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ANDRADE
Rio de Janeiro
2013
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Aprovada em
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Jean-François Véran – PPGSA/UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Amir Geiger – PPGMS/Unirio
_________________________________________________
Prof. Doutor Eduardo Viveiros de Castro – PPGAS/UFRJ
_________________________________________________
Prof. Suplente Doutor Octavio Bonet – PPGSA/UFRJ
_________________________________________________
Prof. Suplente Doutor Luiz Costa – IFCS/UFRJ
Rio de Janeiro
Março de 2013
5
Agradecimentos
Aos meus pais Cristina e Marco e família, por todo apoio e carinho desde sempre e “hasta
siempre”.
Ao meu amor, Pedro, pelos dias, mares, paredes e páginas: um agradecimento que não cabe
em 10 mil dissertações. Este trabalho não seria o mesmo sem suas linhas tortas, vírgulas
controversas e três pontinhos.
Aos colegas de turma do mestrado, pela convivência alegre, pelo compartilhar de dúvidas,
descontentamentos e desejos.
Aos meus companheiros e companheiras de lutas e sonhos de cada dia. Essa dissertação se
deve (mais do que) especialmente a todos e todas que passaram pelo Grupo de Educação
Popular (GEP) e Terra e Liberdade (OATL). Para citar alguns, Kim (surpresa paulista-baiana),
Ratão, Thais, Leo Leitão, Malu (pelas felicidades e infâncias clandestinas tão bem
compartilhadas), Luiza (minha hermana escolhida, parceria irrestrita), Ângela, Vlad, Paulinha
(pela companhia e por gerar uma vida tão linda), Erik, Gabi (pela amizade alegre nesses
anos), Eduardo (pelos mau-humores tão bem-humorados), Luizinho, Lucenir, Fernanda,
Vladimir (pelas referências e prosas utópicas e cheias de vida). Estes escritos são parte dos
caminhos tortuosos e felizes que partilhamos. Que sirvam de alimento para novos amanhãs!
Aos meus presentes de vida: Roberta (porque se nem Vila Isabel saiu de mim, que dirá você),
Georgia (vizinha em qualquer lugar do mundo, ojalá!), Clarice (pelos setembros e todos os
outros meses), Manuela (minha astróloga favorita), Luiza Tanuri (por todo amor e pela
ousadia de estar tão próxima do Japão).
6
Por último, mas não menos importante, agradeço aos queridos ifcsianos, antigos e novos
achados, Felipe Malgaldi, Alexandre, Renata, Thiago (pelas implicâncias-implicantes),
Marcela, Isabel, Ana Lu, Leandro, Alex, Emmanuel, Lorena, Jeferson, Luiza, Pedro Cazes,
Juliana (6 anos, 2 turmas e muita história para contar), dentre muitos outros que fizeram os
dias de biblioteca, corredores e debates mais risonhos.
7
"Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é
tumulto, e escreve-se na pedra."
(Carlos Drummond de Andrade)
"Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/ E, sem dúvida, sobretudo o verso/ É o que pode lançar
mundos no mundo." (Caetano Veloso)
"Esta será uma revolução social tão radical, que a imaginação do ocidente, moderada pela civilização,
mal poderá alcançar” (Mikhail Bakunin)
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Resumo
Abstract
Sumário
Prólogo................................................................................................................................ p. 11
Apresentação...................................................................................................................... p.14
4. CONCLUSÃO............................................................................................................. p. 119
Prólogo
Era início da noite, inquietava-se a Abaporu2 cansada dos corredores de gelo daquele
museu. Resolveu dar uma volta, afinal, por que ela também não poderia visitar exposições?
Visitou a sala ao lado com pinturas de natureza morta holandesas. Aquilo tudo parecia uma
baita de uma chatice sem-fim e acabou por escorregar para a ala das esculturas. Animou-se
pensando: "Humm... Acho que por aqui posso encontrar algo mais encarnado." Homens e
mulheres definidos e fortes, bustos solitários pendendo no ar. Aquelas faces sérias causavam
certa tristeza à Abaporu, sedenta que estava de uma brincadeira. Foi quando no meio da sala
encontrou, em posição de destaque, um homem, aquele que parecia o mais concentrado de
todos. Incrivelmente, este se virou, mostrando-se disposto a conversar. Passaram um tempo
em silêncio, estranhando um a presença do outro, até que Abaporu já com a língua enrolada
de tanta vontade de papo começou:
- Que cara de dor é essa, homem? Por que sofre tanto apoiando essa mão na cabeça e a
cabeça na mão? Tá com enxaqueca?
- Reflito. Faço o que melhor pode fazer um ser humano: afasto-me das ilusões
sensíveis e mundanas e reflito sobre todas as coisas.
- Matuta e só? Tudo bem que essa vida de museu é meio paradona, mas sempre há o
que fazer. Penso melhor quando invento, rodopio nos corredores, dançando quando o vigia tá
de costas, pulando com um pé só como se estivesse sentindo a terra3....
- Nunca pratiquei nada disso. Inclusive, devo dizer que seus pés são meio exagerados,
diria que quase deselegantes.
1
Este prólogo é uma brincadeira, espero que ilustrativa, a partir do famoso quadro de Tarsila do Amaral, O
Abaporu. Quadro que, segundo algumas versões, foi um dos grandes inspiradores do Movimento
Antropofágico. Como consta no artigo de Gonzalo Aguilar, O Abaporu, de Tarsila do Amaral: Saberes do Pé,
que serviu de referência lúdica para este prefácio, Tarsila presenteou o quadro sem nome a Oswald. Ele e
Raul Bopp se reuniram fascinados em torno dele e disseram: "É o homem plantado na terra (...) Vamos fazer
um movimento em torno deste quadro!" (2011, p. 281) Essa seria uma das versões sobre o início do
movimento.
2
Abaporu significa em Tupi aquele que come. Utilizando do recurso da licença poética buscamos aproximar o
Abaporu do Matriarcado Pindorama e o transformamos em a Abaporu.
3
Lembramos de uma interessante passagem de Nietzsche (2009, p. 42): “Um pintor cujas mãos lhe faltassem
e quisesse ainda assim expressar pelo canto a imagem por ele visionada sempre revelará, nessa troca de
esferas, muito mais sobre a essência das coisas do que o mundo empírico.”
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- Elegância é poder correr rápido, dar passada larga, mexer e desmexer 4. Com o meu
pé consigo sentir tudo de gostoso que há, até cosquinha da areia.
- Não consigo entender bem, Senhor. Ou será uma Senhora? Perdoe-me, é que seus
traços confusos confundem minha consciência.
- Vixi, tanto faz... Que diferença faz homem ou mulher, sou é Abaporu. O importante é
comer, engulo tudo que me dá apetite (e é tanto!), isso basta.
- Céus. Mas, o que você come?
- De tudo um pouco, como erva daninha, televisão, telefone, antena parabólica,
esotéricos, sambistas, os cientistas me agradam bastante, os franceses são bem apetitosos
também, quis comer uma tal de Gioconda, mas não deixaram. Uma vez comi um visitante do
museu que gostava de explicar sobre os quadros. Comi até um bispo chamado Sardinha, ô
carne macia.
Aquela conversa causava um certo espanto ao homem-escultura, acostumado com o
silêncio ou respostas lacônicas de seus companheiros de bronze. Ainda mais esse assunto de
comer, vai que esse Abaporu estranho resolve engolir ele também. Não, aquilo não podia ser
verdade, ele iria provar isso com todos os seus recursos lógicos.
- Comer tanto assim? Duvido! Você não tem nem boca. O Aurélio me explicou bem...
A boca é a parte do corpo humano que permite a alimentação, o orifício e a cavidade entre os
lábios e a faringe, que forma a primeira parte do aparelho digestivo. Você não tem nada disso.
Fale a verdade.
- Relaxa, rapaz... Verdade é mentira muitas vezes repetida5. Então, lembra o que eu te
falei sobre o pé? Juro juradinho que ele pode comer também. Quer tentar?
Sem escutar bem a resposta, a escultura continuou indagando:
- Aliás, nem posso afirmar que você é humano6. Que cabeça minúscula, sem rosto,
curvas esdrúxulas...
4
Sobre a importância dos pés no Abaporu nos diz Aguilar: "O Abaporu pensa com os pés. (...) A mutação
plástica do corpo é regida, no caso do Movimento Antropofágico, pela inversão: apequenamento da cabeça,
apagamento do rosto, ampliação dos pés." (2011, p.284). Acrescenta em seguida: "As vanguardas recorrem
aos pés num movimento generalizado de transformação do corpo humano: de inversão (a cabeça em vez dos
pés), de plasticidade (redimensionando os órgãos, a "pele de seda elástica"), de contato com o contexto (os
pés contém em si o deslocamento corporal), de crítica da autoridade (representada tradicionalmente pela
cabeça)." (ibidem, p. 285)
5
Frase extraída do Manifesto Antropófago (1928):"Contra a verdade dos povos missionários, definida pela
sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida"
6
Segundo Gonzalo Aguilar, diferente da fase humanista de Tarsila em 1932, quando depois da viagem à URSS
pinta Os Operários, a fase antropófaga em que foi pintada o Abaporu mostra "um retrato anti-humanista: o
rosto está apagado, e não há ali nenhuma gestualidade humana com que possamos identificar-nos (...) oferece
um corpo na fronteira mesma do animal, na confusão mimética com o natural (cabeça - sol, braço - cacto),
13
- Estou comendo a paisagem, o sol é doce e me faz bem. Se eu fosse você estaria
entediado com esse corpo igualzinho de todo mundo. Gosto de travessia. Ontem acordei onça
e fui dormir engole-vento.
O homem estava tão entretido em suas conclusões que não percebia que a Abaporu se
aproximava cada vez mais dos seus pés.
- Você realmente deve ser de uma espécie inferior, ainda mais com essa nudez.
Estranho é não ter sido antes catalogado. Aaaa, já sei. Você é um parente próximo daqueles
monstros enormes de um só olho7.
Neste momento a Abaporu já estava prestes a abocanhar a perna do homem:
- Mas, você também está nu e bem suculento...
De repente caiu em si. Correu e foi se vestir, medroso de ser devorado, o famoso
Pensador de Rodin8.
que está em processo de tornar-se outra coisa. Não há codificação, mas apagamento: despojar o "homem" dos
sinais de identidade para construir um novo." (2011, p. 282)
7
Segundo Lestringant (1997) o termo canibais aparece em cartas de Cristóvão Colombo como referência a
homens de um só olho e com cara de cachorro que eram antropófagos.
8
A comparação entre o Abaporu e o Pensador de Auguste Rodin é feita por Aguilar: "O homem nu da obra de
Tarsila está numa posição bastante estranha que pode ser confrontada com o Pensador (1880) de Auguste
Rodin. Ambas as figuras estão nuas e ambas reclinam a cabeça sobre a mão, motivo melancólico, que, de
qualquer modo, parece não se aplicar ao Abaporu. Também ambos estão sentados, mas com duas diferenças
importantes: o corpo musculoso e realista do pensador de Rodin (demasiado humano) está contraído,
concentrado, sentado numa cadeira, enquanto o do Abaporu está distendido, quase esparramado e sentado na
terra (...) A outra diferença é que toda a tenão do corpo do Pensador de Rodin está na cabeça, enquanto no
Abaporu está nos pés." (2011, p. 284)
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Apresentação
Estamos agora diante daquela curiosa parte introdutória da dissertação: é o início, mas
visto a partir do fim, é preciso apresentar-se, mas sem falar de si. Talvez mais do que um
início seja uma “entre-parte”, estacionada em um tempo estranho, no qual ao fim de tudo,
tenta-se rememorar todo o processo da escrita, em busca de um momento gerador. Nesta
“entre-parte”, que também é um “entre-tempo”, pode ser interessante começar por um “entre-
mim”. Não se preocupe, pois não exporemos detalhes biográficos da autora dessas páginas,
mas buscaremos narrar o que atravessou estes escritos e despertou inicialmente os interesses e
motivações para esta dissertação de mestrado. É só um pequeno parêntese onde nos
permitimos contar em primeira pessoa o que nos levou até a escrita dessas linhas. Por fim, o
“mim” acaba se desmanchando, ficando apenas a ideia inventada de um início, ou um “entre”,
seja bem-vindo, sigamos.
Meu interesse de pesquisa atual se materializou em uma viagem feita no início do ano
de 2011 para a Bolívia. Estava em Potosí quando vi a Igreja San Lorenzo de Carangos, uma
igreja colonial conhecida por ser repleta de símbolos indígenas. Fiquei fascinada e procurei o
que poderia haver sobre o tema. Era uma construção do chamado barroco mestiço, alguns
autores haviam se referido a este estilo como um símbolo da dimensão antropofágica da
cultura latino-americana9. Pensei em estudar o que havia em torno daquela Igreja10, mas, logo
9
Sobre isso nos diz Haroldo de Campos: "O grande poeta e romancista cubano José Lezama Lima, em
ensaio famoso, definiu o barroco americano como ‘a arte da contraconquista’. A concepção de Lezama foi,
recentemente, retomada em suas implicações por Carlos Fuentes, em O espelho enterrado: "O barroco é uma
arte de deslocamentos, semelhante a um espelho em que, constantemente, podemos ver a nossa identidade
em mudança." (...) "Para nossos maiores artistas -, prossegue Fuentes, invocando a proposta de José Martí de
uma 'cultura totalmente inclusiva' -, a diversidade cultural, longe de ser um embaraço, transformou-se na
própria fonte da criatividade." (p.1) Considerando, ademais, o fenômeno do hibridismo indo-afro-ibérico na
arquitetura e nas artes plásticas do Novo Mundo, Fuentes assevera, convergindo com Lezama: "O
sincretismo religioso triunfou e, com ele, de algum modo, os conquistadores foram conquistados." Antes do
cubano, em seu A marcha das utopias, Oswald de Andrade, teórico e prático da "antropofagia" como
devoração crítico-cultural, já ressaltara, quanto ao barroco americano, o seu característico "estilo utópico",
"das descobertas" que resgataram a Europa do "egocentrismo ptolomaico." (p. 1) Dentre esses autores
podemos destacar Lezama Lima, que se propõe a pensar a identidade cultural americana, afirmando que a
novidade americana viria da recusa da repetição. A estética barroca constituiria o legítimo eixo do nosso
devir. O próprio barroco só se realizaria na plenitude no "Novo Mundo", quando passa a ter um sentido
revolucionário pela tensão provocada pelos mestiços. Transformaria-se de arte da contra-reforma na Europa
para arte da contra-conquista na América - uma rebelião motivada pelo próprio conquistador.Para o autor, a
Igreja San Lorenzo de Potosí seria a culminação do estilo barroco mestiço, junto às obras de Aleijadinho. O
Índio Kondori, provável construtor da Igreja, introduziria uma temeridade: a indiátide (cariátides em figura
de índia), o sol e a lua (símbolos incaicos), em uma mundo teológico tão fechado. Lezama afirma ainda que
diferente da Espanha com uma elaboração racionalista de cidade, no barroco americano é "a natureza no
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surgiram alguns poréns: o tempo curto para fazer trabalho de campo na Bolívia e as poucas
referências bibliográficas por aqui. Foi, então, que o meu interesse por Literatura e suas
relações com a Antropologia me levou a um autor importante neste debate, aquele que criou o
Manifesto Antropófago: Oswald de Andrade.
Ao me debruçar sobre seus escritos percebi o quanto carregavam uma série de tensões
e questionamentos sobre temas instigantes. Mesmo sem ter vastos conhecimentos científicos,
ou se preocupar com recolhimento de dados precisos sobre a "cultura popular", como Mário
de Andrade, o autor oferece reflexões interessantes. Praticando uma antropologia sem métier,
para usar a expressão de Amir Geiger, Oswald esbarra com diversos problemas
antropológicos, tratando de temas como alteridade, modernidade, ritos, primitivismo, a
diferença. Não devemos, entretanto, buscar teorias sistemáticas e referências empíricas
precisas, o que poderia atribuir à obra uma falta em relação às Ciências Sociais. Os ensaios e
manifestos de Oswald são "uma polivocidade que mixa conceitos, personagens valendo por
ideias, anedotas e aforismos por argumentações, citações destacadas do contexto." (MUNIZ,
p. 107). Suas referências etnográficas são consideradas ultrapassadas e fantasiosas: o
matriarcado não existiu entre os Tupinambás antropófagos. No entanto, é necessário
desprender os olhos dessas exigências e lê-lo a partir do seu desejo: a antropofagia, devorá-lo.
Perceber seus insights poéticos e a sua forma original de conceber os povos colonizados sem
o estigma da ausência, do bárbaro, dando à alteridade um valor anti-colonial. Sobre a
importância que Oswald de Andrade teria para a antropologia e os perigos de considerá-la
como uma obra menor diante do rigor científico nos diz Amir Geiger:
ornamento como terror que informa o templo" (LIMA). Interessante perceber como os Modernistas
brasileiros também se debruçam sobre o barroco. A viagem feita a Minas Gerais foi essencial para o
movimento re-inventar a arte brasileira. Sobre a importância das construções nos diz Oswald: “As outras
artes também iniciam sua evolução para as finalidades do país e seus sucessos expressivos. A escultura na
antiga colônia possuía seu precursor. Era um cavouqueiro de Minas que tinha a alcunha de Aleijadinho
”(1991, p. 37). Segundo Mário de Andrade, o barroco de Aleijadinho seria uma arte própria local, já diferente
da arte europeia, pois o artista utilizaria de materiais próprios de sua terra, como a pedra-sabão. "Riqueza
vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança." (ANDRADE, 1970)
10
Contam alguns historiadores que a Igreja começou a ser construída por volta de 1547, em Potosí, na Bolívia,
com o nome de "La Anunciación". Alguns anos depois deu-se uma nevada que destruiu parte da Igreja, que
logo foi reparada . Logo em seguida, com a chegada de Virrey Toledo, nobre e militar espanhol, quinto vice-
rei peruano, seu nome mudou para a Igreja de San Lorenzo de Carangas, por estar destinada ao culto dos
povos indígenas carangas. Desde então a Igreja passou a ser uma paróquia indígena. Sua grandiosa portada,
que mais tarde se tornou alvo de tantos olhares e debates, foi construída por volta de 1728, pelos índios
carangas (GISBERT). Diversos foram os historiadores da arte que se questionaram sobre o que dizem os
símbolos que a compõem para aqueles que a construíram. Dentro desse debate é comum que se apresente a
tensão entre dominação x resistência, o que apareceria na controvérsia se os seus símbolos são mais ou
menos indígenas ou católicos.
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Partimos, então, de princípios metodológicos que admitem que uma obra literária
sugere conhecimentos que podem contribuir para a própria antropologia (e não tem uma falta
em relação à ciência). Trata-se de uma tentativa não de pensar como ou apenas sobre, mas
com a obra. Isto implica em uma postura metodológica de "levar a sério" as propostas da
Antropofagia oswaldiana, como continua Amir Geiger:
É que a atenção ao simbólico não está ligada apenas a corolários teóricos, mas tem uma
dimensão metodológica internalizada: o simbólico implica ser afetado pelo objeto, implica o
conhecimento ser obtido por meio desse afeto. A perspectiva original da antropologia, ou
pelo menos o que ela tem em grau mais forte, é que ela só tem algo a ensinar sobre seu
objeto depois de passar pelo processo de aprender com ele. (É o sentido
abstrato,‘metametodológico’, e a meu ver quase lévybrühliano, da observação participante.)
(ibidem)
exaurir todas essas questões, que são imensas. Já de início buscamos abandonar um pouco os
debates em torno das tensões e fronteiras entre antropologia e literatura, para focarmos na
própria questão da Antropofagia, ou seja, atentarmos para esta obra que acreditamos estar em
situação liminar.
Vale dizer ainda que não se trata de querer reconstituir o contexto do autor, ou fazer
propriamente uma "Antropologia da Arte" como propõe Alfred Gell (1988) - preocupado com
as relações sociais que estariam "por trás" da obra de arte e formadoras de sua agência -,
muito menos buscamos tentar "dar conta" de compreender toda obra do autor. Abordaremos
diferentes textos seus, não com a intenção de compreendê-los como um todo, debatendo cada
detalhe, mas por considerarmos que apesar de suas supostas rupturas - da vanguarda
modernista para o marxismo, do marxismo para uma antropofagia filosófica - podemos
perceber uma grande continuidade baseada na defesa da "antropofagia ritual" que acompanha
seus escritos, o que nos interessa especialmente neste trabalho. Sobre isso nos diz Giuseppe
Cocco:
Ora, numa obra tão vasta e tão complexa, com aberturas literárias, políticas e filosóficas,
como a de Oswald, há fases, passagens. Mas não cremos que se possa falar de rupturas e
revisões, como fazem vários de seus críticos. A obra de Oswald, ao contrário, é atravessada,
desde o início, por uma potência da qual derivam, simultaneamente, suas dimensões estéticas
e suas dimensões políticas. Esta potência traça uma linha de fuga marcadamente contínua.
(2008, p. 8)
justamente segui-los para construir a pesquisa. O que pode ser considerado um grande desafio
já que os escritos de Oswald de Andrade se apresentam de maneira nada linear (e não caberia
a nós atribuir uma linearidade a estes).
Podemos dizer ainda que para muitos, esta dissertação se aproximaria de um trabalho
de teoria antropológica, já que trataremos de questões caras ao debate antropológico e
pensamos as contribuições teóricas dos escritos antropofágicos para este. Entretanto, nos
questionamos se em algum trabalho de antropologia podemos tratar a teoria separada da
etnografia? Sobre isso, podemos dizer que esta dissertação é, à sua maneira, uma etnografia
que busca “dar voz aos nativos”, que são os textos oswaldianos, muitas vezes deixados de
lado nos debates antropológicos por seu caráter utópico. Esta operação é feita não só através
do contexto histórico do autor, mas também através da relação dos seus escritos com diversos
contextos e problemas, para que eles possam aparecer, ser realçados, se colocar. Esperamos
que depois dos pontos abordados possamos ter um desenho (talvez em formato de mosaico)
do conceito de Antropofagia, que nos foi permitido pelo exercício de imaginar seus
posicionamentos diante de diferentes questões, de uma expansão no mundo. Tal tarefa não
significa concordar com tudo o que coloca o autor, mas é um pouco como propõe Eduardo
Viveiros de Castro (2011) em relação a Pierre Clastres: resistir a Oswald, “mas não parar de
lê-lo, confrontar seu pensamento no que nele aparece de vivo e perturbador.” (p. 306) Trata-
se, como já foi dito, de pensar com (e não como), buscar aquilo que aparece de vivo e
perturbador na Antropofagia oswaldiana, o que pode ser devorado pela antropologia.
Nesta empreitada, nos deparamos com os aspectos libertários dos escritos
antropofágicos, que compõem e potencializam a visão política da autora deste texto. O projeto
político construído por Oswald, quando ressaltado nesta dissertação, mistura-se com as
questões do mundo de hoje, a partir de um viés marcadamente anti-capitalista e contra o
Estado.
