu-se a calar a lança em defesa da­


quele passo:
-Mil perdões, trata-se duma paródia, mais que
duma entrudada. Mas paródia com um sentido moral
manifesto. Tudo é imitativo e, em harmonia•. pareceu-me
fugir à realidade passar em claro uma prática, tão pri.
macial em casos reais idênticos. Se = J.o figurasse no
programa este número, não seria caso para me lançarem
em rosto o lapso por igualmente tendencioso ?
-rerá razão, terá razão, Sr. Miguel de Cervantes.
Mas ainda que houvesse falta de respeito no episódio,
estava compensado .pelos seus juízos sobre o banimento
dos moiriscos. Sim senhor, Vossa Mercê tem pena deles,
mesmo muita pena, mas não pode deixar de concordar
com tão sensata providência . Os moiriscos, a crescer
como cresciam, acabavam por reconquistar a Península.
Ê uma gente danada. Depois, trabalha, trabalha sem
relego nem medida, e toca a amealhar. Daqui a pouco
todo o tesouro de Espanha lhes estava nas unhas, como
o senhor teve ocasião de frisar algures. N6s, os espa­
nh6is, somos mais contemplativos, gostamos de guardar
o dia de Deus e não nos repugna acreditar na bondade
do Criador, que, se nos lançou ao ml1ndo, há-de prover
à nossa subsistência mesmo que sejamos desajeitados
ou nos envergonhe, não digo o trabalho, mas o muito
trabalho. Aplaudo, aplaudo. E , sabe, chama-se ao que
diz tomar um caldo de galinha ortodoxa. Agora, peguem­
-lhe com trapos quentes. Afinal há-de ter dado conta que
se repasso o seu manuscrito é menos com o prop6sito de
lhe fazer censuras do que louvá-lo. O censor deixou o
lápis na gaveta. Digne-se Vossa Mercê ver em mim um
admirador e amigo como é sua Excelência Reveren-

244
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

díssima o Sr. Cardeal D. Bernardo de Sandava} y Rojas,


de quem sou indigno capelão. Já agora deixe-me dizer­
-lhe que, se apreciei muito a Primeira Parte, gosto muito
mais da Segunda. Este voo no Cravilenho é uma inven­
ção patusquíssima. Não digo original porque já antes
de a sua imaginação conduzir os her6is pelas esferas inte­
restelares , por lá andaram outros. Mas, ai de 'n6s, nil
novi sub sole.
- Oxalá que os meus lTIlDUgos não vejam nisso
achincalhe ao voo verdadeiro, que Deus reservou às
aves e a os anjo& que o adoram- murmurou Cervantes,
com um sorriso muito subtilmente irónico, que o licen­
ciado pareceu não notar.
-Não senhor, não senhor. Muitas fábulas da anti­
guidade se servem deste artifício, desde Sísifo. Então os
cavaleiros andantes, que montavam em hipogrifos e em
toda a casta de génios alados ? Vossa Mercê sabe-o me­
lhor do que eu, que é esta a sua seara . . .
- Sim. o meu livro é um romance de Cavalaria às
avessas, bastante de pernas para o ar. Com duas pena­
das aqui, outras duas al�m , ficava um émulo de D. Ci­
f'ongílio da Trácia-e ria um riso faceto, muito leve­
mente toldado de uma sombra de melancolia.
-Não é essa a minha opinião, mas, em suma, Vossa
Mercê lá sabe. Em que livros de Cavalaria há situação
como a que ocorre no palácio do duque, ao mesmo
tempo glorificação da nobreza, recreio dos leitores e
exemplo para as almas ? Mas já que atingimos esta al­
tura da novela, não quero deixar de patentear-lhe fran­
camente o meu modo de ver num dos curiosos pormeno­
res da acção que se passa no palácio. Espero que nin­
guém queira tecer, nem decerto foi essa a intenção de

245
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

Vossa Mercê, com a cena d a ressurreição de Altisidora


uma sátira à credulidade cristã, exuberante em factos
similares e de que o Flos Sanctol"um está cheio. O burro
de Sancho, arreado com sambenito e carocha, bem como
o próprio Sancho indumentado com tal farricoco, posto
que noutra emergência, poderiam na interpretlição dos
malévolos representar uma caçoada ao milagre e conjun­
tamente ao guarda-roupa do Santo Ofício. Mas, nem
que o Sr. Miguel de Cervantes mo jurasse, eu acredi.
tava. Há muito que secou em lábios peninsulares, rus­
tioos ou sapientes, a mais pequena nota de irrisão ou
crítica ao Santo Tribunal. Os senhores inquisidores têm
a mão dura, têm, mas justiceira. Não há mais heresia
em Espanha e nada de extra sacra meiere. Portanto,
uma coisa ou outra eu tomei no seu livro como encontros
ocasionais do gracejo e não achincalhes das coisas da re­
ligião.
-Tenho o maior rçspeito pelo tribunal do Santo
Ofício. Quantas vezes não o digo e se depreende no de­
correr da novela ! ? - respondeu CervantesJ alma assus­
tada como incauto que pôs os olhos no pitão. -Digo-o
bem claramente a propósito do mono sábio e, numa es­
pécie de situação análoga, de comentário à impostura da
cabeça falante de António Moreno. Tenha a bondade
de ver. . .
- Apontei esses passos, pois não apontei ! ? Não
eram tais portelas que eu saltava em claro-respon­
deu o licenciado, dobando as folhas sobre a mão esquerda
entalada no manuscrito. Cá está . . . habendo declarado
el caso a los seiiores inquisid01'es le mandaron que la
deshiciese y no pasase más adelante porque eL vulgo igno­
rante no se escandalizase. Sim, senhor, chama-se san-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

grar-se em saúde e procedeu com muito tacto. De resto,


todas estas passagens menos obsequiosas ou de redacção
precipitada ficam ressalvadas pela postura de D . Qui­
xote em casa do duque . Estou a vê-lo alto, com monteira
verde na cabeça, camândulas à dependura, palmilhar o
corredor silencioso, ao cabo do qual , para lá duma porta
entreaberta, se ouve o leve arfar da vida castelã, e com
ademanes de velho fidalgo ir beijar os dedos, em que
rutila uma safira das índias, da preciosa duquesa. O seu
D. Quixote é cristão e morre cristão. Confessa-se à hora
da morte , mas não precisava de o fazer, em sua alma
inocente e sopràda ao alto céu pelas mais louváveis
intenções. Que literatura recomenda ele aos espíritos
do século, distraídos com a ostentação, a vaidade, a
poesia sensual, que não seja a do livro da Luz del Alma,
um livrito de devoção , embora assaz insignificante ?
Por mim, não lhe acoimo todas estas transfigurações
e só deploro que tivesse medo do fantasma de Avellaneda .
Miguel de Cervantes reconheceu afinal que estava
perante um letrado e, amigo sincero, e antes de pegar
do manuscrito para ° levar ao editor, apertou nos braços
o padre-mestre que havia de escrever na aprovação, con­
doído da pobreza manifesta do novelista, pondo-o na
boca do embaixador de França: Pues a tal hombre no le
tiene Espana muy rico y sustentado deZ erario público !

Miguel de Cervantes Saavedra era um velho cató­


lico, meio ralaço quanto a praticar os actos do culto,
o que lhe facultavam seus filactérios de godo, .e ver­
sando os casos d a Santa Inquisição com uma sem­
-cerimónia doméstica, que significava ser aquele um

247
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P/I N ÇA

assunto julgado e aceito nos seus hábitos e consciência.


'.€ evidente que" semelhante atitude de um dos homens
de letras mais notados no primeiro quartel do século s6
podia aprazer, como condicente, à política da mesma
Inquisição, para não dizer à sua ética. Em verdade a
terrível alçada, antes religiosa que profana, pois que o
seu hibridismo, mais aparente que outra coisa, provi­
nha precisamente da confusão de funções que ao tempo
caracterizava o poder, com o que se têm logrado os sim­
ples, ou aqueles que não desejam mais que ser logrados,
tinha-se identificado com o ser espanhol. Uma perfeita
anastomose. Os grandes homens não se envergonha­
vam, como Lope de Vega, de assoalhar a dignidade de
familiar. Rodrigo de Cervantes à sombra do pai, que era
juiz no inventário dos judias presos e penitenciados,
desempenhou, ao que se depreende, qualquer cargo no
tribunal do Santo Ofício de Córdova. O filho não era,
pois, alérgico à instituição. O espanhol, na generalidade,
acabara por considerá-la tão consubstancial ao curso da
vida e necessária como hoje no nosso mundo policiado o
papel mundificador de uma piscina. A profissão, em si,
não provocava nenhuma espécie de repulsa táctil ou es­
piritual dos seus executantes para quem a não exercia.
Era como hoje a polícia secreta, que nàda tem de repug­
nante para o espanhol. O grande senhor castelhano teve
alguma vez nojo de se deitar na mesma cama em que
dormia o leproso? O esbirro, como, aliás, o algoz que
manejava o cutelo ou o carrasco que puxava à corda
sentavam-se à mesa comum e eram todos compadres e
saciavam. Escrupulidões destas, tudo subepidérmicas,
nunca pungiram a valer o espanhol. Tais e tais agen­
tes do mester vil ou execrando, cumprido o acto, depois
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

de lavar as mãos ensanguentadas ou fecharem a vítima


no ergástulo, ficavam dealbados para a vida das rela­
ções. No Rujián dichoso a Inqui�ição é um pano de
fundo tão natural como o de uma regedoria 'qualquer.
O criado do inquisidor é simultâneamente rufião e fâ­
mula do paço episcopal. O inquisidor paira acima deste
novo hermafroditismo como uma espécie de generosa
e liberal paternidade. Dir-me-ão que a pessoa carece de
qualquer medula', pois que na q.ualidade de matante
apenas se lhe vê desembainhar a adaga de ganchos e
como chulo e birbante recusa castamente as mulheres
casadas que se lhe oferecem, embora das melhores lascas.
E verdade. Tudo isto é comédia, a má e inverosímil
comédia do tempo. Mas o tema, a maneira de tratá-lo
são argumentos certos a favor da proposição. O tribu­
nal do Santo Ofício e o ser espanhol completavam-se.
Pergunto-me se o espanhol, mormente o espanhol da­
quela época, aventureiro, proselitista católico, senhor
dum eu que assoberbava o universo, seria perfeito sem
a Inquisição. As alusões à Inquisição, no D. Quixote,
nas comédias e entremezes. são bastante frequentes e
traduzem esta naturalidade, este estado de interpene­
tração que seria inexplicável doutr:o modo. Não há facé­
cia, nem desprimor, nem insinuaçã6 da parte de Cer­
vantes quando se refere a ela. É o tu cá, tu lá das velhas
intimidades. Chama-se tratar um negócio em mangas
de camisa .
Mas, posto assim fosse , o espírito da Inquisição
transparece em todas as manifestações da vida espiri­
tual espanhola. Através da Primeira Parte do livro de
Cervantes, deparam�se-nos numerosas passagens em" que
é bem translúcida a cautela , muito calva para ser in-

249
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

voluntária, do escritor. Depois, n a Segunda, o tactea­


mento é ostent6rio. Cervantes leva um bordão em pu­
nho. Vislumbra que lhe pode acontecer dar tropeçada
DO caminho. Assim é que, defendendo-se no prólogo ao
leitor de menoscabar Lope de Vega Carpia, que não
nomeia, acrescenta com repercussivo respeito : . . . Ora
sendo assim, como em verdade é, por que diabo é que
eu havia de tomar de ponta a um sacerdote, demais a
mais se se dá a circúnstância de ser familiar do Santo
Oficio'! Quer dizer, não teria outra exclamação se, coo­
duzindo-o os passos até a jaula de uma fera num jar­
dim zoológico, desse de cara com um aviso a pedir pru­
dência: sim, bem vejo que há perigo !
Não sei bem que malícia. tão discreta que se esvai
em fumo ou gaiatice solapadaJ antes que desabroche em
irrisão, transparece das palavras que põe na boca de
D. Quixote a propósito das artes de adivinho em que era
catedrático Maese Pedro, para gáudio e confusão dos
palosanos. Admira-se que ainda o não tenham denun­
ciado ao Santo Ofício, que, metido ao torniquete, havia
de sacar do bucho para fora de quem é que recebeu tal
virtude. A mesma antecipação, não menos respeitosa e
subtil. denota ao referir-se à cabeça encantada, que pos­
suía Ant6nio Moreno. impostor reinadio. . .
Admitindo que todas as referências à Inquisição en­
tram na ordem de ideias que acabámos de emitir. e que
portanto são desintencionais, não deixa de se pôr o pro­
blema: Que amplitude tomaria a personalidade de Cer­
vantes sem estas inibições e condicionamento ? E , for­
mulando-o, estribamo-nos em razões. não apenas de
ordem presuntiva. mas real. Porque a Inquisição lá apa­
rece com mão monit6ria a rasurar e a fazer a sua re-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

serva, posto que breve. Que ele, a certa altura, apenas


premonido ou escarmentado, cuidou de precaver-se com
pára-raios idóneo está não s6 na homenagem que presta
a D. Bernardo de Sandaval y Rojas (veja-se uma forma
de reverência na representação do cardeal inquisidor que ,
sob o Dome de D. Telo de Sandava! , contracena no Ru­
fián dichoso) como no pára-raios de que pretendeu
armar-se em El viaje al Parnaso, com dedicá-lo a D. Ro­
drigo de Tapia, filho de D . Pedro de Tapia, ouvidor do
Conselho real e consultor do Santo Ofício.
Não obstante , Rodríguez Marín, arremetendo COD­
tra os esoteristas de ((cáscara amarga)) que se empenham
em fazer de Cervantes um furibundo livre-pensador e
inimigo acerbo do trono e do altar. formula: alguma vez
Cervantes foi perseguido pelo Santo Ofício ? E, pas­
sando quitação ao temeroso tribunal, confessa que no
Index auct01'um danatae memo1'iae, ordenado por Fer­
nando Martins de Mascarenhas , bispo do Algarve e in­
quisidor geral - Lisboa, 1624-se apontam , sim, à ex­
purgação algumas insignificantes passagens do Enge­
nhoso Fidalgo. Consolasse-se por,�m a alma de Cervantes
lá no assento etéreo, que estava bem acompanhado na
censura. Nada menos de Arias Montano, Fr. Luís de
León e outros tinham passado por aquelas grelhas. Por­
tanto não havia grande razão de queixa. Com tais pr6-
ceres era honra ir para o cárcere ou para a caldeira de
Pêro Botelho, e o Santo Ofício de Lisboa cometera uma
distinção ou, melhor, um pretexto à distinção.
Estas mutilações que se encontram no EngenhosO'
Fidalgo, dado à estampa em Lisboa por Pedro Crae;s­
beeck. 1605. abrangem a figuração de Dulcineia, feita
a Vivaldo, a longa cena na estalagem entre Maritornes
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

e o almocreve, presentes Quixote, Sancho e estalajadeiro,


a rasura da palavra santíssimo. empregada a propósito
do negregado bálsamo, que levou Sancho a vomitar a
cama das tripas e não era mesmo nada gratuito assim
designar, pois que sobre a vasilha da deoocção fora
rezando passante de oitenta padre-nossos e outras tantas
ave-marias, salves e credos, cada palavra acompanhada
de uma cruz, que a mão ia traçando, consecrat6ria. Su­
primiu mais o revedor inquisitorial a encomendação
que, ao avançar contra os pisões , D . Quixote fez à sua
senhora; suplicando-lhe que em aquela temerosa jornada
e empresa o favorecesse, e simultâneamente a Deus
para que não o olvidasse, ficando só Deus o suplicado.
Corrigiu ainda o texto quando D. Quixote , ao peniten­
ciar-se na Penha Pobre, à maneira de Roldão, cortou
uma tira à fralda da camisa e , dando-lhe nós, fez o
rosário por onde rezou o seu milhão de ave-marias.
Suprimiu mais a cena inteira, bem emocionante e origi­
nalíssima por sinal, da sedução de Lucinda. Ao todo
uma dezena de páginas, revelando-se deste jeito a pudi­
. bundaria de Mascar;enhas e, impllcitamente da terra-mãe,
nateiro em que floresceu esta casta açucena. Realmente,
onde o catonismo espanhol não teve a coragem de pas­
sar o lápis verecundo, vieram os nossOs e bifaram todas
estas belas páginas eróticas , é provável que depois de
ficarem a mascar nelas como os rajás no bétele.
Rodríguez Marín congratula-se, ao falar da censura
do Santo Ofício, q·ue a respectiva Mesa não era formada
por compatriotas. Sem embargo do seu catolicismo
discreto, não se julga desobrigado de acrescentar que,
além da mutilação praticada pela Inquisição portuguesa,
o tribunal espanhol dr.'. Fé não foi além da sencilla nota
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

que se encontra incluída pela primeira vez no suple­


mento do índice expurgatório do cardeal Zapata, Sevi­
lha, 1632: Miguel Cervantes Saavedl"a. Segunda parte
de don Quixote cap. 36, al media borrese las obras de
caridad que se hazen tibia e floxamente no tienen merito,
ni valen nada.
Acrescenta o erudito comentador que tal elemento
da proposição estuvo bien borrado. Mas estará? De­
baixo do ponto de vista teológico'e de todas as maneiras ,
as obras assim praticadas algo valem, posto não valham
o açafate da Rainha Santa.
Numa segunda edição, havendo procedido a exame
de consciência, é o mesmo que se pergunta, observada a
sentença a melhor luz, se acertou quando disse que se­
melhante passagem estava bem riscada. E, em apoio
da sua dúvida, cita diversos tratadistas, anteriores. a
Cervantes, Fr. Francisco de Osuna, Fr. Alonso de
Orozco e Fr. Jer6nimo Graciano, colunas tersas da Igreja
espanhola, como havendo emitido juízo análogo. E, por­
que para um erudito não há como topar estas monumen­
tais frioleiras, muito mais que em reforço dos textos
sagrados lhe surgiram textos laicos-Mira de Amescua
e Rojas Zorilla- para ele as sete pedras de David, vá
de atirá-las à fronte de Golias. E termina o c;elebrado
cervantista : Não atino em que pecou Cervantes para
mandarem riscar no seu livro um conceito que vem C01'­
rendo como lugar-comum desde S. Paulo para cá.
Qualquer espírito não dogmático virá declarar que o
cardeal Zapata tinha carradas de razão contra o ap6stolo
e toda a ilustre caterva de exegetas, pregadores e autores
profanos de Espanha, que trazem sempre um pé no
divino.

253
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

Rezar com o coração ou mexer apenas com os lábios .


não importa. O que importa é enfiar as ave-marias e
patef's, obrigando-se o devoto ao sacrifício de articular
palavra por palavra, mesmo que não preste sentido ne­
nhum ao que lhe passa pela boca ou pela memória i dar
o recado sem cuida"r de saber do seu objecto; pôr o moi.
nho a andar mesmo que não caia nenhuma farinha da
moega. Os tibetanos tinham deste fenómeno uma noção
psicológica altamente edificante. De resto já dizia Pas­
cal: 'Vai molhando a mão na pia de água benta que a
fé há.de vir. Eu conheci um seminarista que, leviano
como era e agarotado, ao rezar a ladainha em coro, em
vez de responder à invocação como os mais: ora pro no­
bis, lançava à boca cheia, pulmões inflados : farrapos
1WUOS ! farrapos novos ! cuja tónica em gama alta se con­
funde com aquela. Um dia que houve confissão geral
teve rebates de contrito. O confessor, que não era ne­
nhum jansenista e lhe apreciava a garrulice e entu­
siasmo juvenil, suficientemente esperto para abarcar o
que há de versátil e inconsequente nestas rapaziadas,
depois de uma ligeira reprimenda à conta da falta de
seriedade, absolveu-o dizendo:
-Não repitas. Ora pro nobis ou jQ.rrapos novos, que
representam igual esforço e se parecem até na conso­
nância, para o caso são a mesmíssima coisa. Anda lá !
Reza uma ave-maria para remissão da t\1.a culpa e vai
em paz.
Para os lamas o formal é tão importante como a
essência do próprio dogma. No caso do texto controver­
tido, afigura-se-nos que Cervantes, S. Paulo, e os freires
todos que Madn traz em reforço não tinham nada que
denunciar como de má ética uma prática que resta con-

2 54
N O C A VA L O D E P A V C O M S A N C H O P A N Ç A

finada à vida íntima da fé. Um te6logo da Universidade


Gregoriana dirá que é sempre melindroso ventilar estes
e quejandos temas e que vale incomparàvelmente mais
passar adiante, deixando-os em suspensão ou supondo
jgnorá-Ios.
Pela forma soberana de ver o mundo e seus fenó­
menos, sempre para lá do estabelecido e dos conceitos
consagrados, muita gente se maravilha que D. Quixote
obtivesse alvará de correr. Para alguma coisa haviam
de servir os padrinhos potentes que soube propiciar à
sua causa, o conde de Lemos e D. Bernardo de Saudaval
y Rojas. Além disto, o tom familiar, jocoso, fora de
contumélias, sem partir de premissas nem estabelecer
princípios, garantia-o de uma imunidade ao punção mais
ou meDOS grosseiro do contrastador inquisitorial e ecle­
siástico. A estas circunstâncias e ao facto de se tratar de
um doido que ejaculava doutrinas estapafúrdias se deve
terem passado em julgado, suponho eu, na Espanha
religiosa até a medula e dogmática até a ferocidade,
muitos lugares eivados de erasmismo e livre exame.
XII
o D. Quixote de la Mancha de A vellaneda. Quem
seria o falsáriof Exame sucinto do desafoTo. Con­
dene-se pelo mau gosto; a deformação dos carae!e-
1'es; a truculência beduína; a falta de curialidade;
a indelicadeza nata e agressiva; o escatológico,' o
pito-resco f01'jado a martelo; o atTaiçoamento da
natureza e a incompreensâQ da ",lida. D. Quixote
desquixotou-se e Sancho Pança é mais torpe que o
bobo de C&ria. Pela esteira de outro fácil é ruma1'.
A'Vellaneda permanece catraieiro. A sombra calu­
niada de Quevedo. Como se pode confundir a fina
prata com o barro mal cozitkJf'

UEM. vivo Cervantes, compôs e publicou aquela

Q Segunda Parte do Engenhoso Fidalgo que saiu


em Tarragona sob o pseudónimo do licenciado
Alonso Fernandez de Avellaneda, natural da vila
de Tordesilhas ? O criador do D. Quixote, que devia
saber muito bem quem fora esse plagiáJjo. tão presumido
como malévolo. limitou-se. não se descortina a que título,
respeitos. intimidação, a dizer que era aragonês. Mas
disse-o"bem acentuadamente por umas três vezes. Quanto
à naturalidade PTov5ncial parece não haver dúvidas. posto
alguns bi6grafos vejam nisso ainda um processo de iludir
a identificação e passem adiante. Em reforço do seu
assertç. notou Cervantes que no suposto Avellaneda se
encontravam certos modismos de linguagem e caracte­
rísticas de estilo, como seja o emprego parcimonioso do
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O P A N Ç A

artigo, peculiares à fala regional de Aragão. Escreve


Argamesilla em vez de Argamasilla , o que denota pouco
trânsito e trato pela Mancha de Toledo. Que devia per­
tencer à igrejinha de Lope de Vega demonstra-o no zelo
devoto e quase apologético com que alude ao orago no
prólogo da mesma contrafacção: pues n tom6 POf' tales
. . .

