Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Mundo de Ereshkigal
O Mundo de Ereshkigal
O M UNDO DE ERESHKIGAL
L.LIN C O LN
Text o: Tione Echkardt
M arço de 2013
2
Tione Echkardt
O M UNDO DE ERESHKIGAL
l .l in c o l n
E- BOOK
3
Introdução....................................................................... 5
Os Gêmeos .................................................................... 7
A Viagem ...................................................................... 16
A Morte ......................................................................... 24
O Banquete ................................................................... 41
A Fuga .......................................................................... 55
O Retorno ..................................................................... 61
4
Introdução
Ereshkigal era uma das grandes divindades sumérias, filha de Anu o
antigo senhor do Céu e Nammu, a senhora dos oceanos e irmã gêmea de Enki.
O seu nome significa "Senhora da Grande Habitação Inferior" ou ainda
"Senhora dos Vastos Caminhos", tal nome indica que é a rainha do inferno,
pois "vastos caminhos" tanto como "terras vastas" eram eufemismos para se
falar do Inferno, terra cujos caminhos são infindáveis e sem rumo certo. Assim,
Ereshkigal é a rainha de Kur-Nu-Gia "A Terra do Não Retorno".
Os mitos dos quais Ereshkigal tornou-se uma deusas célebre por mitos
como o de seu casamentos com Nergal e a descida de Ninlil e de sua irmã
Inanna ao Inferno para recuperarem seus esposos. Certa vez, ao enviar
Namtar como seu representante para ter com Anu e os demais Anunnaki, foi
ofendida pelo jovem deus Nergal, que se recusou a reverenciar Namtar em
honra dela. Todos os deuses temeram pelo destino de Nergal, pois Namtar
contaria a sua senhora tamanha desfeita. Mas Nergal pouco se importou
5
afirmando que não daria préstimo a uma deusa a quem nunca vira. Porém sua
impáfia durou até que Enki lhe advertir sobre o tremendo risco que corria, já
que os poderes de Ereshkigal eram imensos.Por conselho de Enki, Nergal
desceu ao Inferno para se desculpar e acabou apaixonado por para beleza
fulminante de Ereshkigal a quem julgava ser uma velha senil e horrenda.
6
Os Gêmeos
Foi há muitos e muitos milênios atrás, mas nos primeiros tempos, depois
que Anu, o Deus do firmamento, foi separado de Ki, a montanha cósmica e
Terra Mãe, sua esposa muito amada. Das esferas mais altas dos céus, as
lágrimas que Anu verteu por Ki desceram para encontrar as águas do mar de
Mãe Namu, que em seu seio, com carinho e compaixão, a inconsolável tristeza
de Anu acolheu. Do abraço, do consolo e do aconchego que o Deus do
Firmamento buscou nas águas profundas do mar, Namu fez nascer um casal,
um menino e uma menina, gêmeos perfeitos, a quem um destino maior estava
reservado. Ele, Enki foi chamado e ela, Ereshkigal.
- Ereshkigal! Onde está você? Volte deste mergulho tão longo, certo? Por que
você tem de se esconder no fundo das águas quando há tanto para ver e fazer
aqui fora também? Perguntou Enki com um suspiro.
- Uma pergunta retórica, irmãozinho, sem dúvida, interviu Enki, com um sorriso
divertido do ponto onde o jovem Deus do Ar montava guarda sobre o Duku, a
montanha sagrada e câmara da criação, honrando assim o juramento que
fizera a Grande Deusa e Terra Mãe, Ninhursag-Ki. Ereshkigal vai voltar para
nós daqui a pouco. Pelo menos, eu posso muito bem passar alguns minutos
sem ter de responder a todos os inúmeros por quês e para quês de Erehkigal!
7
- Isto eu ouvi, Enlil! Replicou Ereshkigal, aproximando-se rapidamente da costa
na crista de uma onda. E creio que não posso ficar impassível frente a esta
observação. Ao ataque!
- Então eu faço perguntas demais, meus irmãos? Pois com certeza! Eu quero
saber e para saber eu devo primeiro perguntar. Pelo menos, é o que sinto que
devo fazer. Explicou pela milésima vez Ereshkigal, ignorando as expressões
divertidas e resignadas de Enlil e Enki.
- Há todo um mundo novo dento do mar e creio que também no interior de tudo
o que existe. Não sei direito como explicar, porque este mundo que sinto existir
não é algo que se possa com as mãos pegar, como se faz no Mundo Físico ou
com as águas do mar. De alguma forma, porém, sinto este mundo intangível
dentro de mim. Ele é sutil e envolvente, intenso, mas não tão diferente do que
se passa aqui fora. De fato, é como se o mundo interior refletisse o mundo
exterior e vice-versa. Um dia, irei saber mais a respeito deste mundo novo.
Pois enquanto você, Enlil, faz os planos da criação e você, Enki, confere forma
e sentido exterior a estes mesmos planos, talvez o que me interesse, a minha
busca e jornada seja exatamente o intangível, a força interior que une planos,
formas e imagens em combinações de todas as sortes. Não sei ao certo como
explicar, mas deve existir um modelo interior que liga palavras, formas,
imagens e seres num todo e é este modelo que quero compreender. Como,
ainda não sei. Mas tenho uma vida pela frente para descobrir.
8
A Curiosa Ereshkigal
- Às vezes, bem que eu queria ver o mundo da forma com que o vê, Ereshkigal,
para explicar o inexplicável. Vejamos Kur, por exemplo, e nossos irmãos e
irmãzinhas que o seguiram aos confins do mundo. Por que eles são tão
diferentes de nós, por que eles abandonaram a segurança do Duku, a
montanha da criação, por que eles nos deixaram, indo para além das águas da
Mãe Namu, mudando-se para tão perto de onde não queremos ir?
- De novo preocupado com Kur e os Guardiões das Trevas, Enlil? Por que você
não os aceita pelo que são, energia pura, sem reconhecer controles ou limites?
Perguntou Ereshkigal.
- Mas por que teríamos de ser todos iguais, Enlil? Observou Ereshkigal.
