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Universidade Federal do Rio de Janeiro

DA "REABILITAÇÃO DO PRIMITIVO": DIÁLOGOS ENTRE

ANTROPOLOGIA E ANTROPOFAGIA DE OSWALD DE

ANDRADE

Ana Paula Massadar Morel

Rio de Janeiro

2013
2

DA “REABILITAÇÃO DO PRIMITIVO”: DIÁLOGOS ENTRE


ANTROPOLOGIA E ANTROPOFAGIA DE OSWALD DE
ANDRADE

Ana Paula Massadar Morel

Dissertação de Mestrado submetida ao


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Mestre em Sociologia e Antropologia.

Orientador: Prof. Doutor Jean-François Véran


3

MOREL, Ana Paula Massadar.


Da “Reabilitação do Primitivo”: Diálogos entre Antropologia e Antropofagia de Oswald de
Andrade/ Ana Paula Massadar Morel – Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2013.
131 f.

Orientador: Jean-François Véran

Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – UFRJ, Instituto de Filosofia e


Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2013.
Antropofagia, Oswald de Andrade, Modernidade, Alteridade, Antropologia.

1. Antropofagia. 2. Oswald de Andrade. 3. Alteridade. 4. Antropologia


I. Véran, Jean-François. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGSA. III. Título
4

DA “REABILITAÇÃO DO PRIMITIVO”: DIÁLOGOS ENTRE


ANTROPOLOGIA E ANTROPOFAGIA DE OSWALD DE ANDRADE
Ana Paula Massadar Morel
Orientador: Professor Doutor Jean-François Véran

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Sociologia e
Antropologia.

Aprovada em

_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Jean-François Véran – PPGSA/UFRJ

_________________________________________________
Prof. Doutor Amir Geiger – PPGMS/Unirio

_________________________________________________
Prof. Doutor Eduardo Viveiros de Castro – PPGAS/UFRJ

_________________________________________________
Prof. Suplente Doutor Octavio Bonet – PPGSA/UFRJ

_________________________________________________
Prof. Suplente Doutor Luiz Costa – IFCS/UFRJ

Rio de Janeiro
Março de 2013
5

Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, ao meu orientador Jean-François Véran, por saber conjugar


liberdade e conselhos.

Aos Professores Amir Geiger, pelos diálogos descontraídos e estimulantes, e Eduardo


Viveiros de Castro, pelas contribuições fundamentais na banca de qualificação e nas aulas.

Aos meus pais Cristina e Marco e família, por todo apoio e carinho desde sempre e “hasta
siempre”.

Ao meu amor, Pedro, pelos dias, mares, paredes e páginas: um agradecimento que não cabe
em 10 mil dissertações. Este trabalho não seria o mesmo sem suas linhas tortas, vírgulas
controversas e três pontinhos.

Aos colegas de turma do mestrado, pela convivência alegre, pelo compartilhar de dúvidas,
descontentamentos e desejos.

Aos meus companheiros e companheiras de lutas e sonhos de cada dia. Essa dissertação se
deve (mais do que) especialmente a todos e todas que passaram pelo Grupo de Educação
Popular (GEP) e Terra e Liberdade (OATL). Para citar alguns, Kim (surpresa paulista-baiana),
Ratão, Thais, Leo Leitão, Malu (pelas felicidades e infâncias clandestinas tão bem
compartilhadas), Luiza (minha hermana escolhida, parceria irrestrita), Ângela, Vlad, Paulinha
(pela companhia e por gerar uma vida tão linda), Erik, Gabi (pela amizade alegre nesses
anos), Eduardo (pelos mau-humores tão bem-humorados), Luizinho, Lucenir, Fernanda,
Vladimir (pelas referências e prosas utópicas e cheias de vida). Estes escritos são parte dos
caminhos tortuosos e felizes que partilhamos. Que sirvam de alimento para novos amanhãs!

Aos meus presentes de vida: Roberta (porque se nem Vila Isabel saiu de mim, que dirá você),
Georgia (vizinha em qualquer lugar do mundo, ojalá!), Clarice (pelos setembros e todos os
outros meses), Manuela (minha astróloga favorita), Luiza Tanuri (por todo amor e pela
ousadia de estar tão próxima do Japão).
6

Um agradecimento carinhoso a Estrella e Luiz, pela vizinhança bailante.

Por último, mas não menos importante, agradeço aos queridos ifcsianos, antigos e novos
achados, Felipe Malgaldi, Alexandre, Renata, Thiago (pelas implicâncias-implicantes),
Marcela, Isabel, Ana Lu, Leandro, Alex, Emmanuel, Lorena, Jeferson, Luiza, Pedro Cazes,
Juliana (6 anos, 2 turmas e muita história para contar), dentre muitos outros que fizeram os
dias de biblioteca, corredores e debates mais risonhos.
7

O batizado de Macunaíma – Tarsila do Amaral

"Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos viventes"


(Frederich Nietzsche)

"Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é
tumulto, e escreve-se na pedra."
(Carlos Drummond de Andrade)

"Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/ E, sem dúvida, sobretudo o verso/ É o que pode lançar
mundos no mundo." (Caetano Veloso)

"Esta será uma revolução social tão radical, que a imaginação do ocidente, moderada pela civilização,
mal poderá alcançar” (Mikhail Bakunin)
8

Resumo

MOREL, Ana Paula. “Da ‘reabilitação do primitivo’: diálogos entre Antropologia e


Antropofagia de Oswald de Andrade” Dissertação (Mestrado) – PPGSA – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Este estudo propõe um diálogo entre a antropologia e a antropofagia de Oswald de


Andrade. Através de uma análise ensaística de alguns escritos do autor estabelecemos uma
conexão com problemas e questões da disciplina antropológica, acreditando que a literatura
pode servir de alimento para esta. Para isso, aprofundamos a proposta oswaldiana de
“reabilitação do primitivo” e estabelecemos a discussão em dois fios condutores: a alteridade
e a modernidade. No primeiro, abordamos a recuperação da filosofia primitiva pelo
antropófago e a constituição da “alteridade antropofágica”, um tipo de alteridade distinta da
constituída pela noção de indivíduo moderno. No segundo, vemos como a partir dessa
recuperação Oswald de Andrade propõe um projeto político que desconserta os paradigmas da
modernidade ocidental. Ambos os fios nos possibilitam desenhar a proposta de uma
“metafísica canibal”, que em forte conexão com a antropologia desenvolve um pensamento
contra o Estado e voltado para o Outro. Se a antropologia pode ser considerada como ciência
da alteridade, podemos dizer que Oswald de Andrade faz uma operação estritamente
antropológica, pois consegue através do contato com a literatura sobre as sociedades
ameríndias repensar o próprio modo de vida (e a metafísica) do Ocidente. Por último, o
acúmulo do debate nos permitirá pensar a atualidade da proposta antropofágica e sua
vivacidade no mundo, através de encarnações e relações possíveis desta com teorias e
movimentos sociais recentes.

Palavras-chave: Antropofagia, Oswald de Andrade, Alteridade, Antropologia.


9

Abstract

MOREL, Ana Paula. “Da ‘reabilitação do primitivo’: diálogos entre Antropologia e


Antropofagia de Oswald de Andrade” Dissertação (Mestrado) – PPGSA – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

This study intends to draw a dialogue between anthropology and Oswald de


Andrade's Anthropofaghy. Based on an essayistic analysis of the authors writings we establish
a connection with the issues raised by anthropology, believing that literature can be a feeding
force of the discipline. To do so, we deepen the author's proposal of "rehabilitation of the
primitive" and establish the discussion through two conducting threads: alterity and
modernity. With the first, our approach is the recuperation of primitive philosophy by the
Anthropofagics and the building of an Anthropofagic alterity, a distinct form of alterity built
by the notion of the modern individual. With the second, we see how, through this
recuperation, Oswald de Andrade proposes a political project that disconcerts the paradigms
of western modernity. Both threads allows us to draw a proposal of a "Cannibal metaphysics",
that with strong connection with anthropology, develops a thinking against the State and
focused on the Other. If anthropology can be considered a science of the alterity, we can say
that Oswald de Andrade does a strictly anthropological operation, given that through his
contact with Amerindians society, he rethinks the western way of life (and metaphysics).
Lastly, the accumulation of the debate will allow us to think how present the Anthropofagic
proposal is and it's vivacity in the world, through embodiment and possible relations of this
theory with recent social movements.

Key words: Anthropofagy, Oswald de Andrade, Alterity, Anthropology


10

Sumário

Prólogo................................................................................................................................ p. 11

Apresentação...................................................................................................................... p.14

1. MODERNISMO E ANTROPOFAGIA ....................................................................... p. 24


1.1 Um breve prelúdio: ida ao povo modernista, devoração e sertão................................. p. 24
1.2 O conceito de Antropofagia .......................................................................................... p. 28
1.2.1 Alteridade: só me interessa o que não é meu.............................................................. p. 32
1.2.2 Modernidade: devorando o Ocidente ........................................................................ p. 34
1.2.2.1 Uma ciência errática despida do racionalismo ocidental ........................................... p. 35
1.2.2.2 A posse contra a propriedade e o Estado ................................................................... p. 41

2. ANTROPOLOGIA COMENDO ANTROPOFAGIA (E VICE-E-VERSA) .......... p. 49


2.1 Alteridade e Antropologia.............................................................................................. p. 49
2.1.1 Antropofagia literal e Antropofagia literária .............................................................. p. 51
2.1.2 Primitivismo entre Primitivismos .............................................................................. p. 59
2.1.3 Por que a Antropofagia não é uma teoria da mestiçagem? ........................................ p. 70
2.2 Modernidade e Antropologia ........................................................................................ p. 78
2.2.1 Pedaços de Utopia: Socialismo caraíba ..................................................................... p. 82
2.2.2 Contra o Estado ......................................................................................................... p. 85
2.2.3 Por que a Antropofagia não é uma teoria do Brasil? ................................................. p. 94

3. “ANTROPOFAGIA, HOJE?” ................................................................................... p. 99


3.1 Alteridade de combate, teoria anti/pós-colonial.......................................................... p. 100
3.2 Exército Zapatista de Libertação Nacional................................................................. p. 107
3.3 Davi Kopenawa, os xapiri contra o povo das mercadorias ........................................ p. 112

4. CONCLUSÃO............................................................................................................. p. 119

Bibliografia ..................................................................................................................... p. 127


11

Prólogo

Encontro no museu de algum lugar1...

Era início da noite, inquietava-se a Abaporu2 cansada dos corredores de gelo daquele
museu. Resolveu dar uma volta, afinal, por que ela também não poderia visitar exposições?
Visitou a sala ao lado com pinturas de natureza morta holandesas. Aquilo tudo parecia uma
baita de uma chatice sem-fim e acabou por escorregar para a ala das esculturas. Animou-se
pensando: "Humm... Acho que por aqui posso encontrar algo mais encarnado." Homens e
mulheres definidos e fortes, bustos solitários pendendo no ar. Aquelas faces sérias causavam
certa tristeza à Abaporu, sedenta que estava de uma brincadeira. Foi quando no meio da sala
encontrou, em posição de destaque, um homem, aquele que parecia o mais concentrado de
todos. Incrivelmente, este se virou, mostrando-se disposto a conversar. Passaram um tempo
em silêncio, estranhando um a presença do outro, até que Abaporu já com a língua enrolada
de tanta vontade de papo começou:
- Que cara de dor é essa, homem? Por que sofre tanto apoiando essa mão na cabeça e a
cabeça na mão? Tá com enxaqueca?
- Reflito. Faço o que melhor pode fazer um ser humano: afasto-me das ilusões
sensíveis e mundanas e reflito sobre todas as coisas.
- Matuta e só? Tudo bem que essa vida de museu é meio paradona, mas sempre há o
que fazer. Penso melhor quando invento, rodopio nos corredores, dançando quando o vigia tá
de costas, pulando com um pé só como se estivesse sentindo a terra3....
- Nunca pratiquei nada disso. Inclusive, devo dizer que seus pés são meio exagerados,
diria que quase deselegantes.

1
Este prólogo é uma brincadeira, espero que ilustrativa, a partir do famoso quadro de Tarsila do Amaral, O
Abaporu. Quadro que, segundo algumas versões, foi um dos grandes inspiradores do Movimento
Antropofágico. Como consta no artigo de Gonzalo Aguilar, O Abaporu, de Tarsila do Amaral: Saberes do Pé,
que serviu de referência lúdica para este prefácio, Tarsila presenteou o quadro sem nome a Oswald. Ele e
Raul Bopp se reuniram fascinados em torno dele e disseram: "É o homem plantado na terra (...) Vamos fazer
um movimento em torno deste quadro!" (2011, p. 281) Essa seria uma das versões sobre o início do
movimento.
2
Abaporu significa em Tupi aquele que come. Utilizando do recurso da licença poética buscamos aproximar o
Abaporu do Matriarcado Pindorama e o transformamos em a Abaporu.
3
Lembramos de uma interessante passagem de Nietzsche (2009, p. 42): “Um pintor cujas mãos lhe faltassem
e quisesse ainda assim expressar pelo canto a imagem por ele visionada sempre revelará, nessa troca de
esferas, muito mais sobre a essência das coisas do que o mundo empírico.”
12

- Elegância é poder correr rápido, dar passada larga, mexer e desmexer 4. Com o meu
pé consigo sentir tudo de gostoso que há, até cosquinha da areia.
- Não consigo entender bem, Senhor. Ou será uma Senhora? Perdoe-me, é que seus
traços confusos confundem minha consciência.
- Vixi, tanto faz... Que diferença faz homem ou mulher, sou é Abaporu. O importante é
comer, engulo tudo que me dá apetite (e é tanto!), isso basta.
- Céus. Mas, o que você come?
- De tudo um pouco, como erva daninha, televisão, telefone, antena parabólica,
esotéricos, sambistas, os cientistas me agradam bastante, os franceses são bem apetitosos
também, quis comer uma tal de Gioconda, mas não deixaram. Uma vez comi um visitante do
museu que gostava de explicar sobre os quadros. Comi até um bispo chamado Sardinha, ô
carne macia.
Aquela conversa causava um certo espanto ao homem-escultura, acostumado com o
silêncio ou respostas lacônicas de seus companheiros de bronze. Ainda mais esse assunto de
comer, vai que esse Abaporu estranho resolve engolir ele também. Não, aquilo não podia ser
verdade, ele iria provar isso com todos os seus recursos lógicos.
- Comer tanto assim? Duvido! Você não tem nem boca. O Aurélio me explicou bem...
A boca é a parte do corpo humano que permite a alimentação, o orifício e a cavidade entre os
lábios e a faringe, que forma a primeira parte do aparelho digestivo. Você não tem nada disso.
Fale a verdade.
- Relaxa, rapaz... Verdade é mentira muitas vezes repetida5. Então, lembra o que eu te
falei sobre o pé? Juro juradinho que ele pode comer também. Quer tentar?
Sem escutar bem a resposta, a escultura continuou indagando:
- Aliás, nem posso afirmar que você é humano6. Que cabeça minúscula, sem rosto,
curvas esdrúxulas...

4
Sobre a importância dos pés no Abaporu nos diz Aguilar: "O Abaporu pensa com os pés. (...) A mutação
plástica do corpo é regida, no caso do Movimento Antropofágico, pela inversão: apequenamento da cabeça,
apagamento do rosto, ampliação dos pés." (2011, p.284). Acrescenta em seguida: "As vanguardas recorrem
aos pés num movimento generalizado de transformação do corpo humano: de inversão (a cabeça em vez dos
pés), de plasticidade (redimensionando os órgãos, a "pele de seda elástica"), de contato com o contexto (os
pés contém em si o deslocamento corporal), de crítica da autoridade (representada tradicionalmente pela
cabeça)." (ibidem, p. 285)
5
Frase extraída do Manifesto Antropófago (1928):"Contra a verdade dos povos missionários, definida pela
sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida"
6
Segundo Gonzalo Aguilar, diferente da fase humanista de Tarsila em 1932, quando depois da viagem à URSS
pinta Os Operários, a fase antropófaga em que foi pintada o Abaporu mostra "um retrato anti-humanista: o
rosto está apagado, e não há ali nenhuma gestualidade humana com que possamos identificar-nos (...) oferece
um corpo na fronteira mesma do animal, na confusão mimética com o natural (cabeça - sol, braço - cacto),
13

- Estou comendo a paisagem, o sol é doce e me faz bem. Se eu fosse você estaria
entediado com esse corpo igualzinho de todo mundo. Gosto de travessia. Ontem acordei onça
e fui dormir engole-vento.
O homem estava tão entretido em suas conclusões que não percebia que a Abaporu se
aproximava cada vez mais dos seus pés.
- Você realmente deve ser de uma espécie inferior, ainda mais com essa nudez.
Estranho é não ter sido antes catalogado. Aaaa, já sei. Você é um parente próximo daqueles
monstros enormes de um só olho7.
Neste momento a Abaporu já estava prestes a abocanhar a perna do homem:
- Mas, você também está nu e bem suculento...
De repente caiu em si. Correu e foi se vestir, medroso de ser devorado, o famoso
Pensador de Rodin8.

que está em processo de tornar-se outra coisa. Não há codificação, mas apagamento: despojar o "homem" dos
sinais de identidade para construir um novo." (2011, p. 282)
7
Segundo Lestringant (1997) o termo canibais aparece em cartas de Cristóvão Colombo como referência a
homens de um só olho e com cara de cachorro que eram antropófagos.
8
A comparação entre o Abaporu e o Pensador de Auguste Rodin é feita por Aguilar: "O homem nu da obra de
Tarsila está numa posição bastante estranha que pode ser confrontada com o Pensador (1880) de Auguste
Rodin. Ambas as figuras estão nuas e ambas reclinam a cabeça sobre a mão, motivo melancólico, que, de
qualquer modo, parece não se aplicar ao Abaporu. Também ambos estão sentados, mas com duas diferenças
importantes: o corpo musculoso e realista do pensador de Rodin (demasiado humano) está contraído,
concentrado, sentado numa cadeira, enquanto o do Abaporu está distendido, quase esparramado e sentado na
terra (...) A outra diferença é que toda a tenão do corpo do Pensador de Rodin está na cabeça, enquanto no
Abaporu está nos pés." (2011, p. 284)
14

Apresentação

Estamos agora diante daquela curiosa parte introdutória da dissertação: é o início, mas
visto a partir do fim, é preciso apresentar-se, mas sem falar de si. Talvez mais do que um
início seja uma “entre-parte”, estacionada em um tempo estranho, no qual ao fim de tudo,
tenta-se rememorar todo o processo da escrita, em busca de um momento gerador. Nesta
“entre-parte”, que também é um “entre-tempo”, pode ser interessante começar por um “entre-
mim”. Não se preocupe, pois não exporemos detalhes biográficos da autora dessas páginas,
mas buscaremos narrar o que atravessou estes escritos e despertou inicialmente os interesses e
motivações para esta dissertação de mestrado. É só um pequeno parêntese onde nos
permitimos contar em primeira pessoa o que nos levou até a escrita dessas linhas. Por fim, o
“mim” acaba se desmanchando, ficando apenas a ideia inventada de um início, ou um “entre”,
seja bem-vindo, sigamos.
Meu interesse de pesquisa atual se materializou em uma viagem feita no início do ano
de 2011 para a Bolívia. Estava em Potosí quando vi a Igreja San Lorenzo de Carangos, uma
igreja colonial conhecida por ser repleta de símbolos indígenas. Fiquei fascinada e procurei o
que poderia haver sobre o tema. Era uma construção do chamado barroco mestiço, alguns
autores haviam se referido a este estilo como um símbolo da dimensão antropofágica da
cultura latino-americana9. Pensei em estudar o que havia em torno daquela Igreja10, mas, logo

9
Sobre isso nos diz Haroldo de Campos: "O grande poeta e romancista cubano José Lezama Lima, em
ensaio famoso, definiu o barroco americano como ‘a arte da contraconquista’. A concepção de Lezama foi,
recentemente, retomada em suas implicações por Carlos Fuentes, em O espelho enterrado: "O barroco é uma
arte de deslocamentos, semelhante a um espelho em que, constantemente, podemos ver a nossa identidade
em mudança." (...) "Para nossos maiores artistas -, prossegue Fuentes, invocando a proposta de José Martí de
uma 'cultura totalmente inclusiva' -, a diversidade cultural, longe de ser um embaraço, transformou-se na
própria fonte da criatividade." (p.1) Considerando, ademais, o fenômeno do hibridismo indo-afro-ibérico na
arquitetura e nas artes plásticas do Novo Mundo, Fuentes assevera, convergindo com Lezama: "O
sincretismo religioso triunfou e, com ele, de algum modo, os conquistadores foram conquistados." Antes do
cubano, em seu A marcha das utopias, Oswald de Andrade, teórico e prático da "antropofagia" como
devoração crítico-cultural, já ressaltara, quanto ao barroco americano, o seu característico "estilo utópico",
"das descobertas" que resgataram a Europa do "egocentrismo ptolomaico." (p. 1) Dentre esses autores
podemos destacar Lezama Lima, que se propõe a pensar a identidade cultural americana, afirmando que a
novidade americana viria da recusa da repetição. A estética barroca constituiria o legítimo eixo do nosso
devir. O próprio barroco só se realizaria na plenitude no "Novo Mundo", quando passa a ter um sentido
revolucionário pela tensão provocada pelos mestiços. Transformaria-se de arte da contra-reforma na Europa
para arte da contra-conquista na América - uma rebelião motivada pelo próprio conquistador.Para o autor, a
Igreja San Lorenzo de Potosí seria a culminação do estilo barroco mestiço, junto às obras de Aleijadinho. O
Índio Kondori, provável construtor da Igreja, introduziria uma temeridade: a indiátide (cariátides em figura
de índia), o sol e a lua (símbolos incaicos), em uma mundo teológico tão fechado. Lezama afirma ainda que
diferente da Espanha com uma elaboração racionalista de cidade, no barroco americano é "a natureza no
15

surgiram alguns poréns: o tempo curto para fazer trabalho de campo na Bolívia e as poucas
referências bibliográficas por aqui. Foi, então, que o meu interesse por Literatura e suas
relações com a Antropologia me levou a um autor importante neste debate, aquele que criou o
Manifesto Antropófago: Oswald de Andrade.
Ao me debruçar sobre seus escritos percebi o quanto carregavam uma série de tensões
e questionamentos sobre temas instigantes. Mesmo sem ter vastos conhecimentos científicos,
ou se preocupar com recolhimento de dados precisos sobre a "cultura popular", como Mário
de Andrade, o autor oferece reflexões interessantes. Praticando uma antropologia sem métier,
para usar a expressão de Amir Geiger, Oswald esbarra com diversos problemas
antropológicos, tratando de temas como alteridade, modernidade, ritos, primitivismo, a
diferença. Não devemos, entretanto, buscar teorias sistemáticas e referências empíricas
precisas, o que poderia atribuir à obra uma falta em relação às Ciências Sociais. Os ensaios e
manifestos de Oswald são "uma polivocidade que mixa conceitos, personagens valendo por
ideias, anedotas e aforismos por argumentações, citações destacadas do contexto." (MUNIZ,
p. 107). Suas referências etnográficas são consideradas ultrapassadas e fantasiosas: o
matriarcado não existiu entre os Tupinambás antropófagos. No entanto, é necessário
desprender os olhos dessas exigências e lê-lo a partir do seu desejo: a antropofagia, devorá-lo.
Perceber seus insights poéticos e a sua forma original de conceber os povos colonizados sem
o estigma da ausência, do bárbaro, dando à alteridade um valor anti-colonial. Sobre a
importância que Oswald de Andrade teria para a antropologia e os perigos de considerá-la
como uma obra menor diante do rigor científico nos diz Amir Geiger:

ornamento como terror que informa o templo" (LIMA). Interessante perceber como os Modernistas
brasileiros também se debruçam sobre o barroco. A viagem feita a Minas Gerais foi essencial para o
movimento re-inventar a arte brasileira. Sobre a importância das construções nos diz Oswald: “As outras
artes também iniciam sua evolução para as finalidades do país e seus sucessos expressivos. A escultura na
antiga colônia possuía seu precursor. Era um cavouqueiro de Minas que tinha a alcunha de Aleijadinho
”(1991, p. 37). Segundo Mário de Andrade, o barroco de Aleijadinho seria uma arte própria local, já diferente
da arte europeia, pois o artista utilizaria de materiais próprios de sua terra, como a pedra-sabão. "Riqueza
vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança." (ANDRADE, 1970)
10
Contam alguns historiadores que a Igreja começou a ser construída por volta de 1547, em Potosí, na Bolívia,
com o nome de "La Anunciación". Alguns anos depois deu-se uma nevada que destruiu parte da Igreja, que
logo foi reparada . Logo em seguida, com a chegada de Virrey Toledo, nobre e militar espanhol, quinto vice-
rei peruano, seu nome mudou para a Igreja de San Lorenzo de Carangas, por estar destinada ao culto dos
povos indígenas carangas. Desde então a Igreja passou a ser uma paróquia indígena. Sua grandiosa portada,
que mais tarde se tornou alvo de tantos olhares e debates, foi construída por volta de 1728, pelos índios
carangas (GISBERT). Diversos foram os historiadores da arte que se questionaram sobre o que dizem os
símbolos que a compõem para aqueles que a construíram. Dentro desse debate é comum que se apresente a
tensão entre dominação x resistência, o que apareceria na controvérsia se os seus símbolos são mais ou
menos indígenas ou católicos.
16

Em Oswald, a síntese intuitiva, a legendária falta de leituras, as intervenções provocativas e


não construtivas – tudo parece separá-lo do que há de metódico e objetivo nas ciências
sociais. E no entanto, como ficar indiferente (eu não pude) já não digo ao estilo oswaldiano,
ou a sua personalidade ou sua biografia, mas aos feitos de aproximação e distância, de
estranhamento e familiaridade que sua ficção dos anos 20 é capaz de provocar? E como não
levar em conta – em plena avaliação (que efetivamente se impõe) da irrelevância de suas
ideias para a antropologia – que descartar seu pensamento como confuso, não fundamentado,
intuitivo e irracional, etc. é perigosamente semelhante à dificuldade da primeira antropologia
em reconhecer no primitivo um pensamento digno desse nome (1999, p. 4)

Partimos, então, de princípios metodológicos que admitem que uma obra literária
sugere conhecimentos que podem contribuir para a própria antropologia (e não tem uma falta
em relação à ciência). Trata-se de uma tentativa não de pensar como ou apenas sobre, mas
com a obra. Isto implica em uma postura metodológica de "levar a sério" as propostas da
Antropofagia oswaldiana, como continua Amir Geiger:

É que a atenção ao simbólico não está ligada apenas a corolários teóricos, mas tem uma
dimensão metodológica internalizada: o simbólico implica ser afetado pelo objeto, implica o
conhecimento ser obtido por meio desse afeto. A perspectiva original da antropologia, ou
pelo menos o que ela tem em grau mais forte, é que ela só tem algo a ensinar sobre seu
objeto depois de passar pelo processo de aprender com ele. (É o sentido
abstrato,‘metametodológico’, e a meu ver quase lévybrühliano, da observação participante.)
(ibidem)

Levamos em conta os debates de desestabilização da dualidade cartesiana sujeito x


objeto, acreditando como Gilvan Fogel que o homem não pré-existe ao afeto, ou "não tem
afeto(s), ele não é algo algum, nenhum eu, nenhuma pessoa, nenhuma alma, espírito,
consciência, enfim, nada constituído (sujeito)" (p.98), mas ele só existe a partir dos afetos,
como "um modo de ser (o homem) que pode e mesmo sempre já veio a ser tocado ou tomado
(afetado) por um tal ou tal interesse e que, uma vez tomado, é usado pela ação do afeto que,
então, o faz vir a ser o que ele é" (ibidem). Isto nos faz crer que esta pesquisa será construída
a partir da experiência de leitura, pelo modo que seremos afetados por ela, como seremos
usados por este encontro com a Antropofagia oswaldiana. O que não se trata, é claro, de
esperar passivamente que a obra nos dê todas as informações que buscamos, é preciso
concentração, precisão, como o toureiro de João Cabral de Mello Neto, trabalhar "com mão
certa, pouca e extrema:/ sem perfumar sua flor,/ sem poetizar seu poema".
Pretendemos, sem deixar de admitir as diferentes preocupações entre as Ciências
Sociais e a Literatura, propor um diálogo transdisciplinar em que uma obra literária pode sim
servir de alimento para o conhecimento antropológico. Sabemos que são muitas as direções
que podem tomar estes diálogos, para citar uma, vemos os debates atuais da antropologia em
torno da sua dimensão ficcional, do seu aspecto literário. Não pretendemos, obviamente,
17

exaurir todas essas questões, que são imensas. Já de início buscamos abandonar um pouco os
debates em torno das tensões e fronteiras entre antropologia e literatura, para focarmos na
própria questão da Antropofagia, ou seja, atentarmos para esta obra que acreditamos estar em
situação liminar.
Vale dizer ainda que não se trata de querer reconstituir o contexto do autor, ou fazer
propriamente uma "Antropologia da Arte" como propõe Alfred Gell (1988) - preocupado com
as relações sociais que estariam "por trás" da obra de arte e formadoras de sua agência -,
muito menos buscamos tentar "dar conta" de compreender toda obra do autor. Abordaremos
diferentes textos seus, não com a intenção de compreendê-los como um todo, debatendo cada
detalhe, mas por considerarmos que apesar de suas supostas rupturas - da vanguarda
modernista para o marxismo, do marxismo para uma antropofagia filosófica - podemos
perceber uma grande continuidade baseada na defesa da "antropofagia ritual" que acompanha
seus escritos, o que nos interessa especialmente neste trabalho. Sobre isso nos diz Giuseppe
Cocco:

Ora, numa obra tão vasta e tão complexa, com aberturas literárias, políticas e filosóficas,
como a de Oswald, há fases, passagens. Mas não cremos que se possa falar de rupturas e
revisões, como fazem vários de seus críticos. A obra de Oswald, ao contrário, é atravessada,
desde o início, por uma potência da qual derivam, simultaneamente, suas dimensões estéticas
e suas dimensões políticas. Esta potência traça uma linha de fuga marcadamente contínua.
(2008, p. 8)

Esta continuidade, pela qual se constrói o conceito de Antropofagia, nos permite


estudar não apenas uma fase histórica específica do autor, mas estudar seus escritos
transversalmente. A escolha dos textos passou, então, por priorizar aqueles que abordam a
noção de Antropofagia. Assim, alguns textos mais específicos de seu período dentro do
Partido Comunista (ou mesmo depois com suas discordâncias) foram deixados de lado,
muitos de seus poemas serão abordados apenas de acordo com alguns problemas específicos.
Podemos dizer que de certa maneira privilegiaremos alguns ensaios-poéticos do final de sua
vida como “A crise da filosofia messiânica” e “A marcha das Utopias”, nos quais a
Antropofagia aparece enquanto princípio filosófico mais amadurecida. Mas também nos
focaremos em alguns trechos da Revista de Antropofagia, que apontam para o despontamento
da Antropofagia enquanto conceito.
Cabe ressaltar que ao perseguirmos este fio condutor, não significa que
desconsideramos as diacronias presentes nos diversos textos. Sabemos que o próprio conceito
de Antropofagia ganhou distintos aspectos e nuances (cheios de idas e vindas), a questão é
18

justamente segui-los para construir a pesquisa. O que pode ser considerado um grande desafio
já que os escritos de Oswald de Andrade se apresentam de maneira nada linear (e não caberia
a nós atribuir uma linearidade a estes).
Podemos dizer ainda que para muitos, esta dissertação se aproximaria de um trabalho
de teoria antropológica, já que trataremos de questões caras ao debate antropológico e
pensamos as contribuições teóricas dos escritos antropofágicos para este. Entretanto, nos
questionamos se em algum trabalho de antropologia podemos tratar a teoria separada da
etnografia? Sobre isso, podemos dizer que esta dissertação é, à sua maneira, uma etnografia
que busca “dar voz aos nativos”, que são os textos oswaldianos, muitas vezes deixados de
lado nos debates antropológicos por seu caráter utópico. Esta operação é feita não só através
do contexto histórico do autor, mas também através da relação dos seus escritos com diversos
contextos e problemas, para que eles possam aparecer, ser realçados, se colocar. Esperamos
que depois dos pontos abordados possamos ter um desenho (talvez em formato de mosaico)
do conceito de Antropofagia, que nos foi permitido pelo exercício de imaginar seus
posicionamentos diante de diferentes questões, de uma expansão no mundo. Tal tarefa não
significa concordar com tudo o que coloca o autor, mas é um pouco como propõe Eduardo
Viveiros de Castro (2011) em relação a Pierre Clastres: resistir a Oswald, “mas não parar de
lê-lo, confrontar seu pensamento no que nele aparece de vivo e perturbador.” (p. 306) Trata-
se, como já foi dito, de pensar com (e não como), buscar aquilo que aparece de vivo e
perturbador na Antropofagia oswaldiana, o que pode ser devorado pela antropologia.
Nesta empreitada, nos deparamos com os aspectos libertários dos escritos
antropofágicos, que compõem e potencializam a visão política da autora deste texto. O projeto
político construído por Oswald, quando ressaltado nesta dissertação, mistura-se com as
questões do mundo de hoje, a partir de um viés marcadamente anti-capitalista e contra o
Estado.
Nossa perspectiva também converge (ou melhor, se apropria de alguns aspectos) com o
texto de Theodor Adorno, chamado o Ensaio como forma. O filósofo defende a forma do
ensaio como uma importante maneira de conhecimento, mergulhada na experiência.
Distinguindo-se da ciência e da própria arte, "seus esforços ainda espelham a disponibilidade
de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já
fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma
criação a partir do nada, segundo modelo de uma irrestrita moral do trabalho." (ADORNO,
19

2012, p. 16-17). Assim, construímos essa dissertação: sem vergonha de dizer o que é gostado
ou não, sem pudor de se envolver e se deixar levar pelos escritos antropofágicos.
Adorno acrescenta ainda: o ensaio interpreta ao invés de registrar e classificar. Se
revolta contra a doutrina arraigada, desde Platão, segundo a qual o efêmero e o mutável não
seriam dignos do conhecimento, o historicamente produzido não é mais deixado de lado, mas
tomado como parte importante do estudo. Voltado para a utilização dos conceitos e a relação
entre estes, procede metodicamente, sem método. Para exemplificar, Adorno fala do
aprendizado de uma segunda língua feito através da experiência no país, ao invés da leitura de
dicionários. É uma imersão-intuitiva que não se prende necessariamente a um método fechado
e pré-estabelecido. No caso dessa dissertação, vocês verão que não se trata do "encaixe" de
algum método para poder classificar e desvelar os escritos de Oswald. É uma tentativa
também de através de uma imersão-intuitiva ter liberdade diante do objeto, liberdade que dá
ao objeto mais chance de se expandir, ganhar força, do que se fosse categoricamente inserido
em um método (isto parece compor com a proposta de "dar voz" aos escritos antropofágicos).
Sobre isso, vale ainda atentar para a seguinte citação:

Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando; quem vira e revira o seu objeto,
quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete a reflexão; quem o ataca de diversos
lados e reúne no olhar do seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto
permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever. (BENSE, 1947 apud
ADORNO, 2012)

Este trecho reflete bem as pretensões dessa dissertação e ajuda a enfrentar este desafio
dentro da antropologia, que é não tratar diretamente de pessoas, grupos, mas de escritos (que
obviamente atingem e influenciam grupos e pessoas). Buscaremos experimentar os textos de
Oswald de Andrade, deixando transparecer sem culpa àquilo de amado e de odiado, as
aspirações políticas aqui vivas, que esperamos poder compor com os ideais antropófagos.
Trata-se também de abordar o efêmero e o mutável (e a devoração!), reconhecendo os
próprios limites e vantagens dessa dissertação: buscamos escrever ancorados na criação, no
encontro, na relação com os escritos oswaldianos. Assim, aparecem diversos problemas e
questões divididos em subcapítulos que serão abordados de maneira (talvez) efêmera, com o
objetivo de virar, revirar e provocar os escritos – pode ser que aquilo que nos pareça
inacabado possibilite a abertura, nos permita seguir interpretando e narrando.
Seguindo, então, os preceitos do ensaio, procuraremos estabelecer relações entre o
conceito de Antropofagia e os conceitos de Modernidade e Alteridade. A escolha destes dois
20

conceitos se deu por serem conceitos caros para a Antropofagia literária, assim como para a
própria antropologia. Para tratarmos da alteridade, podemos pensar que a Antropofagia seria o
modo de vida voltado para a alteridade (como aprofundaremos em diversos pontos dessa
dissertação), enquanto a Antropologia propõe-se a ser ciência da alteridade. Ambas também
estão agitadas por questões sociológicas: como lidar com o ideal da modernidade? Ou melhor,
como ter um olhar de alteridade para o dito moderno? Isto se torna um grande desafio quando
pensamos que a própria noção de modernidade não foi concebida a partir da alteridade, mas
sim a partir da universalização do sujeito racional, da divisão ontológica entre natureza e
cultura (fundante da própria Antropologia). No caso da Antropologia, a tentativa de
compreender as sociedades “não-modernas” a partir da alteridade11, lhe permitiu pensar a
própria modernidade a partir desta. Já que olhar para o diferente, possibilitou olhar para si
mesmo de maneira distinta. Desde então, muitos caminhos foram apontados, chegando-se até
a apontamentos de que jamais teríamos sido modernos. Não se trata aqui obviamente de
tentar esgotar esse debate, não queremos escolher a “melhor maneira” de definir a
modernidade ocidental, nem entendê-la como um todo homogêneo, mas aproveitar algumas
caracterizações relevantes apontadas pelos debates antropológicos. Para, assim, podemos
perceber como a Antropofagia oswaldiana pode contribuir para este debate, a partir de uma
perspectiva de que o bárbaro teria muito a ensinar àquele considerado moderno. Pois é
servindo-se da filosofia primitiva que Oswald de Andrade afirma que já tínhamos uma série
de atributos importantes à modernidade.
Neste sentido, podemos dizer que compomos com o esforço proposto por Eduardo
Viveiros de Castro em Metaphysiques Cannibales de descolonização do pensamento. Na
verdade, esta proposta compõe com a própria Antropofagia oswaldiana e já que pretendemos
pensar com ela, estamos inevitavelmente enredados nessa discussão. O autor propõe uma
"alter-antropologia indígena" que seria uma transformação simétrica e inversa da antropologia
baseada na epistemologia ocidental. Enquanto a primeira constituiria-se por uma aliança
radical com os conceitos dos povos que estuda, buscando uma radical transformação político-
epistemológica, a segunda entenderia que o encontro da Antropologia com o Outro resultaria
sempre na repetição das representações do Ocidente (ou seja, por trás do Outro estaria o
Mesmo). Esta alter-antropologia relaciona-se intrinsecamente com a Antropofagia (roubada

11
Cabe explicitar a preocupação deste trabalho de não reproduzir a divisão entre modernidade ocidental e resto
do mundo (ou West/rest, como dizem alguns autores pós-coloniais). Vale dizer que tratamos aqui,
principalmente, da relação das sociedades ameríndias, apropriadas pela Antropofagia literária, com a
modernidade Ocidental, mas isso não que acreditamos que todas as sociedades distintas da Ocidental (que
também já são muitas) possam ser pensadas como um todo homogêneo
21

da filosofia ameríndia). Nesta perspectiva, a Antropofagia abarcaria uma série de domínios,


sendo uma teoria antropológica e uma prática antropofágica, mas também uma metafísica, ou
seja, um modo de definir o mundo e o ser, um método filosófico, um modo de criar
conceitos12.
Diante disso, tanto a filosofia antropofágica, quanto a proposta de alter-antropologia
apresentam-se como uma descolonização permanente do pensamento (que não se separa da
descolonização política). Isto significa romper com os fundamentos metafísicos do
colonialismo (baseada nos dualismos entre sujeito x objeto, natureza x cultura,
essencialismos, etc) colocando à prova nosso próprio sistema conceitual. É o que busca fazer
13
a Antropofagia oswaldiana a partir da proposta de “reabilitação do primitivo” , que funda
uma relação de alteridade e devoração da modernidade ocidental, ou melhor, do binômio
modernidade-colonização. Buscaremos, então, compreender como a Antropofagia oswaldiana
propõe uma alter-modernidade (com relação intrínseca com a alter-antropologia aqui
mencionada), que se baseia em uma outra metafísica, criando outros conceitos, propondo
outros amanhãs. Dando, assim, sua contribuição para a antropologia em sua feliz
determinação em compreender/devorar o Outro.

