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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

CURSO DE HISTÓRIA

Luiz Carlos Fink

OS DESCAMINHOS DO JUDICIÁRIO À ÉPOCA DO EPISÓDIO DOS MUCKER

SÃO LEOPOLDO
2010
1

Luiz Carlos Fink

OS DESCAMINHOS DO JUDICIÁRIO À ÉPOCA DO EPISÓDIO DOS MUCKER

Trabalho de conclusão de curso, apresentado como


requisito parcial para a obtenção do título de
licenciado em História, pelo Curso de História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos -
UNISINOS

Orientador: Prof. Dr. Martin Dreher

São Leopoldo
2010
2

À minha família e, em especial, à minha esposa


Vânia e aos filhos Luiz Rodrigo e Luíza.
3

AGRADECIMENTOS

Ao professor Dr. Martin Dreher pelo incentivo e orientação para que pudesse
concluir minha pesquisa e aprimorar os conhecimentos e pela inspiração e apoio na
definição do meu tema, além da colaboração com bibliografias que ajudaram a deliberar
parte do conteúdo.

À Universidade do Vale do Rio dos Sinos representada pelo seu reitor Prof. Dr. Pe.
Marcelo Fernandes de Aquino e ao vice-reitor pela colaboração com meu estudo,
possibilitando a realização deste trabalho.

Ao incentivo constante de todos os participantes do Curso de História, não me


deixando desanimar nos momentos difíceis que surgiam ao longo da pesquisa.

Às bibliotecárias do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em especial, à


Jaqueline pela colaboração com indicação de livros e opiniões pertinentes ao tema.

À minha família e amigos pela colaboração e compreensão com os nossos deveres, em


especial a minha esposa pelas dicas de formatação e revisão.

E a todos os amigos, alunos e professores que com suas ideias, opiniões e aulas
inspiradoras dentro e fora da faculdade deram base para continuar em meu crescimento
científico e profissional.
4

“O trabalhador do conhecimento é um ativo


e não um custo‖.

Peter F. Drucker
5

RESUMO

Encaminhados como réus, os Mucker mesmo estigmatizados, acabaram sendo todos


absolvidos. O Poder Judiciário, nesta época em que os valores de cidadania estavam em
gestação, se encontrava envolvido com uma série de questões administrativas e políticas, e
não dava conta da pronta prestação jurisdicional. Frente a tal situação de fragilidade do
Judiciário da época, se observou que os magistrados assumiam várias atribuições não
inerentes a sua atividade jurisdicional, o que gerou uma série consequências jurídicas-
processuais de impacto sobre a demanda criminal a que responderam os Mucker. Por causa
desta ineficiência do órgão judicante a que estava afeto o julgamento do processo dos Mucker
e devido às mazelas do sistema judicial, muitos dos envolvidos no episódio dos Mucker,
permaneceram aguardando o julgamento na prisão, por vários anos, sob a custódia do Estado
Imperial, embora não houvesse uma sentença condenatória transitada em julgado.

Palavras-chave: Mucker. Poder Judiciário.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7
1 O CASO MUCKER E OS DESCAMINHOS DO JUDICIÁRIO NA ÉPOCA ............. 15
2 O PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL ............................................................................. 28
3 O PODER JUDICIÁRIO NO RIO GRANDE DO SUL E A ORIGEM DOS JUÍZES 38
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 48
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 52
7