Nossa perspectiva também converge (ou melhor, se apropria de alguns aspectos) com o
texto de Theodor Adorno, chamado o Ensaio como forma. O filósofo defende a forma do
ensaio como uma importante maneira de conhecimento, mergulhada na experiência.
Distinguindo-se da ciência e da própria arte, "seus esforços ainda espelham a disponibilidade
de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já
fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma
criação a partir do nada, segundo modelo de uma irrestrita moral do trabalho." (ADORNO,
19
2012, p. 16-17). Assim, construímos essa dissertação: sem vergonha de dizer o que é gostado
ou não, sem pudor de se envolver e se deixar levar pelos escritos antropofágicos.
Adorno acrescenta ainda: o ensaio interpreta ao invés de registrar e classificar. Se
revolta contra a doutrina arraigada, desde Platão, segundo a qual o efêmero e o mutável não
seriam dignos do conhecimento, o historicamente produzido não é mais deixado de lado, mas
tomado como parte importante do estudo. Voltado para a utilização dos conceitos e a relação
entre estes, procede metodicamente, sem método. Para exemplificar, Adorno fala do
aprendizado de uma segunda língua feito através da experiência no país, ao invés da leitura de
dicionários. É uma imersão-intuitiva que não se prende necessariamente a um método fechado
e pré-estabelecido. No caso dessa dissertação, vocês verão que não se trata do "encaixe" de
algum método para poder classificar e desvelar os escritos de Oswald. É uma tentativa
também de através de uma imersão-intuitiva ter liberdade diante do objeto, liberdade que dá
ao objeto mais chance de se expandir, ganhar força, do que se fosse categoricamente inserido
em um método (isto parece compor com a proposta de "dar voz" aos escritos antropofágicos).
Sobre isso, vale ainda atentar para a seguinte citação:
Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando; quem vira e revira o seu objeto,
quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete a reflexão; quem o ataca de diversos
lados e reúne no olhar do seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto
permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever. (BENSE, 1947 apud
ADORNO, 2012)
Este trecho reflete bem as pretensões dessa dissertação e ajuda a enfrentar este desafio
dentro da antropologia, que é não tratar diretamente de pessoas, grupos, mas de escritos (que
obviamente atingem e influenciam grupos e pessoas). Buscaremos experimentar os textos de
Oswald de Andrade, deixando transparecer sem culpa àquilo de amado e de odiado, as
aspirações políticas aqui vivas, que esperamos poder compor com os ideais antropófagos.
Trata-se também de abordar o efêmero e o mutável (e a devoração!), reconhecendo os
próprios limites e vantagens dessa dissertação: buscamos escrever ancorados na criação, no
encontro, na relação com os escritos oswaldianos. Assim, aparecem diversos problemas e
questões divididos em subcapítulos que serão abordados de maneira (talvez) efêmera, com o
objetivo de virar, revirar e provocar os escritos – pode ser que aquilo que nos pareça
inacabado possibilite a abertura, nos permita seguir interpretando e narrando.
Seguindo, então, os preceitos do ensaio, procuraremos estabelecer relações entre o
conceito de Antropofagia e os conceitos de Modernidade e Alteridade. A escolha destes dois
20
conceitos se deu por serem conceitos caros para a Antropofagia literária, assim como para a
própria antropologia. Para tratarmos da alteridade, podemos pensar que a Antropofagia seria o
modo de vida voltado para a alteridade (como aprofundaremos em diversos pontos dessa
dissertação), enquanto a Antropologia propõe-se a ser ciência da alteridade. Ambas também
estão agitadas por questões sociológicas: como lidar com o ideal da modernidade? Ou melhor,
como ter um olhar de alteridade para o dito moderno? Isto se torna um grande desafio quando
pensamos que a própria noção de modernidade não foi concebida a partir da alteridade, mas
sim a partir da universalização do sujeito racional, da divisão ontológica entre natureza e
cultura (fundante da própria Antropologia). No caso da Antropologia, a tentativa de
compreender as sociedades “não-modernas” a partir da alteridade11, lhe permitiu pensar a
própria modernidade a partir desta. Já que olhar para o diferente, possibilitou olhar para si
mesmo de maneira distinta. Desde então, muitos caminhos foram apontados, chegando-se até
a apontamentos de que jamais teríamos sido modernos. Não se trata aqui obviamente de
tentar esgotar esse debate, não queremos escolher a “melhor maneira” de definir a
modernidade ocidental, nem entendê-la como um todo homogêneo, mas aproveitar algumas
caracterizações relevantes apontadas pelos debates antropológicos. Para, assim, podemos
perceber como a Antropofagia oswaldiana pode contribuir para este debate, a partir de uma
perspectiva de que o bárbaro teria muito a ensinar àquele considerado moderno. Pois é
servindo-se da filosofia primitiva que Oswald de Andrade afirma que já tínhamos uma série
de atributos importantes à modernidade.
Neste sentido, podemos dizer que compomos com o esforço proposto por Eduardo
Viveiros de Castro em Metaphysiques Cannibales de descolonização do pensamento. Na
verdade, esta proposta compõe com a própria Antropofagia oswaldiana e já que pretendemos
pensar com ela, estamos inevitavelmente enredados nessa discussão. O autor propõe uma
"alter-antropologia indígena" que seria uma transformação simétrica e inversa da antropologia
baseada na epistemologia ocidental. Enquanto a primeira constituiria-se por uma aliança
radical com os conceitos dos povos que estuda, buscando uma radical transformação político-
epistemológica, a segunda entenderia que o encontro da Antropologia com o Outro resultaria
sempre na repetição das representações do Ocidente (ou seja, por trás do Outro estaria o
Mesmo). Esta alter-antropologia relaciona-se intrinsecamente com a Antropofagia (roubada
11
Cabe explicitar a preocupação deste trabalho de não reproduzir a divisão entre modernidade ocidental e resto
do mundo (ou West/rest, como dizem alguns autores pós-coloniais). Vale dizer que tratamos aqui,
principalmente, da relação das sociedades ameríndias, apropriadas pela Antropofagia literária, com a
modernidade Ocidental, mas isso não que acreditamos que todas as sociedades distintas da Ocidental (que
também já são muitas) possam ser pensadas como um todo homogêneo
21
***
Dito isto, cabe definir como se organizará esta dissertação que anunciamos. Após esta
apresentação, onde apontei alguns objetivos e princípios teórico-metodológicos, o primeiro
capítulo apresenta sinteticamente aspectos importantes da constituição da Antropofagia
oswaldiana. A parte 1.1 (Um breve prelúdio: ida ao povo modernista, devoração e sertão) trata
do surgimento da Antropofagia e sua relação com o Modernismo, abordando a proposta de
"ida ao povo", aspecto fundamental do movimento, que expressa a união entre "a floresta e a
escola". Isto nos ajudará a situar a Antropofagia literária, passando por seu surgimento e
constituição. Em seguida, estaremos aptos para abordar o próprio conceito de Antropofagia
proposto por Oswald de Andrade (parte 1.2), o que será feito destrinchando as dimensões aqui
consideradas: (1.2.1) a alteridade e (1.2.2) a modernidade. Depois de uma apresentação geral
12
Sobre a proposta de Eduardo Viveiros de Castro na sua relação com a Antropofagia ver Des Metaphysiques
cannibales à la Philosofie Anthropophage,(RODIONOFF, 2012)
13
Expressão utilizada por Oswald de Andrade(1991) em “A reabilitação do primitivo”.
22
do conceito, de sua "visão de mundo", apresento sua relação com estes dois conceitos, estando
o segundo, por sua extensão, dividido entre a crítica ao racionalismo e a oposição ao Estado e
à propriedade privada. Neles estão presentes também outras discussões caras à Antropofagia
literária, como a crítica ao messianismo e ao patriarcado, que aparecem permeando todo este
capítulo. Será possível começar a delinear a concepção de alteridade antropofágica e a partir
dela sua visão crítica em relação à modernidade ocidental.
Depois, no capítulo 2, nossa tarefa será justamente colocar em diálogo as dimensões
destacadas do conceito com debates levantados pela antropologia e pelas Ciências Sociais,
apontando possibilidades de contribuição da Antropofagia oswaldiana para a disciplina. Na
parte 2.1, voltada para a alteridade, buscaremos entender como se deu a devoração da
Antropofagia com os Outros, com a filosofia ameríndia e como a partir disso constitui uma
alteridade canibal específica. Iniciaremos por pensar a relação da Antropofagia literária com a
Antropofagia literal (ou propriamente ameríndia), o que será feito a partir de diálogos com
etnografias contemporâneas. Na parte seguinte, buscaremos compreender como Oswald de
Andrade constrói um primitivismo específico, na sua relação com o primitivismo ufanista do
grupo Anta e com a proposta de Mário de Andrade. Isto nos ajudará a qualificar sua relação
(poética) com as sociedades ameríndias. Em seguida, nos questionaremos se a alteridade
antropofágica vincularia-se a noção de mestiçagem (própria do pensamento essencialista), ou
se apontaria para uma concepção distinta, apontando para uma outra ontologia.
Definida a concepção de alteridade, já poderemos pensar a relação da Antropofagia com
a Modernidade (subcapítulo 2.2). É importante ressaltar que esses dois subcapítulos tem
fortíssimas relações entre eles, sendo por muitas vezes um atravessado pelo outro (já que a
própria crítica à modernidade ocidental, não pode ser desvinculada da concepção de alteridade
e vice-e-versa). Neste subcapítulo definiremos não apenas a crítica à modernidade ocidental,
mas a própria proposta de uma alter-modernidade antropofágica. Na parte 2.2.1 veremos
como o "Socialismo Caraíba" reivindicado por Oswald de Andrade tem relação direta com a
ideia de Utopia (tantas vezes deixada de lado pelo pensamento científico-racionalista e pelo
pragmatismo capitalista). Na parte seguinte apresentaremos um aspecto significativo da
Antropofagia oswaldiana: o de ser contra o Estado, o que se dará a partir da relação com os
escritos de Pierre Clastres. Depois disso, nos permitiremos questionar se, diante dessa relação
inerente com as filosofias primitivas, seu princípio de alteridade e seu modo de intensidade
contra o Estado, a Antropofagia pode ser pensada como uma teoria do Brasil – como o foi
23
durante muito tempo por parte da crítica literária14. Estes últimos pontos apontam para a
desestabilização de um importante pilar da modernidade ocidental, proposto pela
Antropofagia: o Estado-Nação. Assim, neste capítulo esperamos traçar um panorama da
relação da Antropofagia oswaldiana com a alteridade e modernidade.
Por último, no capítulo 3, daremos apontamentos de como desterritorializar a
Antropofagia, para poder pensá-la para além de seu tempo, nas suas possíveis contribuições
para o pensamento contemporâneo e não apenas como uma obra datada a ser analisada só em
seu contexto. O que será feito, primeiramente, com um diálogo com algumas teorias anti/pós-
coloniais - esta relação com outros contextos de resistência às imposturas coloniais, permitirá
fortalecer e enriquecer a proposta antropofágica de descolonização do pensamento.
Buscaremos também pensar a Antropofagia na relação com um movimento social específico:
o Exército Zapatista de Libertação Nacional. Será uma tentativa de ver de forma um pouco
mais "encarnada" uma ação antropofágica. Por fim, veremos a relação do paradigma aqui
abordado com o pensamento do teórico indígena Davi Kopenawa (uma importante tentativa
contemporânea de pensar uma alter-modernidade), o que permitirá refletir sobre questões
atuais e do amanhã.
14
Um grande exemplo é a perspectiva de Robert Schwarz (1981), em "A carroça, o bonde e o poeta
modernista".
24
1. Modernismo e Antropofagia
Afinal, quando, onde e como nasceu a Antropofagia literária? Sabemos que ela vai além
do movimento modernista, porém seu surgimento está profundamente atrelado a este. Neste
primeiro capítulo, vamos abordar este nascimento, para em seguida desenvolver algumas
considerações sobre o conceito de Antropofagia. Não se trata de reconstruir os detalhes do
contexto histórico específico, mas apontar algumas condições e direções construídas, para
poder também mapear problemas com que se relaciona o conceito (o que continuará a ser
desenvolvido ao longo da dissertação).
fim da arte de gabinete, dos modelos, do pedantismo, a favor do verso livre, sintético,
industrial, "bárbaro e nosso". Arquitetaram o evento fundador: a Semana. Na hora marcada
Graça Aranha entrou no palco anunciando, com voz grave, "o estado de insurreição nos
domínios de inteligência", Oswald leu trechos de seu livro "Os condenados", Mário de
Andrade recitou a Paulicéia desvairada, Villa-Lobos fechou a noite com uma orquestra de
cordas, sopro, reco-reco, tamborins (BOPP, 1996). Já não havia mais volta: o modernismo se
instaurava na arte brasileira
Este movimento (poderíamos dizer artístico-político-cultural...) estava longe de ser
homogêneo. Logo se tornaram claras as diferenças entre os grupos, e a corrente Antropofágica
ganha forma e texto: Manifesto Pau-Brasil (1924), Manifesto Antropofágico (1928). Estas
distinções serão abordadas ao longo do texto e principalmente na parte 2.1.2, por ora,
continuemos nosso breve prelúdio sobre o Modernismo e a vertente Antropófaga analisando
uma característica fundamental para este trabalho: a ideia de “ida ao povo” presente no
movimento.
Foi com a máxima, “é tempo de ir ao povo, devemos estar preparados para o
indispensável, e sobretudo devemos aprender o trabalho físico”, que a ideia de "ida ao povo"
aparece pela primeira vez no tempo dos tzares, entre os populistas russos, chamados
narodiniks. Estes eram em grande parte formados por universitários que se propuseram a sair
das cidades para ir ao campo organizar a população para a revolução socialista. Permeados
pelos dilemas da Ocidentalização (ou não) da Rússia, estes jovens passaram a trabalhar,
comer e se vestir como os camponeses. Buscavam viver de fato como eles, entregando-se a
um outro modo de vida. Como dito por Rubem César Fernandes: "Os testemunhos evocam
um movimento de dimensões profundas, de um esforço de transformação total do estilo de
vida dos que dele participaram." (p. 31). Esta concepção encontra-se, com respectivas
diferenças, no modernismo antropófago. Buscando unir a cultura dita "popular" ao "mundo
letrado" ou nas palavras de Oswald a junção entre a "a floresta e a escola" (ANDRADE,
1970), a ida ao povo modernista rejeitaria a repetição da arte e teorias europeias, a "arte de
importação" (idem). Nas palavras de Luciano Martins teria:
uma criatividade que se propõe quebrar (o que era novo no Brasil) a separação entre o
erudito e o popular. Pela incorporação do falar cotidiano à escrita e à linguagem literária
(preocupação central em Mário de Andrade), dos ritmos afro-brasileiros à música clássica
(Villa-Lobos) ou das figuras do povo à pintura (Portinari, Di Cavalcanti)... (MARTINS, p. 2)
Vale ressaltar, que no caso de Oswald esta "ida" se deu de forma mais ensaística,
diferente de Mário de Andrade mais preocupado em colher registros empíricos. Em seus
26
Erro de Português
Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
(ibidem)
as casas e cidades. Neste outro aparece explicitamente a defesa de uma proximidade com a
língua das ruas:
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
(ibidem)
Além disso, o autor "não procurou imobilizar essa situação de trânsito, fluente, no
estatuto coercitivo de uma nova sistematização linguística - a língua brasileira, pronta e
legitimada por regras (convertida por sua vez em modelo)" (CAMPOS, p. 51). O que aparece
como uma abertura, a negação de uma língua essencializada e estática.
Esta mesma preocupação é abordada a sua maneira por Guimarães Rosa, um dos
autores, que segundo o próprio Oswald (1991), mais aprofunda e radicaliza a proposta
modernista. Com os olhos voltados para modos de vida diferentes de sua "cultura letrada e
15
urbana" , aventura-se pelos sertões e desenvolve uma escrita toda particular. Seus livros
transbordam neologismos, há a busca da novidade da linguagem, constituinte das próprias
narrativas. Não há imobilidade, o que existe é a travessia, como aparece nas últimas palavras
de Grande Sertão: Veredas: “O diabo não há! É o que eu digo, se for. Existe é homem
humano. Travessia.” (p. 568). O movimento e ambiguidades são constituintes do homem, da
linguagem, essenciais para o autor: "Ao invés de etiquetar o mundo, o narrador do Grande
sertão: veredas se vê diante de um ‘mundo misturado’, repleto de ambiguidades – ‘tudo é e
não é’, como o Liso do Sussuarão, ora intransponível, ora transponível." (MARTINS COSTA,
15
Guimarães Rosa é considerado por Ana Luiza Martins como participante de "uma “vertente antropológica”
da ficção brasileira, por se aventurar pelo interior do Brasil munido de cadernetas de viagem, e com os olhos
voltados para um mundo diverso de sua própria cultura letrada e urbana."(p.13) O autor faz um "ida ao povo"
radicalizada, mas como em Oswald, não se trata de uma cópia do modo de falar sertanejo, é uma criação a
partir da experiência do sertão, sua matéria-prima para o fazer poético. É, podemos dizer, uma mediação
poética, em que Rosa faz-se sertanejo, sem deixar de ser escritor, ou melhor, faz-se escritor, sendo sertanejo.
28
p. 27) Estas são algumas características da “ida ao povo” modernista antropófaga depois
retomada por Rosa16.
Em tudo o que aí fica dito não há nada de mau; o que há é que esta gente não usa calções.
(Michel de Montaigne)
***
16
Apesar de não ser o espaço para aprofundar esta discussão, consideramos também o debate em torno do
caráter elitista da própria “ida ao povo” modernista. Se há “ida ao povo” é porque há grande distância entre o
povo e outras camadas favorecidas da sociedade. E no caso, pelo menos inicialmente, não é o “povo”
protagonista desse processo, mas sim o próprio grupo de intelectuais.
29
17
Esta alteridade da abertura, foi segundo Frederich Nietzsche (2008), o que possibilitou o próprio surgimento
da filosofia entre o povo grego, antes de Sócrates: "Não há nada de mais absurdo do que atribuir aos gregos
uma cultura autóctone; pelo contrário, eles assimilavam a cultura viva de todos os povos e, se chegaram tão
longe foi porque souberam retomar a lança de onde o outro povo a havia deixado." (p. 33). Foi a capacidade
de absorver o Outro que possibilitou o surgimento da filosofia entre os pré-socráticos: os gregos souberam
encontrar e aprender nas terras estrangeiras, "trataram rapidamente de completar, elevar, erguer e purificar de
tal modo os elementos por eles absorvidos que a partir de então tornaram-se inventores num sentido mais
elevado" (idem, p. 35).
30
Ora, ao nosso indígena não falta sequer uma alta concepção de vida para se opor às filosofias
vigentes que o encontraram e o procuraram submeter. Tenho a impressão de que isso que os
cristãos descobridores apontaram como o máximo de horror e o máximo de depravação,
quero falar da antropofagia, não passava de um alto rito que trazia em si uma
Weltanschauung, ou seja, uma concepção de vida e do mundo (ANDRADE, 1991, p. 231)
Presente no modo de vida indígena, mas também se estendendo para além dele, a
18
"antropofagia ritual" seria constituinte de uma era cultural chamada de Matriarcado.
Identificamos aí influência dos conceitos da antropologia, pois Oswald de Andrade ressalta a
18
A ideia da Antropofagia como uma verdadeira concepção de mundo está vinculada à noção de
weltanschauung, advinda da tradição do romantismo alemão, que concebe as culturas a partir da sua
totalidade e singularidade, em contraposição ao universalismo iluminista.
31
importância dessa antropofagia ser ritual, e não por pura fome. Nas palavras do autor: "O
índio não devora por gula e sim num ato simbólico e mágico onde está e reside toda sua
compreensão de vida e do homem. Trata-se apenas da transformação do tabu em totem, isto é,
do limite e da negação em elemento favorável." (ANDRADE, 1991, p. 104). Sem caráter
apenas fisiológico, essa "operação metafísica" transformaria o tabu em totem, o que resultaria
em um modo de vida da alegria, do prazer, do "ócio criativo". Afirma, então, no Manifesto
Antropófago: "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade" (ANDRADE, 1970) Mas, quando chega a civilização o homem para de se
alimentar do outro e passa a escravizá-lo. Para o escritor modernista, a exploração do homem
pelo homem começou na América quando o branco vestiu o índio com sua ética do trabalho.
Vestiu com a repressão, a violência, a castração, a "moral da cegonha". Há no movimento
antropofágico uma crítica à própria civilização ocidental como um todo presa ao seu
racionalismo, ao seu tédio, à sua "jaula de ferro".
Podemos perceber que existem diversas faces do conceito de Antropofagia proposto
por Oswald. Ele é recuperado na sua dimensão etnográfica, como forma cultural das
sociedades tupinambás, o que se generaliza de forma mítica para todos os povos que aqui
habitavam antes da chegada dos portugueses e pode ser vista em outras partes do globo. E
aparece também como traço de resistência ao colonizador, através da valorização de uma
cultura e metafísica "bárbara e nossa". Nesse sentido, o modo de vida antropofágico estaria
em relação de alteridade radical ao Ocidente opondo-se à sua tríade constituinte: o Estado, o
patriarcalismo e o messianismo. Além disso, podemos vê-la como utopia (em um sentido que
será mais bem abordado a frente), a antropofagia é a "lei do homem", que aparecerá no novo
Matriarcado a ser instaurado pela grandiosa Revolução Caraíba. Este modo de vida unido à
tecnologia do Patriarcado, formaria o "bárbaro tecnizado" (a síntese desta relação dialética),
que teria as máquinas para libertá-lo de todas as repressões. Esse último aspecto coloca uma
face da Antropofagia contra a volta às origens perdidas. Não haveria o desejo de um retorno
para uma época anterior à colonização, mas a defesa de uma forma de vida da abertura
possibilitada também pelo avanço tecnológico.
* * *
Talvez um dos aspectos mais fortes da Antropofagia oswaldiana seja a sua fome de
alteridade. Diversas são as interpretações para o famoso aforisma do Manifesto Antropófago:
"Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do Antropófago." Diante dele, nos
questionamos: o que estaria implicado no ato antropofágico? Devorar seria uma busca de
engrandecer a si, o eu, o indivíduo ou um puro interesse pelo outro? Cremos, assim como
Alexandre Nodari (2009a), que a Antropofagia não deve ser explicada como uma tentativa de
fisgar as qualidades do inimigo, para fortalecer um “eu”. Seria uma outra forma de lidar com
o universal: se no discurso do universalismo moderno, o universal existe anterior ao
particular, com as diferenças se misturando em uma grande salada sem gosto, na proposta
antropofágica o universal se reconstitui a partir das diferentes e novas perspectivas. Nesse
sentido, não há uma preocupação, como aparece em algumas interpretações do modernismo
antropófago, de uma cultura brasileira unificada e essencializada – o que será mais
aprofundado na parte 2.1.3. Seria, como aponta Sueli Rolnik, o contrário de uma imagem
identitária, pois a devoração é sempre uma transformação de quem engole e é engolido, para o
surgimento de um novo. Então, afirmando que os brasileiros são antropófagos afirma-se, na
verdade, que são aquilo que os separa incessantemente de si mesmos. O princípio
antropofágico da alteridade, muito mais do que uma característica autenticamente brasileira, é
"um princípio imanente à produção de subjetividade, ele é próprio da espécie humana como
um todo. No entanto, ele pode estar mais ou menos ativo nas subjetividades, e isso em muito
depende dos contextos socioculturais, do quanto tendem a favorecer ou inibir sua atividade."