***

Dito isto, cabe definir como se organizará esta dissertação que anunciamos. Após esta
apresentação, onde apontei alguns objetivos e princípios teórico-metodológicos, o primeiro
capítulo apresenta sinteticamente aspectos importantes da constituição da Antropofagia
oswaldiana. A parte 1.1 (Um breve prelúdio: ida ao povo modernista, devoração e sertão) trata
do surgimento da Antropofagia e sua relação com o Modernismo, abordando a proposta de
"ida ao povo", aspecto fundamental do movimento, que expressa a união entre "a floresta e a
escola". Isto nos ajudará a situar a Antropofagia literária, passando por seu surgimento e
constituição. Em seguida, estaremos aptos para abordar o próprio conceito de Antropofagia
proposto por Oswald de Andrade (parte 1.2), o que será feito destrinchando as dimensões aqui
consideradas: (1.2.1) a alteridade e (1.2.2) a modernidade. Depois de uma apresentação geral

12
Sobre a proposta de Eduardo Viveiros de Castro na sua relação com a Antropofagia ver Des Metaphysiques
cannibales à la Philosofie Anthropophage,(RODIONOFF, 2012)
13
Expressão utilizada por Oswald de Andrade(1991) em “A reabilitação do primitivo”.
22

do conceito, de sua "visão de mundo", apresento sua relação com estes dois conceitos, estando
o segundo, por sua extensão, dividido entre a crítica ao racionalismo e a oposição ao Estado e
à propriedade privada. Neles estão presentes também outras discussões caras à Antropofagia
literária, como a crítica ao messianismo e ao patriarcado, que aparecem permeando todo este
capítulo. Será possível começar a delinear a concepção de alteridade antropofágica e a partir
dela sua visão crítica em relação à modernidade ocidental.
Depois, no capítulo 2, nossa tarefa será justamente colocar em diálogo as dimensões
destacadas do conceito com debates levantados pela antropologia e pelas Ciências Sociais,
apontando possibilidades de contribuição da Antropofagia oswaldiana para a disciplina. Na
parte 2.1, voltada para a alteridade, buscaremos entender como se deu a devoração da
Antropofagia com os Outros, com a filosofia ameríndia e como a partir disso constitui uma
alteridade canibal específica. Iniciaremos por pensar a relação da Antropofagia literária com a
Antropofagia literal (ou propriamente ameríndia), o que será feito a partir de diálogos com
etnografias contemporâneas. Na parte seguinte, buscaremos compreender como Oswald de
Andrade constrói um primitivismo específico, na sua relação com o primitivismo ufanista do
grupo Anta e com a proposta de Mário de Andrade. Isto nos ajudará a qualificar sua relação
(poética) com as sociedades ameríndias. Em seguida, nos questionaremos se a alteridade
antropofágica vincularia-se a noção de mestiçagem (própria do pensamento essencialista), ou
se apontaria para uma concepção distinta, apontando para uma outra ontologia.
Definida a concepção de alteridade, já poderemos pensar a relação da Antropofagia com
a Modernidade (subcapítulo 2.2). É importante ressaltar que esses dois subcapítulos tem
fortíssimas relações entre eles, sendo por muitas vezes um atravessado pelo outro (já que a
própria crítica à modernidade ocidental, não pode ser desvinculada da concepção de alteridade
e vice-e-versa). Neste subcapítulo definiremos não apenas a crítica à modernidade ocidental,
mas a própria proposta de uma alter-modernidade antropofágica. Na parte 2.2.1 veremos
como o "Socialismo Caraíba" reivindicado por Oswald de Andrade tem relação direta com a
ideia de Utopia (tantas vezes deixada de lado pelo pensamento científico-racionalista e pelo
pragmatismo capitalista). Na parte seguinte apresentaremos um aspecto significativo da
Antropofagia oswaldiana: o de ser contra o Estado, o que se dará a partir da relação com os
escritos de Pierre Clastres. Depois disso, nos permitiremos questionar se, diante dessa relação
inerente com as filosofias primitivas, seu princípio de alteridade e seu modo de intensidade
contra o Estado, a Antropofagia pode ser pensada como uma teoria do Brasil – como o foi
23

durante muito tempo por parte da crítica literária14. Estes últimos pontos apontam para a
desestabilização de um importante pilar da modernidade ocidental, proposto pela
Antropofagia: o Estado-Nação. Assim, neste capítulo esperamos traçar um panorama da
relação da Antropofagia oswaldiana com a alteridade e modernidade.
Por último, no capítulo 3, daremos apontamentos de como desterritorializar a
Antropofagia, para poder pensá-la para além de seu tempo, nas suas possíveis contribuições
para o pensamento contemporâneo e não apenas como uma obra datada a ser analisada só em
seu contexto. O que será feito, primeiramente, com um diálogo com algumas teorias anti/pós-
coloniais - esta relação com outros contextos de resistência às imposturas coloniais, permitirá
fortalecer e enriquecer a proposta antropofágica de descolonização do pensamento.
Buscaremos também pensar a Antropofagia na relação com um movimento social específico:
o Exército Zapatista de Libertação Nacional. Será uma tentativa de ver de forma um pouco
mais "encarnada" uma ação antropofágica. Por fim, veremos a relação do paradigma aqui
abordado com o pensamento do teórico indígena Davi Kopenawa (uma importante tentativa
contemporânea de pensar uma alter-modernidade), o que permitirá refletir sobre questões
atuais e do amanhã.

14
Um grande exemplo é a perspectiva de Robert Schwarz (1981), em "A carroça, o bonde e o poeta
modernista".
24

1. Modernismo e Antropofagia

Afinal, quando, onde e como nasceu a Antropofagia literária? Sabemos que ela vai além
do movimento modernista, porém seu surgimento está profundamente atrelado a este. Neste
primeiro capítulo, vamos abordar este nascimento, para em seguida desenvolver algumas
considerações sobre o conceito de Antropofagia. Não se trata de reconstruir os detalhes do
contexto histórico específico, mas apontar algumas condições e direções construídas, para
poder também mapear problemas com que se relaciona o conceito (o que continuará a ser
desenvolvido ao longo da dissertação).

1.1 Um breve prelúdio: ida ao povo modernista, devoração e sertão

O homem é obra de sua obra


(Dom Quixote - Cervantes)

Como aperitivo, situemos brevemente a Antropofagia literária entre as confusões dos


tempos. Como marco do Movimento Modernista está, nascida entre vaias e aplausos, a
Semana de Arte Moderna ocorrida em 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Não nasceu
do nada, segundo Raul Bopp, um dos seus organizadores, "a arte moderna veio de longe,
seguindo os caminhos da máquina.” (p.21) Em plena São Paulo crescente ainda repetiam-se
os versos parnasianos: formas mesmas, temas grandiosos esmagavam o cotidiano, o
parnasianismo teve no Brasil profusão maior do que em qualquer outro lugar do mundo. Mas,
os prédios pipocavam nas alturas da Avenida Paulista, São Paulo mudava, anunciando a
urgência de uma nova arte. Sobre isso, nos diz Oswald:

E com a mudança diária e formidável da própria graça fisionômica, a metrópole incontida,


absorvente, diluviana de gente nova, de gente ávida, de gente viva pensa outras ideias, escuta
outros carrilhões, procura novos ritmos, perscruta e requer horizontes e futuros. Não para o
chamado aflito dos velhos sineiros celebrantes de cultos vencidos. A juventude extravasante
nas escolas, nas calçadas, nos jardins citadinos aí está reclamando pelos cem poros ativos da
sua sensibilidade apurada nas viagens atávicas uma arte à altura da sua efusiva aspiração
vital e de compasso com o senso profundo da sua espontaneidade americana. (1991, p. 23)

Uniu-se, então, um grupo de artistas (animados também pela influência das


vanguardas europeias) com o desejo de ruptura, renovação e criação na arte brasileira. Pelo
25

fim da arte de gabinete, dos modelos, do pedantismo, a favor do verso livre, sintético,
industrial, "bárbaro e nosso". Arquitetaram o evento fundador: a Semana. Na hora marcada
Graça Aranha entrou no palco anunciando, com voz grave, "o estado de insurreição nos
domínios de inteligência", Oswald leu trechos de seu livro "Os condenados", Mário de
Andrade recitou a Paulicéia desvairada, Villa-Lobos fechou a noite com uma orquestra de
cordas, sopro, reco-reco, tamborins (BOPP, 1996). Já não havia mais volta: o modernismo se
instaurava na arte brasileira
Este movimento (poderíamos dizer artístico-político-cultural...) estava longe de ser
homogêneo. Logo se tornaram claras as diferenças entre os grupos, e a corrente Antropofágica
ganha forma e texto: Manifesto Pau-Brasil (1924), Manifesto Antropofágico (1928). Estas
distinções serão abordadas ao longo do texto e principalmente na parte 2.1.2, por ora,
continuemos nosso breve prelúdio sobre o Modernismo e a vertente Antropófaga analisando
uma característica fundamental para este trabalho: a ideia de “ida ao povo” presente no
movimento.
Foi com a máxima, “é tempo de ir ao povo, devemos estar preparados para o
indispensável, e sobretudo devemos aprender o trabalho físico”, que a ideia de "ida ao povo"
aparece pela primeira vez no tempo dos tzares, entre os populistas russos, chamados
narodiniks. Estes eram em grande parte formados por universitários que se propuseram a sair
das cidades para ir ao campo organizar a população para a revolução socialista. Permeados
pelos dilemas da Ocidentalização (ou não) da Rússia, estes jovens passaram a trabalhar,
comer e se vestir como os camponeses. Buscavam viver de fato como eles, entregando-se a
um outro modo de vida. Como dito por Rubem César Fernandes: "Os testemunhos evocam
um movimento de dimensões profundas, de um esforço de transformação total do estilo de
vida dos que dele participaram." (p. 31). Esta concepção encontra-se, com respectivas
diferenças, no modernismo antropófago. Buscando unir a cultura dita "popular" ao "mundo
letrado" ou nas palavras de Oswald a junção entre a "a floresta e a escola" (ANDRADE,
1970), a ida ao povo modernista rejeitaria a repetição da arte e teorias europeias, a "arte de
importação" (idem). Nas palavras de Luciano Martins teria:

uma criatividade que se propõe quebrar (o que era novo no Brasil) a separação entre o
erudito e o popular. Pela incorporação do falar cotidiano à escrita e à linguagem literária
(preocupação central em Mário de Andrade), dos ritmos afro-brasileiros à música clássica
(Villa-Lobos) ou das figuras do povo à pintura (Portinari, Di Cavalcanti)... (MARTINS, p. 2)

Vale ressaltar, que no caso de Oswald esta "ida" se deu de forma mais ensaística,
diferente de Mário de Andrade mais preocupado em colher registros empíricos. Em seus
26

Manifestos, ensaios e poemas Oswald buscou a valorização dos aspectos considerados


"bárbaros" e "colonizados": o modo de ser antropofágico (que será mais bem abordado a
frente), o "homem cordial", a linguagem popular. Estes eram tidos como "matéria-prima
inesgotável para extrações de ingredientes poéticos" (BOPP, 1996, p.36). As palavras
cotidianas, o modo de falar das ruas, o que para muitos era considerado parte do atraso,
deviam ser recuperados, para uma "língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica.
A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos." (ANDRADE,
1970) Não à toa observamos o poema:

Erro de Português

Quando o português chegou


Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio teria despido
O português
(ANDRADE, 1974)

O verdadeiro erro de português não é a forma coloquial utilizada no poema ("duma


bruta chuva"), mas é ter o próprio português vestido o índio, vestido com a repressão, a culpa,
a moral da cegonha. Outro poema interessante:

Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
(ibidem)

Oswald de Andrade utiliza-se dos termos populares em contraposição aos termos da


língua considerada "culta". Além do que nos aparece como mais visível, a valorização dos
termos da linguagem cotidiana e popular (que antes do modernismo raramente apareciam nos
poemas), devemos nos atentar para o último verso. Sendo o único verso do poema que não
carrega a contraposição já dita, traz consigo o "telhado" como na língua “culta”, mostrando
como os que falam teiado continuam fazendo telhados. Não deixa de ser uma forma de atentar
para o projeto civilizatório, que impõe uma língua e um trabalho para aqueles que constroem
27

as casas e cidades. Neste outro aparece explicitamente a defesa de uma proximidade com a
língua das ruas:

Pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
(ibidem)

Além disso, o autor "não procurou imobilizar essa situação de trânsito, fluente, no
estatuto coercitivo de uma nova sistematização linguística - a língua brasileira, pronta e
legitimada por regras (convertida por sua vez em modelo)" (CAMPOS, p. 51). O que aparece
como uma abertura, a negação de uma língua essencializada e estática.
Esta mesma preocupação é abordada a sua maneira por Guimarães Rosa, um dos
autores, que segundo o próprio Oswald (1991), mais aprofunda e radicaliza a proposta
modernista. Com os olhos voltados para modos de vida diferentes de sua "cultura letrada e
15
urbana" , aventura-se pelos sertões e desenvolve uma escrita toda particular. Seus livros
transbordam neologismos, há a busca da novidade da linguagem, constituinte das próprias
narrativas. Não há imobilidade, o que existe é a travessia, como aparece nas últimas palavras
de Grande Sertão: Veredas: “O diabo não há! É o que eu digo, se for. Existe é homem
humano. Travessia.” (p. 568). O movimento e ambiguidades são constituintes do homem, da
linguagem, essenciais para o autor: "Ao invés de etiquetar o mundo, o narrador do Grande
sertão: veredas se vê diante de um ‘mundo misturado’, repleto de ambiguidades – ‘tudo é e
não é’, como o Liso do Sussuarão, ora intransponível, ora transponível." (MARTINS COSTA,

15
Guimarães Rosa é considerado por Ana Luiza Martins como participante de "uma “vertente antropológica”
da ficção brasileira, por se aventurar pelo interior do Brasil munido de cadernetas de viagem, e com os olhos
voltados para um mundo diverso de sua própria cultura letrada e urbana."(p.13) O autor faz um "ida ao povo"
radicalizada, mas como em Oswald, não se trata de uma cópia do modo de falar sertanejo, é uma criação a
partir da experiência do sertão, sua matéria-prima para o fazer poético. É, podemos dizer, uma mediação
poética, em que Rosa faz-se sertanejo, sem deixar de ser escritor, ou melhor, faz-se escritor, sendo sertanejo.
28

p. 27) Estas são algumas características da “ida ao povo” modernista antropófaga depois
retomada por Rosa16.

1.2 O conceito de Antropofagia

Fonte: Revista da Antropofagia, ano 2, num 1, Tarsila do Amaral

Em tudo o que aí fica dito não há nada de mau; o que há é que esta gente não usa calções.
(Michel de Montaigne)

Este subcapítulo apresentará primeiramente algumas considerações sobre como a


Antropofagia foi tratada no mundo moderno, para em seguida apresentar como Oswald
constrói o conceito à sua maneira. O passo seguinte será desmembrá-lo em duas dimensões: a
alteridade e a modernidade. A escolha destas se dá por serem não apenas temas importantes
para a compreensão do conceito, como também relevantes para os diálogos com a
antropologia que faremos em seguida. Abordaremos como o autor propõe uma forma de
alteridade específica, que acaba por nos levar a própria crítica da modernidade ocidental.

***

16
Apesar de não ser o espaço para aprofundar esta discussão, consideramos também o debate em torno do
caráter elitista da própria “ida ao povo” modernista. Se há “ida ao povo” é porque há grande distância entre o
povo e outras camadas favorecidas da sociedade. E no caso, pelo menos inicialmente, não é o “povo”
protagonista desse processo, mas sim o próprio grupo de intelectuais.
29

O advento da modernidade leva a uma concepção da prática antropofágica associada à


animalidade e barbárie. Está imbuído nisto um complexo processo sócio-histórico que não
cabe ser analisado aqui. Para citar apenas alguns aspectos, vemos como Nietzsche em O
Nascimento da tragédia, trata do início do socratismo, marco decisivo para o abafamento da
força vital da tragédia grega. Esta forma de arte seria privilegiada por carregar consigo a
união do comedimento apolíneo ao exagero dionisíaco: "E vede! Apolo não pode viver sem
Dionísio! O 'titânico' e o 'bárbaro' eram no fim das contas precisamente uma necessidade tal
como o apolíneo!" (p. 41) A tragédia grega seria combatida pelo aparecimento do socratismo
estético, que arranca o lado dionisíaco, afirmando que "para ser belo é preciso ser consciente"
(idem, p. 83) Para o filósofo, Sócrates abre caminho para o ideal do mundo moderno: o
espírito da ciência contrapõe-se a consideração trágica do mundo afirmadora da vida. Os
seguidores de Dionísio na Grécia Antiga, fundamentais para o florescimento deste segundo
modo de vida, praticariam, como aponta Maria Cândida Almeida, a antropofagia, o que era
visto como uma forma de desestabilizar com as fronteiras entre humano e não humano. Estes
dionisíacos carregariam também uma alteridade específica marcada pelo interesse pelo
outro17, o que os aproxima da própria proposta oswaldiana, como veremos em seguida: "O
canibalismo que os dionisíacos praticavam contra a Cidade visava não só destruí-la, mas
também nela introduzir o que Platão "denominava outro" (ALMEIDA, 2002, p 51). A
mudança com relação à prática antropofágica, e ao próprio dionisismo, seria marcada pelo
processo civilizador empreendido miticamente por Prometeu (iniciado por Sócrates, diria
Nietzsche), o primeiro a desafiar o poder dos deuses a favor dos homens. A partir de então, a
antropofagia começa a ser combatida como prática “desumanizada”: "Entre os atos que se
apresentam contrários à nomia encontramos a antropofagia e o incesto.” (ibidem, p. 51)
Vemos uma espécie de genealogia da Antropofagia, onde sua história aparece marcada pela
mudança imposta pelo ideal moderno. Imbricando-se nas oposições bárbaro/civilizado,
natureza/cultura, a prática passa a ser frequentemente associada à barbárie, à animalidade, a
um Outro visto como inferior pela Civilização Moderna.

17
Esta alteridade da abertura, foi segundo Frederich Nietzsche (2008), o que possibilitou o próprio surgimento
da filosofia entre o povo grego, antes de Sócrates: "Não há nada de mais absurdo do que atribuir aos gregos
uma cultura autóctone; pelo contrário, eles assimilavam a cultura viva de todos os povos e, se chegaram tão
longe foi porque souberam retomar a lança de onde o outro povo a havia deixado." (p. 33). Foi a capacidade
de absorver o Outro que possibilitou o surgimento da filosofia entre os pré-socráticos: os gregos souberam
encontrar e aprender nas terras estrangeiras, "trataram rapidamente de completar, elevar, erguer e purificar de
tal modo os elementos por eles absorvidos que a partir de então tornaram-se inventores num sentido mais
elevado" (idem, p. 35).
30

Munidos destas concepções estão os primeiros viajantes europeus a conhecer o “Novo


Mundo”. Sobre isso, ainda nos diz Maria Cândida de Almeida: “Renascentistas marcados pelo
encontro do passado com a Antiguidade greco-romana, os pensadores do Velho Mundo
lançaram mão dessa memória para entender os novos antropófagos que encontraram atuantes
diante de seus olhos e não mais como fabulações metafísicas da alfarrábios antigos” (ibidem,
p. 52) A prática antropofágica seria uma das características de alguns povos ameríndios que
mais causou espanto e terror aos cronistas europeus. No livro de Hans Staden, o cronista conta
do tempo em que ficou prisioneiro entre os Tupinambás e descreve alguns ritos que
envolviam o canibalismo. Reparemos nos adjetivos utilizados no título para qualificar a
prática e os praticantes: História Verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis
comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e
depois de Jesus Cristo... Os adjetivos cruel, desumano, bárbaro, selvagem são geralmente
utilizados pelos cronistas para tratar da prática de se alimentar de carne humana, o que se
estende para os seus praticantes. Como dito por Lestringant, em seu livro Os Canibais, a
imagem do canibal foi predominantemente a de "um ser devorador, um predador sem
consciência, e sem ideal, que, nos casos de extrema penúria, volta o seu apetite contra os seus
semelhantes" (p. 30). O antropólogo Claude Lévi-Strauss afirma que, entre todas a práticas
selvagens, a antropofagia é "sem dúvida a que nos inspira mais horror e repugnância" (1995,
p. 366). É interessante também atentar como Pierre Clastres ficou: "radiante com a ocasião de
estudar o que é o mais profundamente estrangeiro a nossa cultura, a antropofagia - o etnólogo
não partilha menos, pelo menos no início das fascinações próprias do Ocidente" (p. 229). Pelo
assombro etnocêntrico, ou pelo fascínio ao exótico, percebemos como a Antropofagia foi
considerada uma das práticas, modos de ser, mais distantes do Ocidente. Foi nela que Oswald
de Andrade encontrou o tabu a ser transformado em totem:

Ora, ao nosso indígena não falta sequer uma alta concepção de vida para se opor às filosofias
vigentes que o encontraram e o procuraram submeter. Tenho a impressão de que isso que os
cristãos descobridores apontaram como o máximo de horror e o máximo de depravação,
quero falar da antropofagia, não passava de um alto rito que trazia em si uma
Weltanschauung, ou seja, uma concepção de vida e do mundo (ANDRADE, 1991, p. 231)

Presente no modo de vida indígena, mas também se estendendo para além dele, a
18
"antropofagia ritual" seria constituinte de uma era cultural chamada de Matriarcado.
Identificamos aí influência dos conceitos da antropologia, pois Oswald de Andrade ressalta a

18
A ideia da Antropofagia como uma verdadeira concepção de mundo está vinculada à noção de
weltanschauung, advinda da tradição do romantismo alemão, que concebe as culturas a partir da sua
totalidade e singularidade, em contraposição ao universalismo iluminista.
31

importância dessa antropofagia ser ritual, e não por pura fome. Nas palavras do autor: "O
índio não devora por gula e sim num ato simbólico e mágico onde está e reside toda sua
compreensão de vida e do homem. Trata-se apenas da transformação do tabu em totem, isto é,
do limite e da negação em elemento favorável." (ANDRADE, 1991, p. 104). Sem caráter
apenas fisiológico, essa "operação metafísica" transformaria o tabu em totem, o que resultaria
em um modo de vida da alegria, do prazer, do "ócio criativo". Afirma, então, no Manifesto
Antropófago: "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade" (ANDRADE, 1970) Mas, quando chega a civilização o homem para de se
alimentar do outro e passa a escravizá-lo. Para o escritor modernista, a exploração do homem
pelo homem começou na América quando o branco vestiu o índio com sua ética do trabalho.
Vestiu com a repressão, a violência, a castração, a "moral da cegonha". Há no movimento
antropofágico uma crítica à própria civilização ocidental como um todo presa ao seu
racionalismo, ao seu tédio, à sua "jaula de ferro".
Podemos perceber que existem diversas faces do conceito de Antropofagia proposto
por Oswald. Ele é recuperado na sua dimensão etnográfica, como forma cultural das
sociedades tupinambás, o que se generaliza de forma mítica para todos os povos que aqui
habitavam antes da chegada dos portugueses e pode ser vista em outras partes do globo. E
aparece também como traço de resistência ao colonizador, através da valorização de uma
cultura e metafísica "bárbara e nossa". Nesse sentido, o modo de vida antropofágico estaria
em relação de alteridade radical ao Ocidente opondo-se à sua tríade constituinte: o Estado, o
patriarcalismo e o messianismo. Além disso, podemos vê-la como utopia (em um sentido que
será mais bem abordado a frente), a antropofagia é a "lei do homem", que aparecerá no novo
Matriarcado a ser instaurado pela grandiosa Revolução Caraíba. Este modo de vida unido à
tecnologia do Patriarcado, formaria o "bárbaro tecnizado" (a síntese desta relação dialética),
que teria as máquinas para libertá-lo de todas as repressões. Esse último aspecto coloca uma
face da Antropofagia contra a volta às origens perdidas. Não haveria o desejo de um retorno
para uma época anterior à colonização, mas a defesa de uma forma de vida da abertura
possibilitada também pelo avanço tecnológico.

* * *

Depois de apresentarmos estas considerações gerais sobre o conceito, vamos


desmembrá-lo na sua dimensão da alteridade.
32

1.2.1 Alteridade: só me interessa o que não é meu...

Talvez um dos aspectos mais fortes da Antropofagia oswaldiana seja a sua fome de
alteridade. Diversas são as interpretações para o famoso aforisma do Manifesto Antropófago:
"Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do Antropófago." Diante dele, nos
questionamos: o que estaria implicado no ato antropofágico? Devorar seria uma busca de
engrandecer a si, o eu, o indivíduo ou um puro interesse pelo outro? Cremos, assim como
Alexandre Nodari (2009a), que a Antropofagia não deve ser explicada como uma tentativa de
fisgar as qualidades do inimigo, para fortalecer um “eu”. Seria uma outra forma de lidar com
o universal: se no discurso do universalismo moderno, o universal existe anterior ao
particular, com as diferenças se misturando em uma grande salada sem gosto, na proposta
antropofágica o universal se reconstitui a partir das diferentes e novas perspectivas. Nesse
sentido, não há uma preocupação, como aparece em algumas interpretações do modernismo
antropófago, de uma cultura brasileira unificada e essencializada – o que será mais
aprofundado na parte 2.1.3. Seria, como aponta Sueli Rolnik, o contrário de uma imagem
identitária, pois a devoração é sempre uma transformação de quem engole e é engolido, para o
surgimento de um novo. Então, afirmando que os brasileiros são antropófagos afirma-se, na
verdade, que são aquilo que os separa incessantemente de si mesmos. O princípio
antropofágico da alteridade, muito mais do que uma característica autenticamente brasileira, é
"um princípio imanente à produção de subjetividade, ele é próprio da espécie humana como
um todo. No entanto, ele pode estar mais ou menos ativo nas subjetividades, e isso em muito
depende dos contextos socioculturais, do quanto tendem a favorecer ou inibir sua atividade."
(ibidem) Sobre isso, também é interessante atentar para o trecho de Amir Geiger:

O Manifesto Antropófago pode (e deve) ser lido (em letra e em espírito) como um discurso
universalizante do antropófago caraíba, não como afirmação da cultura brasileira. O
discurso, a falação indígena, não diz nada sobre a cultura brasileira ser antropofágica, e sim
sobre a permanência, recalcada e produzindo efeitos, da antropofagia caraíba nas
manifestações culturais brasileiras. O Manifesto não é uma interpretação da cultura
brasileira, mas uma crítica das condições de universalização moderna. (p. 361)

Podemos dizer, então, que o (anti-)princípio da alteridade, constituinte da


Weltanschauung antropofágica, não se baseia na busca das origens perdidas, mas sim nas
33

possibilidades do ser19, o que se dá por este modo específico de encontro com o Outro. Vale
ressaltar ainda que a alteridade antropofágica não se trata de um mimetismo, que engoliria
tudo o que lhe é imposto20, para tornar-se um mero espelho do outro, sem sal, nem cor.
Tampouco uma postura xenófoba que busca centrar-se e apenas preservar suas próprias
características, como o praticado pelo primitivismo do Anta. O homem antropófago coloca-se
em constante tensão entre esses dois polos, mas para destruir ambos. O que surge no encontro
com o Outro é um novo sujeito afetado por aquele que foi devorado e distinto dele ao mesmo
tempo. Sobre esta tensão enfrentada pelo canibal (tanto literal, quanto literário), nos diz
Carlos Fausto:

Ele [o antropófago] busca mobilizar a perspectiva do outro em proveito da reprodução de si,


exprimindo a contradição entre um desejo centrífugo, heteronômico, e uma necessidade de
autoconstituição enquanto sujeito autônomo. O risco da alienação, contudo, permanece
sempre presente, pois se o canibal controla subjetividades outras que tornam possível a
reprodução da vida, ele está definitivamente marcado por elas. (FAUSTO, p. 14)

Não se pode negar, de fato, o risco da alienação. O antropófago Flávio de Carvalho


buscou afastá-la afirmando que era importante também escolher o que não comer. Para o
polêmico arquiteto participante do movimento, os Aymarás resistiam ao branco deixando de
comer e comprar seus produtos21. Penso que uma das respostas de Oswald a esta questão
encontra-se nas diferenças apresentadas entre a baixa e a alta antropofagia: enquanto a
primeira comeria e destruiria tudo sem distinção, a segunda, praticada pelos tupinambás,
característica do homem antropófago, estaria vinculada a um rito de comunhão. Como dito
por Maria Cândida Almeida, esta diferença não se dá nos termos do que devorar, o que levaria
a pensar que o importante seria alimentar-se somente dos objetos com qualidades desejáveis.
Os próprios tupinambás devoravam seres considerados mais frágeis e não apenas guerreiros.
Trata-se, na verdade, da concepção envolvida no ato de deglutição: "Não é o objeto da
devoração que será classificada, mas a própria devoração que se define como "alta" ou
"baixa", ou seja, o ato acabado em si mesmo, de pura violência e destruição do baixo
canibalismo; ou o gesto produtor do devir, da diferença, da multiplicidade, da incorporação do
alto canibalismo." (2002, p 81) A luta contra a alienação é também luta contra a baixa
19
Sobre isso nos fala Alexandre Nodari ao comparar Carlos Astrada e Oswald de Andrade: "O weltanschauung
latino-americana sobre o qual se debruçam Oswald e Astrada se encontra numa possibilidade do ser, antes
que uma origem (raízes) do ser." (p. 125)
20
Esta crítica foi feita sobretudo ao Tropicalismo, que se propôs a continuar a proposta Antropofágica à sua
maneira. Acusavam o movimento de aceitar o imperialismo estadunidense, repetindo os instrumentos, modos
de ser e produtos impostos pela indústria cultural dos EUA. O que podemos afirmar é que são sempre difíceis
os limites entre o mimetismo e o purismo-essencialista.
21
Sobre isso ver o artigo publicado em: http://culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/resistenciapassiva.html
34

antropofagia, nas palavras do Manifesto Antropófago: "A baixa antropofagia aglomerada nos
pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos
cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos." Já a alta antropofagia
"traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males
catequistas." (ibidem) Este desejo do inimigo sacro, a sua transformação de tabu em totem,
carrega consigo uma densa concepção de mundo que transforma o limite em favorável. Não
há um Deus bom e imutável que devemos aceitar, nos levando a recalcar nossos
ressentimentos (até os coloniais). Mas, sim, uma batalha constante contra o fora, uma
externalidade constituinte que não deve ser escondida. Vemos, portanto, como a alteridade
antropofágica adquire um sentido profundo, que vai para além da simples assimilação
cultural. Não há vontade de verdade absoluta, essência, purismo: a luta contra o colonizador
não se dá pelas armas coloniais. Se a matriz da modernidade ocidental volta-se para dentro,
interioriza-se, tem o indivíduo como irradiador da vida social, a Antropofagia é fora,
externalidade. O interesse pelo outro destrói a ontologia do indivíduo, centro irradiador da
experiência moderna. A concepção de alteridade antropofágica, nos leva necessariamente à
crítica à modernidade ocidental...

1.2.2 Modernidade: devorando o Ocidente

Se o indivíduo moderno é essencial na constituição do projeto modernidade-


colonização, devemos considerar também diversos outros âmbitos em que este está implicado:
o controle da economia e da autoridade, o controle do conhecimento, o controle da
subjetividade dos sujeitos coloniais, o controle do gênero e da sexualidade mediante o modelo
de família cristã-colonial, latifundiária e burguesa e a normatividade sexual22. Mesmo com as
grandes mudanças históricas, que incluem transformações de todos esses âmbitos
(transformações do discurso da salvação católica para a conversão aos moldes da civilização
secular, por exemplo), admitimos, como Mignolo (2008), que permanecem elementos
fundamentais da matriz colonial de poder no que diz respeito à dominação em todas estas
dimensões citadas. Podemos dizer que contra todos estes, a Antropofagia volta suas forças,
propondo, como diz Haroldo de Campos, não só uma ruptura estética, mas uma nova ética,
utopia, sociedade, com a superação da "civilização patriarcal e capitalista, com suas normas

22
Sobre isso ver Mignolo (2008).
35

rígidas, no plano social, e os seus recalques impostos no plano psicológico" (CAMPOS, 1979,
p. 36). A própria palavra sintética que dá nome ao movimento, antes carregava as
inferioridades dos povos ameríndios colonizados passa a ser invertida. Não há mais falta,
incompletude e nem apenas uma crítica não propositiva ao homem moderno, mas a defesa de
um modo de vida positivo da alegria, com o qual o próprio Ocidente deveria aprender.
Abordaremos, então, os aspectos críticos à modernidade ocidental desta teoria, passando pela
crítica ao racionalismo e cientificismo e a defesa de um homem que não reprima seus
instintos de liberdade (1.2.2.3) e a crítica ao modo de produção capitalista e a defesa de uma
sociedade contra o Estado (1.2.2.4).