Sinceramente, basta olhar para ver que somos todos bem diferentes em forma,
apesar de algumas semelhanças na aparência. Mas há alguma coisa mais que
todos compartilhamos e é nela em que todas as diferenças se fundem ou
perdem o sentido, não sei bem ainda como explicar, porém. Posso estar
bastante errada, Enlil, mas acho que se fixarmos a atenção em alguns detalhes
exteriores, podemos correr o risco de perder outros detalhes que, apesar de
não serem tão evidentes, conferem significado maior ao todo. O que existe no
interior pode, quem sabe, também revelar e completar o exterior, basta saber
procurar. E creio que isto vale para tudo o que existe, uma pedra, uma planta,
um animal e para nós também.
- Sábias palavras, irmãzinha! Eu creio que algumas vezes levo demais a sério
o meu compromisso de zelar pelo bem-estar de toda a terra, concordou Enlil.
Mas amando a terra e a todos os meus irmãos, por tê-los visto nascer na
aurora da criação, eu gostaria de entender Kur e todos os outros. Seja como
for, eu, com toda certeza, mesmo se pudesse, não gostaria de visitar o lugar
9
onde Kur e os outros escolheram viver. Onde quer que seja este lugar.
Concluiu Enlil.
- Ninguém, só Kur e os outros foram aos confins do mundo, portanto não sei
lhe dizer, respondeu Enlil com franqueza. Também creio que onde o Mundo
Físico termina, começa o Mundo Subterrâneo. Mãe Namu disse que as
Grandes Profundezas se estendem tão alto quanto o firmamento e vão tão
fundo quanto as águas do mar e além.
- Que maravilha! Um novo mundo onde ninguém jamais foi ou sobre o qual mal
se sabe a respeito. Encantou-se Ereshkigal.
- Ah, irmãzinha, algumas vezes eu gostaria que mostrasses mais respeito pelo
que ainda não sabes ou conheces. Só por segurança. Suspirou Enki.
10
conhecer o desconhecido e descobrir os meandros de padrões não explícitos.
Todos os dias, ela e Enki saíam para brincar e explorar o mar e ao voltar,
Ereshkigal tinha sempre que a respeito de tudo e todos a Enlil perguntar. A
cada dia, Ereshkigal mergulhava mais e mais fundo, nadava distâncias
maiores, cada vez mais se aproximando da linha do horizonte e dos confins do
Mundo Físico. Ao voltar, pois Ereshkigal sempre voltava, ela estava quase
sempre fisicamente cansada, mas cheia de energia e paixão pelos mundos que
percebia existir além da superfície da percepção. Mais do que nunca, outras
tantas perguntas também se formavam na mente curiosa de Ereshkigal, mas
responder todas não era mais a prioridade e desafio maior.
Algum tempo depois, num belo dia, Ereshkigal escolheu não mais
retornar ao Mundo Físico.
11
Os irmãos Enki e Ereshkigal
- Vamos, Enki, anime-se! Repetiu Enlil, o Deus do Ar, pela centésima vez
aquele dia. Você não pode se deixar abater tanto assim pela falta de
Ereshkigal. Quem sabe, mais dia, menos dia, ela há de voltar para nós.
Desta vez, Enki olhou para Enlil, com a face pesada de tristeza:
- Seja o que for que tiver de ser feito para trazer Ereshkigal de volta! Você pôde
separar mãe Ninhursag-Ki de nosso pai, Anu, o Deus do Firmamento? Por
favor, irmão, crie o que for preciso para resgatar Ereshkigal!
12
- Não posso. Para onde Ereshkigal foi, fica além dos limites que posso trilhar.
Sou o guardião da terra, Enki, por promessa feita à Mãe Ki, portanto não posso
deixar o Mundo Físico por outros mundos ou reinos. Este é o meu dever, a
responsabilidade que assumi depois de ter separado Mãe Ki de nosso pai Anu.
Mas você pode ir onde quiser, Enki, onde for preciso para resgatar Ereshkigal.
Além do mais, o laço que existe entre gêmeos perfeitos é muito forte. Você e
Ereshkigal são gêmeos perfeitos, em tudo semelhantes, apesar das diferenças
no exterior. Se alguém pode resgatar Ereshkigal, esta pessoa é você com
certeza, irmão menor. Não importa onde ela tiver ido.
O mundo era tão jovem, Enki mais jovem ainda. Pelo menos Enlil
esperava com sinceridade que Enki achasse uma forma de trazer Ereshkigal
de volta.
- Então devo aprender o que for preciso para trazer minha irmã de volta para
todos nós. Como eu queria ter uma pista do que devo saber.
- Enquanto você vai aprendendo o que deve fazer para resgatar Ereshkigal, eu
bem que poderia contar com a ajuda do meu irmão menor favorito. Continuou
Enlil, torcendo para estar usando as palavras certas para incentivar Enki, sem
forçá-lo demais.
Enlil continuou:
13
- É verdade que a minha Palavra é lei, que delas fiz uso para atribuir nomes
aos Anunaki, os Deuses e Deusas nossos irmãos e irmãs, quando eles
deixaram a montanha sagrada da Criação, o Duranki, como sabes, Enki. Mas
atribuir nomes a tudo o que existe não é o suficiente. Há muito mais coisas
dentro do que chamamos de vida e seres vivos do que o simples e auspicioso
fato de Existir. Eu realmente preciso de ajuda para organizar este Mundo Físico
tão novo, para que ele seja seguro para todos nós.
- O que você quer dizer com isto, Enlil? Perguntou Enki, a sua antiga
curiosidade por sempre saber e aprender de novo estimulada.
- O que e como, irmão, creio que nós dois devemos e podemos descobrir
juntos.
14
- A vida e o ato de existir como Processo e Meta! Sim, Enki, você pode ter
muita razão nesta sua forma de ver as coisas! Exclamou Enlil, surpreso,
intrigado e feliz. Como sempre, ele não cessava de admirar a grande
capacidade de Enki para entender todas as realidades e visualizar todas as
possibilidades.
E assim foi feito. Ao que Enlil conferia Nome pelo poder de sua Palavra,
a habilidade de Enki conferia Forma, Significado e Identidade. Enki, o filho de
Namu, as Águas do Oceano e de Anu, o Deus do Firmamento, transformou-se
em Nudimud, o Criador de Imagens, Senhor das Formas Arquetípicas, o
Patrono de Todas as Artes e Profissões. E a ele, foram dadas também todas as
águas doces que fertilizam o solo e que vêm de dentro da terra, chamadas
Apsu.
15
A Viagem
Ereshkigal era uma exímia nadadora, tanto é que foi até os confins do
mundo e além, conjeturava Enki durante seus longos passeios. Se quero
resgatá-la, devo encontrar uma forma de cruzar os mares, ir além de todos os
oceanos. Nadando ou não.
