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Teorias da socialização: um estudo sobre as relações entre

indivíduo e sociedade

Maria Graça Jacintho Setton


Universidade de São Paulo

Resumo

O artigo propõe uma reflexão na qual a interdependência entre as


instâncias de socialização e os indivíduos faça-se presente. Com
base em algumas formulações sobre a sociologia dos processos so-
cializadores, empreende-se uma análise a fim de apreender a com-
plexa dinâmica educativa da atualidade. Existe e é possível con-
cretizar empiricamente a articulação de interdependência entre as
matrizes de cultura? Como compreender o imbricado e conflituoso
processo de construção das disposições de habitus? Identificando
uma nova estruturação no campo da socialização, busca-se uma
perspectiva relacional entre as agências a fim de apreender a es-
pecificidade do processo de construção das disposições de habitus
do indivíduo contemporâneo. A partir dos conceitos de fato social
total, de Marcel Mauss, e de hibridismo, do antropólogo latino-
-americano Nestor García-Canclini, formula-se a hipótese de que
a cultura da modernidade imprime uma nova prática socializado-
ra distinta das demais verificadas historicamente. Assim sendo, a
discussão pretende contribuir para os estudos relativos aos pro-
cessos socializadores nos âmbitos institucional e individual, bem
como auxiliar no difícil procedimento de investigar a construção
das disposições de habitus com base na observação cuidadosa dos
mecanismos e das estratégias formadoras. Amplia a leitura sobre
o alcance e o limite de cada uma das matrizes de cultura e, simul-
taneamente, permite perscrutar sobre o movimento de ascensão de
novas agências socializadoras.

Palavras-chave

Socialização – Indivíduo – Sociedade – Fato social total –


Configuração – Hibridação.

Correspondência:
Maria Graça J. Setton
Faculdade de Educação
Universidade de São Paulo
Av. da Universidade, 308
05508-040 – São Paulo/SP
gracaset@usp.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 711-724, dez. 2011. 711

Livro volume 37 n.4 .indb 711 24/11/2011 10:48:36


Socialization theories: a study about the relations between
individual and society

Maria Graça Jacintho Setton


University of São Paulo

Abstract

The article proposes a reflection in which the interdependence


between instances of socialization and individuals can be made
present. Based on some of the formulations about the sociology of
socialization processes, an analysis is conducted with the purpose of
apprehending the complex educative dynamics of the current times.
Is there, and is it possible to actualize empirically, the articulation
of the interdependence between the matrices of culture? How should
we understand the intricate and conflicting process of construction
of the habitus dispositions? Identifying a new structuring of the
field of socialization, the text seeks a relational perspective between
the agencies, in order to apprehend the specificity of the process
of construction of the habitus dispositions of the contemporary
individual. Based on Marcel Mauss’s concept of total social fact,
and on Latin American anthropologist Nestor García Canclini’s
concept of hybridism, the article puts forward the hypothesis that the
culture of modernity establishes a new socializing practice distinct
from the previous historical ones. In this way, the discussion aims at
contributing to the studies related to the socializing processes within
the institutional and individual spheres, as well as to help in the
difficult task of investigating the construction of habitus dispositions
on the basis of a careful observation of formative mechanisms and
strategies. It therefore extends the reading on the reach and limit of
each of the matrices of culture and, simultaneously, makes it possible
to peer into the ascending movement of new socializing agencies.

Keywords

Socialization – Individual – Society – Total social fact – Configuration


Contact: – Hybridization.
Maria Graça J. Setton
Faculdade de Educação
Universidade de São Paulo
Av. da Universidade, 308
05508-040 – São Paulo/SP
gracaset@usp.br