1.2.2.3 Uma ciência errática despida do racionalismo ocidental

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.
(A ciência - Manoel de Barros)

Contrapondo-se ao racionalismo ocidental, a Antropofagia oswaldiana opõe-se,


também, a todo o tronco ancestral do pensamento moderno, constituído pela filosofia
socrática e com isso estabelece um forte diálogo com os escritos nietzschianos. Então, para
melhor compreendermos como se dá esta crítica, nos apoiaremos também em alguns escritos
de Nietzsche. Não se trata de fazer uma análise pormenorizada de seus densos escritos, mas
de buscar os pontos de interseção que nos servirão de impulso.
Segundo Nietzsche, "todo o nosso mundo moderno está preso na rede da cultura
alexandrina e reconhece como ideal o homem teórico, equipado com as mais altas forças
cognitivas, que trabalha a serviço da ciência, cujo tronco ancestral é Sócrates." (1991, p.108)
Oswald afirma que os ensinamentos socráticos, a serviço da verdade-metafísica, da Razão e
da consciência, carregam consigo um Espírito de Servidão, onde o Patriarcado constrói sua
sofisticação triunfal:

De Sócrates sai o esquema do perfeito boneco humano, longamente exaltado pelas classes
dominadoras, a fim de se conservar, domado e satisfeito, o escravo. E o "piedoso", o "justo",
o “continente", o "prudente". Nele refulgem as virtudes do rebanho, como definiu Friedrich
36

Nietzsche. Nele reside o fundo catequista de todas as covardias sociais e humanas. (1995, p.
115)

Observamos como na crítica à subjetividade do homem moderno há um vínculo entre


a antropofagia e o pensamento nietzschiano, o mesmo vínculo proposto pela filosofia de
Deleuze: "um vínculo secreto constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o
ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do poder."
(DELEUZE, 2007, p. 14) Sem dúvidas, Frederich Nietzsche é considerado um dos grandes
expoentes na crítica dos males da civilização. Opondo-se à moral cristã e a filosofia platônica
que constituiriam o modo de ser do homem moderno, negador da vida, o autor valoriza as
potências arcaicas que carregam consigo os instintos vitais do homem exteriorizados. Estas
baseariam-se em uma existência afirmativa, plena, da alegria de existir, exuberante, com os
instintos exacerbados. O que se diferenciaria da moral dos fracos, criticada na Genealogia da
Moral, nascida do Cristianismo, que inculcaria a culpa e a "má consciência" no homem pela
sua própria existência.
Para o filósofo, o Cristianismo se fundaria na negação deste mundo, em prol da ilusão
de um outro mundo, através da repressão dos instintos de liberdade. Sobre isso, também nos
diz Oswald (1991): "No paroxismo a que atingiu a filosofia existencial processa-se apenas
uma exaltação do primitivo. É no fundo uma revalorização do homem natural que se produz
contra os quadros esclerosados do homem histórico, do homem vestido, enfim, do homem
cartesiano" (p. 102) Este "homem natural" (ou o bárbaro antropófago) não é aquele que vive
sem cultura, o que seria colocado por um pensamento etnocêntrico, mas é um homem que não
interioriza seus instintos, vivendo sem a moral da civilização e o messianismo, usufruindo de
uma vida do ócio criativo e do prazer. Despido de culpa e da repressão do homem "vestido" e
entediado, a “alegria é a prova dos nove". (ANDRADE, 1970) Como diz Benedito Nunes:

Oswald ligou esse purgação do primitivo à origem da saúde moral Nietzschiana, do homem
como animal de presa que, segundo a digestiva empregada por Nietzsche em A Genealogia
da Moral, assimila e digere, sem resquício de ressentimento ou de consciência culposa
espúria, os conflitos interiores e as resistências do mundo exterior (p. xxxi)

Tanto a "saúde moral", quanto o "primitivo antropófago" baseiam-se na ideia de que


haveria uma força, um princípio vital, inerente ao próprio ser humano. É o que é chamado por
Luiz Fernando Duarte como a ênfase na pulsão dada pelo pensamento próximo ao
37

romantismo23: "Trata-se da ideia de que os fenômenos e os entes, singulares como são – totais
e diferenciados – e dotados da capacidade de se distender no fluxo vital, temporal, não o
fazem sem uma qualidade especial, interna, toda própria (...)" (p. 11). Esta força não poderia
ser medida pela razão e pela consciência, mas sim pela experiência. Seria formadora da
autenticidade e originalidade de cada ser, que poderia estar doente, fraca, enferma, ou
saudável, forte, exuberante.
Uma das principais características do homem moderno que abafaria esta força interna
seria o racionalismo ocidental e o consequente cientificismo. Criticando o objetivismo e a
propagação de uma verdade absoluta para além da experiência24, Nietzsche busca desconstruir
a verdade metafísica defendida pela filosofia platônica e reforçada com artifícios diferentes
pela ciência: “Quando alguém esconde algo detrás de um arbusto, volta a procurá-lo
justamente lá onde o escondeu e além de tudo o encontra, não há muito do que se vangloriar
nesse procurar e encontrar: é assim que se dá com o procurar e encontrar da “verdade” no
interior do domínio da razão” (NIETZSCHE, 2007, p. 40). Para o filósofo, todos os conceitos
construídos pela ciência seriam sempre criações e não verdades objetivas. Como diz em O
Crepúsculo dos Ídolos, o "mundo-verdade", prometido pelo sábio e pelo religioso, é "uma
ideia que não serve para nada, não obriga a nada; uma ideia que se tornou inútil e supérflua;
por conseguinte, uma ideia refutada: suprimamo-la" (p. 32). Neste mesmo sentido, aponta
Oswald de Andrade ao propor "um dramático protesto humano contra o mundo lógico de
Hegel e a sua terrível afirmação de que tudo que é racional é real." (1991, p. 102) O poeta,
inegavelmente, compõe com esta tradição anti-racionalista e dispara nos aforismos do
Manifesto Antropofágico: "Nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós", ou ainda:
"Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o
Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida". O racionalismo, a verdade e a ciência
aparecem sempre ironizados na obra do autor, como vemos nesta outra citação criticando o
essencialismo presente na ideia de ser: "A gramática é que ensina a conjugar o verbo ser e a
metafísica nasce daí, desse verbinho" (ibidem).
Outra citação bastante interessante aparece no primeiro prefácio de Serafim Ponte-
Grande (1926): “a gente escreve o que ouve – nunca o que houve”. Não se trata nunca de

23
Tratamos aqui Romantismo no sentido mais amplo do termo, entendido como parte de uma chave de
interpretação que distingue pensamentos mais próximos do Romantismo (críticos à Civilização) dos
próximos ao Iluminismo (defensores do progresso e de ideias racionalistas).
24
É nesse sentido que Luiz Fernando Duarte coloca a ênfase na experiência como a base de uma epistemologia
de tendências românticas: "Ela implica a recusa de uma objetividade externa absoluta do processo de
conhecimento ou da prática científica, em nome de uma consideração constante dos processos subjetivos em
jogo na relação com o mundo exterior"(p. 12)
38

escrever os "fatos", as coisas-em-si, como levaria a crer um pensamento objetivista, mas sim
escrever a partir do que cada um ouve, da própria experiência.
E ainda podemos observar o engraçado personagem, a "Camarada verdade", que
aparece através dos tempos, em diferentes perspectivas e pessoas, apontando para sua própria
historicidade:

A CAMARADA VERDADE - Eu sou a Verdade! Sou a defesa da espécie. Da humanidade


pobre que habita um planeta milionário. (...) Estive na caravela de Vasco da Gama.
Acompanhei a travessia de Colombo.(...) Fui companheira de Cromwell e assisti à agonia de
Marat. Preparei o advento da Máquina. Flama do socialismo utópico, fui a base do
socialismo científico. Morei na cabeça genial de Hegel e na de Feuerbach. Hoje sou a física
de Einstein e a ciência social de CARLOS MARX! (ANDRADE, p. 139, 2005, apud
NODARI, 2009a)

Percebemos, assim, como se encontram em diversos pontos Nietzsche e a


Antropofagia literária e como através deste encontro Oswald de Andrade constrói sua crítica
ao racionalismo ocidental que se baseia: na recusa à moral civilizatória, repressora dos
instintos de liberdade, na denúncia da formação de rebanho que iguala e diminui o homem e
do cientificismo objetivista que empobrece o pensamento. O bárbaro antropófago engole o
homem forte nietzschiano, livre dos ressentimentos, da moral escrava da civilização e em um
brado poético pela vida afirma:

No patamar da nova poesia, "onde um dragão guarda os tesouros do amor", "a felicidade
persiste sobre o abismo negro" e "a serenidade é o prefácio da morte", está a agitação
tempestuosa de Nietzsche. A nova poesia restaura o reino da criança, do primitivo e do
louco25. Ouçamos Nietzsche... (ANDRADE, 1991, p. 117)

Podemos dizer ainda que a Antropofagia prossegue para além da crítica ao


racionalismo ocidental e à moral dos escravos, originada do cristianismo. Para Oswald, estas
características do homem moderno estariam vinculadas ao próprio modo de produção
capitalista: "Está fundado o Cristianismo. É a doutrina da domesticação do homem cujo o
destino é o céu, prossegue na sociedade solidamente dividida em classes e na justificação do
Estado.” (ANDRADE, 1991, p. 103) O espírito de servidão da filosofia platônica e o próprio
cristianismo constituiriam um homem obediente, escravizado diante do Estado e das classes
dominantes.

25
Aqui vemos a influência de Freud sobre a obra oswaldiana (digamos que talvez um pouco invertida). Ambos
colocam o louco, o primitivo e a criança em uma relação de oposição com o sujeito iluminista, dotado de
racionalidade. Sobre isso ver Totem e Tabu.
39

Este outro aspecto será mais aprofundado no próximo subcapítulo, por hora, cabe nos
questionarmos: mas o que de propositivo é colocado pela Antropofagia oswaldiana? Para
abordar tal questão nos debruçaremos sobre a noção de ciência errática defendida pelo autor.
Para isso, faremos uma analogia com alguns escritos do antropólogo Pierre Clastres que nos
ajudará a desenvolver o tema (e que será mais aprofundado depois), pois em ambos
encontram-se tendências de um pensamento contra o Estado, que se depara com
problemáticas semelhantes.
Para começar abordemos críticas comuns feitas aos principais conceitos desses dois
autores. Muitas vezes um viés mais positivista se questionou tanto sobre a Antropofagia
oswaldiana quanto sobre a Sociedade contra o Estado de Pierre Clastres: será que para validar
esses conceitos seria preciso encontrar formas contra o Estado ou matriarcais em todas as
sociedades primitivas? Sobre isso, devemos atentar que a descoberta da "forma-estado" ou de
relações de parentesco patriarcais presentes nas sociedades ameríndias, não invalida
necessariamente os conceitos propostos pelos autores. Não só Clastres aponta para forças de
estratificação social e centralização política, "sobretudo no norte e no noroeste amazônicos, na
área chamada "Circum-caribe" no Handbook, onde vicejaram aristocracias e 'pequenos
estados'"(2011, p. 343), como também Oswald aponta o homem cordial como uma contra-
força matriarcal presente em uma era predominantemente patriarcal. Ou seja, se os autores
dão margens a interpretações que percebem os conceitos apresentados como dois tipos sociais
homogêneos correspondentes às sociedades primitivas, também apontam para uma direção
que percebe o Matriarcado antropofágico e a Sociedade-contra-o-estado como “conceito[s]
que designa[m] um modo intensivo de existência ou um funcionamento virtual onipresente
cujas condições variáveis de extensivização e de atualização compete à antropologia
determinar empiricamente”(idem, p.343).

Seguindo o raciocínio podemos afirmar que estes pensamentos não se baseiam em


uma linearidade, não tem uma preocupação empírica em um sentido estrito (neste caso,
falamos mais de Oswald do que de Clastres), mas ainda assim podem (isso serve para ambos)
nos ajudar a compreender realidades empíricas. Usar a antropofagia como um conceito em
certo sentido trans-histórico para compreender certos povos (mesmo aqueles que não praticam
antropofagia literal) pode nos ensinar muito sobre eles26. A proximidade desta proposta com o
que diz Pierre Clastres sobre as ideias de La Boétie é digna de nota. A indagação feita pelo
autor quinhentista, recuperada por Clastres, sobre como seria possível que a maioria queira

26
Isto será melhor abordado no subcapítulo sobre a Antropofagia literal e literária.
40

obedecer à minoria, não poderia se restringir a uma ou outra situação concreta, teria uma
enorme abrangência e nesse sentido seria trans-histórica. Nas palavras do antropólogo: “Sua
agressão tem um alcance muito maior: ele levanta uma questão totalmente livre porque
absolutamente liberta de toda ‘territorialidade’ social ou política, e é exatamente porque sua
questão é trans-histórica que somos capazes de entendê-la.” (2011, p. 147) Esta questão,
podemos dizer, profundamente filosófica, por mais que não vise responder questões de uma
sociedade específica, ajudou Clastres a compreender melhor a realidade concreta das
sociedades primitivas.

É neste sentido que Oswald de Andrade propõe uma ciência do vestígio errático:
“Frente a los sistemas evolutivos, completos y hegemônicos, Oswald pantea la Errática que
rescata el vestígio anacrônico o lo que se há perdido com el fin de conmover y resquebrajar el
sentido único y autoritário del poder patriarcal que domina la sociedade contemporânea.”
(AGUILAR, 2010, p. 15). Por via desta, o antropófago busca recuperar os vestígios
matriarcais escondidos e oprimidos em meio à sociedade patriarcal. Esta empreitada seria
feita através de afinidades que não necessariamente acompanham a ordem das causalidades
históricas. Mas, sim, apropriando-se daquilo que interessa em determinados fenômenos,
desprendendo-se do contexto histórico enquanto um a priori de todas as explicações e
relações. Em Marcha das Utopias, por exemplo, o autor se debruça sobre a ação dos jesuítas.
Aqueles mesmos antes denunciados por terem um papel brutalmente catequizador, neste
texto, são protagonistas da Contra Reforma, que opõe a Utopia ao utilitarismo mercenário da
Reforma do Norte. Sobre isso, nos diz o autor: “Quando exalto os jesuítas de modo algum
assumo para com eles compromisso religioso ou ideológico.” (1970, p. 152) Isto quer dizer
que em determinado momento pôde se apropriar daquilo que lhe interessava nos jesuítas, a
ideia da Contra Reforma em oposição “ao conceito árido e desumano da Reforma” (ibidem),
mas que não necessariamente os jesuítas vão lhe servir para lidar com outros problemas.
Continua o autor: “Um escritor, um sociólogo, um crítico podem rotular numa ampla latitude
ideológica, um fenômeno que parecia restrito a certos compromissos de origem ou de
destino.” (idem, p. 153) É o que faz Clastres em relação à La Boétie devorando seus
questionamentos sobre a servidão voluntária. Ambos constroem à sua maneira uma ciência
errática, ou ciência régia27, como sugerido por Tânia Stolze e Marcio Goldman, no prefácio
d’A sociedade contra o Estado, uma ciência que não busque constantes fechadas, mas
dependa de fluxos e variações.

27
Termo apropriado de Deleuze e Guatarri (2005).
41

***

Vimos como a Antropofagia oswaldiana propõe uma forte crítica político-


epistemológica (e ontológica) ao pensamento clássico moderno. A ciência errática busca
desconsertar a ideia de “mundo-verdade”, do ser enquanto essência para propor um
conhecimento que possa ir além das causalidades históricas lineares: os vestígios
antropofágicos podem e devem ser recuperados em outros tempos, um determinado conceito
ou até experiência histórica podem ser reaproveitados na sua relação trans-histórica com
outras situações e problemáticas. Esta Errática admite que a Ciência é uma forma de
conhecimento, dentre outras, que criam distintos e novos mundos no mundo. São partes do
mosaico dessa metafísica canibal que começam a se constituir. Ao propor uma ciência
errática, crítica ao racionalismo ocidental, sugere, assim, um pensamento contra o Estado e
também oposto à propriedade privada, elementos constituintes do mundo moderno. É sobre
isso que trataremos no subcapítulo que se segue.

1.2.2.4 A posse contra a propriedade e o Estado


O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme
(Carlos Drummond)

Como dito por Tânia Stolze Lima e Márcio Goldman, no prefácio de As sociedades
contra o Estado, o racionalismo ocidental não é uma mera operação intelectual. Ela carrega
consigo uma inerente violência, pois se baseia na recusa de outras formas de pensar. Os
autores apontam ainda que os dois grandes pilares sobre os quais se ergue a civilização
ocidental desde a cidade grega são a Razão e o Estado, unidos pelo vínculo do poder. Esta
visão condiz com o pensamento de Raul Antelo de que o capitalismo e o Estado moderno
42

nascem do etnocentrismo manifesto no domínio da razão sobre a paixão. Ao tratar da


Antropofagia, o autor ainda acrescenta que contrapor-se a este estado de coisas não
necessariamente seria uma manifestação de irracionalismo, mas pensar em uma hermenêutica
aberta que seria, sobretudo, contra o Estado, contra a propriedade dos meios de produção e da
verdade: Oswald “escandiu a verdade dizendo que literatura nunca narra o que houve e sim o
que ouve. Definiu a literatura, portanto, como anti-haver ou contra-posse. Seu programa
antropofágico, aliás, cristalizou, precisamente, a economia do ser a do "Tupy or not tupy",
através da apropriação e o avunculado." (p. 272) É neste sentido que Alexandre Nodari propõe
que existiria uma teoria do direito na Antropofagia. Se a noção moderna de propriedade
fundamenta-se na separação entre o sujeito-possuidor e o objeto-possuído, homem-sujeito e
natureza-objeto, o direito antropofágico baseia-se na “teoria do grilo”, que tem como palavra
de ordem “a posse contra a propriedade”. Nesta teoria afirma-se que no início de qualquer
propriedade há um impróprio, o saque, e para sua destruição deve-se não apenas opor-se a
este impróprio, mas usar o próprio mecanismo da sua fundação, saquear a propriedade, para
diluindo as suas fronteiras, criar um comum.
Para tratarmos desse assunto, teremos que pensar também sobre a relação de
apropriação de Oswald não só com a teoria marxista, mas também com teorias libertárias.
Sobre sua relação com o marxismo, ela tem como marco o famoso prefácio de Serafim Ponte
Grande (1933), em que assume ter sido até então um "palhaço da burguesia" e adere ao
Partido Comunista vestindo a "casaca de ferro da Revolução Proletária". De Marx, a
Antropofagia devora o método dialético (só que de maneira bem heterodoxa: entre as eras
Matriarcais e Patriarcais) até a síntese da Revolução Caraíba (“o bárbaro tecnizado”) e
também o fascínio pela técnica já citado.
Tais considerações parecem-nos, a princípio, um paradoxo: como unir a crítica a
civilização nos moldes iluministas a uma positivação dos avanços tecnológicos? Esta aparente
contradição nos remete à síntese do "bárbaro tecnizado". É inegável que a proposta
antropofágica carrega consigo certas preocupações próximas do iluminismo28. De certa
maneira, ao buscar um dever ser, o autor quer "melhorar" a sociedade, mas há muito mais a
ser dito sobre estas preocupações: a Revolução Caraíba resultaria em uma nova era
coletivista, através da união do modo de vida antropofágico primitivo com a tecnologia do

28
Muitos são os exemplos deste tipo de pensamento. Para utilizar um paradigmático nas Ciências Sociais, mas
bem distinto de Oswald, vemos como Émile Durkheim confiante na civilização acredita que o mundo pode
ser esclarecido. Afastando-se da confusão primitiva, o desenvolvimento das sociedades humanas
possibilitaria a clareza das classificações.
43

homem ocidental, só que utilizada para libertar o homem do trabalho. O progresso técnico
levaria a uma entrega total ao ócio, a escravidão da máquina permitiria sua própria libertação.
Nas palavras do autor: "O homem aceita o trabalho para conquistar o ócio. E hoje, quando
pela técnica e pelo progresso atingimos a era em que (...) o homem deixa a sua condição de
escravo e penetra de novo no limiar da Idade do Ócio . É um novo Matriarcado que se
anuncia." (ANDRADE, 1970, p. 83) Sem as prisões do trabalho, o homem retornaria a um
modo de vida da alegria, saudável, que unisse o princípio de realidade ao princípio de prazer.
Mais adiante, o autor continua: "No mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as
barreiras finais do patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia,
da invenção e do amor." (ibidem)
É interessante ver como em Macunaíma, considerado pelo próprio Oswald como um
romance antropófago, há um interessante encontro entre o personagem principal e a Máquina.
Ao chegar a São Paulo, a cidade dos homens de mandioca, Macunaíma se depara com uma
proliferação de máquinas: “As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes
hupmobiles chevrolés dodges e eram máquinas (...) tudo na cidade era só máquina!” (p. 32)
Macunaíma vê na Máquina um deus, a imagem de Tupã dos filhos de mandioca. Só que se dá
a grande decepção: o anti-herói vira motivo de risada e o avisam que essa história de deuses
era mentira antiga, com a Máquina não se podia brincar, pois a Máquina mata. Aquilo se
tornou uma grande angústia para ele: como os homens podem mandar na máquina e a
máquina matar os homens? Percebemos uma crítica ao uso patriarcal da tecnologia, daqueles
homens “sem mistério sem querer sem fastio incapaz de explicar as infelicidades por si”
(ibidem). No final de uma profusão de pensamentos conclui: “Os homens é que eram
máquinas e as máquinas é que eram homens.” (ibidem) Como não remeter esta frase a uma
versão tupiniquim do fetichismo da mercadoria marxista? Na cidade patriarcal dos filhos de
mandioca, os homens perdem sua agência de homens e viram máquinas desencantadas, sem
mistério, nem vontade. As máquinas (agora encantadas de outra maneira) passam a ter o poder
que seria dos homens, o homem faz a máquina, mas é destruído por ela. Perceber isso o
liberta para utilizar a tecnologia à sua maneira: “Percebeu que estava livre outra vez e teve
uma satisfa mãe. Virou Jiguê na máquina telefone, ligou pros cabarés encomendando lagostas
e francesas” (idem, p. 33) Vemos como Macunaíma não se coloca contra a Máquina, mas quer
usá-la de outra maneira.
A metáfora do "bárbaro tecnizado" é, então, resolvida pela própria proposta
antropofágica: não procura a destruição pura e simples da civilização, mas quer sua
44

devoração. A tecnologia pode potencializar o modo de vida antropofágico (este visto como o
melhor dever ser para a sociedade), pois é engolida, junto com "o necessário de química, de
mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido." O progresso não seria, como esperado,
um caminho até a Civilização, marcada pelo esclarecimento através da consciência, da
racionalidade, mas em direção à própria weltanschauung antropófaga, dos instintos
exteriorizados. Se para Marx o modo de vida primitivo é anterior à civilização, para Oswald
ele é essencial nessa nova fase do mundo que estaria por vir, justamente no sentido de romper
com a moral e a metafísica civilizatória29. Como dito por Benedito Nunes: "Inverteríamos a
direção da história, pondo-nos à frente da caminhada mundial" (p. xxix).
Como vemos, mesmo em sua época de membro filiado do PCB, Oswald produziu um
marxismo para lá de heterodoxo, e com o desenvolvimento da URSS, o seu casamento com o
partido torna-se insustentável. Depois de 15 anos filiado, o autor já desiludido com a União
Soviética, rompe com o Partido. Percebe que a defesa da "ditadura do proletariado" teria
desembocado em todos os problemas cruciais da União Soviética. O Estatismo, o
autoritarismo, o controle exacerbado teriam corroído o ideal socialista. O marxismo ortodoxo
teria ele próprio se tornado uma filosofia messiânica como o cristianismo.
Apropria-se, então, novamente da filosofia nietzschiana, pensando no marxismo
soviético como a “moral do rebanho”, em que o desgosto do indivíduo diante da vida
enfraquecida seria abafado pelo florescimento da comunidade, que homogeneizaria os
homens, tentando esconder o sofrimento. O dogmatismo e controle exacerbado do Estado
propagaria o senso comum e promoveria o recalcamento dos instintos. Vemos a crítica no
seguinte trecho:

O que sucede hoje, porém, ultrapassou de muitos os limites do razoável. Há, por exemplo,
uma maneira proletária de se tirar as asas de uma mosca de laboratório. Tudo nos vem assim
da URSS, crismado de sectarismo, rotulado e imposto, acadêmico e formalista, enfim,
borrado de ocre sanguinário e de estupidez militante. (ANDRADE, 1991, p. 218)

O autor passa a denunciar o Partido Comunista, considerando todo seu caráter


autoritário, centralizador e o papel perseguidor que cumpria na URSS, justificando todos os
seus atos sob o pretexto de estar seguindo o "socialismo real" e as condições materiais.
Destacamos outro trecho onde se dá essa forte crítica:

29
Podemos dizer que se analisarmos à obra oswaldiana sobre a chave analítica que diferencia pensamentos
iluministas de românticos, ela se apropriaria dos dois: aproveita as críticas românticas aos males da
civilização, mas aponta para o futuro.
45

O Partido Comunista considera-se o agente da providência histórica. Não é o Partido que


fuzila, encarcera ou esfola. É a própria história. O Partido é um simples agente do fatalismo
econômico político que conduzirá dialeticamente o mundo a uma sociedade sem classes.
Atrás e em busca de uma solução humana, produz-se a desumanização do homem.
Militantes e autoridade soviéticas são puros autômatos da história universal. Como foram os
inquisidores de todos os tempos. (idem, p. 219)

Contudo, o autor não abandona o socialismo, mas sim aquele tipo de socialismo que
resultou na URSS. Em Velhos e Novos Livros recupera o conflito entre Marx e os socialistas
libertários (no caso Proudhon), para colocar-se ao lado dos libertários, criticando a autoridade
do Estado. Essa aproximação caminharia junto a um interesse pelo socialismo utópico, como
afirma o crítico Luiz Costa Lima: "Oswald no Brasil foi o primeiro a tentar recuperar a
tradição utópica do socialismo, procurando se desviar do marxismo positivista. Contra o
burocratismo estalinista Oswald afirmava que o caminho do socialismo passava pela utopia."
(LIMA, p. 96) Essa utopia (que será retomada mais a frente na dissertação) se dá pela forte
recuperação do paradigma Antropofágico, em que a defesa da era do matriarcado aparece com
cada vez mais força (ANDRADE, 1991). Na verdade, como bem percebeu Benedito Nunes,
Oswald acentuou um traço que nunca havia abandonado, mesmo na sua época mais próxima
do marxismo: "É que o poeta, e eis onde começa a originalidade do seu pensamento, mesmo
como marxista, (...) nunca deixou de ser utopista. E jamais fez, na verdade, a distinção,
sabidamente estratégica, entre socialismo utópico e socialismo científico” (p.li). Prossegue
Benedito Nunes:

Manteve ele no marxismo a dimensão ética das doutrinas do chamado socialismo utópico
(Proudhon, sobretudo), e o antiestatismo anarquista de um Kropotkin. Seu socialismo jamais
deixou de ser, fundamentalmente, o da rebeldia do indivíduo contra o Estado mais interessado
numa sociedade nova, cuja vida passasse pela morte da organização estatal, do que no
fortalecimento de uma ditadura do proletariado. Daí ter ele assimilado o marxismo ao ciclo das
utopias, e isso reagindo ao caráter messiânico de que se revestira na Rússia, como ideologia do
Estado. (ibidem)

Vemos, então, como a Antropofagia acaba por utilizar-se do marxismo, mas


desvencilha-se de seu caráter positivista e etnocêntrico, pois buscava também desconstruir os
pilares da civilização ocidental, a Razão e o Estado (e a consequente divisão da sociedade em
classes), a propriedade privada dos meios de produção e do pensamento (nas palavras de
Alexandre Nodari, quer destruir a separação que funda a identidade e a propriedade). A defesa
de um socialismo libertário, da total destruição do Estado, e não de sua transformação em
uma "ditadura do proletariado", é mais uma marca anti-ocidental da Antropofagia oswaldiana.
Sobre esta distinção é interessante ler os escritos de Deleuze e Guatarri:
46

A ideia de uma "transformação" do Estado parece claramente ocidental. Não obstante, a outra
ideia, de uma "destruição" do Estado, remete muito mais ao Oriente, e às condições de uma
máquina de guerra nômade. Por mais que se apresente as duas ideias como fases sucessivas
da revolução, são diferentes demais e conciliam-se mal; elas resumem a oposição das
correntes socialistas e anarquistas no século XIX. O próprio proletariado ocidental é
considerado de dois pontos de vista: enquanto deve conquistar o poder e transformar o
aparelho de Estado, representa o ponto de vista de uma força de trabalho, mas, enquanto quer
ou quereria uma destruição do Estado, representa o ponto de vista de uma força de
nomadização. Mesmo Marx define o proletariado não apenas como alienado (trabalho), mas
como desterritorializado. O proletário, sob esse último aspecto, aparece como o herdeiro do
nômade no mundo ocidental. Não só muitos anarquistas invocam temas nomádicos vindos do
Oriente, mas sobretudo a burguesia do século XIX identifica de bom grado proletários e
nômades, e assimilam Paris a uma cidade assediada pelos nômades (2005, p. 59)

O homem antropofágico não pode definir-se apenas como força de trabalho, pois é
também o ócio e o nomadismo que definem seu estar no mundo. O Patriarcado deve se
estabilizar/estatizar reproduzindo a herança, enquanto os povos matriarcais são constante
movimento, nas palavras do autor:

Entra aqui um problema atinente ao mundo móvel das migrações. Os povos que se
estabilizam no patriarcado. O eixo de sua vida é a herança que cria formas fixas de
existência. Os povos matriarcais não se conservam na rigidez da morada, na produção
regular da fazenda ou da cultura, no trabalho cotidiano e regular da casa. Sua lei é o
movimento. A exogamia é seu destino. (ANDRADE, 1991, p. 242)

A Antropofagia envolve os desterritorializados, contra-força ao Estado, sem fé, sem lei


e sem rei: "O poeta e a criança, o primitivo e o louco, tudo isso é também o povo" (ibidem, p.
117) Ao pensarmos sobre a atualidade da obra esbarramos com questões extremamente
relevantes para os dias de hoje. Não são poucas as afirmações que apontam como o
neoliberalismo enfraqueceria o poder do Estado, o que levaria a crer que lutar contra o Estado
seria fortalecer a própria lógica do Capital. A proposta antropofágica estaria, então, relegada
ao passado de uma luta antiestalinista e antitotalitária. Entretanto, cremos, dentro dos limites
que temos para abordar tal assunto, que estas afirmações estariam equivocadas em vários
termos. Como dito por Eduardo Viveiros de Castro (2011):

A ideia de que o capitalismo globalizado acarretou uma diminuição do poder do Estado


parece-me inverossímil. A parte o fato de que foi e continua ser preciso um gigantesco
aparelho regulador e interventor, administrado pelo Estado, para produzir a 'desregulação da
economia’, bem como para sustentar política e militarmente um mercado livre que não é nem
uma coisa nem outra, não é preciso ser um fanático anarcoautonomista para perceber que
jamais o Estado esteve tão presente, tão perto da vida cotidiana. (...) e no mundo inteiro
vemos o aparelho jurídico-policial dos Estados nacionais prestando seu apoio solícito aos
47

esforços das corporações transnacionais para cercar definitivamente os commons da noosfera


e esmagar com a máxima violência qualquer resistência à bioeconomia política do Capital.
(p. 325)

Em relação a isso não são poucos os exemplos. Na França observamos um típico caso
em que caminham juntos Razão e Estado, como uma forma violenta de negar outros modos de
vida. Com o pretexto da racionalidade e uma certa laicidade, o Estado francês faz todo o
possível para afastar os indesejados imigrantes no país (sim, são aqueles advindos dos povos
assaltados pelo neocolonialismo europeu). A lei que proíbe o uso de símbolos religiosos nas
Escolas públicas é só uma pequena amostra de um "universalismo à francesa": são religiosos
e proibidos os véus islâmicos, mas não o são as roupas ocidentais predominantes entre os
franceses. Para continuarmos com outros exemplos, não precisamos nem ir tão longe. Ao
observarmos a situação atual no Rio de Janeiro, vemos como o aparelho policial estatal tem
papel fundamental para garantir uma grande expulsão dos pobres nas áreas mais valorizadas
da cidade. As Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP`s) instaladas, em sua maioria, em
favelas da Zona Sul, Centro e Zona Norte, promovem o controle do território, não só para que
o tráfico de drogas não apareça explicitamente, mas principalmente como uma forma de
valorizar o solo urbano da cidade e garantir o controle da região (passam a ser cobradas
contas de luz, água, etc). Assim, se as classes populares não são expulsas diretamente, como
no caso do Morro da Providência em que cerca de 700 famílias estão sendo removidas por
causa das “obras de melhoramento”, o são pela nada branda “expulsão branca”, em outras
palavras, pelo aumento desenfreado do custo de vida no local. Neste contexto, o aumento dos
preços de imóveis é irrefutável, sendo o Estado força essencial para favorecer as grandes
construtoras e empresários (não precisamos nem citar o nome já quase mítico de Heyk
Batista). Estes são apenas alguns apontamentos de como a luta contra o Estado proposta pela
Antropofagia não pode ser taxada de ultrapassada, e não deve ser guardada apenas como algo
do século passado. Este tipo de questão será mais bem retomada no capítulo 3 desta
dissertação.
48

2. Antropologia comendo antropofagia (e vice-e-versa)

Depois de apresentarmos os aspectos do conceito de Antropofagia, buscaremos agora


relacioná-los mais diretamente com os debates antropológicos, levantando contribuições do
pensamento antropofágico para estes, assim como contribuições antropológicas para a
Antropofagia.
Em relação ao tema da alteridade, veremos com o a Antropofagia literária teve vários
insights interessantes no que diz respeito à Antropofagia literal. Para isso, o diálogo com
etnografias contemporâneas faz-se indispensável: é impressionante a ressonância das
proposições antropofágicas, o que nos mostra a atualidade dos escritos. Neste sentido, cabe
olhar não para o que há de 'igual' entre ambos (etnografias e escritos oswaldianos), mas
perceber como podem se acrescentar, provocar, desafiar. Como podem ajudar a pensar em
termos de uma Metafísica canibal, apontando outras ontologias e conceitos.
Além disso, buscaremos qualificar o primitivismo oswaldiano, que é a sua maneira
não apenas de criticar a civilização ocidental, como afirmar um outro modo de vida
antropofágico. Em seguida, provocamos com uma questão que pareceu se impor em muitos
momentos da pesquisa: seria a Antropofagia uma teoria da mestiçagem? Estes três pontos
(diretamente ligados à antropologia) nos ajudarão a refletir e qualificar a alteridade
antropofágica de que tratamos.
Sobre o tema da modernidade, buscaremos definir a proposta de alter-modernidade
antropofágica, o "Socialismo Caraíba", abordando seu aspecto utópico e contra o Estado
(aspectos estes que já determinam uma relação específica e crítica ao próprio ideal da
modernidade). Lançamos, por último, uma outra provocação (que esteve e está presente nos
debates em torno da Antropofagia): seria a Antropofagia uma teoria do Brasil? Esta questão,
nada simples de ser respondida, carrega consigo toda uma relação particular com os ideais
modernos.

2.1 Alteridade e Antropologia


49

A alteridade é uma dimensão crucial para a Antropofagia. Veremos como nos escritos
de Oswald de Andrade ela ganha um sentido amplo e abrangente. Para começar, a alteridade
se contrapõe por muitas vezes ao ideal da "aculturação" tão presente em seu tempo. As
sociedades ameríndias não estariam necessariamente perdendo sua cultura no encontro com
outros povos, mas poderiam estar reinventando novos modos de ser - devorando, diria o
antropófago. Atentando para o processo de reinvenção permanente presente em qualquer
grupo cultural, Marshall Sahlins critica o "pessimismo sentimental" de certos antropólogos
que só veriam o aspecto negativo do encontro do Ocidente com as "sociedades primitivas",
ressaltando, apenas, como estas estariam perdendo algo essencial. Ao afirmar o domínio
absoluto do Ocidente, este tipo de concepção abafaria as transformações próprias destes
grupos, relegando-os a um tipo de cultura estática, como é colocado pelo antropólogo: "Ao
supor que as formas e os fins culturais das sociedades indígenas modernas haviam sido
construídos exclusivamente pelo imperialismo ou então como sua negação os críticos da
hegemonia ocidental estavam criando uma antropologia dos povos neo-a-históricos."30 Sem
negar a violência e a dominação presentes, Sahlins quer valorizar a agência destes povos, sua
capacidade de se apropriar da cultura ocidental, ao invés de crer em uma inevitável
"aculturação". É, de certa maneira, para a força antropofágica desses povos que aponta o
antropólogo. Como é também para um “otimismo sentimental” que aponta a proposta
antropofágica: os povos colonizados poderiam devorar o necessário de química, a engenharia
e até os positivistas. É apostando na alteridade, que Oswald de Andrade percebe que para
além da violência da dominação ocidental, há possibilidades de transformação, encontro com
o diferente, o Outro.
Além disso, a alteridade pode ser vista como definidora da relação com os Outros (o
que pode dizer respeito a qualquer grupo). Neste sentido, diferentemente do tipo de alteridade
moderna voltada para si, para o mesmo, para a identidade, Oswald de Andrade, tomando de
assalto a lógica identitária ameríndia proporia uma alteridade antropofágica. Esta seria voltada
para a diferença, para o Outro, para a própria alteridade. Ou seja, ao mesmo tempo a
alteridade também é vista como este modo de ser antropofágico, que só existe baseado no
Outro.

30
Como aparece no seguinte trecho: "O que se segue, portanto, não deve ser tomado como um
otimismo sentimental, que ignoraria a agonia de povos inteiros, causada pela doença, violência, escravidão,
expulsão do território tradicional e outras misérias que a "civilização" ocidental disseminou pelo planeta.
Trata-se aqui, ao contrário, de uma reflexão sobre a complexidade desses sofrimentos, sobretudo no caso
daquelas sociedades que souberam extrair, de uma sorte madrasta, suas presentes condições de existência."
50

Buscaremos, então, definir os diferentes aspectos da alteridade antropofágica, para


depois sermos capazes de prosseguir para o subcapítulo seguinte, compreendendo como é a
alteridade que permite uma visão "desconcertante" da modernidade. Mas, não nos
apressemos, degustemos parte por parte, diriam os antropófagos.

2.1.1 Antropofagia literal e literária


.