(ibidem) Sobre isso, também é interessante atentar para o trecho de Amir Geiger:
O Manifesto Antropófago pode (e deve) ser lido (em letra e em espírito) como um discurso
universalizante do antropófago caraíba, não como afirmação da cultura brasileira. O
discurso, a falação indígena, não diz nada sobre a cultura brasileira ser antropofágica, e sim
sobre a permanência, recalcada e produzindo efeitos, da antropofagia caraíba nas
manifestações culturais brasileiras. O Manifesto não é uma interpretação da cultura
brasileira, mas uma crítica das condições de universalização moderna. (p. 361)
possibilidades do ser19, o que se dá por este modo específico de encontro com o Outro. Vale
ressaltar ainda que a alteridade antropofágica não se trata de um mimetismo, que engoliria
tudo o que lhe é imposto20, para tornar-se um mero espelho do outro, sem sal, nem cor.
Tampouco uma postura xenófoba que busca centrar-se e apenas preservar suas próprias
características, como o praticado pelo primitivismo do Anta. O homem antropófago coloca-se
em constante tensão entre esses dois polos, mas para destruir ambos. O que surge no encontro
com o Outro é um novo sujeito afetado por aquele que foi devorado e distinto dele ao mesmo
tempo. Sobre esta tensão enfrentada pelo canibal (tanto literal, quanto literário), nos diz
Carlos Fausto:
antropofagia, nas palavras do Manifesto Antropófago: "A baixa antropofagia aglomerada nos
pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos
cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos." Já a alta antropofagia
"traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males
catequistas." (ibidem) Este desejo do inimigo sacro, a sua transformação de tabu em totem,
carrega consigo uma densa concepção de mundo que transforma o limite em favorável. Não
há um Deus bom e imutável que devemos aceitar, nos levando a recalcar nossos
ressentimentos (até os coloniais). Mas, sim, uma batalha constante contra o fora, uma
externalidade constituinte que não deve ser escondida. Vemos, portanto, como a alteridade
antropofágica adquire um sentido profundo, que vai para além da simples assimilação
cultural. Não há vontade de verdade absoluta, essência, purismo: a luta contra o colonizador
não se dá pelas armas coloniais. Se a matriz da modernidade ocidental volta-se para dentro,
interioriza-se, tem o indivíduo como irradiador da vida social, a Antropofagia é fora,
externalidade. O interesse pelo outro destrói a ontologia do indivíduo, centro irradiador da
experiência moderna. A concepção de alteridade antropofágica, nos leva necessariamente à
crítica à modernidade ocidental...
22
Sobre isso ver Mignolo (2008).
35
rígidas, no plano social, e os seus recalques impostos no plano psicológico" (CAMPOS, 1979,
p. 36). A própria palavra sintética que dá nome ao movimento, antes carregava as
inferioridades dos povos ameríndios colonizados passa a ser invertida. Não há mais falta,
incompletude e nem apenas uma crítica não propositiva ao homem moderno, mas a defesa de
um modo de vida positivo da alegria, com o qual o próprio Ocidente deveria aprender.
Abordaremos, então, os aspectos críticos à modernidade ocidental desta teoria, passando pela
crítica ao racionalismo e cientificismo e a defesa de um homem que não reprima seus
instintos de liberdade (1.2.2.3) e a crítica ao modo de produção capitalista e a defesa de uma
sociedade contra o Estado (1.2.2.4).
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.
(A ciência - Manoel de Barros)
De Sócrates sai o esquema do perfeito boneco humano, longamente exaltado pelas classes
dominadoras, a fim de se conservar, domado e satisfeito, o escravo. E o "piedoso", o "justo",
o “continente", o "prudente". Nele refulgem as virtudes do rebanho, como definiu Friedrich
36
Nietzsche. Nele reside o fundo catequista de todas as covardias sociais e humanas. (1995, p.
115)
Oswald ligou esse purgação do primitivo à origem da saúde moral Nietzschiana, do homem
como animal de presa que, segundo a digestiva empregada por Nietzsche em A Genealogia
da Moral, assimila e digere, sem resquício de ressentimento ou de consciência culposa
espúria, os conflitos interiores e as resistências do mundo exterior (p. xxxi)
romantismo23: "Trata-se da ideia de que os fenômenos e os entes, singulares como são – totais
e diferenciados – e dotados da capacidade de se distender no fluxo vital, temporal, não o
fazem sem uma qualidade especial, interna, toda própria (...)" (p. 11). Esta força não poderia
ser medida pela razão e pela consciência, mas sim pela experiência. Seria formadora da
autenticidade e originalidade de cada ser, que poderia estar doente, fraca, enferma, ou
saudável, forte, exuberante.
Uma das principais características do homem moderno que abafaria esta força interna
seria o racionalismo ocidental e o consequente cientificismo. Criticando o objetivismo e a
propagação de uma verdade absoluta para além da experiência24, Nietzsche busca desconstruir
a verdade metafísica defendida pela filosofia platônica e reforçada com artifícios diferentes
pela ciência: “Quando alguém esconde algo detrás de um arbusto, volta a procurá-lo
justamente lá onde o escondeu e além de tudo o encontra, não há muito do que se vangloriar
nesse procurar e encontrar: é assim que se dá com o procurar e encontrar da “verdade” no
interior do domínio da razão” (NIETZSCHE, 2007, p. 40). Para o filósofo, todos os conceitos
construídos pela ciência seriam sempre criações e não verdades objetivas. Como diz em O
Crepúsculo dos Ídolos, o "mundo-verdade", prometido pelo sábio e pelo religioso, é "uma
ideia que não serve para nada, não obriga a nada; uma ideia que se tornou inútil e supérflua;
por conseguinte, uma ideia refutada: suprimamo-la" (p. 32). Neste mesmo sentido, aponta
Oswald de Andrade ao propor "um dramático protesto humano contra o mundo lógico de
Hegel e a sua terrível afirmação de que tudo que é racional é real." (1991, p. 102) O poeta,
inegavelmente, compõe com esta tradição anti-racionalista e dispara nos aforismos do
Manifesto Antropofágico: "Nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós", ou ainda:
"Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o
Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida". O racionalismo, a verdade e a ciência
aparecem sempre ironizados na obra do autor, como vemos nesta outra citação criticando o
essencialismo presente na ideia de ser: "A gramática é que ensina a conjugar o verbo ser e a
metafísica nasce daí, desse verbinho" (ibidem).
Outra citação bastante interessante aparece no primeiro prefácio de Serafim Ponte-
Grande (1926): “a gente escreve o que ouve – nunca o que houve”. Não se trata nunca de
23
Tratamos aqui Romantismo no sentido mais amplo do termo, entendido como parte de uma chave de
interpretação que distingue pensamentos mais próximos do Romantismo (críticos à Civilização) dos
próximos ao Iluminismo (defensores do progresso e de ideias racionalistas).
24
É nesse sentido que Luiz Fernando Duarte coloca a ênfase na experiência como a base de uma epistemologia
de tendências românticas: "Ela implica a recusa de uma objetividade externa absoluta do processo de
conhecimento ou da prática científica, em nome de uma consideração constante dos processos subjetivos em
jogo na relação com o mundo exterior"(p. 12)
38
escrever os "fatos", as coisas-em-si, como levaria a crer um pensamento objetivista, mas sim
escrever a partir do que cada um ouve, da própria experiência.
E ainda podemos observar o engraçado personagem, a "Camarada verdade", que
aparece através dos tempos, em diferentes perspectivas e pessoas, apontando para sua própria
historicidade:
No patamar da nova poesia, "onde um dragão guarda os tesouros do amor", "a felicidade
persiste sobre o abismo negro" e "a serenidade é o prefácio da morte", está a agitação
tempestuosa de Nietzsche. A nova poesia restaura o reino da criança, do primitivo e do
louco25. Ouçamos Nietzsche... (ANDRADE, 1991, p. 117)
25
Aqui vemos a influência de Freud sobre a obra oswaldiana (digamos que talvez um pouco invertida). Ambos
colocam o louco, o primitivo e a criança em uma relação de oposição com o sujeito iluminista, dotado de
racionalidade. Sobre isso ver Totem e Tabu.
39
Este outro aspecto será mais aprofundado no próximo subcapítulo, por hora, cabe nos
questionarmos: mas o que de propositivo é colocado pela Antropofagia oswaldiana? Para
abordar tal questão nos debruçaremos sobre a noção de ciência errática defendida pelo autor.
Para isso, faremos uma analogia com alguns escritos do antropólogo Pierre Clastres que nos
ajudará a desenvolver o tema (e que será mais aprofundado depois), pois em ambos
encontram-se tendências de um pensamento contra o Estado, que se depara com
problemáticas semelhantes.
Para começar abordemos críticas comuns feitas aos principais conceitos desses dois
autores. Muitas vezes um viés mais positivista se questionou tanto sobre a Antropofagia
oswaldiana quanto sobre a Sociedade contra o Estado de Pierre Clastres: será que para validar
esses conceitos seria preciso encontrar formas contra o Estado ou matriarcais em todas as
sociedades primitivas? Sobre isso, devemos atentar que a descoberta da "forma-estado" ou de
relações de parentesco patriarcais presentes nas sociedades ameríndias, não invalida
necessariamente os conceitos propostos pelos autores. Não só Clastres aponta para forças de
estratificação social e centralização política, "sobretudo no norte e no noroeste amazônicos, na
área chamada "Circum-caribe" no Handbook, onde vicejaram aristocracias e 'pequenos
estados'"(2011, p. 343), como também Oswald aponta o homem cordial como uma contra-
força matriarcal presente em uma era predominantemente patriarcal. Ou seja, se os autores
dão margens a interpretações que percebem os conceitos apresentados como dois tipos sociais
homogêneos correspondentes às sociedades primitivas, também apontam para uma direção
que percebe o Matriarcado antropofágico e a Sociedade-contra-o-estado como “conceito[s]
que designa[m] um modo intensivo de existência ou um funcionamento virtual onipresente
cujas condições variáveis de extensivização e de atualização compete à antropologia
determinar empiricamente”(idem, p.343).
26
Isto será melhor abordado no subcapítulo sobre a Antropofagia literal e literária.
40
obedecer à minoria, não poderia se restringir a uma ou outra situação concreta, teria uma
enorme abrangência e nesse sentido seria trans-histórica. Nas palavras do antropólogo: “Sua
agressão tem um alcance muito maior: ele levanta uma questão totalmente livre porque
absolutamente liberta de toda ‘territorialidade’ social ou política, e é exatamente porque sua
questão é trans-histórica que somos capazes de entendê-la.” (2011, p. 147) Esta questão,
podemos dizer, profundamente filosófica, por mais que não vise responder questões de uma
sociedade específica, ajudou Clastres a compreender melhor a realidade concreta das
sociedades primitivas.
É neste sentido que Oswald de Andrade propõe uma ciência do vestígio errático:
“Frente a los sistemas evolutivos, completos y hegemônicos, Oswald pantea la Errática que
rescata el vestígio anacrônico o lo que se há perdido com el fin de conmover y resquebrajar el
sentido único y autoritário del poder patriarcal que domina la sociedade contemporânea.”
(AGUILAR, 2010, p. 15). Por via desta, o antropófago busca recuperar os vestígios
matriarcais escondidos e oprimidos em meio à sociedade patriarcal. Esta empreitada seria
feita através de afinidades que não necessariamente acompanham a ordem das causalidades
históricas. Mas, sim, apropriando-se daquilo que interessa em determinados fenômenos,
desprendendo-se do contexto histórico enquanto um a priori de todas as explicações e
relações. Em Marcha das Utopias, por exemplo, o autor se debruça sobre a ação dos jesuítas.
Aqueles mesmos antes denunciados por terem um papel brutalmente catequizador, neste
texto, são protagonistas da Contra Reforma, que opõe a Utopia ao utilitarismo mercenário da
Reforma do Norte. Sobre isso, nos diz o autor: “Quando exalto os jesuítas de modo algum
assumo para com eles compromisso religioso ou ideológico.” (1970, p. 152) Isto quer dizer
que em determinado momento pôde se apropriar daquilo que lhe interessava nos jesuítas, a
ideia da Contra Reforma em oposição “ao conceito árido e desumano da Reforma” (ibidem),
mas que não necessariamente os jesuítas vão lhe servir para lidar com outros problemas.
Continua o autor: “Um escritor, um sociólogo, um crítico podem rotular numa ampla latitude
ideológica, um fenômeno que parecia restrito a certos compromissos de origem ou de
destino.” (idem, p. 153) É o que faz Clastres em relação à La Boétie devorando seus
questionamentos sobre a servidão voluntária. Ambos constroem à sua maneira uma ciência
errática, ou ciência régia27, como sugerido por Tânia Stolze e Marcio Goldman, no prefácio
d’A sociedade contra o Estado, uma ciência que não busque constantes fechadas, mas
dependa de fluxos e variações.
27
Termo apropriado de Deleuze e Guatarri (2005).
41
***
Como dito por Tânia Stolze Lima e Márcio Goldman, no prefácio de As sociedades
contra o Estado, o racionalismo ocidental não é uma mera operação intelectual. Ela carrega
consigo uma inerente violência, pois se baseia na recusa de outras formas de pensar. Os
autores apontam ainda que os dois grandes pilares sobre os quais se ergue a civilização
ocidental desde a cidade grega são a Razão e o Estado, unidos pelo vínculo do poder. Esta
visão condiz com o pensamento de Raul Antelo de que o capitalismo e o Estado moderno
42
28
Muitos são os exemplos deste tipo de pensamento. Para utilizar um paradigmático nas Ciências Sociais, mas
bem distinto de Oswald, vemos como Émile Durkheim confiante na civilização acredita que o mundo pode
ser esclarecido. Afastando-se da confusão primitiva, o desenvolvimento das sociedades humanas
possibilitaria a clareza das classificações.
43
homem ocidental, só que utilizada para libertar o homem do trabalho. O progresso técnico
levaria a uma entrega total ao ócio, a escravidão da máquina permitiria sua própria libertação.
Nas palavras do autor: "O homem aceita o trabalho para conquistar o ócio. E hoje, quando
pela técnica e pelo progresso atingimos a era em que (...) o homem deixa a sua condição de
escravo e penetra de novo no limiar da Idade do Ócio . É um novo Matriarcado que se
anuncia." (ANDRADE, 1970, p. 83) Sem as prisões do trabalho, o homem retornaria a um
modo de vida da alegria, saudável, que unisse o princípio de realidade ao princípio de prazer.
Mais adiante, o autor continua: "No mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as
barreiras finais do patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia,
da invenção e do amor." (ibidem)
É interessante ver como em Macunaíma, considerado pelo próprio Oswald como um
romance antropófago, há um interessante encontro entre o personagem principal e a Máquina.
Ao chegar a São Paulo, a cidade dos homens de mandioca, Macunaíma se depara com uma
proliferação de máquinas: “As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes
hupmobiles chevrolés dodges e eram máquinas (...) tudo na cidade era só máquina!” (p. 32)
Macunaíma vê na Máquina um deus, a imagem de Tupã dos filhos de mandioca. Só que se dá
a grande decepção: o anti-herói vira motivo de risada e o avisam que essa história de deuses
era mentira antiga, com a Máquina não se podia brincar, pois a Máquina mata. Aquilo se
tornou uma grande angústia para ele: como os homens podem mandar na máquina e a
máquina matar os homens? Percebemos uma crítica ao uso patriarcal da tecnologia, daqueles
homens “sem mistério sem querer sem fastio incapaz de explicar as infelicidades por si”
(ibidem). No final de uma profusão de pensamentos conclui: “Os homens é que eram
máquinas e as máquinas é que eram homens.” (ibidem) Como não remeter esta frase a uma
versão tupiniquim do fetichismo da mercadoria marxista? Na cidade patriarcal dos filhos de
mandioca, os homens perdem sua agência de homens e viram máquinas desencantadas, sem
mistério, nem vontade. As máquinas (agora encantadas de outra maneira) passam a ter o poder
que seria dos homens, o homem faz a máquina, mas é destruído por ela. Perceber isso o
liberta para utilizar a tecnologia à sua maneira: “Percebeu que estava livre outra vez e teve
uma satisfa mãe. Virou Jiguê na máquina telefone, ligou pros cabarés encomendando lagostas
e francesas” (idem, p. 33) Vemos como Macunaíma não se coloca contra a Máquina, mas quer
usá-la de outra maneira.
A metáfora do "bárbaro tecnizado" é, então, resolvida pela própria proposta
antropofágica: não procura a destruição pura e simples da civilização, mas quer sua
44
devoração. A tecnologia pode potencializar o modo de vida antropofágico (este visto como o
melhor dever ser para a sociedade), pois é engolida, junto com "o necessário de química, de
mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido." O progresso não seria, como esperado,
um caminho até a Civilização, marcada pelo esclarecimento através da consciência, da
racionalidade, mas em direção à própria weltanschauung antropófaga, dos instintos
exteriorizados. Se para Marx o modo de vida primitivo é anterior à civilização, para Oswald
ele é essencial nessa nova fase do mundo que estaria por vir, justamente no sentido de romper
com a moral e a metafísica civilizatória29. Como dito por Benedito Nunes: "Inverteríamos a
direção da história, pondo-nos à frente da caminhada mundial" (p. xxix).
Como vemos, mesmo em sua época de membro filiado do PCB, Oswald produziu um
marxismo para lá de heterodoxo, e com o desenvolvimento da URSS, o seu casamento com o
partido torna-se insustentável. Depois de 15 anos filiado, o autor já desiludido com a União
Soviética, rompe com o Partido. Percebe que a defesa da "ditadura do proletariado" teria
desembocado em todos os problemas cruciais da União Soviética. O Estatismo, o
autoritarismo, o controle exacerbado teriam corroído o ideal socialista. O marxismo ortodoxo
teria ele próprio se tornado uma filosofia messiânica como o cristianismo.
Apropria-se, então, novamente da filosofia nietzschiana, pensando no marxismo
soviético como a “moral do rebanho”, em que o desgosto do indivíduo diante da vida
enfraquecida seria abafado pelo florescimento da comunidade, que homogeneizaria os
homens, tentando esconder o sofrimento. O dogmatismo e controle exacerbado do Estado
propagaria o senso comum e promoveria o recalcamento dos instintos. Vemos a crítica no
seguinte trecho:
O que sucede hoje, porém, ultrapassou de muitos os limites do razoável. Há, por exemplo,
uma maneira proletária de se tirar as asas de uma mosca de laboratório. Tudo nos vem assim
da URSS, crismado de sectarismo, rotulado e imposto, acadêmico e formalista, enfim,
borrado de ocre sanguinário e de estupidez militante. (ANDRADE, 1991, p. 218)
29
Podemos dizer que se analisarmos à obra oswaldiana sobre a chave analítica que diferencia pensamentos
iluministas de românticos, ela se apropriaria dos dois: aproveita as críticas românticas aos males da
civilização, mas aponta para o futuro.
45
Contudo, o autor não abandona o socialismo, mas sim aquele tipo de socialismo que
resultou na URSS. Em Velhos e Novos Livros recupera o conflito entre Marx e os socialistas
libertários (no caso Proudhon), para colocar-se ao lado dos libertários, criticando a autoridade
do Estado. Essa aproximação caminharia junto a um interesse pelo socialismo utópico, como
afirma o crítico Luiz Costa Lima: "Oswald no Brasil foi o primeiro a tentar recuperar a
tradição utópica do socialismo, procurando se desviar do marxismo positivista. Contra o
burocratismo estalinista Oswald afirmava que o caminho do socialismo passava pela utopia."
(LIMA, p. 96) Essa utopia (que será retomada mais a frente na dissertação) se dá pela forte
recuperação do paradigma Antropofágico, em que a defesa da era do matriarcado aparece com
cada vez mais força (ANDRADE, 1991). Na verdade, como bem percebeu Benedito Nunes,
Oswald acentuou um traço que nunca havia abandonado, mesmo na sua época mais próxima
do marxismo: "É que o poeta, e eis onde começa a originalidade do seu pensamento, mesmo
como marxista, (...) nunca deixou de ser utopista. E jamais fez, na verdade, a distinção,
sabidamente estratégica, entre socialismo utópico e socialismo científico” (p.li). Prossegue
Benedito Nunes:
Manteve ele no marxismo a dimensão ética das doutrinas do chamado socialismo utópico
(Proudhon, sobretudo), e o antiestatismo anarquista de um Kropotkin. Seu socialismo jamais
deixou de ser, fundamentalmente, o da rebeldia do indivíduo contra o Estado mais interessado
numa sociedade nova, cuja vida passasse pela morte da organização estatal, do que no
fortalecimento de uma ditadura do proletariado. Daí ter ele assimilado o marxismo ao ciclo das
utopias, e isso reagindo ao caráter messiânico de que se revestira na Rússia, como ideologia do
Estado. (ibidem)
A ideia de uma "transformação" do Estado parece claramente ocidental. Não obstante, a outra
ideia, de uma "destruição" do Estado, remete muito mais ao Oriente, e às condições de uma
máquina de guerra nômade. Por mais que se apresente as duas ideias como fases sucessivas
da revolução, são diferentes demais e conciliam-se mal; elas resumem a oposição das
correntes socialistas e anarquistas no século XIX. O próprio proletariado ocidental é
considerado de dois pontos de vista: enquanto deve conquistar o poder e transformar o
aparelho de Estado, representa o ponto de vista de uma força de trabalho, mas, enquanto quer
ou quereria uma destruição do Estado, representa o ponto de vista de uma força de
nomadização. Mesmo Marx define o proletariado não apenas como alienado (trabalho), mas
como desterritorializado. O proletário, sob esse último aspecto, aparece como o herdeiro do
nômade no mundo ocidental. Não só muitos anarquistas invocam temas nomádicos vindos do
Oriente, mas sobretudo a burguesia do século XIX identifica de bom grado proletários e
nômades, e assimilam Paris a uma cidade assediada pelos nômades (2005, p. 59)
O homem antropofágico não pode definir-se apenas como força de trabalho, pois é
também o ócio e o nomadismo que definem seu estar no mundo. O Patriarcado deve se
estabilizar/estatizar reproduzindo a herança, enquanto os povos matriarcais são constante
movimento, nas palavras do autor:
Entra aqui um problema atinente ao mundo móvel das migrações. Os povos que se
estabilizam no patriarcado. O eixo de sua vida é a herança que cria formas fixas de
existência. Os povos matriarcais não se conservam na rigidez da morada, na produção
regular da fazenda ou da cultura, no trabalho cotidiano e regular da casa. Sua lei é o
movimento. A exogamia é seu destino. (ANDRADE, 1991, p. 242)
Em relação a isso não são poucos os exemplos. Na França observamos um típico caso
em que caminham juntos Razão e Estado, como uma forma violenta de negar outros modos de
vida. Com o pretexto da racionalidade e uma certa laicidade, o Estado francês faz todo o
possível para afastar os indesejados imigrantes no país (sim, são aqueles advindos dos povos
assaltados pelo neocolonialismo europeu). A lei que proíbe o uso de símbolos religiosos nas
Escolas públicas é só uma pequena amostra de um "universalismo à francesa": são religiosos
e proibidos os véus islâmicos, mas não o são as roupas ocidentais predominantes entre os
franceses. Para continuarmos com outros exemplos, não precisamos nem ir tão longe. Ao
observarmos a situação atual no Rio de Janeiro, vemos como o aparelho policial estatal tem
papel fundamental para garantir uma grande expulsão dos pobres nas áreas mais valorizadas
da cidade. As Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP`s) instaladas, em sua maioria, em
favelas da Zona Sul, Centro e Zona Norte, promovem o controle do território, não só para que
o tráfico de drogas não apareça explicitamente, mas principalmente como uma forma de
valorizar o solo urbano da cidade e garantir o controle da região (passam a ser cobradas
contas de luz, água, etc). Assim, se as classes populares não são expulsas diretamente, como
no caso do Morro da Providência em que cerca de 700 famílias estão sendo removidas por
causa das “obras de melhoramento”, o são pela nada branda “expulsão branca”, em outras
palavras, pelo aumento desenfreado do custo de vida no local. Neste contexto, o aumento dos
preços de imóveis é irrefutável, sendo o Estado força essencial para favorecer as grandes
construtoras e empresários (não precisamos nem citar o nome já quase mítico de Heyk
Batista). Estes são apenas alguns apontamentos de como a luta contra o Estado proposta pela
Antropofagia não pode ser taxada de ultrapassada, e não deve ser guardada apenas como algo
do século passado. Este tipo de questão será mais bem retomada no capítulo 3 desta
dissertação.