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Il ne s´agit pas de professer un écletisme esquemas coerente2, ainda que heterogêneo.
sociologique visant à tout réconcilier par Contudo, como se tece de maneira individual
oecuménisme, mais d´une necessité
théorique, ou plus exactement, d´une essa complexa rede de sentidos?
conception même de la nature des faits Em trabalhos anteriores, examinou-se
sociaux. (DUBET, 2005, p. 11) a particularidade da configuração cultural no
Brasil, desde aproximadamente a década de
Esta reflexão é o retrato do amadure- 1970. Considerou-se, primeiramente, a coexis-
cimento de uma série de desdobramentos de tência marcante de diferentes matrizes sociali-
pesquisa que contam aproximadamente vinte zadoras na formação cultural do povo brasilei-
anos. Trata-se, ainda, da síntese de incursões ro, registrando duas temporalidades bastante
reflexivas de parte do material coletado em distintas. Temporalidades estas ainda em curso
pesquisas realizadas ao longo desse período. que podem ser caracterizadas, grosso modo,
Grosso modo, deseja-se uma inflexão analí- pelos pares de conceitos tradicional/moder-
tica acerca de um conjunto de aspectos re- no, rural/urbano, cultura oral/cultura letrada
lativos aos processos socializadores, em sua (SETTON, 2004a). Em um segundo momento,
dimensão individual e institucional. No for- focalizou-se a sinergia de esforços pedagógi-
mato de um ensaio exploratório, busca-se cos entre instâncias socializadoras – família
uma reflexão teórica que auxilie na compre- (camadas populares), escola (cultura letrada)
ensão relacional do fenômeno do ponto de e mídia (cultura de massa) –, evidenciando-
vista macroinstitucional das agências socia- -se um espaço intercultural de referências na
lizadoras, bem como pela ótica microestrutu- composição de disposições de cultura de um
ral, oferecendo um instrumental para expla- grupo de estudantes das camadas pouco es-
nações acerca do indivíduo socializado1. colarizadas. Na ocasião, foi possível observar
Identificando uma nova estruturação uma mistura ou mesmo hibridação entre refe-
no campo da socialização, busca-se uma rências escolares e midiáticas na construção de
perspectiva relacional de análise entre as um novo capital cultural, sendo este específico
instâncias, a fim de apreender a especifici- dos segmentos populares (SETTON, 2005a).
dade do processo de construção das disposi- Mais recentemente, a partir de uma
ções de habitus do indivíduo na atualidade. perspectiva macrossociológica, realizou-se um
Partindo dos conceitos de fato social total, de estudo comparativo entre jovens provenientes
Marcel Mauss, e de hibridismo, do antropólo- de distintas configurações educativas. Os pro-
go latino-americano Nestor García-Canclini, cessos socializadores aqui analisados enfati-
formula-se a hipótese de que a cultura da mo- zaram, em evidências estatísticas, disposições
dernidade imprime uma nova prática sociali- provenientes de muitas matrizes de cultura,
zadora distinta das demais verificadas histo- despertando o interesse para a construção de
ricamente. Considera-se, pois, que o processo sentido elaborada pelos sujeitos em suas vi-
de socialização das sociedades atuais é um vências individuais (SETTON, 2009b).
espaço plural de múltiplas referências iden- No Brasil, sobre a cultura escolar, usan-
titárias. Ou seja, a modernidade caracteriza- do como referência as estatísticas educacio-
-se por oferecer um ambiente social no qual nais, pôde-se observar que só muito recente-
o indivíduo encontra condições de forjar um mente se conseguiu universalizar o acesso à
sistema híbrido de referências disposicionais,
2- Diferentemente de Bernard Lahire (2004b), considera-se que o con-
mesclando influências em um sistema de ceito de habitus ainda é útil e necessário. O argumento que o autor de-
senvolve em O homem plural “é que se definimos o habitus como um
sistema homogêneo de disposições gerais, permanentes [...], então cada
1- A pesquisa teve início nos anos 1980 e contou com o financiamento da vez menos agentes de nossas sociedades serão definíveis a partir de um
FAPESP em 1989, 1997, 2000 e no período de 2005 a 2007. tal conceito” (p. 318).

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escolarização em todo o território. Segundo o da família e da escola, indivíduos que podem
Censo Demográfico de 2005, entre os brasilei- apreender novos e/ou outros modelos de cul-
ros de 25 anos ou mais, um contingente ex- tura, que competiriam com os tradicionalmente
pressivo não ultrapassou o ensino fundamen- vistos como legítimos.
tal, e a média de tempo de estudos é sete anos; Nesse contexto, atenta-se para a pre-
23,5% continuam analfabetos funcionais e sença das mídias e para o mercado de cul-
11% analfabetos. Apenas 43,3% estudaram tura construído com base nelas. No caso do
mais de oito anos. Brasil, mais especificamente, desde os anos
Mais especificamente, se tomados os 1970, a sociedade vem convivendo com a re-
centros desenvolvidos como modelo, constata- alidade dos meios de comunicação de massa
-se que as camadas médias têm pouca tradição de maneira intensa e profunda. Pouco letrada
em relação à cultura letrada (SETTON, 1994, e urbanizada, em algumas décadas, a popula-
2004b). Grande parte dos segmentos médios ção brasileira viu-se imersa em uma terceira
possui apenas os primeiros anos da vida es- cultura – a cultura da comunicação de massa
colar, e, nesse sentido, tem poucas chances de –, que se alimenta à custa das culturas de ca-
sedimentar hábitos, práticas e comportamen- ráter humanista, nacional, religiosa e escolar
tos que valorizam as maneiras cultivadas de (MORIN, 1984). Sobre a matriz de cultura reli-
relacionar-se com a escola, tornando-a refe- giosa, cabe lembrar que, mesmo o Brasil ten-
rência e base para suas escolhas relativas a um do como religião majoritária o catolicismo,
estilo de vida. sabe-se que, desde a década de 1990, é forte a
Raciocinando a partir das categorias de presença de evangélicos no país. Não obstan-
Pierre Bourdieu (1979) e Bernard Lahire (1997), te, religiões oriundas de uma fé mais mágica,
pensa-se que o trabalho pedagógico da escola como a umbanda e o candomblé, ou crenças
tende a ser mais valorizado e aproveitado des- de origem indígena, como a pajelança, ainda
de que as condições de socialização sejam pro- que veladas, participam do universo das cren-
pícias. Isto é, considerando que a sinergia de ças nacionais. É possível, pois, considerar a
projetos pedagógicos entre a família e a escola realidade brasileira como estando organizada
favorece um maior rendimento escolar, compre- com base em uma variedade de matrizes de
ende-se o trabalho complementar entre ambas cultura convivendo em tensas relações sim-
como um espaço significativo na consolidação bólicas, matrizes disposicionais capazes de
de uma maneira de se relacionar com os valo- orientar condutas, práticas e representações
res e as categorias de julgamento propriamente sociais ora coerentes, ora heterogêneas.
cultivadas, as quais determinam sobremaneira Preocupando-se em compreender as ten-
a seleção e a priorização de práticas afinadas a sões e os enfrentamentos entre valores tradi-
uma cultura culta e letrada. cionais difundidos, em tese, pelos espaços da
Por outro lado, é importante salientar família e da religião e valores modernos dispo-
que, dada a nova configuração das sociedades nibilizados, quase sempre, pela escola e pelas
contemporâneas, a sinergia de forças entre fa- mídias, propõe-se que esta discussão contribua
mília e escola é apenas uma possibilidade, longe para a compreensão das articulações e dos en-
de ser geral, ainda que desejada. Em condições frentamentos numa experiência tanto indivi-
de modernidade, o contato com uma heteroge- dual, quanto institucional. Os desdobramentos
neidade de referências culturais implica chamar desse tipo de discussão são múltiplos. O traba-
a atenção para a formação de indivíduos plu- lho é extenso. De um lado, os resultados obtidos
rais, na acepção de Lahire (2002, 2006). Ou seja, podem concretizar um esforço intelectual com
indivíduos submetidos a um conjunto de influ- base em uma ampla e complexa trama de sen-
ências e experiências de socialização, distantes tidos entre as instâncias e os sujeitos. Ou seja,