Quando pensamos nas "influências" devoradas pela Antropofagia literária, uma série
de questões se coloca. Sabemos que boa parte da obra oswaldiana teve como influência as
vanguardas artísticas europeias, a filosofia de Frederich Nietzsche e o existencialismo. Isto
não foi necessariamente um problema, pois, como já foi dito, não há preocupações com um
purismo. Entretanto, ao tratar de uma teoria anti-civilizatória, seria estranho o autor utilizar
tanto de referências europeias? O que proporia o projeto antropofágico de deslocado do
“centro” europeu? O que faria o autor, para usar suas palavras, não reproduzir apenas uma
“teoria de exportação”? As respostas a essas perguntas começam a ser respondidas quando
pensamos em como Oswald de Andrade foi devorado e devorou as sociedades ameríndias. É o
que permite que este homem branco, de família aristocrática, vivendo “sob as ordens da
mamãe” 31, possa falar em nós quando trata dos povos que aqui estavam antes da chegada dos
portugueses. Vemos, por exemplo, como o autor escreve o Manifesto Antropofágico na
terceira pessoa do plural: "Mas, nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.”
(ANDRADE, 1970)
Para melhor abordarmos estas questões (e a questão que atravessa este capítulo e esta
dissertação: de qual alteridade a Antropofagia oswaldiana fala?) analisaremos as proposições
da Antropofagia literária em relação à Antropofagia literal e às sociedades ameríndias. Tal
desenvolvimento será feito, principalmente, com o confronto-encontro das indicações
oswaldianas com etnografias contemporâneas. Isso nos possibilitará não só ver como Oswald
de Andrade se apropria das sociedades ameríndias, mas também como a antropologia

31
Este é o sub-título dado ao seu livro auto-biográfico, no qual assume sua dependência afetiva, econômica,
existencial à vida familiar (principalmente em relação à sua mãe). Cabe ressaltar, família, esta, de origem
aristocrática, presa aos valores conservadores em amplo sentido (religioso, político, patriarcal).
51

contemporânea segue de certa maneira alguns indícios, erráticos, podemos dizer, da


Antropofagia literal32.
O acesso de Oswald de Andrade às sociedades ameríndias se deu pela leitura dos
cronistas e não por trabalho de campo como propõe o método antropológico. Entretanto,
podemos dizer que em relação aos índios dos primeiros séculos de colonização, o escritor teve
acesso a praticamente os mesmos materiais que se tem hoje: a leitura de cronistas como
Montaigne, Jean de Léry, Hans Staden, Américo Vespúcio, entre outros. Questionamos: o que
o escritor modernista captou da sua leitura dos cronistas? Nesta análise consideraremos não só
o que foi dito por eles, mas o que o autor percebeu de distinto, que será utilizado para compor
seu projeto antropofágico. Buscaremos perceber, então, como o poeta aponta para insights
interessantes sobre as concepções ameríndias que ressoam ainda nos dias de hoje nos
trabalhos de etnologia recentes.
Como já foi dito, para o autor, o rito antropofágico não só deixa de ser um rito inferior,
como passa a carregar consigo uma importante concepção de mundo que deveria ser
valorizada. Na mesma direção, Tânia Stolze Lima em sua etnografia sobre os Yudjá, um povo
tupi produtor de bebidas fermentadas, que habita no Parque Indígena do Xingu no Mato
Grosso, percebe que o canibalismo não implicaria necessariamente na destruição do social,
como muitas vezes foi pensado. Se “Viveiros de Castro (1986a) torna possível compreender
em que medida é social a conexão entre o canibal e a vítima nos sistemas sociocosmológicos
tupi” (p. 120), a antropóloga admite como o cauim é um importante elemento do mundo
cosmológico dos Yudjá, uma perspectiva baseada no canibalismo, sendo este inerente ao
socius deste povo. O cauim seria um dom, que dependendo da perspectiva poderia ser gente,
ou também veneno, nas palavras da autora, “o dom entre os Yudjá é um presente-cauim-
veneno-gente” (p. 281) e a antropofagia serviria de horizonte para a socialidade gerada por
esse dom. A caiunagem existiria, então, enquanto uma antropofagia simbólica – e não
imaginária, mas como estrutura simbólica de fato. Ou seja, consonante com a proposta
oswaldiana, a antropóloga afirma que a antropofagia não seria desagregadora da vida social,
mas sim constituinte desta.
Podemos acrescentar que ao se debruçar sobre os escritos oswaldianos, Carlos Fausto
percebeu que mesmo que a representação dos índios apareça algumas vezes vinculada a um

32
Sobre a relação de parte da antropologia contemporânea com a Antropofagia nos diz Eduardo Viveiros de
Castro:: “vejo o perspectivismo como um conceito da mesma família política e poética que a antropofagia de
Oswald, isto é, como uma arma de combate contra a sujeição cultural da América Latina. O perspectivismo é
a retomada da antropofagia oswaldiana em novos termos”.(p. 129)
52

ideal romantizado, como a generalização do matriarcado entre todas as sociedades primitivas,


os insights do autor apontariam caminhos interessantes. Sobre isso, vale atentar para o
seguinte comentário de Oswald sobre os escritos de Claude Lévi-Strauss: “É tão generalizada
a convenção patriarcalista que o excelente livro sobre o parentesco, do sociólogo francês
Claude Lévi-Strauss, não documenta senão o parentesco em linha paternalista” (1991, p. 243)
Mesmo equivocando-se sobre a constituição do parentesco, o autor atenta antecipadamente
para críticas e questionamentos que hoje ressoam na antropologia: será que os antropólogos
imersos em seu mundo patriarcal não reproduziriam este tipo de olhar nas sociedades
ameríndias estudadas? Além disso, os escritos oswaldianos teriam valiosos apontamentos no
que diz respeito à Antropofagia como metáfora, que expressaria uma compreensão profunda
do canibalismo como operação prático-conceitual (ou enquanto antropofagia simbólica,
poderíamos dizer):

E é nesse sentido que disse, no início desta comunicação, que a metáfora antropofágica
modernista era congruente com as representações indígenas. Em ambos os casos, e me
permitam aqui resgatar a velha e boa dialética, o movimento não deve ser entendido como
mera identificação ao outro, nem como simples negação do outro. O canibal nega sua presa
ao mesmo tempo em que a afirma, pois emerge da relação como novo sujeito afetado pelas
capacidades subjetivas da vítima (FAUSTO, p. 14)

O bárbaro antropófago, aquele que deveria ser resgatado, ou “reabilitado”, para usar as
palavras de Oswald, devora não só aqueles que são fortes, mas aqueles Outros, sejam
positivistas, juristas, brancos. O que condiz também com a observação de Tânia Stolze: “A
antropofagia é antes de tudo uma sociofagia: é um grupo que (por meio de uma ou mais
pessoas) come outro grupo (por meio de uma pessoa)” (p. 281) Para ir além, podemos dizer
que a Antropofagia literária propõe uma relação com o Ocidente que não seja mimética, nem
de negação absoluta, ao invés disso, quer devorá-lo, tornando-se outro. Assim, podemos dizer
que nesta “sociofagia” não há nem a mera identificação, nem a simples negação deste
inimigo.
A importância do inimigo é outro mote recorrente na Antropofagia literária. Sobre isso
também trata Eduardo Viveiros de Castro ao observar a dinâmica da alteridade amazônica. O
autor analisa as relações entre matador e vítima nos Arawete, um povo de língua Tupi-
Guarani, habitante da Amazônia Oriental. Existiria uma complexa relação entre o guerreiro e
sua vítima, que iria da alteridade radical culminando na morte, até, a partir dessa morte, uma
fusão identitária entre ambos. Neste processo, observa-se a constante mudança de pontos de
vista, em alguns momentos não se sabe mais quem é a vítima e quem é o matador. Este
53

matador ganha uma posição especial, ele é um deus já que, assim como os deuses canibais
deste povo, é ao mesmo tempo o Inimigo e o Arawete ideal. O essencial nessa dinâmica
antropofágica é aquilo que é assimilado quando se assimila o inimigo: a própria posição de
inimigo, os signos de sua alteridade: “o que se visa é esta alteridade como ponto de vista ou
perspectiva sobre o Eu – uma relação” (2002, p. 290). Ao contrário do inimigo objetificado
presente nas cosmologias ocidentais, este inimigo expressaria um ponto de vista, aquele mais
apropriado para perceber a si – o do Outro.
Vale dizer que este não é o único modo encontrado da prática antropofágica. A
etnografia de Els Lagrou sobre os Kaxinawa, grupo Pano habitantes do Acre, mostra um outro
tipo. Diferente da prática entre os Arawete, ou os Yudjá, a antropóloga encontrou o
endocanibalismo, constituído pelo hábito de comer os próprios mortos do grupo. Os
Kaxinawa não admitiam que seus mortos poderiam ser comidos por vermes ou por outros, por
isso preferiam eles mesmos comê-los. Como aponta a autora, esta prática é encontrada em
outros povos, onde prevalece a explicação de que devorar os mortos seria uma ajuda no luto.
Ao verem a pessoa se transformar em não-pessoa os enlutados enfrentariam melhor a morte,
evitando, assim, o luto continuado que poderia atrapalhar o mundo dos vivos. O que se
percebe é que diante dos vivos, o morto torna-se Outro e esta prática aparentemente um
endocanibalismo torna-se um tipo de exocanibalismo. Nas palavras da autora: “Se o morto se
transforma em Outro e a alteridade implica inimizade, o endocanibalismo não seria senão um
caso específico de exocanibalismo. (...) Comer o outro seria o sinal e a afirmação de
alteridade entre quem come e o que é comido.” (p. 330)
Percebemos que o que atravessa essas práticas antropofágicas é o interesse pelo Outro,
a afirmação da alteridade. Para voltar ao povo Yudjá, pode nos parecer espantosa a afirmação
de Kadu, um dos principais informantes de Tânia Stolze, que iguala a carne de caça à carne de
gente. Isto toma um forte sentido quando compreendemos que entre os Yudjá, o que poderia
haver de escandaloso na antropofagia não seria devorar um humano, mas sim devorar alguém
que ocupe uma posição de não–alteridade. Seguindo o raciocínio, vemos como Els Lagrou
percebe a importância da alteridade para a constituição do “eu” entre os Pano. Para a autora,
os Pano compartilham da regra amazônica do “eu é constituído pelo outro”. Em outras
palavras, o modo de ser amazônico baseia-se em um processo de subjetivação, de tornar-se
sujeito, que implica em um processo de tornar-se parcialmente outro, “sendo que a
subjetividade do eu é significativamente aumentada pelo contato íntimo e a eventual
incorporação do outro (seja este um inimigo, espírito ou planta).” (LAGROU, p. 61). Dentre
54

os diferentes modos que esta incorporação pode ter, o “mais espetacular” seria este que aqui
tratamos: o costume de devorar o inimigo. Como aponta a autora estas práticas típicas em
relação ao inimigos humanos (incluindo também os casos de crianças e mulheres raptadas),
que tem por razões óbvias se tornado cada vez mais raras, estariam vinculadas a um modelo
de predação, onde o outro-inimigo mesmo que morto nunca seria totalmente aniquilado, mas
sim mantido vivo dentro do matador. O modelo de predação mais famoso entre os Pano era o
de atacar seus inimigos para raptar suas mulheres. É interessante perceber como essas
mulheres eram de fato incorporadas, se casavam com membros da aldeia, não eram marcadas
como estrangeiras. Os Kaxinawa não exercem esta prática, são endogâmicos. Entretanto,
afirma a autora, seu discurso sobre identidade é o mesmo dos Pano. O Outro é sempre de
algum modo constitutivo do “eu”, o que quer dizer que todas as coisas próprias são feitas da
alteridade, “todos os sujeitos estão a caminho de se tornarem outros” (p. 63). Isto se
constituiria, neste povo, através de um tipo de familiarização ou sedução da alteridade, em
que, nas palavras da autora, “ganha-se ascendência ou poder sobre o outro não através da
pacificação das forças selvagens da alteridade, mas por meio de uma aproximação cuidadosa,
diminuindo a distância em termos espaciais, cognitivos e corporais” (p. 64). Seria uma
dinâmica complexa em que não haveria espaço para definições substancialistas de diferença e
de identidade, em que o outro, o estrangeiro, recebe uma atenção especial. O conceito nawa é,
neste sentido, paradigmático, pois pode caracterizar tanto aquele da mais distinta alteridade (o
inimigo, o branco), quanto outros grupos Pano, ou mesmo, metades no interior do próprio
grupo. Ou seja, nawa pode ser considerado mesmo ou outro, expressando a ambiguidade
existente entre essas duas categorias.
Outro caso interessante é o apontado por Luiza Elvira, ao se debruçar sobre gênero,
sangue e memória entre os povos amazônicos. A antropóloga não identifica um tipo de
violência específica contra a mulher, mas percebe como a violência seria constituinte da
existência social tanto de homens, quanto de mulheres, participando do próprio processo de
formação das pessoas. Neste sentido, a predação, a domesticação e a familiarização de seres
considerados como “de fora” seria um mecanismo fundamental das pessoas e parentelas “de
dentro”. Incorporar a alteridade de seres “outros” seria essencial para elaborar a semelhança
que une a parentela. Tal processo, nos alerta a autora, não significa que toda violência seja
justificada e aceita, evitam-se expressões explícitas de raiva no cotidiano. Entretanto, algumas
vezes ela escapa a este controle e participa da vida social. Com isso, a raiva contra pessoas
55

próximas pode constituir também a dinâmica indígena da incorporação da alteridade, na qual


pode-se transformar os parentes em seres “outros”, que passam a ser perigosos para os seus.
Através desses exemplos, vimos como, de maneiras diferentes, estes modos de vida
ameríndios baseiam-se não na experiência Ocidental do indivíduo isolado, voltado para si,
mas em um “eu” sempre em tensão e implicando um outro. Esta distinção é abordada por
Deleuze e Guatarri (2004), ao perceberem como o racismo europeu não toleraria a existência
do Outro. Não há fora, exterior, do ponto de vista deste, “só existem pessoas que deveriam ser
como nós, e cujo o crime é não o serem”(p. 45), ao contrário das sociedades primitivas, em
que se apreenderia o estrangeiro como um outro, possibilitando um modo de ser de
multiplicidade.
Antes do tempo desses filósofos, Oswald de Andrade já atentava para esta distinção.
No seu ensaio sobre o “homem cordial”, apropria-se do conceito de Sérgio Buarque para
positiva-lo ao máximo. Ele passa a ser um aspecto antropofágico (um vestígio errático) que
conseguiu perdurar mesmo diante da colonização, do domínio do homem branco, do “modo
de vida patriarcal”. O homem cordial (e antropófago) seria permeado pela alteridade, esta
teria um valor fundamental, sendo definida como: “o sentimento do outro, isto é, de ver-se o
outro em si, de constatar-se em si o desastre, a mortificação ou a alegria do outro.” (p. 141).
Ao contrário do homem da modernidade ocidental, no qual predomina “o sentimento de ser
outro, diferente e contrário”, o homem cordial libertaria-se de “apoiar-se em si próprio em
todas as circunstâncias da existência”, ele reduz o indivíduo, caracterizando-se por um “viver
nos outros” (ibidem). Como nos relatos etnográficos vistos acima, o autor identifica um
interesse pela alteridade que constituiria a visão de mundo antropofágica das “sociedades
primitivas”, é o Outro que importa para a construção do “eu” destes povos. Neste sentido,
podemos dizer que há uma correspondência entre a já citada máxima do Manifesto
Antropofágico (1928), “só me interessa o que não é meu” e a equação amazônica proposta por
Viveiros de Castro, ”Eu – relação”.
O autor ainda acrescenta que esta característica do homem antropófago não se
definiria apenas por uma solidariedade, “da vida em comunhão”, mas carregaria a
ambiguidade entre cordialidade e agressividade - como dito por Luiza Belaunde, a raiva
ocupa um lugar central nas concepções amazônicas. Este duplo aspecto, assentado na ideia da
vida como devoração, simbolizado no rito antropofágico, traz consigo a ambiguidade por um
lado da comunhão e por outro lado do perigo como imanência. Não há a crença messiânica do
perigo como algo transcendente, sendo o indivíduo “objeto de graça, de eleição, de
56

imortalidade e de sobrevivência” (idem, p.143). Para o escritor modernista, a prática


antropofágica carrega consigo um modo de vida específico, onde o interesse pelo outro não é
necessariamente um ato de solidariedade, mas uma sofisticada concepção de mundo, voltada
para a deglutição do outro, inimigo, a transformação do tabu em totem:

Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o
tabu. Que é o tabu senão o intocável, o limite? Enquanto, na sua escala axiológica
fundamental, o homem do Ocidente elevou as categorias do seu conhecimento até Deus,
supremo bem, o primitivo instituiu a sua escala de valores até Deus, supremo mal. Há nisso
uma radical oposição de conceitos que da uma radical oposição de conduta. (1970, p. 101).

Se o tabu é o limite, o próprio Deus na visão oswaldiana, o primitivo, tratando Deus


enquanto supremo mal, o trata enquanto inimigo a ser também devorado. Por isso, brada no
Manifesto (1928) pela “absorção do inimigo sacro”. Isto estaria em oposição à “filosofia
messiânica” do homem branco, onde não se totemiza o tabu e vive-se o recalque diante de um
Deus transcendente e bondoso. Caberia ao homem antropofágico, este que não usa calções,
combater os males da colonização, do homem messiânico, “a reação contra o homem vestido”
(p. 18, 1928) através do primado da devoração.
É uma lógica da predação que está presente no pensamento oswaldiano e que não por
acaso nos remete ao que foi identificado no pensamento ameríndio (como vimos na
caiunagem, na devoração dos parentes mortos...). Dentro desta, o autor também não deixou de
lado o tema recorrente da vingança: “Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de
uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”
(1928, p. 17). Como dito por Viveiros de Castro, “o que a vingança exprimia era a
indispensabilidade do outro.” (p. 241) A vingança que atravessa o canibalismo, permitiria a
este modo de vida conceber sua auto-determinação pelo outro. Observemos também o
seguinte trecho retirado da Revista da Antropofagia:

O antropófago come o índio e come o chamado civilizado: só ele fica lambendo os dedos.
Pronto para engolir os irmãos. (...) Já começou o cardeal da mastigação. Aqui se processará a
mortandade (êsse carnaval). Todas as oposições se enfrentarão. Até 1923 havia aliados que
eram inimigos. Hoje há inimigos que são aliados. A diferença é enorme. Milagres do
canibalismo. (Revista da Antropofagia, Ano 1, num 1)

Atentemos para a inversão colocada: antes existiam aliados que eram inimigos, hoje
existem inimigos que são aliados O que parece uma simples brincadeira literária, pode
apontar para um importante diferenciação (como eles mesmos dizem: “a diferença é
57

enorme”). Ao afirmar o primado do inimigo diante do aliado, afirma-se ao mesmo tempo o


primado da diferença diante da identidade. Pois não são iguais que são potenciais diferentes,
mas sim diferentes que são potenciais iguais. Isto aponta para uma concepção filosófica que
não ancora sua visão no mesmo, construindo assim um outro princípio identitário (ou anti-
identitário, como já foi dito aqui) que só é possibilitado pelo ritual antropofágico, expresso
através do canibalismo e mutação de ponto de vista com o inimigo (“milagres do
canibalismo!”).
Vemos, assim, como a força da filosofia primitiva estaria baseada na lógica da
predação e vingança, carregando a ambiguidade solidariedade-agressividade, o que culminaria
na máxima da vida como um contínuo devorar. A vida enquanto devoração, não se descola da
proposta de uma outra ontologia (ou poderíamos até dizer a falta desta), bastante distinta da
Ocidental: "A gramática é que ensina a conjugar o verbo ser e a metafísica nasce daí, desse
verbinho" (ibidem). O homem antropófago oswaldiano despe-se da metafísica ocidental que
define o ser enquanto essência para pensá-lo enquanto transformação, movimento. Neste
sentido, vemos outros encontros com as etnografias destacadas.
Ao tratar dos Kaxinawa, aponta Els: “Divisões ontológicas são posicionais e temporais
nesta visão de mundo: são relativas e cambiáveis, não essenciais ou substanciais, nunca fixas.
As diferenças não são do tipo oposicional, mas de um tipo gradual.” (p. 168) Ao buscar
construir uma fenomenologia da forma dos desenhos deste povo a autora percebe que estes
desenhos tratam das relações e que o problema da identidade e da alteridade estaria
relacionado à forma fixa e não-fixa. Assim, o ser é devir e a busca existencial do povo
Kaxinawa seria tentar equilibrar a fixidez e a falta dela. Entretanto, afirma a autora, eles
acabam sendo derrotados na luta da fixidez, já que os corpos estão em constante metamorfose,
em troca com o mundo. Em relação à corporalidade amazônica, Luiza Elvira percebe como a
concepção de gênero se daria de modo estritamente relacional. Ser homem ou ser mulher não
estaria vinculado a um corpo biológico pré-estabelecido, mas estaria sendo constantemente
fabricado nos corpos. Aquele homem que faz coisas de mulher passa a ser visto como mulher
e vice-e-versa.
Seja na “fluidez da forma” Kaxinawa, na concepção de gênero relacional, na noção de
vida como devoração, vemos que não cabe conjugar o verbo ser enquanto essência. Visões de
mundo que, como diz Tânia Stolze, não necessitam de um espectador absoluto, por isso são
contra o Estado. Esta outra lógica identitária, chamada por Sueli Rolnik de lógica
antropofágica anti-identitária, é vista por Eduardo Viveiros de Castro (2002) entre os
58

Tupinambá. Este povo pareceu inicialmente fácil de ser catequizados, aceitando o


cristianismo e os seus "bons costumes" sem nenhuma resistência, mas logo se percebeu que o
que havia era uma indiferença ao dogma. O que exasperava os padres não era uma resistência
ativa em nome de outras crenças, mas que os tupinambás estavam dispostos a tudo engolir.
Para o antropólogo, isto seria uma abertura para o outro, baseada em um desejo de ser outro a
partir dos seus próprios termos, uma lógica contrária à ideia moderna de cultura. Se o
pensamento moderno vê a cultura como estática, o seu perseverar, que permanece o mesmo,
para o pensamento ameríndio isso não faria sentido. A identidade não seria necessariamente a
fronteira a ser defendida, mas o nexo entre as relações. A “alteridade antropofágica”, para
Viveiros de Castro, não seria uma aceitação fácil do cristianismo, nem a tentativa de se tornar
espelho do outro. Tal característica seria, na verdade, uma forma de alargar a experiência
humana33.
Percebemos como a Antropofagia literária busca abocanhar a “alteridade
antropofágica” presente nas sociedades ameríndias. É a partir desta que Oswald pensa a
relação dos povos do lado de baixo do equador com a civilização ocidental, o autor apropria-
se de certos aspectos cosmológicos ameríndios para utilizá-los enquanto uma arma anti-
colonial, como veremos a seguir. A concepção da antropofagia enquanto visão de mundo, a
alteridade enquanto valor primordial, que se distingue da ideia de ser enquanto essência, a
vida como movimento, devir, inserida em uma lógica da predação, foram alguns aspectos que
ressaltamos desse encontro, deglutição. Sem querer definir características gerais e absolutas
para o pensamento ameríndio, esperamos ter oferecido alguns elementos encontrados em
diferentes povos que possam dialogar com a proposta antropofágica. Mais do que identificar
propriamente equivalências, ou influências precisas, buscamos pensar em termos e
apropriação dos elementos das filosofias ameríndias. E, como quem devora também é
devorado, podemos dizer que também as vozes dessas sociedades esmagadas pela colonização
aparecem nos escritos modernistas. Não só o autor incorpora este outro modo de vida, como
ele se faz presente e age no mundo a partir dos seus escritos.

33
Sobre a relação entre o poeta antropófago e o antropólogo nos diz Renato Sztutman: "Viveiros de Castro e
Oswald de Andrade encontram-se no registro antropofágico. O ponto é que apenas o primeiro teve oportunidade
de se defrontar diretamente com os antropófagos “em pessoa”, os “verdadeiros autores do conceito” de antropofagia, os
povos tupi-guarani ou, de modo mais geral, os povos ameríndios.(...) Viveiros de Castro viveu com um povo tupi-
guarani amazônico, os Araweté, e encontrou entre eles aproximações e afastamentos em relação aos Tupinambá da costa brasileira
no tempo da Conquista, que levavam seus inimigos de guerra ao moquém. Foi então que pôde constatar que a antropofagia é, como
já havia proposto Oswald de Andrade, debruçado na literatura informativa do século XVI, muito mais do que mera refeição
cerimonial. Trata-se de uma metafísica que imputa um valor primordial à alteridade e, mais do que isso, que permita comutações de
ponto de vista, entre eu e o inimigo, entre o humano e o não-humano. "(2007, p.29)
59

2.1.2 Primitivismo entre primitivismos

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante


De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
(Um índio- Caetano Veloso)

Já estabelecida a relação profunda entre a Antropofagia literária e a filosofia


ameríndia, que aponta para uma relação específica e primordial com a alteridade, seguiremos
alguns passos adiante. Sabemos que os Antropófagos não foram os únicos a reivindicar e a
querer se apropriar de elementos da cultura ameríndia. Dentro do próprio movimento
modernista diversas tendências buscaram fazer o mesmo, só que de formas muito distintas.
Buscaremos agora definir as diferentes maneiras com que esses grupos apropriaram-se do
"primitivo" e quais eram as concepções de alteridade presentes nessas apropriações. Isto nos
permitirá qualificar melhor o primitivismo Antropofágico diante dos diversos problemas
comuns que se colocavam (e que, como veremos, possibilitavam caminhos bem diferentes a
seguir). Nos questionaremos, então: como Oswald de Andrade quer devorar o primitivo? Qual
é o sentido dessa apropriação? É uma volta para o passado ou visa o futuro? Está somente em
uma busca de autenticidade ou permite a transformação e o movimento? Este primitivismo
volta-se apenas para si (e para aquilo de essencialmente indígena) ou procura uma visão do
fora (da alteridade)? Algumas questões e tensões que perpassarão esta complexa definição do
primitivismo antropófago.
Primeiramente, vale dizer que diferentemente do grupo Verde-amarelo que mais tarde
tornou-se o Anta (tendo como grande expoente o integralista Plínio Salgado), Oswald e os
antropófagos sempre se distanciaram de um nacionalismo ufanista. Sobre isso, nos diz
ironicamente o autor: "No começo de 25, havia penetrado um autentico clandestino no
Movimento. Era o sr Plínio Salgado (...) ele encabeça a reação e prepara o fascismo nacional.
(...) Na extrema-esquerda ficam os que vão ter pequenos aborrecimentos como cadeia, fome e
ilegalidade. São os antropófagos.” (ANDRADE, 1991, p.100) O primitivismo antropófago se
opôs fortemente ao primitivismo proposto por artistas próximos ao integralismo, que buscava
60

uma raça superior e autêntica brasileira. Se ambos se focavam no tema do índio, o faziam de
forma completamente diferente (quiçá oposta). Esta questão é bem abordada pelo crítico
Benedito Nunes (p. xxxvi): "Ambas reações com o mesmo sentido, mas com direções
diferentes, já eram políticas. Esses grupos remanescentes se afastavam da realidade quanto
mais parecia aproximá-los o tema do índio que lhes era comum." O crítico aponta, então, para
uma diferença no próprio sentido étnico invocado.
Para os participantes do Anta há "o mistério vicariante da raça tupi, que deu a primeira
transfusão de sangue no colonizador e deixou-nos por herança o substrato biológico, psíquico
e espiritual da nacionalidade.(...) Após contribuírem para a composição étnica os aborígenes
perdem sua vida mas interiorizam-se como espírito nacional." (NUNES, p. xxxvii). E a teoria
não se encerra por aí: dessa raça pura e supostamente superior resultaram os órgãos vitais da
nação, as instituições existentes que deveriam ser resguardadas.
Antagônico ao "primitivo guardião das instituições" está o "primitivo antropófago"
permeado por uma lógica igualitária e de rebeldia contra a ideologia da ordem (ibidem).
Longe de ser o "bom selvagem" de Rousseau, ou do sentimentalismo do indigenismo
romântico de Gonçalves Dias, podemos dizer que "tratava-se de um indianismo às avessas,
inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (Des cannibales)(...) a exercer sua crítica
(devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado" (CAMPOS, 1971, p. 49). Com
Montaigne, os antropófagos aprenderam que a civilização classifica de bárbaro o que é alheio
aos próprios costumes. O canibalismo carregaria toda uma "nobreza" não encontrada entre os
civilizados (muito mais cruel do que comer carne de outro homem, seria torturá-lo vivo, por
exemplo), marcados pela injustiça e desigualdade:

Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às regras da razão, mas não a nós, que os
sobrepassamos em toda a espécie de barbárie. Sua guerra é toda nobre e generosa e tem
tanta desculpa e beleza quanta se pode admitir nessa calamidade humana; seu único
fundamento é a emulação pela virtude (MONTAIGNE, 1972, p. 4)

Ao observarmos o seguinte trecho de Oswald podemos ir ainda mais adiante:


"Tratava-se [a Antropofagia] de um rito que, encontrado também nas outras partes do globo,
dá a ideia de exprimir um modo de pensar, uma visão de mundo (...) considerada assim, como
weltanschauung, mal se presta à interpretação imoral que dela fizeram os jesuítas e
colonizadores" (1991, p.77). O autor nos lembra como o rito antropófago, que carrega toda
uma visão de mundo, não seria apenas praticado pelos Tupinambás, mas “pode ser encontrado
em outras partes do globo”, ou seja, não se trata de buscar a essência do espírito nacional a ser
61

resguardada, mas valorizar um modo de vida (ou de intensidade), presente nas sociedades
indígenas e em outros povos, que foi abafado pela colonização. Como diz Haroldo de
Campos, "sua ideia de Antropofagia não se encaminhava como a de ‘Anta’ para temas
exóticos de efeitos turísticos garantidos, mas vinculava-se à revolução tecnológica" (idem, p.
50). É uma crítica ao Ocidente que valoriza um modo de vida distinto do imposto pela
colonização, mas sem uma visão nostálgica, do retorno. Ele aponta para o futuro: “A
Antropofagia foi na primeira década do modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato
com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro.” (ANDRADE,
1972, p. 96)
Vimos como o grupo Anta busca fixar os elementos de uma identidade nacional,
fortalecendo este ser de características verdes e amarelas, enquanto a Antropofagia propõe
uma outra lógica (anti-)identitária. Diante disso, cabe perguntar: como se colocaria o
primitivismo de Mário de Andrade nesta configuração? Seria ele uma visão “intermediária”
entre as duas posições já abordadas? Poderíamos opor um primitivismo mário-de-andradiano
ao oswaldiano? Se sim, como se encaixa nesta equação o famoso Macunaíma (que segundo
os próprios antropófagos é um legítimo romance antropofágico)? Para começar a responder
essas questões vale ressaltar que não buscaremos explicá-las por detalhes biográficos, nos
quais perpassam intrigas pessoais dos autores – isto pode nos servir apenas
circunstancialmente. É verdade que o temperamento polêmico de Oswald de Andrade pode ter
influenciado nessa relação, entretanto, isto não nos parece ser o fundamental. Neste sentido,
acreditamos ser mais interessante perceber como estes autores constroem seus primitivismos:
baseados em quais princípios? permeados pelos ideais de nação? com qual relação com o
estrangeiro?
Iniciemos abordando o termo utilizado por Mário de Andrade ao criticar a estadia (e a
influência) dos antropófagos na Europa: “o mata-virginismo”. É sabido que o autor era um
vigoroso escritor de cartas (muitas publicadas pelo seu valor documental e literário). Estas
serviam como propagadoras do próprio movimento modernista, envolvendo, cativando uma
rede de escritores e intelectuais, afirmando e expandido as convicções do autor. Em uma
dessas cartas enviadas à Tarsila do Amaral (e de tabela a Oswald de Andrade, seu
companheiro na época), diz o escritor de Macunaíma:

Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés. E se fizeram futuristas! hi!hi!hi! Choro
de inveja. Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se
parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma.
Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes!
62

Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata virgem, onde não há arte negra, onde não
há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista.
Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. (AMARAL p.
369, 1975)

Sobre este curioso trecho podemos nos perguntar: o que seria essa Mata-Virgem? De
início, sabemos que ela não poderia ser encontrada em Paris, já que Mário criticava os amigos
pela demorada estadia. O autor se recusava a sair do país (só o fez por um brevíssimo período
na viagem pela Amazônia, quando chegou até Iquitos), mas podemos ver que essa não era
uma simples recusa, pois significava também rejeitar a assumida influência das vanguardas
europeias declarada pelos antropófagos. A mata-virgem é “voltar-se para si”, propondo, em
certo sentido, um movimento inverso do proposto pelo Manifesto Antropofágico, abocanhar o
outro, interessar-se pelo que não é seu.

Fonte: Exposição Na terra de Macunaíma. Mário na Rede, de Lasar Segal


.
Assim, podemos começar a entender porque Mário de Andrade nunca quis se declarar
antropófago. E, se os autores estavam juntos no início do modernismo, a partir do início da
segunda dentição o autor para de escrever para a Revista da Antropofagia. Começam, então,
as chacotas antropofágicas: “Quem faz discursos ao sr. Gomes Carlos, credo! Não somos nós,
antropófagos, que graças a Deus literatos não somos. É o senhor Mário de Andrade o cérebro
mais confuso da crítica contemporânea.”(Revista da Antropofagia, num 6) Aparecem termos
como burocrata, sisudo, confuso para se referir ao autor. As diferentes preocupações vão se
63

apresentando: Mário torna-se cada vez mais um pesquisador empenhado em colher registros
pelo Brasil. Nas suas viagens pelo país recolheu uma amplidão de dados etnográficos, junto a
isso foi se estabelecendo enquanto funcionário de instituições públicas, tendo conhecida
participação na criação do órgão de patrimônio do Estado. Os antropófagos passam a ter uma
postura irônica diante do “homem de Estado” Mário de Andrade. Além disso, não se
preocupavam com o recolhimento preciso de informações sobre os povos “tradicionais”, o
conhecimento destes era principalmente através de leituras.
Estabelecidas estas distinções, chega o momento de nos debruçarmos sobre o romance
(antropofágico?) Macunaíma, para em seguida podermos retornar para o Matavirginismo.
Mesmo com as críticas e afastamentos aqui levantados, o famoso Macunaíma é visto na
própria Revista como um romance antropófago. Começamos, então, a observar alguns
indícios que não nos permitem classificar como necessariamente “opostos”, ou “contrários” o
ideal antropofágico e Mário de Andrade.
64

Fonte: Macunaíma desce pelo mundo afora. Autor: Cícero Dias

Macunaíma, nosso anti-herói preto retinto, não nasce necessariamente do coração do


Brasil, mas justamente “do fundo do mato-virgem.” (p. 7) – expressa pelas árvores da pintura
de Cícero Dias. É devorando relatos e mitos de povos de fora do Brasil, que Macunaíma se
constitui, ganha força e falta de caráter. Nas palavras do autor: “O próprio herói do livro que
tirei do alemão Koch-Grünberg, nem se pode falar que é do Brasil. É tão ou mais venezuelano
como da gente e desconhece a estupidez dos limites pra parar na terra dos ingleses, como ele
chama a Guiana Inglesa. Essa circunstância do herói não ser absolutamente brasileiro me
agrada como o quê.” (1978, p. 191-192) O “homem de Estado” tão engajado em fortalecer um
projeto de nação brasileira não se mostra tão simplista assim: Macunaíma aquele que foi
visto, muitas vezes, como símbolo-síntese de uma identidade brasileira, ele próprio é furto
(assumido) e apropriação de outros povos e cosmologias. Uma lógica antropofágica, diríamos.
A mesma que faz com que os antropófagos declarem, diante do ambiente de tensão que já se
instaurava, que o livro, gestado concomitantemente ao Manifesto Antropofágico (mas de certa
maneira paralelamente a ele, já que Mário nunca se reivindicou antropófago) é um fruto do
próprio movimento. Estranho? Fruto do furto do furto... Antropofagia.
Macunaíma é incontrolavelmente poligâmico, namorador, passava dias (e enrascadas)
de “brincadeiras” com as cunhantãs... Viveria maravilhosamente bem no Matriarcado
antropofágico, praticando a poligamia. Outro fato digno de nota: logo no início do livro
aparece a mãe do herói, a índia tapanhuma. Mas, onde está seu pai? Ou melhor, será que
importa o pai? Macunaíma é ainda rei da preguiça, ganhou repercussões a frase repetida
durante todo o livro: “ai, que preguiça.” Adepto da malandragem e avesso ao trabalho, o
personagem nos lembra a importância do ócio. Ócio que é também fator essencial da alegria
no Matriarcado: só quando “os fusos trabalharem sozinhos” poderemos tirar proveito dos
verdadeiros prazeres da vida.
De fato, Macunaíma parece encaixar como uma luva em diversos preceitos
antropofágicos, contudo, isso também não se apresenta de forma tão simples. Depois de ir
para a terra dos homens de mandiocas, cheias de máquinas, passa por diversas aventuras,
mentiras, trapaças, brincadeiras e chega a um melancólico fim. Foram desastradas as
tentativas de recuperar a muiraquitã perdida, seus irmãos e amigos desapareceram no
caminho: “A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas.”
(idem, p. 186) O herói está triste e sozinho. Esquecido nas terras dos brancos e por toda a
65

parte, percebe que “morreu a vitória”, não pode tampouco voltar para a ilha de Marajó, não
faria mais sentido voltar: “Pra viver lá, assim como tinha vivido antes era impossível. Até era
por causa disso mesmo que não achava mais graça na Terra.” (idem, p. 181) Nem na cidade,
na vida capitalista, nem no mato-virgem, de onde viera, a existência não fazia mais sentido,
aliás, tinha sido ela mesma “um deixar de viver”. Só resta a Macunaíma ir para o céu,
desaparecer do mundo e virar estrela.
Vemos como a incompletude é a marca final da história do herói. Ao fim de sua
trajetória, parece não haver espaço para ele neste planeta. Carregaria, então, uma falta, o
sentimento do irrealizável. O que já era apontado no polissêmico subtítulo do livro: “o herói
sem nenhum caráter”. É, assim, pessimista o destino do personagem, o que o afasta do
otimismo presente na visão antropofágica. Para os últimos, o modo de vida antropofágico
encontra-se no futuro, é felicidade certa (movida pela agressividade, vale ressaltar).
Macunaíma não adere à sentença da antropofagia, que diz “a alegria é a prova dos nove”. A
alegria foi insuficiente... Os motivos desse fracasso ficam de certa forma no ar: falta de mata-
virgem? Opressão do mundo capitalista dos homens de mandioca? Dissertar sobre isso
caberia em outro trabalho. Para nós, fica a complexidade do autor e da sua relação com a
Antropofagia. A própria incompletude macunaímica também poderia apontar para uma
rejeição de completar a “identidade brasileira”: seria impossível fechá-la, terminá-la dentro de
um símbolo, uma história, um personagem – o que deixaria marcas de tristeza, mas também
abriria outras possibilidades e mesmo uma outra lógica identitária. Com esses breves escritos
já ficou claro que não cabe encaixar Mário em uma gaveta escrita “nacionalista”, “purista” ou
até “careta”. Por mais que o autor pudesse em alguns momentos fazer jus a essas
classificações, ele também se esquivava, devorava a Antropofagia e era devorado por ela.
Depois dessas considerações, já podemos situar melhor a Antropofagia literária entre
os primitivismos do seu tempo. Distancia-se profundamente do ufanismo do Anta, devora o
Macunaíma de Mário de Andrade. Carrega consigo tensões que demarcam os próprios
contornos do seu primitivismo específico: olhar para o passado ou para o futuro? Referir-se ao
índio em si ou a um modo de vida que pode ser encontrado predominantemente entre as
sociedades ameríndias, mas também em outras sociedades? Para abordarmos estas questões
cabe atentar para alguns trechos do Manifesto Antropofágico. Primeiramente, vamos observar
este pequeno escrito assinado por “Marxilar”, provavelmente uma das assinaturas de Oswald
de Andrade, que fazia uma brincadeira, juntando Marx + maxilar:
66

