Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RIO DE JANEIRO - RJ
2023
VIVÊNCIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE INGLÊS NA TERCEIRA IDADE:
UM ESTUDO DE NARRATIVA SOBRE COMUNIDADE DE PRÁTICA E AGÊNCIA
RIO DE JANEIRO - RJ
Fevereiro de 2023
FICHA CATALOGRÁFICA
VIVÊNCIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE INGLÊS NA TERCEIRA IDADE: UM
ESTUDO DE NARRATIVA SOBRE COMUNIDADE DE PRÁTICA E AGÊNCIA
_____________________________________________________________________
Professor Doutor William Soares dos Santos - Orientador / Presidente
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Doutora Mergenfel Vaz Ferreira – Membro Interno
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Doutora Rosalee Santos Crespo Istoe – Membro Externo
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF
______________________________________________________________________
Professor Doutor Marcel Álvaro de Amorim – Suplente Interno
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Luiz Baptista da Silva – Suplente Externo
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2023
Dedico este trabalho à minha família:
Elizabeth, Jonaci e Helen. Sem vocês,
nada seria possível, nem mesmo eu.
AGRADECIMENTOS
Às participantes da pesquisa, pois sem elas nada teria sido possível. Sou grata por terem
aceitado compartilhar suas histórias, contribuindo tão significantemente para a ciência. Embora
nem todas as entrevistas tenham sido aproveitadas nesta pesquisa, todas contribuíram para o
amadurecimento do estudo.
Aos meus tão amados pais, Jonaci Rodrigues Gobeti e Elizabeth Caldeira Gobeti, por todo amor
e incentivo, por me apoiarem incondicionalmente em toda minha jornada de vida e acreditarem
em minha capacidade, mesmo quando duvidei dela.
À minha querida irmã e melhor amiga, Helen Caldeira Gobeti, que esteve ao meu lado em todos
os momentos, construindo lembranças de uma vida, me acolhendo, me incentivando e me dando
todo suporte, mesmo também tendo uma vida atribulada.
Ao meu companheiro, Kaique Velemen, que esteve à minha disposição para ajudar no que fosse
preciso, não só durante o mestrado, mas ao longo dos últimos sete anos de nossas vidas, sempre
me apoiando, me cobrando, incentivando e tendo paciência nos momentos mais difíceis.
Aos meus amigos Lillian Salarolli, Danielle Marins, Guilherme Diniz, Henrique Miraglia e
Rafael França, que estiveram presentes, me acolhendo ao longo desse percurso, ajudando
sempre que possível, ouvindo meus desabafos e aliviando um pouco o peso que a vida
acadêmica traz. Sem vocês, teria sido ainda mais difícil.
Ao professor William Soares dos Santos, que contribui infinitamente com este estudo,
orientando de forma humanizada, apoiando e sempre me recebendo carinhosamente com bons
conselhos e profissionalismo. Agradeço por ter se disponibilizado a me acolher em um
momento tão difícil.
À coorientadora Christine Nicolaides, que também me recebeu com muito carinho e paciência,
me guiando ao longo da pesquisa e contribuindo com seus conhecimentos.
INTRODUÇÃO
visão que se tem desse grupo. Essa ressignificação identitária expõe, ainda, que certas
nomenclaturas já não são mais tão bem aceitas por esse público, como as palavras “velho”,
“idoso”, e até mesmo o termo “terceira idade” e há motivos para isso. Vygotsky declara que “o
sentido de uma palavra é a soma de todos os acontecimentos psicológicos que essa palavra
desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica fluida,
complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada” (VYGOTSKY, 1934/2001b, p.465).
Dito de outra maneira, o sentido das palavras usadas atualmente para “categorizar” o adulto
com mais de sessenta talvez não os represente mais, pois estão associadas a acontecimentos
psicológicos referentes às gerações passadas desse grupo etário. Hoje, pessoas com mais de
sessenta anos não performam da mesma maneira que pessoas no mesmo grupo etário, mas na
década de 50, por exemplo.
Ainda como fator de motivação para esta pesquisa, a percepção da passagem do tempo
e do envelhecimento/desenvolvimento humano sempre foram questões de interesse pessoal,
tendo em vista que todo ser humano atravessa esse percurso de vida, embora alguns por mais
tempo que outros. Certa vez, ao dialogar sobre envelhecimento com uma terapeuta, fui
questionada se temia a morte. Afirmei que não, não temia interromper o ciclo da vida
repentinamente, mas que achava estranho ver meus cabelos cada vez mais grisalhos e minhas
mãos enrugando lentamente. Em resposta, ouvi que o envelhecimento é um lembrete da finitude
da vida, de que todos caminhamos em direção à morte. Essas palavras pesaram na época, mas
o próprio amadurecimento, ironicamente trazido pelo envelhecimento, trouxe a consciência de
que, da mesma maneira que o que valoriza o ouro é sua escassez, o que dá valor à vida é seu
fim e, consequentemente, como vivemos seu percurso, ou seja, como envelhecemos. Hoje,
penso que devemos valorizar a vida como quem valoriza o ouro, mas descordo de que o
envelhecimento seja um lembrete da morte. Penso que seja, na verdade, uma forma de
percebermos a passagem do tempo e entendermos a mudança do mundo. O envelhecimento é,
na verdade, um lembrete da vida.
Além do interesse pessoal pelo envelhecimento, que acabou se transformando em
curiosidade científica, leciono língua inglesa (aulas particulares) para pessoas mais velhas,
algumas tendo mais de sessenta anos, e a proximidade com alunas na terceira idade também foi
responsável por acender a vontade de aprofundar meus conhecimentos acerca dos aspectos
envolvidos no processo do envelhecimento, principalmente depois de ouvir, mais de uma vez,
uma das alunas relatando que o marido afirmava ser inútil continuar com as aulas de inglês,
porque não se aprende mais nada “depois de velho”. Assim, foi dessas experiências que nasceu
o propósito desta pesquisa, que investiga a vivência de aprendizes de língua inglesa na terceira
7
idade por meio de um estudo de caso, a pesquisa narrativa desta mesma aluna cujo marido
desencorajava a continuar com as aulas.
Aproveito para esclarecer que a aluna cujas narrativas foram analisadas nesta pesquisa
não representa a grande parte da população brasileira com mais de sessenta anos, tendo em vista
que ela está inserida na classe alta e dispõe de recursos financeiros que proporcionam um acesso
facilitado a um envelhecimento ativo e saudável. Rafaela, pseudônimo escolhido pela própria
participante, tem o privilégio da aprendizagem de língua inglesa com uma professora particular.
Foi esta relação de professora e aluna que possibilitou esse estudo, realizado durante a
pandemia, que limitou meu acesso a outros aprendizes com mais de sessenta anos, devido ao
período de isolamento social. Apesar de não representar uma fatia grande da população,
conforme apontam estudos da Fiocruz1 sobre o envelhecimento na América Latina que
comprovam que cerca de 40% dos idosos na América Latina não possuem renda fixa, Rafaela
foi a aprendiz com mais de sessenta anos que consegui acessar. Este esclarecimento visa
justificar a escolha da participante para evitar tendências ao elitismo no meio acadêmico. As
vivências de Rafaela, embora tenham sido influenciadas por sua classe social privilegiada,
também são de grande valor e importantes de serem analisadas, porque podem contribuir com
futuros estudos sobre ensino-aprendizagem de língua inglesa na terceira idade.
Este estudo está ancorado em uma investigação interdisciplinar2 da Linguística
Aplicada (doravante, LA), posto que transcende os limites da Teoria Socio-histórico-cultural
(TSHC) (VYGOTSKY, 1978) e lida com diferentes perspectivas de atuação do idoso na
sociedade, lançando, assim, mão de conceitos da Gerontologia3, da Sociologia, da Psicologia,
da Antropologia e do Desenvolvimento Humano. Apoiada nesses campos epistemológicos,
delineei os princípios que norteiam esta pesquisa e, assim, em nível de análise macro, foram
estabelecidos como categorias os conceitos de agência (VYGOTSKY, 1978; STETSENKO,
2017), comunidade de prática (LAVE E WENGER, 1991), sentidos e significados
(VYGOTSKY, 1989). Tendo como base esses conceitos e levando em consideração, em nível
microtextual, os conceitos de análise de Labov (1972), foi desenvolvido um estudo de caso de
1
Disponível em <https://portal.fiocruz.br/noticia/pobreza-e-principal-obstaculo-para-idosos-da-america-latina>
2
Segundo Moita Lopes (2016, p.19) “o tipo de conhecimento teórico com o qual o linguista aplicado precisaria se
envolver, para tentar teoricamente entender a questão de pesquisa com que se defrontava, atravessava outras áreas
de conhecimento. Essa lógica da interdisciplinaridade possibilita, então, à LA escapar de visões preestabelecidas
e trazer à tona o que não é facilmente compreendido ou que escapa aos percursos de pesquisa já traçados.” Nesta
pesquisa, a interdisciplinaridade é usada com intenção de amplificar as possibilidades de estudo das vivências de
ensino-aprendizagem na terceira idade.
3
Segundo Neri (2008, p.95), a Gerontologia trata de um “campo multi e interdisciplinar que visa à descrição e à
explicação das mudanças típicas do processo de envelhecimento e de seus determinantes genético-biológicos,
psicológicos e socioculturais”. Portanto, este campo investiga experiências relacionadas à velhice.
8
análise da narrativa (MISHLER, 1999; BASTOS & SANTOS, 2013) de uma participante, que
é aprendiz de inglês como Língua Adicional4 (LAd) e tem mais de sessenta anos de idade.
Nesta pesquisa, tenho como objetivo geral investigar vivências diante do ensino-
aprendizagem5 de língua inglesa por meio do prisma sócio-histórico-cultural, potencializando
as vozes de pessoas com mais de sessenta anos. Para tanto, desenvolvi os seguintes objetivos
específicos: i) investigar os papeis de agência, da comunidade de prática e dos sentidos e
significados relacionados com as experiências relatadas; ii) analisar as possíveis influências
socioeconômicas relacionadas ao ensino-aprendizagem dessa língua na terceira idade; e iii)
avaliar a relação entre o ensino-aprendizagem de inglês como Língua Adicional depois dos
sessenta anos de idade e a transformação identitária desse grupo. As perguntas que orientaram
a investigação foram: qual a percepção que aprendizes de língua inglesa na terceira idade têm
do processo de ensino-aprendizagem? Qual a relação entre ensino-aprendizagem de língua
inglesa e a ressignificação da atual geração de terceira idade? Esses foram os problemas que
me guiaram ao longo do texto e que foram fixados como questões de pesquisa.
A fim de situar esta investigação e buscar aporte teórico, foi feita uma análise de
estudos correlatos, que abordaram temas semelhantes, como as de Cardoso, Ribas e Gouvêa
(2015); Bernardo (2018) e Pizatto et al. (2018), que se empenham em criar um novo olhar, não
só para a relação entre terceira idade e o aprendizado de língua inglesa, mas, também, para a
maneira com a qual essa relação reflete na ressignificação social daqueles que constituem essa
faixa etária, que, se comparada com décadas anteriores, de modo geral, ainda que não
exclusivamente, vive por mais tempo e melhor (CARDOSO; RIBAS; GOUVÊA, 2015).
Embora sejam estudos de grande relevância, o estado da arte aponta para uma lacuna nesse
tema, não só no sentido temporal, tendo em vista a data dos estudos anteriores, mas, também,
porque nenhum abrange os aspectos que pretendo discutir nesta dissertação.
4
“Segundo os autores, optar por tal termo, no lugar de ‘línguas estrangeiras’ torna implícito que: priorizamos o
acréscimo dessas línguas a outras que o educando já tenha em seu repertório (língua portuguesa e/ou outras);
assumimos essas línguas como parte dos recursos necessários para a cidadania contemporânea: são úteis e
necessárias entre nós, em nossa própria sociedade, e não necessariamente estrangeiras; reconhecemos que, em
muitas comunidades, as línguas que ensinamos não são a segunda língua dos educandos, por exemplo, em
comunidades surdas, indígenas, de imigrantes e de descendentes de imigrantes; reconhecemos que essas línguas
são usadas para a comunicação transnacional, isto é, muitas vezes estão a serviço da interlocução entre pessoas de
diversas formações socioculturais e nacionalidades, não sendo portanto possível nem relevante distinguir entre
nativo e estrangeiro” (SCHLATTER & GARCEZ, 2012, p.34).
5
Optei pelo uso do termo ensino-aprendizagem, uma vez que a base teórica sócio-histórico-cultural desta pesquisa
remete ao termo “obuchenie” do russo, no qual, ao se referir ao processo de aprendizagem, automaticamente nos
referimos a ensino. Uma vez que, para Vygotsky, esses dois processos nunca estão desassociados.
9
Quanto à relevância da temática aqui apresentada, acredito que este estudo pode
contribuir6 para os processos de ensino-aprendizagem de pessoas com mais de sessenta, dentre
outros motivos, porque, ao trabalhar com conceitos vygotskyanos, os relaciono com as
vivências de ensino-aprendizagem de língua inglesa do público-alvo, possibilitando reflexões
sobre algumas particularidades de como essas pessoas estão aprendendo línguas adicionais, e
sobre os seus desejos e motivações ao se alinharem a uma comunidade de prática de ensino e
aprendizagem de línguas. Visando contribuir para o atual debate científico sobre as temáticas
aqui desenvolvidas, este estudo discute processos de ensino-aprendizagem na idade madura,
por isso, seria muito interessante se a pesquisa gerasse impacto teórico-prático na sociedade, de
forma a contribuir, não apenas para futuras pesquisas relacionadas ao tema, mas, também
impacto de ordem prática, na ressignificação do olhar social que se tem para as pessoas dessa
faixa etária, contribuindo na quebra de paradigmas e preconceitos que o envelhecimento ainda
carrega, sobretudo, na área de educação, buscando, assim, não apenas incentivar o estudo de
uma nova língua, mas também possibilitar reflexões a respeito dos melhores processos de
ensino-aprendizagem de línguas para esse público, que vem revolucionando a forma de viver
da terceira idade.
É importante ressaltar que essa qualidade de vida nos anos adicionados é mais
característica em pessoas inseridas em classes sociais mais elevadas, tendo em vista que nem
todo adulto no mundo com mais de sessenta anos tem acesso à saúde e educação de qualidade.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1995), o próprio conceito de qualidade de
vida – que se refere a uma percepção cultural acerca da posição do indivíduo, seu sistema de
valores, expectativas, padrões e preocupações – é baseado em três princípios fundamentais:
capacidade funcional, satisfação e nível socioeconômico. Em outras palavras, a OMS (1995)
sugere que pessoas com baixo nível socioeconômico tendem, em um sistema capitalista, a ter
uma menor qualidade de vida. Isso se reflete, também, na terceira idade que, presume-se,
quando inserida nas classes média e alta, tenha acesso mais facilitado a um estilo de vida mais
ativo e saudável. Tendo em vista sua relevância, a questão de qualidade de vida relacionada à
situação socioeconômica perpassa esta dissertação em diversos momentos.
A nova forma de viver a fase mais madura da vida, como pessoas ativas e engajadas,
é chamada de “gerontolescência” por Alexandre Kalache (1987), médico geriatra e ex-
6
De acordo com análise de bancos de dados de Teses e Dissertações, conforme pode ser visto mais detalhadamente
adiante, a maioria dos estudos relacionados a aprendizagem de línguas na terceira idade focam questões cognitivas,
neurocientíficas. Mesmo quando vista sob ótica social, vertem para questões afetivas e emocionais. Dessa forma,
esse estudo tem a sua contribuição ao relacionar à aprendizagem na terceira idade, aspectos como Agência,
Comunidade de Prática, Sentidos e Significados.
10
presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (CILB), que afirma que esse termo
estará nos dicionários dentro de alguns anos, assim como o termo “adolescência” também foi
aceito de forma relativamente recente na humanidade, de acordo com a psicanalista Luciana
Coutinho7 (2009). Kalache (2017) afirma que a atual geração de idosos está revolucionando a
velhice e transformando o período em uma nova fase, porque são em maior número, têm um
nível de saúde e vitalidade maior e têm melhor formação do que as gerações que envelheceram
antes deles. Embora esta não seja a realidade de toda atual geração de pessoas idosas, tendo em
vista as questões socioeconômicas mencionadas anteriormente, uma comparação geral nos leva
a crer que há uma mudança ocorrendo no perfil do grupo de pessoas acima de sessenta anos.
Apesar de não haver uma faixa etária exata para designar a gerontolescência, Kalache
(2017), responsável pela criação do termo, sugere que está entre os 58 e 75 anos. O especialista
explicou em entrevista à BBC8 que “gerontolescência significa estar pelo mundo, ativo, criando
uma nova construção do que é envelhecer” (KALACHE, 2017). É interessante notar que não
apenas as palavras mudam de sentido dependendo dos seus contextos, mas o contexto também
pode influenciar as palavras, inclusive no nascimento de novas. Segundo Vygotsky, “houve
quem assinalasse que o sentido pode modificar as palavras, ou melhor, que as ideias por vezes
mudam de nome” (VYGOTSKY, [1934] 2001a, p. 182). Assim, a ideia de “idoso” como aquele
acima dos 60 parece estar mudando de sentido, já que hoje não representa mais aqueles que
acabaram de entrar para a terceira idade e não se sentem representados pelo termo. O uso do
termo gerontolescente, conforme cunhado por Kalache (2017), reflete a ressignificação da
terceira idade, que muda o sentido de envelhecer, modificando o significado atribuído às
palavras pelas quais os nomeiam.
Com intenção de acompanhar essa mudança de comportamento e a demanda crescente
de gerontolescentes por atividades ocupacionais e de desenvolvimento, a quantidade de cursos
voltados para a terceira idade vem aumentando significantemente e, embora não seja o foco da
pesquisa, é importante mencionar o surgimento das Universidades Abertas à Terceira Idade9
(UnATIs) no cenário educacional, porque, além de melhorar a qualidade de vida desse grupo
7
De acordo com a psicanalista Luciana Gageiro Coutinho, professora da Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e autora do livro Adolescência e errância – destinos do laço social no contemporâneo,
o conceito de adolescência só foi criado pela cultura ocidental bem no final do século XIX, motivado pela ética
individualista romântica. Após a Segunda Guerra Mundial e com as mudanças sociais da época, o termo passou a
ser adotado com maior frequência para classificar a transição da infância para a fase adulta.
8
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-40336295
9
Para Manhães et al. (2015, p.78) “Como política social no Brasil as UnATIs constituem, nos últimos quinze anos,
uma experiência não só consolidada, mas em franco crescimento. Natural, portanto, que a academia passe a se
interessar por registrar suas origens e os movimentos de sua expansão.”
11
de forma acessível, através desse programa é possível alcançar dados relevantes para as
pesquisas voltadas para terceira idade. Dessa forma, é possível afirmar que, ao abrir as portas
para os idosos, as universidades não só estão promovendo saúde e integração geracional, mas
também estão transformando esse público em novos atores sociais que podem ser pontos de
partida para futuras descobertas de gerontologia, já que eles se inserem em um ambiente de
pesquisa ativo (MANHÃES et al., 2015, p.83).
Assim, tais cursos para pessoas acima de 60 anos não oferecem benefícios somente
para os indivíduos frequentadores em si, mas também para os pesquisadores da área de
Gerontologia e de outras ciências, que podem estudar de maneira próxima as vivências de
ensino-aprendizagem na terceira idade, bem como o perfil desse público, o que leva à
observação de fatos intrínsecos a essa realidade, como, por exemplo, a diferença expressiva
entre homens e mulheres na participação de cursos voltados para a terceira idade, que são mais
frequentemente buscado por elas:
Fake News (notícias falsas) e de ideias radicais, não embasadas, contra o conhecimento,
principalmente nas áreas humanas. No Brasil, esse comportamento foi incentivado pelo então
presidente Jair Bolsonaro, que, de acordo com o jornal El País (2019), tem “uma conturbada
relação com o mundo acadêmico e o pensamento crítico.” O jornal descreve, ainda, que
Bolsonaro já criticou a autonomia das universidades federais — garantida pela
Constituição — e seu Governo fez ameaças de que instituições fazendo
“balbúrdia” teriam suas verbas reduzidas, tendo como alvo principal as
ciências humanas, área que supostamente teria forte influência de doutrinação
marxista (EL PAÍS, 2019).
que seja acessível não apenas para alunos e professores de educação nível
superior, mas também para uma variedade de pessoas em outras esferas, e não
tenho, correspondentemente, assumido que leitores tenham conhecimento
especializado em estudos de línguas ou em teoria social, muito embora
imagine que a maioria dos leitores terão alguma familiaridade com um ou
outro.
Embora não seja um abordagem muito recente, tendo em vista que já se apresentava
nos anos 60 do século XX “como uma importante precursora não somente na crítica, mas,
sobretudo, na busca de repostas aos limites de conhecimento simplificador, dicotômico e
disciplinar da ciência moderna ou clássica” (PHILLIPI & NETO, 2011, p.20), a
interdisciplinaridade, como vista hoje, apresenta uma nova roupagem, com novas
características, que surgiram através dos desafios que lhe foram apresentados como atividade,
ou seja,
Na década de 80, a Linguística Aplicada (LA) se afastava daquilo que Moita Lopes
chama de “ciência mãe” – ou seja, a Linguística – para se relacionar com outras áreas humanas
e sociais. Compartilho da ideia de que
Assim como precede a LA, o estudo aqui se propõe a analisar o sujeito como temporal,
social e histórico, como inserido em situações reais, com foco nas mais diversas acepções da
palavra discurso e no retrato da realidade cultural, bem como suas experiências de vida e
relações psicológicas com o desenvolvimento de uma Língua Adicional. Embora não ocorra
um apagamento do sujeito cognitivo e atemporal, essa nova forma de pesquisa traz à tona o
sujeito psicológico e político, e, ainda, o sujeito sócio-histórico. De acordo com Moita Lopes,
11
De acordo com Relvas (2005, p.14) “durante muitas décadas acreditou-se que o cérebro não possuía capacidade
de regenerar suas células nervosas, ou seja, formar novas sinapses e que as conexões entre os neurônios se
congelavam em posições imutáveis. Hoje, sabe-se que o cérebro muda durante a vida e que essa mudança é
benéfica. Essa plasticidade dispara um mecanismo pelo qual o cérebro remodela-se para aprender a sentir-se
melhor, ou pode ser induzido a se auto reparar, para pensar melhor.”