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amplia-se o detalhamento de uma perspectiva Ademais, o processo de socialização pode
teórico-metodológica, a saber, a interdependên- circunscrever uma força heurística mais ampla
cia entre indivíduo e sociedade ou entre estru- do que a noção de educação ou de processo edu-
turas mentais e sociais. Por outro lado, pode- cativo. Se o último, na grande maioria das vezes,
-se dar destaque ainda à operacionalidade da é considerado como prática intencional, cons-
teoria no universo da empiria. Pode-se colocar ciente e sistemática, o processo de socialização
em prática o evidenciar empírico da articula- tem a vantagem de agregar as noções anteriores
ção entre as matrizes de cultura no processo a uma série de outras ações difusas, assistemáti-
de construção das disposições de habitus na cas, não intencionais e inconscientes. Estas, ad-
contemporaneidade. quiridas de maneira homeopática na família, na
escola, na religião, no trabalho ou em grupos de
Justificativa da proposta amigos, querendo ou não, acabam participando
na construção dos seres e das realidades sociais.
Objetiva-se aqui salientar o potencial ana- Para os interesses desta discussão, sa-
lítico do conceito de socialização no campo da lienta-se ainda que, a partir dos anos 1980, um
sociologia da educação contemporâneo3. Tem-se conjunto de trabalhos sistematizou contribuições
como proposta apresentar o alcance e o limite significativas no campo das teorias sociológicas,
de um conceito que, ainda que presente desde e todos eles, de certa forma, questionaram o po-
os primeiros estudos dessa área, aos poucos foi der explicativo de paradigmas centrados unica-
perdendo poder de uso em função de sua aproxi- mente nas estruturas ou nas determinações de
mação com as teorias estrutural-funcionalistas, ordem material e econômica. A necessidade de
bem como o simultâneo desaparecimento de sua incorporar, nas análises sociológicas, a figura do
capacidade de interpretar as transformações de agente social passa a dominar algumas correntes
ordem institucional nas sociedades atuais. de pensamento, de maneira assistemática, porém
Nessas reflexões, além de ser concebida bastante expressiva. Na tentativa de promover
como uma noção definidora de um conjunto um debate sobre a teoria da socialização, alguns
expressivo de práticas de cultura que tecem e autores atualizaram certa imaginação sociológi-
mantêm os laços sociais, a socialização é en- ca, introduzindo novas abordagens acerca de um
tendida como uma área de investigação que ex- dos temas mais tradicionais da sociologia, como
plora as relações indissociáveis entre indivíduo as relações dialéticas entre indivíduo e sociedade.
e sociedade. Em sua dimensão produtora, difu- Nesse sentido, as ponderações que seguem preten-
sora e reprodutora, a socialização pode enfocar dem apontar uma compreensão mais complexa
as instituições como matrizes de cultura, enfati- do conceito, abordando-o de maneira mais dia-
zar as estratégias de transmissão e, portanto, de lógica. É possível apreender que, num caminhar
transformação dos valores dos grupos sociais, vagaroso, mas ao mesmo tempo decisivo, alguns
além de explorar o processo de incorporação autores auxiliam nessa travessia problematizando
realizado pelos indivíduos ao longo de suas ex- um tema e um objeto de análise que marcam o
periências de vida. Isto é, ela deixa de ser ape- campo de investigação da sociologia da educação.
nas uma noção de integração explicitamente
vinculada a uma tradição sociológica para ser Em busca de uma sociologia
vista de modo mais abrangente, como um pro- relacional entre indivíduo e
cesso construído coletiva e individualmente e sociedade
capaz de dar conta das diferentes maneiras de
ser e estar no mundo. Philippe Corcuff, em As novas sociolo-
3- Esse esforço teve início em trabalhos anteriores (SETTON, 2002, gias: construções da realidade social (2001),
2004a, 2005a, 2005b, 2009a). propôs responder à seguinte questão: quais