Durante seus longos passeios, ele apenas parava perto dos Grandes
Juncos para ver o trabalho diligente e incansável de uma jovem Deusa
Anunaki, chamada Ningikuga. Esta donzela quieta e habilidosa tinha ensinado
à humanidade a arte de trançar juncos para fazer cabanas para morar e adorar
aos Deuses. De junco trançado e argila, foram criados os primeiros templos e
moradias, concebidos pela arte de Ningikuga. E ao olhar a forma com que
Ningikuga trançava os longos juncos, com perfeita paciência, técnica e
diligência, Enki sentiu que tinha finalmente encontrado o que precisava para ir
atrás de Ereshkigal.
- Irmã Ningikuga, Deusa dos Juncos Sagrados, eu peço a tua permissão para
cortar alguns de teus juncos mais resistentes e sob a tua proteção tentar
construir uma estrutura que possa me carregar sobre as águas mais perigosas
e os mares mais bravios. Somente com uma estrutura deste tipo, creio, poderei
partir para resgatar Ereshkigal. Disse Enki um dia à Ningikuga.
- Então meu irmão ainda não desistiu de resgatar Ereshkigal de volta para
todos nós? Tudo o que estiver ao meu alcance, todos os juncos que quiseres
Enki, eu colocarei a tua disposição para esta grande tarefa. Corta os juncos
16
mais longos e resistentes, trança-os e faz com eles uma estrutura que flutue na
superfície de tudo o que fluir, águas, córregos, rios e mares. Procura também
madeira de cedro, resistente e forte, para juntá-la aos juncos sagrados. Com tal
estrutura, tenho certeza, forte e resistente, irás a todos os lugares, cruzarás os
mais bravios rios, oceanos e mares!
- Ah, irmã, já posso ver de antemão a forma que esta nova e revolucionária
estrutura irá tomar! A voz de Enki vibrava, cheia de entusiasmo, inflamada pelo
fogo da criação. Sim, já consigo ver claro em minha mente a estrutura à qual te
referes: algo que flutue nas águas, leve, mas resistente, capaz de carregar um
homem e tudo o que ele precisar para uma longa jornada! A esta construção,
darei o nome de barco e que ele se desloque sobre as superfícies das águas,
desde as mansas às mais bravas! Movido por longos bastões aos quais
chamarei remos, esta estrutura especial, o primeiro barco da criação cruzará
todas os lagos, rios e mares, retornando, se quiser, ao ponto de partida ou
seguindo para outros rios e mares dantes não navegados. Que o primeiro
barco feito por mim se chame Magur, de linhas longas, de proa e popa em
forma de curva, tal qual o pescoço de um cisne. Ah, Ningikuga, creio que
encontrei o que preciso para finalmente poder com toda segurança ir resgatar
Ereshkigal!
Usando toda sua habilidade, Enki construiu o barco Magur, todo feito de
juncos e madeira de cedro. Com suas formas curvadas e elegantes e mastro
imponente, este foi o primeiro barco construído em todos os mundos. Enquanto
Enki trabalhava com diligência e empenho, muitos dos irmãos e irmãs Anunaki
vieram vê-lo. Enki ouvia os conselhos e comentários, agradecia-os, mas não se
afastava de sua concepção inicial para o barco Magur.
17
juntando forças, preparando-me para enfrentar Kur e o Mundo Subterrâneo por
amor a Ereshkigal.
18
proa, na tentativa desesperada de proteger a cabeça entre os braços para
resistir ao ataque dos céus. Ao mesmo tempo, como lobos famintos, ondas
enormes ergueram-se para devorar a quilha e a proa do barco Magur, seguidas
de outras ondas ainda maiores, que se chocaram contra a popa da
embarcação como se fossem leões furiosos. Entretanto, não foram suficientes
para virar de cabeça para baixo a embarcação de Enki.
Durante todo ataque dos elementos, Enki comandou a sua mente, seu
coração, corpo e espírito a manter a calma e o equilíbrio. O desconforto físico e
o medo que ameaçavam paralisar Enki por completo tinham de ser dominados.
Enki finalmente pôde erguer a cabeça e pôr-se de pé. O que viu, fê-lo
piscar uma, duas vezes. As águas eram tão escuras e calmas, como se a noite
estivesse no mar e não mais nos céus. Mas novamente este foi só um breve
momento, pois em seguida uma coluna de fogo ergue-se no ar, aproximando-
se do ponto onde estavam Enki e o barco Magur.
19
O jovem Deus das águas doces, das artes e da mágica mergulhou então
firme na essência de seu próprio ser para encontrar o ponto onde a água
podia-se encontrar com o fogo, sem que nenhum deles consumisse um ao
outro. Ele então impeliu o barco para frente, entoando um verso que veio de
dentro da sua mente, corpo, coração e alma:
Eu sou o poço da verdade que traz iluminação, sou aquele que dispersa
as trevas do espírito. Sou agora e sempre a forma que tudo transforma, pelo
fogo da mente criativa em ação, sou a luz interior do fogo interior que dá brilho
e substância a tudo o que existe!
20
O Mundo Inferior
- Veio mesmo? Foi a resposta irônica de Kur. Veremos ou melhor, você, meu
Deus, verá na hora certa que talvez as coisas tenham mudado um pouco
desde a última vez que viu Ereshkigal.
- Fui longe demais agora para voltar sem pelo menos ver Ereshkigal,
respondeu Enki. Leve-me até ela!
21
Mas havia algo na atitude de Kur que fez Enki pensar pela primeira vez
no inconcebível para ele. Porque talvez o tempo tivesse passado e Ereshkigal
estivesse perdida para as Esferas Superiores. Com um vigoroso sacudir de
cabeça, o jovem Deus afastou esta possibilidade. Mas no fundo, Enki estava
começando a se dar conta de que talvez nem tudo pudesse ser mudado.
Uma coisa, porém, era certa: Kur era também seu meio-irmão, que além
do mais, sabia onde estava Ereshkigal. Ele tinha se apresentado como
Guardião de Ereshkigal. Talvez Kur pudesse levá-lo até ela.
22
- Estas são as regras, meu Deus. Sem aceitá-las, os portais do Mundo
Subterrâneo jamais se abrirão. Decida agora ou volte para onde veio.