(medias) el ofender á mi} y particularmente á quien tan


justamente celebran las naciones más ext'Yanjems, y la
nuestra debe tanto, por haber entretenido honestísima y
fecundamente tantos aiias los teatros de Espana cm
estupendas é in1J.merables comedias, con el rigor del af'te
que Pide el mundo, y con la. seguridad y limpieza que
de un ministro deZ Santo Oficio se debe esperar.
Cervantes replicara com suficiência a esta série de
estocadas, estocadas não de todo no vácuo, porquanto
desde longe que andava em testilhas com Lope de Vega.
Ainda na crítica ao género de comédias, então em voga,
pela boca do c6nego prebendado de Toledo o atingia
directamente. Verdade que, procedendo assim, o fizera
com a maior nobreza, no uso do direito de opinião, ao
mesmo tempo prestando-lhe homenagem como autor de
algumas excelentes peças de teatro. Replicara, dizíamos ,
D9 P1'6logo ao leito1' da Segunda Parte do Engenhoso Fi­
dalgo: no tengo yo de pe1'seguir a ning'Ún sacerdote, y
. . .

más se tiene por anadidura ser familiar deZ Santo Oficio;


y si éZ lo dijo por quien parece que lo dijo, engafi.6se de
todo en todo, que deZ tal adoro eZ engenio, admiro
. las
obras y la ocupación continua y virtuosa.
O suposto Avellaneda, dando de barato que era cor­
rente na literatura de Cavalaria sucederem-se os autores
na continuação dos romances, como esse do Amadis,
com seus netos, bisnetos e tetranetos, procedeu movido'

25 7
'7
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

por sentimentos inconfessáveis , a que é legítimo associar


uma grande desfaçatez. Isto somente se fazia quando o
autor já era falecido, e tanto assim que Avellaneda vem
ao encontro da réplica: Y pues Miguel de Ceruántes es ya
'de viejo como el custillo de San Cerv&ntes, y por los anos
tan mal contentadizo, que todo y todos le enfa1l.an, y por
eUa está tan falto de amigos.
Linhas atrás tinha-lhe com desvergonha e nenhuma
bizarria lembrado o aleijão contraído em Lepanto: . .y .

digo mano, pues confiesa de sí que tiene sola U1Ul; y ha­


blando tanto de todos, hemos de deeir dél que, como sol­
dado tan viejo en a12.0S cuanto mozo en brios, tiene más
lengua que manos . . Ao ultraje, bastante idiota, res­
.

pondeu Cervantes com melindrado orgulho e dignidade :


Lo que no he podido dejar de sentir es que me note de
viejo y de manco, como se hubiera sido en mi mano haber
detenido el tiempo, que no pasase por mí, o si mi man­
quedad hubiera nacido en alguma taberna., sino en la
más alta ocasión que vieron los siglos pasados, los pre­
sentes, ni esperan ver los venideros.
Este Avellaneda , pois , além de aragonês, literato da
roda de Lope de Vega, que tivera os seus dares e tomares
com Cervantes - se não, que quer dizer a passagem
,
pues él tomó por tales el ofender á mí ? era homem
-

rancoroso, alheio a delicadezas, e talento literário de


terceira ordem. É neste zodíaco que se deve desvendar o
antifaz de Avellaneda. Quem foi , quem podia ter sido,
o tema tornou-se motivo de incessantes e pitorescos jogos
florais. PeriOdicamente os escritores espanhóis e mesmo
de outras nações saem à liça: quem foi Avellaneda ?
Sucessivamente foram indicados como tal Lope de Vega,
Tirso de Molina, Alonso de Leclesma, Ruiz de Alarcón,
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O P A N Ç A

Alonso de Castillo Solórzano , Fr. Alonso Fernández,


Alfonso Lamberto, Fr. Luís de Aliaga, Juan Blanco de
Paz, Lupércio Leonardo de Argensola, Francisco de
Quevedo y Villegas. Entre nós Pinheiro Chagas, nas
peugadas de Mayáns , propendeu para a hipótese Lope de
Vega j Teófilo Braga para Argensola. De maior sufrágio
parecem ter sido os nomes de Fr. Luís de Aliaga, con­
fessor de Filipe III, e de Castillo Solórzano. Quevedo
figura actualmente no estarim.
Mas uns após outros, perante alicerces fúteis ou de
escasso fundamento, foram derribados do precário supe­
dâneo. Lope de Vega era dotado de um talento muito
pessoal , indómito diríamos, da melhor altanaria ibérica,
para se sujeitar a não ser mais que um contrafactor, obri­
gado a seguir os trilhos abertos por outro. De resto, o
barro grosseiro de que as personagens são amassadas,
o seu meio social mais imaginado que vivido, o soez da
linguagem em que o escatol6gico abunda, não são pró­
prios da pena sobranceira e altívola de Lope. S6 quem
leu este Avellaneda com olhos distraídos ou leitor vulgar
poderia atribuir ao umonstro da natureza)) o abortivo
Quixote. O mesmo diremos de Lupércio Leonardo de
Arge:nsola, tão correcto de estilo e elegante de dicção
como primoroso de bom gosto, tão são no que produzia
como incorruptível vernáculo na ideia e na forma. Ava­
lie-se pelo soneto:

Imagen espantosa de la muerte,


sue110 cruel, no turges más mi pecho,
mostrán.dome cortado el mujo estrecho,
ccnsuelo s6lo de mi adversa suerte.

259
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O P A N Ç A

Busca d e algún tirano eZ muro fuerte


de jaspe las paredes, de oro el. techc,
o el f'ico avaf'Q en el angosto lecho
haz que temblando cm sudor desPierte . . .

Não representa ele, com o irmão Bartolomé, chefes


da escola. aragonesa, o classicismo espanhol em suas
sátiras, canções e de modo geral em toda a lírica ?
Ave1laneda é por instinto, que mais não fQsse, o
avesso de um poeta. :€ um labroste, com certo poder dis­
cúrsivo, truculento em demasia, dotado de boa imagi­
nação, mas em tudo um Rabelais de baixo estofo. Te6filo
Braga desacertou em cheio no seu alvo. E seria capaz
Ledesma, o autor tão requintado dos Conceptos espiri­
tuales, de que há uma edição lisbonina de I605, deste
odioso trabalho ? Menéndez y Pe1ayo, apoiado por Ro­
dríguez Marín, inventou de toutes pieces um Alfonso
Lamberto para incógnito perpetrante da enormidade.
Mas tal nome , tão imprevisto e anónimo como o do Padre
Aliaga proposto por Pellicer, não suscitou outros pro­
pugnadores.
Quem teria cometido o desacato,' oferecendo de resto
um contraste tão flagrante ao génio de Cervantes, largo
.,t
desassombrado, com perfeito sentimento da vida, a trans­
bordar de piedade pelo ser humano, livre e profundo, ao
mesmo tempo sem teias de aranha na alma em despeito
de todas as inibições da época, da religião e da política?
Avellaneda pinta um D. Quixote , submetido à dieta
hídrico-espiritual do Fios Sanctorutn, de Vilhegas, e do
Guia de Pecadores, de Frei Luís de Granada ; alimentado
a copiosos empadões de toucinho e chouriço com morro-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

nes e malaguetas) se por tal se devem considerar na pena


dum espanhol as cosas conservativas y s'Ubstanciales;
não perdendo missinha; ao soarem vésperas cobrindo a
capa e , de rosãrio ao pendurão, ao encontro do alcaide,
tep-tep, terreiro fora, para a igreja a rezarem o terço;
ouvindo de orelha infatigável o sermão do cura, vol­
vido ao antigo juízo, em suma, curado de todo das malu­
queiras de cavaleiro andante.
Um dia, depois que lhe morreu a boa e arrenegada da
, sobrinha , 56 e desconsolado, cabeceava sobre o santoral,
quando entrou Sancho :
- Olá, senhor Quijada, como vai isso? Está a ler ! . . .
Livro de Cavalaria, bem ?
- Nada disso, nada disso. Ê o Flos Sanctorum.
- E quem foi esse Fios Sanctoro ?
Este o intróito, e Sancho mostra-se desde logo o igno­
rantão burlesco. ultracervantino. que cavalará por todo
este apócrifo livro fora.
O engenhoso fidalgo reza. come e esm6i. quando uma
bela manhã rompe pela calle vistosa cavalgata. senhores,
pajens, lacaios, e corcéis ricamente ajaezados. Vão para
as justas de Saragoça. Procuram dormida, que mais não
seja na galilf ou nos poiais do adro. O reverendo Pera
Pérez encarrega-se de aboletá-Ios:
-Os senhores alcaides tomam à sua conta estes
dois cavaleiros; o senhor Quijadat estoutro; eu. aquele . . .
Foi a D . Alvaro Tarfe, descendente em linha varonil
dos moiros cristianizados com os monarcas cat6licos Fer­
nando e Isabel , que coube ser h6spede de Quijada.
Portas adentro, no calor dos postres J regados com
palhetinho de Yepes, travam-se de col6quio e mostram
sua vera face : dum lado o paladino que medita ir ganhar

261
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

esporas de oiro por amor; do outro, o velho maníaco da


glória cavaleiresca. E eis que a vesânia de D. Quixote se
reacende em despeito do enxovalho que lhe inflige Dul­
cineia fazendo-o reptar pelo irmão para um duelo a por­
rete. O cartel rematava: Tenho nome, e esse nome é
Aldonsa Lourenço ou Nogales, por mar e por terra.
Pois certo dia, ao lusco-fusco, como é próprio de alga­
radas e incursões em terra inimiga, lá voltam a sair os
dois aventureiros , D . Quixote e Sancho, ontem criados
e equipados pelo génio inventivo de Cervantes, boje como
alabardeiros ao mando dum anspeçada. D . Quixote já se
não chama o Cavaleiro da Triste Figura, mas o Cavaleiro
Desamorado. Propõe-se mesmo pintar no escudo nova
insígnia de guerra: duas donzelas pessegonas, enamora­
das do seu brio, no auge de serem frechadas por Cupido,
postado de arco em punho no segundo plano com esta
quadra prenunciativa à laia de divisa:

Sus flechas saca Cuj>ido


De las 'Uenas deI Pirú,
A los hombres dando el Cu,
Y á las damas dando el pido.

Eis a amostra cabal da peça que vai desenrolar-se


através de infindáveis capítulos, relatando a vida e aven­
turas não dos veros Quixote e Sancho, mas dos seus
ectoplasmas descerrando outras personalidades. A esta
quadra apõem os franceses uma simples palavra : tableau ..

E está dito tudo. A vista da Estalagem do Enforcado, o


pouco original Avellaneda recorre os termos consabidos
da farsa cervantina. Teima D . Qq.ixote que é castelo,
Sancho que é estalagem.

262
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C HO PA N Ç A

-Majadero, não vês daqui os altos capitéis, a famosa


ponte levadiça e os grifos medonhos que lhe defendem o
acesso ?
E o autor apilado aproveita para fazer a resenha esto­
pante do que é uma fortaleza, enumeração puramente
vocabular dum inventário, de que o criador do D. Qui­
xote, mestre nas proporções, seria incapaz. Sancho pra­
gueja e jura mais que cem granadeiros; tem a dignidade
das blasfémias; varia-as de forma e de sentido, arvorado
em chistoso até o infinito: cuerpo de quien me pari6 ! pe­
cador de mi! Mal haya el fruto de mi linage ! Reniego
de la puta que me pari6 ! Cuerpo de un ciruelo ! Mal haja
el ánima deZ Anticristo ! Cuerpo de quien me comadri6
aI nacer ! Oh pesia á los viejas de Santa Suzana ! Cuerpo
de Barrabas ! Pesia á mi sayo! etc. etc. Má e redun­
dante literatura. Quevedo em todo o Buscón tem duas
ou três fórmulas de praguedo.
D. Quixote, esse, mostra-se desde logo doido furioso,
monomaníaco testarudo, em vez do doido amável, cortês e
discursivo como o gerou em vera matriz seu legítimo pai.
Sancho além de gracioso-Martin, tais le beau ! ­
exubera desde logo de glutão consumado, sorte de peru
tonto com a cachaça do oratório. Onde vai o rústico frugal
que gostava de tasquinhar do bom, se lhe chegava, mas
sem exibicionismo de sua voracidade, e se contentava
�m uma côdea, de que, segundo a lei de todos os campo­
neses peninsulares, seria regalado conduto uma cebola
crua ? ! Ruda, dizem nas províncias portuguesas do Norte
e porventura se diga na Mancha. O vera Sancho, com
efeito, em que difere do bom labrego das Beiras ou de
Trás-os-Montes ?
Este Sancho II, muito outro do genuíno no pensar,
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

fígados, e até na pele, apenas idêntico no nome civil.


entra a vasculhar a cozinha da estalagem e volve lam­
peiro e espevitado a dizer ao amo:
- Tienen guisada una alla y un conejo, tal que e1
mismo Juan de Espera en Dios la puede comer.
Na fonda manhosa observam para o cavaleiro recém­
-vindo com uma impudicícia profissional:
-No 1e faltará una moza gallega que le quite los
zapatos. . .
Esta criada, sórdida, chorona, impostora e reles, foi
adrede concebida para contrapor a Maritornes. A Ma­
ritornes, porém, tem o seu garbo. :e dissoluta, mas
porque lho pede o natural; brincalhona, segundo os movi­
mentos de boa-serás. Não pagou de seu bolso o vinho com
que Sancho, manteado, regou a goela em brasa ?
A Maritornes, católica, com fumaças duma distinção
de família que ninguém toma a sério, é uma personali­
dade. A moça galega , um ersatz da mais reles fancaria.
Para não lhe faltarem os doestos da regra, o estalaja­
deiro chama-lhe, bem mal a prop6sito , todos os nomes
"feios da bargantaria, ao passo que ameaça corrê-la a pon­
ta� na bunda. O que há no vero Quixote de flagrante
passa a Avellaneda em plágio pífio ou descolorido. Assim
os arrebatamentos de D. Quixote são macaqueados deste
jeito :
Oh, Santo Dios, y quién pudiera en esta hora netar
14 inflamada ira y encendida c6lera que en el coraz6n de
nuestro Caballero entr6 !
E logo o proverbial travão , marca Cervantes: si el
cielo no le tumem guardado para "mGyores . trances. . .
Os modilhos de Cervantes emergem a cada passo:
-Detente, Sancho, detente; que si yo no me engaiW.
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA N ÇA

esta es una de las más extr4nas y nunca vistas aventuras


que en los días de tu vida hayas visto ni oido decil'. . .
A cena do homem que de alabarda guardava'o meloal,
e D. Quixote tomou pelo senhor de Anglante do Orlan4o
Furioso, é um arremedo de tantas outras transcendentes
loucuras do vero cavaleiro. Mas esta aventura, em si, e
outras sequentes apresentam-nos um Quixote sem ne­
nhuma espécie de lógica no seu delírio. Que era um inter­
pretante, sem dúvida ; mas os gigantes fabricava-os de
todas as peças, Pentapolim, Garamanta, Espartafilardo
do Bosque, Alienhiquém do Algarve, Alifanfarrão da
Taprobana, etc. etc. Não os ressuscitava, para lutar
com eles, dos livros de Cavalaria e lendas mitológicas .
Amassava-os na imaginação alucinada com greda pró­
pria e até lhes punha nomes tirados de sua cabeça. Não
assim Avellaneda que vai ao reportório livresco, e é com
a bicheza fabulosa desse matagal que, a torto e direito,
sem discrime e sem propósito, que o há na mesma para­
nóia, povoa o seu tablado. ::e pois uma loucura, retros­
pectiva, com a sua estrambótica reencarnação de figuras
de cera, que no vero Quixote são puro verbo e jamais
passam disso, sem nunca por nunca figurarem ressur­
rectas nos duelos com o cavaleiro manchego. Tais adver­
sários enxertou-os' a sua alucinada fantasia em casuais
viajantes, e não serão Roldão, Perianeu de Pérsia ou
Bramidão de Tajayunque, que acorda do empalhamento
novelesco p.�ra rapar do chabfalho contra eles. Esta
transposição de planos é o bastante para denotar a incom­
preensão de Quixote peló soi-disant Avellaneda.
Sancho, ' em concorrência com o seu doble, es�ropia
desnforadamente tUdo quanto o desvairado cavaleiro lhe
diz. É um artifício auditivo de todo desvergonhado.
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

Assim Gaifeiros passa a ser Gaiteiros, o que é inconce­


bível para a glote do mais plebeu dos plebeus j Orlando,
Giraldo, pelo mesmo absurdo processo de corruptela;
urrinl6quios . suponho por circunlóquios, etc. etc.
O Sancho de Cervantes é um rústico bem formado.
uO nosso Sancho-diz Unamuno-será sempre Sancho
o bom, Sancho o esperto, Sancho o cristão, Sancho o sin­
cero. Impertinente ? Como não, se não se ajusta ao idea­
lismo de D . Quixote ? !))
Em Avellaneda é sórdido e a estupidez em pessoa .
Arma a jocoso, o jocoso mais sem graça e disparatado da
literatura espanhola. Fala para o burro:
- Cuando f'espirabas hacia dentro, dabas un gracioso
silbo, 1'espondiendo pOf' el ó1'gano tf'asero con un gamaut
que mal afio para la guitarra del barbe'ro de mi lugar que
mej01' música haga cuando canta el pasacalle de noche !
E mais longe chega a desconchavo de que é incapaz um
alarve das três dimensões: IIque conhece o seu burro me­
lhor que o tivesse paridoll . É um cretino burlesco, espécie
de Bertoldinbo da baixa comédia italiana. Aos jurados
.que, depois da aventura do meloal, se haviam juntado
na praça com ar hesitante entre basbaques e apepina­
dores, diz:
. -Seiíores, mi amo va á Zaragoza á hacer unas justas
y torneos reales: si matamos alguM gruesa de aquellos
gigantones 6 Fierablases, que dicen hay allá muchos,
yo les prometo, pues nos han hecho servieio de volvernos
á Rocinante y al rucio, de traelles una de aquellas ricas
joyas que ganáremos y una media docma de gigantone.s
en escabeche; y si mi amo llegare á ser (que sí hal'á,
segun Is de valiente) rey, 6 por lo mlnos emperador, y
yo tras ü me viere papa 6 monarca de alguna iglesia, les
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

pro1!letemos de hellos á. todos los deste lugar, cuando


ménos conénigos de Taledo.
Por esta passagem se reforça o conceito atrás emitido:
não se trata do Sancho, contagiado pela loucura do amo
e apenas com o axe de acreditar em Cavalarias e portanto
em ilhas J fora disso o labrego comum, sensato, em cuja
mioleira. por incubações espontâneas, germinou e floriu
a sabedoria das nações, mas uma baixa personalidade
de bufão licencioso, sem verdade, sem humanidade, de
graça sinistra à força de alvar, forjada a martelo nos
ócios duma cela ou lazeres dum cartório. O mais rele­
vante do autor, por conseguinte, o mais censurável, é a
incompreensão, incompreensão absoluta, que revela tanto
de Quixote como de escudeiro. E o que espanta é que
esta monstruosa novela a haja traduzido Lesage, se bem
que afeiçoando as passagens em que as torpidades são
tão flagrantes que ressaltam como gebas. Argumenta
Menéndez y Pelayo que o autor francês o fizera por mera
especulação livresca- e está dito tudo e em assonância
com a produção de Gil Blas.
Aqui e além, as obscenidades do Quixote de Tarragona
partem de dados abstractos, de todo cerebrais. Dir-se-iam
a congeminação dum seminarista. Há nelas qualquer
coisa de convolvente à Onan. Obra dum clérigo ? A yersa­
lhada latina que expende nas justas de Saragoça leva a
supor que sim. Argumentou-se que Avellaneda fosse o
mascarão do Padre Aliaga, confessor de Filipe III, por
modos um homem de casca grossa, capaz de muito mais,
ou de Juan Blanco de Paz, esbirro do Santo Ofício. O Pa­
dre Aliaga 'tê-lo-ia feito, a título de desforço, havendo
emprestado a alcunha de Sancho Pança, por que era
conhecido, ao esc-qdeiro vilão. Neste caso o Padre Aliaga
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

não teria dignificado ou sequer alindado a alcunha, em


vez de envilecê-la ainda mais ? Quanto às razões, todas
elas bastante fúteis, que militam a favor de Blanco de
Paz, confutou-as Rodríguez Marin com um simples jogo
de datas. Se fosse ele, teria na altura da edição à volta de
setenta anos. O D. Quixote de Avellaneda, com os de­
feitos todos e ainda o rescendor a incenso, é obra dum
homem novo. Os ditos de Sancho, cínico bestial mais que
falador incorrigível, um entremetido onde não é chamado
com o chorrilho de adágios puxados a f6rceps, partici­
pam não raro deste escatológico em que caem as pessoas
tidas por finas e de bons costumes, ou pelo menos saídas
de meios longe do bordel e da bodegana, as meninas
burguesas por exemplo, quando falam ao telefone pelo
carnaval. Este Quixote de Avellaneda gera igualmente
a impressão de ser obra de Domingo Gordo, contando
por. isso com a impunidade de graçolas e bacoradas:
- Como se vino, Vuésa Merced, y me dejó en las
manos de los calde-reros de Sodoma? [ . ] mi mujer se
. .