INTRODUÇÃO

Uma análise que preze como absolutamente necessário o rigor metódico e intelectual
do pesquisador tem sintonia com o pensamento de Paulo Freire (1996), pelo fato de ver o
sujeito como um curioso na busca da construção do saber assimilado de forma crítica, com
questionamento e problematização da realidade, seguindo por uma linha metodológica de
estudar e entender o mundo, relacionando os conhecimentos adquiridos com a realidade de
sua vida e o seu meio social. Ensina Freire: "não há ensino sem pesquisa nem pesquisa sem
ensino" e este pesquisar, buscar e compreender criticamente só ocorrerá se o indivíduo souber
pensar; e saber pensar é duvidar de suas próprias certezas, questionar suas verdades.
Verificando a realidade brasileira atual, vivenciamos há pouco um período de pleito
eleitoral. Mil duzentos e quarenta e oito candidatos à eleição foram barrados pela Lei da Ficha
Limpa. Outros tantos tiveram a prestação de contas refutada pelos tribunais. Todos foram
jogados na berlinda por conta do Poder Judiciário que não decidiu com a esperada agilidade.
A indefinição se estende para o resultado das eleições, ocasionando impacto nas futuras
bancadas na Câmara e no Senado, cujos candidatos ―pendurados‖ receberam votos. Como a
votação ficou empatada em 5x5, caberá ao 11º Ministro do STF que vier a ser indicado pelo
Presidente da República até o final do ano dar o ―voto de Minerva‖ no Plenário do STF, cujo
órgão possui poder jurisdicional para conferir o atributo da coisa julgada.
Essa situação de indefinição verificada hoje no Judiciário nos remete ao passado, mais
precisamente a pensar sobre o caso dos Mucker. Esse episódio ocorrido há mais de 100 anos
atrás, também, foi jogado na berlinda devido à notícia divulgada por um jornal da capital do
nosso Estado sobre a existência de 500 homens armados no Ferrabrás. Tal sensacionalismo
influenciou decisivamente a opinião pública à época das investigações policiais de maio/1873
sobre os Mucker. Isso ocorreu depois de J.J.Mauer não ter comparecido para prestar
depoimento perante a autoridade policial, levando a sindicância a ser encaminhada ao chefe
de polícia da província. E, mesmo depois de consumado o massacre dos Mucker, os
sobreviventes ainda se viram diante de um Poder Judiciário moroso e inoperante em todo o
percurso dos julgamentos, decorrência de uma série de interesses conflitantes em disputa nos
bastidores da política e da administração da sociedade da época.
8

Richard Graham (Publicações – Braudel Papers – Edição n. 15)1, sustenta que o


clientelismo era a rede de união política do Brasil do século XIX cimentando todos os atos
políticos. Essa ―forma de cultura política continua a talhar ainda hoje as decisões no
Congresso, no Judiciário e nas atividades cotidianas de todos os níveis da administração
pública‖ (GRAHAM, 1996, p. 1).
De outra faceta, as agitações dos Mucker ocorreram dentro de um período de
efervescência ideológica. O positivismo exercia grande penetração entre a intelectualidade da
época, quando as estruturas do Império começam a dar sinais de fraqueza. A rápida
permeabilidade desta corrente ideológica delineada pelo francês Auguste Comte
acompanhava o espírito de ordem e progresso. Surgiam novas tecnologias como a iluminação
a gás em São Paulo (1873) e várias invenções científicas. Naquele tempo, no campo da
política, sob a influência do positivismo esteve em cena a propaganda republicana com a
criação do Clube Republicano, em 1870, assumindo uma posição política na defesa das
reformas. A estrutura do Estado Imperial se mostrava enfraquecida enquanto transpassava
uma doutrina da ordem pública, representada por um regime ―cínico como um cafetão metido
a fiscal dos costumes‖ (TOLEDO, 2001), desenvolvendo nas pessoas uma ―sábia resignação‖
em relação a seu status quo ante.
Neste período, o Estado Nacional Brasileiro já estava completamente consolidado.
Não estava, ainda, aberto a novas ―visões de mundo‖ ou a doutrinas críticas, e as
manifestações coletivas de protesto logo eram tratadas como subversivas, destrutivas e
revolucionárias, e violentamente reprimidas.
No período de 1873/1875 houve dois movimentos importantes no país: um no nordeste
com a revolta do ―Meio-Quilo‖ 2 e outro no sul, o movimento dos Mucker. Em ambas as

