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Nara Vidal
(br/autores/nara-vidal) 25ago2022 15h58 (01set2022 08h25)
Os versos de Nick Cave nos remetem à ameaça em torno do que era considerado
insignificante, como as vidas não humanas e que podem gerar a seguinte reflexão:
pensávamos que a terra e a água seriam fontes de vida que durariam para sempre. A
preparação à qual se refere Cave não é surpreendente; é de pura melancolia e ressalta
o frágil desequilíbrio de um mundo onde as ações humanas criam consequências já
irreversíveis para o futuro do planeta.
No livro Uma exposição, de Ieda Magri (Relicário, 2021), a narradora lida com as
consequências profundas de uma infância na qual testemunhou, de forma corriqueira,
o sacrifício de bois e vacas para o próprio consumo. Um relato íntimo e sensível em
que é exposta essa relação entre o ser humano e seu poder sobre os animais,
especialmente os que são normalizados como alimento. A certa altura, a narradora
reflete sobre uma espécie de padronização do horror, mas que é também como
sobrevivem e se habituam as famílias daquele ponto geográfico descrito no livro a
abraçar o assassinato de animais como cultura de subsistência e sobrevivência.
Leia também: Apresentações de autores como Bruno Latour e Donna Haraway em colóquio
sobre o Antropoceno são publicadas por editora estreante
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/divulgacao-cientifica/os-mil-alertas-para-a-
crise-climatica)
É inteligente como a organização dos textos cria um diálogo entre os ensaios, ainda
que cada um apresente propostas muitas vezes originais para pensar o tempo do fim, o
Antropoceno. O texto de Paula Carvalho, editora da Quatro Cinco Um, por exemplo,
poderia ser um desdobramento do que elabora Munduruku em relação ao
eurocentrismo como agente determinante no Antropoceno. A partir de associações de
Bússola (Todavia, 2018), romance premiado do francês Mathias Enard, a autora
explora o conceito do eu em contraponto ao outro. Uma reflexão sobre as fronteiras e a
interseção que mescla os considerados opostos. A conexão com a reflexão proposta por
Munduruku se baseia precisamente nessa relação entre “o nós e os outros”, a distância,
a intimidade e a alteridade como elementos não distintos, mas complementares.
Estranhamento
O interessante ensaio de Christian Dunker também segue essa linha de pensamento,
que traz a ideia de estrangeirismo dentro do nosso próprio território a partir de
Alexander Humboldt como propagador, já no século 18, de ideias com características
identificáveis do que entendemos hoje por Antropoceno. Dunker ainda nos propõe
uma reflexão perturbadora sobre a terra como posse, tendo como base o tratamento
dado pelos invasores europeus aos povos originários das Américas, que foram tratados
por eles como estrangeiros em seu próprio território.
nos propõe pensar que o maior obstáculo para o invasor é, para além dos povos locais,
a ideia de carma, medo e culpa pela consciência da invasão. Assim, quando Sycorax, o
espírito da mulher morta e nativa da ilha, na peça A tempestade, é revelado, ela se
torna o maior receio do invasor, porque, além de ser invisível, há o seu intransponível
pertencimento àquela terra. Essa dinâmica nos sugere repensar quem é o estrangeiro e
quem pressupõe desequilíbrio.
É comovente essa relação sem sinal algum de sintonia entre os povos que ocuparam
terras e seus ocupantes originários. É como se todo esforço dos colonizadores em
nomear terrenos, delimitar espaços e designá-los como propriedade já tivesse nascido
anacrônico e obsoleto, inútil e despropositado dentro de uma cultura que desconhecia
a proposta de pensar o próprio chão, a própria terra abundante e comum a todos,
como espaço fronteiriço e demarcado.
Como cita a organizadora desta admirável coleção de textos sobre nós mesmos,
Fabiane Secches, ao falar do pensador Ailton Krenak, “eu não percebo onde tem
alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza”. Ou seja, essa comunhão entre a
terra e seus habitantes foi desastrosamente ignorada pelos humanos, que criaram os
modelos hierárquicos de poder vigentes, assim como o capitalismo, as fronteiras e a
subordinação. O eurocentrismo tem muito a responder por isso, uma vez que causou o
desequilíbrio na ordem simples que caracteriza a relação dos povos originários com
seus lugares de estar, favorecendo a desigualdade social e a valorização de um sistema
que só se sustenta com a exclusão e a subestimação de pessoas e pensamentos
desviantes.
Depois do fim é uma antologia exigente. Não somente pela profundidade dos subtemas
propostos, mas pelo incômodo tratado e exposto de forma inteligente e perturbadora.
É também exigente porque não há possibilidade de terminar a leitura e sentir-se
indiferente. É possível que, ao fim do livro, tenhamos categorias de leitores
esperançosos e os que se identificam com a minhoca dos versos de Nick Cave. Ou seja,
não há nada que seja insignificante diante da vida, mesmo depois do fim.
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