llama Mari-Gutierrez, tan buena y honrada que puede


con su persOtUl dar satisfaci6n á toda una comunidad que
D. Quijote tome POT Troia.,
Tr6ia ? A única explicação de Tr6ia surgir tão desbo­
cadamente como elemento do discurso, embora dum tanso
como Sancho, é que para Avellaneda tudo o que é hist6-
rico vem de jacto à superfície, mesclado com vinho ou
bagaceira, com 16gica ou sem ela, digerido ou não, como
nos v6mitos. Sancho fala como trinta arrieiros bêbados,
torrencial e infatigàvelmente, sem caco e sem vergonha,
comilão mais repulsivo que o célebre comilão de Almada.
D. Quixote , o louco sublime tão bem educado e altruísta,
revolta-se com o avatar que lhe imprime Avellaneda em
N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA N ÇA

correspondente sujeira, sem elevação nem originali­


dade.
O fantástico é que um D. Agustin de Montiano y
Luyando, secretário de Filipe. V e mais tarde, por acla­
mação, presidente da Real Academia de História . no im­
primatuf" da 2 " edição deste Quixote, que traz o seu
nome, tenha escrito estas desmedidas bojardas sem que
lhe hajam cortado a mão: ...ni creo que ningun hombre
juizioso sentenciara a favor de lo que Cervantes alega,
si forma el cotejo de las dos segundas partes; porque las
aventuras de este Don Quijote san muy naturales, y que
guardan la riguTosa regia de la verosimilitud; su car4cter
es el mismo que nos prop01U desde su primet'4 salida, tal
vez menos extremado Y por eSQ más parecido; y en
J

cuanto a Sancho, quién negará que está en e1 A vellaneda


más propiamente imitada la �ticidad graciosa de un
aldeano 'f . . .
Como julgou Cervantes o livro (.'Ontrafactor ?
(c em verdade e em minha consci�ncia pensei que o
• .

tivessem queimado e feito em p6 por impertinente. O seu


S. Martinho há-de chegar C<)mo para cada suíno.))
Do Sancho, na metamorfose de Avellaneda, dirá pela
boca de. D. Jer6nimo: PalaV1'a que não vos trata' este autor
moderno com a correcção que se nota no vosso carácter.
Retrata-vos como um comilão e simplório, um" chafariz
de graçolas, muito diferente daquele que vem descrito na
primeira parte da hist6ria de vosso amo -Deus lhe
perdoe - respondeu Sancho. Deixem-me no meu canto
-

sem se lembrar de mim porque cada um diz da feira como


lhe vai nela e bem está $. Pedro em Roma [ . ] o. San­
. .

cho e o D. Quixote dessa hist6ria devem ser diferentes


dos que figuram na crónica que comp6s Cide Hamete Be-

269
N O C A VA L O DE PA U c o M SA N C H O PA NÇA

nengeli. Olé ! Meu amo não é valente, sisudo, enamo­


rado ? E eu n:ão sou um homem lhano, nada lambão e
muito menos borrachoJ com piada quando a tenho f
Que se salva do monstrozinho de Avellaneda ? Para
nós, portugueses, no conto Felices Amantes, há uma par­
ticularidade grata, embora Avellaneda escreva já sob o
domínio de Castela, o haver eleito Lisboa para teatro de
seus amores incestuosos, visto tratar-se da ligação duma
freira professa, madre abadessa, com um fidalgote,
D . Gregório [ . ] llegaron á la gran. áudad de Lisboa,
. .

cabeza deZ ilustre reino de Portugal. A Ui pues hizo don


Grego1'io una carta falsa de matrimonio, y aZquilando
una buena casa, comp-ró sillas, tapices, bufetes, camas
y estrado ccn almohadas paf'a $11. dama, con eI demas
ajuar necesario para moblar una honrada casa, com­
prando juntamente para el servido della un negro y una
negra: cargó tras esta de galas y joyas para ad01'no suyo
y de su bella dona Luisa. Pasaron la vida muchos dias,
acudiendo en aquella ciu..dad á todo cuanto apetecian sus
ciegos sentidos, como fuese de entretenimiento, disolu­
ción y fausto, sin perder fiesta ni comedia la gallarda
forastera (que asi la llamaban los p01'tugueses) de cuan­
tas en Lisboa se hacian. Paseaba tambie.n sus calles don
Gregorio de dia, ya con una gala y caballo, y ya con otro,
gozando sin escrúpulo ninguno de conciencia de aqu.ella
pobre apóstata perlada, olvidado totalmente de Dias y sin
rastro de temor de su. divina justicia,' porque, como dice
el EsPiritu Santo por boca de Salomon, lo que ménes
teme el mala cuando llega á lo último de 5U maldad, es á
Dios. Dos anos estuvieron em Lisboa los ciegos amantes,
gastándolos en la vida más libre y deleitosa que imagi­
narse puede, puesto todo fué galas, convites, fiestas, y
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

sobre todo juegos, á que don G1'egorio se dió sin modera­


cwn alguM.
Neste conto há, tanto na parte da monja como do
sedutor. um despejo que, ao contrário da moral espa­
nhola em uso no penitológio literário, não acaba castigado
pelos raios e coriscos de Deus e dos homens. Arrepen­
didos e quase santos, os protagonistas de tão deliciosa
como nefanda história nem passam pelo crisol das penas.
Semelhante facto poderia induzir a procurar a pista do
verdadeiro autor do livro para fora do campo religioso.
Mas, por outro lado, certas passagens meio parenéticas,
a moralidade evangélica. o uso e abuso do latinório, o
balanço final , todo em louvor do claustro e da regenera­
ção pela prece e os votos, anulam aquele sentimento,
fazendo reverter a espírito eclesiástico semelhante fan­
tasia pecaminosa. Ainda este conto é aéreo, insubstancial
posto que verosímil , feito de cor, dir-se-ia por uma pessoa
que lobrigava o mundo e lhe devaneava as paixões atra­
vés das reixas dum convento ou pelo menos desde o supe­
dâneo dum altar.
Não é menos insubstancial, posto que ascorosa, a
pobre rameira Bárbara, que acompanha D. Quixote e seu
escudeiro até Toledo, e aquele converte em rainha Ce­
nóbia por virtude do deformante condão.
Esta circunstância, de todo capital, dá razão a Pel­
licer que via em Avellaneda o disfarce do Padre Aliaga.
Não é que a rainha Cenóbia diz para Quixote:
- Yo quisiera ser de quince anos y más hermosa que
Lucrecia para servir con todos mis biens habidos y por
haber á Vuesa Merced; pera puede creer que si llegamos
á Alcalá le tengo de servir alli, como lo verá por la obra,
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

con un par de truchas que no pasen de los catoTceI lindas


á mil maravillas y no de mucha costa.
O dislate está em figurar a pobre alcaiota de erudita
-não havia de saber quem fora Lucrécia ? - e D. Qui­
xote, aliás o casto, o puro, tão cerrado do entendimento
que, no fraseado "translúcido, se iludisse a ponto de res··
ponder :
-Seiiora mia, no soy hombre que se me dé dema­
siado por e1 comer y beber.
Ao que retruca a alcaiota da Calle de los Bodegones,
voltandO-se para o soldado :
-Ay amarga de mí, y qué moscatel es este cabal­
le1'o !
Esta gíria, este faceta obsceno, estes epis6dios que
parecem pinceladas de água-forte, não passam duma fan­
tasia cerebral, panoramas portanto dum mundo sonhado.
O mesmo lunário rege a situações e figuras em sua
indecência positiva ou astralidade. Assim esta passagem
que supera o dantesco em porcaria e que se nos afigura
pura visão imaginária : avançaram para Sancho tTes Ó
CuatTO pícaros, que allí habia presos, con ciertos canu­
tillos de piojos en las manos; y como le vieron simPle,
pareciéndoles sano ele Castilla la Vi'eja, y viendo por
otra parte á cada paso daba de ojos con los grillos y que
de ninguna manera sabia andar con eUos, le echaron por
lo elescubierto deZ pesc'Uezo más de cuatrocientos piojos . . .
E não é .menos de metafísica escatol6gica este diálogo
entre Sancho e um pseudoturco em que parecem trair-se
certas brincadeiras verbais, secretas, dos seminaristas·:
- Pues es menester que con un cuc1,illo n;uy agudo
os COrtemos un poco del pluscuam perfeeto . . . -

'7'
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

- Qué pluscuam ? . . Por las tenazas dE;; Nicomémos


que Vuesa Merced no me corte nada de ahí, porque lo
tiene tan bien contado y medido m.i muje1' Mari-Gutier­
rez etc. etc.
As breves citações mostram como rasgões numa tape­
çaria de lupanar-cada vez mais requintadamente sór­
dida-o recesso sujo e podrido. A imitação é torpe e desa­
jeitada . Procure-se , a meu ver, para seu autor um letrado
com ordens sacras, de segunda plana, que temeu assoa­
lhar o nome por baixo de tal me:-:.::>.doria. Só por uma
noção errada do fenómeno literário se poderia buscar o
autor entre os veteranos das letras espanholas, Lope de
Vega, Quevedo, Argensola, Tirso de Molina, etc. A cada
passo a filaça da má trama está à mostra. O que mais
surpreende é que Cervantes se preocupasse com o facto
até o auge de responder no prólogo e ainda no corpo da
Segunda Parte da novela e que leve o despeito a ponto
de pegar numa das personagens de tal guinhaI. Alvaro
Tarfe . essa que conduz D . Quixote à casa do Núncio,
que é o Rilhafoles de Toledo. e traga ao seu pretório as
aliás justas recriminações. E , contas feitas, este Avella­
neda merecia uma dor de cabeça sequer ? É que Cervan­
tes, na antecâmara da morte , não obstante a irradiação
que o Engenhoso Fidalgo tinha e lhe era notória, acalen­
tava ainda dúvidas sobre a perdurabilidade da sua obra.
Daí a sua febre. Em verdade , mirrado pela cirrose , toda
a sua vida era ânsia. Este D . Quixote, que na vera novela
era o louco fidalgo ideal, passou a doido varrido, ne­
vropata caracterizado; do delírio. com o seu controle,
decaiu para o delírio sem coerência nem freio. Que ficou
dali ? Um problema. O problema do autor que, torturado '

2 73
,8
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

no silêncio monástico e na inveja, sem jamais prelibar


os sumos doces e ácidos da vida como Cervantes, tudo
passava pelo tamis ralo da fantasia.

Teria sido Francisco de Quevedo y Villegas o autor


do apócrifo D. Quixote? Últimamente, as investigações
literário-policiais enveredaram para este nome e, embora
o processo continue em aberto, estabeleceu-se uma certa
confusão de que ficou em causa, debaixo de suspeita, o
autor do Buscó". Como D. Francisco é mais que uma
glória ibérica , uma glória universal, irregular mas estu­
penda, áspera como a Serra Morena que projectava a
sombra negra sobre o berço em que nasceu, não podemos
ficar indiferentes ao pleito.
Vendo o problema pelo lado cronológico, as provas
contra Quevedo ficam reduzidas a uma vã poeira . Tinha
ele 24 anos quando apareceu o D. Quixote de la Mancha,
de Cervantes, em cujos versos preliminares de Urganda.
a desconhecida, certos argos das letras espanholas viram
atingido Quevedo:

No te dirá el boquirrubio.
Que no pones bien los dedos . . .

Define o Diccionario de la Academia Espanola, que


é o alcorão do verbo espanhol: Boquirrubio, mozalbete
presumido de lindo y de enamorado. Podia ofender.se
alguém com semelhante qualificação ? Em última aná·
lise poderia justificar um ressentimento assim expresso
pelo pretenso licenciado Alonso Fernández de Avella.
neda na Segunda Parte do seu Engenhoso Fidalgo:

·
2 74
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

. . . pues éI (Cervantes) tom6 por tales (medios) el ofen­


der á mi, y particularmente á quien tan justamente ceIe.
bran las na.ciones más extranjeras . . .
O autor declara-se pois ofendido por Cervantes.
Onde ? Como ? A ideia de ofensa no terreno das letras
implica publicidade. Tal como se depreende da frase
ofender á mi, não é caso de di.....e-me-dixe-me
. em tertú­
lia, mas agravo a peito feito em letra redonda. Ora, em
nenhuma página, afora este vago, inocentíssimo boquir­
rubio, inindividuado, pode sentir-se atingido Francisco
de Quevedo. E era natural que Cervantes J veterano nas
letras, o fizesse para Quevedo, que acabava de estrear-se ?
Quanto a associar Lope de Vega à ofensa, temos tam­
bém conversado. Quevedo nunca louvou Lope; nunca
foi , que se saiba, grande devoto da sua capelinha. Que­
vedo era um homem de humor singular, propendendo
para o misantropo, individualista ao extremo, íntegro
de carácter, pouco atreito à louvaminha. De resto, uma
s6 vez se refere, e é no Buscán, a Lope : [ . . . ] que si no
eran comedias deZ buen Lope de Vega y Ramón, no
había otra cosa. . .
El buen Lope de Vega . . . A frase tanto pode expri­
mir um preito à excelência da obra como à natureza sim­
pática do autor. Mas suponhamos que se dirige à qua­
lidade do artefacto. ::e comparável com a cascata de
elogios que escorre do referido Avellaneda ? Logo no
pr610go exuberantemente , como j á vimos. Depois,
aquando das justas em Saragoça : famoso epigrama deZ
excelente poeta Lope de Vega Carpia, familiar deZ Santo
Oficio . . e mais longe : comenzaron á ensayar la grave
.

comedia de EI testemonio vengado, deZ insigne Lope de


Vega Carpia . . .

2 75
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C HO PA N ÇA

o Engenhoso Fidalgo, de Avellaneda, editado em


1614 em Tarragona, a ser composto por Quevedo tê-lo-ia
sido necessàriamente no defluir de 1612 para 161 3
quando se refugiara na Torre de Juan Abad . depois de
errar por Itália em seguida a ter aviado Rara o outro
mundo com uma estocada um fidalgo português, comen­
dador da Ordem de Cristo, que na igreja de S. Martinho,
de Madrid , em quinta-feira de Endoenças, faltara aos de­
veres da galantaria com certa dama. Em 161 3 . com
efeito, andava ele já por Nice a fomentar a sublevação
contra o duque de Sabóia, após o malogro da qual teve
de dar às de vila-diogo. De modo que bem escasso pe­
ríodo de tempo lhe ficaria para tão volumosa candonga
literária, de mais que os biógrafos o dão como consa­
grado à leitura e meditação de livros asc::.!ticos, o que
está bem para um matador e um vencido, que oscilava
entre o ideal mais puro e a terrenidade mais crassa, ho­
mem de Deus e do Diabo, como lhe chamaram.
Compadece-se com este interlúnio de sua alma o es­
crever um livro tão libertino, rasteiro e sabujão à mar­
gem da lisura de índole, do orgulho mental e do fero
espírito de independência, que lhe eram pr6prios ? Não
era debalde que em Montanha ostent.ava esta divisa o
escudo de armas dos Quevedos :

Yo soy aquel que ved6


el que los moros entrasen
y que de aquí se tornasen
porque así lo quise yo.

Supondo que fora ele o autor, ausente em Itália até


1616, a que resguardos obedeceria Cervantes, que devia
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA NÇA

saber a quem assentava o ferrete, não desmascarando


o falsário ? Por duas vezes o dá como aragonês, quando
Quevedo era manchego da costa , seu patrício e vizinho.
Depois, pelo que transparece de substratum moral, Ave1.
laneda e Queveào são díspares. para não dizer opostos.
Avellaneda é um cat61ico confesso, adulador desaforado
dos monarcas, cera melada ao boquejar o nome da In­
quisição. Quevedo é católico, mas que não abdica da
liberdade de pensamento. A cada passo, dá largas à
crítica dos costumes eclesiásticos, do modo mais desas­
sombrado. No JJusc6n, há uma página que, além de
mostrar a latitude e acuidade do seu entendimento,
denota um espírito criticista, tão mordaz, que admira
como não atraiu os raios do Santo Ofício.
uSucedió que el ama criaba gallinas en el corral; yo
utenía gana de comerla una; tenía doce ó trece polIos
ugrandecitos, y un dia, estando dándoles de comer,
((comenzó á decir : upío, píou , y esto muchas veces . Yo,
((que oí el medo de llamar, comencé á dar voces y dije:
«-Oh cuerpo de Dios, ama ! No hubi�rades muerto
((un hombre ó hurtado moneda ai Rey, cosa que )'0 pu­
((diera callar, y no haber hecho lo que babéis becbo, que
ues imposible dejarlo de decir ? Mal aventurado de mí y
ude vos !
((Ella, como vi6 bacer extremos con tantas veras,
((turbóse algún tanto y dijo:
«- Pues, Pablos, yo qué he hecho ? Si te burlas,
IIno me aflijas más.
«- C6mo burlas ? Pesia tal ! Yo no puedo dejar de
udar parte á la Inquisici6n, porque si no, estaré des­
IIcomulgado.