18
que moram em outros países, como irmãos que se mudaram e sobrinhos falantes de inglês como
primeira (às vezes única) língua.
Ao delinear mais claramente os interesses das aprendizes, foi possível desenvolver
materiais mais assertivos para atender às suas necessidades. Este é outro ponto do estudo de
Cardoso et al. (2015), que expõe um problema: a falta de materiais didáticos específicos para a
terceira idade. Cardoso e colaboradoras defendem que existe uma grande lacuna nesse sentido.
Ao considerarmos a existência de materiais voltados para infância, para adolescência e para
vida profissional adulta, que possuem focos e design específicos que atendem as necessidades
de cada faixa etária, é necessário pensamos também um material voltado para a fase da vida
que se caracteriza pela idade mais avançada, talvez com uma fonte de letras maiores, conteúdo
voltado para turismo e contextos do cotidiano. Seria cabível e profícuo uma pesquisa com o
próprio público, a fim de averiguar suas demandas e necessidades.
No estudo de Cardoso et al. (2015), o perfil dos estudantes do curso é delineado através
de critérios como gênero, idade, profissão, contato prévio com a língua e se vivem sozinhos ou
acompanhados. Além de gráficos criados com esses dados, estão presentes no estudo gráficos
que demonstram a motivação dos alunos em estudar inglês e a opinião quanto à adoção de um
material didático. A partir desses dados e de seus pressupostos teóricos, Cardoso et al. (2015)
concluíram que é possível a adoção de um material e que este se torna benéfico, porém precisa
de adaptações que atendam à Terceira Idade. Esse estudo revela as expectativas e interesses de
alunos de inglês para Terceira Idade da Uerj, principalmente com relação ao material didático,
porém não explora o reflexo do ensino-aprendizagem na vida dos aprendizes e nem mesmo o
contexto histórico de suas vidas, não englobando aspectos importantes na construção desse
percurso. É, ainda, um estudo quantitativo que classifica em gráficos os dados gerados durante
a pesquisa, diferente desta dissertação, que se debruça sobre o estudo qualitativo, feito através
de análise de narrativa da participante.
Ainda com o foco no ensino-aprendizagem de línguas adicionais, a pesquisa de
Barroso (2012) identifica outros benefícios e dificuldades no processo de ensino-aprendizagem
de 14 alunos, entre 55 e 65 anos de idade, matriculados no curso básico de inglês oferecido pelo
Instituto de Idiomas da Universidade de Brasília. Essa é uma pesquisa de caráter qualitativo
explanatório, que visa analisar as estratégias do professor em sala de aula e que também tem
como metodologia o uso de entrevistas semiestruturadas em sua geração de dados. Um dos
pontos que diferencia os estudos de Barroso (2012) desta dissertação é a observação das aulas.
Ele participou como ouvinte de aulas com pessoas idosas, já eu me apresento como professora
e, ouso dizer, amiga da entrevistada para essa pesquisa.
19
[...] além de tratar sobre a temática das crenças, sua pesquisa trouxe um breve
perfil do idoso no Brasil, contemplando terminologias e demarcações da TI
(Terceira Idade); dados demográficos do idoso feitos com base no IBGE; o
crescimento populacional no Brasil; o fenômeno da feminização; a
distribuição urbano-rural e domiciliar; a questão da educação e do rendimento
financeiro; e ainda refletiu sobre a questão dos programas educacionais
criados em direção ao público idoso (OLIVEIRA, 2010, p.46, explicação
adicionada).
do semestre, coletivamente) e diários de classe feito pelos estudantes. Silva (2004) apud
Oliveira (2010) conclui que:
Os estudos que mencionei acima, mostram que ainda são poucos os trabalhos
brasileiros que relacionam ensino-aprendizagem de inglês (ou outras línguas estrangeiras) à
terceira idade sob ótica da LA. Diante desse cenário, esta pesquisa também tem por objetivo
fomentar críticas sobre o tema ao desenvolver questões como agência, comunidade de prática,
sentidos e significados sobre os processos de ensino-aprendizagem de inglês como língua
adicional na terceira idade.
Ao pesquisar em dissertações e teses algumas das teorias discutidas nesta pesquisa,
como, por exemplo, agência, gênero, sentidos e significados e comunidade de prática, observei
a ausência de estudos que contemplem esses conceitos tendo como público-alvo a terceira
idade. Diante disso, recorri à Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD),
outro repositório de pesquisas stricto sensu. A pesquisa de estudos correlatos foi realizada
durante o mês de julho de 2021, quando utilizei a ferramenta de busca avançada considerando
todos os campos (título, autor, assunto, resumo, editor, ano de defesa), bem como todos os
termos. Para tanto, foram utilizados, inicialmente, as seguintes palavras-chave: Terceira Idade;
Agência; Sentidos e Significados; e Comunidade de Prática.
21
12
Segundo a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, “‘A senescência abrange todas as alterações
produzidas no organismo de um ser vivo – seja do reino animal ou vegetal – e que são diretamente relacionadas a
sua evolução no tempo, sem nenhum mecanismo de doença reconhecido’, explica o geriatra Wilson Jacob Filho,
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São, portanto, as alterações pelas quais o corpo passa e
que são decorrentes de processos fisiológicos, que não caracterizam doenças e são comuns a todos os elementos
da mesma espécie, com variações biológicas. São exemplos de senescência a queda ou o embranquecimento dos
cabelos, a perda de flexibilidade da pele e o aparecimento de rugas. ‘São fatores que podem incomodar algumas
pessoas, mas nenhum deles provoca encurtamento da vida ou alteração funcional’, explica o médico.
23
limitante estabelecer idades exatas para marcar fases da vida, tendo em vista que muitos outros
fatores estão envolvidos no envelhecimento, o estabelecimento da terceira idade de forma
delineada é importante no que se refere às conquistas sociais e políticas. No que diz respeito à
idade estabelecida por lei como terceira idade, a diferença entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento, como, por exemplo, o acesso a uma qualidade de vida elevada, típica de
países desenvolvidos, influencia na longevidade e na condição que se vive.
Há menos de um século, a expectativa de vida humana era consideravelmente menor,
e, assim, era comum pessoas de idade não muito avançada já terem problemas sérios de saúde
física e mental. Um indivíduo com 65 anos já era julgado “muito velho” e decadente. O IBGE
(2008, p.44) avalia que a expectativa de vida de 1940, por exemplo, era de aproximadamente
entre 45 e 50 anos de idade. Isso significa que aquele que chegava aos 65 já estava, muitas
vezes, com suas funções biológicas comprometidas. Para ilustrar, exponho abaixo a carta que
uma de minhas alunas (também da terceira idade) me enviou ao saber que estudo sobre
envelhecimento. A carta, escrita por sua tia avó, mostra a preocupação de uma mulher com
questões relacionadas à idade, família e saúde. No papel, escrito à mão, lemos o desabafo
saudoso de uma irmã, que, em tempos de forte patriarcado, deseja um feliz aniversário
escondido ao irmão, com quem seu marido tinha desavenças, e diz não querer resposta, com
receio de represálias do esposo ao ver que entraram em contato.
24
Na pressa de escrever, provavelmente sem ser notada pelo marido, a autora da carta
resume acontecimentos de sua vida que se passam no ano de 1968. O que chama atenção, e que
gostaria de apresentar como exemplo da mudança que vem ocorrendo (ao longo dos anos) na
forma de envelhecimento, está entre as linhas 13 e 18, quando são mencionados problemas de
saúde (“e com o nervoso da doença pode ter um ataque do coração”, “ele tem vezes 27 de
pressão”) e a idade dos dois é revelada, ele com 60 e ela com 56 anos, já considerados “dois
velhos” que “tem que vencer o tempo” e, aparentemente, enfrentar problemas de saúde talvez
advindos da idade já considerada avançada para a época, tendo em vista que, segundo o IBGE
(2008, p.44), a expectativa de vida geral dos anos 60 era de cerca de 53 anos, sendo a de homens
de 50 anos e mulheres 56 anos, aproximadamente.
25
A expectativa de vida da época em que a carta foi escrita faz com que os envolvidos
na história narrada por Ana, quem assina a carta, não tenham a mesma qualidade de vida que
se tem hoje em dia ao envelhecer, ao passo que, segundo o IBGE, a expectativa atual é de cerca
de 75 anos. Atualmente, é possível envelhecer com mais saúde, graças aos diversos avanços
que vivenciamos nos últimos anos nas áreas da saúde, do saneamento e nas políticas públicas.
A carta assinada por Ana ilustra bem essa diferença e contém diversas outras questões dignas
de análise, contudo, como não são foco principal dessa dissertação, deixo registrado o interesse
de um estudo futuro mais aprofundado. Contudo, creio que tenha sido uma amostra real da
transformação que ocorreu na velhice e na forma com o qual esse grupo se enxergava. Hoje em
dia, uma mulher com 56 anos e um homem com 60 anos estão em plena capacidade de saúde,
isso caso vivam em condições ideais.
De acordo com Goldani (1999), os argumentos preconceituosos que afirmavam uma
fragilidade inexorável da saúde, a pauperização e exclusão na velhice passaram a ser
questionados, haja vista a expressiva participação social e proatividade que esse grupo vem
apresentando. Uma pesquisa de projeção populacional realizada pelo IBGE mostrou que a
expectativa de vida de quem nascer no ano de 2030 será de 74 a 92 anos para os homens e 81 a
90 anos para as mulheres, ou seja, a população mundial está ficando cada vez mais velha. Esse
envelhecimento mais saudável sugere que, atualmente, um indivíduo na faixa dos 60 anos (que
tenha tido acesso a uma boa qualidade de vida) está em plenas capacidades de exercer escolhas
e de viver de modo independente.
Ainda que o envelhecimento seja um processo incessante do decorrer de toda
existência, ao mencionar estudos de envelhecimento, estes, geralmente, não focam no
desenvolvimento humano ao longo de toda vida, mas, sim, na terceira e quarta fase desse
processo. Estudos científicos na área de envelhecimento, com ênfase na gerontologia e geriatria,
vêm tomando cada vez mais força e magnitude. Manhães et al. (2015, p.113) mostra que
Por conseguinte, a velhice tem atraído cada vez mais foco, não somente de estudiosos,
que buscam conhecer melhor os fatores envolvidos no processo, mas da sociedade como um
todo. Os próprios integrantes da terceira idade têm interesse em aprender a respeito do seu
grupo de pertencimento, tendo em conta que o idoso não é mais representado por uma figura
26
inerte, que apenas observa o mundo passar, mas que quer fazer parte dos acontecimentos e
descobertas. Está no passado a concepção (típica da segunda metade do século XIX) de velhice
como uma etapa da vida caracterizada pela decadência e pela ausência de papéis sociais
(DEBERT, 2004). O idoso que dedica seus dias à espera da morte já não representa o seu
segmento populacional, posto que estão com mais tempo de vida e mais saúde para aproveitá-
la. Segundo Manhães et al. (2015, p.24).
Laslett (1989), categoriza os grupos com base nas etapas da vida, formando uma espécie
de mapa, que o autor divide em quatro etapas: i) Primeira idade: aquela em que vivemos em um
momento de dependência, de educação, de socialização e de imaturidade; ii) Segunda idade:
marcada pela maturidade, pela responsabilidade profissional, familiar, entre outras; iii) Terceira
idade: fase da satisfação pessoal; iv) Quarta idade: caracterizada pela decrepitude, pela
dependência e pela morte próxima. É profícuo estabelecer uma quarta fase no desenvolvimento
humano, tendo em vista que não há um pulo drástico entre a fase adulta, apontada por Laslett
como segunda idade, e a imagem que se tem de um idoso fragilizado, que seria a quarta idade13.
A terceira idade, conforme descrita por Laslett, se encaixa na definição do termo
gerontolescente, cunhado por Alexandre Kalache (1987), mas vale apontar que o estudo de
Laslett foi publicado na Inglaterra e, por isso, apresenta um recorte sócio-histórico-cultural
diferente daquele em que a terceira idade brasileira está inserida.
A participante deste estudo se encaixa na terceira idade, consoante a categorização de
Laslett (1989), devido ao fato de, atualmente, gozar de maior disponibilidade de tempo e
menores responsabilidades, ao passo que desfruta de habilidades físicas plenas. Em condições
ideais e segundo Silva (2008, p. 804), a realização plena do indivíduo chega junto com a terceira
idade, que é quando o sujeito está dispensado de algumas das obrigações típicas da idade adulta
e pode, finalmente, estabelecer laços e se engajar em atividades que se harmonizem com seus
interesses e expectativas, conforme é o caso da entrevistada.
Apesar de Laslett (1989) e Silva (2008) não caracterizarem o mapa de vida pela idade
e, sim, categorizarem os grupos de acordo com atividades relacionadas a cada um deles, a fim
13
A fim de reforçar as diferenças entre terceira e quarta idade, Minayo e Firmo estabelecem que “há duas formas
de classificar o envelhecimento: o critério demográfico por faixa de idade, ou seja, a do velho-jovem que vai dos
60 a 79 anos, a chamada ‘terceira idade’; e a do velho-velho, de 80 anos ou mais, a ‘quarta idade’. O outro
parâmetro é individual. Distingue as pessoas, com base na herança genética, personalidade e forma de levar a vida.
Assim, encontram-se indivíduos relativamente jovens com dependências mais comuns aos mais idosos e pessoas
de 80, 90, até 100 anos que permanecem saudáveis e autônomas.”
28
Oliveira (2010) aponta que os termos voltados para o envelhecimento estão ligados à
tentativa de se mitigar a estigmatização. Concordo com Oliveira (2010) sobre a estigmatização
dos idosos ao se usar, por exemplo, o termo “melhor idade”. Mais um motivo pelo qual evito o
uso do termo e opto pela designação “terceira idade”, que é usado com maior frequência em
textos acadêmicos e manuais, referindo-se à fase na qual essas pessoas se encontram, essa etapa
da vida em que vivenciam o resultado do curso de suas experiências, expressam uma forma de
pensar e de representar o mundo resultante da descoberta das fronteiras de suas forças,
possibilidades e impossibilidades, além de criarem novas formas de interação, buscando meios
de se acomodar às marcas do envelhecimento (OLIVEIRA, 2010). Em alguns momentos uso,
ainda, o termo gerontolescente, não como forma de suavizar a velhice, mas por acreditar que
essa palavra expressa uma nova forma de envelhecimento ativo, que acredito podermos
encontrar no mundo contemporâneo com frequência.
Patrocínio (2008) aponta que o uso de outros conceitos parece ser mais acessível do
que forçar a valorização social de “velho” como significado de belo e essencial. A autora aponta
ainda que, no passado, o termo “velho” era usado de forma comumente para a população pobre,
enquanto o termo “idoso” era usado para uma classe social mais elevada e que usar o segundo
termo hoje para todos transmite uma noção maior de respeito. Ainda apoiada no que Patrocínio
diz sobre ser mais acessível usar outro termo do que forçar a valoração do termo “velho”, noto
que essa palavra não mudou muito o sentido negativo ao longo dos anos, mas demonstra ainda
recobrar um passado cheio de preconceitos. Isto remete ao texto de Judith Butler (2002),
Critically Queer, no qual a autora inicia apontando como o termo “queer” mudou de significado
ao longo dos anos, deixando de evocar uma cadeia de sentidos negativos e indexicalizando a
força contida em um grupo, ou seja, aflorando um novo sentido positivo.
29
para que uma população envelheça, é necessário, primeiro, que haja uma
queda da fertilidade; um menor ingresso de crianças na população faz com
que a proporção de jovens, na mesma, diminua. Se, simultânea ou
posteriormente, há também uma redução das taxas de mortalidade (fazendo
com que a expectativa de vida da população, como um todo, torne-se maior),
o processo de envelhecimento de tal população torna-se ainda mais acentuado.
(KALACHE, 1987, p.217).
30
Muito embora o texto de Kalache seja de 1987, ele expõe um debate ainda muito atual,
dado que, embora tenha melhorado em diversos sentidos, a realidade vivida pela terceira idade
brasileira não mudou tão drasticamente desde então. A população, em concordância com o
previsto pelo autor, envelheceu consideravelmente. A Agência IBGE aponta que “a população
brasileira manteve a tendência de envelhecimento dos últimos anos e ganhou 4,8 milhões de
idosos desde 2012, superando a marca dos 30,2 milhões em 2017, consoante a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Características dos Moradores e Domicílios”
(IBGE, 2018). Contudo, a desigualdade de classes não foi amenizada, então ainda continuamos
lidando com um envelhecimento em condições desfavoráveis para grande parte da população,
o que reflete diretamente na qualidade de vida dessas pessoas.
A diferença nas condições financeiras entre gerontolescentes influencia no acesso a
uma velhice bem-sucedida, já que, em uma sociedade capitalista, a qualidade de vida está,
também, associada aos recursos que se tem. Isso reflete na aposentadoria desses adultos (que
muitas vezes continuam trabalhando por falta de opção, para poderem contribuir com a família),
reflete em sua saúde e até mesmo nos processos de ensino-aprendizagem. Embora, conforme
apontado na introdução, existam universidades que ofereçam programas voltados para a terceira
idade, incluindo referente ao ensino de línguas, o gerontolescente que tem aporte financeiro tem
acesso facilitado a meios exclusivos, conforme é o caso da participante desta pesquisa, cuja
classe social possibilitou o acesso ao ensino-aprendizagem de inglês como Língua Adicional,
conforme será aprofundado na parte em que realizo a apresentação da entrevistada. Por
enquanto, cabe evidenciar que ainda há muita desigualdade no Brasil e que os fatores do
31
Percebe-se, portanto, que a projeção para o Brasil, como para o resto do mundo,
caminha veloz rumo a um perfil demográfico cada vez mais envelhecido. Esse processo, “sem
sombra de dúvidas, implicará adequações nas políticas sociais, particularmente àquelas
voltadas para atender as crescentes demandas nas áreas da saúde, previdência e assistência
social” (IBGE, 2008, p.56). Isso aponta para a necessidade de um tratamento adequado a esse
contingente de pessoas, a fim de que seja viabilizado o exercício pleno da cidadania através da
garantia de políticas públicas que dignifiquem o cidadão idoso. Destarte, será tratado, na
próxima sessão, o contexto sociocultural da terceira idade no Brasil, ou seja, a forma com a
qual o envelhecimento é visto perante a sociedade.
33
é que os próprios homens influenciam sua relação com o ambiente e, através desse ambiente,
pessoalmente modificam seu comportamento, colocando-o sob seu controle”. Pode-se notar
uma relação de troca mútua entre o contexto e o indivíduo, um moldando o outro igualmente.
Em geral, Vygotsky (1934) postula que as funções psicológicas são construídas ao longo
da história social do homem a partir de sua relação social com o mundo, que é mediada por
instrumentos e símbolos desenvolvidos culturalmente, o que difere o ser humano de outros
animais. Seres humanos agem culturalmente no mundo através desses artefatos e têm parte de
suas identidades construídas também a partir deles. Portanto, para o autor, os processos
psicológicos não possuem fonte única em estruturas psicológicas ou na aprendizagem isolada
do indivíduo, mas na interação e na experiência sociocultural historicamente desenvolvida.
O envelhecimento, socialmente falando, é sinônimo de acúmulo cultural e político de
experiências e interações, sendo caracterizado a partir de construções sociais realizadas em
cenários culturais e históricos específicos. Conforme explicita a doutora em desenvolvimento
humano Maria Szymanski,
porque assim é decretado pelos outros. Portanto, a velhice é também um fenômeno cultural
(CALDAS, 2004, p. 52).
Essa questão traz à tona a lembrança de uma fala de João Nery14, disponível em sua
entrevista para a série de vídeos ‘LGBTQ +60: corpos que resistem’, que, aos 68 anos de idade,
diz ter oito próteses no corpo e culpa a velhice por isso, para, logo em seguida repensar sua fala
ao afirmar que “ninguém está velho. Quem diz que você está velho é o outro, sempre. O outro
é que te diz tudo sobre sua própria autoimagem” (Nery, 2018, s/p). Esta é uma observação bem
pertinente e que condiz com o que foi dito anteriormente por Caldas (2004), ao defender que a
velhice é um fenômeno cultural. O indivíduo não pode ser visto como destacado da sociedade
em que vive e, por isso, os estudos de Vygotsky são tão importantes na compreensão do humano
e da sociedade.
Segundo Rego (1995, p.41) o programa de pesquisa de Vygotsky “traduzia a tentativa
de buscar uma abordagem alternativa, que superasse as tendências antagônicas presentes na
psicologia de sua época” e, nessa tentativa de construir uma nova psicologia baseada no homem
enquanto ser biológico e social, Vygotsky fundamentou suas principais teses a partir da
perspectiva do materialismo dialético.
14
João Nery é conhecido como o primeiro homem trans a passar por cirurgia de redesignação sexual no Brasil.