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foram os conceitos mais discutidos nos anos sociais suscitou reações que levaram a conside-
1980 e 1990 na França? Ele evidenciou con- rar aspectos de ordem individual. Entre outros,
vergências inéditas, ainda que não claramen- René Boudon (apud CORCUFF, 2001), um dos
te percebidas, em pesquisas que têm pontos de expoentes dessa corrente, chamou tal tentativa
partida e recursos conceituais diversos. de individualismo metodológico. Criticando o
Segundo Corcuff, é possível identificar sociologismo ou o holismo da versão durkhei-
que alguns autores tentam superar antinomias miana, ele questionou o postulado segundo o
clássicas (como objetivo e subjetivo, coletivo e qual o indivíduo, sendo produto de estruturas
individual ou micro e macro), as quais, mesmo sociais, poderia ser negligenciado. Ao contrário,
que constitutivas da sociologia, deixaram de ser de acordo com o individualismo metodológico,
produtivas. Contra essas oposições, que se teriam para explicar qualquer fenômeno social, é in-
tornado cada vez mais esterilizantes, desenhou- dispensável reconstruir as motivações dos indi-
-se um novo espaço de questões denominado por víduos concernidos pelo fenômeno em questão
ele de construtivismo social, pois, de acordo com e apreendê-lo como resultado da agregação dos
essas perspectivas, a realidade social tenderia comportamentos individuais ditados por essas
a ser apreendida como construída e não como motivações.
dada ou natural (CORCUFF, 2001). Contudo, a partir dos anos 1980, numa
Assim, a partir dos anos 1980, o campo tentativa de superar as versões dicotômicas de
da sociologia francesa não estaria fragmenta- compreensão, ou seja, contra o holismo e o indi-
do ou fracionado em visões opostas; ao con- vidualismo, as novas sociologias tenderiam, então,
trário, perspectivas comuns poderiam ser iden- a apreender indivíduos plurais, ou, de acordo com
tificadas. Essas novas maneiras de conceber o Corcuff (2001), indivíduos produzidos e produto-
social seriam denominadas pelo autor como res de relações sociais variadas. Sem a intenção
novas sociologias. E ele foi além: afirmou de agrupar todas essas tendências em um pensa-
que, ainda que a tradição da sociologia tenha- mento unitário, o autor chama a atenção para o
-se firmado trabalhando com vários pares de fato de que aquilo que ele qualifica de problemá-
conceitos herdados da filosofia, ela se revelou tica construtivista não deve ser considerado como
particularmente marcada pela oposição entre uma nova escola ou uma nova corrente dotada de
sociedade e indivíduo. homogeneidade. Trata-se mais de um espaço de
Lembrando um dos paradigmas de uma problemas e de questões, sobre as quais trabalham
vertente dessas oposições – Émile Durkheim e pesquisadores diversos quanto a seus itinerários
seus discípulos estruturalistas –, Corcuff assi- intelectuais, aos recursos conceituais utilizados,
nala que, no clássico As regras do método so- bem como em relação aos métodos empregados
ciológico (1978), a noção de coletivo ou social, etc. Em uma perspectiva construtivista, as novas
distinto do individual ligado à psicologia, esta- sociologias tenderiam, pois, a ver as realidades so-
ria na base da definição da sociologia; o cole- ciais como construções históricas e cotidianas de
tivo remeteria à noção de constrangimento do atores individuais e coletivos4.
universo exterior que, impondo-se aos agentes, Em um empreendimento um pouco di-
teria um domínio de validade, no espaço e no ferente, mas com a preocupação de fazer um
tempo, ultrapassando consciências individuais. diagnóstico do campo da produção sociológica
Dessa forma, a objetividade do mundo social
teria uma consistência independente dos indi- 4- A relação entre indivíduo e sociedade, mesmo que tradicional no cam-
po da sociologia, vem recebendo há um tempo uma atenção maior, sobre-
víduos que o compõem. tudo no sentido de empreender uma leitura mais dialética desse fenômeno.
Numa rápida retrospectiva Corcuff Uma discussão próxima ao tema da socialização pode ser encontrada em
Martuccelli (2002, 2005), Corcuff (2003, 2005) e Dubet (2005), entre outros.
(2001) afirma que a ênfase dada à proeminên- É notável também o esforço dos sociólogos Norbert Elias e Marcel Mauss
cia do coletivo na compreensão dos aspectos nessa direção, ainda que poucos tenham dado ênfase a esse aspecto.