1
Richard Graham , é professor de História na Universidade do Texas e autor de A Grã-Bretanha e o início da
modernização no Brasil, 1850-1914 e Patronage and Politics in Nineteenth-Century Brazil (1990), que sairá em
breve pela Editora da Universidade do Rio de Janeiro com o título Clientelismo e política no Império. Este
ensaio baseia-se em um seminário dado em nosso Instituto em maio de 1996 e reproduz alguns trechos da última
obra citada.
2
Sedição do quebra-quilos (1874/1875) – A Revolta do Quebra-Quilos ocorreu nos anos de 1874 e 1875, nas
províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, em reação á medida do Governo Imperial
de implantar o sistema métrico francês, substituindo o antigo sistema de pesos e medidas no Brasil. A lei foi
implantada no ano de 1862 e estabelecia um prazo de dez anos para que fosse gradativamente substituída. Neste
período, a referida lei previa que o ensino do novo sistema métrico deveria ser feito em escolas primárias, além
da distribuição pelo governo de tabelas de conversão. Os governantes tinham a intenção de, com esta medida,
ordenar e civilizar o território, porém, os homens livres e pobres do Nordeste não compartilhavam desta idéia,
uma vez que, seu "mundo", possuía uma ordem própria e eles já estavam familiarizados com o antigo sistema,
que fazia parte de seus hábitos e costumes. Desconfiada de que estava sendo roubada e enganada através da
conversão de um sistema de medidas para outro, a população decidiu invadir as feiras e praças para destruir os
instrumentos de medição, passou também a atacar "as câmaras municipais, coletorias e cartórios para queimar e
rasgar documentos públicos relativos a registros de propriedades, hipotecas e listas de impostos, e assaltaram
cadeias para soltar os presos". Disponível em: www.wikipédia.com.br. Acesso em: 08 nov.2010
9

situações, as agitações tiveram veemente reprimenda pela força pública.


Embora o art. 5º da Constituição Imperial outorgada em 1824 rezasse que ninguém
poderia ser perseguido por motivo de religião, desde que respeitasse a oficial e não atingisse a
moral pública, na prática tal garantia da Lei Maior não era respeitada.
Segundo Toledo (2001), baseado na crônica legada de Machado de Assis, ―O Velho
Senado‖, ao evocar o tempo em que ele realizava as sessões do Senado, por ―detrás da
aparente civilidade daqueles tempos, escondia-se, e mal, a fatuidade. Brincava-se de
parlamentarismo à inglesa num país de escravos. O Senado era como um salão de madame‖.
José Murilo de Carvalho apontou, com base no censo de 1872, meio século após a
independência, que somente 16% da população estava alfabetizada, e o panorama não era
nada promissor. A Igreja Católica sequer incentivava a leitura da Bíblia. Na Colônia ―só se
via mulher aprendendo a ler nas imagens de Sant' Ana Mestra ensinando Nossa Senhora e
apenas 13% da população total, excluídos os escravos, tinha direito a votar‖ (CARVALHO,
2002, p. 23).
Neste cenário, a maioria da população era incapaz de ler um jornal, um decreto do
governo, um alvará da justiça ou uma postura municipal e entre os analfabetos incluíam-se
muitos dos grandes proprietários rurais, como esclarece J. Murilo Carvalho (2002).
Obviamente à época em estudo não existiam as condições políticas e sociais para o
exercício pleno da cidadania. Conseguintemente, não seria de se esperar a convivência
pacífica dentro de relações de alteridade entre as pessoas e os grupos dentro da sociedade.
Por falar em alteridade, importante lição a despeito de relações de alteridade vem
tirada do francês Michel de Montaigne:

Mas, para retornar a meu assunto, acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de
selvagem, pelo que me contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie
aquilo que não é de costume; como verdadeiramente parece que não temos outro
ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das
opiniões e os usos do país em que estamos (MONTAIGNE, 2000, p. 307).

