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A funerária

Tudo começou, em Siriboca da Serra, quando instalaram aquela porcaria justo ali na praça. Em
frente à igreja. Um desafio. Um deboche às promessas de salvação, ao renascimento para a
vida eterna. O sofrimento dos familiares, a consternação dos amigos, as palavras
tranquilizadoras do vigário, tudo se reduzia à frieza de um preço naquela casa.
Um mau agouro. Todo dia escancarada com suas duas portas que pareciam duas covas
abertas, aguardando defuntos. Nos fundos, os caixões vazios, abertos, atraindo o passante.
Lembrança dolorosa do inevitável doloroso.
Daí a pouco, todo mundo cismado. Quem passava pela praça se benzia duas vezes. Uma
reverência ao altar, no fundo da igreja, protegendo o Santíssimo. E uma protegendo-se do mau
agouro da porcaria.
O comércio daquele lado começou a enfraquecer. Ninguém queria passar em frente à porcaria.
Medo. Tinha sentido. Quem morreu logo que instalaram aquilo? O Nagib, dono do armarinho
que ficava do lado da coisa. A mulher dele, uma baiana muito sabida nessas coisas místicas,
mudou-se logo pra bem longe.
Quem morreu depois? O dono do imóvel onde se instalara a porcaria. E assim foi morrendo
gente que tinha alguma ligação com a casa maldita. Morreu dona Zefa que morava no número
81 da praça. O número da funerária era 18: 81 invertido! Morreu seu Mané Lourenço, sócio da
porcaria. O outro sócio, vindo ninguém sabe de onde, era um cara estranho. Vivia dando
risada, rindo da desgraça alheia, por certo. Em volta dos olhos dele, um negrume que parecia a
escuridão das profundas. Olheira de defunto. Dentes pontudos e amarelos. Se ele
cumprimentasse alguém, o sujeito logo tratava de benzer-se.
Foi o Carioquinha que inventou. Passava e dava três olhadinhas rápidas pro lado da coisa.
Depois se benzia. Era corpo fechado! Todo mundo começou a fazer isso.
Não demorou. Outra loja da praça entrou em decadência. Fechou. A coisa de vento em popa.
Morrendo gente. Se alguém ainda tinha coragem de falar com o tipo e comentasse
preocupado que estava morrendo muita gente, ele sorria e vinha com a velha piada de que
estava morrendo gente que nunca morreu. Ria. Gostava de rir. O negócio estava era bom. Os
caixões eram caros, caras eram as lembrancinhas que ele mesmo mandava fazer na capital. E o
carro preto, agourento, deslizando pelas ruas: um túmulo circulante.
Começaram a dizer que era o tipo olhar para alguém com firmeza e lá ia o infeliz. Se visitava
alguém, a casa estava marcada. Mais dia, menos dia, alguém partia.
Apareceram simpatias, orações, patuás bloqueadores. Não adiantavam nada. Alguém tinha
que morrer, protegido ou não. O agouro da porcaria era seguro.
Que o povo fala até hoje, só resguardavam o cristão, as três olhadas e o diabo de uma reza
braba que um benzedor lá dos fundos da Fazenda da Barra andou ensinando, mas que pouca
gente aprendia. Tinha uma porção de palavras difíceis de guardar, de pronúncia complicada,
coisas de negro velho, e que não se podia escrevê-las porque dava azar.
E lá ia morrendo gente.
O povo começou a matutar. Antigamente, morria uns três por semana, mais ou menos, que
ninguém tinha pensado em marcar. Não é que, depois que a porcaria se instalou na praça,
passaram a morrer sete por semana? Fora os que morriam no distrito que a porcaria atendia
com caixões, lembranças, velas e até cadeira para o velório.
O povo rebelou. O padre ficou sabendo e tentou tirar aquelas ideias da cabeça dele. Deus é
que mandava na vida dos homens. Punha e tirava. Só o fato de se pensar numa bobagem
daquela já era pecado. O povo, no entanto, preferia ficar no pecado.
Quando morreu o compadre Jorge – conhecido assim na cidade porque tinha 106 afilhados – a
família resolveu dar o contra na porcaria. Era o início da rebelião. Mandou o Zé Ribeiro,
carpinteiro, fazer o caixão. Depois que aquela porcaria foi pra lá, nunca mais o Zé Ribeiro fez
um caixão. Pois fez o do compadre Jorge. E o enterro foi no estilo antigo, com os amigos
carregando o caixão (nada de carro funerário). O costume foi se alastrando. Ninguém dava
serviço pra eles. Quem sabe não iam embora? Piorou. Passou a morrer de dez a doze cristãos
por semana. O Zé não dava conta. O tipo com a cara fechada. O negrume dos olhos mais
escuro ainda. A raiva dele doía na cidade inteira. Era a vingança. O Zé arrumou companheiros,
trabalhava dia e noite, e não dava conta. Uma peste tinha caído na cidade. Vinda da porcaria.
O padre alertava que não se devia confundir a vontade de Deus com qualquer outra coisa. Que
morrer gente, tinha que morrer mesmo. Ninguém ia ficar pra semente. Mas as coisas voltariam
ao normal. Era preciso fé.
Ninguém quis saber de nada. Todo mundo morrendo de medo, o medo virando desespero.
Gente morrendo, gente assustada, gente revoltada. Já ninguém sabia se continuavam
pressionando a coisa ou se voltavam a usar seus préstimos.
O padre era o último freio na fúria do povo. Que que é isso, gente? A fé então não vale mais
nada? A bondade de Deus não vale mais nada? Vamos pensar como pessoas equilibradas e
cheias de fé.
Que nada! O que segurava o povo era o medo de ofender a Deus. As palavras insinuantes do
padre. E quem é que morre em seguida, como um aviso do Todo-Poderoso, uma provocação
divina, ou um deboche do demônio? O senhor seu padre, dom Nicanor. O povo segurou a ira
até depois que se cobriu o corpo do velho padre com a terra santa do cemitério.
Daí pra frente foi que nem uma enxurrada despencando morro abaixo. O povo “envinha” do
cemitério resmungando, torcendo a cara de raiva, chutando o chão. Daí a pouco, tinha gente
gritando, ameaçando, brandindo o punho cerrado. De repente, aquela gentarada era uma
coisa só, um gesto só, um ódio só, uma vingança só. A massa era uma seta na direção da
porcaria. Não houve agouro, nem medo que segurasse.
Não ficou caco da vitrine que protegia castiçais longos, crucifixos dourados, pacotes de velas e
panos pretos e roxos. Portas derrubadas. Janelas dependuradas. Caixões viraram cavacos. E o
povo quebrando, urrando, pisando num desabafo quase sufocante e, olha, de repente, o fogo!
Línguas de labaredas pedindo perdão aos céus, estralando, comendo rápidas os restos das
coisas da porcaria. O povo recuou assistindo voluptuosamente. Sôfregos todos, ninguém
falava, olhos fixos na dança das chamas destruidoras.
O tipo que, no começo, tentara impedir a invasão, sovertera.
No fim, aplacada a ira do povo, apagadas por si as labaredas devorantes, aquele buraco escuro
no meio de outras lojas limpinhas, intactas, parecia uma cárie pedindo obturação.
Com o desaparecimento da porcaria, o povo se esqueceu das mortes. Morria quem tinha que
morrer mesmo. Os mais velhos garantem que nunca mais o tipo apareceu por lá. E o mais
impressionante: apesar de toda a fúria do fogaréu não passou uma chaminha nem para o lado
de cá, nem para o lado de lá. Só ela esturricou de retorcer os cacos de vidro como se fosse a
própria vingança divina.

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