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nos anos 2000, Danilo Martuccelli (2002) sa- Seriam constitutivas da modernidade a
lienta os limites de uma sociologia tradicional abertura de setores de atividades e a porosidade
que busca apreender o indivíduo com base em das fronteiras institucionais e grupais. A ação
certa representação do mundo social. Segundo dos indivíduos não pode ser unicamente defini-
o autor, a vontade original da sociologia é dar da em termos de hierarquias, status, sistema de
conta das experiências de modernidade que es- ordem e de posição. Assim sendo, Martuccelli
tão presentes na vida de cada um. Entretanto, (2002) afirma que a dificuldade da sociologia
pergunta-se: por que, paradoxalmente, entre atual é adaptar a teoria às situações observa-
todas as sociologias, as reflexões sobre o in- das. Contudo, alerta ele, o desafio será sempre
divíduo sempre se colocam como uma dificul- estabelecer o laço entre experiências pessoais
dade? Para Martuccelli, uma visão sociológica e jogo coletivo. Sua proposta é de que o estu-
tradicional tenderia a conceber a significação e do do indivíduo deva ser hoje material de re-
a trajetória das ações dos indivíduos deduzidas flexão da sociologia. A ideia de socialização,
de sua posição e função em um domínio social compreendida como processo progressivo de
constituído. As condutas constitutivas dos in- investimento no ator pelo social no qual ele se
divíduos seriam formadas e deformadas pelos dotaria de competências para viver em socieda-
agenciamentos das estruturas invisíveis, porém de, torna-se criticável, pois se está imerso em
estruturariam as ações individuais. Os sujeitos uma multiplicidade de orientações culturais.
seriam percebidos como produto de um entrela- Como apreender a experiência dos indivíduos
çamento de forças de origem social. no momento em que os domínios culturais se
Martuccelli (2002) considera que mesmo diferenciam e os percursos sociais não possuem
essa leitura estando ainda em voga, a situação autonomia suficiente?
atual obriga a repensar tal enquadramento. Na É mister estudar, segundo ele, os meca-
realidade, a crise da ideia de ator social, ou até nismos que fazem, dos indivíduos, indivíduos
a correspondência estrita entre trajetória social, – um processo complexo e com rupturas que
processo coletivo e vivência pessoal, transformou- exigem transformações de ordem metodológi-
-se radicalmente. Para o autor, a questão do social ca, teórica e conceitual. A sociologia, reconhe-
não pode mais ser apreendida exclusivamente a cendo a singularização crescente das trajetórias
partir das posições sociais, a um sistema de rela- individuais, deve obrigar-se a desfazer-se da
ções sociais ou a certa concepção de ordem social. ideia de uma conexão homogênea entre todos
A novidade relativa na situação atual, segundo os fenômenos. A sociologia atual deve repre-
ele, provém do fato de que, daqui para frente, en- sentar a vida social como um quebra-cabeça,
tre o vivido pelos atores e a linguagem dos ana- incerto e fragmentado. O que antigamente era
listas, a distância não cessa de crescer. As classes visto como construído pelas instituições e for-
sociais, segundo ele, deixam de ser o formidável mas sociais é agora pensado como produto de
princípio de unidade política, intelectual e práti- uma reflexividade. Os indivíduos são levados a
co da vida social. Os estudos sobre trajetórias e tornarem-se indivíduos por eles mesmos.
experiências individuais tornam-se hesitantes. As Martuccelli afirma (2002):
fronteiras entre os grupos sociais, sem desapare-
cerem, fazem dos percursos experiências fluidas. Por razões indissociavelmente teóricas e
Além de tudo, não existiriam universos fechados históricas, o processo de constituição dos
para os indivíduos. Nesse sentido, segundo o au- indivíduos está se tornando, verdadeira-
tor, seria difícil pensar os significados das ações mente, um elemento de base da análise
ou suas determinações derivando exclusivamente sociológica. No contexto atual, e prin-
da posição ocupada por um ator social em um cipalmente a partir das considerações do
contexto bem circunscrito. que chamamos freqüentemente de maneira

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confusa globalização, o indivíduo é cada Sociologia da experiência (1996), entre outros6,
vez mais descrito como estando submeti- o autor reflete sobre uma crise de paradigma
do a um conjunto de fenômenos abertos no interior da sociologia. Aponta certo esgo-
e contraditórios, onde se misturam, ainda tamento das contribuições da sociologia clás-
uma vez, antigas certezas. A tarefa da so- sica nas questões relativas ao ator e ao sistema
ciologia será de dar conta dos laços am- social. Segundo ele, a sociologia, representada
bivalentes entre esta situação global e a por Émile Durkheim, Talcott Parsons e, de cer-
injunção de tornar-se um indivíduo. (p. 30) ta forma, Norbert Elias define o ator individual
pela interiorização do social. Ou seja, a ação
Nesse sentido, o referido autor torna- individual seria a realização das normas de um
-se uma inspiração para pensar a participação conjunto social integrado em torno de princí-
singular dos indivíduos na construção de uma pios comuns aos atores e sistemas.
nova perspectiva sociológica, bem como as con- Não obstante, tendo como base pesqui-
dições atuais do processo de socialização; ou sas empíricas, Dubet (1996) questiona essa in-
seja, a multiplicidade de referências identitárias terpretação, crendo que não é mais possível ex-
que circundam os sujeitos e a possibilidade de plicar a ação social a partir do modelo anterior.
construção de habitus com híbridas disposições Ele sugere a noção de experiência para designar
de cultura5. Como ele mesmo argumenta, posto as condutas individuais e coletivas dominadas
que o caminho socializador não é nem linear pela heterogeneidade de princípios de orienta-
nem único, a identidade dos indivíduos é fruto ção. A noção de experiência social parece ser,
de uma superposição e coexistência de diferen- segundo ele, a menos inadequada para designar
tes tradições. Toda identidade é um amálgama as condutas sociais que não são redutíveis a pu-
de estruturas históricas anteriores dando lugar ras aplicações de códigos interiorizados ou a en-
a uma série de conflitos internos, às vezes com- cadeamentos de opções estratégicas que fazem
preensíveis graças ao esclarecimento das diver- da ação uma série de decisões racionais. Seriam
sas tradições de onde provêm. condutas organizadas por princípios estáveis,
Na modernidade, os arranjos identitá- mas heterogêneos, e é essa heterogeneidade o
rios são surpreendentes, permitindo aos atores que permite falar em experiência, aqui defini-
a passagem de um universo simbólico a outro, da pela combinação de várias lógicas de ação.
misturando-os ou mantendo-os intactos. As A representação clássica da sociedade deixa de
trocas e/ou exclusões são tão arbitrárias que é ser adequada no caso em que os indivíduos são
difícil supor, a partir de imbricações observá- obrigados a gerirem simultaneamente várias ló-
veis, uma afinidade eletiva entre os elementos. gicas de ação que remetem a diversas lógicas do
Segundo Martuccelli (2002), as hibridações são sistema social. Dubet (1996) segue afirmando
muito diversas, caprichosas e inesperadas. Tal que as combinações de lógicas de ação orga-
construtivismo espontâneo está difícil de ser nizadoras da experiência social do indivíduo
escondido, mas continuamos a pensar em fron- atual não têm centro, não se assentam sobre
teiras firmes, como se houvessem realidades qualquer lógica única ou fundamental.
culturais homogêneas e coerentes. Não existe, pois, uma socialização com
Outro referencial importante que corro- uma única lógica de ação. Processa-se uma es-
bora o entendimento de um processo dialógico, pécie de separação entre a subjetividade do in-
híbrido e disperso da socialização pode ser en- divíduo e a objetividade de seu papel. A socia-
contrado na obra de François Dubet. No livro lização não se finaliza, não porque o indivíduo
escape do social, mas porque sua experiência
5 - A proposta de pensar as disposições de habitus dos indivíduos con-
temporâneos como híbridas encontra-se mais bem elaborada em Setton, 6 - Le déclin de l´institution (2002) e En la escuela: sociologia de la
(2002, 2009a, 2009b). experiencia escolar, escrito com Danilo Martuccelli (1998).