O índio é que era são. O índio é que era homem. O índio é que era nosso modelo. O índio
não tinha polícia, não tinha recalcamentos, (...) nem delegacia de ordem social, nem
vergonha de ficar pelado,(...) nem tráfico de brancas, nem Rui Barbosa(...) nem se ufanava
do Brasil.
Por que será?
O índio não era monogamo.
Depois que veio a gente de fora (por que?) (...) Tudo mudou, tudo ficou estragado. (...)
Então chegou a vez da descida antropofágica. Vamos comer tudo de novo. (2 dentição,
Diário de São Paulo 24/04/1929)

Neste trecho escrito já na segunda dentição, momento em que segundo Augusto de


Campos, a vertente antropófaga ganha maior definição, fica explícita a inspiração do
movimento na figura do índio. É no índio que estão as características de um modo de vida
positivo que foram “estragadas” pelo advento da civilização: a falta de Estado (e assim, a
ausência de polícia, delegacia e ufanismo), a liberdade (pois não tinha recalques, nem
monogamia). Totalmente distinto do índio reivindicado pelo grupo Anta voltado para a
construção de um Estado-Nação através do fortalecimento das suas instituições, o índio
construído pelos antropófagos não teria repressões nos âmbitos (que obviamente se misturam)
psicológico e social. A tarefa da Antropofagia literária seria recuperar esta vida saudável e
forte. No fundo, a Civilização não parece mais um grande empecilho, já que com a “descida
antropofágica” é possível “comer tudo de novo”. Ou seja, seria melhor se tivéssemos ficado
no modo de vida ameríndio, mas já que os europeus embarcaram por aqui, teremos que
devorá-los também. Observemos ainda o seguinte trecho:

O que me interessa pois nessa curiosa Europa que para não morrer se recolheu a única
trincheira que lhe restara, a do homem “primitivo” a fim dali partir – você verá – para
qualquer construção oposta à lamentável Babel da civilização ocidental católica puritana. O
que me interessa é só a “retirada” dessa civilização ocidental na direção moral e mental do
nosso índio. (ANDRADE, 1991, p. 42- 43)

Fica claro, então, um primitivismo que se opõe à modernidade nos moldes da


civilização europeia, que começa com a chegada dos portugueses, mas que se prolonga até a
contemporaneidade sob a forma de uma cultura colonizada (o que aparece principalmente nos
meios intelectuais tradicionais e bacharelescos). É contra este tipo de lógica que o
primitivismo oswaldiano declara guerra, o que não se dá simplesmente por uma negação, mas
através da afirmação de um modo de vida antropofágico:

Contra o servilismo colonial, o tacape inheiguára (...) Ninguém se iluda. A paz do homem
americano com a civilização europeia é paz nheengahíba. Está no Lisbôa: ‘aquella aparatosa
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paz dos nheengahibas não passava de uma verdadeira impostura, continuando os bárbaros no
seu antigo theor da vida selvagem, dados à antropofagia como dantes, e baldos inteiramente
da luz do evangelho’. (Revista da Antropofagia, Ano 1, num 1, p. 8)

O servilismo colonial é contraposto ao “tacape inheiguára”. A paz e harmonia que


aparentam reinar entre os povos americanos (nisso, podemos incluir tanto a produção artística
da época considerada como “arte de importação”, quanto à própria formação dos Estados-
nações na América, que são uma espécie de consenso velado entre estes e a civilização
europeia) esconderiam, na verdade, uma rebeldia subterrânea, um tendência à antropofagia, ao
modo de vida bárbaro, contrário à moral cristã. A tarefa dos antropófagos era fazer com que
essa força reprimida viesse à tona, arrancar a impostura da “paz nheengahibas”, ou seja,
combater diretamente a submissão colonial, transformando o tabu (o modo de vida
antropofágico reprimido pela civilização) em totem.
Diante de tantas referências à cosmologia e palavras indígenas coloca-se ainda a
questão se o primitivismo antropofágico proporia uma metamorfose em direção ao modo de
vida ameríndio, o que implicaria uma noção da cultura indígena enquanto essência a ser
alcançada. Vejamos o seguinte trecho: “Porque nessa nova filosofia que não foi inventada.
Nem importada. Mas, descoberta aqui mesmo, dominante, a ânsia da imaginação em busca de
novas formas.” (Revista da Antropofagia, Diário de São Paulo, 1/05/1929) Ao se referir à
filosofia antropofágica, Oswald afirma que ela não foi inventada (quer dizer, ela não é algo
totalmente novo), tampouco importada (o que remete a todo o debate da “arte de importação”
que reinava no cenário artístico e intelectual brasileiro enquanto dominação cultural), ela já
existia por aqui, expressa na figura do índio. Como dito por Gonzalo Aguilar, a principal fonte
de inspiração antropofágica seriam os indígenas, é neles que os antropófagos encontram
questões, reflexões, proposições a serem “roubadas”, ou nas suas próprias palavras elas
deviam ser “descobertas”. O que quer dizer que não bastava simplesmente recuperar o
pensamento indígena, mas seria preciso um trabalho, uma criação por parte dos antropófagos,
ansiosos que estavam pela “recuperação de novas formas”. Coloca-se aí uma tensão inerente
ao movimento de trazer à tona a filosofia ameríndia já existente, ao mesmo tempo em que
inventa, cria uma nova forma artística e política. Esta tensão se coloca ainda mais evidente ao
compararmos a última citação aqui feita, o trecho escrito por “Marxilar” também já citado,
com os seguintes escritos de Antônio de Alcântara Machado:

A geração actual coçou-se: apareceu o antropófago. O antropófago: nosso pai, princípio de


tudo. Não o índio. O indianismo é para nós um prato de muita sustância. Como qualquer
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outra escola e movimento. De ontem, de hoje e de amanhã. Daqui e de fora. O antropófago


come o índio e come o chamado civilizado: só ele fica lambendo os dedos. (Revista da
Antropofagia, Ano 1, num 1)

Aqui a filosofia indígena não aparece como um modo de ser a ser copiado. O
indianismo aparece como “prato de muita sustância”, uma referência, dentre outras possíveis.
É interessante como podemos observar neste pequeno trecho uma relação bastante respeitosa
com a cultura indígena (o que era incomum para a época). Ela pode ser equiparada a qualquer
escola ou movimento, o que também afasta, pelo menos em parte, a perigosa ameaça de
exotismo: o índio não é a figura perfeita e intocada que devemos idolatrar de forma intacta. É
uma filosofia importante e valiosa, mas que deve se misturar e ser misturada com outras
visões de mundo. Sobre isso, podemos ver o seguinte trecho: “Ora, se o japonez é de raça
mais brasileira que os ‘brasileiros’ descendentes de portuguez, negro, italiano, espanhol, etc...
por que resmungar a sua entrada na terra do Guarany? O Guarany é um irmão mais velho
dele” (Revista da Antropofagia, Ano 1, num 1, p. 5). Este artigo opõe-se à xenofobia expressa
contra os imigrante japoneses, provavelmente em São Paulo, e mesmo que carregue uma certa
visão essencializada do que seja ser “brasileiro”, que vem junto da preocupação com aquilo
que seria mais brasileiro e por isso teria mais direitos de habitar aqui (o que é sempre
colocado de maneira um pouco brincalhona), desconserta os próprios padrões do que se
poderia esperar de um primitivismo rígido. Pois, é sem dúvida um argumento curioso o de que
o japonês seria um parente mais próximo do índio e por isso não deveria ser discriminado. O
que se pode perceber é um descentramento da figura do indígena que se dá, talvez de forma
estratégica, para a noção mesma de antropofagia. Isto faz com que os antropófagos possam
devorar e valorizar as sociedades ameríndias, ao mesmo tempo em que seguem adiante.
Talvez a melhor maneira de seguir a própria filosofia ameríndia antropofágica, ou seja, partir
dela para ter a liberdade de abocanhar tanto o daqui, quanto o de fora, o de hoje, ontem e
amanhã. É neste sentido que os antropófagos modernistas podem servir-se tanto dos índios,
quanto dos civilizados (o que não quer dizer que não considerem as enormes diferenças e
valores entre estes).
Vimos, portanto, como o primitivismo antropófago nega os moldes da civilização
ocidental (o que não quer dizer que não possa devorá-la também), inspirando-se fortemente na
filosofia primitiva, mas para propor uma novidade, um futuro. Apropria-se de certos aspectos
cosmológicos, só que para construir um projeto político. Diferente da melancolia
macunaímica, aposta na Revolução Caraíba, uma mudança radical, uma utopia. Distintos do
conservadorismo do grupo Anta, constroem um índio, um antropófago subversivo e
69

irreverente. Conseguem livrar-se também de um primitivismo passadista, ou mimético em


relação ao índio, já que aqueles que devorariam o tabu poderiam ser: “Um índio que fala ou
qualquer outro antropófago de outro continente” (Revista Antropofágica: 2 dentição p. 6). É
verdade que os antropófagos se distanciaram bastante da realidade indígena, acreditando na
generalização do matriarcado (o que pouco acontecia entre as sociedades ameríndias por aqui)
e mal se preocuparam em conhecê-la pessoalmente, entretanto, apontam para diversos insights
(como vimos, também, na parte sobre Antropofagia literal e literária desta dissertação) que os
permitem seguir adiante, anunciando que o primado da alteridade permite sempre afirmar que
está na hora de devorar tudo de novo (e ainda lamber os dedos no final).

2.1.3 Por que a Antropofagia não é uma teoria da mestiçagem?

Após esses apontamentos sobre a visceral relação da Antropofagia literal e literária e a


construção do seu primitivismo, poderemos nos questionar como a Antropofagia se relaciona
com um paradigma tão caro ao mundo moderno. Faremos uma comparação da Antropofagia
oswaldiana em relação à política (e paradigma) da mestiçagem, tão presente na sua época e
ainda nos dias de hoje. Pensaremos se a alteridade antropofágica pode se adequar ao ideal da
mestiçagem, que por tanto tempo foi visto como sinônimo de mistura e democracia.
Vale ressaltar que ao tratarmos de mestiçagem podemos observar duas maneiras
completamente distintas de concebê-la. A primeira e mais clássica está diretamente vinculada
ao discurso do Estado-Nação, defendendo que a mistura de raças ou culturas resultaria na
formação de outro ente homogêneo. A segunda aparece na leitura de alguns autores como
François Laplantine e Giuseppe Cocco, que buscam identificar a mestiçagem enquanto gesto
produtor de devir, contrário à fixação em um novo conjunto homogêneo. Apesar de
considerarmos que essa última abordagem aponta para questões interessantes da dinâmica
cultural (seu aspecto transformador, criativo), trataremos mestiçagem como próxima à
primeira conceituação, por avaliarmos que foi com ela que a ideia ganhou força e se
desenvolveu vinculada aos mecanismos de poder. Como o próprio Giuseppe Cocco mostra, a
mestiçagem atrela-se ao discurso de Estado: “Estas reflexões são tanto mais importantes
quanto mais se lembra que a hegemonia do discurso da mestiçagem transformou-se em
discurso oficial, nacional, dito republicano, sobre a inexistência de racismo no Brasil.” (p. 13)
70

Concordamos com a ideia de que a mestiçagem foi apropriada pelos dispositivos de poder,
mas mais do que isso, já que, ao menos no caso do Brasil, este paradigma surge e se
desenvolve sempre vinculado à propagação das desigualdades e hierarquias. Por isso, nos
parece ser tão difícil desvinculá-lo destas, sem propor um outro paradigma. Mas, não nos
precipitemos, algumas explanações devem ser explicitadas antes de tudo.
Inicialmente, para situarmos melhor o ideal cabe fazermos um breve panorama,
identificando onde ele se insere, a quais problemas esteve vinculado. Sabemos que até o início
do século XX predominava o racismo científico entre os intelectuais no Brasil. A crença de
que a humanidade se dividia hierarquicamente em raças biológicas fundamentava a ideia de
nação brasileira que se constituía. Esta crença era compartilhada pela maior parte do meio
intelectual. Pode-se supor que existiram exceções esquecidas, como o personagem Pedro
Arcanjo, criado por Jorge Amado, em Tenda dos Milagres, um bedel apaixonado por livros
que desbanca as teorias raciais de seu tempo. Mas, sem dúvidas, o que predominou foi o ideal
da evolução e determinação biológica. Este ideal, no entanto, não permanecia sem divisões.
Como apontado por Sérgio Costa, a principal divergência entre os intelectuais deste tempo se
dava no âmbito da mistura de raças. Enquanto alguns achavam que a mistura só traria
degradação para a constituição da nação, pois as raças negra e índia iriam contaminar a raça
superior branca (como Nina Rodrigues), outros acreditavam que a mistura poderia ser
positiva, pois produziria um embranquecimento e consequente desaparecimento das raças
inferiores (como Silvio Romero). Não se trata aqui de fazer uma gênese aprofundada da
questão étnica e racial no Brasil, mas identificar como o ideal de mestiçagem se constituiu
imbrincado ao próprio discurso da construção da nação e como isto lhe dá uma conotação
específica que não pode ser desvinculada destas questões políticas. O que vimos foi que já no
início do século passado, o discurso da mestiçagem se apresentava junto com os debates em
torno da identidade nacional. E seja ele abordado de modo positivo ou negativo transmitia a
ideia de que das misturas de raças diferentes nasceria uma raça homogênea, em um caso,
embranquecida e por isso valorizada e no outro caso, negra ou índia e por isso rechaçada. Em
ambos os casos era o racismo e a superioridade branca que se sobrepunham.
É no início da década de 30 que começa uma mudança em relação ao termo. Gilberto
Freyre passa a ser conhecido por dotar a mestiçagem de sentido positivo, não porque poderia
embranquecer, mas sim pela própria mistura. Mistura essa que ganharia preponderância no
Brasil, já que diferente dos países de colonização inglesa, por exemplo, o português teria a
capacidade de se adaptar, flexibilizar e se misturar com o negro e o índio - o que também se
71

deu tanto pela falta de mulheres portuguesas, quanto pelo erotismo daquelas. Esta mistura
possibilitou uma integração que culminaria na formação do povo brasileiro. A mestiçagem
seria, então, traço formador e positivo do povo brasileiro, ou nas palavras do autor:

resultado de uma combinação nova de várias culturas que após um período mais ou menos
agudo de crise, caracterizado por antagonismos ou divergências de ordem cultural, tenha
atingido uma fase ou estado de interpretação fecunda de valores diversos daí resultando uma
cultura diferenciada das de qualquer das origens. (1952, p. 66)

Vemos como o debate não é mais baseado em argumentos biológicos, mas


principalmente culturais. Segundo Lilia Moritz Schwarcz: “O livro [Casa Grande & Senzala]
oferecia um novo modelo para a sociedade multirracial brasileira, invertendo o antigo
pessimismo e introduzindo os estudos culturalistas como modelo de análise.” (p. 12) Sabemos
que se de certa maneira (principalmente em relação aos seus predecessores) Gilberto Freyre
valorizou positivamente àqueles vistos como entrave à Civilização, não o fez sem percalços.
Como colocado pela autora: “Freyre mantinha intocados em sua obra, porém, os conceitos de
superioridade e de inferioridade, assim como não deixava de descrever e por vezes
glamourizar a violência e o sadismo presentes durante o período escravista.” (ibidem)
Enquanto valorizava algumas características destes povos, Freyre também empurrava para de
baixo do tapete as desigualdades e brutalidades. A nova raça brasileira advinda da mistura era
apreciada, mas parecia esconder a violência inerente à sua constituição e presente até os dias
de hoje. A colonização não se mostrava tão violenta, já que teria possibilitado uma mistura e
abertura não encontrada nos Estados Unidos. Sobre isso continua Scwharcz: “Senhores
severos mas paternais, ao lado de escravos fiéis, pareciam simbolizar uma espécie de boa
escravidão, que mais servia para se contrapor à realidade norte-americana.” (ibidem) Podemos
ver também nas próprias palavras do autor, em sua tese Social life in Brazil in the middle of
the 19th century:

À vista de todas essas evidências não há como duvidar de quanto o escravo nos engenhos do
Brasil era, de modo geral, bem tratado; e sua sorte realmente menos miserável do que a dos
trabalhadores europeus que, na Europa Ocidental da primeira metade do século XIX não
tinham nome de escravos. (FREYRE, 2000, p.103, apud SCWHARCZ, p. 17)

A ideia de uma escravidão branda, de uma suposta harmonia, passa a habitar o ideal da
mestiçagem. É a partir de então que ele toma mais força, passando a compor o discurso oficial
do Estado: somos brasileiros e mestiços, foi a mistura das três raças que resultou no
surgimento e na singularidade do povo brasileiro, povo não mais das raças tristes, mas
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destinado ao progresso. É interessante como situação semelhante é encontrada entre outros


países da América Latina - o processo histórico da colonização e formação dos Estados-
nações neste continente deixa suas marcas. Na Venezuela, por exemplo, José Kelly descreve
como a teoria da mestiçagem se desenvolveu enquanto política de Estado no século XX e
como a integração da figura do índio como participante e fundador da cultura nacional
acarretou na assimilação dos povos indígenas e sua consequente destruição: “El indígena era
reconocido como un componente del proceso histórico de mestización; proceso que a su vez
consumía las identidades en su desenvolvimiento y que había prácticamente acabado con los
pueblos indígenas.” (p. 8) De forma semelhante ao que passou aqui, quando se afirmou que o
mestiço era o verdadeiro cidadão, passa-se a adotar as políticas de assimilação daquele que
“ainda” não tinha se tornado mestiço. O que acontecia a maioria das vezes era o
embranquecimento destes outros povos, já que como o próprio Gilberto Freyre diz seríamos
“uma cultura brasileira de origem principalmente lusitana, com fortes elementos ameríndios e
africanos”. É a partir de um discurso da suposta diferença que se constituiu uma política de
integração, que resulta em um controle estatal cada vez maior dos povos indígenas.
Anthony Seeger, ao tratar das relações entre índios e Estado brasileiro, afirma que a
política indigenista não teve mudanças significativas: a tendência foi sempre a de um maior
controle do Estado. É verdade que, como dito pelo autor, no início do século XX, diante da
defesa de alguns cientistas como Von Ihering da eliminação dos povos indígenas, venceu a
visão positivista do movimento republicano, que resultou na criação do Serviço de Proteção
aos Índios (SPI) em 1910, buscando garantir a integridade das sociedades indígenas e sua
“espontânea” aderência às luzes da civilização. Diante do genocídio vence o etnocídio - diria
Pierre Clastres - e as consequências se encontram em um mesmo sentido: a destruição da
diferença.
Bom, dito isto, voltemos ao mote desta dissertação: diante deste complicado cenário,
onde se encontra a Antropofagia oswaldiana? Inegavelmente, a proximidade entre os ideais da
mestiçagem (o que inclui o pensamento de Gilberto Freyre) e o movimento modernista deve
ser mencionada. As referências elogiosas de Oswald ao escritor de Casa Grande & Senzala
aparecem: “há também a voz culta e poderosa do autor de Casa Grande, afirmando que a
Antropofagia salvou o movimento de 22” (1991, p. 105) ou “eis aí um livro [Casa Grande &
Senzala] que tenho chamado de totêmico, isto é, um livro que apoia e protege aquilo que
chamamos de nacionalidade” (idem, p. 197). Sem dúvidas, atravessou o modernismo a
73

preocupação com a identidade nacional e a suspeita de que ela poderia ser mestiça.
Observemos o poema:

brasil

O Zé Pereira chegou de caravela


E preguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão?
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
(ANDRADE, 1974)

Nele há a referência a formação da cultura nacional através da mistura das três raças. É
verdade que o próprio título do poema “brasil” encontra-se com letra minúscula, o que já
satiriza um possível ufanismo, mas ainda assim o ideal da mestiçagem aparece. O encontro
entre o Zé Pereira da caravela, o guarani da mata virgem e o negro zonzo originaria a síntese
(no último verso do poema): o Carnaval, marca alegre e singular desse povo (que remete ao
título, brasil).
É possível afirmar que modernistas e Gilberto Freyre convergem ao tentar definir
positivamente a cultura do “Novo Mundo”: não éramos simplesmente colonizados, com
resquícios mal desenvolvidos da cultura europeia, mas tínhamos especificidades vigorosas,
que deveriam ser valorizadas. Essa singularidade baseava-se principalmente na mistura de
raças (agora não mais biológicas). Entretanto, o modernismo antropófago mostra-se também
complexo, dando margem a outras interpretações – e uma outra perspectiva que agora será
explicitada nos parece condizer mais com o espírito antropofágico. Analisemos o trecho de
Giuseppe Cocco: “Ora, se as referências sistemáticas que Oswald faz a Freyre podem
explicar-se, talvez, pela conjuntura política da luta contra o nazismo e seus adeptos racistas
nos trópicos, elas não põem no mesmo plano político e teórico os dois movimentos.” (p. 20)
Gilberto Freyre busca a mistura para a assimilação dos diferentes em um: os antagonismos
iniciais e diferenças se dissipariam, promovendo uma nova cultura integrada. Já o paradigma
antropofágico busca devorar o outro, mas não em uma integração harmônica. O interesse pela
alteridade é um gesto produtor de multiplicidade, ao mesmo tempo em que combate a
violência da colonização. É neste sentido que Cocco sinaliza para uma diferença política entre
ambos, argumentando que a Antropofagia oswaldiana se estabelecia por uma postura de
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batalha, “um campo revolucionário, campo de uma outra modernidade; [enquanto] para
Freyre, a mestiçagem é terreno de uma conciliação, da gestão fina de um “luxo de
contradições”, da hybris das relações carnais que aproximavam a Senzala à Casa Grande, o
escravo, ao senhor.” (ibidem) Neste sentido podermos dizer que o ideal do bárbaro
antropófago, devorador desabusado da Civilização, não é compatível ao mestiço harmônico
defendido por Freyre. O próprio Oswald de Andrade se distancia destes pensamentos ao
afirmar:

Havia (em Freyre) uma tendência ao luso, com o objetivo de elevar o branco suspeito da
primeira América ao padrão de nacionalidade. Uma espécie de réplica e contraponto ao
orgulho mameluco dos paulistas de quatrocentos anos. Ambos não percebendo que os neo-
imigrados – sírios, italianos, judeus – trazem para cá milênios ricos de civilização e de
atividade criativa e, sobretudo, o brasão simples do trabalho (ANDRADE, «Atualidade d’Os
Sertões », Feiras Das Sextas. Obras Completas, Globo, São Paulo, 2000, p. 120, apud
COCCO)

Nesta simples citação, Oswald consegue marcar uma grande distância do paradigma
Freyriano. Primeiro, ao criticar “uma tendência ao luso” para elevar o “branco suspeito” como
modelo de nacionalidade, o antropófago já atenta para as relações de poder e dominação
exercidas pelo branco não apenas na “primeira América”, mas que se perpetua enquanto
próprio padrão de nacionalismo. E, vai além, já que como vimos, se Oswald defende a
mistura das culturas, não é para a defesa de uma outra cultura (seja ela nacional ou o que for)
pura e intocável, mas pela crença na importância da alteridade (que já foi amplamente
abordada neste capítulo). Desprendido do purismo nacionalista é possível tornar-se outro
através do contato com sírios, italianos, ou judeus. É possível (e mais do que isso, necessário)
atentar para a atividade criativa destes ou de qualquer outro povo, pois o importante não é
mais aquilo de autêntica e exclusivamente “nosso” (nem mesmo “nossa” mestiçagem), mas a
relação estabelecida com a diferença.
Neste sentido, é de grande interesse a diferenciação, proposta por José Kelly, entre os
dois projetos presentes no contexto venezuelano: “Son estas dos facetas de un mismo
encuentro de proyectos que podríamos llamar: la fusión mestizadora (del estado) y la
hibridación diferenciante (indígena).” (p.13) Abordemos primeiro a fusão mestiça feita pelo
Estado, o que nos permitirá chegar até os dias de hoje. O autor reconhece que ocorreram
mudanças significativas da parte do Estado: se até o governo de Hugo Chavez predominava
uma política explicitamente mestiça e destruidora, neste outro momento foi possível valorizar
o indígena como elemento de resistência, que deveria ser reparado pelas opressões sofridas.
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Esta nova política multicultural, apesar de seus avanços, ainda atrelava a esperada autonomia
indígena ao Estado e de certa maneira continuava o ideal da mestiçagem: “Un proyecto
multicultural en donde el estado y la tradición occidental definen lo que cuenta como cultura
y la desvincula del contexto social de su producción, esta condenado a ser un proyecto
mestizador.” (idem, p. 11) Embora não exista espaço para aprofundar a questão, podemos
dizer que no Brasil também se manteve a política multicultural/mestiçagem (de forma ainda
mais nociva que na Venezuela, já que o nacional-desenvolvimentismo ganhou mais força por
aqui). Sobre os perigos desta política que se mantem, diz José Kelly:

La idea de mestizaje corresponde con un proceso, una progresión hacia un estado final: la
persona, clase o nación mestiza. El mestizaje no tiene retorno, se supone que produce un tipo
distintivo de gente que elimina la relación entre las gentes originarias que terminan siendo
consumidas por la mezcla que a su vez resulta en una identidad nueva y compartida. (...)La
asimilación, paso histórico secuencial al mestizaje, opera por la aproximación del indígena a
un ideal de relación político-económica con el estado cuyo patrón es la población mestiza.
(idem, p. 13)

Agregando as explanações acerca do caso venezuelano e os comentários em torno do


pensamento de Freyre (o que inclui o debate da época com os modernistas) podemos chegar a
alguns arremates sobre o ideal da mestiçagem. Pode-se concluir que este ideal carrega consigo
duas violências: o viés integrador (e consequentemente assimilacionista) que busca apagar as
diferenças, ao mesmo tempo em que esconde as hierarquias e a dominação atrás da roupagem
de uma mesma nação mestiça. E é justamente combatendo estas violências que se estabelece a
Antropofagia oswaldiana: “Um documento do jesuíta Montoya, autor de um livro chamado A
Conquista Espiritual, dá a medida do que foi a incompreensão e a brutalidade branca dos
conquistadores. Os jesuítas, que os acompanharam como guias, trataram de imediatamente
impingir a doutrina cristã aos nativos, fazendo traduzir para a língua tupi os mandamentos de
Deus. Não tomando o menor conhecimento da vida e dos costumes dos indígenas”
(ANDRADE, 1991, p. 283). O encontro dos portugueses com os povos indígenas não teria
resultado na mistura mestiça harmoniosa, mas em opressão e violências, na tentativa de
apagamento da diferença, de um intenso modo de vida: “Os homens e as mulheres felizes, que
em plena nudez desconheciam a mulher do próximo e tenham não o dia do ócio, o domingo,
mas o ano do ócio, viram seus hábitos imediatamente brutalizados e invertidos pelo ócio
roupeta. Não faltaram tragédias nesse bom dia europeu às tribos desprevenidas da América.”
(ibidem) Como dito por Carlos Fausto, o índio modernista contra-catequese se opõe à
representação do índio missionarizado e aculturado, presente no discurso assimilacionista de
76

seu tempo. O Antropófago denuncia a brutalidade e hierarquia do homem branco colonizador,


ao mesmo tempo em que afirma que o índio não estava “vazio” de cultura, mas tinha um
modo próprio de vida que deveria ser valorizado e não integrado.
É chegada a hora de abordarmos, então, o segundo termo da diferenciação proposta
por José Kelly: a hibridização diferenciante. O autor ao se debruçar sobre os Yanomami
percebe como eles teriam uma teoria da anti-mestiçagem não voltada para a fusão de
identidades, mas para a constante multiplicação da diferença. Sobre isso nos diz o autor:

los yanomami entonces no constituye un esfuerzo por mestizarse y fundirse con la sociedad
envolvente, por el contrario, la relación entre yanomami y criollos debe permanecer para que
los yanomami del Orinoco puedan alternar entre las posiciones de ser yanomami y ser
criollo. Así pues, en lugar del consumo de identidades en fusión mestiza estamos frente a la
adición de una forma de alteridade. (p. 14)

Ficam claras as proximidades entre a “hibridização diferenciante” yanomami e a


proposta antropofágica34. Ambas posturas são voltadas para a alteridade e resistentes à
política de fusão do Estado, o que, como bem ressaltado por Kelly, não significa ser mestiço
sem saber, mas sim conceber uma outra teoria, teoria da anti-mestiçagem, da modificação.
Rejeitando a integração e o apagamento das diferenças, não interessa a Oswald uma
modernidade do ponto de vista do Estado, mas sim uma modernidade caraíba, que possa
engolir, o que há de ser engolido do ocidente, só que para produzir o múltiplo e não uma
integração homogeneizadora. É a proposta de outra teoria (que carrega como qualquer teoria
suas consequências políticas), teoria voltada para alteridade, para a transformação. Podemos
dizer uma teoria da hibridização diferenciante, onde a mistura não interessa pela semelhança,
mas pela diferença.
Vemos como a alteridade antropofágica (e suas máximas e questões já trabalhadas
neste subcapítulo) podem apontar para caminhos distintos do ideal da mestiçagem. Inícios de
apontamentos de uma alter-modernidade..

34
As relações entre as sociedades ameríndias e a Antropofagia oswaldiana foram melhor abordadas no início
deste sub-capítulo.
77

2.2 Modernidade e Antropologia

Jeca Total deve ser Jeca Tatu


Um tempo perdido
Interessante a maneira do tempo
Ter perdição
Quer dizer, se perder no correr
Decorrer da história
Glória, decadência, memória
Era de Aquarius
Ou mera ilusão
(Jeca total – Gilberto Gil)

Depois de analisarmos como a questão da alteridade perpassa a Antropofagia literária,


poderemos começar a desenhar a proposta de alter/anti-modernidade35. Pois é a partir da sua
concepção e da importância dada ao Outro que Oswald de Andrade delineia o modo de ser
antropofágico. Apropria-se da filosofia ameríndia para propor um projeto político, no qual usa
e abusa também de outras teorias socialistas, tanto utópicas, quanto libertárias. Já tendo
abordado a sua relação com a teoria marxista, abordaremos agora sua relação com estas duas
tendências do socialismo, buscando analisar o seu Socialismo Caraíba, sua outra proposta de
modernidade (deslocada da concebida como "classicamente" ocidental). Isto nos levará a
pensar como a Antropofagia relaciona-se com o ideal de Brasil (considerando que a
construção da nação é um dos marcos do paradigma moderno).
Para começar este capítulo cabe nos servirmos do conceito de literatura menor
proposta por Deleuze e Guatarri (2003). Este nos permitirá compreender explicitamente (o
que já vem sendo anunciado desde o início desta dissertação) como a Antropofagia
oswaldiana reveste-se de um caráter eminentemente político, atravessada por um devir-menor,
que opõe a característica oprimida à característica opressora da língua, negando a "língua de
Estado", "língua oficial" (como veremos no desfecho deste capítulo: sobre ser ou não uma
teoria do Brasil). Por uma literatura menor é que Oswald de Andrade constrói sua alter-

35
Podemos distinguir duas acepções de modernidade apresentadas neste trabalho: uma diretamente vinculada à
civilização ocidental, com diversas características apontadas ao longo destas páginas, e outra que diz
respeito à alter-modernidade proposta pela Antropofagia, esta estabelecida pelo ideal do já tínhamos e da
vida como devoração. Entre ambas apresenta-se um corte epistemológico e ontológico, mas não
necessariamente uma relação dicotômica como veremos na conclusão desta dissertação.
78

modernidade (menor?). A primeira característica do conceito criado por Deleuze e Guatarri


seria estar dentro de uma língua maior, só que desterritorializando esta. Ou seja, a literatura
menor não criaria uma outra língua, mas seria uma língua construída por uma minoria dentro
de uma língua maior (como o português, enquanto língua de Estado). Neste sentido, podemos
destacar tanto a influência ameríndia, já abordada aqui, que aparece abundante em
Macunaíma (romance roubadamente antropófago), quanto à construção de diversos poemas já
citados, Erro de Português, Vício na fala, e outro que pretendemos abordar agora, O Santeiro
do Mangue, nos quais toda a construção literária se baseia na adoção de elementos
"populares", considerados "cheios de erros", em oposição à "língua culta". Isto permite ao
autor usos menores dentro do português.
Outra característica das literaturas menores é que tudo nelas é político, até mesmos as
questões mais individuais estão ligadas a um imediato político. Como dito pelos filósofos: "A
questão individual ampliada ao microscópio torna-se muito mais necessária, indispensável,
porque uma outra história se agita no seu interior. É neste sentido que o triângulo familiar se
conecta com outros triângulos, comerciais, econômicos, burocráticos, jurídicos, que lhe
determinam os valores." (idem, p. 39) Sendo assim, não cabem em uma literatura menor
dramas pessoais remoídos e desligados das questões políticas que se enredam na sociedade.
Esta característica liga-se à seguinte: as condições de uma literatura menor não são dadas por
uma enunciação individual, mas sim por uma enunciação coletiva. Quer dizer, "o que o
escritor diz sozinho já constitui uma ação comum, e o que diz ou faz, mesmo se os outros não
estão de acordo, é necessariamente comum" (idem, p. 40). Em relação a estes aspectos,
podemos apontar inúmeros elementos na Antropofagia oswaldiana. A começar pelo próprio
Manifesto Antropofágico, quando analisamos a máxima "só me interessa o que não é meu"
percebemos que esse meu não trata de um indivíduo descolado das questões coletivas. Este
meu interesse (com aspirações de chegar até a "Lei do homem") desdobra-se
instantaneamente para o nós (presente implicitamente em todas as orações iniciadas por já
tínhamos) e indica o caráter político do Manifesto: ele não busca modificar as questões
profundamente interiores, nem definir um "mestre" escritor genial daquelas palavras, mas sim
despertar as forças antropofágicas presentes nos povos antes colonizados (quiçá nos povos do
mundo). Esta força antropofágica aborda uma série de questões entrelaçadas na sociedade: um
combate às forças patriarcais, ligado à posse contra a propriedade, vinculado à valorização do
bárbaro em oposição ao modo de vida civilizado. Neste sentido, nenhuma linha do Manifesto
(mesmo se escrita em primeira pessoa) pode ser desvinculada dessas questões políticas que
perpassam a sociedade de seu tempo (e ainda do nosso tempo).
79

Vale nos debruçarmos também sobre o poema "Cântico dos cânticos", no qual Oswald
de Andrade canta seu amor a Maria Antonieta D'Alkmim, a despeito das convenções sociais
que se impunham. Este poema, que poderia ser apenas uma declaração de amor individual,
repetindo os moldes românticos, liga-se a todo um imediato político. Em plena segunda
guerra mundial, a defesa da mulher amada vai misturando-se a defesa de um outro destino
para a humanidade. Como vemos no seguinte trecho:

Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo mundo
Corromper o polo
Estancar a sede que tenho d'outro ser (...)
Resiste
Defendendo
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade
(ANDRADE, 2012, p. 71)

O chamado de amor confunde-se com uma marcha de guerra contra as forças nazi-
fascistas, que impossibilita a sobrevivência da humanidade e da própria paixão do eu-lírico. A
paz final e a própria concretização do amor anunciada no trecho, "Viveremos o corsário e o
porto/ Eu para você/ Você para mim", só é possível com o grande desfecho do poema que
anuncia a "os brados da vitória de Stalingrado"(ibidem). Haroldo de Campos analisa como a
vivência amorosa une-se às questões políticas pelos próprios aspectos textuais, internos ao
poema, percebendo como estes dois último trechos estão vinculados "por aquela projeção, na
camada sonora, da técnica de repetições que, na dimensão estético-semântica constitui a
tônica estilística do poema: 'mim' repercute em 'Alkmin', assim como 'brados' ressoa em
'assombrados' e ricocheteia em 'Stalingrado' (as formas de redundância aqui são o eco, a
aliteração e a rima eterna e interna)" (CAMPOS, 2012, p. 63) Em suma, o encadeamento da
questão individual com as questões coletivas se dá inerentemente, tanto no âmbito interno
como demonstrou Haroldo de Campos, quanto no âmbito externo do poema. A realização do
amor, enquanto vontade individual, só se faz possível com a vitória de Stalingrado, enquanto
vontade coletiva.
Outro poema que nos permite observar a construção de um literatura menor é o
Santeiro do Mangue. Escrito na transição da militância no Partido Comunista para voltar-se a
uma Antropofagia filosófica, o poema transborda todas essas tensões e é todo ele permeado
80

pela política. Sua poética é construída por expressões populares ("nacê", "famia", "berganhá",
"amô", "maió", dentre muitas outras). Nele, nenhum drama pessoal (são alguns descritos no
poema) pode se separar do retrato iminentemente político e crítico à sociedade. O romance de
Seu Olavo e Eduleia se passa no Mangue, cenário de prostituição e homicídios. Como dito
pelo "estudante marxista", personagem que explica sociologicamente o local do Mangue
dentro da sociedade capitalista-patriarcal: "Mas o que importa a uma sociedade é possuir e
manter o seu esgoto sexual. A fim de que permaneça pura a instituição do casamento. Para
que não seja necessário o divórcio. E vigorar a monogamia e a herança. A burguesia precisa
do Mangue." (ANDRADE, 2012, p. 46) Se o personagem do estudante aparece de certa
maneira deslocado da narrativa dos personagens do Mangue - o que já pode nos apontar uma
crítica da situação do militantes comunistas em relação aos meios populares -, de maneira
também um pouco cômica ("trepado nos ombros do Cristo do Corcovado, tomando de um
alto-falante"), é ele também que aponta para interpretações que parecem coincidir com a
crítica do autor à situação da sociedade patriarcal. O Mangue carrega a degradação máxima da
Civilização à qual se opõe o autor, no coração da cidade, no cerne do capitalismo, é
constituído como sinônimo de horror, nele o amor não pode acontecer (como demonstra o
final trágico do casal). Ao mesmo tempo, o Mangue parece conter também elementos do
Matriarcado (como a exacerbação dos desejos sexuais) que mesmo que contaminados pela
lógica patriarcal podem funcionar como uma forma de resistência, pois não se normatizam
completamente, mostrando as próprias contradições da normatividade do Patriarcado. A
sexualidade matriarcal (poligamia) funcionando dentro da lógica patriarcal (o que resulta na
prostituição) mostra os problemas da monogamia na sociedade capitalista. Atravessando o
amor interrompido de Olavo e Eduleia está toda essa complexa construção política, ousada
tentativa de literatura menor, tratando dos esquecidos amores e dias do Mangue.
Mas, o autor ainda vai além. Não se atém apenas à crítica a situação decadente do
Mangue. Há de chegar o dia em que ele se acabe, vencido pelos "heróis em defesa da
liberdade". A literatura menor antropofágica não consegue se furtar de apontar para outros
caminhos e anseios. Sem se desprender das questões de seu tempo (cada questão individual
está vinculada a um imediato político), a Antropofagia aponta para a mudança futura. É nesse
sentido que construiremos esse capítulo: buscando compreender como Oswald de Andrade
constrói e propõe essa "outra-modernidade", junto da controversa (e utópica?) "Revolução
Caraíba". O que passa por um caráter marcadamente utópico, como veremos na parte 2.2.1,
por se propor contra o estado, como veremos na parte 2.2.2 , e desvinculando-se de ser
81

apenas uma teoria do Brasil (isto permite também que falemos de uma outra modernidade de
maneira geral e não apenas brasileira), como veremos na parte 2.2.3.