277
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

«-lnquisici6n ? - dijo ella y empez6 á temblar ; ­


lfpues yo be hecho algo contra la fe ?
«-Eso es lo peor. -decía yo; -no os burléis ceD
!CIos inquisidores; decid que fuistes una boba y que os
udesdecís, y no negu!is la blasfemia y desacatp.
((ElIa COD el miedo dijo:
«-Pues. Pablos , y si me desdigo, castigaránme ?
uRespondíle:
«-No, porque 5610 os absolverán .
«-Pues yo me desdigo-dijo;- pero dime tú de
((quê, que no lo sé yOj así tengan
. buen siglo las ánimas
ude mis ciifuntos.
«-Es posible que no advertisteis en quê ? No sé
({cómo lo diga, que el desacato es tal que me acobarda.
uNo os acordáis que dijisteis á los pollos upío, píou. Y
ues Pío nombre de los'papas, vicarios de Dios y cabezas
(ede la Iglesia ? Papaos el pecadillo, n
E em matéria de mulheres, quando Avellaneda re­
baL....a
.: o sexo, não encontrando para fulcro feminino do
seu teatro senão uma torpe e nauseante rameira J pro­
jectada teologalmente da torpidade do pecado numa pá­
gina de Holbein ou Callot , Quevedo dirá com a fran­
queza que o caracteriza: Como yo no quiero á las mujeres
para consejeras ni bufonas, sino pàra acostanne con
ellas, y si san feas y discretas es lo mismo que acostarse
con Arist6teles 6 Séneca, 6 con un libro, procúrolas de
buenas partes para el arte de las ofensas.
Não há dúvida que o plagiário é sempre um admira­
dor do plagiado, mas como o ladrão o é do objecto sub­
traído. Assim mesmo, quanto a este elemento da propo­
sição, pensa Cervantes quando trata dos galeotes. Mas
a Segunda Parte de Avellaneda perante a Primeira
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

Parte de Cervantes pode equiparar-se ao edifício cuja


planta foi roubada ao arquitecto ideador. O material é
outra coisa sem dúvida, mas a inventiva e o respeitante
a traça e regras, que tornam o prédio airoso, elegante ,
confortável , revertem ao artista que o desenhou . Feliz­
mente para Cervantes, Avellaneda não compreendeu
D . Quixote nem tão-pouco Sancho Pança. Ou se com·
preendeu, quis derivar , e fez obra corriqueira e comum,
muito inferior à de qualquer dos autores realistas do
seu século. Desta entorse, um D. Quixote desenfreado,
e um Sancho beberrão e gracioso sem graça, era incapaz
Quevedo, senhor dum talento tão soberano e original.
Que mais não fosse, pela carência deste dom, primeiro
e augusto dom que largamente possuía, se poderia con­
cluir que Avellaneda de modo algum foi máscara sua.
Tão-pouco é de admitir que, sendo-o, o facto não trans­
pirasse , tratando-se de nome tão soado. Não, o vero autor
do Quixote de Tarragona ficou agachado na sombra do
seu anonima-to dentro da roupeta do licenciado de Tor­
desilhas e ali morreu mumificado. Se tivesse sido Que­
vedo, com tanta dispersão, tombos, voltas e reviravoltas
que teve a sua complexa vida, é impossível que tal cir­
cunstância não viesse à tona do espólio. Ainda que o não
houvesse confessado , naquele négligé a que se entregava
de tempos a tempos, tê-lo-iam entrevisto os próximos e
aderentes. No mare magnum do inventário sempre havia
de haver um dado, uma referência, um nonada denun­
ciador. E nem o mais insignificante argalho apareceu
em abono de tal versão. Não seria Quevedo que vinha
lançar em rosto de Cervantes, daquele jeito cruel e sem
vergonha: ((manco; homem mais de língua que de mãos ;
lançado ao desprezo ; rabugento, murmurador e insulta-

2 79
N O C A VA L O DE PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

dor, incréu - ahora que se lia acogido á la Iglesia, inve­


JOSO)) etc.etc. uma s,�rie de doestas e injúrias que tras­
bordam do prólogo do dito licenciado de Tordesilhas.
Tal girândola de ultrajes - que indignaram Cervan­
tes, sem que na desafronta deixasse de responder com
afectada paciência , o que mais nos intriga"-lançada a
coberto dum pseud6nimc, exorbita de todo da re1axidão
que se possa dar ao temperamento e génio de Quevedo.
A primeira vista poderá dizer-se que 56 pessoa conhe­
cida e notória, e não ignorada ou obscura, ou escritor
DoveI, recorreria ao pseudónimo para jogar esta lapada
que tal é o Quixote de Tarragona. Um escritor sem
nome não era lógico que se escondesse a cara para fazê­
-lo. Antes pelo contrário. Mas podia haver razões de
ordem social, que não literárias, que o levassem a isso.
O Quixote de Avellaneda é mais uma novela picaresca
com todo o seu escabroso e vulgaridades que uma novela
de aventuras, se considerarmos a crueZll da linguagem
e este e aquele episódio que o matizam. Bárbara é cortada
pelo padrão da Rija de Celestina faisandée. O próprio
Sancho descamba numa sorte de Lazarillo. Suponha-se
que o autor d.a novela foi de facto um homem conspícuo,
de alta patente eclesiástica ou cortesão: Fr. Luís de
Aliaga, confessor de Filipe III; Juan Blanco de Paz,
racionário da santa catedral de Baza ; Fr. Alonso Fer­
nández, dominicano, hagiógrafo e autor duma Historia
de. Plasencia; o palaciano Guillén de Castro; todos eles
teriam razões de ordem moral para se acobertar por
detrás do farricoco.
Quevedo não corresponde ao tópico, pois que em
1612-13 mal era conhecido. Publicara entre as suas com­
posições mais notáveis Cartas deZ Caballero de la Tetulza
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

e Sueiios, pontos ainda baixos n a escala d a farpa, que


foi subindo gradualmente como um rio nas cheias. Uma
dessas cartas mostra, pelo estilo, brandura, gosto, quão
longe estava da forma truculenta do Buscón, a novela
que oferece mais parentesco, aparente diremos n6s, com
o Quixote de Avellaneda : Ei-la: Doscientos reales me
envía V. á peair sobre prendas para una necesidad, y
aunque me los pidiera para dos, luera lo mismo . Bien
mio, y mi set1ora : mi dinero se halla mejor debajo de
llave que sobre prendas, que es muy humilde, y no es
nada altanero, ni amigo de andar sobre nada: que como
es de materia grave y no leve, su natural inclinación es
bajar y no subir. .v. me crea que no soy hombre de
prendas, e que estoy arrependido de lo que he dado sobre
V. Si V. dá en pedir, yo daré en no dar, y con tanto
daremos todos. Guarde Dias a V. y á mi de V.
No Buscón - ;626-é que há analogias flagrantes
com o Quixote de Avellaneda- 1614- analogias de su­
perfície, parece-nos bem. A qualidade do retrós empre­
gado nas duas teias assemelha-se bastante. Pondo de
parte o que há de másculo e imediato num, de chocho e
rebuscado noutro, a cada passo se tropeça já não digo
na vulgaridade, que é meio comum e compacto, mas no
mau gosto, no trocadilho, no desbragado. A força có.
mica que Menéndez y Pelayo celebra em Avellaneda e -
possui têmpera de farsa burlesca, género de ópera bufa,
em Quevedo reverte para sátira venenosa e certeira. Por
este lado, este fundo de consciência, são inconfundíveis.
Ideal ? Não há em nenhum deles. Onde é que o há que
não seja em Fr. Luís de León ? Sim, há-o no D. Qui.
xote, no vero, se espreitarmos para lá das lindes que lhe
marcou o seu autor. Mas é preciso estender o pescoço

281
NO C A VA L O DE PA U C O M S A N CH O PA N ÇA

como os grous, espraiar a vista e então, sim, sem neces­


sidade de e.xplicação esotérica, o Engenhoso Fidalgo é
uma montanha de altos e significativos horizontes. E o
seu mérito, para lá da literatura e do conceito espanhol ,
está nisso.
Mas em Quevedo como em Avellaneda falta perspec­
tiva. Tudo chão, terra a terra e , num, carnalidade a
ressumar vida, noutro, carnalidade teologal, feita de cor
e teórica. As coincidências não são raras, mas encontra­
diças, como não, à tona do brejo picaresco. Piolhos sobe­
jam lá e cá. Mas no Avellaneda representam um arti­
fício. Acaso é de admitir que os presos mais ascorosos
das cadeias se entretenham a deitá-los para canudinhos,
em vez de britá·los com a ferocidade vingativa, própria
das vítimas , sob o martelo-pilão da unha polegar? Outra
analogia curiosa ê essa da genealogia de Sancho, no
Avellaneda e no Busc6n.
- Tirá, (peras) hermano Sancho, bien, y tened pa­
clencw.
-Si tendrán-respondió Sancho - que no son bes­
tias; y aunque no soy don, mi padre lo era.
- C6mo es esof- dijo don A lvaro. - Vuestro pa­
dre tenia don !
-Sí, seMr - dijo Sancho, - pero teníale á la
postre.
- C6mo á la postre f - replic6 don A lvaro. - Lla­
mábase Francisco Don, Juan Don, 6 Diego Don?
-No, seiiOf',- digo Sancho-sino Pedro el Re­
tnend6n.
Rieron mucho etc.
Agora no Busc6n: . . . s610 e1 don me ha quedado por
vender, y soy tan desgraciado que no hallo nadie con
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N CHO PA N ÇA

necesidad dêl pues quien no le tiene por ante le tiene


J J

por postre, cerno eZ remend6n, hazad6n. podón, bald6n,


b01'd6n y otros así !
Ambos se mostram igualmente devotos do Rosário.
E que admira se a devoção a Nossa Senhora do Rosário
fazia parte especial do devocionário domínico e a Man­
cha estava coalhada de conventos desta ordem, como as
Universidades estavam sob a sua invocação, e quanto à
de Alealá consistindo o selo maior da sua chancelaria na
figura da Virgem entre dois cães !
'Outras similitudes DOS dois livros como Casa deI
Campo por Càsa de Campo, o repisamento de lugares
tanto num como noutro ao chegarem a Toledo, e Escar­
ramán , nome inusitado, comum aos dois : um Escarra­
mán desflorador de Bárbara, vários Escarramanes atra­
vés da obra de Quevedo. Mas não é Escarramán uma
figura tradicional em romances obrigados a ge-rmanía f
Nos itinerários dos figurantes de Avellaneda e de
Quevedo há um paralelismo de passos que os caçadores
e detectivas denominam querença dos lugares. Que con­
cluir destas coincidências ? Que Quevedo leu Avella­

I neda? Que Avellaneda e Quevedo são um s6 e mesmo


autor ?

j
Bastava este Avellaneda representar um pecadQ hor­
rendo contra o espírito espanhol! o pecado da imitação
e plágio! para não haver de modo algum o direito de atri­
buir a Francisco de Quevedo y Villegas! o mais original
e rebelde dos escritores peninsulares! a paternidade do
mostrengo. ·
XIII
Irradiação de D. Quixote. Portugal e o livro sin·
guIar. Três edições lisboninas. Estado da lusitani·
dade. D. Quixote na Bairro A lto. O faro seguro
do Judeu. O sainete substituído pela graçola. Per.
sonagens de feira paTa público boçal. Lisboa e a
buc6lica cervantina. À margem do D. Quixote.
Hist6rias de ermitões. Um capítulo rasurado na
1Wvela de que subsistem palavras à toa. Se oS ma­
nes de Cide Hamete Benengeli dão licença. Re­
constituição desenfastiada. Falta o esquadro tão
simPles e inimitável M Mestre

ERrA
S
longo e prolixo verificar a espécie de audiência
-e emprego esta palavra no sentido que hoje em
dia se lhe atribui de interpretação, influxo, poder
ressonante- que teve o D. Quixote, livro tão ràpida­
mente universalizado nos diversos povos europeus. O es­
·
panhol pressentiu nele o seu retrato nas duas formas
de consciência sob que podem arrumar-se, se não todos,
boa parte dos fenómenos humanos : loucura ideal e con­
ceito utilitário da vida. Em França, o cavaleiro man­
chego teria de ser um tipo vivedoiro, animoso, não por
impulso ou mero acidente, mas por uma disposição de
reais qualidades; aventureiro, sim, mas aventureiro car­
tesiano, digamos , destituído de preocupações de glórias
abstractas-teria, em suma, de acusar a diferença que
há entre um Pizarro e um Duguay-Trouin, um d'Ar-
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N CH O PA N Ç A

tagnan e um Cid. D. Quixote prevaleceu o doido, que dá


lugar .ao riso e pachouchada. Já na Rússia, como se viu
pelo filme, o idealista- Dostoievski avant la lettre­
prima a qualquer outra caracterização. Corno é que Por­
tugal, que adquiriu pelo menos independência se não
individualidade política, deixando de ser um gomo da
laranja que era a Ibéria filipina, recebeu D. Quixote atra­
vés da sua psique e génio, se há que supor-lhe diferen­
ciação ? Duas eàições lisboninas saíram em 16°5. pri­
meiro ano do aparecimento da novela, sucessivamente
nas oficinas de'.lorge Roorigues e urna, depois, na de Pe­
dro Craesbeeck. Mas estas não contam, por serem em
castelhano, nada tendo que ver com o movimento lite­
rário português, em si� Devem, antes, integrar-se no
sistema de vascularização idiomática a que se procedia,
mais ou menos subconscientemente, a partir de 1580.
Mas, uma vez traduzido, começou, como em França, a
partir de 1614 a vaga incessante e alterosa das edições.
Há quem sustente que a edição princeps é a de Jorge
Rodríguez e não a de Madrid, por Juan de la Cuesta.
O certo é que três estampas saíram, a breve prazo umas
das outras, dos prelos lisbonenses, facto que pela singu­
laridade requer a sua explicação. Aquela altura dos tem­
pos, as línguas castelhana e portuguesa quase ,se pare­
ciam como os dois lóbulos de uma dicotilédone depois
de lançada à terra e germinar. Os escritores portugue­
ses, como Francisco Manuel de Melo e Faria e Sousa,
escreviam calamo currente nos dois idiomas, segundo
as exigências do assunto. Mas, o que era mais, Lisboa
tornara-se a metrópole tipográfica da Península. Fosse
casual incremento da indústria, fosse que a política dos
Filipes reconhecesse no desenvolvimento de uma activi-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

dade, assim orientada , uma forma de assimilação, o


facto é que em Lisboa editavam·se a granel as obras cas­
telhanas. O D. Quixote veio na enchente , o que não
quer dizer que desfrutasse desde logo, junto do público
letrado, uma alvoroçada aceitação. As nossas letras atra­
vessavam um período de decadência sem precedentes.
Florescia a ret6rica. A parenética porém não se pres­
tava a exaltar uma obra de intensa humanidade como
era o Engenhoso Fidalgo, que por debaixo dos ouropéis
de farsa podia esconder flechas envenenadas ..e, de facto,
indirectamente a vulnerou. Em nenhum clássico, até o
distante pré-romantismo, quando se faziam grossos e
superlotados empréstimos de autores estrangeiros, anti­
gos e modernos, se vê citado o nome de Cervantes.
Todavia a nossa literatura , em despeito de o país
jazer imerso numa espécie de letargo etológico, não fica­
ria de todo imune à acção clarificadora da novela anti­
feudal. Uma vez que esta recebera alvará de correr entre
nós, ia correndo e abrindo brecha no espírito ronceiro de
academias e escolas.
A essa altura o país era maciçamente ignaro. Con­
vinha que assim fosse. Coisa de meio século antes mu­
dara-se
. a Universidade da capital para�a província.
Que frutos se podiam esperar de planta com raízes
no alqueive sertanejo e obrigadas à fisiologia congénere?
Postado� os agentes do Santo Ofício nas alfândegas a
ver que livros chegavam da estranja ; o cérebro nacional
dessecado pela malária e a ignorância-o que as inteli­
gências produziam vinha chupadinho de todo. Antes ·
falhara o pão, agora havia fome de uma coisa e de outra.
Não falando nas citadas edições em castelhano, a pri­
meira demonstração cervantina em Portugal, cronolà-

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N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

gicamente anterior ao traslado para português do En­


genhoso Fidalgo, que deu a lume a Tipografia Rolan­
diana, está na representação que teve lugar no teatro do
Bairro Alto em 1733 com a Vida do grande D . Quixote
de la Mancha e do gordo Sancho Pança, por António
José. A comédia em Portugal, como o resto, não passava
de humilde vegetação, meia hierática, meia truanesca,
e assim compreende-se que esta fosse uma grosseira ver­
gôntea da grandiosa árvore que plantaram especial­
mente Lope de Vega, Calderón e Cervantes. De resto, o
autor tinha que comprazer com o rebaixado gosto do
público, pelo que as cenas decorrem no geral em bufo­
naria barata, sem lógica, nem graça digna de nome. Se
não fossem assim, não tinham um espectador para amos­
tra. Calcule-se o gosto do público lisboeta pelo do público
rural hoje em dia. Só compreende a patacoada. Se ouve
ler a página mais dramática, desata a rir, sendo o riso a
sua única forma de emotividade. Pior, muito para além
de Baptista Dinis, que a capital conheceu há cinquenta
anos, batendo o cotumo no teatrinho do Rato. Na época
dos Pátios. sobretudo, o autor era o primeiro histrião.
António José representava as óperas que compôs, como
Camões os autos de Filodemo e El-rei Seleuco . Esta tra­
dição prevalece-se de Shakespeare e de Moliere para que
seja razoável considerá-la com menosprezo. A autori­
dade eclesiástica, essa, não escondia a aversão pelos
cómicos, e lá tinha as suas razões.
De modo geral, no transcurso do século XVIII, regido
pela férula e o báculo, o que estava em voga era o
teatro de marionnettes ou a lorpa e desconchavada farsa.
António José, por alcunha o Judeu, que pagou o crime
de possuir inteligência desempoeirada e ser de nação
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hebraica no queimadeiro do Campo dá Lã em 1739, teve


a honra de ser o primeiro a extrair da copada folhagem
do D. Quixote uns ramalhas com que enfei.xou o entre­
rnez . Não obstante , graças apenas ao fim miserando do
autor que não à preciosidade dramática, se não afundiu
nos abismos do esquecirn�nto o seu nome e a sua obra .
Assim aconteceu, por extensão, sobreviver a ópera Vida
do grande D . Quixote de la Mancha e do gordo Sancho
Pança. Agora, de modo algum , dadas as condições do
meio, o seu protagonista é o louco sublime, e o escudeiro
o labrego pitoresco, desvairado pela ideia ambiciosa de
governar uma ilha. São antes doidos varridos, segundo
a estampa corriqueira dos que fazem partes gagas e não
perdem ensejo de dizer necedades onde quer que se en­
contrem. Ê neste jogo da arrieirada para o dislate e do
dislate para a arrieirada que decorre a comédia do Ju­
deu. Assim, a ilha de que Sancho .! governador mede
sete palmos de comprido e dois de largo, o que basta'
para definir a constitucional palermice dos figurantes.
Sancho despede-se, mandando à mulher que meta numa
bolsa do alforge Ciuma canada de vinho dentro de um
guardanapo, e a borracha com dois queijos . . . na outra
bolsa, camisa e meia, meia ciloura, qm coturno sem
companheiro, um lenço pardo e outro riscado, dois pes­
coçõcs de bofetão da 1ndia, etC.I). . .
Dulcineia é pintada por Sancho, não como um revis­
teiro o faria, a armar ao chiste, mas na lábia da Musa
Jocosa, com her6is estapafúrdios, ao gosto dos tablados
populares . ((De formosa passa ela. Se vossemecê vira
aqueles olhos , que parecem olhos de couve murciana !
O nariz é de cair um homem com o traseiro em cima dele;
tem mãos como caudas de peixe ; o corpo não é corpo

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de delito pelo que mata a todos; os cabelos não vi eu,


mas sim dois piolhos de rabo que lhe saíam pelos buracos
da coifa; o que mais me regalou foi toscar-Ihe umas
Tosquinhas doces que fazia junto ao pescoço. Enfim,
senhor, os pés são dois pés de cantiga, etc,)) Longe
o Sancho Pança que, no dizer de Hagberg, é o corpo
que faz pouco da alma, quando esta cai no absurdo.
Todavia, nem sempre António José vai rastejando
Cervantes de maneira tão desmiolada e caricata. Umas
duas vezes se arroga o direito de inovar : quando julga
o Ruço, que disparou a sua girândola de couces sobre
um transeunte- ' condenado a que não faça mais bur­
rinhos -e de sainete aos ludíbrios de que D. Quixote
é vítima por malas-artes dos encantadores. Pois que eles
tudo transformam a seus olhos, gigantes em moinhos,
castelos em estalagens, inimigos em odres de verdasco,
Dulcineia, a bela, será, suprema irrisão, convertida no
próprio Sancho Pança de venta hílare e beiçola arrega­
çada. Quixote vai para lhe beijar os pés :
-Tire-se lá, que lhe dou uma canelada ! -berra-
va Sancho. - Para o que eu estava guardado !
- Ora, meu Sancho.
-Sou tão macho como vossemecê.
-Até no dengue confirmas que és Dulcineia.
- L�ve o diabo o dengue. Chegue-se para mIm,
apanha dois c<>ices que se vê grego . . .
-Coices ? Ah, então não és Dulcineia. Dulcineia
não é nenhuma cavalgadura.
Outra cena, em que António José se não mostra de
todo subserviente, é aquela em que Sancho, governa­
dor da ilha da Bara�ária, na ópera governador da ilha
dos Lagartos , vai cear, chamado pelo mordomo 1a sua

"
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corte falaciosa. No original cervantino, o epis6dio re­


veste o requinte mais elevado que se pode imaginar na
finura e na graça. Em António José, se bem que a cena
seja paralela, não deixa de haver o seu picante e chacota
particular. .
Tocam rabecões em vez de cbaramelas. Há dois mé­
dicos à beira do governador. Na Baratária um só, o
famoso Pedro Récio. Tanto na lição da novela como do
entremez não lhe deixam provar bocada a pretexto de
que tal e tal iguaria lhe é nociva não 56 ao físico como
ao entendimento.
- Senhor governador-preceitua um dos galenos-
bá-de dignar-se comer com parcimónia . . .
- Parcimónia? Que prato é esse ?
-Parcimónia é comer com boa temperança.
- Isso de temperos é lá com o cozinheiro.
Intervém o cirurgião:
- Senhor governador. dê licença . . . Tenha-se di­
reito. Não torça o pescoço para a banda que pode re­
bentar uma veia.
- Ora essa ! Que tem lá que esteja torto ou apru­
mado? Julga você que é a primeira vez que me sento
à mesa a comer ? !
- Senhor, uma coisa é comer como escudeiro, outra
como governador. Por isso queremos que sua senhoria
coma consoante manda a arte médica e cirúrgica para
governadores. O nosso papel é velar pela conservação
da sua preCiosa pessoa . . .
- Está bem, está bem ! Venha a sopa . . .
- Sopa ? Arreda ! A sopa com ser muito substan-
cial conduz ao estupor. . .
- Rem? Que me dizem ? Eu já lhes falo . . .
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-Por amor de Deus, não faça asneiras. A sopa


nesta ilha prova muito mal. Coma antes do assado . . .
Atravessa-se logo o cirurgião:
-Nada disso. O assado pode ferir-lhe a garganta
pelo que está de tostado, além de que no molho há acri­
m6nia a mais.
-Mas, digam-me cá, os senhores é que são os juí­
zes da minha barriga ?
-Estamos aqui para o seu bem. Há aí mais man­
jares . . .
-Venham �ntão lá as perdizes. . .
- Santo Deus, a carne das perdizes é perniciosís-
sima ! Nada mais conducente à indigestão.
- Ora, ora ! Perdiz de qualquer jeito. Tudo, hem,
menos assada. Perdiz assada J perdiz estragada. Esta
cheira que consola. Perdiz de dedo DO nariz . . .
- Vozes de ignorantes. A perdiz, reza Averr6is, é
jndigesta do bico às unhas dos p.és.
- Então aquele cozido de vaca. Pode ser, amig')s,
aquele cozidinho de vaca ? . .
- A vaca, não há dúvida, é alimento são. Mas é
razoável que coma vaca estando em jejum, tratando·se
de prato sadio, logicamente puxado à substância ? ! Que
complicação não lhe irá fazer no estômago debilitado ? . .
E o despique entre o governador morto de fome e os
médicos, guardiões da sua melindrosa saúde, prossegue
paralelamente com o melhor sarcasmo e a sua verue à
mistura. Sancho acaba na Baratária por ameaçar Pedro
Récio de lhe espatifar uma cadeira na cabeça . se lhe
não desaparece da vista. Na peça do infortunado Judeu
-estamos no Bairro Alto-pergunta:
-Não há por aqui uma taverna ?
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Quando D. Quixote de la Mancha, praticando com


Sancho e o rapaz que lhe serviu de guia à Cova de
Montesinhos-e não tem outro nome que não seja o
Primo, tanto é ocasional e efémera a sua pessoa na
grande e verídica aventura do Engenhoso Fidalgo-re­
para que o dia está a declinar a olhos vistos, adverte :
- Vamos lá a ver onde é "que a gente há-de passar a
noite . ·.
.