- Não lute contra a sensação, Enki ouviu uma voz grave e melodiosa soar
estranhamente calma nas trevas. Você irá se adaptar à experiência do Mundo
Subterrâneo logo, logo. Lembre-se, porém, da regra básica: se sua alma é
pura, então os seus contatos aqui serão harmoniosos e irão fazê-lo completo.
Mas se você vem com medo, raiva e tudo o que for negativo ou desequilibrado,
você terá então de enfrentar as sombras do seu coração, corpo, mente e alma
antes de encontrar regeneração, cura e equilíbrio.
23
A Morte
- Eu sei quem você é e por que você veio ao Mundo Subterrâneo também.
Você deixou bem claro que quer levar sua irmã Ereshkigal às Esferas
Superiores, continuou a Voz. Mas como pode você ter certeza de que ela quer
realmente retornar com você? Faz muito que vocês não se vêem. É bem
possível que ela considere as Grandes Profundezas o seu lar agora e não mais
o Mundo Físico.
- Eu conhecia Ereshkigal como a minha própria alma, replicou Enki, mas parou,
antes de expressar o que realmente pensava e talvez ofender a Presença.
24
- E conhecendo a sua alma, você não quereria viver no Mundo Subterrâneo,
não é verdade, Deus Enki? Completou a Presença, como se tivesse lido os
pensamentos que Enki não tinha ousado enunciar. Mas todos aqueles que
vivem vêm ao Mundo Subterrâneo ao final de seu ciclo de vida no Mundo
Físico. Todos, sem exceção. Com um gesto amplo, a Presença apontou para
as criaturas fantasmagóricas, os amontoados de ossos descarnados de todos
os tipos e formas que Enki via andando pelo Mundo Subterrâneo.
- Todos os seres vivos vêm a esta esfera no final de suas vidas? Repetiu Enki,
pensativamente. Portanto, todas estas presenças estão mortas?
Ele sabia que tinha feito uma pergunta retórica no momento em que as
palavras saíram de seus lábios. A Presença permaneceu em silêncio, mas de
certa forma, Enki não achou a reserva dela assustadora.
- Não havia pensado muito na morte até este momento. Evidente que ele sabia
que a morte é algo que acontece aos vivos, às plantas e animais, mas não
necessariamente aos Grandes Deuses.
25
daquilo no que todos os seres podem se transformar, se assim o quiserem,
também deve saber que este Conhecimento é muito raramente concretizado no
Mundo Físico, sendo a causa de ódios, problemas e frustrações. Portanto, ao
final de seus ciclos de vida, todos os seres vivos vêm ao Mundo Subterrâneo
para alcançar Equilíbrio e Justiça. Lembre-se, meu Deus, que da vida
sobrevêm à morte e que a morte cede lugar à vida, assim como o jovem se
torna velho e o velho, se bem viver, jovem no espírito. Desta forma nós, nas
Grandes Profundezas, estamos sempre ligados às Esferas Superiores como
parte do fluxo de criação e dissolução que nunca termina.
- O que era Forma torna-se a Energia do que Foi, enquanto que a Essência se
reconstrói na força do que poderia ter sido, o tom de voz da Presença tornou-
se extremamente gentil e positivo. Viver é bem mais do que satisfazer as
necessidades básicas do corpo, pois deve também levar em conta a realidade
do espírito. Se todos os seres vivos se dessem conta deste fato tão simples,
então talvez ser-lhes-ia possível ver suas existências no Mundo Físico tanto
como processo e meta, sempre evoluindo e transcendendo ao que um dia
foram. Pois a vida não é um plano pré-estabelecido, mas uma semente de
transformação, contendo dentro de si todas as possibilidades para se
concretizar no Mundo Físico, sempre guiada pelo Espírito que a tudo dá
significado e fulgor.
Fez-se então silêncio e Enki foi tomado por profunda emoção. Uma
lágrima quente e solitária correu pela face do Deus das Águas Doces, das
Artes e da Mágica. Então ele, num ato de vontade, alterou o seu estado de
consciência, transformando a Energia do que e quem ele via à sua frente nas
Formas do que estes tinham sido, eram e seriam em todos os mundos. O
Mundo Subterrâneo então se transformou na imagem do Paraíso Restaurado,
o Mundo Físico Original, que também contém as estrelas.
26
A Vida Pós-Morte
De fato, quem estava sorrindo para ele não era mais o amontoado de
ossos descarnado e projeção dos piores medos que se pode ter a respeito da
vida após-morte, mas sim uma jovem mulher de idade indefinida, de longos
cabelos negros, toda vestida de preto e prata, a quem Enki conhecia tão bem
quanto a sua própria alma. Os dois irmãos se abraçaram com grande carinho.
- Ah, irmã, não é demais tentares equilibrar tanta dor pelas Esferas Superiores
antes que a cura e a regeneração possam acontecer? Perguntou Enki, tomado
de assombro pela responsabilidade que Ereshkigal tinha assumido de livre e
espontânea vontade e colocado sobre seus delicados ombros.
27
- Tu enfrentaste a iniciação do Mundo Subterrâneo ao chegar aqui, irmão. Num
nível mais profundo, tu mudaste e cresceste com a experiência. Foram-se a
atitude arrogante, o desejo de me levar de volta, porque sentias a minha falta,
sem me perguntar se também era meu desejo partir. E porque tu me conheces
tão bem quanto a tua própria alma, creio que agora compreendes que, apesar
de sentir falta das Esferas Superiores, dos meus irmãos Deuses e Deusas, de
brincar e me divertir com eles, existem tesouros escondidos nas Grandes
Profundezas e que me tornei na Guardiã principal deles. Muitos jamais serão
capazes de ver o que são e onde estão tais tesouros. Eu sim. Por este motivo
sou necessária aqui. Assim como a tua mágica, irmão, é necessária nas
Esferas Superiores.
- Posso te perguntar a respeito de Kur? Eu sempre quis saber por que tu nos
deixaste, perguntou Enki.
- Kur é um dos guardiões das Grandes Profundezas agora. Ele foi um amigo
que me ajudou a entender muitas coisas de que precisava saber e aprender ao
chegar aqui. Mas não é esta a pergunta que me queres realmente fazer, Enki.
Faça a pergunta certa, meu irmão. Em voz alta e clara, para deixar o passado
para trás, toda a culpa que sentiste por todo este tempo, uma culpa que na
realidade, nunca deverias ter assumido.