2.2.1 Pedaços de Utopia: Socialismo Caraíba

Tristes os caminhos se não fora a presença distante das estrelas.


(Das utopias – Mário Quintana)

A Utopia nos remete para uma multiplicidade semântica: delírio, sonho distante,
nostalgia de um passado escapulido, um futuro inalcançável, esperança... Dentre estes tantos,
podemos identificar alguns que sobressaem. O termo foi criado por Thomas More como
sinônimo de sociedade ideal. Através da Utopia era possível pensar em outra sociedade
distinta daquela solidamente estratificada em que vivia o autor, o que continuou a ser feito
depois por uma série de autores em diferentes sentidos. Vemos também a crítica da Utopia
feita pelo socialismo científico, que lhe dá um sentido cômico e ingênuo. A política
dispensaria a Utopia, pois já teria como bastião a razão, a análise científica, baseada nas
regras de economia gerais. Recuperando o velho (e sempre atual) conflito entre os socialistas
utópicos e científicos - vale lembrar que essa distinção é estabelecida a posteriori dos escritos
82

dos primeiros, como forma de agrupar e desqualificar estes pensamentos que não se
adequavam ao método materialista -, é inegável que aqueles considerados utópicos padeciam
de uma enorme distância dos trabalhadores. Como dito por Jean-François Véran: “Saint-
Simon pertencia à alta nobreza, Owen era um chefe de indústria, Fourier era um
comerciante.” (tradução minha, p. 165). Apesar de seus interesses em diminuir as
desigualdades da sociedade capitalista que se formava, estes socialistas pareciam acreditar
que as transformações viriam a partir de pequenas experiências exemplares, situadas, de certo
modo, distantes dos conflitos e contradições que se constituíam. Fourier, por exemplo,
acreditava que ao conseguir estabelecer os Falastérios, onde reinaria a ordem social
harmônica e perfeita sem a repressão das paixões imposta pela civilização, eles rapidamente
se espalhariam por toda sociedade, por serem exemplos tão eficazes. Neste sentido, podemos
reconhecer que haveria certa ingenuidade neste tipo de proposta. É de fato importante o
chamado de Marx e Engels para a concretude da luta política, do operariado esmagado nas
fábricas. Entretanto, este grito contra a Utopia também levou para caminhos tortuosos.
Junto do marxismo positivista, estabeleceu-se, no regime soviético, uma batalha anti-
utopista: era imperativo seguir apenas a interpretação materialista áspera do partido, baseada
no pragmatismo, nas puras necessidades da burocracia estatal. Assim, foram abatidas vidas e
sonhos. A própria arte advinda do ímpeto da Revolução de 17, proclamada pelos futuristas, foi
destruída pelo “realista” Realismo Socialista. Este ideal contra a Utopia também pode ser
visto na lógica capitalista. Segundo esta, seria preciso atentar apenas para as necessidades do
mercado e individualistas. Nada mais anti-utopista do que a teoria da escolha racional,
segundo a qual nossa existência seria resumida a decisões tomadas por desejos individuais e
pragmáticos.
Se a Utopia por alguns momentos foi um ideal distante dos problemas concretos da
sociedade, ela também se mostrou essencial enquanto força contrária a estruturas autoritárias
e conformistas. Neste último sentido, a Utopia não nos leva para fora do mundo, mas imbuído
dele, nos chama a resistir. Podemos dizer que o Antropófago que aqui tratamos, aponta para
este aspecto, afirmando, no seu ensaio A marcha das Utopias, que Utopia não é apenas sonho,
mas protesto. O autor, considerado por Luiz Costa Lima como um herdeiro da Poética da
Utopia, escreve este texto após sua ruptura com o Partido Comunista. Para o crítico, Oswald
foi um dos primeiros a fazer o resgate da Utopia em uma época em que pouco se falava sobre
a dimensão revolucionária desta. Ele recupera a tradição utópica do socialismo contra o
burocratismo estalinista e o positivismo. Além disso, podemos dizer que desvia-se da crença
na vitória do capitalismo (e do individualismo pragmático e necessário), pois se o socialismo
83

deveria passar pela Utopia, a Utopia também não poderia passar sem o socialismo, opondo-se
ao “utilitarismo mecânico e mercenário” vindo do Norte.
Não à toa observamos muita semelhança entre os ideias oswaldianos e os de alguns
socialistas utópicos. Para citar um exemplo emblemático, vemos que os escritos de Fourier
trazem, como em Oswald, uma forte crítica à Civilização moderna repressora das paixões e
instintos. Para o autor, a monogamia seria uma perversão, contrariando os instintos dos
homens. Em todas as sociedades existiria a poligamia, mas só na Civilização isso se daria de
forma reprimida e hipócrita, o que levaria a sentimentos egoístas de propriedade. Sem se
preocupar em ser tachado de imoral, diz o autor: “Qu’importe qu’on atteigne à ses buts pour
des voies dites immorales quand il est certain que les voies dites morales ont conduit aux buts
opposés, à la pauvreté et la discorde, fruits constants de la Civilisation.“(p. 78) Libertando-se
das assertivas morais, a sociedade ideal, construída nos Falastérios, alcançaria a harmonia
plena através do amor compartilhado.
A Utopia oswaldiana rouba dos socialistas utópicos a imagem de uma sociedade do
prazer, sem as repressões impostas pela civilização, sem a figura do patriarca da família
monogâmica. Entretanto, há mais a ser dito. Bem distinta da sociedade ideal harmônica,
desejada por Fourier, a Antropofagia, o ser enquanto ato puro de deglutição, nos traz o
conflito. O conflito seria constituinte da relação entre os seres - comer o outro não parece uma
ideia muito harmoniosa – e da relação com Deus (inimigo sacro). É no combate pelo existir,
pelo perseverar, que podemos exacerbar o princípio de prazer. Sem isso, acabamos por nos
tornar ressentidos, esmagados pela força da civilização amarrada ao princípio de realidade
(como é dito no Manifesto Antropofágico, “a realidade cadastrada por Freud”). Neste sentido,
podemos dizer que a Antropofagia consegue afastar resquícios messiânicos presentes nos
escritos de alguns socialistas utópicos. Não seria uma nova sociedade perfeita e harmônica
que iria surgir, mas ela também poderia carregar seus conflitos.
Além disso, esta ênfase no conflito ganha uma dimensão especial, pois ela aparece
fortemente na luta contra o colonialismo, na valorização do bárbaro. Como dito por Oswald
no texto já citado: “A não ser A República de Platão, que é um estado inventado, todas as
Utopias, que vinte séculos depois apontam no horizonte do mundo moderno e profundamente
o impressionaram, são geradas da descoberta da América“ (1970, p. 151). Não só a Utopia
seria uma força anti-civilizatória, como defendido por Fourier, mas ela existiria apenas pelo
contato com o bárbaro. Foi o encontro com o modo de vida do homem da América que
possibilitou que Thomas Morus pensasse na possibilidade de uma outra sociedade distinta:
84

Foi de um contato que teve Thomas Morus na Flandres, conforme relata com um dos vinte e
quatro homens deixados na Feitoria de Cabo Frio por Américo Vespúcio, que se originou a
criação de sua Ilha da Utopia e o seu entusiasmo por uma espécie de sociedade que divergia
da existente e viria liquidar as pesadas taras medievais ainda em vigor. (idem, p. 149)

Não apenas o criador do termo Utopia teria sofrido a influência da alteridade dos povos
desnudos, como também Campanella, em Cidade do Sol, se remeteria a um armador genovês,
supostamente Cristóvão Colombo. Estes autores criticavam os privilégios de grupos sociais,
que podiam ser dotados do ócio divino, mas, segundo Oswald, para defender o ócio selvagem,
de uma sociedade sem desigualdades. Nesse sentido, a guerra entre Portugal e Holanda seria
uma guerra utópica, pois não teria sido ganha por nenhuma dessas nações europeias, mas sim
pelo índio Poty, pelo modo de vida bárbaro: “Na Guerra Holandesa vencia uma compreensão
lúdica e amável da vida, em face de um conceito utilitário e comerciante. O Brasil compusera-
se de raças matriarcais que não estavam distantes (...) dos sonhos de Morus e de Campanela.
Era o ócio em face do negócio.” (idem, p. 184) É inegável que as referências históricas
utilizadas são um tanto carentes de precisão empírica. No entanto, atentemos para a
interessante apropriação utópica feita pela Antropofagia oswaldiana. O autor recupera o
socialismo utópico contra o socialismo científico, mas não somente isso, pois ele o dota de
uma força anti-colonial. E, a partir disso que pode propor a máxima: “A geografia das Utopias
situa-se na América.” (idem, p. 151) Nós já tínhamos a Utopia e ela deve ser recuperada para
esta alter-modernidade antropofágica.

2.2.2 Contra o Estado

Estou preso à vida e olho meus companheiros/ Eles estão taciturnos, mas nutrem
grandes esperanças.

(Mãos dadas – Carlos Drummond de Andrade)

Mas não convém ter ilusões, independente da boa vontade ou não do sujeito que
provisoriamente dirige a máquina estatal.

(Sociedade contra o Estado – Pierre Clastres)


85

Abordada a dimensão utópica da Antropofagia oswaldiana, vamos nos debruçar sobre


o seu caráter libertário. Antes de tudo, é importante ressaltar a distinção entre os próprios
socialistas utópicos e os libertários. Muitas vezes os últimos foram taxados de utópicos pelos
socialistas ditos "científicos" como forma de desqualificá-los. Já abordamos alguns autores
utópicos, sobre os ideais libertários vale dizer que os entendemos enquanto uma teoria
eminentemente contra o Estado (veremos o sentido desta noção no decorrer do capítulo), o
que não necessariamente é equivalente a ser utópico. Na relação de Oswald de Andrade com
estas tendências podemos dizer que o autor as recupera para criar seu próprio "socialismo
caraíba", que se opõe fortemente ao marxismo positivista (tão marcado pelo racionalismo
ocidental e pela lógica do progresso). Para tratarmos da dimensão contra o Estado desta alter-
modernidade, pensaremos a relação da Antropofagia com a teoria e o conceito de Sociedade
contra o Estado proposta pelo antropólogo Pierre Clastres. Isto nos permitirá qualificar
melhor o que é ser contra o Estado, a partir da perspectiva de uma teoria também fortemente
marcada pela filosofia ameríndia (como o é a do antropólogo francês). Perceberemos, assim,
como diferente da metafísica ocidental, baseada no Um, apresenta-se outro tipo de metafísica
antropófaga.
Pensemos, primeiramente, nos problemas que mobilizam os autores, o que não
significa aprofundar detalhes bibliográficos, mas ver como ambos construíram suas obras em
resposta ao mundo que viviam, como foram resistentes a seu tempo. Oswald é de uma época
um pouco anterior à Clastres, entretanto, sua vivência, após a ruptura com o Partido
Comunista, de desilusão com o marxismo ortodoxo, o leva (ainda mais do que antes) a ideais
libertários de crítica ao Estado. Junto a esta crítica está uma volta (mais intensa) à
Antropofagia, uma volta à filosofia primitiva. Pierre Clastres, engajado na luta política da
esquerda libertária criticava também as formas estatais autoritárias da URSS e as sociedades
primitivas o permitiam compreender que Estado não é sinônimo de sociedade, nem condição
desta.
Perceber como estes autores estavam ligados aos problemas de seu tempo não
significa reduzir a obra destes a mera consequência de um determinado contexto histórico36.
Como o personagem Claudio, presente em La borra del café do escritor uruguaio Mário

36
Neste sentido concordamos com a colocação de Pierre Clastres: “E nada mais equívoco, também, do que
este obstinação erudita em reduzir um pensamento ao que se proclama à sua volta, nada mais obscurantista
do que essa vontade de destruir o pensamento pelo triste recurso ás ‘influências’.” (2011, p. 160)
86

Benedetti, comovido, odiou o ódio do lançamento das bombas atômicas de Hiroshima e


Nagazaki. Foi a partir deste envolvimento que criou uma pintura: “Entonces quise representar
la hecatombe en abstracto, sólo com colores, líneas, luces, cerrazones, sin presencia ni
ausência de seres humanos, sólo como estado atroz del ánimo, como si el alma humana, y no
pobres cidades, hubiera sido victima de este apocalipses.” (p.204) Estas obras não são
produtos “naturais” de seu tempo, mas criação e resistência neste. Estavam presos à vida, aos
problemas de seu mundo - e como não estar?
Vale ressaltar que ao dizermos que os autores estavam presos às questões de suas
sociedades, não significa necessariamente dizer que julgavam sociedades distintas por seus
próprios valores. Por algumas vezes, eles receberam críticas, foram considerados
etnocêntricos por generalizar empiricamente concepções utópicas das sociedades primitivas, o
que seria apenas projeções de velhas utopias Ocidentais. Sobre isso, trata o Posfácio de
Eduardo Viveiros de Castro ao livro Arqueologia da Violência, que responde a estas críticas
invalidantes e acredito que esta resposta cabe tanto à teoria clastriana quanto à oswaldiana. No
que tange à crítica às "utopias anarcônticas ocidentais", o autor nos lembra o quanto elas
próprias devem ao encontro com o Novo Mundo37. Como aponta o próprio Oswald de
Andrade: “As Utopias são portanto, uma consequência da descoberta do Novo Mundo e
sobretudo da descoberta do novo homem do homem diferente encontrado nas terras da
Américas” (1970, p. 140). Como já vimos no subcapítulo anterior, segundo o autor foi o
encontro de Thomas Morus com um dos homens deixado por Américo Vespúcio, o seu
entusiasmo com outras formas de vida, que fizeram com que pudesse acreditar em outra
sociedade capaz de romper com as mazelas da sua. Saber que em algum pedaço de mundo
existia um homem “sem pecado nem redenção, sem teologia e sem inferno” (idem, p. 165)
teria produzido não só os sonhos utópicos, como também grandes mudanças no pensamento
europeu. Nesta mesma direção aponta Pierre Clastres ao tratar de uma de suas grandes
referências: Étienne La Boétie. O autor mostra como os escritos deste foram influenciados
pelo fato tão instigante que foi a Descoberta da América para os Europeus de seu tempo. Se
seus escritos são influenciados por Utopias, estas, desde seu surgimento, estariam em diálogo
com estas outras sociedades38.
Agora nos questionamos: o que é ser contra o Estado para estes autores? Não
podemos negar que aí entram algumas diferenças entre estes: Pierre Clastres era etnógrafo,

37
Sobre isso vemos como parte da teoria Anarquista apropria-se de questões contra-civilização. Ver Bakunin,
1999
38
Sobre isso vale ainda atentar para o debate apresentado na página 41 desta dissertação que diferencia a
transformação do Estado, da destruição do Estado.
87

Oswald de Andrade escritor. Oswald de Andrade, sem ser etnógrafo, buscava compreender e
se inspirar nas sociedades primitivas a partir de sua leitura dos cronistas. Foi com influência
destas leituras que constituiu a rebeldia contra o poder estatal. Uma das grandes distinções
entre o primitivismo romântico e o primitivismo antropófago seria justamente a separação do
índio do Estado, ou melhor, sua contraposição a ele: “del índio que está subordinado al
Estado-Padre, forjado durante el reinado de Don Pedro, al índio que moviliza la sociedad
contra el Estado (idea que enunció posteriormente Pierre Clastres pero que ilustra
perfectamente la operación antropofágica).”(AGUILAR, p. 17) Segundo Raul Bopp, outro
participante do movimento antropófago, quando um povo indígena se desgostava de seu
chefe, ele era simplesmente abandonado em seu território, o povo se deslocava para outro
lugar deixando o chefe completamente solitário. O Matriarcado, aquele do homem anterior à
chegada da civilização e que voltará após a superação do Patriarcado capitalista, seria sem fé,
sem lei, nem rei. É uma era, nas palavras oswaldianas, onde só reinam a “propriedade comum
do solo” e a “ausência do Estado” (1970, p. 128). Segundo Oswald, o chefe “nas sociedades
primitivas (...) configura-se como orientador ligado vivamente aos interesses tribais, (...)
representa como um símbolo o nome da coletividade” (1991, p. 236 – 237) Assim como para
Clastres, a chefia nas sociedades primitivas estaria vinculada a uma obediência total à
coletividade, não havendo a separação entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem, o
que impediria o surgimento do Estado. Então, ao reivindicar a cosmologia primitiva como
também construtora de seu projeto político antropófago, o autor volta seus escritos contra o
Estado.
Identificamos alguns elementos que apontam neste sentido. Um deles é o
procedimento menor presente nas poesias oswaldianas, que é identificado por Raul Antelo
como uma forma de conjurar o Estado. O crítico faz uma analogia entre poesia e território,
considerando o poema enquanto a nação construída pelo autor. Chega a conclusão, então, que
ao construir uma poesia mínima (que teve como ápice o famoso poema amor de uma palavra:
Humor), Oswald estaria buscando o mínimo de Estado. Esta busca se daria através das
máximas aspirações, seja o amor humorado, ou a posse contra a propriedade.
Neste caminho também aponta o historiador Carlo Romani. Em seu livro sobre o
militante anarquista italiano Oreste Ristori, o autor relata os encontros entre o grupo de
militantes operários libertários e os intelectuais modernistas. Pode-se dizer que houve uma
proximidade ideológica nas conversas de botequim, estavam por coincidência ou não sempre
no mesmo bar. Entretanto, esta proximidade sempre se manteve restrita às mesas de boteco,
não havendo registros sobre participação efetiva desses intelectuais no movimento operário
88

paulista. E mesmo com as afinidades entre os modernistas e as ideias anarquistas, as


divergências também eram gritantes. Os anarquistas permaneciam parnasianos, utilizando a
forma tradicional de fazer poesia para a propaganda política. Isto trazia um inevitável
descompasso: anarquistas acabavam por rechaçar os modernistas e estes últimos acusavam os
anarquistas de só serem revolucionários no plano social, pois no plano estético seriam
completamente tradicionais. Entre acertos e desacertos, o que se pode dizer é que o diálogo
fértil existiu. E curiosamente, o único que manteve sua relação com Oreste Ristori foi Oswald
de Andrade. Já que falamos de um antropófago, por que não pensar que estes intelectuais
modernistas poderiam ter se apropriado de ideias anarquistas a seu modo? Retomando a
distinção entre anarquistas e comunistas, vemos como a antropofagia oswaldiana, acaba por
colocar-se mais próxima dos primeiros. O que também é afirmado pelo crítico Augusto de
Campos:

Mesmo no período inflamado dos anos 1930, o alistamento de Oswald não se faz sem
contradições e rebeldias. Dessa época é a publicação de Serafim Ponte Grande (1933), que
ele terminara de redigir em 1928, e bastaria a menção a esse livro incatalogável para situar o
engagement oswaldiano mais sob a ótica da anarquia do que de uma disciplinada religião do
Estado. (p. 56)

Assim, devora as teorias anarquistas para fazer uma análise específica da situação da
União Soviética. A URSS teria anunciado uma mudança rumo ao Matriarcado ao buscar
abolir a propriedade privada, contudo, ao invés de extinguir o Estado, o teria fortalecido com
seu arsenal armado, fixando suas raízes no modo de vida patriarcal. Além disso, também nos
sugere Carlos Romani que o personagem anarquista Serafim corresponderia a um mix
hipotético entre Oswald e Oreste. São elementos da experiência dos dois que se misturam na
criação do personagem. É neste romance, bastante diferente dos romances militantes, que
segundo Haroldo de Campos surgiria uma anarco-forma. Isto é dito em relação à radicalidade
formal com que se constrói os versos em prosa do livro.
Vemos como Oswald de Andrade dota a Antropofagia de uma força eminentemente
política, contra o Estado, o que se expressa nas características dos seus próprios escritos e é
roubado nas sociedades indígenas. E aí quando dizemos que Oswald se apropria é porque não
queremos retirar do autor sua dimensão poética, artística. Não se trata de buscar exatamente
correspondências empíricas, mas reconhecer como a partir da escrita literária Oswald pôde
dizer muito sobre esses povos, ao mesmo tempo que construía uma teoria política. Ele os
abocanhou, criando uma escrita, anarco-forma, serafínica, da poesia mínima: contra a
autoridade estatal na sociedade e na poesia.
89

Diferente de Oswald de Andrade, Pierre Clastres estava preocupado em compreender


cientificamente as sociedades ditas primitivas. Além de ser um grande leitor de etnografias,
fez trabalho de campo entre os índios Guayaki no Paraguai. Criou uma teoria que abarcava
não apenas este povo, mas que atravessava as sociedades primitivas em geral. Esta teoria
baseava-se principalmente na constatação de que as sociedades primitivas seriam sociedades
contra o Estado: por mais que tivessem chefe, este teria apenas prestígio e não poder. Ele seria
um bom orador, mas apenas um porta-voz do grupo diante dos outros grupos. O chefe teria
obediência plena ao grupo e não o grupo a ele. A sociedade primitiva ainda não teria passado
pelo “mau-encontro” que possibilitou a criação do Estado. Este surgiria por ter se
desenvolvido não só a vontade de mandar, como também o desejo da servidão. Ao contrário
das sociedades com Estado que permitem que estes desejos aflorem e que a sociedade se
divida entre quem manda e quem obedece, as sociedades primitivas encontram maneiras de
evitar esta mudança, fazendo com que caso o chefe tenha desejo de poder, seja neutralizado
pelo riso ou pelo próprio abandono deste chefe. As sociedades contra o Estado são, então,
totalidades, no sentido de que o poder está nelas como um todo e não separado em uma
máquina estatal.
Este modo de conceber as sociedades primitivas não condizia com a concepção
marxista, também presente na antropologia. Não à toa vemos como o mesmo desconforto
sentido por Oswald com o marxismo mais dogmático, também era sentido por Pierre Clastres.
Mesmo que a teoria marxista criticasse as condições de vida no capitalismo e desejasse a
destruição da propriedade privada, não romperia de fato com a lógica civilizatória. Os
marxistas acreditavam não só que o capitalismo seria uma fase necessária para a chegada do
socialismo, como usariam para a destruição deste sistema armas próprias da lógica patriarcal
(ou com Estado): recorre-se à verdade, ao racionalismo, à visão positiva da produtividade.
Através desses critérios, os antropólogos marxistas classificavam as sociedades primitivas
como pré-capitalistas, menos desenvolvidas. Além disso, enxergavam o trabalho, a
capacidade de modificar a natureza para satisfazer suas próprias necessidades, como único
traço definidor do homem39. Se para Clastres as sociedades primitivas são “máquinas anti-
produção40”, para Oswald o ócio teria uma dimensão essencial para a existência do homem,

39
Como dito no posfácio aqui citado o marxismo para Clastres seria "um elogio etnocêntrico da produção
como verdade da sociedade e do trabalho como essência da condição humana" (p. 301).
40
Sobre isso vemos a citação do próprio Clastres (2003) que descontrói o axioma da civilização de que é
preciso trabalhar: "Os índios efetivamente dedicavam pouco tempo àquilo que damos o nome de trabalho (...)
os homens, isto é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em quatro anos! O resto do
tempo era passado em ocupações não encaradas como trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e
bebedeiras" (p. 212)
90

"o valor proeminente da sociedade nova, o próprio índice ético da existência humana
realizada, de intersubjetividade recuperada sobre os últimos resquícios da violência social de
que a escravidão foi o começo." (NUNES, p. l). Nas palavras do antropófago: "Raciocina
comigo historicamente. Como foi que começou no mundo a escravidão, este 'progresso', no
dizer de Engels? O homem deixou de devorar o prisioneiro de guerra para fazê-lo trabalhar."
(ANDRADE, 1990, p. 130) O trabalho passa a ter uma centralidade apenas em uma fase
específica da sociedade, o capitalismo, não sendo algo universalizável para todos os tempos e
sociedades.
Além de contrapor-se ao universalismo da essência do homem pelo trabalho, há
contraposição à “universalização reacionária, míope e, reprodutiva da figura do Estado como
modelo do Universal” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 319). As sociedades primitivas não
seriam sem Estado, carregando uma falta, e sim teriam mecanismos para conjurá-lo. Não só
existiria vida para além da forma-estado, mas com estes modos de vida deveríamos aprender.
Diferentemente de propor que as Sociedades Primitivas fossem um modelo de projeto político
para o Ocidente, para Pierre Clastres seria preciso através de uma alteridade antropológica
perceber o valor crítico que esses outros podem oferecer. Quer dizer, este Outro não teria uma
relação de falta com o Nós, mas como "figura de alteridade dotada de endoconsistência, de
autonomia em relação à imagem de nós mesmos" (idem, p. 316), teria algo a ensinar. Escritor
e poeta encontram-se novamente: Oswald não tinha a visão nostálgica de retornar para um
passado da felicidade perdida, buscava também aprender com esse modo de vida
antropofágico tão presente nas sociedades primitivas, nos resquícios matriarcais na vida do
lado de baixo do equador. Este deveria ser retomado com toda força junto ao progresso
tecnológico - faríamos a Revolução Caraíba, pois já tínhamos o modo de vida matriarcal.
Podemos dizer ainda que ao diferenciar genocídio de etnocídio, Pierre Clastres afirma
que o primeiro se referiria ao extermínio físico de um povo, enquanto o segundo ao
extermínio do “espírito” de um povo através da assimilação violenta deste. Se todas as
culturas são etnocêntricas, apenas o Ocidente é etnocida. Isto se daria por causa da presença
do Estado, que buscaria sempre a uniformização dos indivíduos perante o próprio, mas
também pelo regime de produção capitalista, que baseia-se sempre na expansão, espalhando a
exploração do trabalho. Tais características transformaram a civilização ocidental na maior
máquina de produzir e destruir. Enquanto àqueles que estavam deslocados deste modo de vida
só restavam duas saídas: ceder à produção ou desaparecer, o etnocídio ou genocídio. Para
Clastres, as sociedades ocidentais, com Estado, seriam o local do Um, onde o índio é
suprimido enquanto Outro e reduzido à cidadão, enquanto as sociedades primitivas, contra o
91

Estado, são consequentemente contra o Um41. Como dito pelo próprio (2003): "as sociedades
primitivas estão do lado (...) da cisão permanente, do lado do múltiplo, ao passo que as
sociedades com Estado estão do lado contrário, (...) da integração, da unificação, do lado do
uno. As sociedades primitivas são sociedades do múltiplo, as não primitivas, com Estado, são
sociedades do Uno. O Estado é um triunfo do uno" (p. 241)
Sobre a prática antropofágica (literal e literária) podemos dizer, como Alexandre
Nodari (2009a), que ela não pode ser interpretada como uma tentativa de capturar as
qualidades do inimigo42, para fortalecer um “eu”: “o Outro não interessa porque pode
fortalecer o próprio, mas pela sua alteridade, pois permite uma nova perspectiva, permite
atualizar uma possibilidade, redesenhando o horizonte do universal, pré-existente somente em
potência” (p. 124). O antropófago volta-se para o Outro e não para a integração e unificação.
Como aponta Sueli Rolnik, ao estender o princípio antropofágico para o domínio da
subjetividade, a lógica antropofágica seria o contrário de uma imagem identitária. O processo
de engolir o outro implica que "partículas do universo deste outro se misturem às que já
povoam o universo da subjetividade do antropófago e na invisível química dessa mistura, se
produza uma verdadeira transmutação" (2000, p. 11) - o que nunca poderia levar a criar uma
identidade fixa, o Um. A Sociedade contra o Estado tampouco conjura o Estado para
fortalecer o indivíduo, já que este seria correlato ao Estado. Como apontado por Viveiros de
Castro (2011), a Sociedade contra o Estado teria "a forma de uma multiplicidade assubjetiva,
seus componentes ou associados não são individualidades ou subjetividades, mas
singularidades - ela desconhece a máquina abstrata produtora de sujeitos, rostos ou
semblantes (bela palavra) que exprimem uma interioridade subjetiva" (p. 322) A
exteriorização antropofágica não funciona como criação do Um, assim como a exteriorização
primitiva estaria "a serviço de uma dispersão. Os selvagens querem a multiplicação do
múltiplo" (idem, p. 324) Esta exterioridade "inseparável da figura do Inimigo como
determinação transcendental", do estado de guerra permanente das sociedades primitivas,
encontra-se com o "sentimento órfico" oswaldiano, na metafísica imanente primitiva. O ritual
antropofágico é a própria absorção do inimigo sacro, do externo, a motivação existencial da
vida humana seria a transfiguração desse fora, a transformação do tabu em totem, o que se
41
Observamos dois sentidos para uno nos escritos do autor. O primeiro é este mencionado no texto, o segundo
trata das sociedades primitivas enquanto unas pois não dividem o poder da sociedade. São dois sentidos
opostos, mas só o primeiro está oposto à multiplicidade.
42
Este pensamento prevaleceu em muitas interpretações sobre a antropofagia tanto literal quanto literária,
principalmente no romantismo, como coloca Carlos Fausto: "A explicação mais difundida sobre a
antropofagia tupi é a de que, por meio da devoração, buscava-se incorporar as qualidades do inimigo.
Recordemos Y-Juca-Pirama:“— Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!...parte; não queremos
com carne vil enfraquecer os fortes.” (p.7)
92

daria por um processo contínuo - nunca se para de devorar. Diferente do messianismo onde
Deus é o elemento positivo a ser venerado, o Bem, o Deus primitivo é inimigo. O combate
direto com este impede o recalque civilizador. Contraria-se, então, as comuns interpretações
destes modos intensivos como harmonia total, a humanidade aparece como "uma posição e
uma relação, marcadas pela relatividade, pela incerteza e pela alteridade." (idem, p. 356)
Como insiste Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, a vida é coisa muito perigosa...
Por último, nos questionamos sobre a relevância destas forças contra o Estado
atualmente (no caso específico da Antropofagia isso será melhor aprofundado no capítulo 3).
Como elas poderiam ser utilizadas tanto para a antropologia quanto para construir uma visão
política de mundo? Obviamente, não buscamos concluir estes questionamentos, mas sim
levantar alguns apontamentos. Em relação à disciplina antropológica, vemos como Marcio
Goldman sugere uma antropologia que rejeite o ponto de vista do Estado no que tange à
política e poder, como também no que diz respeito à uma escrita que escape da forma-Estado
de pensamento. Seguindo esta direção, percebemos como não se trata de buscar seguir estas
teorias enquanto dogma (isso seria estatizar o pensamento), mas apropriar-se erraticamente
destas, pensando sua efetividade nos dias de hoje. Pierre Clastres afirma que o maior desafio
da disciplina seria a possibilidade de nos refletir uma imagem em que talvez não nos
reconheçamos. Neste sentido, uma antropologia contra o Estado se debruçaria sobre as forças
centrífugas que buscam se desvencilhar da força centrípeta da máquina estatal, recusando o
Um que repele a diferença. Ao tratar da obra clastriana, nos diz Eduardo Viveiros de Castro:
“Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o modo como a antropologia articula
sua relação com o objeto e o modo como seu objeto se autoconstitui.” (2011, p. 335) Assim,
uma antropologia contra o Estado, antropofágica neste sentido, não poderia buscar apenas o
que há de comum nas culturas, nem reduzir a alteridade, mas sim multiplicá-la.
Vemos como estas ideias estão imbuídas de uma força eminentemente política que
promove sua ressonância nos dias atuais. Se a Sociedade contra o Estado seria “uma das
muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível:
de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado” (idem, p. 304), a
Antropofagia oswaldiana seria uma outra encarnação como esta. Ela não é apenas uma
expressão de assimilação cultural, mas tem um intenso sentido contra-catequese (e Estado),
engole o eurocentrismo, portador do etnocídio. Pretende uma reabilitação da filosofia da
alteridade primitiva que roa a civilização ocidental, o mundo capitalista.
Podemos dizer que se Pierre Clastres está buscando as respostas de um momento pós
68, mobilizado pelas críticas feitas à parte da esquerda dogmática, Oswald de Andrade pode
93

ser visto enquanto um precursor deste movimento, alimentando-se do marxismo, por um viés
anárquico, ajudado pelas asas de Nietzsche. Encontram-se, então, numa errática, trans-
histórica, em que a partir do olhar para o Outro puderam construir um olhar para a própria
sociedade. Foi desnaturalizando a presença do Estado que Pierre Clastres (2003) analisou seu
mundo: percebeu como este estava se tornando cada vez mais autoritário, identificou
máquinas estatais não só enquanto aparelhos do Estado (governo e aparelho central do
estado), mas também as submáquinas, como os partidos e sindicatos que funcionavam (e
funcionam) de acordo com a lógica do Estado. Também em um brado libertário Oswald de
Andrade anunciava que a criança, o primitivo e o louco são também o povo, classe
revolucionária na luta contra o poder43. Nós, seguindo esta errática, podemos crer que as
forças contra o Estado estariam presentes também nas sociedades ocidentais de hoje.44 E, a
partir disso, crer como Clastres naqueles “selvagens”, pessoas que dizem “abaixo os chefes!”,
pessoas essas que sempre existiram e existirão.