- Não longe daqui há um ermitão- diz o Primo. ­


Mora numa casa que edificou por suas pr6prias mãos,
jUl?to à capela. A casa não é grande, mas cabemos lá
.
bem os três, e uma noite passadoira é.
-Terá ele penosas ? - perguntou Sancho Pança que
trazia ainda a gula acesa das bodas de Camacho onde
comera à grande e à labordaça.
-Ai tem, tem- acudiu o cavaleiro da Triste Fi­
gura. - Os ermitões de agora não se parecem nada com
os do deserto do Egipto, que se alimentavam de gafa­
nhotos e cobriam as nudezas com folhas de palma. E não
se fala de penitências, não senhor. Os de agora tratam­
-se. - E depois de uma pausa:-É um estilo. Com isto
não quero dizer que sejam mais ou menos religiosos , e
não serei eu que lhes atire a minha pedra. Mal por mal,
é menos nocivo o hipócrita que finge de bom que o peca­
dor descarado:
Nisto, alcançou-os um homenzinho, tupa que tupa, a
pé, atrás dum macho carregado, ao qual ia chegando ver­
gasta para andar depressa.
- O homem de Deus, vá mais devagar ! -exdamou
D. Quixote. -Rebenta a bestinha ! N6s também vamos
para esse lado . . .
- Estou com muita pressa, adeusinho. O que levo ali
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

tem de entrar amanhã em função. - E reparando que


D. Quixote erguera para a carga, lanças e alabardas,
olhos inquiridores, esc1areceu: - Se querem saber para
que são, eu lho direi na estalagem que fica adiante da
ermida, e hão-de achar-lhe graça. Vou lá dormir.
Tocou adiante, não reflectindo D. Quixote que toda
a pressa era perdida ou pelo menos escusada uma vez que
o homem ia passar a noite na locanda. Hora a mais, hora
a menos no caminho pouco adiantava ou interferia no
curso das coisas em face de tal programa. Por outro lado,
faltou Cervantes à observância naturalista, em que por
via de regra era meticuloso, partindo do princípio que
um macho, com uma carga taluda, espertado de quando
em quando pela chibata, andaria mais depressa que os
dois asnos e o bucéfalo. Ao primeiro contra-senso, a
freima vã do condutorJ ajuntava-se este desacerto.
Bastou semelhante encontro. segundo o texto origi­
nal, isto é . a versão recolhida por Cervantes de Cide Ha­
mete Benengeli, para resolver seguirem jornada sem
tocar na ermida, ao contrário do que o Primo tinha em
mira. E, botando adiante, apearam na estalagem com
a noitinha.
Uma vez cravado aquele marco miliário de modo
tão definitivo, dir-se-ia que a narrativa passava a novo
episódio, o do Retábulo, segundo a ordem cronológica.
E não. Imprevistamente no relógio de Cervantes os pon­
teiros fazem marcha atrás e eis que arrepia caminho desta
sorte: Disse o Primo a D. Quixote que chegassem à ermi­
da a beber um trago. Quando tal ouviu, Sancho Pança
meteu logo de espora fita, seguido dos dois. Mas Sancho
não estava com sorte. O ermitão andava por fora. Assim
declarou a sotae-rmitaiW.

293
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A sotaermitaiío ou sotaermitana seria uma dessas de


quem reza o Romanceiro:

Y si me hago santero
ella será mi erimitafía.

Tal como assoma ali na novela, apenas uma nesga de


pessoa, temo-la pícara engraçada dum episódio que Cer­
vantes, somos levados a supor, suprimiu. Os breves tra­
ços não passam dum fugacíssimo debuxo. Sancho pediu­
-lhe uma pingoleta para matar a sede que o atormentava.
Respondeu a criatura que de portas adentro não havia
com que um padre dizer missa. Mas acabava de chegar
com o cântaro da fonte e a água estava muito fresquinha.
Se eram servidos . . .
- Agua -respondeu Sancho em voz resmungada­
encontrei muita pelos caminhos. Era só a gente debru­
çar-se. Ah, bodas de Camacho, bodas de Camacho, que
até já me pareceis um sonbo !
Decepção amarga ! Que era legítimo perante aquela
tebaida birsuta ? O ermitão é muito provável que fizesse
jogo de porta e a ermitoa limitou�se a abrir os braços
como no orate frates. E volta a narrativa a refazer o
itinerário percorrido, duplicando�se: Con esto dejaron la
ermita y Picaron hacia la venta. . .
A acção desenrola-se tortuosa e enrodilhada, senão
contraditória, podendo dizer�se que tanto anda como
desanda. Salta aos olhos do entendimento que houve
interversÕ€s e mutilação de texto, alinhavos a linha
branca, remendos cosidos por mão precipitada. Primeiro
reparo: como se compreende que Cervantes bata amiúde
a tecla da ermida e do ermitão, dando�lhes quase um valor

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de leitmotiv, se não havia de tirar dali os elementos cen­


trais ou pelo menos de circunstância para um episódio
da novela, restringindo-se a uma troca insignificante de
dichotes ? A que vem a aliciante pergunta do guloso:
Terá o ermitão galinhas r E como se explicam as tergi­
versações do texto, bem acentuadas as voltas e revira­
voltas ? Com que fim DOS entremostra o nariz faceiro da
Picarilla?
Pode-se julgar afoitamente que andou ali a mão do
bom mestre Cervantes a reargamassar a cena esbarron­
dada, talvez insatisfeito, talvez com medo à censura e
então, induzido por discreta continência, não quedando
mais que o fumo duma página faceta e uItra-rápida.
Com vénia pelo ousio, permitimo-nos reconstituir o texto
a partir da altura em que está ainda para dobar o fio da
meada:
«Picaram os três para a ermida, em cujo flanco, para
lá dum horto onde verdegavam couves galegas e uma
cerejeira já tinha dado cerejas, se erguia em taipa e ado­
bes a casa do ermitão. Sancho Pança deu-lhe volta a
cavalo no Ruço, muito inclinado sobre o arção a procurar.
- Perdeste as estribeiras, Sancho ? - estranhou
D. Quixote, ao vê-lo caído sobre o lado.
- Procuro penas, senhor. Onde há fumo, há lume.
Este ermitão, se ama verdadeiramente o próximo, podia
dar-nos galinha à ceia . . .
- Sancho, Sancho, já vejo que a estadia que fizemos
em casa de D. Diego de Miranda te aguçou a gula. Gali­
nha é comida de fidalgo e mulher parida . . .
-Mas que não faz mal a um cristão.
-Não fará, mas que procuras tu ?
-Já disse, procuro penas das ditas. Se há penas, há

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galinhame. Se há galinhas, há canja. Ui, ui, cá estão


elas, às Tocadas ! Caramba ! Viva o nosso ermitão, qu�
o é dos de barbela untada. Lá esvoaçam na capoeira as
pitas e as pombas ! Boa vai -ela ! Horta com pombal é
paraíso terreal. Ah, cá estão mais penas, e não foram
ripadas há grandes horas ! Ib, são pretas ! ' São de pita
preta. Estamos com o nosso homem. De galinha a preta,
de pata a parda, de mulher a sarda .
Enquanto Sancho fazia o reeonhecimento dos lugares,
pareceu-lhe ouvir certo alvoroço dentro de casa. Depois,
ao voltar a cabeça, de relance, viu que um vulto, na mão
qualquer coisa como uma lança, contornava a esquina da
ermida e se embrenhava para as carvalheiras. Mas foi
tão rápido que Sancho não ia jurar o que lhe parecera ter
visto.
Entretanto o Primo, depois de bater à porta, reparou
que por cima do cancelo, atrás na penumbra, uns olhos
o espreitavam. Afirmou-se. Eram uns olhos pretos, flo­
ridos, mas que luziam desconfiados. Depois, esses olhos
teriam dado conta que haviam sido notados, visto que,
em menos dum rufo, entremostrou-se entre os umbrais
uma mulher doS' seus trinta anos, trajada sem esmero, .

mas limpa, bonitona, ar de todo assarapantado.


- Quem pergunta ?
- O ermitão não está?
- O ermitão não está. Vossemecês queriam-lhe algu-
ma coisa?

Acabavam de dar a volta à casa Sancho e D. Quixote,


e a mulher quando viu ao pé dela aquele homem armado,
tão esquipático, a lembrar um quadrilheiro da Santa
Hermandad, pareceu ainda cobrar mais medo, o que
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logo transluziu nos seus gestos e voz. Mas Sancho, que


fez reparo, adiantou-se:
- Senhora, vamos de jornada para longe, e não sabe­
mos onde ir ficar esta noite. Disseram-nos que se pedís­
semos hospedagem ao santo. homem que aqui mora, era
capaz de nos dar cama e at·! uma ceatazinba !
-Mas ele não está-tornou a sotaermitafia, ainda
não recobrada do susto.
- Não está-tornou Sancho. - Mas está vossemecê
que dá o mesmo. Não tem por aí um alpendre onde se
arrumem as btstinhas? Nós dormimos bem em qualquer
canto . . .
-Não temos alpendres, nem bons nem maus. Quanto
à casa, é pequena como vêem. Duas pessoas mal se viram
cá dentro. Mas grande que fosse, eu por mim não mando
nada-e circunvagava olhos timoratos, indecisa quanto
ao que devia fazer.
-Vossemecê que é aqui ? Que é ao ermitão ?-per­
guntou o Primo.
-Eu sou a criada, pois que hei-de ser para o santo
homem ? Um homem trôpego e decepado, entrado já em
anos, que passa a vida a rezar . . .
Lembrou-se Sancho do hómem que vira num relâm­
pago à esquina da ermida, mas limitou-se a dizer:
-Pois está com gente de paz. Aqui o meu senhor. . .
nunca ouviu falar no senhor D . Quixote de la Mancha,
que anda pelo mundo a endireitar tortos e a vingar injus­
tiças, acalenta os malhadiços, venceu o biscainho e livrou
a princesa Micomicoa? Pois, o meu senhor, este grande
fidalgo, paga quanto lhe fazem. O ermitão não está.
Está vossemecê e basta : Em casa de Gonçalo, mais pode
a galinha que o galo.

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-Tanta galinha trazes na cabeça e na boca, Sancho,


que acabas por ficar engalinbado-e..xprobrou D. Quixote
entre severo e sarcástico . - E sempre te digo: galinha
a pedreiro, se não foi roubada morreu no poleiro.
O Primo já tinha entrado para o quintal, logo seguido
de Sancho e D. Quixote, depois de prenderem as bestas
às argolas que pendiam da parede da ermidinh<i..
O Ruço torceu a cabeça para as couves, olhou para
Sancho, como a dizer: não posso refrescar a goela naque­
las folhas ? Mas Sancho não lhe prestou atenção, e sem
licença, passando adiante da mulher, meia perplexa,
en�rou pela casa, cuja porta inadvertidamente ficara
aberta :
- Ora, benza Deus esta casa e mais tudo quanto há !
A mulher acudiu, mas a destempo de tolher que San­
cho tomasse pé na espécie de vestíbulo e, ao passo que
tirava a gorra, deitasse olhos de peneireiro pelo que
havia dentro : numa prateleira, por cima do arquibanco,
luzia uma fila de bojudas malgas de marmelada, e chou­
riços e salpicães 0'\0 fundo, na cozinha, pendurados por
cima da pedra-lar, lembravam bonifrates na trangola
prontos a bater o saricoté. - À fome já não morremos,
disse para os seus botões. ,
Atrás de Sancho romperam os dois, e assim invadi­
ram o domicílio do ermitão onde se respirava uma media­
nia precauciosa. D. Quixote sentou-se no escano, acei­
tou um copo de água, que a mulher foi buscar à can­
tareira, mandando calar a Sancho que dizia:
-Numa casa destas não deixa de haver a sua quar­
tola com vinhaça da boa. O marufo cá dos sítios é de três
estalos. Molhe-nos a boca, santinha, que no dia em que
morrer vai direitinha para o Céu . . .
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

-Tem aqui água fresca. Este senhor que diga.


Acabo de ir buscá-la à fonte. Não há vinho que lhe
ganhe.
- Água fria sarna cria . . . Ná, gera também rãs na
barriga . . . Água s6 nos calondras-tornou Sancho . ­
Agua e pão, comida de cão.
- Cala-te, Sancho. Esta senhora dá o que tem. Aqui
não é ta vema . . .
Sancho e o Primo ficaram a rosnar, os olhos do es­
cudeiro acesos que nem brasas para as tigelas de marme­
lada, com a sua roda de papel a preservá-las das moscas
e da poeira como a patena no cálice. D. Quixote, como
lhe eslava no carácter. abrira colóquio com a mulher,
que era vivaça e, não obstante se não sentir à vontade
e falar receosa, tinha uma linda voz argentina:
- Então o ermitão é um antigo soldado de Lepanto ! ?
Muito me conta ! Tem uma perna lesa? Coitado ! E não
recebeu outra paga que não fosse o direito de meter-se
nesta ermida a rezar pelos pecados do mundo e a socorrer
os viandantes ? Coitado, coitado ! É sempre assim. O
nosso rei não tem culpa, são os ministros, são os minis­
tros que descuram os interesses dos servidores e para
quem Espanha são eles, o duque de Alba e os , seus
criados.
-Tem a perna lesa, mas anda a governar vida­
observou Sancho. -Não era ele que descosia como um
gamo, por detrás da ermida, nós a chegar ?
- Não, senhor, não senhor. Quem vossemecê viu foi
um dos muitos pedintes que por aqui aparecem e con­
somem a gente. O ermitão só se arrasta encostado à
muleta.

299
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- E então não está em casa ! ? Chide anda ele ? -tor­


nou D. Quixote.
- Não lhe sei dizer ao certo. Julgo que fosse a El
Bonillo, que fica no cerro, onde está um homem impor­
tante a morrer. Foi-lhe rezar as orações da agonia.
-E aquele povo que se vê à mão esquerda quando se
vem? A estrada dá muita volta, mas há-de haver carreiro
para lá. Ensine-mo que eu vou cá chamá-lo-disse o
Primo. -Nós não podemos ficar ao sereno, que está céu
de trovoada. Mais hora menos hora aí a temos . . .
Para lhe demonstrar que ir ter com o ermitão não era
fácil. saiu a mulher a porta para fora. D. Quixote en­
quanto ela representava ao vivo no teITado tal dificuldade
deixou-se tomar de quebranto. Caíram-lhe as pálpebras
e pôs-se a ver a Cova de Montesinhos, Belerma, as três
raparigas de aldeia a correr pelo prado, numa das quais
os malditos encantadores tinham transmudado Dulci­
neia. De permeio a casa, Sancho, o Primo, perpassaram­
-lhe na retina, como ao fundo dum horizonte baço coisas
e vultos meio escuros, mas o que basta para serem reali­
dades sensíveis. Assim não deu conta que, mal a ermitoa
virou costas, Sancho corria à prateleira das malgas de
marmelada, emborcava uma sobre a palma da mão e,
com navalha esperta, procedia a uma esPécie de escalpo,
repondo logo a calota com a rodela de papel e a malga
no seu lugar, de modo que só o Diabo diria onde ia a
vermelhinha. Depois, num salto de gato bravo corria à
lareira e cortava uns quantos salpicões. Alforjar tudo
para as algibeiras interiores da burjaca, imensas como
golfos, e sentar-se no arquibanco muito salamurdo, olhos
no chão, como se estivesse a meditar nos trabalhos
que Nosso Senhor padeceu no Algarve ou em quaisquer

300
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agruras da vida, foi obra dum instante. Tanto assim que


a mulher, recuperada pela suspicácia, entrou esbaforida�
percorreu a casa toda com o olhar: as malgas de marme­
lada lá estavam quietinhas e perfiladas na prateleira; a
porta para a cozinha, encostada ao batente; Sancho, me­
ditabundoj o macabeu do homem amodorrado-e res­
plTOU.
O Primo, afinal, ante o gesto da mulher que remetia
o provável paradeiro do ermitão para trás do monte, lá
no cabo do mundo, desistiu de ir ter com ele e pedir-lhe
a hospedagem"que ela não se julgava DO direito de lhes
conceder. Ainda havia uns restos de sol. O cavaleiro da
Triste Figura, havendo tirado o elmo, estendera a perna
a todo o longo da bancada e repousava da sua afanosa
cavalaria. Sancho, agora, era de acordo que, em vista dos
autos, se pusessem de novo a caminho. Assim fizeram.
Sancho ajudou o amo a montar, desprendeu por fim o
Ruço, meteu-lhe duas folhas de couve na boca, e deixou­
-se ir atrás de D. Quixote e do Primo, muito pegados a
discutir O Suplemento ao Virgílio Polidoro, e o curioso
que seria consagrar um capítulo a ermitérios e ermitões.
Puxou dum chouriço para cima da fatia de broa, que
trouxera para a jornada, e com a naifa foi cortando e
petiscando. Um beijo de tempos a tempos na borracha,
um bom naco de marmelada como postre, e deu graças

I
ao Criador dos melros que a vidinha não era má de todo.
O sino batia Trindades quando chegaram à esta­
lagem dos quatro caminhos. muito folgando Sancho que
o senhor seu amo a não tomasse por um castelo, como
era vezo dos seus olhos.
XIV
Passos na arada. A misoginia de Cervantes. D. Qui­
xote orador socialista. A voz dos anagramas ou os
arbítrios da-paciência. O criador toma-se de dó pela
criatura. Herói ou santo? Insignificâncias da vena­
t61"ia. O que valem Comédias e Entremezes. Vin­
gança, sáp-ido prazer dos homens. Todas em Castela
são Manas Gutiénez como entTe n6s Marias da
Roca. Os ouvidos pavorosos. Foi ou não Miguel
Cervantes retratado por Juan de láureguif

UE plantas roídas pela necrose, enozelhadas ou pa­

Q rasitas há neste bosque frondoso do D. Quixotef


Decerto que as há, nem podia deixar de havê-las
com tal nateiro. Já se disse que o Engenhoso Fi­
dalgo é supersticioso e misógino como o seu criador. Na
misoginia, de facto, se distingue D. QuixotÇ. dos cava­
leiros andantes, Amadis, Palmeirim, Selvagem etc . , que
eram doidos varridos por- mulheres e temíveis galantea­
dores. Cervantes deve estar às espaldas'do seu herói na
posse destas virtudes ou pechas. O amor do cavaleiro
da Triste Figura é de ordem cerebral: Deus sabe se
há Dulcineia ou não no mundo. A propósito da du­
quesa que tem fontes nas pernas, segundo a D. Rodrí­
guez, por causa do quê aquela e Altisidora arranharam
o castíssimo fidalgo como gatas assanhadas I lá vem este
piropo com todo o chiste madrileno: habiá echado en la
calle el Aranjuez de sus juentes.
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

o lado fraco de D. Quixote está na retórica. Algu­


mas vezes lembra um mestre de Salamanca nas Orações
de Sapiência, outras vezes um deputado discursando em
Cortes. D. Quixote é um arengador e moralista à ma­
neira tão predilecta dos pregadores e exegetas caste­
lhanos, salvo a sapiência e os versículos da Sagrada Es­
critura.
A discriminação do género humano em classes e suas
estirpes, com um desdém manifesto pela ralé e conceitos
ridículos quanto à natureza do homem, mostra a pouca
'
ou nenhuma cultura sociológica de Cervantes. A página
respectiva, embora escudada na pedantaria didáctica dum
mentecapto, é do pior que escreveu.> Quando o novelista
sai do terreno da vida comum e entra a discorrer sobre
altos temas em estilo de lente, temos droga. O D. Qui­
xote, homem de baldões e tropeçadas, arrancou-o da
pele.
Por sainete, que não por outra razão, imagina Cer­
vantes que a história de D. Quixote a trasladou do ará­
bigo, do seu autor Cide Hamete Benengeli. Não é mais
que uma graça, com que tantas vezes se divertem os es­
critores. Mas neste nome, com o seu quê de esotérico,
escavaram os cervantistas e acabaram por encontrar
cobras e lagartos. Os cultores de anagramas, que são
tenazes como decifradores de charadas, compareceram
também ao certame. Um deles pegou do dístico: Cide
Hamete Benengeli, historiador arábigo, e extraiu o ana­
grama: " Yo Mighel de Cervantes y Saavedra. Horto
Ignill. Quer dizer: Eu Miguel de Cervantes e Saavedra
que aspira à glória.
Para chegar à mírifica decifração houve que grafar
Mighel, como ele nunca fez, e interpor um y aristo-