A dificuldade da sociedade da época em aceitar a convivência com pessoas e grupos


com outras visões de mundo era patente. Ora, dentro da realidade da época, o modo de vida e
a visão de mundo dos Mucker contrastavam com o costume da época. As condições políticas
e sociais refletiam a incapacidade da sociedade de gerir mudanças, sem se verem tolhidas pelo
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senso comum, dentro de processo natural de assimilação cultural em convivência social


pacífica.
O ambiente político, ideológico e social era impróprio ao afloramento de
características de alteridade na sociedade da época e de absorver características culturais
diferentes. Os Mucker se isolaram em si mesmos e os colonos se indignaram contra o seu
sectarismo, cada qual passando a interagir socialmente de modo interdependente do outro. Os
Muckers são estigmatizados pela sociedade na medida em que se voltavam a interagir como
um grupo apartado.
Erving Goffman (1993) mostra grande interesse na sua obra sobre os casos desviantes
e traz um ensaio que nos permite examinar alguns aspectos sociais que a estigma pode atingir
e pela forma como a sociedade influencia no comportamento do estigmatizado, levando-o a
perda da identidade pessoal e ao comportamento destrutivo e anti-social.
A descrição de Dickie (1996) mostra que o estigma imposto aos Mucker não se
explica pela desigualdade social ou econômica entre os dois grupos que se opunham,
inclusive exemplifica que entre os Mucker existiam famílias ricas e com prestígio social. Sem
embargo, colonos e Mucker formavam uma comunidade relativamente homogênea, porém
não era esta a percepção daqueles que ali moravam na colônia de São Leopoldo e nos seus
arredores que se envolveram no conflito dentro do campo social da época. Mas, o que se
entende por sociedade? Neste trabalho de pesquisa nos valemos do seguinte conceito:

(...) cada pessoa singular está realmente presa; está por viver em permanente
dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas,
assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que as
prendem‖. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São
mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais e, decerto, não
menos fortes. ―E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em
relação a outras, a ela e a nada mais, que chamamos ―sociedade‖ (...) (ELIAS, 1994,
p. 21).

Para compreender as relações de poder, discriminação e exclusão social se recorre às


categorias apresentadas pelo prestigiado Nobert Elias. No presente estudo se aborda as
representações sociais dos Mucker e dos colonos, através da análise das relações estabelecidas
entre os dois grupos como categorias diferentes: entre os estabelecidos e os outsiders. Ao
passo que os colonos incorporaram os valores da tradição e da ―boa sociedade‖ da época, os
Mucker seriam os diferentes, vivendo estigmatizados por todos os atributos associados com a
anomalia, como a delinquência, a violência e a desintegração familiar, social, política e moral.
11

Com a radicalização, o estopim logo se deflagrou em hostilidades mútuas praticadas


entre dois grupos sociais que passaram a se debater em armas até a exterminação dos líderes e
da resistência do movimento Mucker.
Dentro deste panorama, o presente trabalho tem por objetivo contribuir para o estudo
da realidade jurídica e social da época em que houve os abalos provocados pelos conflitos
entre os Mucker e os colonos. Orientados por esta meta, recorremos ao teórico Pierre
Bourdieu como embasamento teórico para compreensão e análise da realidade, sob o prisma
dos conceitos como habitus, campo social e capitais, além do arrimo de um vasto acervo
bibliográfico.
Pierre Bourdieu é um sociólogo francês de alta relevância para a Sociologia do século
passado, destacando-se por sua peculiaridade de romper fronteiras disciplinares e fomentar
estudos em diversos campos das Ciências Sociais, tratando de diversificadas temáticas,
inclusive na área da Sociologia do Direito. No presente estudo se trabalhou empregando a
teoria deste autor relativa aos campos e capitais para análise do Direito como espaço de
conflito entre os agentes e a teoria do habitus para a explicação dos cargos jurídicos ocupados
pelos operadores do direito, que provenientes das ―classes‖ dominantes, tenderam a
reproduzi-lo em suas atitudes e percepções.
No primeiro capítulo se apresenta uma revisão bibliográfica dos autores que estudaram
o movimento dos Mucker, desde Schupp que dá relevância ao discurso dos colonos
reproduzidos em seu livro até aos estudos mais recentes, que buscaram resgatar o discurso dos
Mucker e reconstruir a realidade daquela época. De extrema relevância para o presente
trabalho foi a analise da obra de Dickie (2000) ao dar voz ao discurso dos Mucker
apresentados a partir do inquérito policial e, principalmente, nos processos judiciais a que
estes responderam. Dickie analisou os autos judiciais apresentando um profundo estudo
antropológico que emergiu a partir do discurso dos Mucker. Ela explorou as relações travadas
entre os colonos e Mucker ao estudar os processos judiciais e buscou desvendar as
circunstâncias para dar sentido a este conflito. Os acontecimentos jurídicos, policiais e sociais
são retratados pela autora com muita sensibilidade e, em destaque, os fatos que influenciaram
o julgamento dos Mucker. Inobstante as agressões mútuas sofridas por colonos e Mucker,
apenas estes foram inseridos como réus a partir do Caderno Policial e permanecerem reclusos
por muito tempo. Durante a fase judicial, detectou-se falhas procedimentais nos feitos
desencadeados contra os Mucker e a debilidade da estrutura do Judiciário da época, num
período em que a cidadania não estava consolidada, a delonga na prestação jurisdicional veio
em prejuízo dos réus que ainda permaneciam presos aguardando o julgamento derradeiro.
12