2.3.3 Por que a Antropofagia não é uma teoria do Brasil?

Se a Antropofagia apresenta-se enquanto força contra o Estado, será que ela poderia
ser pensada vinculada a um ideal de nação? Ser ou não uma teoria do Brasil é uma tensão, um
questionamento que parece atravessar a análise da obra oswaldiana. Sobre isso, se
interrogaram diversos críticos com posições também das mais diversas. Se por um lado esta é
uma questão difícil de ser abordada, considerando os muitos momentos de sua obra, por outro
admitiremos pensar como foi feito nas outras partes dessa dissertação: considerar a obra

43
Erraticamente nos remetemos à citação de Michel Foucault, que alguns muitos anos depois do antropófago,
em 1972, ampliou o conceito de classe proletária: “As mulheres, os prisioneiros, os doentes nos hospitais, os
homossexuais iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se
exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que
sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com
uma mudança titular. E, na medida em que devem combater todos os controles e coerções que reproduzem o
mesmo poder em todos os lugares estão ligados ao movimento revolucionário do proletariado.“ (p. 78)
44
Como dito por Marcio Goldman (p. 2): “Não há nenhuma razão para imaginar que os mecanismos “contra-
Estado” isolados por Clastres nas sociedades indígenas ameríndias tenham sua existência limitada a este ou a
algum “tipo” de sociedade. Trata-se de processos micropolíticos muito vivos mesmo nos sistemas políticos
ocidentais, envolvendo uma resistência pragmática em colaborar para o sucesso dos mecanismos de
centralização do poder e uma recusa prática em aceitar a introjeção de mecanismos de hierarquização.”
94

transversalmente, a partir do “fio” da Antropofagia, o que nos permitirá abordar mais a fundo
o conceito. Será que a Antropofagia literária deve ser associada ao ideal de nação, à noção de
Brasil? Como esta teoria se relaciona com o famoso problema da "formação do Estado-
nação"? E ainda, ser uma teoria produzida no Brasil é equivalente a ser uma teoria do Brasil?
Para começar, citemos algumas interpretações propostas para a questão, o que nos
possibilitará, mais adiante, constituir a nossa perspectiva. Abordemos, de início, uma crítica
no mínimo polêmica feita por Robert Schwartz. O autor percebe em Oswald de Andrade uma
integração ao modernismo conservador, a matéria-prima do poema “pau-brasil’ basearia-se na
justaposição de elementos do Brasil-colônia ao Brasil-burguês e sua elevação à alegoria do
país. Esta dualidade entre Brasil pré-burguês e burguês seria resolvida por Oswald de Andrade
com o primeiro tipo de “Brasil” visto de maneira otimista para engendrar fraternamente a
sociedade pós-burguesa, através de um “ufanismo crítico”. Sobre isso, valeria primeiramente
questionar o que o crítico entende por Brasil pré-burguês? Seria uma referência ao
primitivismo oswaldiano? Pré-burguês seria o mesmo que sociedades ameríndias praticantes
do ritual antropofágico positivado por Oswald? Para Robert Schwartz, a valorização destes
povos, considerados como retrato de um “Brasil do passado”, ligado à herança colonial,
estaria nos escritos oswaldianos misturado a um viés moderno que resultaria na

suspensão do antagonismo [entre as matérias coloniais e burguesas] e sua transformação em


contraste pitoresco, onde nenhum dos termos é negativo, vem de par com a sua designação
para símbolo do Brasil(...) Portanto a modernidade não consiste romper com o passado ou
dissolvê-lo, mas em depurar seus elementos e arranjá-los dentro de uma visão atualizada e
naturalmente inventiva, como que dizendo do alto de onde se encontra: isso tudo é meu país
(p. 22)

Isto tudo leva o crítico a concluir que tanto Oswald de Andrade quanto Macunaíma, de
Mário de Andrade, estariam a serviço dos interesses da oligarquia do café. Já que os povos
indígenas e os modos de vida coloniais estariam em um mesmo bloco de passado, a ser
superado, mas que insistia em se impor de modo conservador diante da modernidade
inexorável. Podemos perceber como Schwartz busca em Oswald uma perspectiva que não
consegue encontrar: não se trata da luta de classes, mas da visão da história enquanto
progresso linear, onde a modernidade se impõe destruindo os resíduos arcaicos e
ultrapassados.45 Oswald (ainda bem!) tem outras preocupações e tampouco se encaixa na
concepção de um ufanismo crítico que apaga os conflitos. A questão é que o autor justamente
multiplica os conflitos: não apenas luta de classes, mas anti-colonialismo, anti-

45
Resposta interessante a essa crítica é colocada por Eduardo Sterzi.
95

patriarcalismo... Não se trata apenas de pensar em termos de burguesia x proletariado, mas “o


adulto, o branco, o civilizado” x “o primitivo, o louco e a criança.” (ANDRADE, 1970, p.
191)
Não se pode negar, entretanto, que a “fase” Pau-Brasil de Oswald (o início do
modernismo, seus primeiros escritos publicados, o Manifesto Pau-Brasil) pode ser
considerada o mais próximo de um nacionalismo. É sabido que uma das principais
preocupações do movimento modernista como um todo era desenvolver a arte e a cultura
brasileiras. No próprio Manifesto vemos algumas referências: “Apenas brasileiros de nossa
época” (idem, p. 10), ou ainda, “O Brasil profiteur. O Brasil doutor” (idem, p. 6). Mas, ainda
assim estas referências muitas vezes são irônicas, blagues, críticas. A última citação aqui feita
o “Brasil profiteur”, “doutor” não seria exatamente uma exaltação, o que aparece ainda em:
“O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas
selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas,
de doutores anônimos.” (idem, p. 5) Como vemos, não se trata de uma glorificação da pátria,
nem de um apagamento dos conflitos como colocou Robert Schwartz, é muito mais “uma
outra perspectiva” (idem, p. 8), uma denúncia do bacharelismo tão presente na lógica
colonizadora e também nacionalista que se questionava sobre como civilizar o Brasil. Sobre
isso nos diz ainda o autor na Marcha das Utopias: “Melhor seriam nossas grandezas se
distinguíssemos as virtudes dos defeitos que se entrelaçaram em nosso destino de nação.” (p.
178) Não cabe, então, atribuir à Oswald um ufanismo inocente, a-crítico, é preciso
compreender melhor os problemas levantados.
Permeado por essas questões, Haroldo de Campos (2010), um dos principais críticos
que recuperou Oswald de Andrade na década de 70, diferencia, no ensaio Da razão
antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira, o nacionalismo ontológico do
nacionalismo modal. O primeiro estaria baseado na busca da origem e do percurso do Logos
nacional, fincado em uma “pretensão objetivista”, enquanto o segundo seria pensado
enquanto diferença: “o des-caráter, ao invés do caráter, a ruptura no lugar do linear” (2010, p.
237), em uma lógica anti-harmoniosa, uma tradição anti-tradicional. Para o crítico, a
Antropofagia oswaldiana vincularia-se ao segundo tipo de nacionalismo através do prática
canibal, que rejeitaria a perspectiva submissa do bom-selvagem. Podemos concordar com esta
visão, no que tange à rejeição do nacionalismo ontológico por parte de Oswald, entretanto,
vale questionar: por que permanecer ainda nos marcos da nação? Em determinado momento
do ensaio aqui tratado Haroldo de Campos, coloca que com a Antropofagia “tivemos um
sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético
96

com o universal” (idem, p. 234). Diante dessa afirmação cabe questionar: por que devemos
pensar necessariamente a Antropofagia a partir do ponto de vista do nacionalismo? Não é
porque falamos de um autor que escreve no Brasil que ele deve tratar do Brasil
especificamente.
Para voltarmos a ser acompanhados pelos escritos do autor, vejamos a seguinte frase
presente na Revista de Antropofagia (2 dentição, p. 6), ao tratar do ato de abocanhar o Tabu:
“Um índio que fala ou qualquer outro antropófago de outro continente” . Há, também, no
ensaio a Marcha das Utopias, referências a outros antropófagos que não são necessariamente
índios, mas podem ser árabes, até mesmo jesuítas. Ou seja, ao tratar da força antropofágica,
uma das principais preocupações do autor, não há preocupação necessária com um território-
nação. Um antropófago pode estar, viver, ter origem em qualquer continente. A Antropofagia
oswaldiana opõe-se, é verdade, a lógica civilizatória, eurocêntrica e o universalismo proposto
por ela, contudo, não o faz partindo da ideia de uma nação a ser desenvolvida. Como também
aparece no seguinte trecho: “Em nome dos povos explorados, vendidos, difamados,
entorpecido pela ‘conquista espiritual’ do ocidente, os antropófagos de São Paulo votam a
todas as mandingas o futuro da nação que (...) ainda ousa aprovar créditos para missões
evangélicas” (Revista da Antropofagia, 2 dentição, número 2, p. 1) Entre o “futuro da nação”
e os povos que sofrem com a dominação da civilização ocidental, os antropófagos ficam, sem
dúvidas, com os segundos. Mais importante do que se vangloriar ou se preocupar com os
destinos do Brasil, seria o combate à catequese e aos valores advindos desta. Neste sentido,
esta catequese se referiria não apenas aos ensinamentos cristãos, mas a toda gama dos modos
de ser da civilização.
Observemos ainda, n’A crise da filosofia messiânica, a crítica propagada pelo autor à
URSS: “Agora o dever de todo bolchevique não é mais ser internacionalista, é ser patriota.”
(1970, p. 120) Podemos ver como mesmo neste ensaio escrito após sua ruptura com o Partido
Comunista, o antropófago evoca um internacionalismo em oposição ao nacionalismo
soviético. É com um misto de crença em uma Revolução mundial herdada da sua época
comunista com o ideal canibal impossível de ser vinculado a um único povo que Oswald de
Andrade constrói a Antropofagia, “única lei do mundo” (idem, p. 13). Por isso, afirmamos
que atribuir a Oswald de Andrade uma preocupação fortemente nacionalista pode não fazer
muito sentido. Pois, no fundo a questão levantada no início do capítulo (ser ou não
nacionalista, ter ou não o ponto de vista da nação) talvez pertença muito mais aos seus
críticos, pois a insistente e teimosa questão para a Antropofagia oswaldiana (agora
percebemos) era de outro tipo: Tupi, or not tupi that is the question.
97

3. “Antropofagia, hoje?”

Este último capítulo, que sem dúvida é o mais experimental desta dissertação,
procurará pensar a Antropofagia a partir de outros contextos, tempos e realidades, buscando
dar carne e osso às questões que foram debatidas até aqui. Para usarmos outras "palavras
bárbaras", é uma tentativa de, como dito por Deleuze, desterritorializar o conceito para
reterritorializá-lo em outra parte. Seria, na verdade, uma forma de seguirmos à risca a
proposta antropofágica (trairmos para sermos fiéis), já que ela própria é este "contrário da
imagem identitária" (ROLNIK, 2000). Devoremo-la, para pensar sua vivacidade no mundo.
Se antes, apontamos o esforço antropológico de Oswald de Andrade ao pensar o que
os “primitivos” teriam a dizer sobre a sociedade ocidental, agora imaginaremos o que o
próprio antropófago teria a dizer sobre o mundo hoje. Para onde olharia? Com quem
dialogaria? O que consideraria como experiência antropófaga? Uma ficção declarada e
podemos ousar até ficção tipicamente antropológica46.
Para tal, escolhemos algumas situações e relações específicas, que servirão como
apontamentos exemplares que esperamos poder aprofundar em outras oportunidades.
Primeiramente, pensaremos a relação da Antropofagia oswaldiana com teorias anti/pós-
coloniais. São situações e problemas semelhantes, que se atravessam: como combater a lógica
colonial que se alonga até os dias de hoje? Nas respostas apresentam-se diferentes maneiras
de lidar com a alteridade, a identidade, o poder, formando um panorama complexo. Em
seguida, trataremos do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), importante
movimento libertário (e marcadamente étnico) da atualidade. Isto nos permitirá pensar a
Antropofagia em relação a um movimento social. É uma tentativa de pensar os escritos
antropófagos de maneira encarnada. Por último, relacionaremos a Antropofagia com a teoria
de Davi Kopenawa, intelectual Yanomami. Levando a sério a hipótese da forte ligação entre a
filosofia ameríndia e a Antropofagia literária, buscaremos ver como isso aparece na
atualidade, conectando estes dois pensamentos. Esperamos conseguir trazer para a atualidade,
mergulhar no mundo a proposta antropófaga.

46
Sobre isso, ver Strathern, O gênero da dádiva.
98

3.1 Alteridade de combate, teorias anti/pós-coloniais

Este subcapítulo buscará pensar a Antropofagia na sua relação com outros paradigmas
anti-coloniais. Primeiramente, faremos uma comparação com pensadores de outras situações
coloniais. Cabe ressaltar que tratamos colonização como um processo econômico, político,
construtor da subjetividade, que não se restringe ao período no qual as colônias eram
oficialmente consideradas propriedade das metrópoles. Mas, como um fenômeno que se
prolonga até os dias de hoje, marcado por uma relação hierárquica entre subjetividades
consideradas “civilizadas” em oposição a outras ditas “bárbaras”. Esta comparação nos
permitirá identificar melhor alguns dos problemas levantados pela Antropofagia oswaldiana e
como eles podem se conectar (ou não) com outros problemas levantados em situações de luta
anti-civilizatória. Poderemos perceber como existiram diversos paradigmas que pensaram a
resistência contra a colonização sem, por isso, defender uma identidade pura e essencializada.
Poderemos qualificar melhor a própria noção de alteridade antropofágica a partir de outros
tipos de alteridade abordados.
Primeiramente, analisemos a Antropofagia na sua relação com os escritos de Frantz
Fanon – o que pode nos ajudar a qualificar melhor qual é a relação de alteridade que estamos
tratando. O autor nascido na Martinica participou da guerra de libertação argelina. Foi a partir
dessa experiência de sangue e luta que produziu sua teoria. Questionou-se sobre a constituição
psíquica do homem negro, marcado pelo racismo da situação colonial: o que deseja o homem
negro? Rejeitando explicações simplistas pôde perceber como o negro colonizado constituía-
se por uma subjetividade dilacerada que continha o desejo do opressor, de ser branco,
misturado à sua vontade de libertação. Denunciava, assim, os perversos e profundos
mecanismos da colonização.
Neste sentido, o autor identifica um tipo de alteridade da colonização presente nas
Antilhas, onde o Outro estabelece uma relação muito distinta da antropofágica. Se assim
como para o antropófago, toda a ação do homem de Antilhas passa pelo Outro, isso se dá de
maneira bem diferente, pois isso se daria não porque o Outro é o objetivo de sua ação, mas
porque é o Outro que lhe afirma dentro da sua necessidade de valorização. A necessidade e o
interesse pelo Outro se dão em uma relação onde este é sempre a medida, o valorizado. Nas
palavras do autor: “Tant qu’il n’est pas effectivement reconnu par l’autre, c’est cet autre qui
demeure le thème de son action. C’est de cet autre, c’est de la reconnaissance par cet autre
que dépendent sa valeur et sa réalité humaine. ” (p. 176) É uma constante comparação onde já
99

se sabe a priori quem será o vencedor. Tal constatação não leva o autor a concluir que o Negro
não deveria se interessar pelo Outro. Muito baseado em um humanismo (o que neste aspecto o
afasta um pouco das colocações oswaldianas) afirma que um homem só é um homem na
medida em que se relaciona com o Outro. Mas, esta relação de alteridade pode se dar de
diferentes formas...
Para que o negro possa ter reconhecimento (de si mesmo, principalmente) será preciso
que estabeleça uma relação de oposição ao Outro, onde nas palavras do autor, “la conscience
de soi fait l’éxperience du Désir (...) elle accepte de risquer sa vie , et par consequent ménace
l’autre dans sa presence corporelle.” (ibidem) A liberdade não poderia, então, ser concedida
pelo branco. Por muitas vezes o branco ofereceu sua liberdade. Estabeleceu-se um
preconceito velado, uma suposta igualdade, na qual brancos e negros apertam as mãos (difícil
não nos lembrarmos do ideal da mestiçagem já tratado nesta dissertação). Mas, para Fanon,
seria preciso batalhar pela liberdade, só a luta poderia garanti-la, através da afirmação do
negro. Isto estabeleceria um tipo específico de alteridade: “Altérité de rupture, de lutte, de
combat.” (idem, p. 180) Assim, o homem colonizado poderia abandonar uma postura reativa,
baseada no ressentimento, para adotar uma postura de ação.
Esta alteridade nos remete à postura do bárbaro antropófago. É verdade que Oswald de
Andrade não colocava as questões em termos de retomar a “consciência de si”, mas defendia,
assim como propõe Fanon, uma alteridade do combate, onde o Outro não aparece como o
modelo a seguir (como já foi dito, a Antropofagia rejeita o mimetismo). Esta possibilitaria
transformar o totem em tabu, ou seja, destruir os ressentimentos causados pela situação
colonial e transformá-los em valor positivo.
Fanon também se desvencilha da ideia de que a luta anti-colonial devia estar
necessariamente vinculada ao resgate de um passado autêntico. Sabemos de ideias próximas
que apareceram no contexto antilhano como a proposta do livro Éloge de la creolité. Os
autores deste buscam se contrapor à ideia do Africanismo, afirmando que a ideia mítica do
continente Africano seria uma visão do próprio colonizador. Seria preciso desvencilhar-se
dela para construir uma visão própria e positiva de si. Para isso, defendem a noção de
créolité47 como um: "agregat internactionnel ou transnactionnel, des élément culturels
caraíbes, européens, africains, asiatique." (p. 26) Essa mistura muitas vezes violenta deveria
ser afirmada como forma de resistência à própria violência. Ao invés de um purismo
passadista que só causaria mais alienação, a créolité seria um mosaico constitutivo, com a

47
Como não há tradução literal para o termo optei por mantê-lo em francês.
100

especificidade da abertura. Não seria nem uma síntese, nem mestiçagem, mas uma totalidade
caleidoscópica, que aniquilaria a falsa universalidade e o monolingüismo. Vemos uma certa
afinidade entre a ideia de créolité e a alteridade da abertura proposta pelos antropófagos. O
contexto antilhano também nos fornece a experiência de Aimé Césaire, escritor
contemporâneo a Oswald de Andrade. O caminho do primeiro cruza-se bastante com o
caminho do segundo. Como dito por Eurídice Figueiredo (1998), o escritor antilhano tem uma
formação eurocêntrica, com fortes referências francesas. Neste momento, internaliza a
dominação, repetindo apenas o conhecimento colonial. Só que assim como nosso
antropófago, indo para Paris descobre as Antilhas. A partir do seu contato com o surrealismo,
estabelece uma forte crítica à civilização ocidental (ao racionalismo, individualismo,
capitalismo...). Depois de usurpado de suas "tradições", ele usurpa (ou devora) as vanguardas
europeias para poder criar uma escrita própria e de combate.
Podemos dizer que constituindo uma aliança com este tipo de pensamento (e também
com o pensamento oswaldiano, de certa maneira) estão os autores (estes, contemporâneos) do
pensamento pós-colonial. Este constituiu-se buscando a desconstrução dos essencialismos e a
crítica das concepções hegemônicas da modernidade. Sob a influência do pós-estruturalismo
preocupam-se com o local de onde é produzida uma enunciação. Afirmam que enquanto o
conhecimento científico estiver estritamente vinculado ao modelo europeu, estará
reproduzindo a lógica colonial, na qual qualquer grupo é tratado na sua relação de
subordinação com o “centro” europeu. Grande parte destes intelectuais são participantes da
diáspora negra e hoje habitam principalmente os EUA e Inglaterra – o que é uma escolha cara
diante da adesão pós-estruturalista, resultando em diversas críticas relevantes, que
infelizmente não podem ser aprofundadas neste trabalho. Buscando desterritorializar a
Antropofagia oswaldiana confrontaremos esta com o pensamento pós-colonial. Para isso,
reconhecendo a heterogeneidade deste pensamento, nos focaremos nos escritos de Homi
Bhabha, que parecem nos indicar problemáticas mais próximas das oswaldianas.
O escritor indiano aposta em um local de enunciação que escape do essencialismo e
das fronteiras coloniais. Para além das tradicionais fronteiras ocidentais/resto do mundo,
dentro/fora, volta seu olhar para os lugares de entremeios. Recuperando Frantz Fanon
identifica três condições pelas quais se forma o processo de identidade colonial, que
desestabilizam as categorias estáticas Negro x Branco. A primeira condição baseia-se na ideia
de que é sempre em relação ao lugar do Outro que o desejo colonial é articulado, é o sonho da
inversão dos papéis. A segunda seria perceber o lugar da identificação colonial como um lugar
de cisão. Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distância entre
101

os dois que constitui a figura da alteridade colonial. O próprio artifício do homem branco
estaria inscrito no corpo do homem negro. E a última seria a afirmativa de que a questão da
identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-estabelecida, nunca uma profecia
autocumpridora - é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do
sujeito ao assumir aquela imagem. Vemos como Bhabha aponta para uma alteridade colonial
destrutiva e atenta que mesmo se tratando desta, os processos de identidade se dão de forma
mutável. O imigrante e o negro colonizado ocupariam, na verdade, um entre-lugar, nas bordas
da identidade. Se esta confusão cultural traz um lugar de inferioridade, ela também pode ser
transformada em uma estratégia de subversão política. É o que nos diz o autor no seguinte
trecho:

Ao ocupar dois lugares ao mesmo tempo - ou três, no caso de Fanon - o sujeito colonial
despersonalizado, deslocado, pode se tornar um objeto incalculável, literalmente difícil de
situar. A demanda da autoridade não consegue unificar sua mensagem nem simplesmente
identificar seus sujeitos. (...) É dessas tensões - tanto psíquicas quanto políticas - que emerge
uma estratégia de subversão. Ela é um modo de negação que busca não desvelar a
completude do Homem, mas manipular sua representação. É uma forma de poder que é
exercida nos próprios limites da identidade e da autoridade (2011, p. 17)

Exemplificando esta situação o autor trata das mulheres guerrilheiras na libertação da


Argélia (tão bem retratadas no filme A batalha de Argel). O véu que poderia ser visto como
símbolo de submissão da mulher passa a ser utilizado para esconder as bombas a serem
implodidas na guerra. Foi no deslizar entre as identidades mulher no espaço privado para
mulher no front da luta anti-colonial que se formou uma eficaz estratégia de batalha. Como
não lembrar dos escravos nas terras americanas escondendo o ouro entre os cabelos crespos?
O que poderia ser considerado apenas como um sinal da inferioridade do povo negro (até hoje
vemos a preponderância da estética europeia e dos cabelos alisados) torna-se um mecanismo
de furto da máquina colonial, possibilitando até a compra da alforria de alguns. Nesses
contextos, o que é politicamente essencial para Bhabha é ir para além das narrativas de
subjetividades originárias, focalizando aqueles momentos produzidos pela articulação de
diferenças culturais.
Voltando à temática antropofágica vemos como ambos estão preocupados em se
desvencilhar das preocupações essencializantes, na busca de uma origem imutável. É pela
relação com o Outro (inclusive com o colonizador e a violência trazida por este encontro) e
não pela sua negação, que se pode construir a luta anti(pós)-colonial. Não é em busca de uma
origem perdida, à qual devemos retornar à todo custo, mas é valorizando nossa situação
híbrida, diria Bhabha, de devoração, diria Oswald, que devemos construir a estratégia política.
102

Neste sentido, a máxima da Antropofagia do interesse pelo que não é seu (o Outro) aproxima-
se com a preocupação de Bhabha: “Chegou a hora de voltar a Fanon; como sempre, acredito,
com uma pergunta: de que forma o mundo humano pode viver sua diferença; de que forma
um ser humano pode viver "Outra-mente"?” (idem, p. 18) Esta preocupação não levaria
necessariamente à busca do Homem, como às vezes indica o humanismo existencialista de
Fanon, mas na aposta da força desses “entre-lugares”. É por isso que Renato Gomes Cordeiro
identifica a semelhança entre esses pensamentos nascidos de culturas marginais. Estes
constroem suas vozes como locais de tensão que podem mesmo desestabilizar as identidades
culturais nacionais:

Entre assimilação e agressividade, aprendizagem e reação, obediência e rebelião, realiza-se o


ritual antropofágico da cultura latino-americana, como sugere Silviano Santiago, aquele que
se faz de temporalidades disjuntivas, múltiplas e tensas, temporalidades de entre-lugar, o que
desestabiliza o significado da cultura nacional como homogênea, pois é uma cultura dividida
no interior dela própria, articulando sua heterogeneidade e seu hibridismo, como sugere
Bhabha. (CORDEIRO apud AGRÒ, 2009, p.8)

Constatações como estas levam Homi Bhabha a questionar o discurso que envolve a
tradição enquanto práticas culturais que persistem na sua semelhança através dos tempos,
questionando ao mesmo tempo a ideia de autenticidade como aquilo de original que pertence
a esta tradição. A diferença e a própria tradição não seriam a expressão cultural acumulada,
mas sim um fluxo de representações. Assim, as noções de originalidade e autenticidade
entram em cheque e passam a ser tratadas como parte performativa da diferença. Nas palavras
do autor:

O "direito" de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não


depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se
reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as
vidas dos que estão "na minoria". O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma
parcial de identificação. (2011, p. 18)

Esta pode ser uma boa maneira de pensar a relação do primitivismo oswaldiano com a
tradição. Como já foi dito, o primitivismo antropofágico não deve ser pensado enquanto uma
busca das raízes, da tradição originária brasileira (como o fez o grupo Anta, por exemplo),
entretanto, também valoriza-se um modo de vida da alegria, presente no matriarcado. De certa
maneira pode-se considerar que este modo matriarcal é mais autêntico do que o outro imposto
pela civilização patriarcal. Mas, e se pensarmos esta “autenticidade” antropofágica enquanto
parte performativa da diferença? Já que o primitivismo de Oswald não é uma volta à um
103

tempo perdido, mas se opõe à Civilização Ocidental, em busca de fortalecer outros valores.
Será que não podemos dizer que a própria autenticidade presente não se constitui a partir da
relação de diferença e assim só existe enquanto tal e não como uma autenticidade de si
próprio para si próprio. Com isso, o Pau-Brasil não é o país Brasil com suas fronteiras de
Estado-Nação delimitadas, mas uma força que questiona as condições de modernização
europeias. Ou como aparece na Revista Antropofágica, o homem Antropófago não é apenas o
tupi em carne e osso, mas pode até vestir casaca e ser um árabe perdido na Marcha das
Utopias. Isso não quer dizer que o homem antropófago seja apenas uma negação à Civilização
patriarcal e neste sentido um vazio. Ela se afirma enquanto uma série de forças e podemos
dizer que há uma que merece ser destacada aqui: a devoração.
Diante da alteridade radical e de combate proposta por Oswald de Andrade podemos
encontrar algumas diferenças do hibridismo proposto por Homi Bhabha. Vimos como o pós-
colonialismo proposto pelo autor indiano busca reescrever a história da modernidade,
colocando o colonizado não como Outro que carrega falta em relação ao Ocidente, mas como
constituinte daquilo que foi chamado de moderno. Assim, estes encontram-se entrelaçados,
em relações híbridas. É possível afirmar que Oswald de Andrade denuncia o mesmo processo,
só que ainda mantém uma alteridade radical, que baseia-se na proposta de uma ruptura
epistemológica e até mesmo ontológica. Para a Antropofagia não se trata de construir uma
modernidade híbrida, entrelaçada, mas de uma outra modernidade, na qual o bárbaro devore o
civilizado. É para a Revolução Caraíba que devemos seguir para uma nova era da sociedade
matriarcal, uma outra metafísica, na qual a filosofia messiânica e sua necessidade de conjugar
o verbo “ser” sejam destituídas de seus tronos.
É possível notar ainda nos escritos de Homi Bhabha uma visão positiva da condição
pós-moderna. Para o autor, o mundo pós-moderno possibilitaria mostrar os limites
epistemológicos das narrativas etnocêntricas, revelando que em suas bordas existem várias
outras narrativas de mulheres, migrantes... Se é verdade que essas narrativas existem (e aliás
podemos dizer que já existiam), não quer dizer que na subjetividade capitalísta
contemporânea elas possam prevalecer. Sobre isso vale atentar para as palavras de Sueli
Rolnik:

O que acontece na produção da subjetividade capitalista hoje, não é uma critica do principio
identitário: ao mesmo tempo em que se dissolvem as identidades, produzem-se figuras-
padrão, de acordo com cada órbita do mercado. As subjetividades são levadas a se configurar
em torno de tais figuras delineadas a priori, independentemente de contexto - geográfico,
nacional, cultural, etc. -, submetendo-se a um movimento de homogeneização generalizada.
104

Identidades locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis.
Estas acompanham o ritmo alucinado de mudanças do mercado, mas nem por isso deixam de
funcionar sob o regime identitário. (ROLNIK, 2000, p. 5)

Ao tentar fazer uma atualização do princípio antropofágico na sua relação com a


esquizoanálise proposta por Deleuze e Guatarri, Rolnik percebe como a suposta diferenciação
do mundo contemporâneo não necessariamente estaria vinculada à uma quebra do princípio
identitário. A sociedade capitalista atual baseia-se na fragmentação, mas não para acabar com
a referência na identidade. É a partir de um modelo padrão que as diferenças se organizam e
as mercadorias se multiplicam em cheiros, cores e gostos. É o mesmo padrão de subjetividade
que se fortalece nas novas tecnologias da imagem e da comunicação. Não que estas tragam
em si este sentido, mas, diria Oswald, as tecnologias hoje tem um uso predominantemente
patriarcal, já que a Revolução Caraíba ainda não ocorreu para transformar a subjetividade
capitalista em matriarcal, antropofágica. É neste sentido que podemos pensar, diferentemente
de Homi Bhabha, que a condição pós-moderna não necessariamente favorece as vozes
dissonantes, desconcertantes. Elas existem, obviamente, - vemos índios utilizando a internet
para disseminar a guerrilha zapatista nos campos mexicanos, ou a marcha das vadias,
movimento feminista mundial, que se apropria do termo de conotação inicialmente machista
para promover uma nova libertação do corpo – entretanto, são ainda vozes abafadas pela
máquina capitalista. Ao invés da disseminação dessas forças, o contexto pós-queda do muro
de Berlim, o medo do terrorismo e do Outro imigrante parecem propagar o capitalismo, sua
força militar, sua capacidade inovadora na expansão de mais-valia, a flexibilização do
trabalho. Diante disso, a diferença parece só poder existir em relação ao Rosto, diria Deleuze.
O entre-lugar é minado não mais pelo universalismo iluminista, mas pelo discurso da
pluralidade das nações, que de certa maneira ainda se baseia nos moldes universalistas.
Passando de Fanon à Bhabha, autores que se propuseram a pensar o lugar singular de
vozes marginais na luta anti/pós-colonial, percebemos como a Antropofagia se coloca entre
diversas concepções de alteridade dentre as tensões advindas dos contextos (pós-coloniais).
Foi possível também, pensar brevemente uma possível atualização da Antropofagia no mundo
de hoje: como esta só pode se constituir enquanto força oposta à subjetividade capitalista,
combatendo a lógica unificadora que ainda se impõe. Se o elogio do híbrido e da mistura foi
apropriado pelo capitalismo (inclusive pelo Estado brasileiro com seu ideal de mestiçagem, já
citado nessa dissertação), a composição deste com a força antropofágica pode fazer com que o
híbrido não seja capturado pela lógica da identidade.
105

3.2 Exército Zapatista de Libertação Nacional

Escutaram? É o som do seu mundo desmoronando e do nosso ressurgindo.


(Exército Zapatista de Libertação Nacional)

Dentro da proposta de desterritorializar a Antropofagia, pensemos esta em sua relação


de afinidade com um movimento social atuante nos dias de hoje. Para tal, escolhemos o
movimento zapatista, o controverso grupo guerrilheiro nascido no final do século passado.
Esta escolha se deve ao seu caráter, não somente, mas marcadamente indígena, articulado a
uma postura crítica ao Estado e ao modelo de representatividade, o que se relaciona
diretamente com os debates já colocados nesta dissertação. Se por um lado nos parece
esquisita e improvável esta analogia transhistórica: os zapatistas provavelmente desconhecem
alguma notícia modernista antropófaga e o tempo histórico de Oswald de Andrade não lhe
permitiu conhecer o movimento mexicano. Por outro, como não pensar em Antropofagia
quando vemos indígenas vendados, sem rostos, espalhando-se como água em foz de rio,
corroendo o Estado, devorando os ideais do progresso que anunciavam sua desaparição?
Seguindo esta intuição-imaginativa tentaremos buscar algumas conexões que nos permitirão,
quem sabe, conhecer mais a própria Antropofagia.
Sabe-se que o movimento modernista em sua maioria queria se fazer mundo e carne:
não apenas transformar os meios intelectuais e artísticos, mas pensar na transformação da
sociedade como um todo, alcançar o “povo” - o primitivo também, diria Oswald. No entanto,
o alcance foi pouco, tanto pelo contexto de seu tempo, como pela tão citada distância entre
este grupo de intelectuais e o resto da população – afinal, eram boêmios, “palhaços da
burguesia” como anuncia o famoso prefácio de Serafim Ponte Grande (1933). De fato,
podemos dizer que o projeto modernista fracassou neste sentido, porém isso não nos impede
de pensar uma versão contemporânea antropofágica, obviamente com suas valorosas
singularidades, encarnada em movimento, luta e gente.
No princípio, eram seis pessoas, quase todos índios, que se deslocaram para Chiapas
no México, pensando em lentamente formar um exército popular e indígena que pudesse
transformar radicalmente a organização social desigual e racista que se demorava. Desde
então, o objetivo já não era tomar rapidamente o poder, como uma vanguarda que detém a
razão e inevitavelmente alcançará seus objetivos, mas sim “agir de acordo com as pretensões
106

do povo, sem se importar com o quanto isso demore.” (GENNARI, 2006, p. 20).
Relembrando Emiliano Zapata, vai se construindo o Exército Zapatista de Libertação
Nacional, que tem seu primeiro grande ato público em 1 de janeiro de 1994, quando depois de
mais uma eleição fraudada, homens e mulheres com os rostos vendados tomam de armas na
mão as sedes dos governos municipais de diversas cidades da região de Chiapas.

Fonte: http://radiozapatista.org/?lang=en

Surpreendendo as elites que acabavam de sair de suas luxuosas festas de réveillon e


mais ainda aqueles que anunciavam que a história não nos revelaria mais nenhuma surpresa
após o fim do comunismo de Estado. Este foi o início de uma tensa batalha, cheia de idas e
vindas que mobiliza até hoje boa parte da população mexicana. Não se trata aqui de
aprofundar os pormenores da origem e desenvolvimento do movimento, mas de traçar um
panorama que nos permita construir as conexões desejadas. Para tal, é importante destacar que
mesmo diante da dificuldade de enquadrar o zapatismo dentro de um modelo ideológico
fechado, é possível defini-lo como um movimento contra o Estado, que questiona a lógica da
representação. Entre eles se desenvolve a ideia de “mandar obedecendo”, ao invés de “mandar
mandando”. O porta-voz da comunidade não seria um líder ou um político que pode falar e
decidir pelos outros, mas deve total obediência as decisões e desejos em relação ao grupo que
o escolheu. Como dito por Emilio Gennari:

Nenhum conselheiro ou líder comunitário recebe salário e a comunidade custeia apenas os


deslocamentos, quando estes ocorrem a seu serviço (...) Nenhum cargo é garantido por um
107

determinado período de tempo. Seus ocupantes podem ser destituídos a qualquer momento,
caso não cumpram as decisões coletivas. (2006, p. 58)

Lembrando-nos o chefe clastriano que é um funcionário de sua tribo, a lógica de poder


proposta pelo zapatismo embaralha a divisão estatal (os que mandam x os que obedecem). É o
que coloca o trecho do seguinte discurso proferido pelo Subcomandante Marcos em 1999:
“Talvez la nueva moral política se construya en un nuevo espacio que no sea la toma o la
retención del poder, sino servirle de contrapeso y oposición que lo contenga y obligue a, por
ejemplo, mandar obedeciendo.” O movimento Zapatista questiona a lógica da democracia
representativa – ligada a própria consolidação do Estado e ao surgimento de outras noções,
como a de cidadania, que foi por muitas vezes naturalizada como a única possibilidade de
democracia - , buscando dar ênfase a um tipo de democracia direta, composto por uma
mistura de ideais libertários com as formas de organização política dos indígenas.
No entanto, não se pode negar que dentre os zapatistas destaca-se a figura do
subcomandante Marcos. Com seus famosos comunicados cheios de qualidades literárias, ele
“emerge como um sujeito que realiza a ponte entre o mundo
branco/ocidental/capitalista/colonizador e o mundo comunitário/indígena/colonizado.”
(BRANCALEONE, p.67) Ele é uma espécie de porta-voz que busca fazer com que as
colocações indígenas sejam escutadas e disseminadas pelos brancos. Vemos como coloca-se
uma relação bem distante do que se esperaria de uma liderança política, uma vanguarda
clássica. Como todos os zapatistas, o subcomandante Marcos só aparece publicamente com o
rosto vendado. Muitas são as especulações, principalmente do governo mexicano, sobre a sua
“verdadeira” identidade. Um intelectual universitário que vive entre os índios? Um mestiço
escondido na cidade? O fato é que as dúvidas persistem. E se por acaso matassem ou
morresse de gripe aquele que assumiria esta identidade, rapidamente outro ou outros
poderiam ocupar seu lugar (se já não ocupam). Homens e mulheres vendados, sem rostos, se
disseminam sem a necessidade da lógica do indivíduo, sem o culto à personalidade.
Esta opção política é aprofundada e acaba por se desenrolar em outra epistemologia e
mesmo outra ontologia. Sobre isso, vejamos um trecho do texto Acima, pensar o branco. A
geografia e o calendário da teoria, escrito pelo Subcomandante Marcos (2008, p. 36): “Desde
a ociosa reflexão de Descartes, a teoria de cima insiste na primazia da ideia sobre a matéria. O
‘penso, logo existo’ definia também um centro, o eu individual, e o outro como uma periferia
que se via afetada ou não pela percepção desse eu. (...) O que estava fora do alcance da
percepção do eu era, e é, inexistente.” A ideia de homens sem rostos pode ser levada, então, às
108

últimas consequências, constituindo uma epistemologia que não se baseia na noção de “eu”
cartesiano, o que sem dúvida nos remete ao paradigma da devoração, já trabalhado nesta
dissertação, que coloca o próprio “eu” enquanto relação.