3°3
N O C A VA L O DE PA U C O M SA N C H O PA NÇA

crático entre os dois apelidos. Em rigor, devia traduzir­


-se:Eu Miguel de Cervantes y Saa1Jedf'a� empurrado para
a fogueira.
À medida que se vai desenrolando o D. Quixote de
la Mancha, a figura do Engenhoso Fidalgo bem como a
de Sancho vão-se sublimando. Cervantes acaba por enter­
necer-se com o seu herói, não digo apiedar-se, que um
castelhano não sabe o que é piedade, mas toma-lhe ami­
zade. Parece que sofre com os seus infortúnios e naturais
percalços. Por outro lado, as suas loucuras, cambalhotas
e extravagâncias já não são tão grotescas . São partes ga­
gas dum doido de família, coitado ! Para estranhos pode­
riam mesmo inculcar-se como singularidades de um ma­
duro, de certa elevação espiritual. -Mas então não é
orate ? - tem-se apetite de perguntar. A verdade é que
Cervantes já lhe não parte os queixos, já não faz dele
bombo de festa, já o não humilha até à rua da amargura . .
Agora quando o prostra, é para exalçá-l0, ao estilo de
Deus. Assim sucedeu no baile em casa de D. António
Moreno, depois que as sécias folgazonas o foram tirar
para dançar e ele, ao cabo , canhestro, moído, ridículo,
pálido como a cera, se sentou no chão, em plena sala,
c1amando :- Larguem-me e cocem-se lá, senhoras, com
os seus desejos; a rainha dos meus é a'sem par Dulci­
neia de Toboso !
A cena excede em crueldade tudo o que se passou
em casa do duque. Um escritor espanhol dispõe destes
claros-escuros às mãos cheias. Esbanja a guache sem
medida. Nunca se importa de avaliar a mescla que faz
com o desenraizamento humano de tudo o que a dor
lh� plantou no peito. Quase se torna odioso. Mas a arte
de Cervantes, ou, melhor, O seu atilado instinto debuxa
;" 0 C A V, I L O D E PA U C O M SA N C H O .PA N Ç A

a cena com o pincel de Ribera; arrepia, mas prende-nos


pela sua radiação suprema.
A pessoa de Sancho presta-se. Apenas o episódio com
Ricote é de cante......:tura menos psicológica. Ricote, o moi­
risco e.xpulso, a certa altura do encontro diz-lhe :
-Vem comigo, Sancho. Vem-me ajudar a desenter­
rar o tesoiro e não precisas mais de te agarrar à enxada.
Ficas rico para toda a vida . . ..
-Não, tenho medo. Assim com 'assim, nasci pobre,
pobre bei-de morrer. E, olha, era fazer traição ao meu
rei. Quero dormir a sono solto.
Sancho era homem medroso da justiça, e com ra­
zão. Teria também em vista o governo da Ilha. Contudo
um espanhol nunca recusa embarcar numa empreitada
que envolva a descoberta dum tesouro. Afinal, que é
a economia de Espanha senão uma comandita de aventu­
reiros que têm andado pelo mundo a desenterrar rique­
zas escondidas e a desviar as águas do Pactolo para che­
gar às areias preciosas?
Honradamente Sancho declara '3. 0 amo que o mor­
domo do duque lhe entregou 200 escudos de oiro, e com
eles a cantar no alforge até deita melhor a sua sentença.
Bem certo que no convívio com Quixote se ia desen­
grassando. Mas teve tempo bastante para despir a car­
caça de boçal e falar como Diógenes ? Sancho, depois que
abandonou o governo, batido e escarmentado, é outro que
tal um filósofo da escola cínica. Mas com todos estes
senôes, aceita-se o Quixote, aceita-se o Sancho, e a obra­
-prima fica de pé. No entanto sente-se um progresso de
"
natureza literária da Primeira para a Segunda Parte.
Os episódios são menos abracadabrantes. Por outro lado,
a pena do novelista tornou-se mais conspícua e respel-
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

tadora do respeitável, do padre, do rico, do rei. D. Qui.


xote era um louco revolucionário, quase acrata, livre­
-pensadorJ em despeito de invocar os céus. Um Naza­
reno sem serra e sem machado, ao estilo huguenote. Na
Segunda Parte é católico- apostólico - romano, monár­
'
quico, burguês, e dir-se-ia que foi aluno assíduo dum
Scato. Já não procura endireitar o mundo todo, que
saiu dos eixos, mas só parte do mundo. Não surge de
complacente hóspede do duque, sorte de padixá orien.
tal, caprichoso e versátil ? E assim até no encontro com
as imagens dos santos cavaleiros, que faz preceder de
Dom: D. S. Tiago, D. S. Jorge, D. S. Paulo, todos mo­
ços fidalgos da Real Casa de Deus.
Com D. Diego de Miranda não se mostra menos pa­
laciano. Ê este que tinha a ave ensinada que tanto intri­
gou os escoliastes.
Diz o cavaleiro do Verde Gabão para D. Quixote que
os seus passatempos são a caça, a pesca, mas que não
tem falcão nem galgosj quando muito lá leva para o
monte o seu perdigón manso e algum furão de boa ralé.
Perplexidade dos tradutores e intérpretes ante aquele
perdigón manso, à letra, perdigão manso ou de gaiola.
Para Rodríguez Marín e outros quecia dizer cão per­
digueiroj para Viardot, idem, chien d'arrét. Ora trata­
-se do perdigão reclamo ou cantor. Com o seu chamo,
faz o caçador pérfido, emboscado no mato, grosso des­
baste nas perdizes que vêm ao cascabé, cascabé do ca­
tivo. O pobre foi adestrado, a poder de blandícia e bom
cibato, a cantar. Canta sempre, tendo perdido um tanto
a noção ambiente das estações. Quando ele melhor can­
tava era na Primavera, abrasado de amor. Desentra­
nhava-se em epitalâmios. Cantava também Verão fora
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N CH O PA N ÇA

a reunir a prole e, no Outono, saudoso da mulher, se


lha tinham matado ou desertara. Agora, sob o impera­
tivo de todos estes mandatos, canta sem ordem, nem
repouso, satisfazendo ao instinto transtornado e à disci­
plina. A sua voz de cantador bem comido e bem bebido
enche o vale. Nada mais impressionante que uma volata
da garganta delirada no silêncio da meia manhã. As
perdizes, que são as mais bonitas aves da Península, com
o seu fichu cor de sépia, o seu manto de merino pardo e
peitoral esbranquiçado, meninas dos olhos duma finura
de 6nix movendo-se à beira duns anteparos de âmbar e
granada, meias vermelhas de nylon, vêm DO passo ágil de
perluxosas ter com o menestre1 desesperado. E é a torpe
açougada. Ai está para que serve e o que é, explorado
em seu belo instinto pela malícia do homem, o perdig6n
manso.
As oito comédias e oito entremezes chama Miguel
de Cervantes ((a sua antiga ociosidade)). De facto, todo o
seu teatro, salvo as comédias da primeira fase, Trato
de Argel e Cerco de Numância, dá a impressão de obra
assucatada, feita a trouxe -mouxe, para ganhar uns
cobres. O problema, depois, era encontrar empresário
que lhas pagasse. Não movia a Cervantes nenhum outro
m6bil. Tal actividade corresponde, aliás, ao período
crucial da sua vida e àquela idade do homem em que
mais precisa de dinheiro. Pedro de Urdemalas, símile
do nosso Pedro de Malas-Artes, é um símbolo.
Cervantes gosta do epíteto, sobrecarregando algu­
mas vezes a frase pleonàsticamente. Por exemplo: alguna
parda y escura nube O epíteto dá elegância à frase.
. . .

As vezes é a pérola na gravata de um homem. O escri-


N O C A VA L O D E P A U C O M SA N C H O PA N ÇA

tor peninsular tem um grande fraco por este agradável


artifício.
As palavras que proferiu Sansão Carrasco de remate
ao duelo com o cavaleiro da Triste Figura, mascarado
aquele em cavaleiro do Bosque, fornecem um documento
particularmente curioso sob o ponto de vista de esclare­
cerem o psíquico espanhol. Como bacharel e homem de
imaginação, cismara na maneira de curar aquele pobre
Alonso Quijano, seu amigo e patricio, usando do récipe:
a mordedura do cão CUTa-se com o pêlo do mesmo cão.
Cifrava-se tudo em desafiá.lo, vencê-lo, e impor-lhe se­
gundo as leis da Cavalaria esta pena: O senhor D. Qui­
xote agora roda ao direito para sua casa e de lá não sai
durante tal período. O tempo a fixar devia correspon­
der ao que lhe era necessário para cair em si e curar-se
da maluqueira.
Bem ia.-se no duelo, por um desastrado azar, o· der­
ribado e vencido não fosse ele. Ele é que havia de ir de
cadeia ao pescoço prestar vassalagem a Dulcineia de
Toboso, o que era o menos. Com as costelas partidas,
toda a sua comiseração se converteu em cólera e desejo
de vingança. Eis que o próprio diz: - Eu 1Joltarei a
procurar este doido. Mas não há-de ser na intenção de
que por obra minha recobre o juizo, mas de que me pa­
gue das costelas arrombadas.
Ouço dizer que a vingança é uma forma da fereza j
de acordo. Que seja o holocausto ao altivo coração da
grandeza de ânimo, é possível; o carácter espanhol veste
aqui a sua couraça e demonstra a sua força.
A expulsão dos moiriscos merece a condenação, por
sinal bem patética, de Cervantes. Mas breve se reprime
e vai balbuciando uma justificação muito pálida e soca-

308
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N Ç A

vada de subentendidos e parapeitos contra a intolerância


política e religiosa. Ê intuitivo que o fantasma da Santa
Inquisição lhe mete tanto medo que gagueja. E ficamos
assombrados da labilidade astuciosa com que descai da
defesa da lei do banimento para o elogio da Reforma.
Fala Ricote , que emigrara para Alemanha:
-Tive o pressentimento de que ali se poderia viver
com mais liberdade. Os habitantes não olham a ninha­
rias. Cada um nesta terra, em geral, pensa o que lhe
apetece, segundo os ditames da sua consciência.
Sobre liberdade, não se cansa de proclamar que é o
dom mais precioso que os céus deram aos homens. Su­
pera a quantos tesouros encerra a terra e o mar. Por ela
como pela honra é obrigação do homem sacrificar a vida.
Pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode suce­
der a um indivíduo ou a um povo.
D. Quixote era supersticioso e acreditava em agou­
ros. Quem diz D. Quixote, diz Cervantes. Este, se o
não fosse, não era homem do seu tempo, amamentado
pelo leite da loba etrusca que veio lá de longe parir na
Península Ibérica. Esses agouros subsistem ainda aquém
e além-fronteiras. Ê agouro encontrar logo de manhã
um frade da Ordem do bem-aventurado S. Francisco.
Não há olvido em Sancho, portanto, equívoco no seu
criadqr, quando aquele, referindo-se à mulher, diz:
- A minha Maria Gutiérrez.
O que há é erro de interpretação dos e."'Cegetas. Um
aldeão espanhol chamaria naquele tempo, e é provável
que chame ainda hoje à sua mulher Maria Gutiérrez ou
Francisca Gutiérrez ou Luísa Gutiérrez, como entre n6s
chama Maria da Roca ou Maria Fagundes. E verdade
que também chama à filha Juana Gutiérrez, mas a regra
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O P A N Ç A

pode abranger a prog�ie. Adiante a filha chama-se


Sancha e Sanchica. Seria, porém, este o seu verdadeiro
nome de baptismo ou veio-lhe tomando-o do pai ?
Quando Cervantes desmente que usou o apelido, lo­
grado por Avellaneda, tem razão e não há motivo para
considerar o facto como segunda obnibulação: Não se
compreendia de outro modo, nem pode haver Qutra ex_o
plicação, se rio próprio D. Quixote, pouco antes deste
passo e por várias vezes, tão assinaladamente que aparece
destacado a subscrever as célebres cartas mandadas ao
marido e à duquesa e vice-versa, se lê escrito com todas
as letras o nome de Teresa P�nça.
Sancho, na terra dos sete ouvidas por detrás das pa­
redes, é cauteloso como zorra a quem já entalaram o
rabo. Diz para Sansão Carrasco:
-Dou-lhe a minha palavra de honra de escudeiro
que viam uma fona comigo se me pintassem de desonesto
ou como tendo soltado voz menos cristã !
E D. Quixote na emergência terá emitido opiniões
conformes de firmeza na doutrina da Igreja e prática das
virtudes cristãs , em cujas barreiras da fé se bateram
contra a descrença e heresia homens fortes, verdadeiros
beluários do pensamento. ,
Estas e outras vozes penitenciais fazem-nos lembrar
Camões a emendar a mão de poeta pagão, cantor de
Vénus e da Ilha dos Amores, com as estâncias consa­
gradas a S. Tomé , remendo que dá tanto nas vistas
como um chapão de lata num vaso de bronze. E estamos
a ver o poeta, acanaveado diante do todo-poderoso Bar­
tolomeu Ferreira, censor:
- Eu emendo . . . Eu emendo.
Fazem parte do mesmo acto de atrição as afirmações
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

de fé de Quixote e de Sancho, imprevistas, fora de tempo


e lugar. que nada na acção novelística recomenda, quando
pela terceira vez largam a endireitar o mundo torto de
Cristo.
::e menos que provável que Miguel de Cervantes fosse
alguma vez retratado por Jáuregui. Jáuregui devia ser
tão mau pintor como era mau poeta e dramaturgo. De
uma com&:1.ia sua pateada, um gracioso expressou: se
quer aplausos, que os pinte.
Equivale a dizer, por exemplo, de uma personalidade
doble de médico e de escritor: os escritores têm-no por
bom médico; os m,�icos, por sua vez, crêem que seja
um bom escritor. Mas Jáuregui era homem de posses,
que habitava uma casa rica, 52.5 ducados de renda,
bitola de nababo, e foi o pintor da Corte, durante algum
tempo, mais em moda.
Aquela altura da vida de relações filipina, ser re­
tratado era privilégio dos grandes do Reino e do alto
dera, simplesmente porque nasceram grandes, ou por­
que os guindaram a príncipes da Igreja ou se haviam
notabilizado no púlpito ou nas letras. Que foi Cervantes
debaixo do ponto de vista da graduação social até muito
cerca das portas da morte ? Um zero. Os retratos, com
que os editores vieram a ilustrar o frontispício do
Engenhoso Fidalgo, foram desenhados pelos informes
que forneceu da sua pessoa no Prólogo das Novelas
Exemplares, aproximativamente, como os retratos-robot
para uso da polícia, ou feitos com estampilhas por curio­
sos. Obra de palpite.
Um que deu muito que falar e que a Academia �s­
panhola pendurou no seu salão de honra como autêntico
-terceiro autêntico o denominou um cervantista incon-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

formado-atribuído a Jáuregui é averiguadamente um


falso, fabricado, com o socorro da descrição que Cervan­
tes traçou do seu físico, sobre um dos fidalgos toledanos
que figuram no Enterro do Conde de Orgaz.
Duas pinceladas a menos aqui, duas pinceladas a
mais além, tendo aproveitado o fundo pintado de uma
velha tábua, conseguiu o falsário encaixar os termos do
auto-retrato literário numa daquelas personagens gre­
quescas. Mas a expressão, o quid que constitui a indi­
viduação fisionómica, quem os garante ? Olhe-se para
esse rosto esmaecido, rasgado de olhos, contracto no ín­
timo, oblongo e de arestas ':::=35, sobrenaturalizado por
um pensamento religioso, e descortina-se o seu modelo
na personagem que está ao centro do Enterro, acima da
espádua do bispo que preside à encomendação. Mas, na
turma, qualquer um dos outros figurantes, de perinha e
bigodes caídos, nariz afilado, poderia ter fornecido ele­
mentos à enxamblaria do pseudo-retrato. Aqueles rostos,
porém, acutângulos, austerizados, ascéticos, de: gente
agarrada às sombras e às elinas do vento de altitude,
plenos de castiço ancestral, não condizem com o tipo da
Andaluzia de que Cervantes, pelos vistos, tinha marca­
dos alicerces.
Apraz a quem leu o D. Quixote ver DO seu autor um
chico do Sul, alma volúvel, ligeira e apreensora, ágil de
imaginação, sequioso das belas coisas carnais, nada de
nada o castelhano, balançado entre os gozos entrevistos
do céu e os inconfessados mas diferentes interesses da
Terra.
Parece que têcnicamente o falso não tinha defesa pos­
sível. Mas bastava uma pequena análise da referência
de Cervantes para se chegar à mesma conclusão. Escre" e

312
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

Cervantes: pues le diera mi retrato el famoso Juan de


Xaurig1ti. Se Jáuregui o houvesse pintado teria dito pre­
ferentemente : pues ia 1e diera el retrato que me hizo c1
famoso Don 11,an de Xaurigui, partindo nós do princí­
pio de que estivesse, como coisa oferecida, em posse de
Cervantes. Mas quem era ele no século para merecer
a distinção de ser solicitado para se deixar retratar ?
Demais disso quem o retratava era um moço de 16
para 17 anos. Depois, não se figurava, escrevendo: este
que aqui vês porquanto, se tivesse em mira aclapt::l.T
. . .

os dizeres à pintura, e."(cederia os limites da contrafac­


ção com inculcar-se com seis dentes mal acondiciona.
dos y peor puestos, porque no tienen correspondencia
los unos con los atToS circunstância que não se descor­
I

tina no retrato, em que a boca aparece tão fechada como


um ânus de galinha. É certo que podia levar-se a porfia
didáçtica ao apuro de afirmar que, descrevendo-se em
1612 como era em 1600, seguiu num ponto o retrato,
noutro ponto o que à data lhe indicaria o próprio espelho,
então já autor da Primeira Parte do D. Quixote e não
arbitràriamente citado. Mas tudo isto é uma especiosi­
dade híbrida coagulada de chicana mental. Jáuregui não
o pintou, nem nenhum artista coevo o pintou.
De resto, segundo a alusão de Lope de Vega, Cer­
vantes era muito diferente dos emproados senhores tole­
danos do Enterro do Conde de Orgaz e do Esp6lio. Usava
óculos amarelos, comparáveis a ovos estrelados que se
houvessem esborrachado na sertã. E não custa admitir
que semelhante atribuição seja mais que facécia pura,
pois parece que eram amarelos os óculos aconselhã,veis a
quem sofria de oftalmia, embora de Cervantes não seja

3'3
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

conhecida qualquer outra moléstia. "que não fosse do fí­


gado e lhe veio aliás a ser fatal.
A pintura foi em Espanha uma arte reservada ao
serviço de Deus, dos seus representantes e ungidos, e
das mais coisas nobres anexas. como a poesia dos acrós­
ticos, num grau de severidade e respeito, que 56 viria
a degelar a partir de Goya. Os admiráveis pintores es­
panhóis pintavam, todos, dir-se-ia, depois de serem re­
cebidos em audiência pelo rei ou ajoelharem à Sagrada
Mesa da Eucaristia. Para eles, os únicos seres válidos
do mundo eram o fidalgo e o frade, e a restante bicheza
não passava de sarcasmo ou bem-humorada paisagem.
Como se mostravam diferentes no conspecto da na­
tureza e dignificação dos actos sociais os flamengos e
italianos que pintavam a carne, a vida com paleta apo­
teótica e , sempre que podiam, não se furtavam ao con­
dão de celebrar o prazer, o amor, ou propensão para
esses desatinos úteis da física humana ! ?
Basta olhar para a alegoria de Ticiano à batalha de
Lepanto. A Religião é representada por uma loiraça de
bela carnadura à mostra, apenas com uma faixa nos rins,
e a Espanha por uma não menos bem fornida matrona,
em que o marcial não afoga o afrodisíaco ! Este con­
ceito planturoso dos pintores do Renascimento contrasta
ainda, quando se trata de assuntos sagrados ou conexa­
mente sagrados, com os espanhóis , rígidos, imbuídos de
exclusivo aristocrático ou celeste !
xv
Traços para o retrato espectral de E s p a n h a. .
Mensagem que nos trouxe Miguel de Cervantes.
D. Quixote ou Alamo Quixano o Bomf Pois nwT1'4
D. Quixote, o delirado cavaleiro andante 1 Viva,
viva Alonso Quixanc, o Bom! TreSl.lairos estétiC<Js
dum espírito singular. A coragem das retractações.
A Espanha de sempre. O que dita a voz universal
da solidariedade