Foi autor, ativista e professor. Formado em Psicologia, perdeu o diploma após realizar a mudança de sexo durante
a ditatura. No link <https://www.youtube.com/watch?v=wABZUUpfTMY&t=156s> é possível conferir a
entrevista citada no texto.
15
Entre uma diversidade de assuntos, Vygotsky dedicou-se, também, à análise e ao estudo das funções
psicológicas superiores, que, parafraseando Rego (1995, p.39) podem ser compreendidas como o processo mental
típico do ser humano, isto é, a capacidade de planejamento, memória voluntária, criatividade etc. Tais funções
recebem o nome de “superiores” por serem sofisticadas, por se referirem a mecanismos intencionais, conscientes
e controlados, ou seja, processos voluntários e que, em concordância com Vygotsky, não são inatos, já que têm
sua origem nas relações entre indivíduos e se desenvolvem através de formas culturais de comportamento, se
distinguindo dos processos psicológicos elementares, que são muito mais biológicos que socias, sendo
característico de crianças pequenas e animais (como reações automáticas, simples e instintivas).
37
biológicos com fatores sociais e culturais (pertencentes apenas à nossa espécie), que evoluíram
através dos anos. Rego argumenta que a segunda tese de Vygotsky é decorrente da anterior, já
que trata da origem cultural das funções psíquicas:
Nesse sentido, os aspectos sociais e culturais de cada povo causam grande influência
na constituição das características psicológicas de uma sociedade, que, seguindo a dialética
indivíduo/sociedade, também é um dos responsáveis por moldar essa mesma sociedade, pois,
assim, são decididos de forma subjetiva quais artefatos simbólicos mantemos e quais deixamos
para trás no passar do tempo, reformulando ou alimentando uma cultura já existente. As formas
de agir sobre o mundo, ou seja, a performance de cada indivíduo inserido em uma cultura,
socialmente situado, é responsável por essa manutenção ou transformação cultural. O
sentimento de pertencimento a um grupo também é responsável por influenciar no
comportamento dessas mesmas pessoas.
Estudar uma nova língua na terceira idade também está relacionado à inserção desse
indivíduo em uma cultura, bem como fomenta sua participação social. Embora ainda seja uma
área carente de investimentos e estudos, o ensino-aprendizagem de línguas na terceira idade
vem conquistando espaço, tendo em vista o aumento na procura de pessoas idosas por cursos
de idioma, estando entre os mais populares o curso de inglês. Nesse sentido, na seção seguinte
serão trabalhadas questões associadas ao ensino-aprendizagem de inglês na terceira idade.
divulgação de conhecimentos científicos, mas que pouco falam sobre questões sociais,
históricas e culturais desse processo e, por esse motivo, demonstraram ser investigações
datadas. Essa crença evoluiu popularmente para uma afirmação de que a infância seria o melhor
(talvez único) período para o bom desenvolvimento de uma Língua Adicional e essa ideia foi
tão difundida que esteve presente, inclusive, no discurso da participante desta pesquisa,
conforme pode ser observado no apêndice16.
Estudos posteriores sobre ensino-aprendizagem de línguas e envelhecimento levavam
em consideração fatores inerentes às condições de personalidade e afetividade de adultos e
ganharam força a partir de temas específicos, a fim de caracterizar, dentre outros aspectos, a
importância de estilos individuais de aprendizagem (BROWN, 1997) e de aspectos sociais da
aprendizagem. Assim, o foco no contexto em que o ensino-aprendizagem se insere e nas
características individuais (ou específicas de cada grupo) torna os estudos mais situados e reais.
A importância de ter as especificidades de pessoas mais velhas consideradas no que
diz respeito ao ensino-aprendizagem de línguas reside no fato de que estudar não se limita
apenas a ter o desempenho comunicacional melhorado no idioma alvo, abrindo portas para
novos artefatos culturais e novas maneiras de existir. De acordo com Manhães et al (2015,
p.177), “como coadjuvantes do funcionamento e do fortalecimento cognitivo na velhice,
destacam-se, entre outros, a motivação, a autoestima, a satisfação com a vida, a autoconfiança
e a segurança de pertencimento a grupos familiares e sociais”. A importância dessa instigação
social está relacionada não apenas à melhora no desempenho da aprendizagem de línguas e
fortalecimento cognitivo na velhice, mas mostra como a sensação de pertencimento a grupos
contribui para a manutenção da aprendizagem.
A concepção do objetivo de aprender uma LAd depende, em grande escala, da
motivação dos aprendizes. A vontade de aprender que move aprendizes de inglês da terceira
idade parece ser, também, intrínseca. Nesse sentido, lembramos:
16
Ver apêndice A e apêndice B.
40
17
Conceitos que serão discutidos com mais profundidade em tópicos adiante,
41
No início de 2020, o mundo foi assolado por um vírus mortal e de alto nível de
contágio, causado pela COVID-19 (descoberta em 2019). De acordo com o Ministério da Saúde
(2020), “a COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um
quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves”. Essa
doença apresentou enormes desafios, não só no âmbito da saúde, mas também em nível social
e econômico, já que o alto índice de mortalidade18 levou à necessidade da imposição de uma
quarentena, com intenção de diminuir os níveis de contágio e não colapsar o sistema de saúde
nacional. Entretanto, com a quarentena foi inevitável o fechamento de grande parte do
comércio, o que aumentou o índice de desemprego, causou forte impacto na economia e
insatisfação popular. Acrescento que foi devido a esse quadro que as aulas presenciais de inglês
da participante foram encerradas, sem previsão para retorno naquela ocasião. Retomamos
apenas em meados de 2021.
O, então, presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, uma das poucas autoridades políticas
negacionistas da crise epidemiológica, repudiou o isolamento social por valorizar a economia
em detrimento da vida do povo. Entretanto, os governadores e prefeitos decidiram adotar as
medidas propostas pela OMS e apoiar o isolamento horizontal – quando não há seleção de
grupos específicos para distanciamento – indo contra o que Bolsonaro gostaria de ter imposto,
o que o levou a expressar sua insatisfação em diversas mídias sociais, tal como o fez em
videoconferência, promovida no dia 14 de Maio de 2020 por Paulo Skaf19, quando afirmou que
"o governo federal, se depender de nós, está tudo aberto, com isolamento vertical20 e ponto
18
“Uma pesquisa inédita da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que o número de mortes por Covid-19 no
Brasil em 2020 foi 18,2% maior do que o registrado. A análise indicou que foram 230.452 óbitos pela doença no
ano passado e não 194.949. Os resultados do estudo, financiado pelo Programa Fiocruz de Fomento à Inovação
(Inova Fiocruz) foram publicados no Painel Monitora Covid-19 da Fiocruz” (FIOCRUZ, 2021) Disponível em
<https://portal.fiocruz.br/noticia/estudo-analisa-registro-de-obitos-por-covid-19-em-2020>
19
Empresário e político brasileiro, filiado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e presidente da Federação
das Indústrias do estado de São Paulo (Fiesp), do Centro de Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), do Serviço
Social da Indústria (Sesi SP), do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai-SP), do Instituto Roberto
Simonsen (IRS) e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-SP).
20
O isolamento vertical propõe que apenas grupos de risco (composto por idosos e pessoas com doenças crônicas)
permaneçam em suas residências. Esse método, que tem como principal representante de sua formulação o médico
David Katz, diretor do Centro de Pesquisas em Prevenção de Yale-Griffin, prevê uma suposta imunidade de
rebanho daqueles que não são casos de risco. Contudo, mesmos os médicos que defendem essa prática, como Katz,
42
[...] o sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à
normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem
abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte,
fechamento de comércio e confinamento em massa. O que se passa no mundo
tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então,
por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs, com menos
de 40 anos de idade. 90% de nós não teremos qualquer manifestação, caso se
contamine (BOLSONARO, 2020).
Além de Bolsonaro dizer, sem provas científicas, que o grupo de risco da doença são
as pessoas mais velhas, o que já expõe sua visão preconceituosa, os “dados percentuais”
apontados pelo presidente não têm, do mesmo modo, qualquer embasamento científico e não
são comprovados, tendo sido inventados pelo então presidente da república. Pessoas de mais
idade são, de fato, mais vulneráveis21 às doenças infectocontagiosas, como é o caso da Covid-
19, e têm maiores chances de morrer por complicações decorrentes dela, mas isso não quer
dizer que pessoas mais jovens e sem comorbidades não possam ser mortalmente afetadas pelo
afirmam que o número de mortes seria altíssimo, incluindo jovens nessas estatísticas. Essa estratégia de isolamento
visa a economia e não a saúde e vida do povo e, por isso, é duramente criticado por diversos profissionais de saúde.
Essas e outras informações podem ser conferidas no site da BBC: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-
52043112
21
A Fiocruz realizou um levantamento de dados relacionados à covid-19 e “um dos achados da pesquisa mostra
que três em cada quatro óbitos por Covid-19 (em 2020) aconteceram em pessoas com mais de 60 anos de idade
(175.471 idosos). Nesse grupo, a faixa etária mais afetada foi a de 70 a 79 anos, que concentra 33% dos óbitos de
idosos por Covid-19 em 2020. O estudo aponta que, do total de idosos mortos pela Covid-19 no ano passado, 29%
tinham entre 60 e 69 anos; 27% de 80 a 89 anos; e 11% mais de 90 anos.” (FIOCRUZ, 2021). Disponível em <
https://portal.fiocruz.br/noticia/estudo-analisa-registro-de-obitos-por-covid-19-em-2020>
43
vírus, conforme foi observado durante o ápice da pandemia. O alto índice de mortes que
acomete a terceira idade e suas possíveis razões foi foco de um estudo22 publicado na British
Medical Journal (BMJ, 2020), que apresenta dados sobre os grupos de risco do Sars-Cov-2.
Contudo, isolar apenas um grupo etário não é a solução para uma epidemia e o incentivo a esse
tipo de isolamento é sinônimo de discriminação e de animosidade contra a terceira e a quarta
idades, principalmente contra aqueles que têm necessidade de estar na rua, seja para comprar
alimentos ou medicamentos, ou resolver qualquer outra obrigação típica da vida adulta.
O médico Alexandre Kalache assegura que o preconceito com a terceira idade cresceu
durante a pandemia. Ao ser questionado sobre a cultura do descarte de idosos, em entrevista à
Folha de São Paulo, o especialista disse que
22
Pesquisadores analisaram casos de 113 pessoas que morreram e de outras 161 que se recuperaram da doença em
Wuhan, cidade chinesa onde a epidemia foi deflagrada, o epicentro da Covid-19. Foi constatado que a idade média
dos pacientes que não sobreviveram era mais elevada, estando próxima dos 68 anos de idade. Um dos motivos
para que idosos estejam mais suscetíveis às complicações dessa doença, segundo os pesquisadores, é a quantidade
de alterações no sistema imunológico de pessoas com idade avançada.
23
O texto não apresenta paginação, pois foi acessado através da webpage
<https://noticias.uol.com.br/colunas/diogo-schelp/2020/04/02/pandemia-da-vazao-a-preconceito-represado-
contra-idosos.htm>
44
[...] o CNDI (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa) sofreu uma
intervenção ano passado por parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos, da Damares [Alves]. São pessoas totalmente ignorantes nas
questões de envelhecimento e que não têm interlocução com a sociedade civil.
Está tudo contaminado por um discurso que discrimina (KALACHE, 2020,
p.10).
24
Idadismo é o preconceito baseado na idade, que é altamente disseminado em nossas culturas e está inserido no
discurso anti-idade, por exemplo, que causa rejeição e ao mais velho e transforma em ‘inimigo’ o corpo em
processo de envelhecimento (FEATHERSTONE e WERNICK, 1995).
45
O idadismo está fortemente presente na política atual e toma ainda mais força em
vários aspectos durante a pandemia, o que representa um grande risco aos idosos. Quando, a
título de exemplo, foi abordada a questão da locação de respiradores25, a idade foi estabelecida
como critério na escolha do paciente a receber o tratamento de emergência. Aqui cabe notar
que a decisão sobre quem vive e quem morre é uma forma de exercício de poder político sobre
os corpos. Em uma visão Foucaultiana, poder é o exercício concreto de dominação e sujeição,
de decisão sobre vida e morte.
Para Krenak (2020), em uma sociedade capitalista e mercadológica o ser humano é
considerado útil apenas na fase de produção. Perceba que ao atingir a terceira idade e se
aposentar, o indivíduo para de produzir e, portanto, passa a ser uma despesa na visão política e
econômica capitalista. O capitalismo criou instrumentos de “deixar viver e fazer morrer” e
pode-se dizer que deixar de produzir é uma condição para se deixar morrer. O autor aponta
ainda que o custo da Previdência faz com que governantes acreditem que a morte dos mais
velhos seja uma redução de gastos. “Os governos estão achando que, se morressem todas as
pessoas que representam gastos, seria ótimo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os que
integram os grupos de risco” (KRENAK, 2020, p. 11).
Nelson Teich, médico Oncologista e ministro da saúde por indicação de Bolsonaro na
substituição de Mandetta26, insinuou, em 2019, no painel no 9º Fórum de Oncoguia, que em caso
de recursos limitados, os mais jovens devem receber prioridade de tratamento. Teich afirma, em
vídeo disponível no canal da TV Oncoguia, que
Como você tem dinheiro limitado, você vai ter que fazer escolhas, então você vai
ter que definir onde você vai investir. Então, eu tenho uma pessoa que é mais idosa,
que tem uma doença crônica, avançada, e ela teve uma complicação. Para ela
melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que eu vou gastar para
investir num adolescente, que está com um problema. O mesmo dinheiro que eu
vou investir lá, é igual. Só que essa pessoa é um adolescente que vai ter a vida
inteira pela frente, e o outro é uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida.
Qual vai ser a escolha? (TEICH, 2019, s/p).
25
Aparelhos imprescindíveis no tratamento de estágios críticos da Covid-19 e que estão em escassez no país, tendo
um número de pacientes ultrapassado consideravelmente o de respiradores (ou ventiladores mecânicos).
26
Luiz Henrique Mandetta ocupou o cargo de Ministro da Saúde no Governo Bolsonaro por cerca de três meses,
de janeiro a abril de 2020, tendo sido demitido devido a divergências com o presidente quanto à política de
isolamento. Mandetta defendia as medidas sugeridas pela OMS, indo contra os argumentos de Bolsonaro, o que
gerou conflitos entre os dois e culminou em sua exoneração do cargo.
46
de uns sobre os outros no controle da vida e do “deixar morrer” quando se faz necessário na
visão capitalista.
A falta de conhecimento sobre envelhecimento por parte dos profissionais na linha de
frente do combate à Covid-19, para Kalache, é um dos fatores que os leva a fazer esse tipo de
escolha. O gerontólogo defende que esses profissionais “deveriam ter informações suficientes
de que o que deve comandar essa escolha é a comorbidade, a capacidade funcional da pessoa”
no momento da doença e não a idade. Contudo, Kalache afirma, ainda, que essa questão não
entra nos protocolos dos hospitais e que:
[...] para eles, é ‘confortável’ decidir pensando ‘quem já viveu, dança; vamos
dar oportunidade para aquele mais jovem’. De novo, é uma mistura do
idadismo, do preconceito gritante e da ignorância. Eu sei que é uma escolha
muito difícil, não estou minimizando, mas é possível fazê-la com mais critério
(KALACHE, 2020, s/p).
O grave nível de idadismo que ainda vivenciamos atualmente é algo que parece estar
associado ao aumento da ansiedade e da depressão em idade avançada. A depressão é um alerta
vermelho, pois pode acabar, em casos extremos, levando ao óbito, seja por falta de vontade de
tomar os cuidados necessários para idade, ou pelo suicídio. Em conformidade com a OMS,
idosos compõem o grupo populacional de maior risco para o suicídio, sendo pessoas acima dos
70 anos as que mais cometem suicídio no Brasil. A morte auto infligida requer um grande nível
de desespero e desesperança. Durante a pandemia, houve um aumento significativo de casos de
suicídio27 e, entre eles, um ganhou notoriedade, por se tratar do ator Flávio Migliaccio, que, aos
85 anos, cometeu suicídio em seu sítio, em Rio Bonito (RJ).
Assim como tem ocorrido com uma grande quantidade de pessoas idosas atualmente,
a idade avançada não influenciou nas faculdades mentais desse grande ator e autor, que, em
seus últimos anos de vida, apresentava nos teatros uma peça autobibliográfica, Confissões de
um Senhor de Idade, que tratava dos dramas do envelhecimento por ele enfrentados e por muitos
compartilhado. O fato de apresentar uma peça com esse tema demonstra a consciência e
preocupação do autor com o envelhecimento e questões envolvendo o tema.
O caso de Migliaccio chamou atenção durante este estudo, pois os principais fatores
que parecem ter levado o ator a tirar a própria vida foram a idade já avançada e a situação do
27
Segundo dados da Fiocruz, que avaliou de forma inédita o comportamento de suicídio durante a primeira onda
de Covid-19, “os resultados apontam que, em homens com 60 anos e mais da região Norte, o excesso de
suicídios alcançou 26%.” Conforme os estudos apontam, “o padrão também foi observado nas mulheres com 60
anos ou mais do Nordeste, com excesso de suicídios de 40%”. Disponível em:
https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-avalia-excesso-de-suicidios-no-brasil-na-primeira-onda-de-covid-19
28
Disponível em https://www.socialistamorena.com.br/a-carta-manifesto-de-flavio-migliaccio-e-um-alerta-
sobre-o-mundo-em-que-vivemos/ . Acesso em 09 fev. 2022.
48
país quando cometeu o suicídio, ambos temas discutidos nesta pesquisa. Os motivos do autor
foram deixados em uma breve carta de suicídio, mais tarde divulgada pelo próprio filho: “Me
desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade
não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com
esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje!” (MIGLIACCIO,
2020). O desrespeito com o envelhecimento em nosso país, agravado durante a pandemia,
parece ter servido de gatilho para a decisão de Migliaccio em tirar a própria vida.
A carta de Migliaccio revela o desespero com a forma que as pessoas de idade são
tratadas no Brasil e deposita na juventude a esperança de tempos melhores. A perda irreparável
desse ícone do cenário cultural brasileiro que atravessou gerações, é apenas um caso do alto
índice de suicídio, apontado pela OMS (2014), entre pessoas idosas e expõe a seriedade do atual
momento histórico que essa geração de idosos enfrenta. No que diz respeito à idade, o manual
da OMS (2014) de prevenção ao suicídio aponta que que as taxas de casos entre pessoas acima
dos setenta anos de idade (de ambos os gêneros) é consideravelmente maior e esse fato se repete
29
Foto divulgada pelo filho do ator e retirada do site. Disponível em: https://www.socialistamorena.com.br/a-
carta-manifesto-de-flavio-migliaccio-e-um-alerta-sobre-o-mundo-em-que-vivemos/ Acesso em: 09 fev. 2022.
49
Para tornar ainda mais claras as formas de combate a esse preconceito, a OMS elenca
as principais ações a serem tomadas, que são
Além das ações supracitadas, o combate ao idadismo também está no respeito aos
atravessamentos vividos por essas pessoas. Ainda há um longo caminho a ser percorrido no
enfrentamento da discriminação contra pessoas de idade mais avançada, porém é perceptível o
interesse em mudar a situação, principalmente por parte do público de 60 anos ou mais. Na
próxima seção, disserto sobre como a atual geração de idosos pode estar causando impacto na
desconstrução do idadismo e na ressignificação histórica desse grupo.
50
Palavras são manifestações usadas para designar lugares, pessoas, coisas e ideias. Essa,
porém, é uma definição simplista, que não evidencia questões relevantes envolvidas no uso das
palavras. Por que há preferência pelo uso de uma palavra em detrimento de outra? Qual o
contexto em que está sendo usada? Quais significados essa palavra desperta no ouvinte/leitor?
O que ela representa socioculturalmente? Quais sentidos estão imbuídos nela? Estas são apenas
algumas das questões envolvidas nesse processo e uma das que gostaria de abordar aqui é como
essas palavras despertam (ou indexicam) significados que podem mudar dependendo do
contexto e da época em que são usados, conforme apontado por Butler (2002). Mudanças
sociais podem ser responsáveis pela mudança de sentido de uma palavra, ou, ainda, pela
necessidade do surgimento de novos termos.
Parish e Hall (2021, p.2) de forma analógica, dizem que pegadas nos levam a crer na
existência de alguma criatura ambulante de características específicas. A pegada de uma pessoa,
por exemplo, causará imagens mentais de um ser diferente que as pegadas de um gato gerariam.
Da mesma maneira que pegadas indexicam seres, ações indexicam seus agentes. Apesar de
indivíduos de um mesmo grupo se comportarem de formas distintas, pode-se dizer que há um
conjunto de ações que os marca e os categoriza naquele grupo. Essa categorização ocorre de
forma natural, tendo em vista que ações estão ligadas a identidades socialmente reconhecíveis,
mas se consolida de outras formas. O estabelecimento da terceira idade como categoria social,
por exemplo, ocorreu devido a uma série de elementos históricos, como o surgimento da
Geriatria e da Gerontologia30 como áreas de estudo que particularizavam a velhice como fase
dotada de traços específicos, algumas vezes positivos, mas muitas vezes relacionados a perdas
(SILVA, 2008). Outro fator histórico relevante foi a determinação da aposentadoria, que, por
um lado, realçou as limitações das pessoas idosas e a necessidade de resguardo, mas, por outro,
os marcou como categoria política (LASLETT, 1989). Apesar de haver uma ambivalência de
crenças – indicando tendências positivas em contraste a tendências negativas – pode-se dizer
que há uma inclinação para a estereotipação mais negativa da terceira idade.