28
A voz de Ereshkigal tornou-se extremamente gentil, mas havia uma
ternura feita de aço nela:
- Não lamentes a tua escolha de ter descido por mim, Enki, continuou
Ereshkigal. De fato, eu tinha certeza de que virias e sempre te esperei aqui. Os
laços que nos unem como gêmeos perfeitos são demasiado fortes e sempre
que quiseres, irás me encontrar, se souberes como e onde procurar. Mas antes
que tu entendesses a função da minha vida, eu não poderia me apresentar ou
dizer alguma coisa. Tanto quanto eu pertenço agora às Grandes Profundezas,
tu também pertences em tua totalidade às Esferas Superiores. Mas ao vires até
mim, eu espero que tenhas aprendido a ver tudo o que existe como Forma e
Essência. Se as Esferas Superiores são o domínio da Forma, onde a Essência
está no interior, o Mundo Subterrâneo é o domínio da Essência Perfeita, que
está contida na Forma e que será vista por todos aqueles cuja Visão Interior se
projetar além das aparências. Desta forma, aqui das Grandes Profundezas
estamos para sempre ligados às Esferas Superiores, pois o Mundo
Subterrâneo é a Estrutura Interior que dá sustentação aos outros mundos.
Tudo o que existir no exterior também é igual ao que existe no interior para
revelar os segredos Daquele e Daquela que são Um/Uma e Muitos/Muitas.
29
rápido, ajoelhou-se no chão, suas mãos mergulhando na sólida fundação do
Mundo Subterrâneo.
30
A Árvore Huluppu
- Plante esta semente, Enki e espere para ver o que vai sair dela. Mas em
verdade, em verdade eu afirmo, querido irmão, que se esta semente crescer e
ficar madura, ela será o portal para muitos outros mundos de crescimento,
equilíbrio e regeneração. E por Namu, a Mãe Original e muito amada que deu à
luz a mim e a ti, bem como pelo Deus do Firmamento Anu, nosso adorado pai,
eu agora declaro um destino dos mais auspiciosos: aquele ou aquela que
encontrar minha semente crescida e bem formada será quem irá descobrir a
forma de manter a ponte de ligação entre o Mundo Subterrâneo e as Esferas
Superiores sempre aberta para todos. E que seja feita a minha vontade, agora
e para sempre!
- Eu não creio que as Esferas Superiores estão perdidas para mim, Enki. Você
me perdeu para sempre, irmão?
O coração de Enki queria gritar: nunca! Jamais estarás perdida para mim
Ereshkigal! Mas as palavras que a sua alma formou não foram pronunciadas
pela boca.
31
- Se me procurares hás de me achar. Sempre! E agora, irmão querido,
companheiro e grande amigo, eu te digo adeus!
32
soou cristalino na luz da manhã radiosa de verão. Ele atracou o barco e se
aproximou da viçosa arvorezinha, junto a qual o brejeiro e sensual Deus se
ajoelhou com alegria e reverência. Aqui estava o fruto da semente que havia
recebido de presente de Ereshkigal!
- E para Ningikuga. Desta vez para ser mais do que um bom amigo!
O barco Magur zarpou com pressa de chegar. Eridu agora era casa,
porto e lar.
33
A Árvore da Vida
Nos primeiros dias, quando tudo o que era necessário foi trazido à
existência,
34
Neste momento, uma árvore, uma solitária árvore, uma árvore huluppu
Ela pensou:
"Quanto tempo passará até que eu tenha uma cama reluzente para me
deitar?"
35
O pássaro Anzu pôs seus filhotes nos galhos da árvore.
Neste momento, uma árvore, uma solitária árvore, uma árvore huluppu
36
O pássaro Anzu pôs seus filhotes nos galhos da árvore.
Eu chorei.
Como eu chorei!
Neste momento, uma árvore, uma solitária árvore, uma árvore huluppu
37
Fez seu ninho nas raízes da árvore huluppu.
Eu chorei.
Como eu chorei!
38
Nergal e Ereshkigal
Anu escolheu Kaka, seu fiel conselheiro e sábio ministro, para ser o
mensageiro encarregado de enviar pessoalmente a mensagem para
Ereshkigal. Kaka desceu a longa Escadaria dos Céus e porque ele acreditava
na integridade de sua missão, Kaka pôde livremente passar pelos sete portais
do Mundo Subterrâneo. Ao anunciar em alto e bom tom o propósito de sua
descida à cada portal, de imediato as Portas que jamais se abriam
concederam-lhe entrada sem alarde, demora ou confusões.
39
com uma Deusa e Grande Rainha. Somente então ele enunciou a mensagem
que tinha trazido para ela:
40
O Banquete
- Meu Deus, disse-lhe ele. Não pude deixar de observar que não prestastes as
devidas homenagens à minha rainha Ereshkigal, a grande Deusa do Mundo
Subterrâneo. Com o maior respeito, com a maior das considerações, atrevo-me
humildemente, meu senhor, a fazer-lhe uma pergunta: por que está o jovem
Deus recusando-se a saudar a Grande Rainha das Profundezas, a quem
humildemente e com grande honra neste momento represento?
41
Nergal, aparentemente achando muita graça na pergunta de Namtar e
em todo inusitado da situação, examinou o conselheiro de Ereshkigal com
atrevimento e mal disfarçada insolência antes de responder à pergunta
educada do vizir.
- Nergal, Nergal, como pode você ser tão mal-educado, faltando ao respeito
com nossa irmã e rainha das grandes profundezas, comprando para si uma
briga da qual com certeza não poderá vencer? Não admira ser você o Deus de
todas as guerras, aquele que traz todas as doenças! Você acabou de se
42
comportar como um bárbaro grosseiro e rude para com uma grande Deusa,
que além do mais, é minha irmã gêmea! Agora, diga-me, o que você pretende
fazer? Como vai se escapar desta?
Por que parecem eles, todos de fato, tão transtornados? Será que
temem por alguém, por mim? Raciocinou finalmente Nergal.
Foi então que Nergal se deu conta de que talvez tivesse feito um erro
fatal ao ignorar e ofender Ereshkigal. Ele se voltou para Enki.
- Enki, meu irmão mais velho e o mais sábio de todos os Deuses, será
Ereshkigal assim tão terrível? Será que estou perdido? Irmão, grande Enki, que
tudo sabe e todos os problemas com arte e mágica resolve, posso contar com
a sua ajuda para safar-me desta?