QUIXOTE é uma espécie de retrato espectral de


D
.
Espanha, por conseguinte, entrevisto nas suas
• cartilagens, plexos e ossaturas, desarm6nico e

apT�nsivelmente absurdo, e, lato sensu, a traços esfu­


mados sobre o abstracto, a miniatura do mundo.
O complexo de destruição, que aflora no cavaleiro,
incorpora-se ainda ao ideal de fazer melhor. insatisfeito
e inconformado o espanhol com a ordem das coisas, que
Qutros encaram através dum prisma evolutivo, e eles
semprt: teológico. Há nações loucas como há indivíduos
loucos. Uns e outros não serão os piores da espéciet mas
são os mais perigosos. Com as coisas transpostas para o
absoluto ou dissociadas até o elementar I não nos aperce­
bemos bem dessa loucura. Loucura de fácies epiléptica,
mas susceptível de ludíbrio. Daí o serem monstruosi.
dades geniais, incubadoras tanto de bem como de mal.
Todas as partes gagas de Quixote, como o ataque
aos rebanhos e o acutilamento das marionetes do retá­
bulo das Maravilhas pelo próprio Engenhoso Fidalgo,
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

são produtos do mesmo vibrião. Na novela como no


trono, a barreira do lógico e do humano é vencida a
cada transe. Isabel, a Católica, não passou um dia e uma
noite, sem comer nem beber, prostrada de joelhos pe­
rante Jesus Crucificado para que houvesse por bem
(Pluquiesse) matar a ela ou ao Mestre de Calatrava, que
vinha tolher que o seu casamento se celebrasse ? ! No
mundo dos mistérios. sejam de ordem metafísica e que
nos escapam, ou electrónicos, de que começamos a esta­
belecer o alfabeto, poderá assegurar-se que o pensamento
não tem acção a distância ?
A rogo da rainha, por inspiração lelal da vontade,
celeste ou satânica, por imantização, o desmancha-pra­
zeres pateou, intoxicado. Semelhante fim dir-se-ia obra
de cobra cuspideira, uma cobra cuspideira psíquica que
ferisse a distância. Realmente, seria caso para formu·
lar se não dispunha da virtude mágica de conseguir,
mercê de poder oculto, que os adversários sucumbissem
na hora oportuna. Que aliança tinha com os génios das
sombras ? Para ela, e para os grandes dominadores es·
panhóis. quer em nome de Deus, quer do princípio mo­
nárquico, todos os actos eram justos ou pelo menos jus·
tificáveis.
O Fuero viejo de Castela prevê as 'Várias sínteses
da barbaridade: Esto es fuero de Castilla, que a todo so­
lariego puede el Senor tomarle el cuerpo e todo quanto
en el mundo ovier. e el non puede por esto decir afucro
ante ninguno.
A Espanha é uma nação que, desde que o é , vive em
estado febril e sonha em pesadelo, por falta daquela hi­
giene de alma, que praticam comummente os outros po­
vos. No seu sonho há a hiperlucidez fulgurante de quem
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N Ç A

se julga em vigília e a quem animam misteriosas super­


faculdades. Não é raro que na loucura de D . Quixote
espreite a desconfiança contra a própria imaginação
transviada. Verifjca-se no que diz a Sancho depois da
descida à Cova de Montesinhos e vem a sublinhar
quando, ao apear de Cravilenbo, acautela o escudeiro
contra a inútil linguareirice e céptica singeleza.
Ê evidente que em Espanha os féretros nunca mais
acabam de passar. Acaso enterraram de vez a Carlos V
e a Torquemada ? Em cada sobressalto deste povo estu­
pendo, acordatn e vibram as antigas forças subjectivas
na porfia de dominarem a viva realidade. O império uni­
versal, a unificação peninsular, o reino de Deus . . . des­
vaneceram-se , mas paira sobre Espanha a sua radioac­
tividade espiritual.
A Armada Invencível deu no mais lamentável vaza­
-barris da história. Filipe II o Prudente ! Prudente por­
quê? Pelo contrário) o reinado deste monarca está cheio
de arremessos e inconsiderações. Se prudente quer dizer
desconfiado) pérfido) raciocinador ) maquiavélico) mestre
de tranquibérnias) vá, que está certo. Toda a sua época
participa desta sugilaçi'i.o. Como se havia) por exemplo )
de fugir à dedada do poder iníquo e discricionário ?
O seu reinado correspondeu à idade de ouro dos pícaros.
Foi uma riqueza para os novelistas e os aguazis. A escola
literária não encontrou melhor pábulo do que sucessos
da hampa. Todo este rei, a partir do cognome) é uma
contradição. Quantas vezes se não encontra o símile no
D. Quixote, desde os moinhos de vento até a tunda que.
lhe deram os iangueses?
A t�imosia do D . Quixote : vamos adiante, Sancho !
não é. a marcha e persistência dos soldados dos terços
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

em Milão e Flandres, rotos, esfárrapados, mendigos e


inteiriços no brio ? Não é o soldado que passa com as
pantalonas melhores às costas dentro dum embrulho?
A vocação de D. Quixote foi a da Espanha: Yo nací por
querer deZ cielo, en esta nuest7a edad de hieno, para
resucitar en ella la de oro . . . lo soy aquel para quien
están guardados los peligros} las grandes hazaiias, los
valerosos hechos.
D. Quixote, cavaleiro do ideal, expira com o senti­
mento da sua pequenez e loucura, como Filipe II, adail
d� Cristo, no Escurial. As vozes, em seu sentido supe­
nor. são as mesmas :
- Aqui está em que pára tudo !
Na ralé e propensão para recomeçarJ embora exaus­
tos de força, na reacção contra o impossível ou o for-mi­
dável, D. Quixote e Espanha são imagens do mesmo es­
pelho convexo. Isso de o bispo de Compostela vir a Por­
tugal e, por meios capciosos, roubar os esqueletos dos
corpos tidos e havidos por santos, Santa Senhorinha,
S. Frutuoso etc. assenta bem neste crepuscular trágico
do espanhol. Não escasseiam na novela cenas análogas,
tal a da marcha no lusco-fusco da alba para Toboso, à
procura de Dulcineia, ou do ataque aos, encamisados,
com o cura de Alcobendas a clamar a mofina ! Mas, em
teatro algum do mundo se processam factos desta ordem,
a rapacidade terrena aliada ao sentido mais transcen­
dente da vida, ou o espiritual JIlais subtil ao material
mais barro.
D. Gelmires primeiro enganara os bracarenses, dis­
farçando sob todas as maneiras os seus desígnios, depois
mandou desenterrar os defuntos à capucha e escondeu­
..()s nos seus aposentos, sendo crível que os metesse

318
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N Ç A

com ele n a cam.l em que dormia. Quando pôde, antes


do dilúculo, fugiu com as ossadas e arrojou-se a atra­
yessar o Minho que ia, em toda a força do caudal. de
monte a monte. Al·!m da traição, em nome de Deus, a
todos os deveres da hospitalidade, demonstrou o arrojo
dum paladino do S. Graal.
Na batalha de Rocroy, havendo-se perguntado a um
capitão espanhol que número de soldados tiD�a o seu
terço, respondeu:
- Contem os mortos . .
Filipe IV, um degenerado do carácter espanhol, van­
gloriava-se de haver ferido 44 batalhas em 44 anos de
reinado. Mas estávamos já na idade do motim das capas
largas e dos sombreros redondos contra a capa curta e
o sombrero de três bicos. A fibra heróica degradara-se.
O espanhol passou a viver no desterro de si próprio,
mas sem se dobrar na força oculta, transcendente que o
traz à superfície dos fenómenos sociais como insoçobrável
náufrago. Vem assim duro, inclemente, inconfundível,
desde Sagunto e Numância e tal qual perder.se.á na
história. Ao lume do seu Sinai interior, não admira que
tenha petrificado na hipérbole do absoluto.

Que mensagem nos trouxe Miguel de Cervantes, esse


homem visceralmente infeliz que se saiu com o D. Qui.
xote de la lHancha quando as tertúlias literárias e os
oráculos espertos do tempo o consideravam autor falhado
em toda a linha ?
Pois ela lá vem no próprio livro, tão expressamente
como num testamento:
Dai.me al�víssaras, meus bons senhores, que já não
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

sou D . Quixote de la Mancha, mas A lon.so Quixano,


alcunhado de Bom pela estima dos meus patricios. Sou
o inimigo de A madis de Caula 'l: todos os da sua laia.
Excomungados sejam !
D. Quixote lança pois a sua execração sobre a Cava­
laria andante, o mesmo é que sobre o espírito de aven­
tura que comporta força, coacção, sujeição, intolerância,
zelo intempestivo, predomínio sobre o fraco, e todas as
admiráveis qualidades medievais conducentes ao poder·
pessoal, glória bélica e culto da personalidade.
Esta reconversão ao homem natural chocou em Una­
muno a filosofia poética ou, se querem, a e1ucubração
do esteta, que aspira a não pensar como os outros, nem
a seguir a esteira dos outros nos mares ignotos da psi­
cologia humana.
A sua Vida de D. Quixote é, salvo o assunto, uma
glosa no género das de Martinho de Azpilcueta, que foi
lente em Salamanca antes de sê·lo de Coimbra. Também
Unamuno interpreta e comenta, como de versículo para
versículo, os passos de Quixote e de Sancho, integran.
do-os todos eles, mercê da sua poderosa dialéctica, no
conceito que professa da vida, da Espanha e do homem.
Tinha Unamuno uma noção acabada e inalterável destes
três valores essenciais, debaixo do ponto de vista espa­
nhol ? Em verdade, seria difícil pronunciarmo.nos. Una.
muno era deísta e todavia a sua heterodoxia é tudo o
que há de mais discutível. A Espanha infeliz, dece·
pada das mãos prometaicas, conduzia-se desde longe por
absurdos caminhos, faltando à sina em que, orgulhosa na
impotência e atribulada, cristalizara pela incapacidade
de prover ao seu sonho desmedido. Ele pr6prio não veio
dizer que, tratandcrse de uma nação essencialmente ori·

320
N O C A VA L O D E PA U C O M S .4 N C H O PA S � A

ginal, o facto de sê-lo a afastaY3 das rotéls traçadas pelos


demais países do Universo ? E. quanto a vida, não esgo­
tou a melhor arte a querer-nos persuadir que tudo que se
passa debaixo da rosa do sol é uma tragêdia com os seus
espasmos de vesânia e as suas abertas transit6rias de lu�
cidez e bonança ? No livro referido, uma passagem. aliás
sublime de alor, denota a que ponto esta noção da inani.
dade e do vácuo obsidiava a sua alma religiosa: A vida é
sonho. Será acaso também sonho, Deus meu, este Uni.
verso de que és a Consciência eterna e infinita ? Será
um sonho teu f A caso nos estarás sonhando f Seremos
sonho, sonho teU . n6s os sonhadores da vida r E, se assim
fosse, que seria do Universo todo, que seria de nós, que
seria de mim, quando tu, Deus da minha vida, viesses a
despertar? Sonha-nos, Senhor ! E quem me diz que não
despertas para os bons quando eles à hora da morte des­
pertam do sonho da vida ? Podemos porventura nós, po­
bres sonhos sonhados, sonhar o que seja a vigília do
homem em tua eterna vigília, Deus nosso ? Não será a
bondade resPlendor da vigília nas obscuridades do so­
nho? [ . . . ] Sonha-nos, Deus do nosso sonho !
Unamuno não temia cair em contradição porque para
ele uma das formas dos entendimentos superiores era o
prazer de rectificar-se. Apenas não são susceptíveis de
cometer a rectificação os espíritos dogmáticos e portanto

I
tacanhos ou medíocres. Assim, a propósito de D. Qui­
xote, ora lança o anátema: - Morra D. Qui:x:ote, e viva
Alonso Quixano o Bom ! - como virá mais tarde, neste
livro, a bater no peito, repeso do que dissera : - Pe rdoa­
-me meu senhor D. Quixote ! Pega-me a tua loucura,
pois que sem ti, sem os homens iguais a ti, cavaleiros

32I
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N ÇA

do ideal, que seria do '111tndO ! Não, viva D. Quixote!


D. Quixote maltratado, D. Quixcte morto !
Para um artista, Alonso Quixano tem interesse
muito aleatório. Este cidadão sensato, que corre as le­
bres , possui uma livraria recheada de velhos autores,
vai à missa, procura trazer igualmente em dia as contas
da lavoura e da alma, interessa mais o sociólogo. S nele
que repousa a saúde e bom funcionamento da República.
O artista prefere-lhe o maníaco, o original, o excên.
trico. Mas à civilização, à Espanha integrada na Eu­
ropa ou que terá de integrar-se na Europa, ao mundo,
poderá haver dúvida que lhe caiba hesitar e não tenha
de decidir-se a extirpar como um cirro este fátuo vi­
vente ? Em nome, pois, da paz e do progresso teremos
que clamar com Cervantes e o Unamuno da primeira
leitura: Viva Alonso Quixano o Bom, e morra D. Qui.
xote ! S verdade que um espanhol sem areia não presta;
não é espanhol castiço; falta ao quilate. Por outro lado,
certas ideias, para que triunfem, têm de enlambuzar·se
de loucura. É como certas drogas que a farmacopeia mi­
nistra em granjeias cor·de·rosa ou pílulas douradas. Mas
o mundo novo tem de fazer·se em equilíbrio e com todas
as higienes.
A Vida de D. Quixote, em sua tessitura exegética,
é página por página tal um tratado teol6gico em apos­
tilas. A cada passo Unamuno cita Santa Teresa e Afonso
Rodrigues , autores místicos . Mas o processo dialéctico
está a carácter dos casuístas espanhóis com suas pará­
frases e a sua inexaurível tropologia, reenviado o sentido
literal a segundo plano. Interessante, não há que dizer.
Todavia, sempre a imaginação criadora, para mais e.xal·
tada, encontrará em seus recursos lógicos explicação acei-

322
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O P A N ÇA

tável para as especulações mais extravagantes e modos


de vestir com especiosidade a tese ou o conceito que pre­
tenda impor ao cr·�dito público. Assim acontece, por
exemplo, que este Sancho Pança, que Cervantes pintou
cobiçoso, mesquinho, ignorante, socarrón, majadero, ca­
tólico romano por vezo, tanto assim que nem uma
só vez em suas andanças o vemos ir à missa, Unamuno
lhe confere a cada passo foros de bom e de cristão: . y
. .

tu fidelidad te salvará, Sancho bueno, Sancho cristiano.


O camponês, em si, não é bom nem mau. Mas por­
que está perto pa Natureza em tudo o que ela conserva
de estático no que concerne as leis gen�ricas. possui
as manhas do homem, ao fundo da escala racional, resul­
tantes do contacto estreito csm as necessidades elemen­
tares e os seres que lhe parecem úteis. � intuitivo que o
entendimento se lhe tenha desenvolvido em conformi­
dade. Cervantes pinta-nos Sancho despojando o frade
que. D. Quixote deita abaixo da mula com um bote da
lança; regateando com o amo a soldada ; logrando-o nQ
cômputo e natureza dos açoites que deveria dar na bunda
e si.lbstabelece nas árvores para desencanto de Dulcineia,
a tanto por peça; sonegando o pecúlio achado na Serra
Morena; extorquindo os três poldrinhos a Quixote; afer­
rolhando bem aferrolhada a gratificação com que o du­
que procura coonestar as pachouchadas que os dois, como
uns pelotiqueiros, vieram representar a palácio para seu
desenfado. Numa palavra, temos nele o perfeito velbaco,
mas estas velhacarias que são imanentes ao aldeão as
inscreve Unamuno no capítulo da informalidade. Nisto
ainda revela o dom idiossincrásico do espanhol quando
procura amoldar ao seu critério a diferença de modos que
lhe oferece a vida ou mesmo se lhe deparam nas reali-
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

dades espirituais. Este forçamento das coisas à unidade


é ainda uma das pechas congénitas do espanhol. Para
ele a vida não é como é, mas como devia ser, ou ainda
como se lhe debuxa através de lentes, sujeitas a tal ou
tal colorido, consoante seu etos. Olhar directamente para
a vida, por certo não o fazia ele. Sempre a . considerou
revestindo uma forma transcendente, que não se entrega
ao conspecto objectivo, por muito lúcido que seja. Pro­
curava vê-la para o lado de lá, para além da muralha
espessa que no-la furta à nossa ignorância ou mediocri­
dade intelectiva, e assim assume sempre para ele a apa­
rência de um rico, planturoso e estranho retábulo, onde
não são raros os espectros e as vozes alucinadas. Mas a
visão por vezes é desconcertadora.
Nisto de observar o mundo há dois métodos de pros­
pecção. Um que consiste em encarar as coisas no pri­
meiro plano do horizonte. É o processo comum e c6modo,
mais condicente com o uso dos sentidos. No primeiro
plano, a mulher que amamos é bonita, desejável, cheia
de dons. No segundo plano, desdenha-se dela porque
há-de envelhecer, tornar-se feia, se não hedionda, maté.­
ria pútrida, enfim caveira.
No primeiro plano ama-se a vida, o bem, a glória.
No segundo, detesta-se a vida, porque nada há mais
transitório, menosprezável em seus trabalhos, e porque
tudo o que tem princípio tem fim. Segundo a origem
teológica da Terra, tudo começou do nihil mediante uma
vontade .e acaba em nihil. Também segundo a teoria
geológica do nosso Globo, uma série de catástrofes mo­
delaram a sua configuração actual em continentes, ma­
res e ilhas; qualquer catástrofe imprevisível pode pro­
duzir nova transmutação, e de uma hora para a outra

3 24
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA .

subverter, com as nossas cidades, o nosso orgulho, a


nossa ciência e o nosso patrim6nio de civilizados. No
segundo plano, pois que tudo é efémero, bem e mal,
beleza e disformidade equivalem-se na meta de todas as
coisas, e tanto vale, enfim, a Vénus de Milo como a
estátua de bronze comercial que se vende no bazar. Una­
muno via os figurantes do D. Quixote através as lentes
fumadas de velbo homem, desiluso do plano amável das
coisas, de modo geral, às avessas do restante mundo.
Dir-se-á: tudo é relativo. Precisamente, a relatividade
é ainda, como çerteza dialéctica, uma consolação de pri.
meiro plano.
Sancho não será pois bom, nem mau, apenas o ho­
mem no seu posto. O que são os camponeses, obrigados
à força de ardis a defender-se do rico que os explora, do
poderoso que lhes bate, do Estado que os carda, ora
carneiros, lobos, milhafres sabe-o quem lida com eles.
Tudo afinal é vida, a condicionação do homem, gé­
nero Sancho, dentro do restante mundo, mas não a oc·n­
dade intrínseca que Unamuno supôs no escudeiro m :D­
chego. Bondade, entanto que postiço, é a de S. Mar­
tinho, que repartia a capa com o pedinte; a de Lutero,
que, para não quebrar o sono do bichano adormecido,
uma vez cortou à tesoura a parte da garnacha em que
ele se aninhava; a de S. João de Deus, que pegava nos
enfermos às costas e os conduzia ao hospital; a do pobre
dos caminhos que reparte o pão com outro mais faminto;
em suma, é uma virtude de santos e porventura de to­
los. O DOSSO semelhante, ingrato, pretensioso e troca­
-tintas, merece tais sacrifícios ?
Hoje, a grande ciência está DOS modos de aplicar a
mentira. Depois que o homem aprendeu a exercer facul-

32 5
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

dades de livre exame e a determinar-se perante os fenó­


menos da natureza, bem decerto que começou a secretar,
para isso que Juliano Huxley chama o oceano sideral das
ideias, intelligentia, ou o seu contributo psíquico. Cada
alma é como uma pequenina fonte que se vai lançando
para o c6rrego, este para o rio, o rio para o inar. Ali se
opera a concentração espiritual. Evidente se toma pois
que alguns homens são Ebros e NiágaraS, outros sim­
ples lágrimas à superfície da terra. ':€ nesse oceano
que flutua toda a sorte de ideias, de opiniões audaciosas,
de sisfemas exaltados, desde a sabedoria milenária,
cujos autores desapareceram há muitos aDOS ou mesmo
há muitos séculos, ao saber crepitantemente actual, com
as especulações dos poetas e dos artistas, em suma, a
floração do espirito através das idades. O nosso cérebro
sobrenada nesse pélago imaterial. Quem quer vai aí
buscar o plâncton que lhe permite corporizar os seus
conceitos originais, ou o modo de enriquecer a natureza
em conhecimento, vontade moral, fé generatriz e até em
e.'{altação e amor.
Deverá acrescentar·se-por honra da firma humana
-que a história fazem·na os escrivães da puridade , os
apaniguados dos poderosos, os relatório� oficiais, as ga·
zetas afectas ou coactas,. a literatura regida ou condiciQ-.
nada, e não nasce feita. Em tal grave operação mistificar
tornou·se prática universal.
O tonus da nossa época, ou antes a espécie de ondu.
lação psíquica, que se toma do panorama social , vem.lhe
mesmo daí. Já a palavra tinha alguma coisa de impostura
léxica. Com efeito, este vocábulo foi enxertado na raiz de
mistérium, o mesmo é que arcano. Mistificar, na vera
acepção, seria pois enganar mercê de processos escuros,
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

pela calada, abusar da boa fé do pr6ximo por artes de


berliques e berloques. Quando os oráculos da antiga
Roma recolhiam aos santuários e voltavam a dizer que os
deuses lhes haviam comunicado tal ou tal desígnio,
aqueles que por interesse ou auto-sugestão se não houves­
sem identificado com a pantominice eram vítimas de
uma autêntica mistificação segundo a lei e a forma.
Mistificar tornou-se uma ciência, e lá temos os efeitos
em palácio e noutros lugares. Por isso, D. Quixote
é a sagrada escritura da rectidão e da pura verdade.
E que mais não fosse, pelo inciso contraste de tais factos,
uma vez erguida a máscara da pobre res humana, se
torna trágica e contrangedora esta farsa larvada de irri­
são e dor.
Afinal que é a Espanha senão o corcel branco de
Navas de Tolosa que passa, ao mesmo tempo monstro
alado e hidra de Lerna ? Esta transposição metafísica
da fúria ou da impotência, estes estendais de maravilhas
havidos por intervenção sobrenatural, têm seu símbolo
em D. Quixote, opugnador de moinhos de vento, lan­
ceador de ovelhas, aventureiro paladino que desafia a
morte e a sua corte, que bate o pé aos leões como Gallito
ao touro, desce nas profundas da terra a devassar os
segredos abissais, e julga subir às esferas em missão
transcendente. Podia haver melhor representação colec­
tiva ? D. Quixote é uma moeda cunhada com todos os
quilates do ouro peninsular.