48
A alteridade é uma dimensão crucial para a Antropofagia. Veremos como nos escritos
de Oswald de Andrade ela ganha um sentido amplo e abrangente. Para começar, a alteridade
se contrapõe por muitas vezes ao ideal da "aculturação" tão presente em seu tempo. As
sociedades ameríndias não estariam necessariamente perdendo sua cultura no encontro com
outros povos, mas poderiam estar reinventando novos modos de ser - devorando, diria o
antropófago. Atentando para o processo de reinvenção permanente presente em qualquer
grupo cultural, Marshall Sahlins critica o "pessimismo sentimental" de certos antropólogos
que só veriam o aspecto negativo do encontro do Ocidente com as "sociedades primitivas",
ressaltando, apenas, como estas estariam perdendo algo essencial. Ao afirmar o domínio
absoluto do Ocidente, este tipo de concepção abafaria as transformações próprias destes
grupos, relegando-os a um tipo de cultura estática, como é colocado pelo antropólogo: "Ao
supor que as formas e os fins culturais das sociedades indígenas modernas haviam sido
construídos exclusivamente pelo imperialismo ou então como sua negação os críticos da
hegemonia ocidental estavam criando uma antropologia dos povos neo-a-históricos."30 Sem
negar a violência e a dominação presentes, Sahlins quer valorizar a agência destes povos, sua
capacidade de se apropriar da cultura ocidental, ao invés de crer em uma inevitável
"aculturação". É, de certa maneira, para a força antropofágica desses povos que aponta o
antropólogo. Como é também para um “otimismo sentimental” que aponta a proposta
antropofágica: os povos colonizados poderiam devorar o necessário de química, a engenharia
e até os positivistas. É apostando na alteridade, que Oswald de Andrade percebe que para
além da violência da dominação ocidental, há possibilidades de transformação, encontro com
o diferente, o Outro.
Além disso, a alteridade pode ser vista como definidora da relação com os Outros (o
que pode dizer respeito a qualquer grupo). Neste sentido, diferentemente do tipo de alteridade
moderna voltada para si, para o mesmo, para a identidade, Oswald de Andrade, tomando de
assalto a lógica identitária ameríndia proporia uma alteridade antropofágica. Esta seria voltada
para a diferença, para o Outro, para a própria alteridade. Ou seja, ao mesmo tempo a
alteridade também é vista como este modo de ser antropofágico, que só existe baseado no
Outro.
30
Como aparece no seguinte trecho: "O que se segue, portanto, não deve ser tomado como um
otimismo sentimental, que ignoraria a agonia de povos inteiros, causada pela doença, violência, escravidão,
expulsão do território tradicional e outras misérias que a "civilização" ocidental disseminou pelo planeta.
Trata-se aqui, ao contrário, de uma reflexão sobre a complexidade desses sofrimentos, sobretudo no caso
daquelas sociedades que souberam extrair, de uma sorte madrasta, suas presentes condições de existência."
50
Quando pensamos nas "influências" devoradas pela Antropofagia literária, uma série
de questões se coloca. Sabemos que boa parte da obra oswaldiana teve como influência as
vanguardas artísticas europeias, a filosofia de Frederich Nietzsche e o existencialismo. Isto
não foi necessariamente um problema, pois, como já foi dito, não há preocupações com um
purismo. Entretanto, ao tratar de uma teoria anti-civilizatória, seria estranho o autor utilizar
tanto de referências europeias? O que proporia o projeto antropofágico de deslocado do
“centro” europeu? O que faria o autor, para usar suas palavras, não reproduzir apenas uma
“teoria de exportação”? As respostas a essas perguntas começam a ser respondidas quando
pensamos em como Oswald de Andrade foi devorado e devorou as sociedades ameríndias. É o
que permite que este homem branco, de família aristocrática, vivendo “sob as ordens da
mamãe” 31, possa falar em nós quando trata dos povos que aqui estavam antes da chegada dos
portugueses. Vemos, por exemplo, como o autor escreve o Manifesto Antropofágico na
terceira pessoa do plural: "Mas, nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.”
(ANDRADE, 1970)
Para melhor abordarmos estas questões (e a questão que atravessa este capítulo e esta
dissertação: de qual alteridade a Antropofagia oswaldiana fala?) analisaremos as proposições
da Antropofagia literária em relação à Antropofagia literal e às sociedades ameríndias. Tal
desenvolvimento será feito, principalmente, com o confronto-encontro das indicações
oswaldianas com etnografias contemporâneas. Isso nos possibilitará não só ver como Oswald
de Andrade se apropria das sociedades ameríndias, mas também como a antropologia
31
Este é o sub-título dado ao seu livro auto-biográfico, no qual assume sua dependência afetiva, econômica,
existencial à vida familiar (principalmente em relação à sua mãe). Cabe ressaltar, família, esta, de origem
aristocrática, presa aos valores conservadores em amplo sentido (religioso, político, patriarcal).
51
32
Sobre a relação de parte da antropologia contemporânea com a Antropofagia nos diz Eduardo Viveiros de
Castro:: “vejo o perspectivismo como um conceito da mesma família política e poética que a antropofagia de
Oswald, isto é, como uma arma de combate contra a sujeição cultural da América Latina. O perspectivismo é
a retomada da antropofagia oswaldiana em novos termos”.(p. 129)
52
E é nesse sentido que disse, no início desta comunicação, que a metáfora antropofágica
modernista era congruente com as representações indígenas. Em ambos os casos, e me
permitam aqui resgatar a velha e boa dialética, o movimento não deve ser entendido como
mera identificação ao outro, nem como simples negação do outro. O canibal nega sua presa
ao mesmo tempo em que a afirma, pois emerge da relação como novo sujeito afetado pelas
capacidades subjetivas da vítima (FAUSTO, p. 14)
O bárbaro antropófago, aquele que deveria ser resgatado, ou “reabilitado”, para usar as
palavras de Oswald, devora não só aqueles que são fortes, mas aqueles Outros, sejam
positivistas, juristas, brancos. O que condiz também com a observação de Tânia Stolze: “A
antropofagia é antes de tudo uma sociofagia: é um grupo que (por meio de uma ou mais
pessoas) come outro grupo (por meio de uma pessoa)” (p. 281) Para ir além, podemos dizer
que a Antropofagia literária propõe uma relação com o Ocidente que não seja mimética, nem
de negação absoluta, ao invés disso, quer devorá-lo, tornando-se outro. Assim, podemos dizer
que nesta “sociofagia” não há nem a mera identificação, nem a simples negação deste
inimigo.
A importância do inimigo é outro mote recorrente na Antropofagia literária. Sobre isso
também trata Eduardo Viveiros de Castro ao observar a dinâmica da alteridade amazônica. O
autor analisa as relações entre matador e vítima nos Arawete, um povo de língua Tupi-
Guarani, habitante da Amazônia Oriental. Existiria uma complexa relação entre o guerreiro e
sua vítima, que iria da alteridade radical culminando na morte, até, a partir dessa morte, uma
fusão identitária entre ambos. Neste processo, observa-se a constante mudança de pontos de
vista, em alguns momentos não se sabe mais quem é a vítima e quem é o matador. Este
53
matador ganha uma posição especial, ele é um deus já que, assim como os deuses canibais
deste povo, é ao mesmo tempo o Inimigo e o Arawete ideal. O essencial nessa dinâmica
antropofágica é aquilo que é assimilado quando se assimila o inimigo: a própria posição de
inimigo, os signos de sua alteridade: “o que se visa é esta alteridade como ponto de vista ou
perspectiva sobre o Eu – uma relação” (2002, p. 290). Ao contrário do inimigo objetificado
presente nas cosmologias ocidentais, este inimigo expressaria um ponto de vista, aquele mais
apropriado para perceber a si – o do Outro.
Vale dizer que este não é o único modo encontrado da prática antropofágica. A
etnografia de Els Lagrou sobre os Kaxinawa, grupo Pano habitantes do Acre, mostra um outro
tipo. Diferente da prática entre os Arawete, ou os Yudjá, a antropóloga encontrou o
endocanibalismo, constituído pelo hábito de comer os próprios mortos do grupo. Os
Kaxinawa não admitiam que seus mortos poderiam ser comidos por vermes ou por outros, por
isso preferiam eles mesmos comê-los. Como aponta a autora, esta prática é encontrada em
outros povos, onde prevalece a explicação de que devorar os mortos seria uma ajuda no luto.
Ao verem a pessoa se transformar em não-pessoa os enlutados enfrentariam melhor a morte,
evitando, assim, o luto continuado que poderia atrapalhar o mundo dos vivos. O que se
percebe é que diante dos vivos, o morto torna-se Outro e esta prática aparentemente um
endocanibalismo torna-se um tipo de exocanibalismo. Nas palavras da autora: “Se o morto se
transforma em Outro e a alteridade implica inimizade, o endocanibalismo não seria senão um
caso específico de exocanibalismo. (...) Comer o outro seria o sinal e a afirmação de
alteridade entre quem come e o que é comido.” (p. 330)
Percebemos que o que atravessa essas práticas antropofágicas é o interesse pelo Outro,
a afirmação da alteridade. Para voltar ao povo Yudjá, pode nos parecer espantosa a afirmação
de Kadu, um dos principais informantes de Tânia Stolze, que iguala a carne de caça à carne de
gente. Isto toma um forte sentido quando compreendemos que entre os Yudjá, o que poderia
haver de escandaloso na antropofagia não seria devorar um humano, mas sim devorar alguém
que ocupe uma posição de não–alteridade. Seguindo o raciocínio, vemos como Els Lagrou
percebe a importância da alteridade para a constituição do “eu” entre os Pano. Para a autora,
os Pano compartilham da regra amazônica do “eu é constituído pelo outro”. Em outras
palavras, o modo de ser amazônico baseia-se em um processo de subjetivação, de tornar-se
sujeito, que implica em um processo de tornar-se parcialmente outro, “sendo que a
subjetividade do eu é significativamente aumentada pelo contato íntimo e a eventual
incorporação do outro (seja este um inimigo, espírito ou planta).” (LAGROU, p. 61). Dentre
54
os diferentes modos que esta incorporação pode ter, o “mais espetacular” seria este que aqui
tratamos: o costume de devorar o inimigo. Como aponta a autora estas práticas típicas em
relação ao inimigos humanos (incluindo também os casos de crianças e mulheres raptadas),
que tem por razões óbvias se tornado cada vez mais raras, estariam vinculadas a um modelo
de predação, onde o outro-inimigo mesmo que morto nunca seria totalmente aniquilado, mas
sim mantido vivo dentro do matador. O modelo de predação mais famoso entre os Pano era o
de atacar seus inimigos para raptar suas mulheres. É interessante perceber como essas
mulheres eram de fato incorporadas, se casavam com membros da aldeia, não eram marcadas
como estrangeiras. Os Kaxinawa não exercem esta prática, são endogâmicos. Entretanto,
afirma a autora, seu discurso sobre identidade é o mesmo dos Pano. O Outro é sempre de
algum modo constitutivo do “eu”, o que quer dizer que todas as coisas próprias são feitas da
alteridade, “todos os sujeitos estão a caminho de se tornarem outros” (p. 63). Isto se
constituiria, neste povo, através de um tipo de familiarização ou sedução da alteridade, em
que, nas palavras da autora, “ganha-se ascendência ou poder sobre o outro não através da
pacificação das forças selvagens da alteridade, mas por meio de uma aproximação cuidadosa,
diminuindo a distância em termos espaciais, cognitivos e corporais” (p. 64). Seria uma
dinâmica complexa em que não haveria espaço para definições substancialistas de diferença e
de identidade, em que o outro, o estrangeiro, recebe uma atenção especial. O conceito nawa é,
neste sentido, paradigmático, pois pode caracterizar tanto aquele da mais distinta alteridade (o
inimigo, o branco), quanto outros grupos Pano, ou mesmo, metades no interior do próprio
grupo. Ou seja, nawa pode ser considerado mesmo ou outro, expressando a ambiguidade
existente entre essas duas categorias.
Outro caso interessante é o apontado por Luiza Elvira, ao se debruçar sobre gênero,
sangue e memória entre os povos amazônicos. A antropóloga não identifica um tipo de
violência específica contra a mulher, mas percebe como a violência seria constituinte da
existência social tanto de homens, quanto de mulheres, participando do próprio processo de
formação das pessoas. Neste sentido, a predação, a domesticação e a familiarização de seres
considerados como “de fora” seria um mecanismo fundamental das pessoas e parentelas “de
dentro”. Incorporar a alteridade de seres “outros” seria essencial para elaborar a semelhança
que une a parentela. Tal processo, nos alerta a autora, não significa que toda violência seja
justificada e aceita, evitam-se expressões explícitas de raiva no cotidiano. Entretanto, algumas
vezes ela escapa a este controle e participa da vida social. Com isso, a raiva contra pessoas
55
Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o
tabu. Que é o tabu senão o intocável, o limite? Enquanto, na sua escala axiológica
fundamental, o homem do Ocidente elevou as categorias do seu conhecimento até Deus,
supremo bem, o primitivo instituiu a sua escala de valores até Deus, supremo mal. Há nisso
uma radical oposição de conceitos que da uma radical oposição de conduta. (1970, p. 101).
O antropófago come o índio e come o chamado civilizado: só ele fica lambendo os dedos.
Pronto para engolir os irmãos. (...) Já começou o cardeal da mastigação. Aqui se processará a
mortandade (êsse carnaval). Todas as oposições se enfrentarão. Até 1923 havia aliados que
eram inimigos. Hoje há inimigos que são aliados. A diferença é enorme. Milagres do
canibalismo. (Revista da Antropofagia, Ano 1, num 1)
Atentemos para a inversão colocada: antes existiam aliados que eram inimigos, hoje
existem inimigos que são aliados O que parece uma simples brincadeira literária, pode
apontar para um importante diferenciação (como eles mesmos dizem: “a diferença é
57
33
Sobre a relação entre o poeta antropófago e o antropólogo nos diz Renato Sztutman: "Viveiros de Castro e
Oswald de Andrade encontram-se no registro antropofágico. O ponto é que apenas o primeiro teve oportunidade
de se defrontar diretamente com os antropófagos “em pessoa”, os “verdadeiros autores do conceito” de antropofagia, os
povos tupi-guarani ou, de modo mais geral, os povos ameríndios.(...) Viveiros de Castro viveu com um povo tupi-
guarani amazônico, os Araweté, e encontrou entre eles aproximações e afastamentos em relação aos Tupinambá da costa brasileira
no tempo da Conquista, que levavam seus inimigos de guerra ao moquém. Foi então que pôde constatar que a antropofagia é, como
já havia proposto Oswald de Andrade, debruçado na literatura informativa do século XVI, muito mais do que mera refeição
cerimonial. Trata-se de uma metafísica que imputa um valor primordial à alteridade e, mais do que isso, que permita comutações de
ponto de vista, entre eu e o inimigo, entre o humano e o não-humano. "(2007, p.29)
59
uma raça superior e autêntica brasileira. Se ambos se focavam no tema do índio, o faziam de
forma completamente diferente (quiçá oposta). Esta questão é bem abordada pelo crítico
Benedito Nunes (p. xxxvi): "Ambas reações com o mesmo sentido, mas com direções
diferentes, já eram políticas. Esses grupos remanescentes se afastavam da realidade quanto
mais parecia aproximá-los o tema do índio que lhes era comum." O crítico aponta, então, para
uma diferença no próprio sentido étnico invocado.
Para os participantes do Anta há "o mistério vicariante da raça tupi, que deu a primeira
transfusão de sangue no colonizador e deixou-nos por herança o substrato biológico, psíquico
e espiritual da nacionalidade.(...) Após contribuírem para a composição étnica os aborígenes
perdem sua vida mas interiorizam-se como espírito nacional." (NUNES, p. xxxvii). E a teoria
não se encerra por aí: dessa raça pura e supostamente superior resultaram os órgãos vitais da
nação, as instituições existentes que deveriam ser resguardadas.
Antagônico ao "primitivo guardião das instituições" está o "primitivo antropófago"
permeado por uma lógica igualitária e de rebeldia contra a ideologia da ordem (ibidem).
Longe de ser o "bom selvagem" de Rousseau, ou do sentimentalismo do indigenismo
romântico de Gonçalves Dias, podemos dizer que "tratava-se de um indianismo às avessas,
inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (Des cannibales)(...) a exercer sua crítica
(devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado" (CAMPOS, 1971, p. 49). Com
Montaigne, os antropófagos aprenderam que a civilização classifica de bárbaro o que é alheio
aos próprios costumes. O canibalismo carregaria toda uma "nobreza" não encontrada entre os
civilizados (muito mais cruel do que comer carne de outro homem, seria torturá-lo vivo, por
exemplo), marcados pela injustiça e desigualdade:
Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às regras da razão, mas não a nós, que os
sobrepassamos em toda a espécie de barbárie. Sua guerra é toda nobre e generosa e tem
tanta desculpa e beleza quanta se pode admitir nessa calamidade humana; seu único
fundamento é a emulação pela virtude (MONTAIGNE, 1972, p. 4)
resguardada, mas valorizar um modo de vida (ou de intensidade), presente nas sociedades
indígenas e em outros povos, que foi abafado pela colonização. Como diz Haroldo de
Campos, "sua ideia de Antropofagia não se encaminhava como a de ‘Anta’ para temas
exóticos de efeitos turísticos garantidos, mas vinculava-se à revolução tecnológica" (idem, p.
50). É uma crítica ao Ocidente que valoriza um modo de vida distinto do imposto pela
colonização, mas sem uma visão nostálgica, do retorno. Ele aponta para o futuro: “A
Antropofagia foi na primeira década do modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato
com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro.” (ANDRADE,
1972, p. 96)
Vimos como o grupo Anta busca fixar os elementos de uma identidade nacional,
fortalecendo este ser de características verdes e amarelas, enquanto a Antropofagia propõe
uma outra lógica (anti-)identitária. Diante disso, cabe perguntar: como se colocaria o
primitivismo de Mário de Andrade nesta configuração? Seria ele uma visão “intermediária”
entre as duas posições já abordadas? Poderíamos opor um primitivismo mário-de-andradiano
ao oswaldiano? Se sim, como se encaixa nesta equação o famoso Macunaíma (que segundo
os próprios antropófagos é um legítimo romance antropofágico)? Para começar a responder
essas questões vale ressaltar que não buscaremos explicá-las por detalhes biográficos, nos
quais perpassam intrigas pessoais dos autores – isto pode nos servir apenas
circunstancialmente. É verdade que o temperamento polêmico de Oswald de Andrade pode ter
influenciado nessa relação, entretanto, isto não nos parece ser o fundamental. Neste sentido,
acreditamos ser mais interessante perceber como estes autores constroem seus primitivismos:
baseados em quais princípios? permeados pelos ideais de nação? com qual relação com o
estrangeiro?
Iniciemos abordando o termo utilizado por Mário de Andrade ao criticar a estadia (e a
influência) dos antropófagos na Europa: “o mata-virginismo”. É sabido que o autor era um
vigoroso escritor de cartas (muitas publicadas pelo seu valor documental e literário). Estas
serviam como propagadoras do próprio movimento modernista, envolvendo, cativando uma
rede de escritores e intelectuais, afirmando e expandido as convicções do autor. Em uma
dessas cartas enviadas à Tarsila do Amaral (e de tabela a Oswald de Andrade, seu
companheiro na época), diz o escritor de Macunaíma:
Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés. E se fizeram futuristas! hi!hi!hi! Choro
de inveja. Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se
parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma.
Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes!
62
Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata virgem, onde não há arte negra, onde não
há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista.
Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. (AMARAL p.
369, 1975)
Sobre este curioso trecho podemos nos perguntar: o que seria essa Mata-Virgem? De
início, sabemos que ela não poderia ser encontrada em Paris, já que Mário criticava os amigos
pela demorada estadia. O autor se recusava a sair do país (só o fez por um brevíssimo período
na viagem pela Amazônia, quando chegou até Iquitos), mas podemos ver que essa não era
uma simples recusa, pois significava também rejeitar a assumida influência das vanguardas
europeias declarada pelos antropófagos. A mata-virgem é “voltar-se para si”, propondo, em
certo sentido, um movimento inverso do proposto pelo Manifesto Antropofágico, abocanhar o
outro, interessar-se pelo que não é seu.
apresentando: Mário torna-se cada vez mais um pesquisador empenhado em colher registros
pelo Brasil. Nas suas viagens pelo país recolheu uma amplidão de dados etnográficos, junto a
isso foi se estabelecendo enquanto funcionário de instituições públicas, tendo conhecida
participação na criação do órgão de patrimônio do Estado. Os antropófagos passam a ter uma
postura irônica diante do “homem de Estado” Mário de Andrade. Além disso, não se
preocupavam com o recolhimento preciso de informações sobre os povos “tradicionais”, o
conhecimento destes era principalmente através de leituras.
Estabelecidas estas distinções, chega o momento de nos debruçarmos sobre o romance
(antropofágico?) Macunaíma, para em seguida podermos retornar para o Matavirginismo.