- Com certeza a ira de Ereshkigal tem a forca do próprio caos. Você, Nergal,
fez a sua cama: agora, deite-se nela! Respondeu Enki com toda franqueza,
nada escondendo de Nergal.
43
Alguns minutos se passaram, durante os quais Enki pareceu se
distanciar de tudo e de todos, para mergulhar no Mundo Interior, de onde toda
sabedoria se origina, toda força encontra sustentação e fulgor.
- Em verdade, em verdade eu digo a você, Nergal, que partir você deve, para
uma jornada rumo ao Mundo Subterrâneo, para ver Ereshkigal. Mas não antes
de se preparar cuidadosamente! Em primeiro lugar, com a espada sagrada na
mão, vá até a floresta e peça permissão a Ningishzida, o Deus das grandes
árvores, para cortar delas madeira sagrada. Desta madeira sagrada, irá você
esculpir um trono, pintá-lo com as cores certas e inscrever nele os símbolos
apropriados. O trono significa que a matéria do seu corpo que você irá oferecer
em seu lugar aos espíritos do mundo Subterrâneo.
- É só isto o que devo fazer? Mas é tão fácil como tirar bala de uma criança!
- Não, não é só isto, Nergal! Há muito mais que você deve aprender saber
realmente antes e fazer antes de tentar ver Ereshkigal, face a face! Com este
tipo de atitude, eu me pergunto se vale o esforço de lhe ajudar! Talvez eu
mesmo devesse deixá-lo à mercê de Ereshkigal e das Grandes Profundezas.
- Ah não, grande e sábio irmão, ajude-me, por favor! Eu preciso que me diga o
que devo fazer, se devo na realidade ir até o Mundo Subterrâneo para
encontrar nossa irmã velhota, desculpe-me, nossa irmã mais velha, no reino
dela.
- Na realidade, não seria justo deixá-lo partir sem alguns conselhos, disse Enki,
conformando-se com o fato de ter de auxiliar um teimoso como Nergal. Mesmo
não tendo certeza de que você irá seguir à risca todas as minhas instruções.
Bem, de qualquer modo, ao chegar às Grandes Profundezas, preste bastante
atenção: não se sente em outros lugares que não o trono por você mesmo
esculpido, não coma ou beba da mesa de Ereshkigal ou deixe que servos lhe
lavem os pés. E, sobretudo, não se apaixone pela Rainha do Mundo
Subterrâneo, não se deixe levar pelos encantos de Ereshkigal. Eu repito: sob
44
hipótese alguma evite de fazer com ela o que homens e mulheres fazem, com
respeito, carinho e muito amor. Estamos entendidos?
- Enki, não posso acreditar no que acabei de ouvir! exclamou Nergal. Como
poderia ter vontade de fazer amor com uma Deusa muito mais velha do que eu
e que quer a minha vida?
- Ereshkigal pode muito bem reservar algumas surpresas para você, Nergal,
sorriu Enki. Com os olhos da memória, ele lembrou-se da Deusa-menina, sua
irmã e grande amiga, a quem ele havia amado como a sua própria alma.
Jamais diga nunca farei isto ou aquilo, pois Ereshkigal provavelmente achará
uma forma de fazê-lo fazer exatamente o contrário! Siga as minhas instruções,
Nergal, à risca e eu desejo muita sorte. Vá e volte com as minhas bênçãos!
45
Ida ao Mundo Inferior
46
Quando o sábio conselheiro de Ereshkigal viu quem era na realidade
aquele que pedia passagem, Namtar empalideceu sua face ficando tão lívida
quanto os campos cobertos de geada no dia mais frio de inverno.
- Oh, é o Deus que não tratou com o devido respeito à minha rainha nos
Mundos Superiores quando do Grande Banquete! Parai de imediato, meu
senhor, pois devo imediatamente avisar a vossa chegada à minha soberana, a
grande Deusa Ereshkigal.
- Minha rainha, começou Namtar, ofegante e ansioso, mas não sem antes
curvar-se numa perfeita reverência, um dos Deuses do Mundo das Alturas veio
até as Grandes Profundezas sem ser anunciado. O Deus que aqui chegou
pode não ser do agrado da minha senhora.
47
sem ter-me conhecido ou ouvido falar de mim. Em verdade, em verdade eu
afirmo: quero conhecer este Deus e descobrir a razão de alguns porquês!
48
nem uma outra Deusa ou Deus que Nergal tinha conhecido. Onde estava a
velhota que ele esperava encontrar? Onde estava a rabugenta soberana das
Grandes Profundezas, que permitia aos mortos viverem sem luz, que oferecia
poeira como alimento, argila como pão e penas como vestimentas?
49
O Encontro com Ereshkigal
Pois quem o fitava do trono era uma linda e séria mulher, toda vestida de
preto com longas madeixas negras onduladas e uma aura de poder que deixou
Nergal sem fala.
Ereshkigal não parecia velha. De fato, ela parecia não ter idade definida,
ao mesmo tempo jovem e experiente, com a sabedoria daqueles que muito
viram e tudo aprenderam. A filha de Namu, as Águas do Oceano e do Deus do
firmamento Anu, a querida irmã gêmea de Enki era linda, mas sua beleza vinha
mais de uma força interior e Poder-Que-Vem-de-Dentro que Nergal não sabia
definir. Ele sabia, porém, sem sombra de dúvida, que desde aquele primeiro
instante Ereshkigal havia capturado a sua mente, seu corpo, coração e alma.
50
Finalmente encontro o filho de Enlil e Ninlil, ela pensou, concebido às
portas do Mundo Subterrâneo, como parte das jornadas de iniciação de Enlil e
Ninlil para crescer como um Casal Divino e formar uma Parceria Indissolúvel e
Sagrada. Agora Nergal desceu ele mesmo, tendo deixado qualquer símbolo de
autoridade exterior de lado, pois não vejo o cetro de cabeça de leão ou a
cimitarra em suas mãos. Fico imaginando que tipo de lição o Deus dos
Conflitos e Doenças irá aprender desta experiência nas Grandes Profundezas?
É cedo demais para que se diga alguma coisa. Como todos que aqui vêm,
Nergal terá primeiro de mostrar o seu valor e provar em atos e pensamentos o
que realmente aqui aprendeu.
- Posso lhe perguntar quem é você e por que veio até mim?