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inscreve-se em registros múltiplos e não con- do um ponto de vista relacional, articulando as
gruentes. Para Dubet (1996), a heterogeneidade principais agências educativas da modernidade,
dos princípios da ação remete à heterogenei- sejam elas a família, a escola, o grupo de pares,
dade de sistemas de ação e à própria heteroge- o trabalho, entre outras. Considera-se que a ar-
neidade dos mecanismos de determinação das ticulação das propostas de socialização de cada
lógicas da ação. É essa pluralidade, segundo ele, uma delas é atribuição dos sujeitos, variando se-
que permite falar em ator e não em agente, pois gundo a origem, as expectativas de reprodução
a construção de uma coerência da experiência dos grupos, bem como de acordo com as experi-
e de uma capacidade de ação é exigida. As ex- ências individuais de cada um deles. Assim, para
periências sociais são combinatórias subjetivas melhor compreender o fenômeno da socializa-
de elementos objetivos. A sociologia da expe- ção, propõe-se pensar essa prática como um fato
riência não separa ator do sistema, não recusa social total, isto é, uma ação social vivida por
sua unicidade. O autor afirma, porém, que, se uma dinâmica processual, com base na troca de
a unidade das significações da vida social não mensagens simbólicas entre agências e agentes
está no sistema, ela só pode ser observada no socializados, o que envolve simultaneamente to-
trabalho do ator social, por meio do qual este dos os indivíduos, em todas as suas esferas de
constrói suas experiências. atuação, com a tarefa de manter o contrato e o
Uma sociologia da experiência incita que funcionamento da realidade social.
se olhe cada indivíduo como um intelectual, Trata-se de uma construção reflexiva
como um ator capaz de dominar, consciente- que ajuda também a circunscrever as instâncias
mente, pelo menos em certa medida, sua rela- de socialização numa perspectiva dialógica,
ção com o mundo. O ator não é redutível a seus tendo como eixo central a participação do su-
papéis, nem a seus interesses. O indivíduo não jeito social em seu processo educativo. Mais do
adere totalmente a nenhum deles. Este tem como que isso, leva a pensar essas instâncias em suas
tarefa articular lógicas de ação, as quais se ligam dimensões econômica, moral, estética e política,
a cada uma das dimensões de um sistema. O ator entre outras, dimensões responsáveis pela for-
é obrigado a combinar lógicas de ação diferen- mação de um habitus, sistema de disposições,
tes, e é a dinâmica gerada por essa atividade que tal como apontado por Pierre Bourdieu. No en-
constitui sua subjetividade e reflexividade. tanto, diferente das proposições desse autor, é
Em síntese, para os interesses desse ar- realçado o processo de socialização das forma-
gumento, considera-se inspiradora a maneira ções atuais como sendo um espaço plural ou
como Dubet (1996) identifica a participação dos híbrido de múltiplas referências identitárias. Ou
indivíduos na busca de uma coerência em suas seja, a modernidade caracteriza-se por oferecer
práticas. Questionando o paradigma clássico da um ambiente em que o indivíduo encontra con-
noção de socialização, ele oferece a categoria dições de forjar um sistema de referências que
experiência como capaz de explicitar o empe- mescle as influências familiar, escolar e midiá-
nho de articular a força das estruturas sociais tica, entre outras; um sistema de esquemas co-
na composição da ação individual. No comple- erente, mas mesclado e fragmentado. Embora
xo jogo da socialização compreende-se uma di- se saiba que no contexto moderno cada uma
versidade de dimensões, e o indivíduo é forçado das instâncias formadoras desenvolva campos
a articular e buscar a coerência entre elas. específicos de atuação, lógicas, valores éticos
e morais distintos, considera-se ainda que são
Uma proposta de observação os próprios indivíduos que tecem as redes de
sentido que os unificam em suas experiências
Com base no raciocínio exposto, o objeti- de socialização. É o indivíduo que tem a ca-
vo aqui é pensar a teoria da socialização segun- pacidade de articular as múltiplas referências