O segundo capítulo é uma abordagem da situação do Poder Judiciário no Brasil,


louvando-se este trabalho na rica contribuição de Nequete (2000), descrevendo-se a situação
da magistratura e a evolução legislativa vigorante no Brasil antes da independência e, em
especial, com maiores detalhes, as principais mudanças legais ocorridas durante o período
Imperial. Isso é importante para situação do contexto legal e jurídico da época do movimento
dos Mucker e para se entender a problemática desta pesquisa. Constamos que a nível nacional
a situação da ineficiência e a morosidade do Judiciário. Em todo o território nacional a
magistratura assumia funções administrativas e políticas, o que não foi diferente daquela
conjuntura encontrada em termos regionais no Rio Grande do Sul.
No último capítulo se enfrenta o tema pertinente à situação do Poder Judiciário no Rio
Grande do Sul sempre atrelado às mudanças havidas na legislação a nível nacional ao longo
do tempo. Verificamos as origens dos Juízes. Delineou-se o grau de desenvolvimento
alcançado pelo Poder Judiciário gaúcho e a sua estrutura à época do movimento dos Mucker.
Este arcabouço do Judiciário se revelou ineficiente e moroso, chegando ao ponto de
comprometer o julgamento dos processos judiciais envolvendo os Mucker. Nestes processos,
houve muitas falhas processuais, além da estratégia dos colonos e o formalismo jurídico ter
contribuído a que os Mucker permanecessem na prisão por longos anos aguardando
julgamento para, ―in fine‖, todos serem absolvidos.
Enfim, sistematizando, o ponto determinante do objetivo deste trabalho é investigar, a
partir do embasamento teórico, o contexto jurídico e social daquela época para encontrar uma
resposta sobre o que levou aos erros e à morosidade da instrução dos processos judiciais do
caso dos Mucker. E, assim, se chegar à resposta de como as relações estabelecidas no campo
social e jurídico e, em especial, as circunstâncias e a estrutura frágil do Judiciário. No tocante
ao campo jurídico envolvendo o Direito e seus operadores, observar como estes influenciaram
o julgamento final da causa dos Mucker, notadamente devido às falhas procedimentais ou de
Juízo de valor, resultando como veredicto final a absolvição de todos os acusados pelo Poder
Judiciário.
Nossa hipótese de trabalho está alicerçada na suposição da fragilidade do Poder
Judiciário à época imperial, ligada ao excesso de acúmulo de atribuições durante a prática da
magistratura. Por assumir os Juízes postos político-administrativos além da suas funções
jurisdicionais originais, esta situação poderia justificar a morosidade em face dos erros de
procedimento (―error in procedendo‖).
13

A pesquisa adota o método qualitativo. Por método qualitativo entendemos aquele que
privilegia uma definição na visão estrutural e com objetivos de contemplar mais o campo em
estudo e, assim relativamente às metodologias da pesquisa qualitativa são entendidas como:

(...)... aquelas capazes de incorporar a questão do SIGNIFICADO e da


INTENCIONALIDADE como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais,
sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação,
como construções humanas significativas (MINAYO, 1999, p. 10).