Nergal olhou para o trono que havia trazido e resolveu seguir um palpite.
- E por que você veio até mim? Continuou ela, sem abrandar um milímetro.
- De fato, foi Anu, o Deus do firmamento, seu pai, minha senhora, que
me mandou até as Grandes Profundezas. Ele, o Todo-Poderoso senhor
dos céus, disse "sente-se naquele trono, Nergal, desça até a Grande
Rainha do Mundo Subterrâneio e julgue os atos e casos de todos os
seres vivos com ela." Portanto, para fazer a vontade do grande Deus
51
Anu, eu desci até aqui. Também fiz este trono, o qual ofereço em honra
da grande Deusa do Mundo Subterrâneo.
- Então Anu, meu pai, decidiu que depois de tanto tempo eu devo ter um
companheiro para julgar os casos dos grandes Deuses e os atos de todos os
seres vivos? Depois de todo este tempo? Perguntou Ereshkigal, fingindo
grande surpresa. Muito gentil da parte do meu pai, mas não posso permitir que
você se sente ao meu lado para julgar todos os casos antes de você ter
passado algum tempo comigo nesta esfera. Sentar-se ao meu lado, você
poderá, mas não no trono trazido por você. Sim, com toda certeza, não o
aceitarei antes de você ter se alimentado da minha mesa e bebido da minha
adega. Somente então vou poder dizer com certeza se você pode ficar e julgar
almas e espíritos no Mundo Subterrâneo. Mas enquanto estiver se provando
apto para mim, sinta-se à vontade para apreciar tudo o que as Grandes
Profundezas tiverem a lhe oferecer, Nergal.
- Vejo que você não quis compartilhar da minha mesa, sentar-se no trono que
lhe foi indicado ou permitir alguns pequenos bons tratos. Eu repito Nergal,
sinta-se à vontade para apreciar o que o Mundo Subterrâneo tiver a lhe
oferecer. Por ora, vou deixá-lo, para ir-me banhar.
52
Ereshkigal foi à casa de banhos. Nergal não pôde resistir e seguiu-a
discretamente. O Deus da guerra, o bravo e ardoroso guerreiro Nergal sentia-
se curiosamente atraído por Ereshkigal.
53
guerreiro ardoroso, que não teve medo de te mostrar vulnerável e me revelar o
desejo do teu coração, o anseio da tua alma, eu me adornei com as jóias da
divindade. Por ti, que desceste às Maiores Profundezas para encontrar a minha
justiça, eu dou a paz do meu abraço, a vitalidade do meu desejo, a alegria,
paixão e ousadia do meu amor. Portanto, por meu poder, pelas leis do meu
reino, eu te convido: vem para mim, Nergal, meu Deus-guerreiro, sonho
tornado verdade, que sempre soube um dia iria achar!
Quando a aurora do sétimo dia estava para raiar, Nergal, com Ereshkigal
adormecida em seus braços, sentiu então pela primeira vez o impacto total de
ter-se rendido aos encantos de Ereshkigal. Dúvidas encheram seu coração:
tanto amor, responsabilidade e paixão ele estava sendo chamado a
compartilhar. Será que ele estava realmente pronto para assumir tal
compromisso?
Minha irmã mais velha, minha amada, Nergal pensou, beijando a orelha
bem feita, os cabelos longos e sedosos. Estamos juntos há seis dias e seis
noites apaixonadas. Agora que a sétima aurora se aproxima, um ciclo completo
está chegando ao fim. Ereshkigal, grande rainha que capturou meu coração,
serás realmente a resposta para todos os meus desejos, o melhor abraço para
o meu beijo, amiga, amante, companheira, de todas, a melhor? Pode ser que
eu não o sejas! Até descobrir a resposta para esta pergunta, deixar-te-ei para
subir mais uma vez aos Mundos das Alturas, para depois, e somente depois,
retornar. Pois com certeza retornarei para ti, mas por agora me devo ir! Quem
sabe, quando minha resposta encontrar, voltarei então para sempre ficar!
54
A Fuga
- Então você voltou! Disse Enki. Mas há em você agora uma grande diferença.
Corrija-me também, se estiver enganado: o Deus da guerra parece estar sob
pressão, definitivamente sitiado! Vejamos se penso certo, se tenho razão: creio
que você, Nergal, partiu do Mundo das Profundezas, sem se despedir ou dar à
Ereshkigal uma razão para querer partir.
- Mas não é tudo, não é mesmo? Continuou Enki. Não me diga nada, deixe-me
adivinhar. Você também comeu e bebeu da mesa de Ereshkigal, sentou-se a
seu lado no trono que ela indicou e fez amor com ela, deixando-a depois sem
nada dizer! Nergal, foi criado um laço muito forte entre você e Ereshkigal, como
tudo o que partilharam, a qualidade dos momentos que juntos passaram. Você
não poderá nunca mais esconder-se dela, pois Ereshkigal com certeza irá
segui-lo, onde quer que for! Desta vez, você não poderá escapar.
55
- Mas eu mesmo não sei se na realidade quero me escapar de Ereshkigal,
respondeu Nergal criticamente. Só estou pedindo algum tempo para pensar,
antes de decidir trocar definitivamente o Mundo das Alturas pelas Grandes
Profundezas.
- Eu entendo, bem mais do que possas imaginar, Nergal. Mais uma vez, vou
ajudá-lo. Espalhe estas águas sagradas, com mágicas abençoadas, pelo
corpo. Elas irão disfarçar sua face e aspecto geral, de forma que Ereshkigal ou
um dos seus não possa reconhecê-lo.
- Você tem razão, Namtar. Eu não vou mais perder tempo com lágrimas por
quem não as merece ou mesmo esperar para que Nergal volte para mim desta
vez! Suba, imediatamente, meu fiel conselheiro! Você deve falar com Anu, Enlil
e Enki e dizer-lhes que desde que era menina, desde que escolhi o Mundo
Subterrâneo como meu reino, não tive mais a oportunidade de brincar como as
outros Deuses e Deusas brincaram ou os prazeres de crescer e ver o mundo
das alturas também amadurecer. Minha foi a escolha de manter o equilíbrio
entre as trevas e a luz, minha foi também a escolha pela solidão, que aceitei de
livre e espontânea vontade, tornando-me deste mundo a guardiã. Mas um dia,
um Deus veio até mim, primeiro cheio de ansiedade e medo, mas logo depois
entre ele e eu nasceu um grande desejo, uma paixão, um amor. Agora, eu
carrego dentro de mim a semente deste fogoso amor. Nergal é o nome deste
Deus! Que ele, que partilhou da minha mesa e do meu leito, volte para viver
comigo como meu amado! E se os Deuses das Alturas Superiores não
mandarem este Deus até mim, de acordo com os ritos deste mundo do qual
sou soberana e rainha, irei levantar os mortos e estes subirão ao Mundo das
Alturas para superar o número dos vivos! E que seja feito segundo a minha
vontade, agora e para sempre!