30
Cabe ressaltar a diferença entre os termos, sendo que geriatria está relacionado à área médica e gerontologia aos
estudos de envelhecimento humano em uma perspectiva mais ampla. Ecoando o Doutor em Saúde Coletiva Daniel
Groisman, “a geriatria seria o ramo da medicina que visa tratar as doenças associadas ao processo de
envelhecimento. Já a gerontologia social incorporaria uma série de disciplinas, tais como a psicologia, o serviço
social, o direito, a nutrição e outras, para o estudo do envelhecimento.” (2002, p. 64) O autor defende, ainda, que
“a história da gerontologia e da geriatria se confundem, de certa forma, pois o estabelecimento de uma
especialidade médica para a velhice precedeu o seu desdobramento em área multidisciplinar” (GROISMAN, 2002,
p.68)
51
específicas que o enquadram nessa categoria, os signos “velho” e “idoso” também vão indexicar
interpretantes específicos no imaginário de cada um, podendo variar de acordo com as
ideologias e experiências de cada indivíduo. Contudo, em consoante com o que já foi dito, na
maioria das vezes, os sentidos associados a esse grupo são socialmente desfavoráveis e, por
esse motivo, indivíduos idosos buscam camuflar características que remetam a que grupo etário
pertencem, visando, então, reduzir o preconceito e o estereótipo com o qual são tratados. É
recorrente que recusem o título de idoso em nível pessoal31, criando um distanciamento dessa
palavra, bem como dos termos “velho(a)” e “terceira idade”.
A atual geração vem ressignificando esses termos através da agência, desafiando os
rótulos que lhe são impostos. Embora venham mudando de sentido e indexicando novas
possibilidades, essa mudança ocorre a passos lentos, sendo que parece surgir uma necessidade
mais urgente para essa questão. Nesse sentido, novos termos, (como gerontolescência,
envelhescência, quarta idade), surgiram na intenção de melhor representar essa faixa etária,
cujos integrantes não aceitam mais serem vistos como incapazes e inválidos, termos incutidos
na palavra “idoso” ao longo dos anos, por exemplo.
Não é tão inusitada assim a criação de novos termos que se destinam a representar uma
fase no desenvolvimento humano que surge de forma inédita na história. Após a Segunda
Guerra Mundial, os jovens da época tiveram a oportunidade de se dedicar mais aos estudos
antes de começar a trabalhar. Esse marco causou uma mudança de perfil tão forte nos jovens,
que fez com que se estabelecesse a necessidade de um termo que descrevesse a transição entre
infância e fase adulta. Foi, então, que o termo “adolescência”, criado no final do século XIX,
passou a ser utilizado. Da mesma forma que houve uma grande mudança de perfil populacional
naquela época, a revolução da longevidade vem gerando um novo perfil de idoso e uma nova
fase de transição, entre a vida adulta e o que se tem convencionado como terceira idade.
De acordo com o Centro Internacional de Longevidade Brasil (2015), essa fase de
transição é “delineada mais por marcadores funcionais do que pela idade” e pode ser
considerada “um estágio do desenvolvimento humano singular e sem precedentes” (CILB,
2015, p.23). Em resposta ao surgimento dessa nova fase, surge o termo gerontolescência.
Curiosamente, a mesma geração responsável pelo surgimento do termo “adolescência” está
gerando essa nova demanda para essa nova fase de transição, que, segundo CILB
31
Digo em nível pessoal pois podem buscar os direitos legais que idosos têm, como gratuidade em transporte,
atendimento preferencial, aposentadoria e etc, contudo, geralmente, preferem não ser tratados pelo título de idoso
em outros meios.
53
[...] foi também chamada de ‘final da meia idade’ por alguns, em referência à
manutenção da saúde e das atividades da meia idade e de anos ‘encore’ para
enfatizar a ideia de segunda chance e de novos direcionamentos para
engajamento significativo. Foi também chamada de ‘gerontolescência’ para
nos lembrar que a grande geração do babyboom, que atualmente a define, é
também a mesma corte que criou e definiu a construção social de
“adolescência (CILB, 2015).
Perceba que a geração dos nascidos entre 1940 e 1965, já causava grandes
transformações sociais e culturais durante sua juventude. Não à toa foram também responsáveis
pelo surgimento da necessidade do termo adolescência. Ao revisitar o período histórico que
decorreu entre essas duas décadas, pode-se perceber uma luta marcante da juventude pela
liberdade de expressão e pela individualidade, recusando a imposição de padrões anteriores, o
que fez com que essa geração fosse responsável por uma grande revolução cultural e social,
quando ainda eram jovens. Para Jordana (2011),
Aqueles que viveram a fase da juventude nos anos 60 e 70 são, enquanto realizo esta
pesquisa, a população que compõe a terceira idade e, apesar de não serem mais considerados
jovens cronologicamente, continuam quebrando paradigmas com o mesmo vigor de antes.
As ações humanas são moldadas pelos contextos em que estamos inseridos. Houve
uma série de fatores históricos que influenciaram o comportamento da juventude dos
gerontolescentes, o que causou uma reação social e, mais uma vez, moldou a sociedade. De
acordo com Elaine Mateus (2009, p.19) “na psicologia sócio-histórico-cultural, os processos de
desenvolvimento ou transformação humana são, quase sempre, relacionados ao conceito de
interiorização/ exteriorização, conforme proposto por Vygotsky (1978/1988)”. A autora diz que
[...] para esse estudioso, as ações externas e internas são dois aspectos inter-
relacionados do mesmo fenômeno; a estrutura instrumental da ação humana
incorpora-se ao sistema de inter-relacionamento com outras pessoas e só aí
poder ser compreendida. Isto porque Vygotsky estudou a atividade produtiva
social que se desenvolve por meio de artefatos, sob as condições de
cooperação entre as pessoas e de transmissão entre as gerações (MATEUS,
2009, p.19).
54
32 Will Herberg (1955) estabeleceu o American Way of Life como sendo composto quase que igualmente de
democracia e livre iniciativa, sendo considerado a "religião comum" da sociedade americana nos anos 20, que
pregava a meritocracia e vendia a ideia de felicidade pelo consumo.
33
Embora não caiba o desenvolvimento do assunto em uma dissertação, fica aqui o desejo de aprofundamento
futuro sobre os anos de censura militar, sobre a juventude dos anos 60-70, e sua luta por direitos e conquistas.
55
Davydov (1999, p. 39), “os sujeitos também se mudam e desenvolvem”, pois a interação do
indivíduo com as questões de sua época também foi responsável por modificar a sociedade em
que vivemos hoje, o que instiga a pesquisar a relação mútua entre agência e transformação
social, remetendo ao conceito de agência transformadora (STETSENKO, 2017), cujo cerne está
em um movimento coletivo de transformação da realidade e na construção da autoria do
indivíduo sobre sua vida (LIBERALI, 2020).
George Mead (1977), grande pragmatista e psicólogo social, reconheceu que as
pessoas desempenham um papel ativo na construção de suas próprias vidas (PAVLENKO &
LANTOLF, 2000, p.158). Esse papel ativo, responsável por uma transformação significativa
na trajetória daqueles que o desempenham, poderia ser tratado como uma forma de agência.
Não a agência encontrada no processo de aprendizagem em livros, a autonomia acadêmica, mas
sim uma forma de tomar decisões baseados em seus desejos, que são, antes de tudo, socialmente
permeados. De acordo com Taylor (1985, p.15), a capacidade de ponderar desejos está ligada
ao nosso poder de autoavaliação, o que, por sua vez, é uma característica essencial do modo de
agência que nos diferencia como humanos.
A vida é feita de decisões e consequências daquilo que optamos por fazer. Essas
escolhas requerem avaliação, podendo ser do tipo simples ou complexa. O ato de tomar decisões
complexas, que carregam uma questão moral ou social e exigem a avaliação qualitativa dos
desejos do indivíduo (TAYLOR, 1985, p.16) é o que transforma humanos em agentes ativos de
suas escolhas e nos diferencia de outras espécies. Ou seja, agência, em um quadro sócio-
histórico-cultural, também pode ser compreendida como as maneiras pelas quais pessoas
situadas dominam a própria vida (LIBERALI, 2020, p.83). A decisão de se (re)inserir no
contexto de aprendizagem de Inglês torna essa geração de idosos uma parte mais ativa da
sociedade, posto que “a ruptura com o pensamento monolíngue parece apontar para o
fortalecimento da agência dos sujeitos em diferentes contextos” (LIBERALI, 2020, p.80).
Pavlenko e Lantolf (2000) evidenciam que o ensino-aprendizagem de uma segunda
língua, em certas circunstâncias, pode levar à reformulação mental, mudando, inclusive, o
conceito de self de alguns indivíduos, ou seja, a aprendizagem de uma LAd, para os autores,
vai muito além da aquisição de um pacote de regras gramaticais e fonológicas, mas se torna
“um esforço de seres socialmente construídos e sempre situados em participar de um mundo
simbolicamente mediado de uma outra cultura” (PAVLENKO & LANTOLF, 2000, p.155).
Dessa forma, a aprendizagem de uma segunda língua é vista como um esforço por participação
e suas consequências. Esse esforço transforma o sujeito em um novo ator social, ressignificando
sua existência, bem como transforma também o contexto em que está inserido. As pessoas
57
idosas que buscam aprender uma nova língua o fazem por terem um perfil diferente daquele
que era associado de forma preconceituosa a esse grupo. Essa iniciativa pela busca da
aprendizagem reforça esse perfil autônomo e positivo que a classe vem conquistando.
O esforço da terceira idade em se inserir no mundo está associado à ideia de
participação de um coletivo. A interação que passa a existir a partir da aprendizagem de língua
inglesa também está ligada à intenção dos sujeitos em solicitar contribuição do outro e
contribuir com conhecimentos, evocando o conceito de agência relacional ao turbinar a si e aos
demais (LIBERALI, 2020, p.84) através de uma comunidade de prática (WENGER, 1991).
Comunidade de Prática (WENGER, 1991) é uma dimensão coletiva e partilhada em
que os participantes se engajam em um processo mútuo de compartilhar significados e práticas
em ações contínuas, reflexivas, colaborativas, inclusivas e voltadas a aprendizagem e
crescimento (TOOLE e LOUIS, 2002). A força das Comunidades de Prática (CoP - Community
of Practice), conforme interpreta Wenger, reside principalmente na interação entre os membros,
que compartilham dúvidas, preocupações, desafios, problemas, melhores práticas e descobertas
(WENGER, 1998). Comunidades de Prática podem estar presentes em diversas áreas, seja no
âmbito profissional, acadêmico ou pessoal. É comum que pares mais experientes dividam o
conhecimento e guiem os menos experientes, criando uma ligação mútua de respeito e, muitas
vezes, de amizade.
Esse é um conceito de grande valor para esta dissertação, tendo em vista que a
interação social é um dos principais motivos para gerontolescentes ingressarem em cursos de
inglês como língua adicional. A motivação não está somente na interação social que ocorre em
sala de aula, com colegas de turma e professor, mas também na ânsia por futuras viagens com
amigos e familiares que compartilhem da aprendizagem, no interesse em se comunicar com
outros falantes por chamadas de vídeo, como amigos ou parentes que estejam em outros países
e sejam falantes de língua inglesa e em outros fatores. Esse envolvimento com pessoas que têm
um mesmo interesse gera uma comunidade de prática, responsável por integração social de
adultos mais velhos no contexto dessa pesquisa e responsável, do mesmo modo, por conservar
o vínculo desse aluno com a aprendizagem.
O ser humano, por natureza, tem necessidade de estar socialmente inserido no
ambiente em que vive, de criar vínculos e fazer parte de um grupo. A sensação de pertencimento
é de grande valor para pessoas de idade mais avançada e através do ensino-aprendizagem de
inglês, cria-se uma nova Comunidade de Aprendizagem, na qual o compartilhamento de ideias
e experiências gera inserção social daqueles envolvidos no processo. Pode-se dizer que
“Comunidades de Prática são grupos de pessoas que compartilham uma questão, um conjunto
58
No contexto acadêmico, o tempo que investem para aprender uma nova língua faz com
que os estudantes criem laços de grande valor, pois debatem situações de interesse
compartilhado e se ajudam a fim de solucionar dificuldades que possam surgir. Esse vínculo,
seja formal ou informal, gerado em uma Comunidade de Aprendizagem é fator chave para a
manutenção do interesse do aprendiz de idade mais avançada, pois a interação com outros o
traz de volta à sociedade como membro ativo e participante.
De acordo com Wenger, McDermott e Snyder (2002, p.27) o conceito de Comunidade
de Prática é formalizado através de três dimensões que caracterizam a prática e os indivíduos
envolvidos nela:
1. Um domínio de um assunto que seja de comum interesse entre os participantes,
que não precisam, necessariamente, ter especialização no assunto, podendo ser
inseridos no grupo com intenção de aprender ao compartilhar ideias e aflições.
O domínio cria uma base e uma identidade comum que une e guia os
participantes, sem as quais a comunidade seria apenas um grupo de amigos
(WENGER, MCDERMOTT e SNYDER, 2002, pp. 27-30).
59
2. Uma comunidade que, para além do interesse em comum, interaja entre si,
gerando através dessa interação uma prática.
3. Uma prática que seja consciente – ou seja, que proporcione trocas objetivas a
respeito do assunto de interesse – e que seja composta por artefatos códigos e
narrativas próprias e compartilhadas. A prática é definida por Wenger,
McDermott e Snyder (2002, p. 38) como “um conjunto de abordagens comuns
e padrões compartilhados que criam a base para a ação, comunicação,
resolução de problemas, desempenho e responsabilização”.
Wenger, McDermott e Snyder (2002) apoiam que essa tríade compõe uma estrutura
social de compartilhamento de saberes que pode “assumir a responsabilidade por desenvolver
e partilhar conhecimentos”. Pode-se dizer que a aprendizagem do grupo relaciona a atividade
social aos contextos em que ela se desenvolve e “as teorias da atividade situada não separam
ação, pensamento, sentimento, valor, de suas formas histórico-culturais coletivas de atividade
localizada, interessada, conflituosa e significativa” (LAVE, 1993, p.7). Nesse sentido, o
envolvimento social ocorre de forma espontânea e orgânica também na aprendizagem de alunos
com mais de sessenta, tendo em vista que é difícil separar os valores e sentimentos que
desenvolvem ao longo desse processo.
A importância desse conceito para a análise dos dados está no fato de as narrativas
apresentarem trechos que transmitem o interesse em compartilhar com outros (comunidade)
vivências (práticas) referentes a um mesmo interesse (ou domínio), que, no caso, é a língua
inglesa. Dessa forma, torna-se imprescindível trabalhar as visões de comunidade de
aprendizagem adotadas para a interpretação teórica da fala da participante, a fim de demonstrar
a importância da inserção social na vida desse grupo etário que, ao mesmo tempo que busca
inserção, enfrenta o preconceito por parte da sociedade e, até mesmo, da política, o que pode
causar graves consequências a essas pessoas de idade mais avançada, conforme abordado no
próximo capítulo, que busca contextualizar o preconceito com a idade e o atual momento que
vivemos.
34
Glossário de Técnicas Artísticas (ufrgs.br)
61
Na visão de Baquero (1998, p. 54), Vygotsky atribuía uma relação intrínseca entre a
palavra e o significado “[...] suscetível de uma análise linguística, mas, simultaneamente,
enquanto expressa uma generalização ou um conceito, constitui um verdadeiro ato intelectual”.
Dessa forma, a transição do pensamento para a palavra transita pelo significado: “Isso significa
que o significado da palavra é, ao mesmo tempo, um fenômeno verbal e intelectual”
(VYGOTSKY, 1996, p. 289). Portanto, é possível compreender que significado se trata da
estabilização de ideias por um determinado grupo. Estas ideias são utilizadas na constituição
dos sentidos. Sendo assim, significados têm sentidos que se ampliam em determinados
contextos (COSTAS; FERREIRA, 2011) e o significado de terceira idade aparenta estar
passando por um momento de ampliação de sentido graças a ressignificação da atual geração
de idosos.
Para Vygotsky, significado também compreende qualquer generalização do pensamento
que evolui histórica e culturalmente. “A natureza do significado como tal não é clara. No
entanto, é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal”
(VYGOTSKY, 1996, p. 4). Porém, o pensamento só é viabilizado por meio da fala e das
palavras,
CAPÍTULO 2 - METODOLOGIA
autor busque ser imparcial, comportamento típico de estudos quantitativos, uma pesquisa não
pode ser considerada neutra, já que carrega parte da identidade de quem a compõe e o posiciona
ideologicamente.
Bastos e Biar (2015) apontam que por trás do que chamamos de virada narrativa estaria
uma certa tendência de questionar o estatuto objetivo de descrições etnográficas de grupos
sociais, posto que
“passou-se a assumir que os dados não falam por si, nem descrevem uma
realidade; que o conhecimento produzido em campos é sempre produzido por
um pesquisador, ele próprio um ator social, que, pelas lentes de suas próprias
condições identitárias e contextuais, olha seu objeto de uma determinada
perspectiva, e constrói sobre os campos de pesquisa uma narrativa única.”
(BASTOS E BIAR, 2015, p.101)
Chizzotti (2006) expõe que o estudo de caso permite a reunião de informações sobre
um determinado assunto em seu contexto específico, considerando um pequeno grupo que
compartilhe características homogêneas e identitárias e tomando seu caso como unidade
significativa do todo. A fim de responder as perguntas propostas na presente pesquisa, foi
realizado um estudo de caso que teve como tema uma narrativa sobre o processo de ensino-
aprendizagem de língua inglesa e sua relação com uma possível mudança de estereótipo da
terceira idade. Chizzotti (2006) propõe três fases para um estudo de caso de sucesso: I) a seleção
e delimitação do caso, questões decisivas para análise da situação estudada, segundo o autor;
II) trabalho de campo, que visa reunir e organizar um conjunto comprobatório de informações
de campo a serem documentadas; III) organização e redação de relatório, que visa reunir
documentos, notas de observação, transcrições etc. que comprovem as descrições e as análises
do caso. Nas palavras do autor,
No que diz respeito à primeira fase proposta por Chizzotti, de delimitação de caso, é
estudado o relato de experiência que uma aluna, resultante de um contexto marcado pela
aprendizagem de língua inglesa na terceira idade. A seleção da participante se limitou ao fato
de ter retomado os estudos já estando na faixa etária acima dos sessenta. Quanto ao trabalho de
66
campo, os dados foram observados em contexto de sala de aula, tendo em vista que a
participante é aluna da pesquisadora, e também foram (em sua grande maioria) coconstruídos
através de entrevista (APÊNDICES A)35 entre a pesquisadora e a aprendiz, que aceitou
participar da pesquisa, estando de acordo com todos os quesitos listados no Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO A). Como contribuição adicional para a análise
das narrativas identificadas nas entrevistas, fez-se necessário a aplicação de um questionário
socioeconômico (ANEXO B), respondido pela entrevistada.
As narrativas produzidas pela participante possibilitaram uma análise holística de
assuntos interdisciplinares que transcendem a especificidade da Linguística Aplicada, embora
esse campo de estudos por si só seja considerado transdisciplinar e apresente a base para a
análise aqui proposta. São claras as contribuições de Vygotsky (1934) na percepção de ambiente
como sendo mais do que uma mera junção de pessoas, mas, sim, um conjunto de estímulos
capazes de reforçar comportamentos e interações, contribuindo socialmente e sendo, também,
modificado pela sociedade. Dessa forma, a cultura humana ocorre por meio de relações
interpessoais dentro da sociedade à qual o sujeito pertence, ou seja, dentro do seu meio social.
A perspectiva teórico-metodológica deste estudo, tendo como base a teoria vygotskyana
sócio-histórico-cultural, dá luz aos fatores sociais, culturais, históricos e institucionais
implícitos nas narrativas da participante e que podem influenciar os processos de ensino-
aprendizagem do Inglês como língua adicional na terceira idade. Nesse sentido, tem-se como
principais critérios de análise macrotextual os conceitos de agência, de comunidade de prática
e de sentidos e significados, já trabalhados na parte teórica, que serão importantes para a
observação do contexto e do sujeito da pesquisa. Além disso, lido com a pesquisa narrativa, que
é compreendida como uma prática social complexa e de difícil limitação (BASTOS &
SANTOS, 2013), mas que, para fins deste estudo, será observada tendo por base as categorias
da estrutura clássica laboviana (LABOV, 1972).
Destarte, embora use, em alguns momentos, o modelo canônico de Labov (1972) como
norteador desta análise – tendo em vista sua grande importância devido ao fato de preceder e
inaugurar o estudo de narrativas, que teve seu início marcado pela análise de características
formais no desenvolver de histórias contatas – não só nesta fonte será baseada a pesquisa
proposta. Bastos e Liar (2015, p.100) definem que “na abordagem laboviana, a narrativa é
35
Nos apêndices A e B, as entrevistas se encontram transcritas na forma de texto comum, ou seja, sem
anotações indicativas de produção oral que marquem, por exemplo, prolongamento de fala, pausa e etc.
Apenas nos trechos analisados ao longo da dissertação foram transcritos usando convenções, conforme
será visto no capítulo de análise.
67
Fazer perguntas seria uma forma de entrevista e, a todo instante, o ser humano está
fazendo perguntas ou respondendo-as, seja em discursos corriqueiros ou em ambientes
profissionais/acadêmicos, quer este processo seja formalizado como uma entrevista ou não.