Mesmo com as críticas e afastamentos aqui levantados, o famoso Macunaíma é visto na
própria Revista como um romance antropófago. Começamos, então, a observar alguns
indícios que não nos permitem classificar como necessariamente “opostos”, ou “contrários” o
ideal antropofágico e Mário de Andrade.
64
parte, percebe que “morreu a vitória”, não pode tampouco voltar para a ilha de Marajó, não
faria mais sentido voltar: “Pra viver lá, assim como tinha vivido antes era impossível. Até era
por causa disso mesmo que não achava mais graça na Terra.” (idem, p. 181) Nem na cidade,
na vida capitalista, nem no mato-virgem, de onde viera, a existência não fazia mais sentido,
aliás, tinha sido ela mesma “um deixar de viver”. Só resta a Macunaíma ir para o céu,
desaparecer do mundo e virar estrela.
Vemos como a incompletude é a marca final da história do herói. Ao fim de sua
trajetória, parece não haver espaço para ele neste planeta. Carregaria, então, uma falta, o
sentimento do irrealizável. O que já era apontado no polissêmico subtítulo do livro: “o herói
sem nenhum caráter”. É, assim, pessimista o destino do personagem, o que o afasta do
otimismo presente na visão antropofágica. Para os últimos, o modo de vida antropofágico
encontra-se no futuro, é felicidade certa (movida pela agressividade, vale ressaltar).
Macunaíma não adere à sentença da antropofagia, que diz “a alegria é a prova dos nove”. A
alegria foi insuficiente... Os motivos desse fracasso ficam de certa forma no ar: falta de mata-
virgem? Opressão do mundo capitalista dos homens de mandioca? Dissertar sobre isso
caberia em outro trabalho. Para nós, fica a complexidade do autor e da sua relação com a
Antropofagia. A própria incompletude macunaímica também poderia apontar para uma
rejeição de completar a “identidade brasileira”: seria impossível fechá-la, terminá-la dentro de
um símbolo, uma história, um personagem – o que deixaria marcas de tristeza, mas também
abriria outras possibilidades e mesmo uma outra lógica identitária. Com esses breves escritos
já ficou claro que não cabe encaixar Mário em uma gaveta escrita “nacionalista”, “purista” ou
até “careta”. Por mais que o autor pudesse em alguns momentos fazer jus a essas
classificações, ele também se esquivava, devorava a Antropofagia e era devorado por ela.
Depois dessas considerações, já podemos situar melhor a Antropofagia literária entre
os primitivismos do seu tempo. Distancia-se profundamente do ufanismo do Anta, devora o
Macunaíma de Mário de Andrade. Carrega consigo tensões que demarcam os próprios
contornos do seu primitivismo específico: olhar para o passado ou para o futuro? Referir-se ao
índio em si ou a um modo de vida que pode ser encontrado predominantemente entre as
sociedades ameríndias, mas também em outras sociedades? Para abordarmos estas questões
cabe atentar para alguns trechos do Manifesto Antropofágico. Primeiramente, vamos observar
este pequeno escrito assinado por “Marxilar”, provavelmente uma das assinaturas de Oswald
de Andrade, que fazia uma brincadeira, juntando Marx + maxilar:
66
O índio é que era são. O índio é que era homem. O índio é que era nosso modelo. O índio
não tinha polícia, não tinha recalcamentos, (...) nem delegacia de ordem social, nem
vergonha de ficar pelado,(...) nem tráfico de brancas, nem Rui Barbosa(...) nem se ufanava
do Brasil.
Por que será?
O índio não era monogamo.
Depois que veio a gente de fora (por que?) (...) Tudo mudou, tudo ficou estragado. (...)
Então chegou a vez da descida antropofágica. Vamos comer tudo de novo. (2 dentição,
Diário de São Paulo 24/04/1929)
O que me interessa pois nessa curiosa Europa que para não morrer se recolheu a única
trincheira que lhe restara, a do homem “primitivo” a fim dali partir – você verá – para
qualquer construção oposta à lamentável Babel da civilização ocidental católica puritana. O
que me interessa é só a “retirada” dessa civilização ocidental na direção moral e mental do
nosso índio. (ANDRADE, 1991, p. 42- 43)
Contra o servilismo colonial, o tacape inheiguára (...) Ninguém se iluda. A paz do homem
americano com a civilização europeia é paz nheengahíba. Está no Lisbôa: ‘aquella aparatosa
67
paz dos nheengahibas não passava de uma verdadeira impostura, continuando os bárbaros no
seu antigo theor da vida selvagem, dados à antropofagia como dantes, e baldos inteiramente
da luz do evangelho’. (Revista da Antropofagia, Ano 1, num 1, p. 8)
Aqui a filosofia indígena não aparece como um modo de ser a ser copiado. O
indianismo aparece como “prato de muita sustância”, uma referência, dentre outras possíveis.
É interessante como podemos observar neste pequeno trecho uma relação bastante respeitosa
com a cultura indígena (o que era incomum para a época). Ela pode ser equiparada a qualquer
escola ou movimento, o que também afasta, pelo menos em parte, a perigosa ameaça de
exotismo: o índio não é a figura perfeita e intocada que devemos idolatrar de forma intacta. É
uma filosofia importante e valiosa, mas que deve se misturar e ser misturada com outras
visões de mundo. Sobre isso, podemos ver o seguinte trecho: “Ora, se o japonez é de raça
mais brasileira que os ‘brasileiros’ descendentes de portuguez, negro, italiano, espanhol, etc...
por que resmungar a sua entrada na terra do Guarany? O Guarany é um irmão mais velho
dele” (Revista da Antropofagia, Ano 1, num 1, p. 5). Este artigo opõe-se à xenofobia expressa
contra os imigrante japoneses, provavelmente em São Paulo, e mesmo que carregue uma certa
visão essencializada do que seja ser “brasileiro”, que vem junto da preocupação com aquilo
que seria mais brasileiro e por isso teria mais direitos de habitar aqui (o que é sempre
colocado de maneira um pouco brincalhona), desconserta os próprios padrões do que se
poderia esperar de um primitivismo rígido. Pois, é sem dúvida um argumento curioso o de que
o japonês seria um parente mais próximo do índio e por isso não deveria ser discriminado. O
que se pode perceber é um descentramento da figura do indígena que se dá, talvez de forma
estratégica, para a noção mesma de antropofagia. Isto faz com que os antropófagos possam
devorar e valorizar as sociedades ameríndias, ao mesmo tempo em que seguem adiante.
Talvez a melhor maneira de seguir a própria filosofia ameríndia antropofágica, ou seja, partir
dela para ter a liberdade de abocanhar tanto o daqui, quanto o de fora, o de hoje, ontem e
amanhã. É neste sentido que os antropófagos modernistas podem servir-se tanto dos índios,
quanto dos civilizados (o que não quer dizer que não considerem as enormes diferenças e
valores entre estes).
Vimos, portanto, como o primitivismo antropófago nega os moldes da civilização
ocidental (o que não quer dizer que não possa devorá-la também), inspirando-se fortemente na
filosofia primitiva, mas para propor uma novidade, um futuro. Apropria-se de certos aspectos
cosmológicos, só que para construir um projeto político. Diferente da melancolia
macunaímica, aposta na Revolução Caraíba, uma mudança radical, uma utopia. Distintos do
conservadorismo do grupo Anta, constroem um índio, um antropófago subversivo e
69
Concordamos com a ideia de que a mestiçagem foi apropriada pelos dispositivos de poder,
mas mais do que isso, já que, ao menos no caso do Brasil, este paradigma surge e se
desenvolve sempre vinculado à propagação das desigualdades e hierarquias. Por isso, nos
parece ser tão difícil desvinculá-lo destas, sem propor um outro paradigma. Mas, não nos
precipitemos, algumas explanações devem ser explicitadas antes de tudo.
Inicialmente, para situarmos melhor o ideal cabe fazermos um breve panorama,
identificando onde ele se insere, a quais problemas esteve vinculado. Sabemos que até o início
do século XX predominava o racismo científico entre os intelectuais no Brasil. A crença de
que a humanidade se dividia hierarquicamente em raças biológicas fundamentava a ideia de
nação brasileira que se constituía. Esta crença era compartilhada pela maior parte do meio
intelectual. Pode-se supor que existiram exceções esquecidas, como o personagem Pedro
Arcanjo, criado por Jorge Amado, em Tenda dos Milagres, um bedel apaixonado por livros
que desbanca as teorias raciais de seu tempo. Mas, sem dúvidas, o que predominou foi o ideal
da evolução e determinação biológica. Este ideal, no entanto, não permanecia sem divisões.
Como apontado por Sérgio Costa, a principal divergência entre os intelectuais deste tempo se
dava no âmbito da mistura de raças. Enquanto alguns achavam que a mistura só traria
degradação para a constituição da nação, pois as raças negra e índia iriam contaminar a raça
superior branca (como Nina Rodrigues), outros acreditavam que a mistura poderia ser
positiva, pois produziria um embranquecimento e consequente desaparecimento das raças
inferiores (como Silvio Romero). Não se trata aqui de fazer uma gênese aprofundada da
questão étnica e racial no Brasil, mas identificar como o ideal de mestiçagem se constituiu
imbrincado ao próprio discurso da construção da nação e como isto lhe dá uma conotação
específica que não pode ser desvinculada destas questões políticas. O que vimos foi que já no
início do século passado, o discurso da mestiçagem se apresentava junto com os debates em
torno da identidade nacional. E seja ele abordado de modo positivo ou negativo transmitia a
ideia de que das misturas de raças diferentes nasceria uma raça homogênea, em um caso,
embranquecida e por isso valorizada e no outro caso, negra ou índia e por isso rechaçada. Em
ambos os casos era o racismo e a superioridade branca que se sobrepunham.
É no início da década de 30 que começa uma mudança em relação ao termo. Gilberto
Freyre passa a ser conhecido por dotar a mestiçagem de sentido positivo, não porque poderia
embranquecer, mas sim pela própria mistura. Mistura essa que ganharia preponderância no
Brasil, já que diferente dos países de colonização inglesa, por exemplo, o português teria a
capacidade de se adaptar, flexibilizar e se misturar com o negro e o índio - o que também se
71
deu tanto pela falta de mulheres portuguesas, quanto pelo erotismo daquelas. Esta mistura
possibilitou uma integração que culminaria na formação do povo brasileiro. A mestiçagem
seria, então, traço formador e positivo do povo brasileiro, ou nas palavras do autor:
resultado de uma combinação nova de várias culturas que após um período mais ou menos
agudo de crise, caracterizado por antagonismos ou divergências de ordem cultural, tenha
atingido uma fase ou estado de interpretação fecunda de valores diversos daí resultando uma
cultura diferenciada das de qualquer das origens. (1952, p. 66)
À vista de todas essas evidências não há como duvidar de quanto o escravo nos engenhos do
Brasil era, de modo geral, bem tratado; e sua sorte realmente menos miserável do que a dos
trabalhadores europeus que, na Europa Ocidental da primeira metade do século XIX não
tinham nome de escravos. (FREYRE, 2000, p.103, apud SCWHARCZ, p. 17)
A ideia de uma escravidão branda, de uma suposta harmonia, passa a habitar o ideal da
mestiçagem. É a partir de então que ele toma mais força, passando a compor o discurso oficial
do Estado: somos brasileiros e mestiços, foi a mistura das três raças que resultou no
surgimento e na singularidade do povo brasileiro, povo não mais das raças tristes, mas
72
preocupação com a identidade nacional e a suspeita de que ela poderia ser mestiça.
Observemos o poema:
brasil
Nele há a referência a formação da cultura nacional através da mistura das três raças. É
verdade que o próprio título do poema “brasil” encontra-se com letra minúscula, o que já
satiriza um possível ufanismo, mas ainda assim o ideal da mestiçagem aparece. O encontro
entre o Zé Pereira da caravela, o guarani da mata virgem e o negro zonzo originaria a síntese
(no último verso do poema): o Carnaval, marca alegre e singular desse povo (que remete ao
título, brasil).
É possível afirmar que modernistas e Gilberto Freyre convergem ao tentar definir
positivamente a cultura do “Novo Mundo”: não éramos simplesmente colonizados, com
resquícios mal desenvolvidos da cultura europeia, mas tínhamos especificidades vigorosas,
que deveriam ser valorizadas. Essa singularidade baseava-se principalmente na mistura de
raças (agora não mais biológicas). Entretanto, o modernismo antropófago mostra-se também
complexo, dando margem a outras interpretações – e uma outra perspectiva que agora será
explicitada nos parece condizer mais com o espírito antropofágico. Analisemos o trecho de
Giuseppe Cocco: “Ora, se as referências sistemáticas que Oswald faz a Freyre podem
explicar-se, talvez, pela conjuntura política da luta contra o nazismo e seus adeptos racistas
nos trópicos, elas não põem no mesmo plano político e teórico os dois movimentos.” (p. 20)
Gilberto Freyre busca a mistura para a assimilação dos diferentes em um: os antagonismos
iniciais e diferenças se dissipariam, promovendo uma nova cultura integrada. Já o paradigma
antropofágico busca devorar o outro, mas não em uma integração harmônica. O interesse pela
alteridade é um gesto produtor de multiplicidade, ao mesmo tempo em que combate a
violência da colonização. É neste sentido que Cocco sinaliza para uma diferença política entre
ambos, argumentando que a Antropofagia oswaldiana se estabelecia por uma postura de
74
batalha, “um campo revolucionário, campo de uma outra modernidade; [enquanto] para
Freyre, a mestiçagem é terreno de uma conciliação, da gestão fina de um “luxo de
contradições”, da hybris das relações carnais que aproximavam a Senzala à Casa Grande, o
escravo, ao senhor.” (ibidem) Neste sentido podermos dizer que o ideal do bárbaro
antropófago, devorador desabusado da Civilização, não é compatível ao mestiço harmônico
defendido por Freyre. O próprio Oswald de Andrade se distancia destes pensamentos ao
afirmar:
Havia (em Freyre) uma tendência ao luso, com o objetivo de elevar o branco suspeito da
primeira América ao padrão de nacionalidade. Uma espécie de réplica e contraponto ao
orgulho mameluco dos paulistas de quatrocentos anos. Ambos não percebendo que os neo-
imigrados – sírios, italianos, judeus – trazem para cá milênios ricos de civilização e de
atividade criativa e, sobretudo, o brasão simples do trabalho (ANDRADE, «Atualidade d’Os
Sertões », Feiras Das Sextas. Obras Completas, Globo, São Paulo, 2000, p. 120, apud
COCCO)
Nesta simples citação, Oswald consegue marcar uma grande distância do paradigma
Freyriano. Primeiro, ao criticar “uma tendência ao luso” para elevar o “branco suspeito” como
modelo de nacionalidade, o antropófago já atenta para as relações de poder e dominação
exercidas pelo branco não apenas na “primeira América”, mas que se perpetua enquanto
próprio padrão de nacionalismo. E, vai além, já que como vimos, se Oswald defende a
mistura das culturas, não é para a defesa de uma outra cultura (seja ela nacional ou o que for)
pura e intocável, mas pela crença na importância da alteridade (que já foi amplamente
abordada neste capítulo). Desprendido do purismo nacionalista é possível tornar-se outro
através do contato com sírios, italianos, ou judeus. É possível (e mais do que isso, necessário)
atentar para a atividade criativa destes ou de qualquer outro povo, pois o importante não é
mais aquilo de autêntica e exclusivamente “nosso” (nem mesmo “nossa” mestiçagem), mas a
relação estabelecida com a diferença.
Neste sentido, é de grande interesse a diferenciação, proposta por José Kelly, entre os
dois projetos presentes no contexto venezuelano: “Son estas dos facetas de un mismo
encuentro de proyectos que podríamos llamar: la fusión mestizadora (del estado) y la
hibridación diferenciante (indígena).” (p.13) Abordemos primeiro a fusão mestiça feita pelo
Estado, o que nos permitirá chegar até os dias de hoje. O autor reconhece que ocorreram
mudanças significativas da parte do Estado: se até o governo de Hugo Chavez predominava
uma política explicitamente mestiça e destruidora, neste outro momento foi possível valorizar
o indígena como elemento de resistência, que deveria ser reparado pelas opressões sofridas.
75
Esta nova política multicultural, apesar de seus avanços, ainda atrelava a esperada autonomia
indígena ao Estado e de certa maneira continuava o ideal da mestiçagem: “Un proyecto
multicultural en donde el estado y la tradición occidental definen lo que cuenta como cultura
y la desvincula del contexto social de su producción, esta condenado a ser un proyecto
mestizador.” (idem, p. 11) Embora não exista espaço para aprofundar a questão, podemos
dizer que no Brasil também se manteve a política multicultural/mestiçagem (de forma ainda
mais nociva que na Venezuela, já que o nacional-desenvolvimentismo ganhou mais força por
aqui). Sobre os perigos desta política que se mantem, diz José Kelly:
La idea de mestizaje corresponde con un proceso, una progresión hacia un estado final: la
persona, clase o nación mestiza. El mestizaje no tiene retorno, se supone que produce un tipo
distintivo de gente que elimina la relación entre las gentes originarias que terminan siendo
consumidas por la mezcla que a su vez resulta en una identidad nueva y compartida. (...)La
asimilación, paso histórico secuencial al mestizaje, opera por la aproximación del indígena a
un ideal de relación político-económica con el estado cuyo patrón es la población mestiza.
(idem, p. 13)
los yanomami entonces no constituye un esfuerzo por mestizarse y fundirse con la sociedad
envolvente, por el contrario, la relación entre yanomami y criollos debe permanecer para que
los yanomami del Orinoco puedan alternar entre las posiciones de ser yanomami y ser
criollo. Así pues, en lugar del consumo de identidades en fusión mestiza estamos frente a la
adición de una forma de alteridade. (p. 14)
34
As relações entre as sociedades ameríndias e a Antropofagia oswaldiana foram melhor abordadas no início
deste sub-capítulo.
77
35
Podemos distinguir duas acepções de modernidade apresentadas neste trabalho: uma diretamente vinculada à
civilização ocidental, com diversas características apontadas ao longo destas páginas, e outra que diz
respeito à alter-modernidade proposta pela Antropofagia, esta estabelecida pelo ideal do já tínhamos e da
vida como devoração. Entre ambas apresenta-se um corte epistemológico e ontológico, mas não
necessariamente uma relação dicotômica como veremos na conclusão desta dissertação.
78
Vale nos debruçarmos também sobre o poema "Cântico dos cânticos", no qual Oswald
de Andrade canta seu amor a Maria Antonieta D'Alkmim, a despeito das convenções sociais
que se impunham. Este poema, que poderia ser apenas uma declaração de amor individual,
repetindo os moldes românticos, liga-se a todo um imediato político. Em plena segunda
guerra mundial, a defesa da mulher amada vai misturando-se a defesa de um outro destino
para a humanidade. Como vemos no seguinte trecho:
Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo mundo
Corromper o polo
Estancar a sede que tenho d'outro ser (...)
Resiste
Defendendo
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade
(ANDRADE, 2012, p. 71)
O chamado de amor confunde-se com uma marcha de guerra contra as forças nazi-
fascistas, que impossibilita a sobrevivência da humanidade e da própria paixão do eu-lírico. A
paz final e a própria concretização do amor anunciada no trecho, "Viveremos o corsário e o
porto/ Eu para você/ Você para mim", só é possível com o grande desfecho do poema que
anuncia a "os brados da vitória de Stalingrado"(ibidem). Haroldo de Campos analisa como a
vivência amorosa une-se às questões políticas pelos próprios aspectos textuais, internos ao
poema, percebendo como estes dois último trechos estão vinculados "por aquela projeção, na
camada sonora, da técnica de repetições que, na dimensão estético-semântica constitui a
tônica estilística do poema: 'mim' repercute em 'Alkmin', assim como 'brados' ressoa em
'assombrados' e ricocheteia em 'Stalingrado' (as formas de redundância aqui são o eco, a
aliteração e a rima eterna e interna)" (CAMPOS, 2012, p. 63) Em suma, o encadeamento da
questão individual com as questões coletivas se dá inerentemente, tanto no âmbito interno
como demonstrou Haroldo de Campos, quanto no âmbito externo do poema. A realização do
amor, enquanto vontade individual, só se faz possível com a vitória de Stalingrado, enquanto
vontade coletiva.
Outro poema que nos permite observar a construção de um literatura menor é o
Santeiro do Mangue. Escrito na transição da militância no Partido Comunista para voltar-se a
uma Antropofagia filosófica, o poema transborda todas essas tensões e é todo ele permeado
80
pela política. Sua poética é construída por expressões populares ("nacê", "famia", "berganhá",
"amô", "maió", dentre muitas outras). Nele, nenhum drama pessoal (são alguns descritos no
poema) pode se separar do retrato iminentemente político e crítico à sociedade. O romance de
Seu Olavo e Eduleia se passa no Mangue, cenário de prostituição e homicídios. Como dito
pelo "estudante marxista", personagem que explica sociologicamente o local do Mangue
dentro da sociedade capitalista-patriarcal: "Mas o que importa a uma sociedade é possuir e
manter o seu esgoto sexual. A fim de que permaneça pura a instituição do casamento. Para
que não seja necessário o divórcio. E vigorar a monogamia e a herança. A burguesia precisa
do Mangue." (ANDRADE, 2012, p. 46) Se o personagem do estudante aparece de certa
maneira deslocado da narrativa dos personagens do Mangue - o que já pode nos apontar uma
crítica da situação do militantes comunistas em relação aos meios populares -, de maneira
também um pouco cômica ("trepado nos ombros do Cristo do Corcovado, tomando de um
alto-falante"), é ele também que aponta para interpretações que parecem coincidir com a
crítica do autor à situação da sociedade patriarcal. O Mangue carrega a degradação máxima da
Civilização à qual se opõe o autor, no coração da cidade, no cerne do capitalismo, é
constituído como sinônimo de horror, nele o amor não pode acontecer (como demonstra o
final trágico do casal). Ao mesmo tempo, o Mangue parece conter também elementos do
Matriarcado (como a exacerbação dos desejos sexuais) que mesmo que contaminados pela
lógica patriarcal podem funcionar como uma forma de resistência, pois não se normatizam
completamente, mostrando as próprias contradições da normatividade do Patriarcado. A
sexualidade matriarcal (poligamia) funcionando dentro da lógica patriarcal (o que resulta na
prostituição) mostra os problemas da monogamia na sociedade capitalista. Atravessando o
amor interrompido de Olavo e Eduleia está toda essa complexa construção política, ousada
tentativa de literatura menor, tratando dos esquecidos amores e dias do Mangue.