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propostas ao longo de sua trajetória. É o sujei- carne-se em uma experiência individual, ou seja,
to a unidade social na qual se podem efetivar primeiro em uma história individual que permi-
diferentes sentidos de ações, estas últimas de- ta observar o comportamento dos seres totais e
rivadas de suas múltiplas esferas de existência. não divididos em faculdades; segundo, a partir
Nele cruzam e interagem sentidos particulares de um sistema de interpretação que simultane-
e diferentes. Ele não é apenas o único portador amente considere os múltiplos aspectos (físico,
efetivo de sentidos, mas a única sede possível psíquico, sociológico) de todas as condutas.
de relações entre estes7.
Assim sendo, opta-se por uma perspec- O fato social total apresenta-se, pois,
tiva sociológica. Ou seja, busca-se a relação com um caráter tridimensional. Deve fa-
dialética entre indivíduo e sociedade. Procura- zer coincidir a dimensão propriamente
se uma forma de interpretar as ações sociais, sociológica com seus múltiplos aspectos
as práticas coletivas, com base em uma troca sincrônicos: a dimensão histórica, ou dia-
incessante entre as duas faces de uma mesma crônica; e, finalmente, a dimensão fisiop-
realidade (o indivíduo e as matrizes sociais de sicológica. Ora, é só nos indivíduos que
cultura). Analisando-se o processo de sociali- esta tríplice abordagem pode ser feita. [...]
zação com base na articulação das ações edu- A noção de fato social total está em rela-
cativas de várias instâncias produtoras de bens ção direta com a dupla preocupação, que
simbólicos, pretende-se compreender o jogo de para nós havia parecido única até agora,
reciprocidade, interação e hibridação simbólica de ligar o social e o individual de um lado,
estabelecido pelos sujeitos. o físico (ou o fisiológico) e o psíquico de
Trabalha-se com a hipótese da existência outro. (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 14-15)
de vários modelos de articulação entre as ma-
trizes de sentido responsáveis pela formação de Concordando com Paulo Henrique
sujeitos sociais singulares. Assim sendo, cabe Martins (2008), essa visão corresponde a uma
perguntar, qual é o papel de cada uma dessas leitura que resgata a participação do sujeito
instâncias na vida dos sujeitos sociais? Quais na construção do social. Trata-se de entender
são os pontos de ruptura ou convergência entre esse agente não mais como mero suporte me-
elas? Em outras palavras, como se estabelece a cânico, mas como capacidade expressiva, um
composição das disposições de habitus dos in- sujeito que se perceba no outro e que os dois
divíduos? Como pensar a ação, ou seja, a força sejam seres igualmente atravessados pelo
e a determinação das múltiplas agências socia- mesmo mundo. Nesse sentido, é uma forma
lizadoras e suas distintas referências na cons- de pensar a dimensão sistêmica sem perder de
trução do indivíduo da atualidade? vista o vivido. A socialização encarada com
Na tentativa de responder a essas inquie- base na noção de fato social total é concebida
tações buscou-se o referencial de Marcel Mauss não como uma realidade bruta, mas como um
(1974). Sendo fiel às suas formulações, a so- processo eficaz de reciprocidades de símbo-
cialização aqui pensada como fato social total los, ou uma rede diversificada de valores que
não chega a ser total pela simples reintegração se insere no mais profundo dos indivíduos,
dos aspectos descontínuos: familiar, escolar, re- em suas disposições8 de cultura. Desse modo,
ligioso, midiático de cada um deles. É preciso, evidencia-se uma maneira mais dialética de
ainda, que o fato social total – socialização – en- conceber o social; não há uma escolha de
7 - As noções de indivíduo, sujeito, ator e agente social são usadas como protagonismo entre indivíduo e sociedade,
sinônimos, ainda que se tenha consciência das distinções teóricas opera-
das pela sociologia e pela filosofia. Espera-se que essas reflexões deem 8 - Como diria Lahire (2004a), disposições, competências, habilidades,
suporte para considerações acerca dos usos e da necessidade dessas di- tendências, diferentes noções que explicitam diferentes formas de incor-
ferentes nomenclaturas. poração de culturas.