N6s, que somos hispanos, no bom significado do ter­


mo latino e medieval, mas não espanh6is, como pretende
Madariaga, quebrámos os vínculos políticos com Espa-

32 7

,
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

nha em 1640, e não há que rever, nem por sombras, o


gesto decidido dos nossos avós.
Para o castelhano das três dimensões, homem de tou­
ros e zarzue1a, nunca se desvaneceu o sonho da união
ibérica. Livrem-nos os fados de tal conjuntura ! Alian­
ças ou conúbios destes seriam como os da panela' de ferro
'e da de barro, levadas na corrente dum rio. Nós, dum
momento para o outro, poderíamos ficar escaqueirados.
Olho no monstro: ainda quando nos aparece como filó­
sofo salvador é sempre Caliban. Sem dúvida que apa­
rentou sempre de um desinteressado discursador da bea­
titude terrena em Deus do Céu.
Com Espanha-dizia Mazarin-são de desejar to­
das as boas relações de vizinhança. Mas fique-se na cor­
tesia. Se ides mais longe, às duas por três, sem vos con­
sultar, nem dar cavaco, o vosso aliado manda queimar
as naus. Não que o faça sempre por trancafio, mas por
orgulho, indómito orgulho, e que mais não seja para
exercício da vontade, ou pôr à prova o estado de senhoria
que lhe é visceral.
A Espanha está tão perto de nós por bifurcação do
mesmo tronco, que nos perguntámos se vale a pena,
mais, se há bem o direito de verter. para português
um texto castelhano. :e inegável que em três séculos e
tal de evolução, cada ramo se apartou para seu firma­
mento. O céu em que bebem oxigénio é o mesmo; o solo
de que sorvem o húmus possui, com pequenas varian­
tes, as mesmas propriedades de nutrição; vêem passar
os mesmos pássaros; ouvem os mesmos ecos de vento e
dos rios cachoando pelos invernosj ligam-os as mesmas
cordilheiras. A Meseta áspera, desabrida e criadora de
feros e peremptórios homens, como a Eubeia daquela
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

gente de lume nos olhos que elogia Homero, a Meseta


estende - se por Portugal dentro. Temos também o
mesmo tipo, produto especial da região mais individua­
lista e singular do mundo.
Cá e lá repetem-se horas por horas. cuidados por
cuidados, ânsias por ânsias, como a água que corre DOS
dois territórios. Quando o Engenhoso Fidalgo' se joga
contra os rebanhos de carneiros que na sua fantasia
alucinada toma pela hoste do soberbo Alifanfarrão,
Sancho arranca do fundo do peito: Mal haya yo ! O Zé­
-Povinho usa 4e igual expressão nos desesperos e arre·
lias : - Malo haja !
Em que divergem ? Pois, e profundamente, no psí­
quico. Parecendo-se de modo flagrante, todavia não são
os mesmos. Isso que é imponderável, imensurado, ina­
preensível ao espéculo, germinou, cresceu, dispartiu-se
de todo e formou tipos diferentes. Como ? Vá lá saber-se
como' elaboram os cadinhos subterrâneos em matéria de
antropologia ! A pequena molécula bioquímica cá e lá,
bafejada por diversos ventos morais, desenvolveu-se nou­
tra direcção. O português em suma não é o espanhol.
Portugal estaria para Cervantes no conceito de pro­
víncia que andara escapa à soberania do seu rei e voltava
ao redil. De quando em vez refere-se de modo circuns­
tancial ao Tejo de areias de ouro. O Tejo é rio das duas
nações. Mas antes de chegar a Vila Velha do R6dão teve
dilatadíssimo percurso em Espanha. Banhou com as
suas águas e confluentes o Campo de Montie1. Mais
bocas do lado de lá da fronteira terão proferido esse
gutural e incisivo: Tajo, do que do lado de cá a doce e
morna palavra : Tejo. Por conseguinte esta referência
não é para lhe agradecer na particularidade. De resto,
NO C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N ÇA

aquém da raia, o Tejo é um solene· e importante rio,


como tal destituído de carácter. São todos assim e, à
parte o pitoresco do estuário enquanto que faixas rolan­
tes, não contam para a poesia.
Por isso os rios são bonitos apenas pequenos, ou na
mediocridade, e patrioticamente interessantes quando
correm na parvónia e se vêem correr, a massa líquida
empurrando a massa líquida, e as duas margens se abar­
cam com os seus ninhos, suas alpoldras, seus salgueirais
luxuriosos. Para lá d.:!s cem braças são sempre idênticos.
O Tejo de Cervantes era (.\ riacho de água cantante com
levadas e açudes bucólicos, �')ntes e azenhas bíblicas,
que regava e divertia a terra tole':ana, onde as zagalas
vinham lavar os pés. Esse troço, sin:, povoou ele com
ninfas e" dríades. Não é que Dulcineia tem �udo de ninfa,
até a existência problemática ?
O Tejo solene, largo, navegável, braço de ma:-, meio
insosso, meio salgado, com os galeões da lnvendvel
Armada a rebalsarem-se na foz, apenas interessava ao
seu sentido de patriota. Consta porventura que fizesse
reparo nas Tágides ?
E mais nada no caudaloso livro, nem na sua obra,
em geral, que não seja um palpitado iberismo ou senti­
'
mento hiperbólico de espanhol, como de resto não podia
deixar de ser. Defeito ? Sessenta anos de comunidade
não conseguiram conjugar em orbes certos ao asteróide
e ao astro. Assombra como em 1640 se encontrava
ainda plasma próprio depois de crises cíclicas de tal pe­
núria que os campónios tinham hipotecado as terras aos
fidalgos e homens da lei a troco de uma côdea, e são
essas as quintas, vinhas e domínios que, a meio do par­
celamento miserável das glebas, destacam hoje na pro-

33°
N O C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

vincia portuguesa. Quando à noite chegavam a casa com


os rebanhos e a junta de bois, na espinha como eles,
reza a tradição que abriam uma veia aos animais, a jugu­
lar, para no sangue de algum modo matarem a fome que
lhes roía as entranhas.
Não existia povo, no sentido de corpo social com sen­
timento de que vivia por virtude própria e segundo leis
adequadas, mas uma rebanhada de famintos J espoliada
primeiro pelos reis nacionais, sobretudo por D. Sebas­
tião que precisou de arranjar dinheiro a todo o custo
com que equi.par o exército de Africa, e o cardeal-rei,
que lançou derramas sobre derramas para resgatar os
fidalgos do cativeiro, nanja os mecânicos, que esses ou
se naturalizaram moiros ou apodreceram cristãmente
na escravidão, finalmente pelos Filipes e quadrilha, não
menos rapaces que os governantes das dinastias legí­
timas.
Operou-se de novo a bipartição e julgamos que para
todo o sempre. A datar daquele ano, as duas nações cada
vez se apartaram mais em carácter, tendências e gostos.
Na língua acima de tudo. O lesim congénito as separou
definitivamente.
A melhor forma de cimentar a etnicidade de um
povo consiste na posse e uso de um idioma próprio. Ora
dia a dia, com a evolução que se foi efectuando inelutável
e profunda, mais o português se tornou português, tão
longe do espanhol, repetimos, como do francês ou ita­
liano. Longe vai a conjunção em que o castelhano se
podia prevalecer do nosso idioma, como de um dialecto,
o dialecto lusitano-galaico. Escapámos ao amplexo da
boa-constritor e só é pena que, derruído o solar da mãe

33'
N O C A VA L O D E PA U C O M SA N C H O PA N ÇA

celta, os dois filhos mais ocidentais, Portugal e Galiza,


se olhem por cima de muros.
Adeus, de Espanha nem bom vento nem bom casa­
mento. O vento são as ideias particularistas, de alor fili­
pino, as opiniões próprias, o modo de ver o mundo. Nãv
nos convém. Somos um povo pacato J incaracterístico,
inimigo do absoluto, ao contrário do espanhol. Tudo
entre nós é comedido, se quiserem, água de rosas e papas
de linhaça. A Espanha é O D. Quixote, um homem emi­
nentemente perigoso, como dizia o Canhoto estalaja­
deiro. Nada de tirar palhinha nem fraguar com ele. Ex­
clamava Unamuno, num hotel vesgo de Hendaia: Te­
mos que matar D. Quixote para que viva A lcnso Qui.
xano o Bom. Então a Espanha entrará a valer no con·
certo das nações.
Cada espanhol traz dentro de si, pequeno ou grande,
um Engenhoso Fidalgo, mais disfarçado, menos disfar­
çado. Toda a história de Espanha é a aventura do cava­
leiro manchego. Está compendiada nas suas três sur­
tidas. Escreve Manuel Pinheiro Chagas com lúcida
compreensão: uE a Espanha sente bem ali no D. Qui­
xote a sua própria imagem. Ri-se dos seus entusiasmos,
mas sabe que pouco basta para lhos despertar de novo.»
A nós os portugueses, Keiserling não' achou melhor
que classificar-DOs de espanhóis degenerados. Não é bem
assim. Somos hispanos europeizados, ou evolutivos. Em
verdade, a nossa terra apresenta grande unidade étnica.
Se esta unidade é expressa, acima de tudo, por univa­
lência psíquica, direi que o minhoto se parece tanto com
o alentejano como o algarvio se diferencia do galego.
O bocado da massa que não levedou ao fermento caste­
lhano, na grande masseira que é a Península, adquiriu

332
N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA NÇA

personalidade distinta de estrato antropol6gico. Um dia,


se a planificação se fizesse, seria pela ciência, possivel.
mente, mas jamais pela conquista e obra de sinérese
mediante assalto ou bambúrrio político. Não é que seja
de ter em conta o cavidoso provérbio. A história de
Espanha será uma novela maravilhosa, mais imagi­
nária que real, como pretendia o lente alemão, mas
pode considerar-se, sem injustiça, uma interpolação hí­
brida na vida da Europa civilizada. Deixou-se acaso
alguma vez impregnar bem acentuadamente do carácter
europeu ? No. Vale dos Caídos paira o espectro de um
milhão de mortos. Há-de ser tal o clamor em Josafat que
nunca haverá meio de se lhes fazer justiça.
Cervantes leu o horoscópio da sua pátria numa hora
de iluminado. E, posto a ' pintar um louco sublime com
tintas facetas , saiu-lhe, sim, a Espanha grandiosa e
trágica.

Lisboa, 1959-1960.
Índice
P.il:.

PREFÁCIO . 7

I - Cervantes e o vído C<logénito das biografias. O Príncipe


dos engenhos espanhóis é visto do Ocaso para o Oriente.
A exemplo de Luís de Camões. A linhagem do escritor.
Pai barbeito, mãe abelha-mestra da casa pobre. Manas
salerosas e casquivanas. Em bolandas de Ceca em Meca.
A pena da mão cortada. Foge que te agarram! Enfenaria
poético-sentimentaI. Dislate tão grande como o promon­
tório de Gibraltar. A batalha de Lepanto e o Manco Sano.
O inútil troféu . .. ... ,.. 15

II - O Magrebe e a mobilidade. Ceuta e a megalomania incon­


sequente. Argel, madrigueira de piratas. As Ordens Reli­
giosas da redenção e resgate. Cervantes cativo e escravo.
Burla histórico-bibliográfica. Diego de Haedo autor dum
livro que não escreveu. Um suposto ou ignorado portu­
guês, grande cidadão e humanista. Sousa ou Sosa ? Frei
Luís de Sousa e Cervantes. A legenda poética e a reali-
dade. Lágrimas e risos do ergâstulo .. . 37

III -Um comissârio do Santo Ofício de que ninguém dera


conta. Caiu do céu, trouxe-o que nave ? Espião de Filipe
e de Deus. A besta do Apocalipse dos cervantistas. As
fugas frustradas de Cervantes e o frade denunciador. Loas
suavíssimas à Virgem Maria. O que vale a InfQrmaci6n
em prol de Cervantes. Importância de semelhante instru­
mento. Mordedura de cão cura-se com o pêlo do J]lesmo
cão. Poesia e drama do ergástulo. O resgate de Cervantes.
Fuminho calunioso. O oxigénio da liberdade ... 63

IV _ Lisboa em fins de Quinhentos. Cervantes chegou jâ no


dia seguinte. A Tomar dos Templârios na preia-mar.

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N O C A VA L O D E PA U C O M S A N CH O PA N ÇA

A sombra de Camões. Um rei enredado DOS seus enredos.


Ocupação de Portugal. A batalha dos Açores. A açou­
gada. � casa de Herodes para casa de Pilatos. Estra­
tégia clássica dos altos mangas-de-alpaca. O triste do­
cumento denunciador. Que vale a imortalidade. Porque
é que a jibóia não digeriu o aparo ... ... ... ... ... 0.0 ... 88

V - Parado nos umbrais de mundo. Pior que numa jangada


à deriva. Amores fortuitos e equívocos. Ana de Vila­
franca, Ana Francisca de Vilafranca e Ana Franca, a
mesma tabuleta. A luz dos seus olhos. Uma viúva ate­
gre filipina. nouro na costa de Esquivias. A boa terra
de fidalgos e galgos. Uma rolinha provincial. Pícaros e
rufiões. Erros de compreensão de parte a parte, Enfarta­
mento da comodidade burguesa. Fuga ao �ueno pa-
raíso terreal. Outros horizontes. Sevilha, a feiticeira o.. 109

VI- Homem desarvorado. Sevil)1a, maga enliçadora, escola


de pícaros, madre de la !lamenta. Ao serviço do rei.
·Maldito seja eL alcabalero ! A ln"Venc;f-veL Armada. Seu
cantor e ecónomo. Excomungado pelo bispo e preso.
O cárcere, forja muito hipotética do D. Quixote. Con­
trastes e inibições. Os espinhos inevitáveis do cargo
público. O labéu improvado: concussionário e pobre
como Job . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .._ ... ... 135

VII - Arma, arma, D. Quixote ! - Contra quem? Expressão


rúnica de uma vida atribulada. Da realidade trã" :ca
para a bufonaria. Baldóes a valer. para b;"ldões a rir.
Um homem em guerra consigo e com o mundo. A deses­
perada e forçosa subserviência. O drama da razão contra
a inerte estupidez. O peninsular desalgemado. Os gri­
lhões da ancestralidade. Porque se gosta do D. Quixote
de ta Mancha. Razões da sua universalidade. O seu
poder de sedução e engodo. Fino e inalterável como o
diamante. O requiem das no-"e1as de .cavalaria ... ... ... 15z
)
VIII - Berço do D. Quixote de la Mancha. O cárcere ou os
caminhos ensoalhados da Mancha? lndole da novela.
A arraia-miúda é chamada a figurar no presépio caste-

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NO C A VA L O D E P A U C O M S A N C H O PA N ÇA

lhano. Sancho Pança também é gente. Grande persona­


gem representativa: o dinheiro. A justa nota realiste:em
todo o género. Censura ao erótico obsceno. O amor no
D. Quixote como fonte pura de inspiração. Por onde se
salvam os romances de Cavalaria. O espírito dos Dia­
loggi di ameH"e'. Para lá da felicidade platónica. Miso­
ginia e suas razões. O pretório em que é julgada la irmã
Eva. Mas porque são todas belas e frágeis, ele lhes
perdoa .... 176
IX ...... Controvérsias a quatro. Falam D. Quixote, o bacharel,
o barbeiro e o cura. O barbeiro, especialmente, ouve.
D. Qui:x:ote coça o toutiço, pouco ledor de teologia. As
pToposi�ões ousadas de Sansão .carrasco. A mola da
grande vesânia. O problema do bem e do mal. O mundo
não s e havia de curar ? A que vieram os cavaleiros
andantes. As prédicas de D. Quixote. O que é direito
natural. S� justo com teu irmão. Conceito de justiça.
Sanc1lO na Ilha da Baratária. As suas sentenças de ludo
dissima intuição. Tal qual Salomão 197
X � Cervantes irmão do Santíssimo. Refer�ncias ao tribunal
da fé. Irrespeito, se não impiedade. Pecados que esc,.. ·
pam pelas malhas. Velliais ou descuidosos. Licença à
fantasia. Suponha-se Cervantes chamado à Mesa da
Santa Inquisição. Qualificador benh"olo e audiente per­
plexo. Exame doutrinal. Os passos do teólogo através
do D. Quixote. Capítulo por capitulo. Suposto moni­
tório. Como se explica o longo pousio que vai da Pri-
meira Parte à Segunda. Possiveis embargos 215
XI-Segunda Parte. Um inquisiuor tolerau.te. A defensão
inesperada. Diblioteca de muitos eclesiásticos e poucos
leigos. Conceda-se alvará de correr. Novo exame de fé.
Um revedor pro forma. O escalracho dos moiriscos. Pax
'Vobis. Acabou o entreacto da fantasia. A marca ungular
de outro inquisidor. Familiaridades que se tornam tegu­
mentares. Até onde foram os cortes no D. Quixote depois
da La edição. Antes, s6 Deus o sabe. Mas cá e lá más
fadas há. O salvo-conduto da loucura 233

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N O C A VA L O D E PA U C O M S A N C H O PA N Ç A

XIJ - O D. Quixote de la Mallcha de Avellaneda. Quem seria


o falsário? Exame sucinto do desaforo. Condene-se pelo
mau gosto; a deformação dos caracteres; a truculência
beduina; a falta de curialidade; a indelicadeza nata e
agressiva; o escatológico; o pitoresco forjado a martelo;
o atraiçoamento da natureza e a incompreensão da 'vida.
D. Quixote desquixotou-se e Sancho Pança é "mais torpe
que o bobo de Cória. Pela esteira de outro fácil é rumar.
Avellaneda pennanece catraieiro. A sombra caluniada de
Quevedo. Como se pode confundir a fina prata com o
barro mal coúdo ? . :2,56

XIII-Irradiação de D. Quixote. Portugal e o livro singular.


Três edições lisboninas. Estado da lusitanidade. D: Qui­
xote no Bairro Alto. O faro seguro do Judeu. O sainete
substituído pela graçola. Personagens de feira para pú­
blico boçal. Lisboa e a bucólica cervantina. A margem
do D. Quixote. Histórias de ermitões. Um capítulo rasu­
rado na novela de que subsistem palavras à toa. Se os
manes de Cide Hamete Benengeli dão licença. Reconsti­
tuição desenfastiada. Falta o esquadro tão simples e ini-
mitável do Mestre :284-
XIV - Passos na arada. A misoginia de Cervantes. D. Quixote
orador socialista. A voz dos anagramas ou os arbítrios
da paciência. O criador toma·se de dó pela criatura.
Herói ou santo ? Insignificâncias da venatória. O que
valem Comédias e Entremezes. Vingança, sápido prazer
dos homens. Todas em Castela são Marias Gutiérrez
como entre nós Marias da Roca. Os ouvidos pa,'orosos.
Foi ou não M i g u e l C e r v a n t e s retratado por Juan de
Jáuregui? 302

XV -Traços para o retrato espectral de Espanha. Mensagem


que nos trouxe Miguel de Cervantes. D. Quixote ou
Alonso Quixano o Bom ? Pois morra D. Quixote, o deli­
rado cavaleiro andante ! Viva, viva Alonso Quixano, o
Bom! Tresvairos estéticos dum espírito singular. A cora­
gem das retractações. A Espanha de sempre. O que dita
a voz uni"ersal da solidariedade . . . . . . ... 315
ERRATA

Pâg. Linha Onde H li; Leia-se:

15 , ir;adi.ndo a relativa irradiando relativa

'O< " a mergulhA-lo nele a mergulhi-lo -nela

" 0 , ganhando 30.0 maravedis ganhando 50.0 maravedi,


enquanto por dia enquanto

'45 25-26 Deferida por esta à Santa Deferida por este à Santa

,..8 " à filha, bastarda à filha bastarda


,6, , interior, a r.u!llartm n
i terior a flutuarem

," 8 ele é como o. nebri ele � o. nebri

'35 " antes do Eido antes do tido

'35 '7 Salomão com sapatilhas Esopo com sapatilhas

" , , de parte do próprio Cer- de parte do 'Próprio Qui-


vactes, xate,

,O< 7� qllt u.m c:astelhano q'Ut um espanhol

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