Mas, o autor ainda vai além. Não se atém apenas à crítica a situação decadente do
Mangue. Há de chegar o dia em que ele se acabe, vencido pelos "heróis em defesa da
liberdade". A literatura menor antropofágica não consegue se furtar de apontar para outros
caminhos e anseios. Sem se desprender das questões de seu tempo (cada questão individual
está vinculada a um imediato político), a Antropofagia aponta para a mudança futura. É nesse
sentido que construiremos esse capítulo: buscando compreender como Oswald de Andrade
constrói e propõe essa "outra-modernidade", junto da controversa (e utópica?) "Revolução
Caraíba". O que passa por um caráter marcadamente utópico, como veremos na parte 2.2.1,
por se propor contra o estado, como veremos na parte 2.2.2 , e desvinculando-se de ser
81
apenas uma teoria do Brasil (isto permite também que falemos de uma outra modernidade de
maneira geral e não apenas brasileira), como veremos na parte 2.2.3.
A Utopia nos remete para uma multiplicidade semântica: delírio, sonho distante,
nostalgia de um passado escapulido, um futuro inalcançável, esperança... Dentre estes tantos,
podemos identificar alguns que sobressaem. O termo foi criado por Thomas More como
sinônimo de sociedade ideal. Através da Utopia era possível pensar em outra sociedade
distinta daquela solidamente estratificada em que vivia o autor, o que continuou a ser feito
depois por uma série de autores em diferentes sentidos. Vemos também a crítica da Utopia
feita pelo socialismo científico, que lhe dá um sentido cômico e ingênuo. A política
dispensaria a Utopia, pois já teria como bastião a razão, a análise científica, baseada nas
regras de economia gerais. Recuperando o velho (e sempre atual) conflito entre os socialistas
utópicos e científicos - vale lembrar que essa distinção é estabelecida a posteriori dos escritos
82
dos primeiros, como forma de agrupar e desqualificar estes pensamentos que não se
adequavam ao método materialista -, é inegável que aqueles considerados utópicos padeciam
de uma enorme distância dos trabalhadores. Como dito por Jean-François Véran: “Saint-
Simon pertencia à alta nobreza, Owen era um chefe de indústria, Fourier era um
comerciante.” (tradução minha, p. 165). Apesar de seus interesses em diminuir as
desigualdades da sociedade capitalista que se formava, estes socialistas pareciam acreditar
que as transformações viriam a partir de pequenas experiências exemplares, situadas, de certo
modo, distantes dos conflitos e contradições que se constituíam. Fourier, por exemplo,
acreditava que ao conseguir estabelecer os Falastérios, onde reinaria a ordem social
harmônica e perfeita sem a repressão das paixões imposta pela civilização, eles rapidamente
se espalhariam por toda sociedade, por serem exemplos tão eficazes. Neste sentido, podemos
reconhecer que haveria certa ingenuidade neste tipo de proposta. É de fato importante o
chamado de Marx e Engels para a concretude da luta política, do operariado esmagado nas
fábricas. Entretanto, este grito contra a Utopia também levou para caminhos tortuosos.
Junto do marxismo positivista, estabeleceu-se, no regime soviético, uma batalha anti-
utopista: era imperativo seguir apenas a interpretação materialista áspera do partido, baseada
no pragmatismo, nas puras necessidades da burocracia estatal. Assim, foram abatidas vidas e
sonhos. A própria arte advinda do ímpeto da Revolução de 17, proclamada pelos futuristas, foi
destruída pelo “realista” Realismo Socialista. Este ideal contra a Utopia também pode ser
visto na lógica capitalista. Segundo esta, seria preciso atentar apenas para as necessidades do
mercado e individualistas. Nada mais anti-utopista do que a teoria da escolha racional,
segundo a qual nossa existência seria resumida a decisões tomadas por desejos individuais e
pragmáticos.
Se a Utopia por alguns momentos foi um ideal distante dos problemas concretos da
sociedade, ela também se mostrou essencial enquanto força contrária a estruturas autoritárias
e conformistas. Neste último sentido, a Utopia não nos leva para fora do mundo, mas imbuído
dele, nos chama a resistir. Podemos dizer que o Antropófago que aqui tratamos, aponta para
este aspecto, afirmando, no seu ensaio A marcha das Utopias, que Utopia não é apenas sonho,
mas protesto. O autor, considerado por Luiz Costa Lima como um herdeiro da Poética da
Utopia, escreve este texto após sua ruptura com o Partido Comunista. Para o crítico, Oswald
foi um dos primeiros a fazer o resgate da Utopia em uma época em que pouco se falava sobre
a dimensão revolucionária desta. Ele recupera a tradição utópica do socialismo contra o
burocratismo estalinista e o positivismo. Além disso, podemos dizer que desvia-se da crença
na vitória do capitalismo (e do individualismo pragmático e necessário), pois se o socialismo
83
deveria passar pela Utopia, a Utopia também não poderia passar sem o socialismo, opondo-se
ao “utilitarismo mecânico e mercenário” vindo do Norte.
Não à toa observamos muita semelhança entre os ideias oswaldianos e os de alguns
socialistas utópicos. Para citar um exemplo emblemático, vemos que os escritos de Fourier
trazem, como em Oswald, uma forte crítica à Civilização moderna repressora das paixões e
instintos. Para o autor, a monogamia seria uma perversão, contrariando os instintos dos
homens. Em todas as sociedades existiria a poligamia, mas só na Civilização isso se daria de
forma reprimida e hipócrita, o que levaria a sentimentos egoístas de propriedade. Sem se
preocupar em ser tachado de imoral, diz o autor: “Qu’importe qu’on atteigne à ses buts pour
des voies dites immorales quand il est certain que les voies dites morales ont conduit aux buts
opposés, à la pauvreté et la discorde, fruits constants de la Civilisation.“(p. 78) Libertando-se
das assertivas morais, a sociedade ideal, construída nos Falastérios, alcançaria a harmonia
plena através do amor compartilhado.
A Utopia oswaldiana rouba dos socialistas utópicos a imagem de uma sociedade do
prazer, sem as repressões impostas pela civilização, sem a figura do patriarca da família
monogâmica. Entretanto, há mais a ser dito. Bem distinta da sociedade ideal harmônica,
desejada por Fourier, a Antropofagia, o ser enquanto ato puro de deglutição, nos traz o
conflito. O conflito seria constituinte da relação entre os seres - comer o outro não parece uma
ideia muito harmoniosa – e da relação com Deus (inimigo sacro). É no combate pelo existir,
pelo perseverar, que podemos exacerbar o princípio de prazer. Sem isso, acabamos por nos
tornar ressentidos, esmagados pela força da civilização amarrada ao princípio de realidade
(como é dito no Manifesto Antropofágico, “a realidade cadastrada por Freud”). Neste sentido,
podemos dizer que a Antropofagia consegue afastar resquícios messiânicos presentes nos
escritos de alguns socialistas utópicos. Não seria uma nova sociedade perfeita e harmônica
que iria surgir, mas ela também poderia carregar seus conflitos.
Além disso, esta ênfase no conflito ganha uma dimensão especial, pois ela aparece
fortemente na luta contra o colonialismo, na valorização do bárbaro. Como dito por Oswald
no texto já citado: “A não ser A República de Platão, que é um estado inventado, todas as
Utopias, que vinte séculos depois apontam no horizonte do mundo moderno e profundamente
o impressionaram, são geradas da descoberta da América“ (1970, p. 151). Não só a Utopia
seria uma força anti-civilizatória, como defendido por Fourier, mas ela existiria apenas pelo
contato com o bárbaro. Foi o encontro com o modo de vida do homem da América que
possibilitou que Thomas Morus pensasse na possibilidade de uma outra sociedade distinta:
84
Foi de um contato que teve Thomas Morus na Flandres, conforme relata com um dos vinte e
quatro homens deixados na Feitoria de Cabo Frio por Américo Vespúcio, que se originou a
criação de sua Ilha da Utopia e o seu entusiasmo por uma espécie de sociedade que divergia
da existente e viria liquidar as pesadas taras medievais ainda em vigor. (idem, p. 149)
Não apenas o criador do termo Utopia teria sofrido a influência da alteridade dos povos
desnudos, como também Campanella, em Cidade do Sol, se remeteria a um armador genovês,
supostamente Cristóvão Colombo. Estes autores criticavam os privilégios de grupos sociais,
que podiam ser dotados do ócio divino, mas, segundo Oswald, para defender o ócio selvagem,
de uma sociedade sem desigualdades. Nesse sentido, a guerra entre Portugal e Holanda seria
uma guerra utópica, pois não teria sido ganha por nenhuma dessas nações europeias, mas sim
pelo índio Poty, pelo modo de vida bárbaro: “Na Guerra Holandesa vencia uma compreensão
lúdica e amável da vida, em face de um conceito utilitário e comerciante. O Brasil compusera-
se de raças matriarcais que não estavam distantes (...) dos sonhos de Morus e de Campanela.
Era o ócio em face do negócio.” (idem, p. 184) É inegável que as referências históricas
utilizadas são um tanto carentes de precisão empírica. No entanto, atentemos para a
interessante apropriação utópica feita pela Antropofagia oswaldiana. O autor recupera o
socialismo utópico contra o socialismo científico, mas não somente isso, pois ele o dota de
uma força anti-colonial. E, a partir disso que pode propor a máxima: “A geografia das Utopias
situa-se na América.” (idem, p. 151) Nós já tínhamos a Utopia e ela deve ser recuperada para
esta alter-modernidade antropofágica.
Estou preso à vida e olho meus companheiros/ Eles estão taciturnos, mas nutrem
grandes esperanças.
Mas não convém ter ilusões, independente da boa vontade ou não do sujeito que
provisoriamente dirige a máquina estatal.
36
Neste sentido concordamos com a colocação de Pierre Clastres: “E nada mais equívoco, também, do que
este obstinação erudita em reduzir um pensamento ao que se proclama à sua volta, nada mais obscurantista
do que essa vontade de destruir o pensamento pelo triste recurso ás ‘influências’.” (2011, p. 160)
86
37
Sobre isso vemos como parte da teoria Anarquista apropria-se de questões contra-civilização. Ver Bakunin,
1999
38
Sobre isso vale ainda atentar para o debate apresentado na página 41 desta dissertação que diferencia a
transformação do Estado, da destruição do Estado.
87
Oswald de Andrade escritor. Oswald de Andrade, sem ser etnógrafo, buscava compreender e
se inspirar nas sociedades primitivas a partir de sua leitura dos cronistas. Foi com influência
destas leituras que constituiu a rebeldia contra o poder estatal. Uma das grandes distinções
entre o primitivismo romântico e o primitivismo antropófago seria justamente a separação do
índio do Estado, ou melhor, sua contraposição a ele: “del índio que está subordinado al
Estado-Padre, forjado durante el reinado de Don Pedro, al índio que moviliza la sociedad
contra el Estado (idea que enunció posteriormente Pierre Clastres pero que ilustra
perfectamente la operación antropofágica).”(AGUILAR, p. 17) Segundo Raul Bopp, outro
participante do movimento antropófago, quando um povo indígena se desgostava de seu
chefe, ele era simplesmente abandonado em seu território, o povo se deslocava para outro
lugar deixando o chefe completamente solitário. O Matriarcado, aquele do homem anterior à
chegada da civilização e que voltará após a superação do Patriarcado capitalista, seria sem fé,
sem lei, nem rei. É uma era, nas palavras oswaldianas, onde só reinam a “propriedade comum
do solo” e a “ausência do Estado” (1970, p. 128). Segundo Oswald, o chefe “nas sociedades
primitivas (...) configura-se como orientador ligado vivamente aos interesses tribais, (...)
representa como um símbolo o nome da coletividade” (1991, p. 236 – 237) Assim como para
Clastres, a chefia nas sociedades primitivas estaria vinculada a uma obediência total à
coletividade, não havendo a separação entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem, o
que impediria o surgimento do Estado. Então, ao reivindicar a cosmologia primitiva como
também construtora de seu projeto político antropófago, o autor volta seus escritos contra o
Estado.
Identificamos alguns elementos que apontam neste sentido. Um deles é o
procedimento menor presente nas poesias oswaldianas, que é identificado por Raul Antelo
como uma forma de conjurar o Estado. O crítico faz uma analogia entre poesia e território,
considerando o poema enquanto a nação construída pelo autor. Chega a conclusão, então, que
ao construir uma poesia mínima (que teve como ápice o famoso poema amor de uma palavra:
Humor), Oswald estaria buscando o mínimo de Estado. Esta busca se daria através das
máximas aspirações, seja o amor humorado, ou a posse contra a propriedade.
Neste caminho também aponta o historiador Carlo Romani. Em seu livro sobre o
militante anarquista italiano Oreste Ristori, o autor relata os encontros entre o grupo de
militantes operários libertários e os intelectuais modernistas. Pode-se dizer que houve uma
proximidade ideológica nas conversas de botequim, estavam por coincidência ou não sempre
no mesmo bar. Entretanto, esta proximidade sempre se manteve restrita às mesas de boteco,
não havendo registros sobre participação efetiva desses intelectuais no movimento operário
88
Mesmo no período inflamado dos anos 1930, o alistamento de Oswald não se faz sem
contradições e rebeldias. Dessa época é a publicação de Serafim Ponte Grande (1933), que
ele terminara de redigir em 1928, e bastaria a menção a esse livro incatalogável para situar o
engagement oswaldiano mais sob a ótica da anarquia do que de uma disciplinada religião do
Estado. (p. 56)
Assim, devora as teorias anarquistas para fazer uma análise específica da situação da
União Soviética. A URSS teria anunciado uma mudança rumo ao Matriarcado ao buscar
abolir a propriedade privada, contudo, ao invés de extinguir o Estado, o teria fortalecido com
seu arsenal armado, fixando suas raízes no modo de vida patriarcal. Além disso, também nos
sugere Carlos Romani que o personagem anarquista Serafim corresponderia a um mix
hipotético entre Oswald e Oreste. São elementos da experiência dos dois que se misturam na
criação do personagem. É neste romance, bastante diferente dos romances militantes, que
segundo Haroldo de Campos surgiria uma anarco-forma. Isto é dito em relação à radicalidade
formal com que se constrói os versos em prosa do livro.
Vemos como Oswald de Andrade dota a Antropofagia de uma força eminentemente
política, contra o Estado, o que se expressa nas características dos seus próprios escritos e é
roubado nas sociedades indígenas. E aí quando dizemos que Oswald se apropria é porque não
queremos retirar do autor sua dimensão poética, artística. Não se trata de buscar exatamente
correspondências empíricas, mas reconhecer como a partir da escrita literária Oswald pôde
dizer muito sobre esses povos, ao mesmo tempo que construía uma teoria política. Ele os
abocanhou, criando uma escrita, anarco-forma, serafínica, da poesia mínima: contra a
autoridade estatal na sociedade e na poesia.
89
39
Como dito no posfácio aqui citado o marxismo para Clastres seria "um elogio etnocêntrico da produção
como verdade da sociedade e do trabalho como essência da condição humana" (p. 301).
40
Sobre isso vemos a citação do próprio Clastres (2003) que descontrói o axioma da civilização de que é
preciso trabalhar: "Os índios efetivamente dedicavam pouco tempo àquilo que damos o nome de trabalho (...)
os homens, isto é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em quatro anos! O resto do
tempo era passado em ocupações não encaradas como trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e
bebedeiras" (p. 212)
90
"o valor proeminente da sociedade nova, o próprio índice ético da existência humana
realizada, de intersubjetividade recuperada sobre os últimos resquícios da violência social de
que a escravidão foi o começo." (NUNES, p. l). Nas palavras do antropófago: "Raciocina
comigo historicamente. Como foi que começou no mundo a escravidão, este 'progresso', no
dizer de Engels? O homem deixou de devorar o prisioneiro de guerra para fazê-lo trabalhar."
(ANDRADE, 1990, p. 130) O trabalho passa a ter uma centralidade apenas em uma fase
específica da sociedade, o capitalismo, não sendo algo universalizável para todos os tempos e
sociedades.
Além de contrapor-se ao universalismo da essência do homem pelo trabalho, há
contraposição à “universalização reacionária, míope e, reprodutiva da figura do Estado como
modelo do Universal” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 319). As sociedades primitivas não
seriam sem Estado, carregando uma falta, e sim teriam mecanismos para conjurá-lo. Não só
existiria vida para além da forma-estado, mas com estes modos de vida deveríamos aprender.
Diferentemente de propor que as Sociedades Primitivas fossem um modelo de projeto político
para o Ocidente, para Pierre Clastres seria preciso através de uma alteridade antropológica
perceber o valor crítico que esses outros podem oferecer. Quer dizer, este Outro não teria uma
relação de falta com o Nós, mas como "figura de alteridade dotada de endoconsistência, de
autonomia em relação à imagem de nós mesmos" (idem, p. 316), teria algo a ensinar. Escritor
e poeta encontram-se novamente: Oswald não tinha a visão nostálgica de retornar para um
passado da felicidade perdida, buscava também aprender com esse modo de vida
antropofágico tão presente nas sociedades primitivas, nos resquícios matriarcais na vida do
lado de baixo do equador. Este deveria ser retomado com toda força junto ao progresso
tecnológico - faríamos a Revolução Caraíba, pois já tínhamos o modo de vida matriarcal.
Podemos dizer ainda que ao diferenciar genocídio de etnocídio, Pierre Clastres afirma
que o primeiro se referiria ao extermínio físico de um povo, enquanto o segundo ao
extermínio do “espírito” de um povo através da assimilação violenta deste. Se todas as
culturas são etnocêntricas, apenas o Ocidente é etnocida. Isto se daria por causa da presença
do Estado, que buscaria sempre a uniformização dos indivíduos perante o próprio, mas
também pelo regime de produção capitalista, que baseia-se sempre na expansão, espalhando a
exploração do trabalho. Tais características transformaram a civilização ocidental na maior
máquina de produzir e destruir. Enquanto àqueles que estavam deslocados deste modo de vida
só restavam duas saídas: ceder à produção ou desaparecer, o etnocídio ou genocídio. Para
Clastres, as sociedades ocidentais, com Estado, seriam o local do Um, onde o índio é
suprimido enquanto Outro e reduzido à cidadão, enquanto as sociedades primitivas, contra o
91
Estado, são consequentemente contra o Um41. Como dito pelo próprio (2003): "as sociedades
primitivas estão do lado (...) da cisão permanente, do lado do múltiplo, ao passo que as
sociedades com Estado estão do lado contrário, (...) da integração, da unificação, do lado do
uno. As sociedades primitivas são sociedades do múltiplo, as não primitivas, com Estado, são
sociedades do Uno. O Estado é um triunfo do uno" (p. 241)
Sobre a prática antropofágica (literal e literária) podemos dizer, como Alexandre
Nodari (2009a), que ela não pode ser interpretada como uma tentativa de capturar as
qualidades do inimigo42, para fortalecer um “eu”: “o Outro não interessa porque pode
fortalecer o próprio, mas pela sua alteridade, pois permite uma nova perspectiva, permite
atualizar uma possibilidade, redesenhando o horizonte do universal, pré-existente somente em
potência” (p. 124). O antropófago volta-se para o Outro e não para a integração e unificação.
Como aponta Sueli Rolnik, ao estender o princípio antropofágico para o domínio da
subjetividade, a lógica antropofágica seria o contrário de uma imagem identitária. O processo
de engolir o outro implica que "partículas do universo deste outro se misturem às que já
povoam o universo da subjetividade do antropófago e na invisível química dessa mistura, se
produza uma verdadeira transmutação" (2000, p. 11) - o que nunca poderia levar a criar uma
identidade fixa, o Um. A Sociedade contra o Estado tampouco conjura o Estado para
fortalecer o indivíduo, já que este seria correlato ao Estado. Como apontado por Viveiros de
Castro (2011), a Sociedade contra o Estado teria "a forma de uma multiplicidade assubjetiva,
seus componentes ou associados não são individualidades ou subjetividades, mas
singularidades - ela desconhece a máquina abstrata produtora de sujeitos, rostos ou
semblantes (bela palavra) que exprimem uma interioridade subjetiva" (p. 322) A
exteriorização antropofágica não funciona como criação do Um, assim como a exteriorização
primitiva estaria "a serviço de uma dispersão. Os selvagens querem a multiplicação do
múltiplo" (idem, p. 324) Esta exterioridade "inseparável da figura do Inimigo como
determinação transcendental", do estado de guerra permanente das sociedades primitivas,
encontra-se com o "sentimento órfico" oswaldiano, na metafísica imanente primitiva. O ritual
antropofágico é a própria absorção do inimigo sacro, do externo, a motivação existencial da
vida humana seria a transfiguração desse fora, a transformação do tabu em totem, o que se
41
Observamos dois sentidos para uno nos escritos do autor. O primeiro é este mencionado no texto, o segundo
trata das sociedades primitivas enquanto unas pois não dividem o poder da sociedade. São dois sentidos
opostos, mas só o primeiro está oposto à multiplicidade.
42
Este pensamento prevaleceu em muitas interpretações sobre a antropofagia tanto literal quanto literária,
principalmente no romantismo, como coloca Carlos Fausto: "A explicação mais difundida sobre a
antropofagia tupi é a de que, por meio da devoração, buscava-se incorporar as qualidades do inimigo.
Recordemos Y-Juca-Pirama:“— Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!...parte; não queremos
com carne vil enfraquecer os fortes.” (p.7)
92
daria por um processo contínuo - nunca se para de devorar. Diferente do messianismo onde
Deus é o elemento positivo a ser venerado, o Bem, o Deus primitivo é inimigo. O combate
direto com este impede o recalque civilizador. Contraria-se, então, as comuns interpretações
destes modos intensivos como harmonia total, a humanidade aparece como "uma posição e
uma relação, marcadas pela relatividade, pela incerteza e pela alteridade." (idem, p. 356)
Como insiste Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, a vida é coisa muito perigosa...
Por último, nos questionamos sobre a relevância destas forças contra o Estado
atualmente (no caso específico da Antropofagia isso será melhor aprofundado no capítulo 3).
Como elas poderiam ser utilizadas tanto para a antropologia quanto para construir uma visão
política de mundo? Obviamente, não buscamos concluir estes questionamentos, mas sim
levantar alguns apontamentos. Em relação à disciplina antropológica, vemos como Marcio
Goldman sugere uma antropologia que rejeite o ponto de vista do Estado no que tange à
política e poder, como também no que diz respeito à uma escrita que escape da forma-Estado
de pensamento. Seguindo esta direção, percebemos como não se trata de buscar seguir estas
teorias enquanto dogma (isso seria estatizar o pensamento), mas apropriar-se erraticamente
destas, pensando sua efetividade nos dias de hoje. Pierre Clastres afirma que o maior desafio
da disciplina seria a possibilidade de nos refletir uma imagem em que talvez não nos
reconheçamos. Neste sentido, uma antropologia contra o Estado se debruçaria sobre as forças
centrífugas que buscam se desvencilhar da força centrípeta da máquina estatal, recusando o
Um que repele a diferença. Ao tratar da obra clastriana, nos diz Eduardo Viveiros de Castro:
“Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o modo como a antropologia articula
sua relação com o objeto e o modo como seu objeto se autoconstitui.” (2011, p. 335) Assim,
uma antropologia contra o Estado, antropofágica neste sentido, não poderia buscar apenas o
que há de comum nas culturas, nem reduzir a alteridade, mas sim multiplicá-la.
