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ESTUDANTE: ..............................................................................................................................................

1º ANO - ENSINO MÉDIO TURMA:......... Nº.......... II Trimestre


EDUCADOR (A): TATIANA CASTILHO DATA: .........../........../ 2022
COMPONENTE CURRICULAR: PRODUÇÃO TEXTUAL

Gênero – Conto
II Trimestre
Produção de Texto
Negrinha
Monteiro Lobato

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da
cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de
crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar
certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de
balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o
tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e
da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos,
não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim,
mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a
boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões
de desespero.

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— Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que
entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...

Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos
quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos
grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra
provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que
às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num
desvão da porta.

— Sentadinha aí, e bico, hein?

Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.

— Braços cruzados, já, diabo!

Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio
batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo
abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por
dentro, feliz um instante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo,
coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo,
cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo
houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se
logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista.
Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os
dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões
a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era
mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora
senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca
se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia!
“Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de
relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava
Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

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Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada
com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a
concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões:
do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A
esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de
marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para
desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho
de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos
nomes com que a mimoseavam todos os dias.

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.

Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua
choca, a rufar as saias.

— Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na
prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera
criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo
chegou a ponto, a boa senhora chamou:

— Venha cá!

Negrinha aproximou-se.

— Abra a boca!

Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou
da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos
amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas
só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que
chegava.

— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da
Cesária — mas que trabalheira me dá!

— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.

— Sim, mas cansa...

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— Quem dá aos pobres empresta a Deus.

A boa senhora suspirou resignadamente.

— Inda é o que vale...

Certo dezembro, vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas,
lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu
— alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente
para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo
tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo
mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e
veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos
ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se
vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me
corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande,
brinquem por aí afora.

— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a
dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa
assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que
falava “mamã”... que dormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse
brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

— É feita?... — perguntou, extasiada.

E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a
arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura
de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

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As meninas admiraram-se daquilo.

— Nunca viu boneca?

— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?

Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

— Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava,
disseram, apresentando-lhe a boneca:

— Pegue!

Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que ventura, santo
Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino,
sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si,
literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse
vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona
Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força
irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi
mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a
imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor
assomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas
palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera
antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E


para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o
momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta
a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão!
Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de

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luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia
impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

Assim foi — e essa consciência a matou.

Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao


ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de
coração, amenizava-lhe a vida.

Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto
que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno,
envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa,
tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação.
Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto,
ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de
anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num
disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas.

Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...

E tudo se esvaiu em trevas.

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma
miséria, trinta quilos mal pesados...

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das
meninas ricas.

— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

— “Como era boa para um cocre!...”

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Monteiro Lobato, natural de Taubaté (SP), nasceu em 18/04/1882. É uma das figuras
excepcionais das letras brasileiras. Jornalista, contista, criador de deliciosas histórias para crianças,
suscitador de problemas, ensaísta e homem de ação, encheu com seu nome um largo período da vida
nacional. Com a publicação do livro de contos "Urupês", em julho de 1918, quando já contava com 36
anos de idade, chama para o seu talento de escritor a atenção de todo o país. Cita-o Ruy Barbosa, em
discurso, encontrando no seu Jeca Tatu um símbolo da realidade rural brasileira. Lança-se à indústria
editorial, publica livros e mais livros — "Onda Verde", "Idéias de Jeca Tatu", "Cidades Mortas",
"Negrinha", "Fábulas", "O Choque", etc. Fracassa como editor, ao lançar a firma Monteiro Lobato &
Cia., mas volta com a Companhia Editora Nacional, ao lado de Octales Marcondes, e triunfa. Tenta a
exploração de petróleo, e acaba na cadeia, perseguido pela ditadura de Getúlio Vargas. Não só
escreve, como traduz sem pausa, dezenas e dezenas de livros, especialmente de Kipling. Uma vida
cheia. E uma grande obra, que lhe preservará o nome glorioso. Foi um grande homem, um grande
brasileiro e um dos maiores escritores — em todo o mundo — de histórias para crianças. Basta dizer
que, no período de 1925 a 1950 foram vendidos aproximadamente um milhão e quinhentos mil
exemplares de seus livros.

O texto acima foi publicado originalmente em livro do mesmo nome, tendo sido selecionado por
Ítalo Moriconi e consta de "Os cem melhores contos brasileiros do século", editora Objetiva — Rio de
Janeiro, 2000, pág. 78.

VI AGEM A P ETR ÓP OLIS


CLARICE LISPECTOR

Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo.
Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de
sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe
ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas
semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro.
Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa
educação:
— Mocinha.
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
— Nome, nome mesmo, é Margarida.
O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos.