57
- Grandes Deuses, senhores e protetores de todas as alturas! Saudou-os
Namtar. Novamente venho a vossas augustas presenças em nome de minha
soberana e rainha, a grande Deusa do Mundo Subterrâneo, para entregar-vos
uma mensagem de grande importância. Minha rainha diz que desde que era
que era menina, desde que escolheu o Mundo Subterrâneo como seu reino, ela
não teve mais a oportunidade de brincar como as outras Deusas e Deuses
brincaram ou os prazeres de crescer e ver o mundo das alturas também
amadurecer. Dela foi a escolha de manter o equilíbrio entre a escuridão e a luz,
dela foi também a escolha pela solidão, que aceitou livre e espontaneamente,
tornando-se a fiel guardiã do Mundo Subterrâneo para todos os Deuses e
Deusas, seus irmãos. Mas um dia, um Deus veio até ela, primeiro cheio de
ansiedade e medo, mas logo depois entre ele e minha rainha nasceu um
grande desejo, uma paixão, um profundo amor. Agora, minha Senhora carrega
dentro dela a semente deste fogoso amor. Nergal é o nome deste Deus! Que
ele, que partilhou da mesa e do leito da Grande Deusa Ereshkigal, volte ao
Mundo Subterrâneo, para reinar ao seu lado! E se os Deuses das Alturas
Superiores não mandarem este Deus até minha senhora, de acordo com os
ritos das Grandes Profundezas da qual ela é soberana e toda poderosa, aos
mortos será dada vida para que subam ao Mundo das Alturas para superar o
número dos vivos! Esta é a vontade da minha senhora que todos dela estejam
cientes!
- Mais uma vez venho a vossa presença, para levar aquele que dentre vós
chama-se Nergal e conduzi-lo à presença de minha rainha.
58
Namtar passou a examinar todos os Deuses e Deusas presentes, para
Nergal e somente Nergal identificar.
- Não sois vós, nem vós também! Eu não reconheço em vós a face de Nergal,
o Deus a quem venho buscar, disse Namtar, à medida que com cuidado e
atenção fitava os rostos voltados silenciosamente para ele.
- Não, eu não reconheço dentre todos aqui reunidos a face de Nergal, o Deus
que saiu do Mundo Subterrâneo na calada da noite, tal qual um ladrão,
escondido, concluiu finalmente Namtar, extremamente desapontado.
- Meus sinceros agradecimentos aos grandes Deuses dos Mundos das Alturas,
despediu-se Namtar. Não pude, porém, o Deus que vim procurar aqui
encontrar. Mas mesmo não tendo cumprido minha missão, devo à minha rainha
imediatamente retornar.
59
- Minha Senhora, tudo fiz conforme me foi pedido: retornei aos céus de vosso
pai, o Grande Deus do Firmamento, à Assembléia dos Anunaki para procurar
Nergal. Mas por mais que procurasse em todos os locais sagrados e profanos,
não pude encontrá-lo, apesar de ter olhado com atenção as faces de todos os
Deuses, os Anunaki das Alturas. Entretanto, devo dizer que dentre eles, havia
um jovem Deus que fez todo possível para me evitar, não me olhando nos
olhos, parecendo nervoso e agitado. Mas a face que meus olhos
cuidadosamente fitaram com certeza não era a do Deus a quem nas alturas
procurei.
60
O Retorno
- Grandes Deuses e Deusas, Anunaki das Alturas, eu vos saúdo mais uma vez
em nome de minha rainha, a toda poderosa Ereshkigal das Grandes
Profundezas! Eu subo até os grandes Deuses e Deusas com a missão de levar
de volta ao Mundo Subterrâneo o Deus que partiu sem se despedir de minha
rainha, que abandonou o Mundo Subterrâneo da forma mais covarde e
desgraciosa, tal qual um ladrão e criminoso, esgueirando-se na calada da
noite, fugindo para não ser apreendido. Em nome de minha senhora, eu
conclamo a Nergal, o Deus da Guerra e de todas as doenças, para com
coragem dirigir-se à presença de minha grande rainha! De onde estiver Nergal,
o Deus que amou e abandonou Ereshkigal, eu conclamo que a todos agora, de
imediato apareça! Será que o Deus que à minha senhora se apresentou já dela
e do que compartilharam juntos se esqueceu? Sete dias e seis noites de amor,
carinho e paixão nas Grandes Profundezas para ele nada significaram? Eu
exijo em nome de minha senhora as devidas reparações! Nergal, Deus da
Guerra que um dia ao Mundo Subterrâneo por sua livre e espontânea vontade
desceu, vossa presença é de novo exigida nas Grandes Profundezas, para
todo e qualquer mal-entendido esclarecer. Ao comer e beber da mesa de
minha senhora, sentar-vos ao lado dela, compartilhar do leito sagrado e
impregná-la com sua semente, um elo entre o Deus da guerra e a rainha do
Mundo Subterrâneo foi de forma indelével criado. Em nome de minha rainha,
da Grande Ereshkigal, eu conclamo Nergal, o Deus da guerra, para tudo com
minha Deusa esclarecer!
61
- Não, Namtar, eu não me esqueci de Ereshkigal! Eu posso tê-la deixado, mas
certamente sempre pretendi voltar quando tivesse certeza dos desígnios do
meu coração, sem outros encorajamentos ou coação! Bem, irei provar uma
coisa a Ereshkigal: ela me terá como companheiro e consorte, mas não como
um fantoche na palma da sua mão! Em verdade, em verdade eu afirmo que
Ereshkigal pode ser a Soberana do Mundo Subterrâneo, mas eu exijo ser
tratado como seu igual, Deus e companheiro. Agora sou eu que vou até ela,
abrindo todos os portais mais cerrados e tudo fazendo para ensinar uma lição à
minha grande rainha e senhora do meu ardente coração!
62