Vemos como estas ideias estão imbuídas de uma força eminentemente política que
promove sua ressonância nos dias atuais. Se a Sociedade contra o Estado seria “uma das
muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível:
de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado” (idem, p. 304), a
Antropofagia oswaldiana seria uma outra encarnação como esta. Ela não é apenas uma
expressão de assimilação cultural, mas tem um intenso sentido contra-catequese (e Estado),
engole o eurocentrismo, portador do etnocídio. Pretende uma reabilitação da filosofia da
alteridade primitiva que roa a civilização ocidental, o mundo capitalista.
Podemos dizer que se Pierre Clastres está buscando as respostas de um momento pós
68, mobilizado pelas críticas feitas à parte da esquerda dogmática, Oswald de Andrade pode
93
ser visto enquanto um precursor deste movimento, alimentando-se do marxismo, por um viés
anárquico, ajudado pelas asas de Nietzsche. Encontram-se, então, numa errática, trans-
histórica, em que a partir do olhar para o Outro puderam construir um olhar para a própria
sociedade. Foi desnaturalizando a presença do Estado que Pierre Clastres (2003) analisou seu
mundo: percebeu como este estava se tornando cada vez mais autoritário, identificou
máquinas estatais não só enquanto aparelhos do Estado (governo e aparelho central do
estado), mas também as submáquinas, como os partidos e sindicatos que funcionavam (e
funcionam) de acordo com a lógica do Estado. Também em um brado libertário Oswald de
Andrade anunciava que a criança, o primitivo e o louco são também o povo, classe
revolucionária na luta contra o poder43. Nós, seguindo esta errática, podemos crer que as
forças contra o Estado estariam presentes também nas sociedades ocidentais de hoje.44 E, a
partir disso, crer como Clastres naqueles “selvagens”, pessoas que dizem “abaixo os chefes!”,
pessoas essas que sempre existiram e existirão.
Se a Antropofagia apresenta-se enquanto força contra o Estado, será que ela poderia
ser pensada vinculada a um ideal de nação? Ser ou não uma teoria do Brasil é uma tensão, um
questionamento que parece atravessar a análise da obra oswaldiana. Sobre isso, se
interrogaram diversos críticos com posições também das mais diversas. Se por um lado esta é
uma questão difícil de ser abordada, considerando os muitos momentos de sua obra, por outro
admitiremos pensar como foi feito nas outras partes dessa dissertação: considerar a obra
43
Erraticamente nos remetemos à citação de Michel Foucault, que alguns muitos anos depois do antropófago,
em 1972, ampliou o conceito de classe proletária: “As mulheres, os prisioneiros, os doentes nos hospitais, os
homossexuais iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se
exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que
sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com
uma mudança titular. E, na medida em que devem combater todos os controles e coerções que reproduzem o
mesmo poder em todos os lugares estão ligados ao movimento revolucionário do proletariado.“ (p. 78)
44
Como dito por Marcio Goldman (p. 2): “Não há nenhuma razão para imaginar que os mecanismos “contra-
Estado” isolados por Clastres nas sociedades indígenas ameríndias tenham sua existência limitada a este ou a
algum “tipo” de sociedade. Trata-se de processos micropolíticos muito vivos mesmo nos sistemas políticos
ocidentais, envolvendo uma resistência pragmática em colaborar para o sucesso dos mecanismos de
centralização do poder e uma recusa prática em aceitar a introjeção de mecanismos de hierarquização.”
94
transversalmente, a partir do “fio” da Antropofagia, o que nos permitirá abordar mais a fundo
o conceito. Será que a Antropofagia literária deve ser associada ao ideal de nação, à noção de
Brasil? Como esta teoria se relaciona com o famoso problema da "formação do Estado-
nação"? E ainda, ser uma teoria produzida no Brasil é equivalente a ser uma teoria do Brasil?
Para começar, citemos algumas interpretações propostas para a questão, o que nos
possibilitará, mais adiante, constituir a nossa perspectiva. Abordemos, de início, uma crítica
no mínimo polêmica feita por Robert Schwartz. O autor percebe em Oswald de Andrade uma
integração ao modernismo conservador, a matéria-prima do poema “pau-brasil’ basearia-se na
justaposição de elementos do Brasil-colônia ao Brasil-burguês e sua elevação à alegoria do
país. Esta dualidade entre Brasil pré-burguês e burguês seria resolvida por Oswald de Andrade
com o primeiro tipo de “Brasil” visto de maneira otimista para engendrar fraternamente a
sociedade pós-burguesa, através de um “ufanismo crítico”. Sobre isso, valeria primeiramente
questionar o que o crítico entende por Brasil pré-burguês? Seria uma referência ao
primitivismo oswaldiano? Pré-burguês seria o mesmo que sociedades ameríndias praticantes
do ritual antropofágico positivado por Oswald? Para Robert Schwartz, a valorização destes
povos, considerados como retrato de um “Brasil do passado”, ligado à herança colonial,
estaria nos escritos oswaldianos misturado a um viés moderno que resultaria na
Isto tudo leva o crítico a concluir que tanto Oswald de Andrade quanto Macunaíma, de
Mário de Andrade, estariam a serviço dos interesses da oligarquia do café. Já que os povos
indígenas e os modos de vida coloniais estariam em um mesmo bloco de passado, a ser
superado, mas que insistia em se impor de modo conservador diante da modernidade
inexorável. Podemos perceber como Schwartz busca em Oswald uma perspectiva que não
consegue encontrar: não se trata da luta de classes, mas da visão da história enquanto
progresso linear, onde a modernidade se impõe destruindo os resíduos arcaicos e
ultrapassados.45 Oswald (ainda bem!) tem outras preocupações e tampouco se encaixa na
concepção de um ufanismo crítico que apaga os conflitos. A questão é que o autor justamente
multiplica os conflitos: não apenas luta de classes, mas anti-colonialismo, anti-
45
Resposta interessante a essa crítica é colocada por Eduardo Sterzi.
95
com o universal” (idem, p. 234). Diante dessa afirmação cabe questionar: por que devemos
pensar necessariamente a Antropofagia a partir do ponto de vista do nacionalismo? Não é
porque falamos de um autor que escreve no Brasil que ele deve tratar do Brasil
especificamente.
Para voltarmos a ser acompanhados pelos escritos do autor, vejamos a seguinte frase
presente na Revista de Antropofagia (2 dentição, p. 6), ao tratar do ato de abocanhar o Tabu:
“Um índio que fala ou qualquer outro antropófago de outro continente” . Há, também, no
ensaio a Marcha das Utopias, referências a outros antropófagos que não são necessariamente
índios, mas podem ser árabes, até mesmo jesuítas. Ou seja, ao tratar da força antropofágica,
uma das principais preocupações do autor, não há preocupação necessária com um território-
nação. Um antropófago pode estar, viver, ter origem em qualquer continente. A Antropofagia
oswaldiana opõe-se, é verdade, a lógica civilizatória, eurocêntrica e o universalismo proposto
por ela, contudo, não o faz partindo da ideia de uma nação a ser desenvolvida. Como também
aparece no seguinte trecho: “Em nome dos povos explorados, vendidos, difamados,
entorpecido pela ‘conquista espiritual’ do ocidente, os antropófagos de São Paulo votam a
todas as mandingas o futuro da nação que (...) ainda ousa aprovar créditos para missões
evangélicas” (Revista da Antropofagia, 2 dentição, número 2, p. 1) Entre o “futuro da nação”
e os povos que sofrem com a dominação da civilização ocidental, os antropófagos ficam, sem
dúvidas, com os segundos. Mais importante do que se vangloriar ou se preocupar com os
destinos do Brasil, seria o combate à catequese e aos valores advindos desta. Neste sentido,
esta catequese se referiria não apenas aos ensinamentos cristãos, mas a toda gama dos modos
de ser da civilização.
Observemos ainda, n’A crise da filosofia messiânica, a crítica propagada pelo autor à
URSS: “Agora o dever de todo bolchevique não é mais ser internacionalista, é ser patriota.”
(1970, p. 120) Podemos ver como mesmo neste ensaio escrito após sua ruptura com o Partido
Comunista, o antropófago evoca um internacionalismo em oposição ao nacionalismo
soviético. É com um misto de crença em uma Revolução mundial herdada da sua época
comunista com o ideal canibal impossível de ser vinculado a um único povo que Oswald de
Andrade constrói a Antropofagia, “única lei do mundo” (idem, p. 13). Por isso, afirmamos
que atribuir a Oswald de Andrade uma preocupação fortemente nacionalista pode não fazer
muito sentido. Pois, no fundo a questão levantada no início do capítulo (ser ou não
nacionalista, ter ou não o ponto de vista da nação) talvez pertença muito mais aos seus
críticos, pois a insistente e teimosa questão para a Antropofagia oswaldiana (agora
percebemos) era de outro tipo: Tupi, or not tupi that is the question.
97
3. “Antropofagia, hoje?”
Este último capítulo, que sem dúvida é o mais experimental desta dissertação,
procurará pensar a Antropofagia a partir de outros contextos, tempos e realidades, buscando
dar carne e osso às questões que foram debatidas até aqui. Para usarmos outras "palavras
bárbaras", é uma tentativa de, como dito por Deleuze, desterritorializar o conceito para
reterritorializá-lo em outra parte. Seria, na verdade, uma forma de seguirmos à risca a
proposta antropofágica (trairmos para sermos fiéis), já que ela própria é este "contrário da
imagem identitária" (ROLNIK, 2000). Devoremo-la, para pensar sua vivacidade no mundo.
Se antes, apontamos o esforço antropológico de Oswald de Andrade ao pensar o que
os “primitivos” teriam a dizer sobre a sociedade ocidental, agora imaginaremos o que o
próprio antropófago teria a dizer sobre o mundo hoje. Para onde olharia? Com quem
dialogaria? O que consideraria como experiência antropófaga? Uma ficção declarada e
podemos ousar até ficção tipicamente antropológica46.
Para tal, escolhemos algumas situações e relações específicas, que servirão como
apontamentos exemplares que esperamos poder aprofundar em outras oportunidades.
Primeiramente, pensaremos a relação da Antropofagia oswaldiana com teorias anti/pós-
coloniais. São situações e problemas semelhantes, que se atravessam: como combater a lógica
colonial que se alonga até os dias de hoje? Nas respostas apresentam-se diferentes maneiras
de lidar com a alteridade, a identidade, o poder, formando um panorama complexo. Em
seguida, trataremos do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), importante
movimento libertário (e marcadamente étnico) da atualidade. Isto nos permitirá pensar a
Antropofagia em relação a um movimento social. É uma tentativa de pensar os escritos
antropófagos de maneira encarnada. Por último, relacionaremos a Antropofagia com a teoria
de Davi Kopenawa, intelectual Yanomami. Levando a sério a hipótese da forte ligação entre a
filosofia ameríndia e a Antropofagia literária, buscaremos ver como isso aparece na
atualidade, conectando estes dois pensamentos. Esperamos conseguir trazer para a atualidade,
mergulhar no mundo a proposta antropófaga.
46
Sobre isso, ver Strathern, O gênero da dádiva.
98
Este subcapítulo buscará pensar a Antropofagia na sua relação com outros paradigmas
anti-coloniais. Primeiramente, faremos uma comparação com pensadores de outras situações
coloniais. Cabe ressaltar que tratamos colonização como um processo econômico, político,
construtor da subjetividade, que não se restringe ao período no qual as colônias eram
oficialmente consideradas propriedade das metrópoles. Mas, como um fenômeno que se
prolonga até os dias de hoje, marcado por uma relação hierárquica entre subjetividades
consideradas “civilizadas” em oposição a outras ditas “bárbaras”. Esta comparação nos
permitirá identificar melhor alguns dos problemas levantados pela Antropofagia oswaldiana e
como eles podem se conectar (ou não) com outros problemas levantados em situações de luta
anti-civilizatória. Poderemos perceber como existiram diversos paradigmas que pensaram a
resistência contra a colonização sem, por isso, defender uma identidade pura e essencializada.
Poderemos qualificar melhor a própria noção de alteridade antropofágica a partir de outros
tipos de alteridade abordados.
Primeiramente, analisemos a Antropofagia na sua relação com os escritos de Frantz
Fanon – o que pode nos ajudar a qualificar melhor qual é a relação de alteridade que estamos
tratando. O autor nascido na Martinica participou da guerra de libertação argelina. Foi a partir
dessa experiência de sangue e luta que produziu sua teoria. Questionou-se sobre a constituição
psíquica do homem negro, marcado pelo racismo da situação colonial: o que deseja o homem
negro? Rejeitando explicações simplistas pôde perceber como o negro colonizado constituía-
se por uma subjetividade dilacerada que continha o desejo do opressor, de ser branco,
misturado à sua vontade de libertação. Denunciava, assim, os perversos e profundos
mecanismos da colonização.
Neste sentido, o autor identifica um tipo de alteridade da colonização presente nas
Antilhas, onde o Outro estabelece uma relação muito distinta da antropofágica. Se assim
como para o antropófago, toda a ação do homem de Antilhas passa pelo Outro, isso se dá de
maneira bem diferente, pois isso se daria não porque o Outro é o objetivo de sua ação, mas
porque é o Outro que lhe afirma dentro da sua necessidade de valorização. A necessidade e o
interesse pelo Outro se dão em uma relação onde este é sempre a medida, o valorizado. Nas
palavras do autor: “Tant qu’il n’est pas effectivement reconnu par l’autre, c’est cet autre qui
demeure le thème de son action. C’est de cet autre, c’est de la reconnaissance par cet autre
que dépendent sa valeur et sa réalité humaine. ” (p. 176) É uma constante comparação onde já
99
se sabe a priori quem será o vencedor. Tal constatação não leva o autor a concluir que o Negro
não deveria se interessar pelo Outro. Muito baseado em um humanismo (o que neste aspecto o
afasta um pouco das colocações oswaldianas) afirma que um homem só é um homem na
medida em que se relaciona com o Outro. Mas, esta relação de alteridade pode se dar de
diferentes formas...
Para que o negro possa ter reconhecimento (de si mesmo, principalmente) será preciso
que estabeleça uma relação de oposição ao Outro, onde nas palavras do autor, “la conscience
de soi fait l’éxperience du Désir (...) elle accepte de risquer sa vie , et par consequent ménace
l’autre dans sa presence corporelle.” (ibidem) A liberdade não poderia, então, ser concedida
pelo branco. Por muitas vezes o branco ofereceu sua liberdade. Estabeleceu-se um
preconceito velado, uma suposta igualdade, na qual brancos e negros apertam as mãos (difícil
não nos lembrarmos do ideal da mestiçagem já tratado nesta dissertação). Mas, para Fanon,
seria preciso batalhar pela liberdade, só a luta poderia garanti-la, através da afirmação do
negro. Isto estabeleceria um tipo específico de alteridade: “Altérité de rupture, de lutte, de
combat.” (idem, p. 180) Assim, o homem colonizado poderia abandonar uma postura reativa,
baseada no ressentimento, para adotar uma postura de ação.
Esta alteridade nos remete à postura do bárbaro antropófago. É verdade que Oswald de
Andrade não colocava as questões em termos de retomar a “consciência de si”, mas defendia,
assim como propõe Fanon, uma alteridade do combate, onde o Outro não aparece como o
modelo a seguir (como já foi dito, a Antropofagia rejeita o mimetismo). Esta possibilitaria
transformar o totem em tabu, ou seja, destruir os ressentimentos causados pela situação
colonial e transformá-los em valor positivo.
Fanon também se desvencilha da ideia de que a luta anti-colonial devia estar
necessariamente vinculada ao resgate de um passado autêntico. Sabemos de ideias próximas
que apareceram no contexto antilhano como a proposta do livro Éloge de la creolité. Os
autores deste buscam se contrapor à ideia do Africanismo, afirmando que a ideia mítica do
continente Africano seria uma visão do próprio colonizador. Seria preciso desvencilhar-se
dela para construir uma visão própria e positiva de si. Para isso, defendem a noção de
créolité47 como um: "agregat internactionnel ou transnactionnel, des élément culturels
caraíbes, européens, africains, asiatique." (p. 26) Essa mistura muitas vezes violenta deveria
ser afirmada como forma de resistência à própria violência. Ao invés de um purismo
passadista que só causaria mais alienação, a créolité seria um mosaico constitutivo, com a
47
Como não há tradução literal para o termo optei por mantê-lo em francês.
100
especificidade da abertura. Não seria nem uma síntese, nem mestiçagem, mas uma totalidade
caleidoscópica, que aniquilaria a falsa universalidade e o monolingüismo. Vemos uma certa
afinidade entre a ideia de créolité e a alteridade da abertura proposta pelos antropófagos. O
contexto antilhano também nos fornece a experiência de Aimé Césaire, escritor
contemporâneo a Oswald de Andrade. O caminho do primeiro cruza-se bastante com o
caminho do segundo. Como dito por Eurídice Figueiredo (1998), o escritor antilhano tem uma
formação eurocêntrica, com fortes referências francesas. Neste momento, internaliza a
dominação, repetindo apenas o conhecimento colonial. Só que assim como nosso
antropófago, indo para Paris descobre as Antilhas. A partir do seu contato com o surrealismo,
estabelece uma forte crítica à civilização ocidental (ao racionalismo, individualismo,
capitalismo...). Depois de usurpado de suas "tradições", ele usurpa (ou devora) as vanguardas
europeias para poder criar uma escrita própria e de combate.
Podemos dizer que constituindo uma aliança com este tipo de pensamento (e também
com o pensamento oswaldiano, de certa maneira) estão os autores (estes, contemporâneos) do
pensamento pós-colonial. Este constituiu-se buscando a desconstrução dos essencialismos e a
crítica das concepções hegemônicas da modernidade. Sob a influência do pós-estruturalismo
preocupam-se com o local de onde é produzida uma enunciação. Afirmam que enquanto o
conhecimento científico estiver estritamente vinculado ao modelo europeu, estará
reproduzindo a lógica colonial, na qual qualquer grupo é tratado na sua relação de
subordinação com o “centro” europeu. Grande parte destes intelectuais são participantes da
diáspora negra e hoje habitam principalmente os EUA e Inglaterra – o que é uma escolha cara
diante da adesão pós-estruturalista, resultando em diversas críticas relevantes, que
infelizmente não podem ser aprofundadas neste trabalho. Buscando desterritorializar a
Antropofagia oswaldiana confrontaremos esta com o pensamento pós-colonial. Para isso,
reconhecendo a heterogeneidade deste pensamento, nos focaremos nos escritos de Homi
Bhabha, que parecem nos indicar problemáticas mais próximas das oswaldianas.
O escritor indiano aposta em um local de enunciação que escape do essencialismo e
das fronteiras coloniais. Para além das tradicionais fronteiras ocidentais/resto do mundo,
dentro/fora, volta seu olhar para os lugares de entremeios. Recuperando Frantz Fanon
identifica três condições pelas quais se forma o processo de identidade colonial, que
desestabilizam as categorias estáticas Negro x Branco. A primeira condição baseia-se na ideia
de que é sempre em relação ao lugar do Outro que o desejo colonial é articulado, é o sonho da
inversão dos papéis. A segunda seria perceber o lugar da identificação colonial como um lugar
de cisão. Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distância entre
101
os dois que constitui a figura da alteridade colonial. O próprio artifício do homem branco
estaria inscrito no corpo do homem negro. E a última seria a afirmativa de que a questão da
identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-estabelecida, nunca uma profecia
autocumpridora - é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do
sujeito ao assumir aquela imagem. Vemos como Bhabha aponta para uma alteridade colonial
destrutiva e atenta que mesmo se tratando desta, os processos de identidade se dão de forma
mutável. O imigrante e o negro colonizado ocupariam, na verdade, um entre-lugar, nas bordas
da identidade. Se esta confusão cultural traz um lugar de inferioridade, ela também pode ser
transformada em uma estratégia de subversão política. É o que nos diz o autor no seguinte
trecho:
Ao ocupar dois lugares ao mesmo tempo - ou três, no caso de Fanon - o sujeito colonial
despersonalizado, deslocado, pode se tornar um objeto incalculável, literalmente difícil de
situar. A demanda da autoridade não consegue unificar sua mensagem nem simplesmente
identificar seus sujeitos. (...) É dessas tensões - tanto psíquicas quanto políticas - que emerge
uma estratégia de subversão. Ela é um modo de negação que busca não desvelar a
completude do Homem, mas manipular sua representação. É uma forma de poder que é
exercida nos próprios limites da identidade e da autoridade (2011, p. 17)
Neste sentido, a máxima da Antropofagia do interesse pelo que não é seu (o Outro) aproxima-
se com a preocupação de Bhabha: “Chegou a hora de voltar a Fanon; como sempre, acredito,
com uma pergunta: de que forma o mundo humano pode viver sua diferença; de que forma
um ser humano pode viver "Outra-mente"?” (idem, p. 18) Esta preocupação não levaria
necessariamente à busca do Homem, como às vezes indica o humanismo existencialista de
Fanon, mas na aposta da força desses “entre-lugares”. É por isso que Renato Gomes Cordeiro
identifica a semelhança entre esses pensamentos nascidos de culturas marginais. Estes
constroem suas vozes como locais de tensão que podem mesmo desestabilizar as identidades
culturais nacionais:
Constatações como estas levam Homi Bhabha a questionar o discurso que envolve a
tradição enquanto práticas culturais que persistem na sua semelhança através dos tempos,
questionando ao mesmo tempo a ideia de autenticidade como aquilo de original que pertence
a esta tradição. A diferença e a própria tradição não seriam a expressão cultural acumulada,
mas sim um fluxo de representações. Assim, as noções de originalidade e autenticidade
entram em cheque e passam a ser tratadas como parte performativa da diferença. Nas palavras
do autor:
Esta pode ser uma boa maneira de pensar a relação do primitivismo oswaldiano com a
tradição. Como já foi dito, o primitivismo antropofágico não deve ser pensado enquanto uma
busca das raízes, da tradição originária brasileira (como o fez o grupo Anta, por exemplo),
entretanto, também valoriza-se um modo de vida da alegria, presente no matriarcado. De certa
maneira pode-se considerar que este modo matriarcal é mais autêntico do que o outro imposto
pela civilização patriarcal. Mas, e se pensarmos esta “autenticidade” antropofágica enquanto
parte performativa da diferença? Já que o primitivismo de Oswald não é uma volta à um
103
tempo perdido, mas se opõe à Civilização Ocidental, em busca de fortalecer outros valores.
Será que não podemos dizer que a própria autenticidade presente não se constitui a partir da
relação de diferença e assim só existe enquanto tal e não como uma autenticidade de si
próprio para si próprio. Com isso, o Pau-Brasil não é o país Brasil com suas fronteiras de
Estado-Nação delimitadas, mas uma força que questiona as condições de modernização
europeias. Ou como aparece na Revista Antropofágica, o homem Antropófago não é apenas o
tupi em carne e osso, mas pode até vestir casaca e ser um árabe perdido na Marcha das
Utopias. Isso não quer dizer que o homem antropófago seja apenas uma negação à Civilização
patriarcal e neste sentido um vazio. Ela se afirma enquanto uma série de forças e podemos
dizer que há uma que merece ser destacada aqui: a devoração.