Assim, é possível dizer que nossa sociedade é considerada uma sociedade de entrevistas
(SILVERMAN, 2001). A fim de buscar as respostas para minhas perguntas de pesquisa nas
manifestações dos envolvidos no processo de aprendizagem na terceira idade, foi realizado o
que pareceu mais coerente: levar às estudantes de inglês gerontolescentes perguntas que
contribuíssem na compreensão de suas vivências. Esclareço que, ao todo, foram realizadas seis
entrevistas, porém apenas uma selecionada para análise de narrativas, conforme foi explicado
na análise de dados.
Ainda em relação às entrevistas de pesquisa, acredito que, como observam Bastos &
Santos (2013, p.9), no mundo contemporâneo, “instaurou-se e aumentou o interesse em saber
o que pensam os indivíduos, e estes, com frequência, falam sobre o que pensam contando
histórias.” Embora não seja o foco desta pesquisa, é importante observar que esse fenômeno
também pode ser notado na crescente interação em redes sociais digitais nas quais as pessoas
acompanham entrevistas em diferentes canais. Esse crescimento explicita o fascínio pelas
histórias e opiniões de outros. Através de postagens em redes sociais na internet, as pessoas
estabelecem suas narrativas, respondem perguntas e arrastam (ou não) inúmeros seguidores,
68
que compartilham, na maioria das vezes, construções identitárias semelhantes. Está cada vez
mais em alta a troca de experiências no contexto da web, que, em alguns casos, tenta reproduzir
e em outros busca dar uma nova forma ao mundo social.
Há, contudo, diferenças que marcam uma troca de informações em contexto natural de
uma entrevista acadêmica sistematizada para o universo da internet, ao qual fiz referência
acima. Mishler (1986, p.7) observa que transformar uma conversa em um procedimento de
pesquisa faz com que muito se perca no processo. Pode-se considerar este como um dos poucos
pontos desfavoráveis do método de entrevistas: a perda, em algumas ocasiões, de parte da
espontaneidade e da naturalidade do diálogo. Perda essa que foi amenizada na entrevista
realizada para esta pesquisa, tendo em vista que a participante é minha aluna de longa data, o
que favoreceu um diálogo mais aberto e carregado de valores. Busquei interagir de forma mais
natural possível, para gerar conforto e bem-estar durante a entrevista, que foi feita na casa da
aluna.
A entrevista de pesquisa pode ser definida como um evento social através do qual o
discurso é construído de forma cooperativa (Mishler, 1999). Nesse sentido,
Por conseguinte, a participante não é vista como geradora de dados, mas como co-
construtora de valores, que se posiciona em seu contexto e demonstra parte de quem ela é
através de suas falas situadas. A intenção foi buscar respostas sobre o tema que tivessem como
origem o próprio indivíduo envolvido na experiência estudada e não apenas de questões duras
(muitas vezes irreais) de pesquisa, de estudos prévios que não se aproximavam de quem vive
seus efeitos de fato. Haveria a possibilidade de fazer um levantamento de dados a partir de
questionários aplicados em massa para grupos de pessoas idosas que estivessem aprendendo
inglês como língua adicional, a fim de gerar números que fossem, posteriormente, analisados.
Contudo, embora esse tipo de levantamento tenha o seu valor, nem sempre números e
quantidades são capazes de expor realidades, principalmente em questões mais pessoais e
sociais, por isso esta não foi a alternativa escolhida para a construção e observação de dados.
69
De acordo com Santos, “ao se discorrer sobre qualquer aspecto teórico no âmbito da
pesquisa interpretativista, é importante ter em mente que o papel da teoria nesse tipo de estudo
é o de fornecer um instrumental através do qual se possa criar sentido a respeito da ação social
pesquisada.” (SANTOS, 2013, p.21). Acredito que as experiências dos indivíduos estejam
transpostas e cruzadas com os contextos situacionais em que se inserem, sendo a análise de
entrevistas um instrumento passível de abarcar a complexidade das vivências dos atores do
contexto social investigado, possibilitando que o entrevistado manifeste seu curso de vida de
acordo com seus critérios de relevância e ordenação (RAVAGNOLI, 2018).
Conforme citado por Mishler (1924) no livro Research Interviewing, Maccoby e
Maccoby (1954) afirmam que “para nossos propósitos, uma entrevista se referirá a uma troca
verbal feita face a face, na qual uma pessoa, o entrevistador, busca suprimir informações e
expressões de opinião ou crenças de outra(s) pessoa(s)” (MACCOBY & MACCOBY, 1954,
p.449 apud MISHLER, 1986, p.9). Essa definição representa um pouco o que se buscou fazer
aqui, embora seja válido apontar que o método de entrevista, tomando emprestadas as palavras
de Santos ao se referir às narrativas, resiste um pouco a uma definição precisa, posto que pode
abranger diferentes elementos dependendo de seu contexto (SANTOS, 2013).
O método de entrevistas foi o escolhido com a intenção de melhor possibilitar à
participante narrar suas histórias de vida relacionadas com a aprendizagem de língua na terceira
idade e, assim, pudessem ser observados os processos de ensino-aprendizagem desse grupo,
ouvindo a voz de quem está inserido no cenário. O estudo de narrativas foi priorizado, também,
porque possibilita investigar como a reconstrução de eventos passados tem relação com a
identidade do sujeito, posto que “para que tais eventos sejam interpretados de acordo com as
representações que desejam, a construção de narrativas está intimamente relacionada à
construção identitária” (SANTOS, 2013, p. 24).
Ressalto que as entrevistas foram gravadas no primeiro semestre de 2021. A entrevista
selecionada para análise está disponível de forma íntegra, em forma de texto escrito, no
Apêndice A desta dissertação. Já as narrativas, produzidas durante a entrevista e selecionadas
para análise, foram formalmente transcritas no corpo da dissertação. Bastos & Santos (2013)
afirmam que
Símbolo Significado
... Pausa não medida
(.) Micropausa
Negrito Trechos em destaque para análise
. Entoação descendente, sinalizando finalização
? Entoação ascendente
, Entoação contínua, sinalizando o que mais falará
- Corte abrupto na fala
:: duração mais longa do alongamento da vogal
↑ Subida de entonação
↓ Descida de entonação
Sublinhado acento ou ênfase de volume
Maiúscula fala alta ou ênfase acentuada
>palavra< palavra acelerada
<palavra> palavra desacelerada
°palavra° Trecho falado mais baixo
( ) Palavra/trecho não compreensível – transcrição impossível
(palavra) Transcrição duvidosa
((comentário)) comentário do analista, descrição de atividade não verbal
“fala relatada” fala relatada
hh aspirações audíveis ou riso
.hh inspiração durante a fala
/.../ indicação de transcrição parcial ou de eliminação
Quadro 1- Convenções de Transcrições adaptadas pela autora com base Santos e Bastos (2013)
trocas realizadas durante os diálogos e criar pontes entre aspectos teóricos e práticos da
pesquisa. Vale ressaltar, ainda, que é de central importância a minha participação como
professora e co-construtora das narrativas (e outras produções discursivas) da
participante/aluna, tendo em vista que, em alguns momentos, além dos dados coletados nas
entrevistas, pode haver alguma informação adicional acrescentada devido a essa experiência e
convivência entre nós duas, o que, quando for o caso, será apontado previamente. A seguir, será
apresentado o embasamento teórico para o estudo de narrativas e, logo após, tratarei do contexto
da realização das entrevistas e de informações sobre a participante.
36
Um ato de fala constatativo é aquele que descreve o mundo através de fatos observáveis, que manifesta uma
opinião ou descreve aspectos de uma realidade relatada, não sendo necessariamente verdadeira ou falsa, mas que
não, diferente de narrativas, retomam histórias do passado.
72
precisa ser contável, ter algo de extraordinário, chamado por Bruner (1990/1997) de elemento
de excepcionalidade, que é o que lhe dá reportabilidade. Há uma diferença entre reportabilidade
em narrativas geradas espontaneamente e em narrativas elicidatas pelos participantes de uma
entrevista. Para Moita Lopes (2021), narrativas elicitadas são aquelas solicitadas, de forma
investigativa e direta, ao participante de uma entrevista. O autor diz que “tal elicitação pode
ocorrer em contextos discursivo-interacionais enquadrados pelos participantes como histórias
de vida, no qual o entrevistado é solicitado a contar sua história de vida” (Moita Lopes, 2021,
p.19), que foi o que ocorreu na narrativa selecionada para análise nesse estudo.
Ao estudar narrativas nos deparamos com uma gama imensa de aspectos a serem
considerados, já que essa é uma área interdisciplinar de extrema complexidade. Diversas
questões se escondem por trás da fala, que nunca é ingênua, posto que é sempre
socioculturalmente situada. A fim de tornar a análise mais organizada, foram levados em
consideração os componentes estruturais da narrativa estabelecidos por Labov (1972), que,
apesar de serem criticados (devido, por exemplo, ao fato de tratarem a narrativa como
descontextualizada e não trabalharem a relação entre evento passado e memória), são de grande
utilidade a partir de uma perspectiva interacional. Com intenção de amenizar essa visão tão
criticada de narrativa como estrutura autônoma, trabalho, também com subsídios teóricos de
outros autores que levam em consideração valores sociais e culturais da narrativa, tendo em
vista que esta não pode ser estudada fora de seus aspectos contextuais e locais, nem desligada
de suas relações sociais, já que a sua coerência não está presente apenas na estrutura do texto,
mas depende de como os participantes negociam seus significados mutuamente (FABRICIO,
2006, p.195).
Para Labov (1972), a narrativa de experiências era feita através da recapitulação
discursiva de enunciados, que eram articulados de forma sequencial e remetiam a um fato
ocorrido marcante. A organização do relato se dá através de componentes, que podem ou não
ser obrigatórios e que são, geralmente, intercambiáveis, sendo eles: o sumário, que é um breve
resumo do que será contato e pode ou não estar presente; a orientação, que também não é
exigência, mas que identifica o evento narrado e o contextualiza, indicando lugar, tempo e
outras circunstâncias; a ação complicadora, considerada por Labov (1972) o ponto crucial da
narrativa e, portanto, obrigatória, já que se trata da sequência de eventos ocorridos; a resolução,
que culmina da ação complicadora e marca a finalização de uma série de eventos da ação
complicadora; a avaliação, que alinha o ponto de vista do narrador sobre a história narrada,
expressando elementos dramáticos e seu posicionamento diante do que é contado; e, por fim, a
coda que é o gancho que traz o narrador de volta ao presente, demarcando o fim da narrativa.
73
Na análise da narrativa, busco identificar esses elementos ao mesmo tempo que os associo com
outros conceitos que compartilham da visão bakhtiniana (2019) de que existem expectativas
culturais na narrativização de experiências, o que transcende a análise laboviana rígida.
Consoante Fabricio (2006, p.192), por meio de histórias contadas, reconfiguramos as
experiências vividas de forma criativa e damos sentido a elas, imputando-lhes uma ordem lógica
e instaurando realidades sociais que se entrelaçam com a fabricação de identidades. Narrar é o
ato de construir significados a partir da fala, que é sempre performativa, já que a partir dela o
indivíduo está agindo sobre o mundo, criando uma identidade. Segundo Austin (1962), é
possível compreender a linguagem como ação e a narrativa como ato performativo, constituído
de enunciados que causam certos efeitos sobre seus interlocutores.
Para Mishler (1986), através de narrativas, recriamos nosso passado e damos nova
significância aos eventos de acordo com a pessoa que passamos a ser, desvendando conexões
(algumas vezes, até então dormentes) e nos posicionando em relação ao assunto que narramos.
Ao relembrar o passado, a participante desta pesquisa se situa e cria uma história coerente, com
motivos múltiplos, que a levaram até o atual momento. A esse respeito, é importante a
observação de Charlotte Linde (1993, p.3), que nos lembra que “para se existir em um mundo
social com um senso confortável de ser uma pessoa boa, socialmente adequada e estável, um
indivíduo precisa ter uma história de vida coerente, aceitável e constantemente revisada.” Ao
falar sobre o primeiro contato significativo com a língua, a narradora revisita seu passado ao
falar de momentos marcantes, revisando sua história de vida, se situando, assim, no mundo
social e construindo sua identidade, que depende, também, do contexto em que está inserida.
Nesse sentido, serão apresentados dados das participantes que podem contribuir na análise de
suas narrativas.
Dou início a esse trecho estabelecendo que, a princípio, seis mulheres com mais de
sessenta anos e estudantes de língua inglesa foram entrevistadas para a pesquisa. Duas eram
alunas do curso de inglês oferecido pela Universidade Estadual Norte Fluminense Darcy
Ribeiro (UENF) para pessoas com mais de sessenta anos, duas eram conhecidas de pessoas
próximas a mim e estudavam no curso oferecido pelo Sesc Campos e as outras duas
entrevistadas são alunas particulares minhas. A princípio, as duas últimas foram selecionadas
para estudo, pois, creio que devido ao meu papel de professora na vida das participantes, as
suas entrevistas foram mais prolíficas e constituíram dados mais complexos. Logo na primeira
74
seleção, as outras quatro participantes não foram selecionadas porque suas respostas às
entrevistas não foram tão desenvolvidas quanto as que foram selecionadas, ou seja, as suas
entrevistas não desenvolveram narrativas estruturadas de forma que pudessem ser melhor
analisadas. Creio que isso se deva ao fato de as outras participantes não terem tido nenhum
contato prévio comigo, ou seja, não havia um vínculo de confiança pré-estabelecido.
A princípio, duas entrevistas foram selecionadas para análise, contudo, notei que
apenas uma delas se encaixou no critério de inclusão de narrativas que desejava observar, ou
seja, apenas uma das participantes narrou histórias que se relacionavam com a sua
aprendizagem. A segunda entrevista (com a outra participante que também era minha aluna)
acabou gerando respostas mais constatativas, ou seja, que relatavam situações e opiniões,
diferente de narrativas, que contam histórias de vida. Por isso, acabou não sendo selecionada,
o que reduziu o estudo a uma narrativa apenas. Assim sendo, a entrevista de Rafaela
(pseudônimo) foi a que mais atendeu às expectativas, tendo sido a escolhida para análise, o que
não tira a importância das outras entrevistas, que também contribuíram na percepção geral deste
estudo e que poderão ser utilizadas em estudos futuros.
Com o propósito de melhor explorar o contexto desta pesquisa, faz-se necessário
apontar que minha experiência como professora da entrevistada também proporcionou um
acompanhamento próximo do processo de ensino-aprendizagem de Rafaela, com quem
compartilho experiências há cerca de três anos em aulas particulares, com pausas nesse tempo.
Embora não tenha sido a única motivação da escolha da participante, esse contato me propiciou,
também, a percepção de sua personalidade extrovertida e comunicativa, o que, junto à confiança
que deposita em mim, pode ter promovido narrativas mais complexas e, portanto, criado dados
mais expressivos a serem observados.
Sendo assim, o discurso investigado nessa pesquisa é a narrativa de uma mulher,
aprendiz de língua inglesa e com mais de 60 anos de idade, cujo nome foi mantido em sigilo
após o uso de um pseudônimo (Rafaela), que tem como intuito assegurar os princípios éticos
de investigação e de proteção, para que, assim, nenhuma das informações fornecidas pudesse
refletir em ações que representassem prejuízo à participante (DENZIN & LINCOLN, 2005).
Rafaela faz aulas particulares uma vez na semana, em sua residência. Já tendo cursado aulas há
cerca de três anos, com consecutivas pausas, ela está, no momento da pesquisa, em pausa
novamente, por motivos pessoais.
Como professora, sempre notei o interesse de Rafaela em aprender. Sempre pontual e
com os deveres em dia, para ela, as aulas pareciam ser um momento de crescimento intelectual
sem cobranças, sem prazos curtos, sem desespero ou demandas profissionais. Além disso, era
75
surgiu a partir de bases teóricas de trabalhos que lidaram com o público idoso, sobretudo a
pesquisa de Lima (2007), e que mostravam a relação entre envelhecimento bem-sucedido e
classe social. A partir deste estudo, pude refletir ainda mais sobre a importância de observar
valores socioculturais e econômicos das participantes desse contexto que, aproveito para
esclarecer, não foram selecionadas a partir de nenhuma questão relacionada à situação
socioeconômica, mas sim pelos motivos explanados anteriormente: proximidade com a
pesquisadora, disponibilidade para contribuir com o estudo e construção de narrativas ao longo
da entrevista.
O questionário, que apresenta perguntas abertas e fechadas que versam sobre estado
civil, estrutura familiar, renda mensal e situação empregatícia, foi aplicado a fim de
compreender melhor a realidade vivida pelas entrevistadas e, ao investigar os dados ali gerados,
pude observar a relação entre a qualidade de vida de pessoas idosas e classe social, o que
influencia em suas decisões e experiências. Todas as participantes responderam ao questionário,
mas apenas as informações socioeconômicas do questionário de Rafaela foram organizadas no
Quadro 1, a fim de facilitar a compreensão qualitativa dos dados, tendo em vista que somente
a entrevista dessa participante foi analisada. Nesta seção, foram descritas principalmente as
características socioeconômicas e a forma com que interagem com os conceitos nesse estudo.
As perguntas sobre aprendizagem de Inglês que estão no questionário foram trabalhadas na
parte de análise das narrativas e aspectos sócio-histórico-culturais, que estão aprofundados nas
seções seguintes. As informações socioeconômicas foram adaptadas e organizadas da seguinte
maneira:
pseudônimo Rafaela
Ano de nascimento 1961
Cidade onde habita Campos dos Goytacazes
Grau de escolaridade 3° completo, artes visuais
Aposentada Não
Profissão que exercia -
Profissão que exerce Gerencia a clínica do casal
Carga horária Inexata
Renda mensal individual Mais de quatro salários
Classe social Classe alta
Estado civil Casada
Tem filhos? Sim
Com quem reside Marido
Realidade atual Trabalho e sou independente
Estudou majoritariamente em Escolas particulares
Frequentou cursos de inglês Sim
Por quanto tempo? Até o quarto ano do curso
Em qual fase da vida? Fase adulta
Como descreve o nível de inglês Básico
Quadro 2- Informações socioeconômica das participantes
Fonte: criação da autora
77
37 O neoliberalismo pode ser visto como uma extensão do mercado em todas as áreas da vida (BOURDIEU, 1998).
George Monbiot (2016) assevera que a filosofia neoliberal emergiu como uma tentativa consciente de remodelar
a vida humana e deslocar os locais do poder. O autor define cidadãos como consumidores, cujas escolhas
democráticas são mais bem exercidas ao comprar e vender, em um processo que premia o mérito e pune a
ineficiência. Nesse limiar, a participante encontra-se em posição de poder aquisitivo e assegura seu posto por
possuir, por exemplo, condições de consumir a língua inglesa como um produto.
79
tela, aulas de idiomas, entre outras. Esta realidade, infelizmente, não é a de todo brasileiro.
Aprender um idioma, muitas vezes, demonstra uma posição social de prestígio.
Rafaela retomou os estudos da língua inglesa novamente já na faixa dos sessenta anos
de idade, ou seja, na terceira idade. Pode-se dizer que aprender inglês nesta fase está associado
a desejo de se inserir em uma sociedade globalizada. Zacharias (2009) defende que o Brasil é
um país de terceiro mundo configurado pelo fenômeno da globalização38, uma sociedade
capitalista de contornos neoliberais, caracterizada pela competividade e agilidade, um mundo
ocidental que privilegia o ter em detrimento do ser (grifo próprio). Zacharias (2009) ainda
expõe que esse é um padrão social excludente e autoritário, no qual o avanço da modernidade
cria possibilidades e, igualmente, degrada o conhecimento, tornando-o uma commodity39, o que
causa, como uma de suas consequências, a limitação daqueles que têm acesso à aprendizagem
e às novas produções. De forma similar ao estudo de Pizzolatto (1995), Conceição (1999)
também pontua o fator socioeconômico como determinante em termos de aprendizagem de
línguas nessa faixa etária.
A convivência próxima com a entrevistada possibilitou a percepção de uma classe
social privilegiada, o que foi confirmado nos dados do questionário. Essa posição confere a ela
o prestígio de poder aprender uma língua adicional com uma professora particular, no conforto
de sua casa. Contudo, vale pôr em evidência que poder pagar para aprender uma língua é uma
realidade distante para grande parte dos gerontolescentes no Brasil e em outros países da
América Latina, já que, segundo o site oficial da Fiocruz40, a América Latina é a região do
mundo com maior desigualdade social, havendo uma estimativa de que 40% dos idosos desse
território não tem nenhum tipo de renda própria fixa.
O acesso a recursos financeiros para estudar inglês se restringe a um grupo pequeno,
que apresenta condições financeiras acima da média. Esse fato evidencia a diferença social na
terceira idade e pode fortalecer preconceitos contra esse grupo, que fica às margens da
globalização, posto que a baixa renda concede acesso limitado a esse mercado de ensino-
aprendizagem de línguas. Nesses casos, pessoas com mais de sessenta anos de idade, com baixa
renda familiar, podem recorrer apenas a cursos gratuitos ou de baixo custo que são oferecidos
38
No que diz respeito à globalização, aqui é adotada a mesma visão de Bauman, de que: “Para alguns,
‘globalização’ é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para
todos, porém, ‘globalização’ é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo
que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo ‘globalizados’ — e isso
significa basicamente o mesmo para todos.” (BAUMAN, 1999, p. 5)
39Segundo o dicionário de língua portuguesa Priberam, commodity é a “mercadoria primária produzida em grande
quantidade, cujo preço é regulado pela oferta e pela procura internacionais”, é, ainda, um “produto que resulta de
produção em massa.”.
40
Pobreza é principal obstáculo para idosos da América Latina (fiocruz.br)
81
à comunidade, como ocorre, geralmente, em Universidades (que, na maioria das vezes, são
públicas) com programas voltados para a terceira idade.