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pois ambos são duas totalidades articuladas de uma trajetória. Socializados e socializado-
em contextos histórica e socialmente bem res, no espaço de luta simbólica da socialização,
definidos. têm poderes, todavia, certamente diferenciados
Inspirado em uma perspectiva constru- entre si. Assim, debruçar-se sobre as articula-
tivista, na acepção de Corcuff (2001), o pro- ções entre as agências socializadoras a partir da
cesso de socialização aqui matizado enfatiza, ótica relacional com o indivíduo é um convite
pois, a relação de mão dupla entre indivíduo para o entendimento da constituição dos po-
e sociedade. na construção da realidade social. deres e domínios, a luta e a indissociabilidade
Potencializando-se o processo de socialização simbólica entre indivíduos e sociedade.
com o conceito de fenômeno social total, res- A proposta do processo socializador
salta-se o aspecto simbólico das trocas como desta reflexão exige ainda o conceito de hibri-
fundamento último das relações sociais entre dação. Ele parece ser o mais adequado para as
pessoas morais em suas múltiplas dimensões. O investigações que buscam observar o processo
valor da socialização não está, assim, na reci- de construção de estruturas mentais e práticas
procidade, na dádiva simbólica simplesmente, promovidas nas difusas, diversas e heterogêne-
mas no vínculo essencial entre indivíduo e so- as experiências de socialização da contempo-
ciedade, o que reforça o entendimento relacio- raneidade. Sem planejamento, como resultado
nal dos distintos projetos das instâncias e agen- imprevisto da mundialização das culturas, a
tes socializados. Dessa forma, tais formulações hibridação designa um processo intercultural
auxiliam no juízo sobre as relações de interde- dinâmico, fragmentado, mas também criativo;
pendência e simultaneidade entre a constituição individual e coletivo, mas, ao mesmo tempo,
da sociedade, a constituição de uma cultura e, contraditório e tenso, pois resulta do enfren-
por fim, porém não em ordem de importância, a tamento de valores culturais dispostos em uma
constituição do indivíduo – três momentos pa- hierarquia de poderes e privilégios.
ralelos da construção da sociedade realizados De certa forma, o conceito de hibrida-
pela socialização (SETTON, 2009b). ção, com base em uma perspectiva processual,
De fato, concordando com Jean Michel permite pensar que o processo de socializa-
Berthelot (1988), a socialização reflete um cam- ção, seu resultado e as disposições de cultu-
po de investigação que mescla simultaneamen- ra individual estão em constante construção.
te estruturas, atores, sentido e história. Pensado Como diria Nestor García-Canclini (2003), em
a partir de um amplo panorama, o processo de um mundo tão fluidamente interconectado,
socialização explicita a ideia de continuidade, as sedimentações identitárias organizadas em
algo que tem uma biografia, que demanda uma conjuntos históricos mais ou menos estáveis
compreensão diacrônica dos fenômenos produ- são reestruturadas por meio de conjuntos de
tores de sentido. Afastando-se das leituras cris- valores interculturais e, portanto, interétnicos,
talizadas acerca dessa noção, empenha-se em transclassistas e transnacionais.
aproveitar seu potencial analítico explorando a Ao estudar processos socializadores
relação dialógica presente em todos os proces- contemporâneos, é forçoso conhecer, sobretu-
sos de interação social (SETTON, 2009a). do, as variadas formas de articulação, a in-
Recuperando a ambiguidade dos proces- terdependência das matrizes e entender como
sos socializadores, ora vistos como controle e são produzidas as mesclas, as hibridações, nas
condicionamento, ora vistos pela perspectiva disposições individuais. Não se pretende des-
da integração e do pertencimento, é preciso ad- crever somente as combinações interculturais,
vertir que, em todo escopo de análise, deve-se mas objetiva-se circunscrever as relações es-
identificar a variação da força dos recursos que truturais de causalidade (a conjuntura social
cada agente ou instituição acumula ao longo que a predispõe) e, notadamente, interpretar as

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relações de sentido que se reconstroem nessas doras com base nas práticas de lazer entre
misturas (o que se tem a partir daí). O pro- jovens brasileiros ofereceu pistas sobre o es-
cesso de hibridação em uma sociedade injus- pírito de um tempo em que os determinismos
ta e constituída pela distribuição desigual de classistas não dão mais conta de expressar
recursos não pode ser pensado apenas como a totalidade das diferenças ou semelhanças
uma fusão de valores interculturais. Ao con- entre eles. Outras variáveis de marcação ou
trário, exige-se que, junto a essa perspectiva, distinção social, como as mídias, o processo
fique-se atento aos conflitos nele produzidos. de mundialização e o grupo de pares, são im-
Tal como diz García-Canclini (1997), o processo portantes para o entendimento da realidade
de hibridação espelha um conjunto de estraté- cultural desse grupo. No entanto, como essa
gias de entrada e saída da modernidade, estra- articulação se realiza na experiência indivi-
tégias que subjugam ao mesmo tempo em que dual? De que forma as experiências socializa-
ampliam realizações. doras de um indivíduo podem revelar o pro-
Propõe-se, então, uma análise na qual a cesso de incorporação de disposições híbridas
interdependência entre as instâncias de socia- de habitus?
lização e os indivíduos faça-se presente. Dessa As questões são muitas e o campo de
forma, na tentativa de ampliar o escopo das evi- investigação é vasto. Por ora, a reflexão apre-
dências de um hibridismo cultural, poder-se-ia sentada pretende estimular os estudos relativos
investigar, mais detidamente, casos concretos de aos processos socializadores nos âmbitos ins-
articulação de sentidos vividos e expressos por titucional e individual, bem como auxiliar no
uma experiência individual. Tal proposta é, pois, difícil procedimento de investigar a construção
bastante provocativa. Existe e é possível concre- das disposições de habitus com base na obser-
tizar empiricamente a articulação de interdepen- vação cuidadosa dos mecanismos e estratégias
dência entre as matrizes de cultura? Como com- formadoras. Provoca a leitura sobre o alcance
preender o imbricado e conflituoso processo de e o limite de cada uma das matrizes de cultura
construção das disposições híbridas de habitus? e, simultaneamente, permite perscrutar sobre
Em trabalho anterior (SETTON, 2009b), o movimento de ascensão de novas agências
a análise das híbridas experiências socializa- socializadoras.

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Recebido em: 27.10.2010

Aprovado em: 15.02.2011

Maria da Graça Jacintho Setton é professora de Sociologia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e
livre-docente pela mesma universidade.

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