Fonte: http://radiozapatista.org/?lang=en

Esta entidade sem rosto, o subcomandante Marcos, existe a partir da interlocução com
diversos personagens fictícios ou não. O principal deles é o Velho Antonio pertencente a um
dos primeiros grupos indígenas que compuseram o EZLN por volta de 1984. Este senhor teria
morrido de tuberculose dez anos depois nos primeiros momentos da revolta, mas durante esta
década travara um grande diálogo com Marcos que permaneceria mesmo após sua morte. É a
partir dessas duas figuras que se estabelece a relação de tensão e composição entre a cultura
da esquerda armada e a cultura indígena de Chiapas. Uma relação antropofágica, aonde um
devora pedaços do outro, para lutar contra o Estado e contra o Rosto. Segundo Walter
Mignolo, este processo pode ser entendido como uma “dupla tradução”, na qual há a
transformação do marxismo pelas línguas e cosmologias indígenas, ao mesmo tempo em que
o marxismo influi na epistemologia indígena, dentro de uma situação de epistemologias
cruzadas. Este diálogo deixaria em pé de igualdade as cosmologias da esquerda e indígenas,
ou seja, colocaria o próprio marxismo como um ponto de vista, uma cosmologia dentre
109

outras, o que muitas vezes foi considerado um crime pelos próprios marxistas. Os Zapatistas
conseguiriam, para o autor, colocar em cheque a pretensão do Ocidente de governar o mundo
em nome da universalidade e de seus valores.
A partir disso, criam-se imagens e narrativas em que aquele considerado bárbaro é
protagonista e ganha força na luta política. Como a história dos “homens de milho”, o milho é
um importante elemento mítico, alimentar, econômico dos indígenas da região. Segundo narra
o Velho Antonio para Marcos, existem diferentes tipos de homens criados pelos deuses
primeiros, dentre eles os homens de ouro, os de madeira e os de milho:

As duas primeiras classes se corromperam em uma relação de dominação (ouro/madeira;


branco/moreno), e os homens de milho, os chamados “homens verdadeiros”, que
representariam aqueles “sem rosto”, seriam de todas as cores, e trariam mudança a esse
mítico primeiro estado de corrupção. (BRANCALEONE, p. 69)

É a partir de acionamento da cosmologia indígena local que se constrói uma prática


contra o Estado, pela qual os “homens de milho” denunciam o ideal civilizatório utilizado no
discurso colonial e capitalista:

El despojo y robo de tierras y recursos naturales, pero ahora con las ropas nuevas de la
“modernidad”, el “progreso”, la “civilización”, la “globalización”. (...) El desprecio que
recibimos por nuestro color, nuestra lengua, nuestra forma de vestir, nuestros cantos y bailes,
nuestras creencias, nuestra cultura, nuestra historia, de la misma forma que hace 500 años,
cuando se discutía si éramos animales a quienes había que domesticar o fieras a quienes
había que aniquilar, se referían a nosotros como inferiores. (Discurso Subcomandante
Marcos outubro de 2007, México)

Animais a serem domesticados ou feras que deveriam ser aniquiladas: neste trecho o
subcomandante Marcos identifica o que Pierre Clastres nomeou de etnocídio e genocídio.
Fica implícito também o resultado destas duas práticas: a destruição do Outro. E é evocando
estes Outros que o zapatismo busca se colocar. Assim, vemos seus comunicados (que estão
todos disponíveis em http://palabra.ezln.org.mx/) direcionados tanto a lésbicas, homossexuais,
transexuais, como também aos imigrantes não só mexicanos, mas hondurenhos,
nicaraguenses, porto-riquenhos e alguns comunicados que incluem até às crianças.
Outro ponto interessante diz respeito a como são tratados os crimes e suas respectivas
punições. Os zapatistas preferem não recorrer às prisões caso ocorra algum delito, mas tratam
este a partir das pressões da própria comunidade. Se um homem rouba ou destrói a casa de
alguém, ele será pressionado para reconstruí-la, ao invés de ser isolado do grupo. Se alguma
pessoa mata outra, ela não será encarcerada, mas terá que trabalhar para sustentar a família do
110

morto. Isso nos remete à diferenciação proposta por Lévi-Strauss em Tristes Trópicos. O
antropólogo diferencia as sociedades antropofágicas das sociedades antropoêmicas pelas suas
diferentes maneiras de lidar com a alteridade. Enquanto a antropofagia percebe a “absorção de
certos indivíduos detentores de formas temíveis, [como] o único meio de neutralizá-los e
mesmo de aproveitá-los” (p.158), a antropoêmia que vem do grego emein, vomitar, “posta
diante do mesmo problema, escolheu a solução inversa, expulsando esses seres temíveis para
fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados” (ibidem). Ao
contrário das práticas comuns às sociedades ocidentais, que aumentam suas prisões a cada
dia, é para uma postura antropofágica que apontam as práticas zapatistas, buscando não
vomitar aquele que comete uma prática estranha e indesejada ao grupo, mas sim trazê-lo para
dentro da comunidade.
Para terminar este breve sobrevoo em Chiapas, atentemos para o seguinte trecho do
discurso do subcomandante Marcos:

En estas tierras, que llamaron “nuevo mundo”, ellos impusieron su geografía. (...) Hubo
desde entonces “norte”, “sur”, “oriente” y “occidente”, y fueron acompañados de signos de
poder y destruición. Los 7 puntos cardinales de nuestros antepasados (el arriba, el abajo, el
frente, el detrás, el un lado, el otro un lado, y el centro), fueron olvidados y en su lugar llegó
la geografía de arriba con sus divisiones, fronteras, pasaportes, green cards, minuteman, la
migra, los muros fronterizos. (...)Porque cuando levantamos nuestro pasado, nuestra historia,
nuestra memoria, como bandera, no pretendemos volver al ayer, sino construir un futuro
digno. (Discurso Subcomandante Marcos outubro de 2007, México)

Buscando recuperar aqueles costumes considerados “bárbaros”, os zapatistas querem


apontar para o futuro. Como Oswald de Andrade para quem a reabilitação dos elementos
antropofágicos só poderiam servir para uma transformação rumo ao amanhã. Seria talvez
exagerado, mas, não totalmente impróprio, dizer que um tipo de Revolução Caraíba está em
curso. Afinal, já tínhamos o surrealismo, a idade de ouro e até o comunismo...

3.3 Davi Kopenawa, os xapiri contra o povo das mercadorias

Eu sou da América do Sul/ Eu sei vocês não vão saber...

(Milton Nascimento)
111

Já vimos neste subcapítulo que a Antropofagia literária coloca-se enquanto perspectiva


crítica às condições de dominação cultural ainda presentes nos povos que haviam sido
colonizados, o que se estendia não só para o domínio das artes, mas para a sociedade como
um todo. É nesse sentido que continuando o diálogo entre a Antropofagia oswaldiana e a
literal, Viveiros de Castro se coloca como um herdeiro antropofágico: “vejo o perspectivismo
como um conceito da mesma família política e poética que a antropofagia de Oswald, isto é,
como uma arma de combate contra a sujeição cultural da América Latina. O perspectivismo é
a retomada da antropofagia oswaldiana em novos termos” (p. 129) Esta arma de combate
inverte o vetor colocado pela lógica civilizatória: não são mais os bárbaros que deveriam
aprender com os civilizados, mas sim teriam muito a ensinar. Assim, posicionam-se
pensadores pós-coloniais, zapatistas e antropófagos.

http://www.proyanomami.org.br/arte01.htm

Esta mesma preocupação é colocada por Davi Kopenawa ao escrever o livro “La chute
du ciel” em conjunto com o antropólogo Bruce Albert. O livro que trata da história da vida
deste xamã yanomami, é ao mesmo tempo auto-etnográfico e um manifesto cosmopolítico. A
partir da cosmologia de seu povo, da relação que este estabelece com a floresta, o autor critica
o modo de vida do homem branco, do “povo das mercadorias”, da sua relação destrutiva com
o ambiente. A floresta não estaria vazia como pensam os brancos, mas estaria repleta de seu
112

valor de fertilidade, o que foi promovido por Omama. A floresta e o mundo estariam cheios
de espíritos, xapiris, que a ajudam a se tornar mais fértil.
Estes apontamentos nos levam para a crítica de um importante aspecto do mundo
moderno, que vem sendo debatido pela própria antropologia. A análise de Davi Kopenawa
nos remete aos estudos de Marcel Mauss, no famoso texto Ensaio sobre a Dádiva. Ao se
debruçar sobre o direito e as trocas de diferentes sociedades, o antropólogo diferencia a troca
dádiva presente nas sociedades primitivas da troca utilitarista presente nas sociedades
modernas. A troca dádiva tendo aparente voluntariedade é na verdade, ao mesmo tempo,
imposta e interessada. Pois quando se dá um presente a alguém, aquele que recebeu acaba por
ficar em dívida com o que presenteou (o torna inferior, devedor em relação ao outro). Este é
obrigado, então, a retribuir com um objeto de igual ou maior valor para que saia dessa posição
inferior. É o que aparece no trecho em que Marcel Mauss se refere às trocas do direito Maori:
"Se o presente recebido, trocado, obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo
abandonada pelo doador ela ainda conserva algo dele. Por ela, ele tem poder sobre o
beneficiário, assim como por ela, sendo proprietário, ele tem poder sobre o ladrão" (idem, p.
198). Vemos que o objeto dado carregaria uma parte da pessoa que deu, como diz o autor
(p.208): "presentear alguém é presentear alguma coisa de si - é preciso retribui a outrem
aquilo que é parcela de sua natureza, substância." O autor argumenta que essas trocas,
diferentemente da troca utilitarista, são trocas entre coletividades (e não indivíduos), em que
as coisas trocadas passam pela utilidade, mas não se restringem ao mercado. Pois no
momento da troca o próprio objeto torna-se a pessoa, e essa pessoa não equivale ao indivíduo
isolado, mas é uma coletividade, uma pessoa moral, podendo se confundir com os próprios
objetos48. Esses fatos estudados seriam "fatos sociais totais", pois movem a totalidade da
sociedade e das instituições - misturando o jurídico, econômico, religioso, mágico... É o que
aparece no trecho:

Em tudo isso há uma série de direitos e deveres de consumir e de retribuir, correspondendo a


direitos e deveres de dar e receber. Mas essa mistura íntima dos direitos simétricos deixa de
parecer contraditória se pensamos que há antes de tudo mistura de vínculos espirituais entre
as coisas, que de certo modo são alma, e os indivíduos e grupos que se tratam de certo modo
como coisas. (idem, p.202)

Ou ainda, "tudo se conserva, se confunde; as coisas têm uma personalidade e as


personalidades são, de certo modo, coisas permanentes do clã." (p. 263) São relações

48
Vemos aí a desestabilização dos conceitos de pessoa x objeto.
113

antropofágicas entre pessoas e coisas, que fundem-se e confundem-se, como confunde-se a


imagem (talvez) humanizada do Abaporu com a paisagem, o que é impensável para o
pensador de Rodin. Como a floresta é ela mesma viva e composta por seres vivos, que se
relacionam, trocam, dão vida aos Yanomami.
Entre a troca-dádiva, com seus pés e objetos famintos, e o utilitarismo, Marcel Mauss
fica com a primeira, defendendo seus resquícios presentes na era moderna: “Felizmente, nem
tudo ainda é classificado em termos de compra e venda. As coisas possuem ainda um valor
sentimental além de seu valor venal’’(p. 294). E ainda acrescenta, opondo-se à lógica
individualista: “Assim de uma ponta à outra da evolução humana, não há duas sabedorias.
Que adotemos então como princípio de nossa vida o que sempre foi princípio e sempre será:
sair de si, dar, de maneira livre e obrigatória; não há risco de nos enganarmos.” (p. 301) Sair
de si, mais uma vez, aparece como uma forma de opor-se à concepção de mundo utilitarista
moderna. Se para Mauss, nosso direito deveria superar a moral calculista e utilitária para
retornar a troca-dádiva (o que não seria um retrocesso), para Oswald, sem retrocessos,
deveríamos viver uma nova era cultural coletivista do matriarcado. A mesma lição é passada
por Davi Kopenawa que denuncia a sórdida ação do povo das mercadorias na floresta. Os
seres das florestas não podem ser tratados como objetos sem vida, mas eles próprios agem no
mundo, alegram-se e entristecem-se.
Para ir além, podemos ver como estas análises apontam para diferentes relações entre
trocas e objetos. Enquanto no mundo moderno as coisas seriam produzidas para as trocas, nas
outras experiências descritas as coisas são produzidas pelas trocas. As trocas e
consequentemente as relações assumem um papel principal. Mas, poderíamos apontar
diferenças na maneira de qualificar estas trocas. Se na descrição de Marcel Mauss as trocas
aparecem primeiramente como uma relação de reciprocidade (vemos o “aspecto sentimental”
destas, destacado pelo autor), penso que a Antropofagia ressalta a agressividade presente. Se
ambos falam da vontade de trocar substâncias entre diferentes seres (pessoas, objetos,
animais...), a Antropofagia dá um caráter de combate mais explícito. Não que
desconsideremos a rivalidade presente no potlach, ou até nas “despretensiosas” trocas de
presente de natal, mas estas parecem ficar em segundo plano diante da reciprocidade que se
funda. Podemos dizer que em Oswald de Andrade é a devoração que rege e que por
consequência resulta na reciprocidade.
Mas, para voltarmos aos escritos de Davi Kopenawa, reparamos que ao narrar sua
trabalhosa aprendizagem para ser xamã, tornar-se outro, o escritor conta sobre a força da
cultura de seu povo e dispara sem medo ao longo das páginas: os brancos não sabem disso, os
114

brancos não conseguem compreender. Os Yanomami não deveriam se tornar brancos, mas sim
estes deveriam aprender com os Yanomami: “Hoje, os brancos pensam que nós deveríamos
imitá-los em tudo. Mas não é isso que nós queremos. (...) Eu penso que nós só poderíamos
virar brancos no dia em que eles mesmos se transformem em Yanomami.” (p.49 – tradução
minha) A mesma inversão feita por Oswald é feita por Davi, com a diferença do uso da
Antropofagia. Se para Oswald a Antropofagia deveria ser utilizada enquanto valor positivo,
Davi utiliza o termo canibal para tratar das destruições feitas pelos brancos (os garimpeiros
que devastaram suas terras, o ouro que traz toda destruição é que são canibais). Mas, o
resultado é o mesmo: denunciar a ação destrutiva dos brancos seja em relação ao ambiente,
seja em relação a diferentes modos de vida, o etnocídio, como dito por Pierre Clastres (2011).
Este etnocídio teria como um dos seus grandes protagonistas a ação dos missionários.
Davi Kopenawa dedica um capítulo de seu livro narrando a chegada dos seguidores de Teosi
(deus dos brancos). Estes buscavam lhes convencer a todo o custo das palavras de seu deus e
perseguiam aqueles que continuavam com as práticas xamânicas. Os missionários atacavam
com frases imperativas: não fume, não copule com as mulheres dos outros, ore para Teosi
todos os dias. Se de início os Yanomami sentiram algum interesse pelas palavras destes
homens, tentando se concentrar nas palavras de Teosi, logo esse interesse se dissipou. Eles
começaram a se questionar: como podemos acreditar em um deus que nos ameaça a todo
instante de queimar no inferno? Por mais que se esforçassem não conseguiam enxergar a
imagem de Teosi. Davi dá sua resposta definitiva aos brancos: “Nós ignoramos aquilo que,
para nos assustar, as pessoas de Teosi chamam de pecado. Nós não somos malvados. Nós
simplesmente não somos brancos. Nós somos aqueles que nossos ancestrais sempre foram!”
(p. 286 – tradução minha) Os conflitos entre missionários e índios foram se tornando mais
frequentes, resultando em agressões, epidemias e mortes de muitos Yanomami.
A crítica ao cristianismo e seu papel devastador também é feita pela Antropofagia
oswaldiana, como vemos no trecho de O Antropófago (1991):

O primeiro propósito dos colonizadores foi modificar a weltanschauung que dominava os


dias dos naturais. ‘É preciso salvar essa gente!’ berrava na sua carta a Dom Manuel de
Portugal o autorizado escrivão da frota de Cabral. Salvar significava inocular nos nativos
uma ideologia que permitisse e desenvolvesse o trabalho escravo. Era preciso que eles se
convencessem de que a existência na terra era um simples trânsito. E que o paraíso, em vez
de ser a mulher nua nas praias cálidas, o coco sumarento e a carne do adversário, era a
estática teoria de anjos e de almas, perante a gozoza e eterna presença insípida de Deus,
como inventara o Dante. (1991, p. 282)
115

O cristianismo através de seus argumentos morais carregaria o germe do messianismo,


da aceitação do trabalho e da “moral de rebanho” tão importante para a constituição da
civilização moderna. A ideia de um Deus transcendente substituiria o modo de vida da
felicidade terrena, possibilitando o avanço da exploração. Sobre isso, continua o autor: “Era
preciso ‘salvar’ aquela gente ou, como melhor exprimiu um colonizador inglês dar-lhes
‘calças e bíblias’. Para que, de cabeça baixa, aceitassem o chicote que os matasse de pena
física, para os conduzir entre tronos e querubins até a visão mirífica de Deus.” (ibidem) Só
sem as “calças e as bíblias”, os recalques, a negação da vida, impostos pelo cristianismo, seria
possível um modo de vida mais alegre, existente entre os homens antropófagos. Com este
sentido constrói o poema: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha
descoberto a felicidade”. Davi Kopenawa também ironiza a ideia de descoberta do Brasil,
sempre reiterando que as terras nunca estiveram vazias, desde sua criação por Omama elas
estão habitadas. E acrescenta mais, afirmando que enquanto os brancos ainda não haviam
chegado, os índios eram muito mais felizes sem desmatamento, nem epidemias.
Vimos, portanto, a denúncia feita por ambos os autores em relação a força destrutiva
da chegada do homem branco, povo da mercadoria, diria Davi, homem da economia do haver,
diria Oswald. Este homem que não admite a diferença.
Por fim, vale questionar: ao construir este projeto político da Antropofagia, onde a Lei
que importa é o interesse pelo Outro, qual seria o local da igualdade? É possível conciliar a
vontade da multiplicidade com uma relação entre iguais? Uma possível resposta para essas
questões está nos apontamentos feitos por Luiza Elvira sobre as relações de gênero. Este tema
ainda ganha especial interesse, pois perpassa a própria temática oswaldiana da afirmação do
matriarcado primitivo em oposição ao patriarcado ocidental. Segundo a antropóloga, para
compreender as sociedades amazônicas seria preciso se desvincular do olhar advindo das
sociedades ocidentais que percebe o machismo em todas as relações de gênero. Pois este tipo
de posição acabaria por ignorar a agência das mulheres que se apresenta em outras
sociedades. Nas sociedades amazônicas a diferença de ações e corporalidades entre os homens
e as mulheres não necessariamente construiria um tipo de relação hierárquica. Nelas é a
diferença que possibilita uma relação de complementaridade e consequente igualdade. O que
existiria, como no paradoxo clastriano da chefia sem poder, seria a igualdade na diferença.
Como a igualdade proposta por Oswald na volta do Matriarcado, com a “reabilitação do
primitivo”, onde o antropófago, produtor da diferença, pode viver sem a dominação patriarcal,
sem as relações desiguais marcadas pela chegada do homem branco. Esta igualdade não
equivale a uma harmonia, uma ausência de conflitos, mas, seguindo com os paradoxos, a
116

igualdade matriarcal só seria possível através da predação, da vida enquanto um constante


devorar.
117

4. Conclusão

Chegamos ao fim desta empreitada antropofágica. Mais um desafio se coloca: a que


conclusões chegamos? Será que conseguimos dar conta da tarefa de "levar a sério" os escritos
oswaldianos? Perguntas difíceis de serem respondidas. A última, para nosso alívio, pode ficar
por conta do leitor. Não apenas como uma aprovação ou não, mas a questão é se esta
recuperação antropófaga pode ter alguma ressonância para a vida, se vai seguir agindo no
mundo - esperamos saber cedo ou tarde. Já a primeira fica a nosso encargo e, na verdade,
talvez não seja verdadeiramente respondida, pois pode ser que ao invés de conclusões e
pontos finais encontremos, por fim, novas questões e caminhos.
A começar pelo estudo de textos literários através da antropologia. Observamos que
neste campo carregamos a dificuldade de trazer além dos desafios da própria disciplina, os
desafios da crítica literária: dar ênfase a construção poética interna ao texto (rimas, figuras de
linguagem, métrica...), ao sentido do texto, ao contexto histórico? Neste trabalho, buscamos
não resolver esse complicado dilema, mas sim tentar abordar todos esses aspectos no que eles
podem nos servir. E aí, então, podemos dizer que nos apoiamos no método antropológico:
quais destes aspectos podem nos ajudar a pensar com os escritos? Uma tentativa de navegar
por esses mares ainda pouco explorados de encontro entre antropologia e literatura.
Esperamos, então, ter podido contribuir para esta caminhada, ao pensar colaborações
da Antropofagia literária (nada sistemática, nem adequada aos padrões científicos) para
questões antropológicas. Ficam abertas muitas portas e curiosidades para aprofundar outros
estudos que não puderem ser desenvolvidos aqui. Como os escritos de Guimarães Rosa, que
com todas as suas especificidades e grandezas, compõem, a sua maneira, com os escritos
oswaldianos. Em Conversa de bois, o escritor trata de um tema caro à antropologia hoje. Bois
marcados por subjetividades profundas expressam pontos de vista trocando com gente, boi
virando gente (e vice-e-versa). É uma experiência perspectivaste que retrata o autor nas suas
páginas cheias de neologismos e estórias do sertão.
A literatura pode criar, retratar, multiplicar mundos e experiências outras. Ela não só
traz aspectos da sociedade consigo, como também influi neles. Buscamos aqui tratar da
experiência antropófaga na literatura e no mundo, sua crítica, abocanhamento da experiência
moderna.
118

Na verdade, é de diferentes experiências que tratamos aqui. Um pouco como Walter


Benjamin em seu ensaio O narrador. Nele, o autor define a modernidade como a época da
informação se sobrepondo à época das narrativas. Com o florescimento do romance, acabam
os grandes narradores, que recorriam às teias de experiências coletivas como fonte de suas
narrativas. O narrador seria aquele que sabe "dar conselhos", consegue tornar comunicável a
experiência, incorporando as coisas narradas à experiência de seus ouvintes. Já o romancista
segrega-se, existindo enquanto indivíduo isolado, materializa-se na leitura solitária do livro, o
que seria muito distinto da tradição oral do narrador. O autor continua, afirmando que
enquanto a tradição oral é aberta, dando margem para diversas explicações, na informação os
fatos já nos chegam como explicações puras não necessitam de continuação, não
compartilham experiências. A narrativa seria, então, uma forma artesanal de comunicação,
que não busca transmitir o puro em si, mas mergulha a coisa na vida do narrador.
Deixando de lado o pressuposto de que a narrativa carrega consigo mais experiências
do que a informação49 aproveitamos a ideia benjaminiana de como funciona a comunicação
moderna baseada na lógica do individualismo em oposição a do narrador. Sobre este segundo,
o filósofo nos diz: "O narrador sabe dar conselhos pois pode recorrer ao acervo de toda uma
vida, o que inclui não apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia." (p. 221) O narrador abocanharia experiências de outros para fortalecer suas
narrativas, fugindo da objetividade da informação, preocupada apenas em apresentar um fato.
Podemos dizer que ele teria uma "alteridade antropofágica", buscando "alargar a experiência
humana" de suas histórias, em contraposição ao indivíduo do romance, voltado para si,
preocupado com o perseverar dos fatos puros.
Como vimos, a experiência antropófaga deslocada da experiência moderna da
informação, é muito mais do que a constatação de que a "assimilação cultural" seria uma
característica do povo brasileiro. Ela aponta para uma outra metafísica (canibal), podendo ser
concebida, como aponta Castro Rocha em palestra na FLIP, como a imaginação teórica da
alteridade. Na qual a alteridade tem a primazia, o que transforma a ontologia em odontologia
(mastigação).

49
Seria incoerente com a proposta antropofágica pensar que não há (ou há pouca) experiência nas socialidades
individualistas, trata-se, na verdade, de outros tipos de experiência. Sobre isso escreveu Simmel, ao
descrever a vida nas grandes metrópoles, percebeu que com a intensificação dos estímulos, surge a
incapacidade de reagir a todos eles, o que levaria a uma atitude de indiferença, de proteção contra os
estímulos externos, chamada de "atitude blasé". Com isso, o indivíduo se coloca reservado também diante do
outro, já que não pode se relacionar afetivamente com todos. Esta configuração individualista não é a
independência do indivíduo em relação a sociedade, mas sim uma forma de socialidade, de experiência
distinta da do narrador, por exemplo.
119

Se a antropologia pode ser considerada como ciência da alteridade, podemos dizer que
Oswald de Andrade faz uma operação estritamente antropológica. Consegue através do
contato com as sociedades ameríndias repensar o próprio modo de vida (e a metafísica) do
Ocidente. Pratica, com isso, uma das principais tarefas da antropologia: devolver uma
imagem de nós mesmos onde não nos reconheçamos, uma empreitada anti-narcísica, como
dito por Eduardo Viveiros de Castro (2009).
Através dessa operação, ao se debruçar sobre as sociedades ameríndias, com diversos
insights em relação à filosofia primitiva, o autor desmonta a noção de universalidade do
indivíduo, desconstruindo, com isso, uma das principais bases da metafísica ocidental.
Contribui, assim, para um debate que toma a antropologia50 há tempos: nem todas as
sociedades concebem a ideia de indivíduo - como pensou por muito tempo e ainda pensa parte
das Ciências Humanas. Ao afirmar a noção de cordialidade como fundada na alteridade, o
“interesse pelo que não é seu”, a valorização do ritual antropofágico (que é elevado a um
modo de vida) aponta para diversos aspectos (dentre outros apontados aqui) imbricados na
construção dessa metafísica canibal que culminam na equação “Eu – Relação”. O que se
diferencia da máxima típica do Ocidente onde Eu aponta para si mesmo (sendo a própria
sociedade a soma desses Eu`s resultando ela mesma em um grande Eu). Entretanto, isto não
quer dizer que exista uma relação obrigatória de dualismo entre essas duas metafísicas. Se por
um lado a metafísica antropofágica combate e desconstrói a metafísica ocidental e sua
pretensão de universalidade, por outro elas estão vinculadas, podemos dizer de maneira
transversal, já que a própria antropofagia não se afirma enquanto essência, ontologia, mas sim
devora o que há de estranho, o que há de diferente, incluindo o modo de ser ocidental. Pois,
como já foi dito, a "alteridade antropofágica" volta-se para fora, afirma as relações enquanto
primado, ao invés da exclusão do diferente, do estrangeiro.
Isto não quer dizer, também, que se estabeleça uma prática relativista extrema, onde
tudo equivale a tudo. Onde tanto faz o que, como e para que se devora. Onde devorar um
positivista seja igualado a devorar um japonês imigrante. Onde as coisas percam cheiro, cor e
gosto, pois tudo é diferente e tudo se iguala ao mesmo tempo51. Em resposta a isso podemos
explicitar que a Antropofagia afirma seu caráter político, através da posição anti-colonial. Ela

50
Infelizmente, não cabe neste trabalho expor esse enorme debate em torno de obras como a de Marcel Mauss,
sobre a noção de pessoa, a de Louis Dumont, sobre as castas na Índia, dentre muitas outras.
51
Sobre isso é interessante rever a distinção entre a diferença antropofágica e a diferença no capitalismo e na
lógica do mercado, como colocado por Sueli Rolnik (2000).
120

está de um lado que multiplica-se: o lado da luta contra o poder52. E aqui, retomando o
anunciado na Apresentação desta dissertação, posicionar-se claramente não é um problema.
Temos ainda mais um álibi: nos posicionamos com o autor. Este, coloca-se a favor do bárbaro,
do primitivo, do louco, da criança, do povo, da mulher. Inverte, então, o vetor colocado pela
lógica civilizatória, em uma mudança não apenas epistemológica, mas ontológica, como já foi
dito. Não são os considerados bárbaros que devem aprender com o Ocidente, estando em um
estágio inferior da linha evolutiva da humanidade, mas teriam muito a ensinar. Podemos
imaginar que Oswald diria: já tínhamos o narrador antropófago em contraposição ao
indivíduo do romance, já tínhamos a troca-dádiva ao invés da troca-utilitária, já tínhamos
sociedades contra o Estado e não sociedades com Estado. É o início da transformação do tabu
em totem, do limite em vantagem, de Deus em inimigo.
E, assim, a alteridade e a modernidade se encontram na tentativa de pensar e
reivindicar uma alter-modernidade, já que até então a modernidade teria sido pensada sem
comportar o alter. Nesse sentido, o epíteto já tínhamos tão presente no Manifesto e nos
escritos antropofágicos, apresenta-se como fundado em uma tensão que é seu próprio motor:
ao mesmo tempo em que critica a concepção de moderno em prol da positivação do primitivo,
afirma que a própria lógica primitiva teria propiciado o moderno. Já tínhamos o surrealismo, o
comunismo... É nesse sentido que cria uma complexa relação: rejeitamos o moderno, mas
reivindicamos ter produzido aquilo que nele há de positivo. Com isso, a transversalidade da
relação entre moderno x primitivo sobrepõe-se a dualidade. A questão não é lutar contra o
moderno para destruí-lo, mas aproveitar o que lhe interessa, percebendo o viés primitivo da
própria modernidade.
Volta-se também a afirmar que a Antropofagia não é a devoração que tudo iguala, mas
há um forte discernimento político, entre aquilo que deve ou não interessar, aquilo que deve
ou não ser apropriado enquanto já tínhamos. Não interessa à Antropofagia a modernidade que
destrói a alteridade, em prol do etnocídio, do Mesmo. Este já tínhamos nos remete ainda a
uma operação comparável à de Bruno Latour ao afirmar que jamais teríamos sido modernos.
Dentre muitas questões, o escritor desconstrói a ideia de que os modernos são como realmente
pensam que são: que existiria a separação entre humanos e não-humanos, entre natureza e
cultura nas sociedades ditas modernas. Se ser moderno é compartilhar essas características,
então a modernidade jamais teria existido. Na analogia com a Antropofagia oswaldiana, se
esta proporia também esta desconstrução, pensando que estas características não são

52
Neste sentido, podemos retomar a citação de Michel Foucault e Gilles Deleuze no texto: Os intelectuais e o
poder.
121

universalizáveis, isto não se daria na tentativa de restringir o sentido de moderno (a um


discurso que não condiz com a realidade), mas sim de dar uma polissemia conflitante à noção
de moderno, que não poderia ser pensado separado do primitivo, do outro, mas ao mesmo
tempo teria uma ruptura radical com este.
Para ir mais além, podemos ver que se até aqui já abordamos a desconstrução
antropofágica da lógica do indivíduo (e consequentemente, sociedade), em prol de uma
ontologia das relações, talvez tenhamos deixado um pouco de lado o debate tão caro à
antropologia das concepções de natureza e cultura. É verdade que deixamos alguns
apontamentos, principalmente, na relação com as sociedades ameríndias. Para seguir uma
outra pista caberia investigar e pensar o que Oswald de Andrade propõe com a volta do
“homem natural”. Mas, infelizmente, isto ficará para outros estudos.
Esperamos também que este trabalho possa ter contribuído na constituição de um
panorama de algumas interpretações críticas sobre a Antropofagia. Diversas e divergentes
posições foram apresentadas, de maneira difusa, no decorrer do texto. Passamos desde a
crítica imbuída do marxismo ortodoxo de Robert Schwartz até a tentativa de composição
entre a Antropofagia e a Esquizoanálise, proposta por Sueli Rolnik. Buscamos devorar o que
foi necessário (e apetitoso) de cada uma, até chegar a questões da atualidade.
Infelizmente, mesmo com a retomada dos escritos antropofágicos no século XXI, o
cenário é bastante aterrador. Por trás do ideal Brasil, "país de todos", o que não por acaso nos
remete a noção de mestiçagem, ou Brasil, "país do futuro", herdeiro do ufanismo da década de
30, está a lógica Patriarcal (no sentido amplo dado pelos antropófagos). O nacional-
desenvolvimentismo presente aponta para o etnocídio: índios são expulsos e mortos para a
construção de hidrelétricas, tudo em nome do "progresso" da nação. Se o Brasil é o país da
diversidade, o é nos moldes do Estado, é o Estado que decide quem deve viver e sobreviver.
Nesse contexto, ainda se mostram urgentes e atuais os questionamentos antropofágicos: a
mestiçagem e o ideal da diversidade são pensamentos da multiplicidade? Para onde nos levará
aprisionar o pensamento em termos de teoria do Brasil? Para onde nos levará o ideal de
progresso? Como fortalecer as perspectivas "do povo, da criança, do primitivo e do louco"?
Questionamentos imensos que seguem vivos, incomodando, criando novas possibilidades.
Não cabe aqui, obviamente, esgotar essas questões. Jamais nos propusemos a isso, nem
acreditamos que seria de dentro dos muros da universidade que sairiam essas respostas. Como
dito no início desta conclusão, talvez ao invés de conclusões tenhamos mais perguntas, só a
certeza de muitos caminhos a seguir. O que buscamos fazer, no capítulo 3 dessa dissertação,
foi mapear e conectar algumas experiências de atualização de desejos antropófagos, de lutas
122

antropófagas. O Zapatismo, Davi Kopenawa e as teorias pós-coloniais são pensamentos e


práticas que dotam a alteridade de um intenso caráter político e combativo. Cada um a sua
maneira, colocam questões que atravessam os problemas da Antropofagia, que desconsertam
a metafísica ocidental, que positivam o bárbaro, o primitivo.
Além disso, lidamos (com o autor) com a interessante tensão colocada por Strathern
em O Gênero da Dádiva. Ao tratar da relação entre o feminismo e a antropologia, a autora
afirma como estes poderiam acarretar em dois radicalismos: a posição feminista estaria
vinculada a uma prática política radical - pois preocuparia-se com a transformação do estado
de coisas e o fim do patriarcado -, ao mesmo tempo em que estaria dotada de um
conservadorismo conceitual, enquanto a antropologia estaria em uma situação inversa: seria
inovadora conceitualmente, mas com baixo nível de intervenção na transformação do mundo.
Nas palavras da autora:

Transformar a maneira de pensar pode ou não ser visto como uma ação prática, mas o
radicalismo acadêmico, por outro lado, parece frequentemente resultar em uma ação
conservadora ou uma inação. A política radical, por sua vez, tem que ser conceitualmente
conservadora, ou seja, sua tarefa é a de operacionalizar conceitos ou categorias já
conhecidos, tais como ‘igualdade’ ou ‘homens’. (STRATHERN, p 60)

Neste sentido, acreditamos que a Antropofagia literária esteve sempre imbuída dessa
tensão e talvez tenha até conseguido apontar caminhos para contorná-la (seu desprendimento
em relação a certas exigências acadêmicas e em relação a certas ortodoxias políticas pode ter
colaborado para isto). Por um lado, a Antropofagia sempre colocou questões inovadoras e
relevantes: na sua ruptura com o marxismo estalinista, soube acrescentar outras questões ao
debate socialista, como a crítica ao patriarcado, à noção de progresso e à metafísica ocidental,
a afirmação das sociedades ameríndias. Outra inovação foi pensar estas sociedades (como
também as sociedades em geral) sem ter uma visão essencialista. É a transformação, a
devoração que constituem as sociedades. Ou seja, são as relações que as definem, sua forma
de lidar com a própria diferença. Podemos identificar na Antropofagia oswaldiana um
primado da diferença, ao invés da identidade. Isto permitiu também estar deslocado da
perspectiva do Estado-Nação (perspectiva esta ainda muito presente nos dias de hoje). Oswald
de Andrade consegue propor uma teoria contra o Estado, que não tem a construção do Brasil
enquanto ponto de partida, nem ponto de chegada.
Ao identificarmos todas essas inovações conceituais, nos perguntamos: será que há
também uma preocupação com a transformação direta no mundo? Não cabe aqui, o que segue
123

a própria orientação da dissertação como um todo, entrarmos em detalhes da conturbada


biografia pessoal de Oswald de Andrade. Mas, sim, pensarmos como a todo o momento a
proposta antropofágica se propõe a agir diretamente no mundo, não ficando limitado a uma
análise contemplativa e distanciada. A própria noção de vanguarda já se propõe a uma ruptura
e, como já dito, os anseios antropófagos iam para além do âmbito da arte, buscavam interferir
na sociedade de maneira ampla. Se por um lado o movimento (e nesse caso falamos dos
modernistas em geral) mudou profundamente o cenário da arte brasileira, por outro lado as
ambições modernistas, no que diz respeito às mudanças da sociedade como um todo, ficaram
muito aquém do desejado pelos próprios (um exemplo claro é o Congresso Antropófago, tão
esperado, que acabou não ocorrendo). De fato, a ressonância da Antropofagia até os dias de
hoje acabou sendo bastante restrita, mas nem por isso deixou de existir. Ela ocorreu de
diversas maneiras: na montagem do Rei da Vela, por José Celso Martinez, teve seu primeiro
pico, na recuperação tropicalista e concretista e, atualmente, dentro da própria antropologia no
Brasil53. Esperamos ter contribuído para essa recuperação, apontando portas e possibilidades
de devoração, mostrando a relevância da Antropofagia na atualidade. Ao tratarmos do seu
diálogo com teorias e movimentos sociais, sua crítica contundente à tríade capitalismo-
colonialismo-patriarcalismo tão proeminentes no mundo hoje, deixamos no vento a vontade
de aprofundar mais por esses mares. Muitas novas questões se abrem: como o nacional-
desenvolvimentismo ainda se desenvolve atrelado ao ideal de mestiçagem? Como articular a
crítica ao patriarcalismo com as novas teorias feministas? Como desenvolver o
posicionamento contra o Estado no capitalismo neoliberal? Que outros movimentos usam e
abusam da lógica antropofágica? Como seguirá a alteridade antropofágica das sociedades
ameríndias? Para que outras odontologias pode apontar a metafísica canibal? Estas, dentre
muitas outras questões ficam abertas pelas e para caminhadas antropófagas e antropológicas.
Apesar dos esforços contrários, a "reabilitação do primitivo" ainda é e será mote de prosas,
atitudes e transformações54. Seguimos e terminamos com o chamado feito por Oswald de
Andrade no final de sua vida:

Devido ao meu estado de saúde, não posso tornar mais longa esta comunicação que julgo
essencial a uma revisão de conceitos sobre o homem da América. Faço pois um apelo a todos

53
A recepção da Antropofagia oswaldiana seria interessante objeto de estudo de outra dissertação.
54
Já depois do fim da escritura dessas páginas e, por isso, presente somente ao fim delas, como uma nota, entra
para o debate público na cidade do Rio de Janeiro o conflito em torno da Aldeia Maracanã. Esta ocupação
indígena, situada ao lado do importante estádio de futebol, trouxe a tona os conflitos entre o projeto
desenvolvimentista e capitalista ligado aos megaeventos na cidade e o modo de vida indígena, o que inclui
suas reivindicações políticas e sua própria existência enquanto indígenas. Um evento que, sem dúvida,
merece ser analisado sobre a ótica antropofágica
124

os estudiosos desse grande assunto para que tomem em consideração a grandeza do


primitivo, o seu sólido conceito de vida como devoração e levem avante toda uma filosofia
que está para ser feita. (1991, p. 231- 232)

Este apelo nos lembra que a relação de Antropofagia com o modo de vida indígena vai
muito além de uma simples fonte de inspiração. Escutando o clamor de levar avante a
filosofia primitiva, a vida como devoração, quem sabe o que ainda virá nas terras do
matriarcado Pindorama?
125

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