Após ter trabalhado as informações contidas no questionário socioeconômico e
associado essas questões à mercantilização do ensino-aprendizagem de língua inglesa, a seguir
veremos a análise das narrativas produzidas durante a entrevista com Rafaela. Vale lembrar que
outras duas inquietações que também nortearam essa análise foram a influência colonial da
cultura inglesa e americana na juventude dos gerontolescentes e a importância da inserção
social para o indivíduo, que busca realizar na aprendizagem de uma nova língua o desejo de
fazer parte do mundo globalizado.
Esse desejo de inserção social se concretiza não apenas nas comunidades de prática
geradas de maneira formal em torno do ensino-aprendizagem de língua, mas, também, em
maneiras mais informais, como na habilidade de se comunicar e de acessar artefatos culturais
(músicas, filmes, etc) de outra língua, já que cada vez mais pessoas buscam essas habilidades
e, ao dominá-las, não apenas se inserem socialmente, mas também gozam de status e prestígio
social. Essa tomada de iniciativa para ser inserir socialmente, a busca por um status social,
também está relacionada com a agência, que transforma a sociedade e que parece ser
característica marcante da atual geração de terceira idade, os gerontolescentes, termo este
utilizado como maneira de registrar uma mudança de significado que vem ocorrendo do que é
envelhecer na sociedade brasileira.
ser observado abaixo, no texto que foi organizado em linhas e transcrito sob convenções
adaptadas de Gail Jefferson (1983).
Rafaela inicia sua narrativa com uma breve contextualização, transcrita na linha 1,
sobre já ter tentado aprender inglês diversas vezes. Esse resumo do que será contado é chamado
por Labov (1972) de sumário e desencadeia uma série de eventos relatados sobre as tentativas
da participante em estudar o idioma. Esses eventos estão relacionados à ação complicadora da
narrativa, que gira em torno de situações que impediram a continuidade da aprendizagem e que
culminam em uma série de resoluções, sobre as quais a narradora elabora ao longo da entrevista,
fazendo avaliações encaixadas sobre o processo.
Bastos e Liar (2015) apontam que a avaliação, segundo Labov (1972), pode ser feita
de duas maneiras: avaliação externa, quando o narrador suspende o fluxo da narração e faz uma
observação descolada da história; e avaliação encaixada, quando o narrador usa recursos que
transmitem o sentido que deseja e, por meio da forma que se expressa durante o discurso,
confere certa carga emocional à história, sem interrompê-la. É muito comum a presença de
avaliações encaixadas em discursos orais, como foi no caso de Rafaela, que transmite sua
opinião não só em palavras, mas, também, na entonação dada à narrativa.
83
Logo no início, Rafaela afirma que teve inglês no colégio, quando era “novinha”, mas
não se aprofunda nesta fase de sua aprendizagem, que talvez não tenha tido grande valor em
sua vida. Em seguida, recorda que estudou com as filhas em um curso de inglês e, neste
momento, narra um pouco mais sobre sua experiência de aprendizagem, afirmando ter estudado
junto com as filhas adolescentes como forma de incentivar ambas a estudarem, criando assim
uma comunidade de prática de forma espontânea e inconsciente.
No excerto 1, Rafaela apresenta uma ação complicadora, que gira em torno dos
afazeres da vida e que a levaram a trancar a matrícula do curso, encerrando este ciclo. Contudo,
a maneira com a qual elabora sobre esta fase demonstra que este foi um contato mais marcante
com o idioma do que o que teve em sua primeira fase, durante a juventude, conforme será
confirmado posteriormente. A narradora dá uma continuidade à história, dizendo que sempre
quis aprender, o que demonstra seu desejo ininterrupto de seguir com a aprendizagem.
Conforme desenvolve a história, Rafaela demonstra admiração pelo idioma e por seu
uso, o que também usa como justificativa para seu desejo de aprender. Ela faz uma avaliação
encaixada ao dizer que acha lindo quem sabe falar inglês, quem entende a língua. A narradora
enfatiza a palavra “lindo” através de um intensificador lexical que lhe confere ênfase, ao passo
que parece querer fazer parte daquela comunidade, parte de algo que ela considera positivo e
admirável. O uso de marcadores orais é um aspecto que dramatiza o contar de histórias ao
enfeitá-la com diferentes tons e, assim, envolver o ouvinte no que está sendo narrado. Esse
desejo de participação de Rafaela também se relaciona com a inserção social, já que, segundo
ela, “todo mundo fala inglês” atualmente.
Depois de afirmar que sua admiração pelo domínio da língua seria uma motivação para
aprender, Rafaela também impõe a independência em viagens como outro motivo para ter
retomado a aprendizagem, e afirma que, ao viajar em família, sua filha, já adulta, se comunicava
com facilidade, enquanto eles ficavam como “patetas” por não conseguir fazer o mesmo. Esse
discurso também apresenta uma ação complicadora, que é não saber falar “a língua universal”
ao viajar, o que constrange a participante desta pesquisa. Ao mesmo tempo, ocorre uma
avaliação da narradora, ao usar um adjetivo negativo (“patetas”) para expressar como se sentiu
por não ter essa habilidade, considerada por ela tão admirável, necessária e trivial demais para
não ser dominada, gerando dependência comunicacional.
É perceptível que Rafaela demonstra interesse em se comunicar de forma
independente, o que aponta para o conceito de agência, pois demonstra a vontade da participante
de não depender de terceiros para realizar ações consideradas por ela como corriqueiras, como
se comunicar em outro idioma durante uma viagem. Essa tomada de atitude, de retomar os
84
estudos com intenção de resolver um problema em sua vida, reforça a mudança de perfil que
vem ocorrendo na terceira idade, contribuindo com a reformulação dos sentidos envolvidos
nesse termo. Ou seja, a terceira idade não é mais caracterizada por sujeitos passivos que se
sujeitam aos acontecimentos da vida com resignação. Os sentidos embricados no
envelhecimento e na terceira idade vem se transformando lentamente e, tendo em vista que a
narradora busca formas de se adaptar ao meio ativamente, esse seu traço agentivo pode
fomentar essa transformação de sentidos na sociedade. Aqui, notamos como o coletivo atua
sobre o indivíduo (a universalidade do inglês gera necessidade de aprendizagem) e o indivíduo
contribui para uma mudança a longo prazo no coletivo (a decisão de resolver os próprios
problemas, de ser independente, reforça o perfil da pessoa idosa ativa).
Aponto, porém, que a agência aqui observada, ligada à rejeição da ideia de
dependência para resolver questões pessoais, está ligada ao fato de Rafaela ter suas habilidades
físicas e mentais completamente preservadas, que, também, relaciona-se ao fato de ter um
padrão de vida elevado, já que nem todo idoso tem acesso à qualidade de vida e envelhecimento
saudável. Portanto, essas características estão sendo observadas em uma participante de classe
alta e com situação financeira estável, realidade que não pode ser tomada como absoluta de
todo gerontolescente.
Na narrativa, é possível identificar a influência do idioma no cotidiano de pessoas que
se mantêm ativas em suas esferas sociais e, principalmente, que estão inseridas em meios
relativamente privilegiados, interagindo com outros indivíduos que também usam a LAd no dia
a dia. “As intenções de uma pessoa para aprender são engajadas e o significado da
aprendizagem é configurado através do processo de tornar-se um participante pleno de uma
prática sociocultural” (LAVE e WENGER, 1991, p.29). Além disso, ela “fornece um meio de
falar sobre as relações entre novatos e experientes, e sobre atividades, identidades, artefatos e
comunidades de conhecimento e prática” (LAVE e WENGER, 1991, p.31). Conforme
observado na fala de Rafaela, causa certo incômodo não entender uma interação proposta em
um idioma considerado universal. Esse incômodo parece estar relacionado com a necessidade
de estar socialmente inserida em uma comunidade.
A aprendizagem desempenha papel central na inserção social do gerontolescente.
Diferente do conceito de aquisição de LAd como internalização de regras gramaticais, a
aprendizagem através de compartilhamento está ligada ao aspecto da participação em
comunidades de prática. Nessa percepção, o indivíduo é visto como ser complexo agindo no
mundo, sendo influenciado por ele e o influenciando ao mesmo tempo, ou seja, sendo agente
de mudanças. A aprendizagem como participação preconiza uma forma evolutiva de se tornar
85
41No que diz respeito ao termo lazer, pode-se dizer que “é um termo atualmente utilizado de forma crescente no
Brasil, podendo ser associado a palavras como entretenimento, turismo, divertimento e recreação. Porém, o sentido
do lazer é tão polêmico quanto à origem desse conceito” (AQUINO; MARTINS, 2007, p.484). Para Melo e Alves
Junior (2003, p. 10) “[...] não é possível pensar no lazer como um fenômeno consensual, ingênuo ou dissociado de
outros momentos da vida”.
87
“não dá” e expressar que, apesar do desejo de se comunicar com um falante nativo, não se sente
preparada para isso no presente, demonstrando sua atual insegurança. Logo em seguida, ela
afirma “e eu sou do tipo metida”, usando outro verbo no presente. Esse gancho de volta para o
presente pode ser considerado uma coda, tendo em vista que a narradora traz a história de volta
para o momento da fala. Nesse mesmo trecho, também observamos dois tipos de avaliação:
avaliação encaixada, que é observada através de prosódias (“Quem me de::ra!↑”, “ Mas não
dá↓”), que dramatizam sua fala; e uma avaliação externa, quando Rafaela suspende a narração
para fazer um comentário sobre sua personalidade (“e eu sou do tipo metida, hein?”).
Continuando a entrevista, enfatizo com Rafaela que o importante para desenvolver a
oralidade é, de fato, ter confiança e deixar a vergonha de lado. Rafaela concorda e diz que
muitas pessoas não têm coragem de falar, mas que ela é “cara de pau” para isso. Nesse
momento, ao avaliar sua atual personalidade como extrovertida, ela dá início a uma narrativa
sobre como mudou seu comportamento ao longo dos anos, de uma pessoa mais séria, que se
vestia de maneira formal e se portava com maior respeitabilidade, segundo a sua avaliação, para
uma pessoa mais tranquila e despojada.
Essa mudança de comportamento apresenta a reconstrução de self de Rafaela que,
devido à mudança do contexto que vivia antes (maternidade, maiores exigências no trabalho e
no lar) e vive atualmente (filhos já criados, menos carga no trabalho, mais idade), reformula
sua performance diante do mundo e, consequentemente, sua identidade. A definição de
identidade é complexa e foi classificada por Hall (2006) em três categorias diferentes: a do
sujeito do iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno. Enquanto o primeiro
sujeito (do iluminismo) seria aquele cuja identidade permanecia a mesma ao longo da vida, a
identidade do sujeito sociológico era formada de uma amálgama de outras pessoas que
influenciavam em suas vidas, que mediavam seus valores, sentidos e símbolos, fazendo com
que apresentasse diferentes identidades de acordo com as diferentes esferas sociais em que
estaria inserido. Ou seja, a cultura do mundo que habitava, bem como sua identidade, era
moldada a partir da interação entre o sujeito e a sociedade, sendo que a interação contínua entre
estes era responsável por transformar o “eu real”, que seria a essência individual de cada um.
O sujeito pós-moderno seria aquele cuja identidade é mutável, não fixada ou
permanente, e não moldada apenas socialmente, nem muito menos biologicamente, mas
também com transformações históricas. O sujeito pós-moderno seria aquele que assume
diferentes identidades e performances em diferentes momentos de sua vida, conforme ocorrido
com Rafaela. Hall (2006) aponta, ainda, que existem identidades contraditórias em cada sujeito
e que essas divergem e se empurram em direções diferentes, se revelando em diferentes
88
momentos. A esse exemplo, vemos a divergência entre as duas identidades que Rafaela assumiu
ao longo do tempo em sua narrativa, conforme podemos observar a seguir:
Excerto 2 – Aí eu fui diferente
1 Rafaela Gente, e eu sou muito cara de pau! hh Quando eu estou bem-humorada, então! E
2 normalmente eu estou bem-humorada, graças a Deus, mas eu... eu sou muito cara de
3 pau. Pra tudo! Não, e sou cara de pau hoje, né? Há 20 anos atrás eu não era cara de
4 pau assim, não... eu era toda certinha, toda... - nossa, eu usava terninho para trabalhar!
5 hh Eu era completamente diferente do que eu sou hoje. É, não sei porque... acho que
6 é porque eu tinha uma carga. Eu tinha que... Eu achava que eu tinha que ser muito
7 responsável, porque tinha três filhos para educar, para botar para estudar, para levar
8 para mil aulas, pra... - tinha que obrigar todo mundo a estudar, tinha que tomar conta
9 da minha casa, era... - tinha meu marido, que é médico, sempre foi famoso e eu tinha
10 que... eu tinha que dar conta daquilo tudo. Então, eu era mais séria, mas depois que
11 as crianças cresceram, né? Que eu vi que tudo ia... né? (gesto indicando fluidez) Aí
12 eu fui diferente
Quando Rafaela inicia sua narrativa, dizendo que “há 20 anos eu não era cara de pau
assim”, ela faz um sumário do que será dito adiante, ou seja, ela informa que sua narrativa
abordará a mudança de identidade percebida por ela ao longo do tempo. A narradora afirma que
a cobrança que sentia quando mais jovem era muito maior, principalmente por se ver como
modelo para os filhos ainda jovens, ao mesmo tempo que tinha responsabilidades com a
educação deles, com a casa e com o marido. O corte repentino que ocorre algumas vezes no seu
discurso e o tom usado por ela, demonstram que ela se sentia assoberbada e cobrada, como mãe,
como profissional, dona de casa e esposa. Nesse contexto, é possível notar também a questão
de gênero, como o papel social geralmente incumbido às mulheres como cuidadoras do lar e
dos filhos, como facilitadora da vida do marido.
Rafaela nota uma mudança em seu comportamento ao envelhecer, posto que se sente
mais livre de obrigações cotidianas e reformula sua identidade como alguém mais descontraída,
tranquila e “cara de pau”. Ao não se perceber mais como modelo para os filhos, Rafaela parece
passar por uma ressignificação ao ter desenvolvido traços de extroversão que são, atualmente,
típicos de sua personalidade, ficando registrado em sua forma de falar, de se portar, de se vestir,
ou seja, em sua performance e modo de agir no mundo. Essa mudança de performance
percebida por Rafaela revela, além de uma ressignificação do “eu”, uma nova forma de
envelhecer, diferente das vistas em outras épocas, o que fortalece uma reinterpretação da
terceira idade e indexicaliza novos sentidos para esta fase da vida.
A participante estabelece seus motivos para não ter dado continuidade aos estudos na
segunda fase de sua vida e aponta que a maior disponibilidade de tempo foi um dos fatores que
a fez retomar a aprendizagem na terceira fase, o que reforça o preceito de que, em casos ideais
89
42, aprender uma língua na terceira idade tem como vantagem uma disponibilidade maior de
tempo, seja devido à aposentadoria (ou reduzida carga de trabalho) ou, ainda, devido à
diminuição de responsabilidades para com os filhos, que estão, na maioria das vezes, adultos.
Antes dos sessenta, muitas vezes, outras obrigações cotidianas acabam impedindo a pessoa
adulta de priorizar a aprendizagem, principalmente quando essa não é exigida no ambiente de
trabalho.
Além de ter moldado a performance de Rafaela, ao se sentir isenta do papel de mãe
como referência na vida dos filhos, envelhecer também a fez perceber e aproveitar novas formas
de ocupar o tempo livre. Para Porto (2018), o tempo pode estar associado ao momento ou
ocasião apropriada para a realização de uma determinada ação. A autora denomina esta
modalidade temporal como tempo social e acrescenta que
42
Casos ideais seriam aqueles em que pessoas acima de sessenta anos pudessem aposentar e não tivessem
cobranças profissionais ou filhos dependentes financeiramente.
90
comunicar de maneira dinâmica. Seja pela fala ou através da comunicação visual, sua
performance é marcada por jovialidade, atitude positiva, independência, autonomia e força. A
terceira idade, em seu caso, contribuiu para a redução de cobranças, mas isso não fez com que
ela se acomodasse, mas buscasse novas formas de participar socialmente, como, por exemplo,
através da aprendizagem.
Ao ser perguntada sobre a relação entre idade e aprendizagem, Rafaela inicia o
discurso de uma forma para, em seguida, mudar de opinião. A princípio, ela afirma que “dizem
isso”, ou seja, que a idade influencia na aprendizagem, mas discorda dessa concepção ao dizer
que acha que não, que a idade não influencia. Ela engatilha uma narrativa ao recordar de quando
estudou com as filhas e faz uma comparação com sua juventude e o atual momento de
aprendizagem e, ao longo de sua fala, parece concordar com o senso comum de que a
aprendizagem se relaciona, sim, com a idade, conforme observado no excerto a seguir, que
apresenta uma narrativa menos canônica, se iniciando com um discurso que constata, no
presente, como Rafaela acredita ter mais vontade de aprender agora do que quando mais nova,
e inaugura uma pequena narrativa sobre como se sentia na obrigação de aprender quando
estudava com as filhas, na fase de jovem adulta.
Rafaela inicia uma sequência não cronológica, falando sobre o presente para voltar a
um passado mais recente (jovem adulta) e, em seguida, voltar ainda mais no tempo (infância),
quando afirma que “quando era novinha” teve aulas de inglês por obrigação, provavelmente de
seus responsáveis. Depois, Rafaela retoma para o momento em que estava com mais idade,
quando afirma que foi querer estudar “depois de mais velha”, como visto:
A visão de aprendizagem que Rafaela parece ter é socialmente moldada pelo que ela
ouviu ao longo de sua experiência de vida, possivelmente falas pautadas em estudos mais
antigos e datados que versavam sobre o período crítico da aprendizagem. Enquanto fala,
Rafaela usa marcadores lexicais que buscam confirmar sua opinião (“dizem, né?”, “você ouve,
né?”, “não é isso?”), mas que, ao mesmo tempo, não são baseados em fatos concretos ou
opiniões profissionais, ela apenas cria uma espécie de “entidade plural” que representa, segundo
ela, os estudiosos da área. Quando afirma que é isso que “eles dizem”, mas que ela não estudou
para saber, Rafaela parece estar se livrando de uma “culpa”, caso esse ponto de vista esteja
equivocado, mas é possível notar em seu discurso que sua visão, embora tenha intenção de
transmitir confiabilidade de estudiosos, foi estereotipada pelo senso comum, ou seja, “o que
dizem por aí”.
Apesar de, mesmo que inconscientemente, compartilhar da crença de que há diferenças
na aprendizagem de acordo com a idade, Rafaela pontua questões positivas da sua experiência,
como maior vontade e disponibilidade de tempo, o que vai contra o estereótipo negativo de
aprendizagem na terceira idade. A visão de que a aprendizagem ocorre de maneira mais eficaz
durante a juventude reforça um rótulo negativo para aqueles que desejam aprender na terceira
idade, que precisam passar por cima de mais este preconceito quando decidem estudar um
idioma depois dos sessenta anos de idade. Esse comportamento, de ir contra crenças populares
e buscar o que deseja, representa um comportamento ativo e independente. Aproveito para
retomar a questão de agência – que aqui é compreendida como a maneira através da qual
pessoas situadas no mundo governam suas vidas intencionalmente, se responsabilizando pelo
curso de suas decisões e pelas práticas morais e culturais que estão implicadas nelas (Liberali,
2020). A decisão de iniciar um curso de inglês pode ser considerada como agência,
principalmente por ter sido tomada na terceira idade, momento socialmente julgado como não
propício para a aprendizagem, conforme pôde ser visto no próprio discurso da entrevistada.
Apesar de ter consciência de um preconceito social que envolve a aprendizagem de
línguas na terceira idade e refletir sobre essa questão, mencionando, inclusive, já ter ouvido
falar sobre estudos a esse respeito, Rafaela, ainda assim, escolheu iniciar o curso de inglês, em
uma atitude desafiadora de agência que pode contribuir para a reconstrução da cultura
futuramente, reproduzindo condições mais dignas para os gerontolescentes das próximas
gerações que possam querer aprender inglês e que, talvez, não precisem enfrentar os mesmos
olhares preconceituosos que ela teve que enfrentar.
Ao longo da entrevista, Rafaela menciona outras questões que demonstram um estilo
de vida autônomo e uma personalidade dinâmica, que busca tomar atitudes e resolver problemas
92
sempre que necessário, sejam relacionados ao trabalho ou às decisões da casa. Esse perfil ativo
também contribui para uma mudança no estereótipo da terceira idade, reforçando a
transformação e a ressignificação do envelhecimento. Contudo, a agência transformadora
também está embebida de questões sociais e culturais, sendo permeada por elas. Ou seja,
embora Rafaela desempenhe uma performance desafiadora de tabus para sua idade, ela, ainda
assim, é controlada por diversos fatores, muitas vezes inconscientes, como a questão de gênero
vista anteriormente.