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Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um
tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe pouca, pois ela era pequena e
realmente não precisava comer muito. Quando lhe davam cama para dormir davam-na estreita e dura
porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela também não agradecia muito: sorria e balançava
a cabeça.
Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga
cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do
tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama
de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um
dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:
— Passeando.
Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade. Mocinha nascera
no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que
pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum
dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás
uma pessoa sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro.
Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la
em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. De algum modo tinham razão. Todos Iá
eram muito ocupados, de vez em quando surgiam casamentos, festas, noivados, visitas. E quando
passavam atarefados pela velha, ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com
uma pancadinha no ombro: "olha!". Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a velha
enervava-a sem motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse tratar-se de um
ricto inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de
mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma
velha poderia provocar.
Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis,
levou a velha no carro.
Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? À ideia de uma viagem, no corpo endurecido o coração se
desenferrujava todo seco e descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem água. Em
certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio
prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe algumas ideias. Lembrou-se de coisas que dias
antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no
Maranhão — se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado.
Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de
como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria
gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas não era possível,
estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não
poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda
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mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura.
— Que cama dura, disse bem alto no meio da noite.
É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam
agora a sua atenção. E de súbito — mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena
trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardava secretamente há dois dias. Comeu o
pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a comida,
cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir
ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não
em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de
ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.
E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na
cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As
mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir
passear sem antes pentear bem os cabelos.
Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com
os passos rápidos. "Tem mais saúde do que eu!", brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: "E eu que até
tinha pena dela".
Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo
banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu
dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento. O rapaz virou-se para trás:
— Não vá enjoar, vovó!
As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em quando encostava a cabeça no
ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas não pôde. Quis sorrir, não conseguiu. Olhou
para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que não significava chorar. Qualquer coisa
em seu rosto amorteceu um pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado.
A viagem foi muito bonita.
As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. E, embora o coração batesse muito,
tudo estava melhor. Passaram por um cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um
soldado, gato! letras — tudo engolido pela velocidade.
Quando Mocinha acordou não sabia mais aonde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era
estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As
moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo
instante.
Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó — achei, achei! o paletó
estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se do nome da amiga de
Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada. As lembranças quase
lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios devagar e dizia baixo algumas palavras.
As moças falavam:
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— Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito!
Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? como conhecera seu
marido e aonde? como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com
aquela gente? Logo depois acostumou-se de novo.
O rapaz disse para as irmãs:
— Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente ensina aonde é, ela
vai sozinha e dá o recado de que é para ficar.
Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma incompreensão típica de homem,
falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a
cunhada.
— É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, você entra por aquele beco
e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu? Arnaldo.
Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode
vigiar um pouco o garoto, viu...
Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas pairando entontecida sobre
rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por entre as pernas.
Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó amarrado na
cabeça, tomava café. Um menino louro — decerto aquele que Mocinha deveria vigiar— estava sentado
diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas
balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de aveia, empurrou-lhe na mesa pão
torrado com manteiga. As moscas zuniam. Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente
talvez passasse o frio no corpo.
A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na história da recomendação
da cunhada, embora "de Iá" tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse ouvido de alguém o
endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É
que aquela história não estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido, nem sequer escondia o
sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha na saleta, com o armário cheio de louça nova.
— Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o que se pode fazer.
Mocinha não entendeu muito bem, pois ela falava como gringa. Mas entendeu que era para continuar
sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que escurecia a sala toda. Os lábios ardiam
secos e o coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo e lacrimejando. A seus pés o
cachorro mordia a própria pata, rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito fino
e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo branco e mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou
bastante queijo no pão torrado e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a barriga
grande, agarrou um palito e levantou-se:
Mãe, cem cruzeiros.
Não. Para quê?
Chocolate.
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Não. Amanhã é que é domingo.
Uma pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em vésperas de domingo? Nunca
saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta daquele menino. Sempre gostara de criança loura: todo
menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado
para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria
mesmo era café.
A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura.
Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar
sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma
colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer verdade, porcaria
mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão
têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.
Afinal Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em voz baixa com a
mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para Mocinha:
— Não pode ser não, aqui não tem lugar não.
E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto:
— Não tem lugar não, ouviu?
Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as duas mulheres na sala e
vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e vermelha. E mais adiante a velha murcha e
escura, com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do sorriso malicioso da velha, ele
se impacientou:
— E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu? volta para a
casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim: casa de
Arnaldo não é asilo não, viu!
Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar para comer, Mocinha
reapareceu:
— Obrigada, Deus lhe ajude.
Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentia a menor saudade. Mas lembrava-se.
Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como se pregasse uma peça a
alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um homem passou. Então uma coisa muito
curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não
conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e
cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco.
A estrada de Petrópolis é muito bonita.
No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça enchia uma lata de água.
Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em concha e beber.
Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de um esconderijo e
aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os
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cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a
água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.
A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se
numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma
nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia
sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e
morreu.

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