Diante da alteridade radical e de combate proposta por Oswald de Andrade podemos
encontrar algumas diferenças do hibridismo proposto por Homi Bhabha. Vimos como o pós-
colonialismo proposto pelo autor indiano busca reescrever a história da modernidade,
colocando o colonizado não como Outro que carrega falta em relação ao Ocidente, mas como
constituinte daquilo que foi chamado de moderno. Assim, estes encontram-se entrelaçados,
em relações híbridas. É possível afirmar que Oswald de Andrade denuncia o mesmo processo,
só que ainda mantém uma alteridade radical, que baseia-se na proposta de uma ruptura
epistemológica e até mesmo ontológica. Para a Antropofagia não se trata de construir uma
modernidade híbrida, entrelaçada, mas de uma outra modernidade, na qual o bárbaro devore o
civilizado. É para a Revolução Caraíba que devemos seguir para uma nova era da sociedade
matriarcal, uma outra metafísica, na qual a filosofia messiânica e sua necessidade de conjugar
o verbo “ser” sejam destituídas de seus tronos.
É possível notar ainda nos escritos de Homi Bhabha uma visão positiva da condição
pós-moderna. Para o autor, o mundo pós-moderno possibilitaria mostrar os limites
epistemológicos das narrativas etnocêntricas, revelando que em suas bordas existem várias
outras narrativas de mulheres, migrantes... Se é verdade que essas narrativas existem (e aliás
podemos dizer que já existiam), não quer dizer que na subjetividade capitalísta
contemporânea elas possam prevalecer. Sobre isso vale atentar para as palavras de Sueli
Rolnik:
O que acontece na produção da subjetividade capitalista hoje, não é uma critica do principio
identitário: ao mesmo tempo em que se dissolvem as identidades, produzem-se figuras-
padrão, de acordo com cada órbita do mercado. As subjetividades são levadas a se configurar
em torno de tais figuras delineadas a priori, independentemente de contexto - geográfico,
nacional, cultural, etc. -, submetendo-se a um movimento de homogeneização generalizada.
104
Identidades locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis.
Estas acompanham o ritmo alucinado de mudanças do mercado, mas nem por isso deixam de
funcionar sob o regime identitário. (ROLNIK, 2000, p. 5)
do povo, sem se importar com o quanto isso demore.” (GENNARI, 2006, p. 20).
Relembrando Emiliano Zapata, vai se construindo o Exército Zapatista de Libertação
Nacional, que tem seu primeiro grande ato público em 1 de janeiro de 1994, quando depois de
mais uma eleição fraudada, homens e mulheres com os rostos vendados tomam de armas na
mão as sedes dos governos municipais de diversas cidades da região de Chiapas.
Fonte: http://radiozapatista.org/?lang=en
determinado período de tempo. Seus ocupantes podem ser destituídos a qualquer momento,
caso não cumpram as decisões coletivas. (2006, p. 58)
últimas consequências, constituindo uma epistemologia que não se baseia na noção de “eu”
cartesiano, o que sem dúvida nos remete ao paradigma da devoração, já trabalhado nesta
dissertação, que coloca o próprio “eu” enquanto relação.
Fonte: http://radiozapatista.org/?lang=en
Esta entidade sem rosto, o subcomandante Marcos, existe a partir da interlocução com
diversos personagens fictícios ou não. O principal deles é o Velho Antonio pertencente a um
dos primeiros grupos indígenas que compuseram o EZLN por volta de 1984. Este senhor teria
morrido de tuberculose dez anos depois nos primeiros momentos da revolta, mas durante esta
década travara um grande diálogo com Marcos que permaneceria mesmo após sua morte. É a
partir dessas duas figuras que se estabelece a relação de tensão e composição entre a cultura
da esquerda armada e a cultura indígena de Chiapas. Uma relação antropofágica, aonde um
devora pedaços do outro, para lutar contra o Estado e contra o Rosto. Segundo Walter
Mignolo, este processo pode ser entendido como uma “dupla tradução”, na qual há a
transformação do marxismo pelas línguas e cosmologias indígenas, ao mesmo tempo em que
o marxismo influi na epistemologia indígena, dentro de uma situação de epistemologias
cruzadas. Este diálogo deixaria em pé de igualdade as cosmologias da esquerda e indígenas,
ou seja, colocaria o próprio marxismo como um ponto de vista, uma cosmologia dentre
109
outras, o que muitas vezes foi considerado um crime pelos próprios marxistas. Os Zapatistas
conseguiriam, para o autor, colocar em cheque a pretensão do Ocidente de governar o mundo
em nome da universalidade e de seus valores.
A partir disso, criam-se imagens e narrativas em que aquele considerado bárbaro é
protagonista e ganha força na luta política. Como a história dos “homens de milho”, o milho é
um importante elemento mítico, alimentar, econômico dos indígenas da região. Segundo narra
o Velho Antonio para Marcos, existem diferentes tipos de homens criados pelos deuses
primeiros, dentre eles os homens de ouro, os de madeira e os de milho:
El despojo y robo de tierras y recursos naturales, pero ahora con las ropas nuevas de la
“modernidad”, el “progreso”, la “civilización”, la “globalización”. (...) El desprecio que
recibimos por nuestro color, nuestra lengua, nuestra forma de vestir, nuestros cantos y bailes,
nuestras creencias, nuestra cultura, nuestra historia, de la misma forma que hace 500 años,
cuando se discutía si éramos animales a quienes había que domesticar o fieras a quienes
había que aniquilar, se referían a nosotros como inferiores. (Discurso Subcomandante
Marcos outubro de 2007, México)
Animais a serem domesticados ou feras que deveriam ser aniquiladas: neste trecho o
subcomandante Marcos identifica o que Pierre Clastres nomeou de etnocídio e genocídio.
Fica implícito também o resultado destas duas práticas: a destruição do Outro. E é evocando
estes Outros que o zapatismo busca se colocar. Assim, vemos seus comunicados (que estão
todos disponíveis em http://palabra.ezln.org.mx/) direcionados tanto a lésbicas, homossexuais,
transexuais, como também aos imigrantes não só mexicanos, mas hondurenhos,
nicaraguenses, porto-riquenhos e alguns comunicados que incluem até às crianças.
Outro ponto interessante diz respeito a como são tratados os crimes e suas respectivas
punições. Os zapatistas preferem não recorrer às prisões caso ocorra algum delito, mas tratam
este a partir das pressões da própria comunidade. Se um homem rouba ou destrói a casa de
alguém, ele será pressionado para reconstruí-la, ao invés de ser isolado do grupo. Se alguma
pessoa mata outra, ela não será encarcerada, mas terá que trabalhar para sustentar a família do
110
morto. Isso nos remete à diferenciação proposta por Lévi-Strauss em Tristes Trópicos. O
antropólogo diferencia as sociedades antropofágicas das sociedades antropoêmicas pelas suas
diferentes maneiras de lidar com a alteridade. Enquanto a antropofagia percebe a “absorção de
certos indivíduos detentores de formas temíveis, [como] o único meio de neutralizá-los e
mesmo de aproveitá-los” (p.158), a antropoêmia que vem do grego emein, vomitar, “posta
diante do mesmo problema, escolheu a solução inversa, expulsando esses seres temíveis para
fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados” (ibidem). Ao
contrário das práticas comuns às sociedades ocidentais, que aumentam suas prisões a cada
dia, é para uma postura antropofágica que apontam as práticas zapatistas, buscando não
vomitar aquele que comete uma prática estranha e indesejada ao grupo, mas sim trazê-lo para
dentro da comunidade.
Para terminar este breve sobrevoo em Chiapas, atentemos para o seguinte trecho do
discurso do subcomandante Marcos:
En estas tierras, que llamaron “nuevo mundo”, ellos impusieron su geografía. (...) Hubo
desde entonces “norte”, “sur”, “oriente” y “occidente”, y fueron acompañados de signos de
poder y destruición. Los 7 puntos cardinales de nuestros antepasados (el arriba, el abajo, el
frente, el detrás, el un lado, el otro un lado, y el centro), fueron olvidados y en su lugar llegó
la geografía de arriba con sus divisiones, fronteras, pasaportes, green cards, minuteman, la
migra, los muros fronterizos. (...)Porque cuando levantamos nuestro pasado, nuestra historia,
nuestra memoria, como bandera, no pretendemos volver al ayer, sino construir un futuro
digno. (Discurso Subcomandante Marcos outubro de 2007, México)
(Milton Nascimento)
111
http://www.proyanomami.org.br/arte01.htm
Esta mesma preocupação é colocada por Davi Kopenawa ao escrever o livro “La chute
du ciel” em conjunto com o antropólogo Bruce Albert. O livro que trata da história da vida
deste xamã yanomami, é ao mesmo tempo auto-etnográfico e um manifesto cosmopolítico. A
partir da cosmologia de seu povo, da relação que este estabelece com a floresta, o autor critica
o modo de vida do homem branco, do “povo das mercadorias”, da sua relação destrutiva com
o ambiente. A floresta não estaria vazia como pensam os brancos, mas estaria repleta de seu
112
valor de fertilidade, o que foi promovido por Omama. A floresta e o mundo estariam cheios
de espíritos, xapiris, que a ajudam a se tornar mais fértil.
Estes apontamentos nos levam para a crítica de um importante aspecto do mundo
moderno, que vem sendo debatido pela própria antropologia. A análise de Davi Kopenawa
nos remete aos estudos de Marcel Mauss, no famoso texto Ensaio sobre a Dádiva. Ao se
debruçar sobre o direito e as trocas de diferentes sociedades, o antropólogo diferencia a troca
dádiva presente nas sociedades primitivas da troca utilitarista presente nas sociedades
modernas. A troca dádiva tendo aparente voluntariedade é na verdade, ao mesmo tempo,
imposta e interessada. Pois quando se dá um presente a alguém, aquele que recebeu acaba por
ficar em dívida com o que presenteou (o torna inferior, devedor em relação ao outro). Este é
obrigado, então, a retribuir com um objeto de igual ou maior valor para que saia dessa posição
inferior. É o que aparece no trecho em que Marcel Mauss se refere às trocas do direito Maori:
"Se o presente recebido, trocado, obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo
abandonada pelo doador ela ainda conserva algo dele. Por ela, ele tem poder sobre o
beneficiário, assim como por ela, sendo proprietário, ele tem poder sobre o ladrão" (idem, p.
198). Vemos que o objeto dado carregaria uma parte da pessoa que deu, como diz o autor
(p.208): "presentear alguém é presentear alguma coisa de si - é preciso retribui a outrem
aquilo que é parcela de sua natureza, substância." O autor argumenta que essas trocas,
diferentemente da troca utilitarista, são trocas entre coletividades (e não indivíduos), em que
as coisas trocadas passam pela utilidade, mas não se restringem ao mercado. Pois no
momento da troca o próprio objeto torna-se a pessoa, e essa pessoa não equivale ao indivíduo
isolado, mas é uma coletividade, uma pessoa moral, podendo se confundir com os próprios
objetos48. Esses fatos estudados seriam "fatos sociais totais", pois movem a totalidade da
sociedade e das instituições - misturando o jurídico, econômico, religioso, mágico... É o que
aparece no trecho:
48
Vemos aí a desestabilização dos conceitos de pessoa x objeto.
113
brancos não conseguem compreender. Os Yanomami não deveriam se tornar brancos, mas sim
estes deveriam aprender com os Yanomami: “Hoje, os brancos pensam que nós deveríamos
imitá-los em tudo. Mas não é isso que nós queremos. (...) Eu penso que nós só poderíamos
virar brancos no dia em que eles mesmos se transformem em Yanomami.” (p.49 – tradução
minha) A mesma inversão feita por Oswald é feita por Davi, com a diferença do uso da
Antropofagia. Se para Oswald a Antropofagia deveria ser utilizada enquanto valor positivo,
Davi utiliza o termo canibal para tratar das destruições feitas pelos brancos (os garimpeiros
que devastaram suas terras, o ouro que traz toda destruição é que são canibais). Mas, o
resultado é o mesmo: denunciar a ação destrutiva dos brancos seja em relação ao ambiente,
seja em relação a diferentes modos de vida, o etnocídio, como dito por Pierre Clastres (2011).
Este etnocídio teria como um dos seus grandes protagonistas a ação dos missionários.
Davi Kopenawa dedica um capítulo de seu livro narrando a chegada dos seguidores de Teosi
(deus dos brancos). Estes buscavam lhes convencer a todo o custo das palavras de seu deus e
perseguiam aqueles que continuavam com as práticas xamânicas. Os missionários atacavam
com frases imperativas: não fume, não copule com as mulheres dos outros, ore para Teosi
todos os dias. Se de início os Yanomami sentiram algum interesse pelas palavras destes
homens, tentando se concentrar nas palavras de Teosi, logo esse interesse se dissipou. Eles
começaram a se questionar: como podemos acreditar em um deus que nos ameaça a todo
instante de queimar no inferno? Por mais que se esforçassem não conseguiam enxergar a
imagem de Teosi. Davi dá sua resposta definitiva aos brancos: “Nós ignoramos aquilo que,
para nos assustar, as pessoas de Teosi chamam de pecado. Nós não somos malvados. Nós
simplesmente não somos brancos. Nós somos aqueles que nossos ancestrais sempre foram!”
(p. 286 – tradução minha) Os conflitos entre missionários e índios foram se tornando mais
frequentes, resultando em agressões, epidemias e mortes de muitos Yanomami.
A crítica ao cristianismo e seu papel devastador também é feita pela Antropofagia
oswaldiana, como vemos no trecho de O Antropófago (1991):
4. Conclusão
49
Seria incoerente com a proposta antropofágica pensar que não há (ou há pouca) experiência nas socialidades
individualistas, trata-se, na verdade, de outros tipos de experiência. Sobre isso escreveu Simmel, ao
descrever a vida nas grandes metrópoles, percebeu que com a intensificação dos estímulos, surge a
incapacidade de reagir a todos eles, o que levaria a uma atitude de indiferença, de proteção contra os
estímulos externos, chamada de "atitude blasé". Com isso, o indivíduo se coloca reservado também diante do
outro, já que não pode se relacionar afetivamente com todos. Esta configuração individualista não é a
independência do indivíduo em relação a sociedade, mas sim uma forma de socialidade, de experiência
distinta da do narrador, por exemplo.
119
Se a antropologia pode ser considerada como ciência da alteridade, podemos dizer que
Oswald de Andrade faz uma operação estritamente antropológica. Consegue através do
contato com as sociedades ameríndias repensar o próprio modo de vida (e a metafísica) do
Ocidente. Pratica, com isso, uma das principais tarefas da antropologia: devolver uma
imagem de nós mesmos onde não nos reconheçamos, uma empreitada anti-narcísica, como
dito por Eduardo Viveiros de Castro (2009).
Através dessa operação, ao se debruçar sobre as sociedades ameríndias, com diversos
insights em relação à filosofia primitiva, o autor desmonta a noção de universalidade do
indivíduo, desconstruindo, com isso, uma das principais bases da metafísica ocidental.
Contribui, assim, para um debate que toma a antropologia50 há tempos: nem todas as
sociedades concebem a ideia de indivíduo - como pensou por muito tempo e ainda pensa parte
das Ciências Humanas. Ao afirmar a noção de cordialidade como fundada na alteridade, o
“interesse pelo que não é seu”, a valorização do ritual antropofágico (que é elevado a um
modo de vida) aponta para diversos aspectos (dentre outros apontados aqui) imbricados na
construção dessa metafísica canibal que culminam na equação “Eu – Relação”. O que se
diferencia da máxima típica do Ocidente onde Eu aponta para si mesmo (sendo a própria
sociedade a soma desses Eu`s resultando ela mesma em um grande Eu). Entretanto, isto não
quer dizer que exista uma relação obrigatória de dualismo entre essas duas metafísicas. Se por
um lado a metafísica antropofágica combate e desconstrói a metafísica ocidental e sua
pretensão de universalidade, por outro elas estão vinculadas, podemos dizer de maneira
transversal, já que a própria antropofagia não se afirma enquanto essência, ontologia, mas sim
devora o que há de estranho, o que há de diferente, incluindo o modo de ser ocidental. Pois,
como já foi dito, a "alteridade antropofágica" volta-se para fora, afirma as relações enquanto
primado, ao invés da exclusão do diferente, do estrangeiro.
Isto não quer dizer, também, que se estabeleça uma prática relativista extrema, onde
tudo equivale a tudo. Onde tanto faz o que, como e para que se devora. Onde devorar um
positivista seja igualado a devorar um japonês imigrante. Onde as coisas percam cheiro, cor e
gosto, pois tudo é diferente e tudo se iguala ao mesmo tempo51. Em resposta a isso podemos
explicitar que a Antropofagia afirma seu caráter político, através da posição anti-colonial. Ela
50
Infelizmente, não cabe neste trabalho expor esse enorme debate em torno de obras como a de Marcel Mauss,
sobre a noção de pessoa, a de Louis Dumont, sobre as castas na Índia, dentre muitas outras.
51
Sobre isso é interessante rever a distinção entre a diferença antropofágica e a diferença no capitalismo e na
lógica do mercado, como colocado por Sueli Rolnik (2000).
120
está de um lado que multiplica-se: o lado da luta contra o poder52. E aqui, retomando o
anunciado na Apresentação desta dissertação, posicionar-se claramente não é um problema.
Temos ainda mais um álibi: nos posicionamos com o autor. Este, coloca-se a favor do bárbaro,
do primitivo, do louco, da criança, do povo, da mulher. Inverte, então, o vetor colocado pela
lógica civilizatória, em uma mudança não apenas epistemológica, mas ontológica, como já foi
dito. Não são os considerados bárbaros que devem aprender com o Ocidente, estando em um
estágio inferior da linha evolutiva da humanidade, mas teriam muito a ensinar. Podemos
imaginar que Oswald diria: já tínhamos o narrador antropófago em contraposição ao
indivíduo do romance, já tínhamos a troca-dádiva ao invés da troca-utilitária, já tínhamos
sociedades contra o Estado e não sociedades com Estado. É o início da transformação do tabu
em totem, do limite em vantagem, de Deus em inimigo.
E, assim, a alteridade e a modernidade se encontram na tentativa de pensar e
reivindicar uma alter-modernidade, já que até então a modernidade teria sido pensada sem
comportar o alter. Nesse sentido, o epíteto já tínhamos tão presente no Manifesto e nos
escritos antropofágicos, apresenta-se como fundado em uma tensão que é seu próprio motor:
ao mesmo tempo em que critica a concepção de moderno em prol da positivação do primitivo,
afirma que a própria lógica primitiva teria propiciado o moderno. Já tínhamos o surrealismo, o
comunismo... É nesse sentido que cria uma complexa relação: rejeitamos o moderno, mas
reivindicamos ter produzido aquilo que nele há de positivo. Com isso, a transversalidade da
relação entre moderno x primitivo sobrepõe-se a dualidade. A questão não é lutar contra o
moderno para destruí-lo, mas aproveitar o que lhe interessa, percebendo o viés primitivo da
própria modernidade.
Volta-se também a afirmar que a Antropofagia não é a devoração que tudo iguala, mas
há um forte discernimento político, entre aquilo que deve ou não interessar, aquilo que deve
ou não ser apropriado enquanto já tínhamos. Não interessa à Antropofagia a modernidade que
destrói a alteridade, em prol do etnocídio, do Mesmo. Este já tínhamos nos remete ainda a
uma operação comparável à de Bruno Latour ao afirmar que jamais teríamos sido modernos.
Dentre muitas questões, o escritor desconstrói a ideia de que os modernos são como realmente
pensam que são: que existiria a separação entre humanos e não-humanos, entre natureza e
cultura nas sociedades ditas modernas. Se ser moderno é compartilhar essas características,
então a modernidade jamais teria existido. Na analogia com a Antropofagia oswaldiana, se
esta proporia também esta desconstrução, pensando que estas características não são
52
Neste sentido, podemos retomar a citação de Michel Foucault e Gilles Deleuze no texto: Os intelectuais e o
poder.
121
Transformar a maneira de pensar pode ou não ser visto como uma ação prática, mas o
radicalismo acadêmico, por outro lado, parece frequentemente resultar em uma ação
conservadora ou uma inação. A política radical, por sua vez, tem que ser conceitualmente
conservadora, ou seja, sua tarefa é a de operacionalizar conceitos ou categorias já
conhecidos, tais como ‘igualdade’ ou ‘homens’. (STRATHERN, p 60)
Neste sentido, acreditamos que a Antropofagia literária esteve sempre imbuída dessa
tensão e talvez tenha até conseguido apontar caminhos para contorná-la (seu desprendimento
em relação a certas exigências acadêmicas e em relação a certas ortodoxias políticas pode ter
colaborado para isto). Por um lado, a Antropofagia sempre colocou questões inovadoras e
relevantes: na sua ruptura com o marxismo estalinista, soube acrescentar outras questões ao
debate socialista, como a crítica ao patriarcado, à noção de progresso e à metafísica ocidental,
a afirmação das sociedades ameríndias. Outra inovação foi pensar estas sociedades (como
também as sociedades em geral) sem ter uma visão essencialista. É a transformação, a
devoração que constituem as sociedades. Ou seja, são as relações que as definem, sua forma
de lidar com a própria diferença. Podemos identificar na Antropofagia oswaldiana um
primado da diferença, ao invés da identidade. Isto permitiu também estar deslocado da
perspectiva do Estado-Nação (perspectiva esta ainda muito presente nos dias de hoje). Oswald
de Andrade consegue propor uma teoria contra o Estado, que não tem a construção do Brasil
enquanto ponto de partida, nem ponto de chegada.
Ao identificarmos todas essas inovações conceituais, nos perguntamos: será que há
também uma preocupação com a transformação direta no mundo? Não cabe aqui, o que segue
123
Devido ao meu estado de saúde, não posso tornar mais longa esta comunicação que julgo
essencial a uma revisão de conceitos sobre o homem da América. Faço pois um apelo a todos
53
A recepção da Antropofagia oswaldiana seria interessante objeto de estudo de outra dissertação.
54
Já depois do fim da escritura dessas páginas e, por isso, presente somente ao fim delas, como uma nota, entra
para o debate público na cidade do Rio de Janeiro o conflito em torno da Aldeia Maracanã. Esta ocupação
indígena, situada ao lado do importante estádio de futebol, trouxe a tona os conflitos entre o projeto
desenvolvimentista e capitalista ligado aos megaeventos na cidade e o modo de vida indígena, o que inclui
suas reivindicações políticas e sua própria existência enquanto indígenas. Um evento que, sem dúvida,
merece ser analisado sobre a ótica antropofágica
124
Este apelo nos lembra que a relação de Antropofagia com o modo de vida indígena vai
muito além de uma simples fonte de inspiração. Escutando o clamor de levar avante a
filosofia primitiva, a vida como devoração, quem sabe o que ainda virá nas terras do
matriarcado Pindorama?
125
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