No excerto 2, Rafaela desabafa sobre como o papel de mãe e esposa acabaram
influenciando em sua decisão de aprender o idioma na fase adulta e, posteriormente, de encerrar
o curso, quando as filhas precisaram parar e ela resolveu também encerrar as aulas, por ter
outras obrigações com a casa e os filhos43. Esse fator evidencia uma questão de gênero,
implícita no papel de mãe. Nesse sentido, as decisões tomadas de maneira agentiva são,
também, socialmente influenciadas, mesmo nos casos de agentes transformadores, eles não
estão isentos da carga da opinião e do senso comum, mas parecem encontrar formas de desafiá-
las. Rafaela deixa claro que a correria da vida do lar a impedia de fazer coisas consideradas por
ela como lúdicas e agradáveis durante a aprendizagem, como pode ser visto no excerto 4:
43
É válido expor que apesar de se sentir sobrecarregada com as tarefas que exercia, os afazeres domésticos
relacionados à limpeza bruta da casa não eram/são realizados unicamente pela participante, que conta com ajuda
profissional, o que, mais uma vez, ratifica sua posição social privilegiada. Contudo, mesmo tendo ajuda, gerenciar
questões de um lar e a educação dos filhos consome tempo, e o papel do gênero (mulher/mãe/esposa) a fez sentir
responsável por essas tarefas, levando-a priorizar outras obrigações cotidianas e encerrar o curso de inglês quando
jovem adulta. Levando em conta o atravessamento de gênero, deixo um importante questionamento: quais as
chances de um aluno do sexo masculino se sentir sobrecarregado com lar e filhos e se sentir compelido a tomar a
mesma decisão de abandonar a educação? Provavelmente são chances bem menores.
93
Rafaela inicia sua narrativa na terceira linha do excerto 4, quando faz o sumário “igual
quando eu estava fazendo inglês com as crianças” e, logo em seguida, apresenta uma ação
complicadora que atrapalhou sua aprendizagem e influenciou em sua decisão de parar, que foi
a obra de sua casa. Rafaela diz que era responsável por resolver todas as questões relevantes da
construção, enfatizando através da repetição (linhas 5 e 6) que quem resolve “tu:do” na casa é
ela. A seguir, é possível notar uma avaliação encaixada que Rafaela faz de si mesma ao dizer
que o marido não leva jeito para isso, mas que ela “tem jeito para resolver as coisas” e que, por
isso, “toma as frente”. Ela também repete essa frase mais de uma vez (linha 7), enfatizando seu
perfil agentivo de solucionar problemas.
Quando Rafaela fala sobre seu perfeccionismo, ela relembra que as filhas, durante os
anos que estudaram juntas, pegavam seu livro escondido para copiar os deveres de casa. Essa é
uma forma de comprovar que ela era boa aluna e cumpria com suas obrigações, que tirava boas
notas e que preferia encerrar assim, do que deixar seu rendimento cair por conta da vida pessoal.
Em seguida, Rafaela, no fim, faz uma coda que a conecta com o presente, quando diz que até
hoje as filhas lembram de quando copiavam os deveres de casa da mãe e riem disso. Ne relação
que elas desempenhavam, Rafaela servia de modelo para as filhas e era “detentora do
conhecimento”, o que lhe conferia uma certa posição de poder.
No que diz respeito à relação da aprendizagem e poder, também entro na questão de
gênero ao relatar que o marido de Rafaela demonstra certo incômodo no fato de a esposa estudar
o idioma na terceira idade. Isso pôde ser notado na entrevista, mas não apenas nela. Durante a
convivência semanal como aluna e professora, mais de uma vez ouvi Rafaela relatar que o
marido achava uma perda de tempo ela estar investindo em um curso de inglês. Inclusive, a
opinião do marido foi o que a fez interromper nossas aulas na última vez. No seguinte excerto,
é possível notar a opinião de seu companheiro:
Excerto 5 – Mas ele não quer, não sei, não tem tempo.
1 Lucy Por exemplo, as aulas particulares poderiam ajudar você e seu marido, que já têm
2 algum entendimento.
3 Rafaela Então, era o que eu queria, era o que eu queria... saber um pouquinho mais, para entrar
4 junto com ele numa conversação. Uma vez... Nem que fosse de quinze em quinze
5 dias, uma horinha, sentar e conversar um pouquinho. Ele já estudou outras vezes.
6 Uma vez ele falou que não adianta mais fazer curso agora, que não aprende mais por
7 causa da idade... e fala que esqueceu tudo, mas ele não esqueceu, não... ele sabe muito
8 mais do que eu... - Ter pessoas próximas que saibam é um incentivo. Compartilhava
9 muito esses conhecimentos em casa mesmo, com as filhas, vendo filmes em inglês,
10 por exemplo, conversando sobre falas do filme. Isso é importante... Depois que
11 minhas filhas saíram de casa, não pratico tanto mais, então queria aprender pra poder
12 praticar com o Beto, né? Mas ele não quer, não sei, não tem tempo.
94
Na sexta linha do excerto 5, Rafaela inicia uma narrativa sobre a vez em que o marido
disse não adiantar mais estudar um idioma já tendo mais idade, o que transparece não apenas
uma visão preconceituosa, mas um certo incômodo ao ver a esposa estudando. Rafaela faz uma
avaliação externa ao comentar que o marido diz ter esquecido tudo, mas que, em sua opinião,
ele não esqueceu e ainda sabe muito mais que ela. No final de sua fala, Rafaela diz que o marido
“não tem tempo” de fazer aulas e praticar com ela, o que pode demonstrar falta de interesse
dele no processo de aprendizagem dela e um certo desencorajamento, principalmente quando
diz que “não se aprende mais nada depois de uma certa idade” (linhas 6 e 7). Em sua orientação,
a narradora aponta o comportamento do marido como uma ação complicadora que, apesar de
servir como modelo por saber mais inglês que ela, desincentiva sua aprendizagem ao longo do
processo.
Seria possível fazer uma suposição de que ter um nível mais elevado de conhecimento
do idioma coloca o marido de Rafaela em uma posição de prestígio dentro da relação, uma
posição com a qual ele está familiarizado, tendo em vista que é médico e desempenha sua
profissão com sucesso, enquanto Rafaela, apesar de formada em artes, não desempenha essa
função profissional, vivendo em função da clínica do marido, da casa e da família. Talvez Beto
se sinta inconscientemente ameaçado ao ver a esposa almejando níveis mais elevados na
aprendizagem de inglês, enquanto ele não deseja fazer o mesmo. Essa percepção ratifica,
novamente, uma questão de gênero que atravessa as falas de Rafaela. O discurso de
desincentivo do marido (“já esqueci tudo”, “não adianta mais estudar nessa idade”) apresenta
teor machista e posiciona o homem como detentor do saber, como alguém que tenta,
discursivamente, fazer com que a mulher interrompa os estudos e permaneça em uma posição
de submissão em nível cultural.
Rafaela constata a importância da presença de outras pessoas que saibam o idioma,
reforçando o valor da comunidade de prática. Por fim, ela retoma a narrativa falando sobre
como compartilhava conhecimento enquanto os filhos moravam com o casal. Essa troca não
ocorre mais, tendo em vista que os filhos se mudaram e, como resultado da narrativa, Rafaela
faz uma coda com o presente, dizendo que o marido não tem tempo de praticar ou fazer aulas
com ela, o que revela um desfecho que parece não agradá-la, pelo tom de voz que usa ao dizer
“mas ele não quer, não sei, não tem tempo”.
Conforme visto no referencial teórico, comunidades de prática são de grande valor na
aprendizagem, principalmente para alunos com mais de sessenta anos de idade, pois, além de
contribuir com a inclusão social, é o que incentiva o sujeito a dar continuidade aos estudos.
Foram registradas, na fala de Rafaela, trechos que expressam sua compreensão da importância
95
de compartilhar conhecimentos em grupo, como observado no excerto 5, quando diz que queria
“aprender um pouquinho” para poder praticar com o marido, e no excerto 1, quando comenta
que começou a estudar a língua com o intuito de incentivar as filhas, criando, assim, uma
comunidade de prática dentro do ambiente familiar.
Familiares também podem estar inseridos nas definições de comunidade de prática,
preenchendo as três dimensões preconizadas por Wenger, MCDermott e Snyder (2002), ou seja,
o domínio de um assunto de comum interesse, uma comunidade que interaja entre si sobre esse
assunto e uma prática consciente, com trocas objetivas sobre o tópico, conforme ocorria entre
Rafaela e as filhas, que estudavam juntas e compartilhavam conhecimento, sendo Rafaela o par
mais experiente entre elas. Rafaela tentou, também, inserir o marido nessa comunidade de
prática, vendo nele um par mais experiente e a possibilidade de ampliar sua aprendizagem, mas
não teve sucesso em sua tentativa. Uma das justificativas usadas pelo marido de Rafaela para
não estudar mais seria a idade. Nesse sentido, aproveitei o gancho, durante a entrevista, para
falar sobre idadismo.
Ao ser questionada se acreditava que existia preconceito em torno da terceira idade,
Rafaela responde prontamente que sim, que existe. Rafaela afirma que existe preconceito com
tudo que é diferente do padrão e que o preconceito está presente em todas as pessoas, o que
aponta para um certo conhecimento sobre os preconceitos estruturais que enfrentamos em nível
social. Esse discurso constatativo, embora não retome uma história e, por isso, não seja uma
narrativa, é de relevância para compreensão do ponto de vista da participante sobre o idadismo.
Quando questionada sobre a relação entre preconceito com idade e pandemia, Rafaela responde
da seguinte maneira:
Rafaela parece não ter sentido pessoalmente fortes impactos do idadismo durante a
pandemia, talvez por não ter sofrido um isolamento tão severo (tendo em vista que suas
condições financeiras possibilitam, por exemplo, que ela tenha um smartphone para continuar
mantendo contato com outras pessoas, que tenha carro para se locomover sem depender de
96
transporte público), talvez por estar entrando na terceira idade agora e não ter aparência
fragilizada, por ser uma pessoa ativa e dinâmica. De alguma forma, a pandemia não escancarou
o idadismo para Rafaela, embora tenha sido perceptível para grande parte das pessoas inseridas
nessa faixa etária e, por fim, sem perceber, Rafaela reproduz ingenuamente, em sua fala, um
traço forte do idadismo, que é comparar adultos idosos a crianças (excerto 6, linhas 8 e 9).
Ao dizer que “isso é um comentário natural” (excerto 6, linha 7), Rafaela normaliza o
tratamento infantilizado dado a idosos durante a pandemia e mostra como o idadismo está
enraizado, o que se associa com sua fala anterior, sobre como existe preconceito (estrutural) em
todo indivíduo. Ao ser questionada sobre essa comparação indireta que faz entre idosos e
cuidados com crianças, Rafaela pareceu surpresa e apresentou um certo desconserto ao
responder:
Embora venha ocorrendo uma mudança no senso comum no que diz respeito ao
envelhecimento, essa mudança ainda ocorre de forma lenta. Ainda há muito preconceito contra
a terceira idade, inclusive partindo daqueles que ingressaram recentemente no grupo, como é o
caso de Rafaela, que reproduz em seu discurso um idadismo do qual, na maioria das vezes,
97
parece não ter consciência e que parece também ter se agravado durante a pandemia. Sua
resposta, com interrupções e hesitações, demonstra surpresa ao ter sido questionada.
Ao ser lembrada de que a Covid-19 não acometia apenas pessoas idosas, mas outras
faixas etárias, que, inclusive poderiam servir de vetor para os mais velhos em casa, Rafaela
reproduz falas do então presidente Jair Bolsonaro (excerto 7, linha 9), que defendia que a Covid-
19 era apenas uma “gripezinha”, para justificar o motivo pelo qual as pessoas defendiam o
isolamento de pessoas idosas, tirando, assim, sua autonomia. É possível notar como o discurso
do presidente influencia a opinião de seu povo, que, muitas vezes, o reproduz sem pensar nos
sentidos que estão implícitos nele. Expliquei que a infantilização do idoso pode ser considerado
um dos maiores traços do idadismo e o quão grave essa atitude pode ser, pois retira do adulto
sua autonomia e confere a ele uma imagem de fragilidade, como alguém sem poder de decisão.
Ao se lembrar que uma pessoa idosa é alguém responsável por resolver os próprios problemas,
Rafaela responde que ela mesma é idosa, embora não se veja dessa maneira, conforme a mesma
afirma (excerto 7, linhas 24 e 25).
Quando afirma que não se vê como pessoa idosa, Rafaela transparece ter uma opinião
já formada sobre o significado da palavra “idoso”, que parece despertar na participante uma
corrente de sentidos negativos que foram socialmente convencionados e nos quais ela não
considera se encaixar. Por isso, nesta dissertação abordo a possibilidade de usar um termo
diferente para representar esse grupo de pessoas que acabou de entrar na terceira idade e que
parece não se sentir representado pelos sentidos indexicalizados pela palavra idoso. Rafaela
ainda enfatiza que existe uma diferença entre os “tipos de velhinhos”, segundo as suas palavras,
e esses tipos, de acordo com ela, parecem ser definidos pelos atos performativos de cada um,
bem como por suas capacidades físicas.
Quando Rafaela diz não se ver como idosa (excerto 7, linha 25), comentei sobre a
carga negativa que o termo carrega, me referindo aos sentidos que indexicaliza na nossa cultura
atualmente, que me fez recordar o caso de infantilização de uma pessoa idosa que presenciei
em um hospital e engatilhou uma pequena narrativa da minha parte sobre esse momento
(excerto 8, linhas 3, 4 e 5). Apesar de ser uma história pequena, ela apresenta uma orientação
que a contextualiza, apresentando os participantes envolvidos (uma pessoa idosa e uma
enfermeira, o que também infere o contexto hospitalar) e ação complicadora envolvendo a
forma infantilizada com a qual a profissional tratava a senhora. Acredito que o relato dessa
história fez com que Rafaela criasse espontaneamente uma imagem mental da personagem
idosa como uma pessoa fragilizada. Ela concorda, em tom bem-humorado, que realmente falam
com idosos como quem fala com crianças, mas defende que só em alguns casos e, logo em
seguida, diferencia os tipos de idosos em sua percepção.
As definições dadas por Rafaela nesse ato comparativo (“velhinho empinado/altivo”
se contrapondo ao “velhinho pobre coitado, nhenhenhém”) podem estar relacionadas às
definições de Laslett (1989) de terceira idade e quarta idade, tendo em vista que uma pessoa
idosa de idade mais avançada tende, na maioria das vezes, a uma fragilidade um pouco maior.
Assim, é significativa a diferença entre essas duas fases da vida, bem como é válido apontar
novamente para o fato de que a gerontolescência, fase vivida por Rafaela, está para a terceira
idade e não para a quarta, que é vista pela participante como outro momento da vida, pela qual
ela não se sente representada.
Não apenas a idade (mais ou menos avançada que sessenta anos) e os atos
performativos são fatores envolvidos na forma como envelhecemos e somos vistos, mas
também o acesso a tratamentos de saúde, a necessidade de trabalhar ou não, a importância dada
a um estilo de vida mais ativo, tanto cognitivamente quanto fisicamente. São diversos aspectos
que podem influenciar se uma pessoa envelhece como uma “pessoa altiva” ou como um
“velhinho nhenhenhém”, que é visto de modo mais fragilizado e, portanto, infantilizado, ou
seja, como um “nenemzinho”, segundo palavras de Rafaela. Ainda assim, independentemente
da forma com a qual envelhecemos e do cuidado que talvez precisemos receber ao envelhecer,
merecemos o devido respeito, que está longe do tratamento infantilizado, embora esse seja
culturalmente convencionado como forma de carinho e cuidado.
Mais para o final da entrevista, perguntei à Rafaela qual havia sido seu contato mais
significativo com a língua inglesa, em que momento ela sentiu que queria aprender o idioma.
Ela faz uma pequena pausa, como quem busca nas lembranças, e afirma que, embora não tenha
99
sido o primeiro contato com a língua, o mais significativo em sua jornada foi o tempo que
estudou com as filhas no Ibeu, conforme pode ser visto no excerto 9:
Ao afirmar que não consegue se lembrar (excerto 9, linha 4), Rafaela parece estar
buscando nas memórias de infância e adolescência um momento que tenha sido um marco em
sua aprendizagem, mas não o encontra. Ela, então, chega à conclusão de que, embora não tenha
sido o primeiro contato, porque lembra de ter estudado durante a primeira juventude, o mais
significativo foi o curso que fez com as filhas. Rafaela reforça sua fala, repetindo uma segunda
vez (excerto 9, linha 6) que foi, sim, o Ibeu a sua experiência mais marcante, o que pode ser
uma evidência da importância da família em sua vida.
Em seguida, Rafaela recorda que sempre quis estudar o idioma, retomando o mesmo
discurso do início da entrevista, de que acha lindo quem consegue entender o que é dito em
inglês. Essa fala parece remeter às experiências que ela teve durante a infância e adolescência,
que, embora não tenham sido tão marcantes quando o curso com as filhas, parecem formar uma
coletânea de momentos que a fizeram chegar à conclusão de que admira a língua inglesa, o que
gera uma pequena narrativa (excerto 9, linhas 7, 8, 9 e 10) sobre como ela sempre quis aprender
devido a artefatos culturais aos quais ela tinha acesso, como, por exemplo, músicas. Como
forma de concluir o assunto e traze-lo de volta ao presente, acabo fazendo uma coda para a
narrativa de Rafaela ao mencionar que usaremos músicas quando retornarmos às aulas.
A entrevista de Rafaela gerou narrativas a respeito da aprendizagem de uma língua
adicional na fase de gerontolescência, que era, a princípio, o foco principal desta pesquisa.
Contudo, para além das narrativas, alguns discursos constatativos presentes em suas respostas
não poderiam deixar de ser analisados, tendo em vista que expressam sua opinião sobre
envelhecimento e aprendizagem na terceira idade. Através das falas de Rafaela, foi possível
considerar questões que estavam relacionadas ao tema da pesquisa e que eu não havia notado
100
no início do estudo, mas que amadureceram ao longo dele. Assim, foi possível ponderar a
respeito de elementos discursivos e transversais tais como a questão de gênero, a classe
econômica e o idadismo. Além, claro, de refletir sobre os termos relacionados à terceira idade
e sentidos e significados, agência e comunidade de prática, conceitos tão importantes para a
compreensão da construção discursiva do indivíduo socialmente situado. Nesse sentido, faço,
por fim, minhas últimas considerações a respeito deste trabalho.
101
As questões que retomo acima orientaram as perguntas de pesquisa deste trabalho, que
aqui relembro: qual a percepção que aprendizes de língua inglesa na terceira idade têm do
processo de ensino-aprendizagem? Qual a relação entre ensino-aprendizagem de língua inglesa
e a ressignificação da atual geração de terceira idade? Para responder essas perguntas, busquei
analisar a relação entre aprendizagem na terceira idade e situação socioeconômica, investigando
os papeis de agência, comunidade de prática, sentidos e significados nas experiências relatadas
por Rafaela.
Começo com a segunda pergunta, respondendo que a relação entre ensino-aprendizagem
de línguas e ressignificação da terceira idade é mútua e, para minha surpresa, codependente. A
princípio, supus que esse grupo encontrava na aprendizagem de língua inglesa uma forma
inconsciente de demonstrar um perfil mais ativo e agentivo do que de outras gerações, mas ao
longo da pesquisa, percebi uma pequena diferença nessa suposição: a aprendizagem não só
fomenta essa mudança de perfil, mas os gerontolescentes tomam a iniciativa de estudar inglês
porque já vêm experenciando uma série de outros fatores sócio-histórico-culturais que o
transformaram e o fizeram mais ativos e independentes. Assim, aprender inglês depois dos
sessenta anos de idade é uma decisão tomada por um grupo que se porta de forma diferente dos
grupos de terceira idade de outras épocas, e a aprendizagem de uma língua também reforça essa
diferença nos modos de agir e performar desse grupo.
Quanto à primeira pergunta, que considero um pouco mais complexa, posso afirmar que
a percepção que os aprendizes tem do processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa está
voltada para questões relacionadas à lazer, inserção social, vida ativa e independência
comunicacional. Pessoas com mais de sessenta anos parecem ver na aprendizagem de línguas
uma forma de se manterem mentalmente ativas e socialmente participativas, podendo se
expressar em contextos que usam a língua sem depender de terceiros para isso. Há uma
consciência de que o envelhecimento ativo é questão de saúde e estudar é uma forma saudável
de manter a mente em exercício. Ao que tudo indica, a terceira idade percebe a aprendizagem
de língua inglesa como algo admirável e necessário para os dias atuais.
Na parte da análise, busquei investigar os papeis de agência, comunidade de prática e
sentidos e significados, a fim de entender as experiências relatadas por Rafaela, ao mesmo
tempo que foi feita uma análise de aspectos microtextuais levando em consideração as
categorias de Labov (1972). Também foi analisada a relação entre ensino-aprendizagem e
questões socioeconômicas, que indica que pessoas acima de sessenta que tiveram melhores
condições financeiras ao longo de suas vidas tendem a ter acesso a um envelhecimento mais
ativo, que inclui acesso à aprendizagem de idiomas e outras atividades de lazer custosas.
104
Referências
BRASIL. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2003]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741.htm. Acesso em: 2 mai. 2013.
CARSTENSEN, L. “Growing old or living long: Take your pick”. In: Stanford Center on
Longevity Issues in Science and Technology (publicação da Academia Nacional de Ciência dos
Estados Unidos), p. 41-50. 2007.
CHARLOTTE, L. Life Stories: the creation of coherence. Oxford University Press, 1993
DENZIN, N. K., & LINCOLN, Y. S. “Introduction -The Discipline and Practice of Qualitative
Research”. In: N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.), The Sage handbook of qualitative research
(p. 1–32). Sage Publications Ltd, 2005.
FAIRGLOUGH, N. Language and Power. Language in Social Life Series. Longman, 1989.
GERGOV, T., ASENOVA, I. “Ageism and negative mental tendencies in the third age”. In:
Psychological Thought, v.5, n.1, pp. 69-74, 2012
GOLDMAN, S. N. “Velhice e direitos sociais”. In: PAES, S. P. et al. (Org.). Envelhecer com
cidadania: quem sabe um dia? Rio de Janeiro: ANG CBCISS. p. 13-42, 2000.
GUERRA, A. et al. Classe média desenvolvimento e crise. São Paulo: Cortez, 2006. 143 p.
KALACHE, A. The Longevity Revolution: Creating a society for all ages. Adeleide Thinker in
Residence 2012-2013. Adeleide: Government of South Australia; 2013.
KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
LANTOLF, J.P. Sociocultural theory and second language learning. Oxford: Oxford
University Press, 2000.
LASLETT, P. A Fresh map of life: the emergence of the third age. Cambridge: Harvard
University Press, 1989.
MELO, Victor A.; ALVES JUNIOR, Edmundo D. Introdução ao lazer. 1.ed. São Paulo:
Manole Ltda, 2003.
MINAYO, M.C.S.; FIRMO, J.O.A. “Longevidade: bônus ou ônus?” In: Ciênc. saúde coletiva
[online]. 2019, vol. 24, no. 1, pp. 4, ISSN: 1413-8123. Disponível em:
<http://ref.scielo.org/vfwdbs> Acesso em 10 de novembro de 2021
MOITA LOPES, L. P. (Org.) Por uma linguística aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.
MOITA LOPES, L.P. “Da aplicação de linguística à Linguística Aplicada Interdisciplinar”. In:
PEREIRA, R.C.; ROCA, P. Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São
Paulo: Contexto, 2009.
MONBIOT, G. Neoliberalism – the ideology at the root of all our problems. Disponível em
<https://www.theguardian.com/books/2016/apr/15/neoliberalism-ideologyproblem-george-
monbiot>. Acesso em 10 de fevereiro de 2020.
NERI, A. L.; FREIRE, S. A. E por falar em boa velhice. Campinas: Papirus, 2000.
111
PASCHOAL, S. M. P. Qualidade de vida na velhice. In: E. V. Freitas, Py, L., Neri, A. L.,
Cançado, F. A. X. C., Gorzoni, M. L., & Doll, J. (Eds.). Tratado de Geriatria e Gerontologia,
3. ed., pp. 99-106, Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan, 2011.
PINTO, L. W. et al. “Evolução temporal da mortalidade por suicídio em pessoas com 60 anos
ou mais nos estados brasileiros, 1980 a 2009”. In: Ciência & Saúde Coletiva, v.17, n.8, pp.
1973-1981, 2012.
PORTO, M. A. R. Tempo cognitivo e tempo social nas aulas de Inglês para a envelhescência
e terceira idade. 2017. 117 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de
Sergipe, São Cristóvão, 2017.
SCHELP, D. Pandemia dá vazão a preconceito represado contra idosos. Notícias Uol. 2 abr.
2020. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/colunas/diogo-schelp/2020/04/02/pandemia-
da-vazao-a-preconceito-represado-contra-idosos.htm> acessado 5 jun 2020.
SILVA, L. R. F. “Da velhice à terceira idade: O percurso histórico das identidades atreladas ao
processo de envelhecimento”. In: História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.15, n.1, pp. 155-
168, 2008.
SILVA, Luna Rodrigues Freitas. “Terceira idade: nova identidade, reinvenção da velhice ou
experiência geracional?” In: Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, p. 801-815, 2008.
THE WHOQOL GROUP. “The World Health Organization Quality of Life Assessment
(WHOQOL): Development and general psychometric properties”. In: Social Science and
medicine, v. 46, n. 12, p. 1569-1585, 1998.
The WHOQOL Group. “The World Health Organization Quality of Life Assessment
(WHOQOL): position paper from the World Health Organization”. In: Soc Sci Med.
1995;41(10):1403-9.
TOOLE, J.C.; LOUIS, K.S. “The role of profissional learning communities in international
education”. In: K. Leithwood & P. Hallinger (Eds.), Second International Handbook of
Educational Leadership and Administration. Dordrecht: Kluwer, 2002
VERAS, R. P. Pais jovens com cabelos brancos: a saúde do idoso no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1994.
VYGOTSKY, L. S. The problem of the environment. In: R. van der Veer & J. Valsiner (Eds.),
1994.
ZACHARIAS, S.T. Refletindo sobre a terceira idade. Blog Direitos Humanos na Internet,
2009. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/3idade/refletindo_idade.html >.
Acesso em: 02 abr. 2020.
116
ANEXOS
ANEXO A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (DISCENTE)
Anexo B
Questionário Socioeconômico
Prezado(a) aluno(a), este questionário é parte integrante de um projeto de pesquisa de mestrado.
Por gentileza, responda às questões e, caso tenha alguma dúvida, solicite ajuda. Sua
contribuição será muito importante para esta pesquisa.
Pseudônimo: ________________________________________________________________
Ano de nascimento: __________________ Sexo: ( ) Masculino ( ) Feminino
Cidade em que vive agora: ____________________________________________________
Grau de escolaridade: _____________________ Formação: _________________________
Profissão: __________________________________________________________________
Estado civil: ( ) solteira ( ) casada ( ) viúva ( ) divorciada/separada ( ) Outro
3- Você é aposentado(a)?
( ) sim
( ) não
APÊNDICES
APÊNDICE A
Rafaela.: Eu já tentei aprender inglês várias vezes. Já tive inglês no colégio, novinha, né?
Depois eu entrei na aula junto com as minhas filhas. Minhas filhas eram adolescentes, eu quis
aprender inglês junto com elas, fiz IBEU. Comecei o quarto ano de IBEU e acabei parando,
porque sempre tem outras coisas para fazer. Mas eu sempre quis aprender... - cantar em inglês,
eu sempre achei lindo as pessoas que cantam em inglês, que entendem, que assistem um filme
e conseguem entender o que está acontecendo ali, né? E depois pensei também em viagem, né?
Que depois, mais adulta, a gente começou a viajar... e você viaja e não fala na::da! ‘Cê vê, eu
viajei com minha filha... menina, Patrícia falava tu::do em inglês, Patrícia comprava tudo, pedia
todas as comidas, Patrícia abria a boca ‘ah’... a gente ficava assim “ó::h”. Nós assim, tudo que
nem uns patetas. Então, eu acho lindo a pessoa falar inglês. Como eu acho lindo a pessoa falar
outras línguas também, mas o inglês é universal, né? Todo mundo fala inglês. - ‘Cê vê, ‘cê tá
na academia a pessoa faz uma brincadeira com você e fala uma frase em inglês. Às vezes você
fica assim “ãh?”, né? Então a vontade de aprender é isso, né? Pra poder... pra poder estar mais
junto, pra poder participar das coisas, estar junto. Esses dias, por exemplo, a vizinha falou:
“vem cá, tem um amigo meu que veio dos Estados Unidos”. Aí, eu falei assim “mas eu vou
fazer o que aí?” Quem me de::ra!↑ Se eu pudesse conversar com ele! Mas não dá.↓ E eu sou do
tipo metida, hein? Invento de falar algumas coisas, assim, sem saber nada, e ainda invento de
falar! hh
Lucy: Mas é isso mesmo! O principal é isso, você desenvolver a oratória para você aprender.
Tem gente que sabe muito, mas fica com tanta vergonha, que não produz nada, né? Tem que
ter cara de pau pra falar mesmo. Está certa!
Rafaela: Não... e é isso, né? Tem gente que sabe tanto quanto eu, mas não tem coragem de
falar! Não tem coragem de falar errado. Acho melhor você falar errado do que você não falar.
Você tem que se comunicar, certo ou errado. hh
Lucy: Concordo! O que importa é a pessoa te entender, se a pessoa está te entendendo, está
certo.
Rafaela: Gente, e eu sou muito cara de pau! hh Quando eu estou bem-humorada, então! E
normalmente eu estou bem-humorada, graças a Deus, mas eu... eu sou muito cara de pau. Pra
tudo! Não, e sou cara de pau hoje, né? Há 20 anos atrás eu não era cara de pau assim, não... eu
era toda certinha, toda... - nossa, eu usava terninho para trabalhar! hh Eu era completamente
diferente do que eu sou hoje. É, não sei porque... acho que é porque eu tinha uma carga. Eu
tinha que... Eu achava que eu tinha que ser muito responsável, porque tinha três filhos para
educar, para botar para estudar, para levar para mil aulas, pra... tinha que obrigar todo mundo a
estudar, tinha que tomar conta da minha casa, era... tinha meu marido que é médico, sempre foi
famoso e eu tinha que... eu tinha que dar conta daquilo tudo. Então, eu era mais séria, mas
depois que as crianças cresceram, né? Que eu vi que tudo ia... né? (gesto indicando fluidez) Aí
eu fui diferente.
120
Lucy: Gerenciar várias vidas deve consumir muito mesmo... e você ainda trabalhava fora, ne?
Rafaela: É, mas eu faço meu horário, né? Eu vejo o horário que eu vou. Hoje mesmo fui lá...
Não... Hoje não fui lá, não... fui ontem. Hoje não fui, amanhã eu vou, mas se eu quiser passar
uma semana sem ir lá, eu já resolvo minhas coisas. Estou cheia de trabalho aqui em cima da
mesa... - mas resolvo minhas coisas por telefone mesmo. Eu faço a parte administrativa. O
consultório de Beto44 é junto com a clínica, mas quem toma conta da clínica tudo sou eu.
Compra vacina, vende vacina, bota preço em vacina, paga...
Lucy: Ah, sim, entendo! Mas com relação a aprendizagem... você acha, Rafaela, que a sua
idade influencia de algum jeito na sua aprendizagem hoje em dia?
Rafaela: Dizem, né? Dizem isso. Eu acho que não. Eu acho que hoje em dia eu sou muito mais
leve, muito mais... eu tenho muito mais vontade... que quando eu era mais nova, junto com as
crianças, eu tinha vontade, mas eu também me sentia na obrigação... de ir junto com elas, para
que elas estudassem também. Quando eu era novinha, o que eu tive de aulas de inglês, era por
obrigação, não era porque eu queria. Eu fui querer depois de mais velha. Dizem... você ouve,
né? Que tem idade pra tudo na vida, né? E que, com certa idade, quando você está mais novinho,
você aprende com mais facilidade qualquer outro idioma que não seja o seu. Não sei, eu não
estudei para saber. Mas dizem que a criança de 3 anos, não é isso? Quando começa no colégio
e que começa a aprender as duas línguas, tem muito mais facilidade de assimilar tudo quando
crescer, quando ficar adulto e o adulto que nunca viu um inglês é muito... tem muito mais
dificuldade de aprender do que a criança que já foi encaminhada com isso. Dizem os estudos,
né? São pessoas que estudam isso...
Lucy: Entendo... aqui no Brasil, acho que geralmente matriculam as crianças por volta dos 10
anos, ou na fase da adolescência...
Rafaela: Mas eu acho que hoje, atualmente... acho que Bruno45 quando entrar no colégio, ele
já vai entrar numa escola bilíngue, que já tem os amiguinhos de... os filhos dos amigos de
Rebeca46, por exemplo, já tem os filhos na escola bilíngue. Agora... eu acho que... que a pessoa
que quer... eu acho que eu tenho mais dificuldade de aprender do que eu teria mais nova. Apesar
de eu ter mais vontade de aprender hoje do que eu tinha nova. Eu acho que hoje eu teria mais
dificuldade do que eu teria nova. É contrário, né? A vontade e a dificuldade. Mas se você
perguntar a Betinho, por exemplo, Betinho diz... ele fala assim... “eu não aprendo inglês”. Beto
já se formou em inglês em dois cursos. Ele já fez muita aula de inglês e tem muita dificuldade
pra falar. Esquece tudo. Ele fala “você vai aprender, mas se você não praticar... você esquece
tudo!” e como a gente não pratica, né? Acaba esquecendo tudo.
Lucy: Talvez uma solução seja procurar uma forma de praticar. Tem sites que você conecta
com pessoas lá fora com pessoas que querem aprender português, por exemplo. Então você se
44
Pseudônimo dado ao marido da participante
45
Pseudônimo para o neto de Rafaela.
46
Pseudônimo para a filha mais velha de Rafaela, mãe de Bruno.
121
conecta com um nativo e você vai dando dicas para ele português e ele dá dicas para você de
inglês. Seria uma forma de marcar uma vez na semana pra poder conversar.
Rafaela: Mas a praticidade da vida não te deixa fazer isso, né? A vida é uma correria, você não
tem tempo para essas coisas lúdicas, essas coisas que seriam muito agradáveis... você acaba
deixando as coisas de lado. Igual quando eu estava fazendo inglês com as crianças, eu comecei
o quarto ano, quando eu comecei o quarto ano, eu comecei a fazer uma obra na minha casa.
Mas na minha casa, quem compra tijolos, fios... tu::do sou eu! Quem compra tu::do sou eu!
Beto não tem o menor jeito... e, por isso, eu tomo a frente, porque eu tenho jeito pra resolver as
coisas! Eu tomo as frentes! Não vou esperar que ele faça! Não gosto de esperar nada, que
ninguém faça nada... eu gosto de ir lá e resolver. Então... e também, eu sou do tipo que eu quero
fazer tudo certinho, tudo tem que ser perfeito, tem que ser o melhor que eu posso fazer. Então
como eu tinha que fazer tudo perfeito, eu pensei, eu não vou continuar com o curso e tirar nota
6, nem nota 5, deixar de fazer exercício porque não deu tempo... vou ficar nervosa, irritada.
Então é melhor eu parar do jeito que tá. Porque eu só tirava 10, 9, só tirava notão. E as crianças
hh roubavam meu livro de inglês... e copiavam os exercícios tudinho! Elas não faziam os
exercícios, elas copiavam os exercícios... e falam isso aqui na maior cara de pau. hh
Lucy: Mas você não acha que esse seu perfeccionismo te atrapalha um pouco? Por exemplo,
as aulas particulares poderiam ajudar você e seu marido, que já têm algum entendimento.
Rafaela: Então, era o que eu queria, era o que eu queria... saber um pouquinho mais, para entrar
junto com ele numa conversação. Uma vez... Nem que fosse de quinze em quinze dias, uma
horinha, sentar e conversar um pouquinho. Ele já estudou outras vezes. Uma vez ele falou que
não adianta mais fazer curso agora, que não aprende mais por causa da idade... e fala que
esqueceu tudo, mas ele não esqueceu, não... ele sabe muito mais do que eu... - Ter pessoas
próximas que saibam é um incentivo. Compartilhava muito esses conhecimentos em casa
mesmo, com as filhas, vendo filmes em inglês, por exemplo, conversando sobre falas do filme.
Isso é importante... Depois que minhas filhas saíram de casa, não pratico tanto mais, então
queria aprender pra poder praticar com o Beto, né? Mas ele não quer, não sei, não tem tempo.
Lucy: É importante entender que, muitas vezes, as pessoas não estudam inglês, não por falta de
tempo, mas sim por falta de prioridade. Muitas vezes ficam adiando, até o inglês virar uma
necessidade. Então, assim, não tem que esperar virar uma prioridade... você tem que fazer por
você mesmo, por gostar! Porque é um conhecimento seu, que você vai carregar para essas
situações.
Rafaela: É, tem que definir suas metas, suas vontades, suas prioridades.
Lucy: Acredito que estudar inglês não tem que ser como uma obrigação, mas, sim, como um
hobby, como algo que faz bem... como as pessoas fazem aula de pintura, de violão. Tem que
ser por prazer!
Rafaela: Então, é o que eu, Arita e Betina queríamos... brincar! ((as três faziam aulas
particulares em trio comigo)). O que acabou não dando certo, né? Porque eu queria brincar, mas
queria aprender também! Não queria só brincar. Aí, não deu certo.
Lucy: Sim, verdade... Entendo. Mas, então... você acha que hoje em dia existem preconceitos
sociais envolvendo a terceira idade? Não só pra aprendizagem, preconceitos sociais com a
terceira idade.
122
Rafaela: Claro que existem, não só com a terceira idade, com tudo, né? A gente tem
preconceito, eu tenho, você tem, com tudo, né? Com tudo que é diferente do que a gente gosta,
do que a gente faz, do que a gente é, né? A gente acaba tendo preconceito. Por mais que a gente
fale que não tem, mas tem.
Lucy: Eu falo com a minha irmã que a gente carrega muitos preconceitos, mesmo que a gente
tente lutar contra.
Rafaela: Preconceito e impaciência também, quando tem uma pessoa muito velha na sua frente,
que está andando muito devagar. É::... você acaba... ‘ah, meu De::us, que sa::co, nunca mais
essa pessoa a::nda’, né? Você perde a paciência as vezes.
Lucy: Você acha que a pandemia piorou o preconceito com a terceira idade?
Lucy: Eu sentia que no início da pandemia isso era bem visível. Quando as pessoas ainda
estavam se mantendo mais em casa. As pessoas diziam, ‘a::h, os velhos estão tudo pegando
ônibus, tem que ficar em ca:sa’, ‘Ah, velho não tem que sair pra nada e quer ficar saindo’, ‘Tá
todo mundo em casa e os velhos estão na rua’
Rafaela: Mas isso é um comentário natural! Não é por causa de preconceito... se fosse com
criança também, a gente ia falar ‘criança não pode ir para rua’, ‘olha essas crianças na rua, essas
pais não têm juízo’.
Lucy: Mas por que você compara um idoso com uma criança, por exemplo?
Rafaela: Não, porque você tá falando↑...- É porque, a pandemia↓... - vamos supor que a doença
pegasse só criança, né? E os velhinhos pudessem sair... a mesma coisa ia ser. As pessoas iam
falar: “como é que essa mã:e deixa essa criança sair? O que essa criança está fazendo na r:ua?
Essa criança tinha que estar dentro ca:sa!”
Lucy: Sim, mas a doença não pega só idosos, eles estão mais suscetíveis a morrer, mas qualquer
um pode pegar e transmitir para outros, inclusive para eles, dentro de casa.
Rafaela: Mas... - no começo... no começo, o jovem pegava e nem sentia, praticamente, que
pegou. Era uma gripezinha mesmo, como o presidente falava. Pro jovem, no começo da
pandemia era assim, era muito raro o jovem ficar mal, jovem ser internado, entubado, era muito
raro.
123
Lucy: Mas isso não quer dizer que o jovem não pegava, ele pegava e era vetor pros idosos
dentro de casa, por exemplo. Mesmo se o idoso não saísse, o jovem saía e voltava pra casa com
a covid e poderia infectar outros. Mas só reclamavam do idoso sair, quando viam jovens na rua,
não reclamavam.
Lucy: Então assim, um dos maiores preconceitos sociais com o idoso é a infantilização. Por
isso que eu te perguntei, ‘por que você está comparando um idoso com criança?’ Porque a gente
faz isso sem perceber. Tipo assim, ‘como é que está deixando esses idosos saírem?’ hh
Lucy: Pois é, né? hh Mas e se aquele idoso não tem ninguém para ir no mercado pra ele, sabe?
O idoso é um adulto, que resolve os próprios problemas.
Rafaela: Minha filha, uma idosa sou eu!↑ hh Óh, com carteirinha e tudo! hh Mas eu não me
vejo como idosa...
Lucy: Hoje em dia, a palavra “idoso” está carregando tanto preconceito, que ninguém quer se
encaixar mais nesse termo, né? E assim, as pessoas infantilizam muito a terceira idade. Esses
dias presenciei uma enfermeira conversando com uma idosa, uma que aparentava ter uns 80
anos, e a enfermeira falava com ela como quem fala com uma criança, mudando a voz, fazendo
uma vozinha infantilizada.
Rafaela: É isso mesmo... é::... isso mesmo! O pior que é! Mas também... depende da aparência
do velhinho! Dependendo da aparência... Tem velhinho... tem velhinho que não tem aparência...
‘cê sabe que é velhinho, ‘cê ‘tá vendo que é velhinho... mas é uma pessoa empinada, uma pessoa
altiva, um pessoa de pescoço em pé, ágil, esperta para fazer as coisas... e tem o velhinho que é
um velhinho pobre coitado, o velhinho nhenhenhém... nenemzinho.
Lucy: Gostei do adjetivo hh , velhinho nhenhenhém. Mas, assim, se generalizarmos... acho que
a sociedade infantiliza muito a terceira idade.
Lucy: Será? Talvez seja cuidar, mas não do jeito certo, né? Mas, assim, como você diria que
tem sido seu percurso de aprendizagem de inglês desde lá do início até hoje?
Rafaela: Hoje eu sei mais, com certeza, do que eu sabia antes... mas ainda tenho muito o que
aprender. Tenho um caminho muito, mu::ito grande pela frente. Eu pretendo aprender... e::... -
não é fácil. Não é fácil... Não acho que seja fácil aprender inglês, acho que é difícil, sim, mas é
uma coisa que eu gostaria, sim... talvez nem aprender mu::ita coisa, mas saber me virar
direitinho.
Lucy: Entendi. Então... você lembra qual foi o seu primeiro contato significativo com o inglês,
Rafaela? Assim, na infância, na adolescência... qual foi o momento que você falou ‘caramba,
esse negócio aqui é muito legal, queria mesmo aprender isso’?
124
Rafaela: (Pausa para pensar) Não me lembro... não estou conseguindo... só estou conseguindo
lembrar do IBEU junto com as crianças, mas não sei se esse foi meu primei... - não foi meu
primeiro contato com o inglês não... mas o mais significativo foi no IBEU. O mais significativo
pra mim foi o Ibeu! Eu também sempre quis aprender por causa das músicas... queria muito
aprender a cantar as músicas em Inglês, acho lindo a pessoa cantar em inglês. Queria saber o
que aquilo significava também... isso quando eu era mais nova. isso eu sempre quis! Isso desde
adolescente... acho que é isso.
Lucy: Muito legal, então vamos começar a pegar mais em música quando retomarmos as aulas.
Bem, então é isso, R., acho que finalizamos. Muito obrigada!