Entendemos, assim como Minayo (1994, p. 94) categoria analítica como ―... aquelas
que retêm historicamente as relações fundamentais e podem ser consideradas balizas para o
conhecimento do objeto nos seus aspectos gerais. Elas mesmas comportam vários graus de
abstração, generalização e de aproximação‖.
Propomos como categoria analítica à integralidade, isto é, o todo, considerando as
dimensões da atuação do Judiciário, o âmbito da prática dos magistrados ao assumir funções
alheias a jurisdição no campo político e administrativo e os efeitos quanto a qualidade da
prestação jurisdicional oferecida à sociedade da época.
Partindo de alguns recortes de contexto, a saber: o estudo dos processos dos Mucker, e
a análise dos dois grupos que se opunham, os Mucker e os colonos, se desvenda significados e
relações estabelecidas no Judiciário e na sociedade da época.
A atuação do Judiciário se revelou muito frágil naquela época quando a cidadania
ainda estava em gestação, sendo comum se verificar o desvio de funções da magistratura ao
assumir cargos não inerentes a atividade jurisdicional e os usuários deste serviço submetidos a
morosidade da prestação jurisdicional e aos efeitos das anulações dos julgados.
Segundo Minayo (1994: p.94) as categorias empíricas ―... são construídas com
finalidade operacional, (...)‖ e estas categorias têm por propriedade alcançar ―(...) apreender as
determinações e as especificidades que se expressam na realidade empírica‖.
Definimos ―a priori‖, visando o trabalho as seguintes categorias empíricas: a
estigmatização sofrida pelos Mucker, a diferenciação das categorias entre os estabelecidos e
outsiders, o formalismo jurídico, o fluxo e o significado da integralidade. Consideram-se as
concepções, sentimentos, compreensões e sentidos distintos que emergem do trabalho de
pesquisa a revelar especificidades, movimentos, contradições da realidade empírica expressas
nas possibilidades e impossibilidades de materialização da integralidade.
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Assim, com base em Minayo (1994), concebemos campo de pesquisa como o recorte
que o pesquisador faz em termos de espaço, representando uma realidade empírica a ser
estudado a partir das concepções teóricas que fundamentam o objeto da investigação.
Através da leitura de vários livros pesquisados, obteve-se uma base enriquecedora para
o desenvolvimento do trabalho. Outra fonte de pesquisa foi a internet, que colaborou
principalmente com informações atuais sobre o tema. Também, revistas e artigos encontrados
durante o processo de pesquisa foram úteis para nosso trabalho.
O estudo aprofundado de Lenine Nequete, ―O Poder Judiciário no Brasil a partir da
Independência‖, obra esta prestigiada pelo próprio Supremo Tribunal Federal foi muito
profícua para a evolução do tema da situação do Judiciário no Brasil à época estudada.
Contribuiu em nível de aprofundamento de estudo do Judiciário na Província do Rio
Grande do Sul em termos de organização judiciária e de história, a obra publicada pela
Revista de Jurisprudência do TJRGS, o Poder Judiciário no Rio Grande do Sul, e a publicação
do TJRS por ocasião do Projeto Memória do Judiciário Gaúcho: ―Tribunal de Justiça do RS
125 Anos de História 1874-19993‖.

3
A obra faz parte do Projeto Memória do Judiciário Gaúcho é de autoria de Loiva Otero Félix, Carolina,
Georgiadis Carolina e Daiela Oliveira Silveira.
15

1 O CASO MUCKER E OS DESCAMINHOS DO JUDICIÁRIO NA ÉPOCA

O ser humano por sua natureza é um ser sociável e, como tal, lhe é intrínseca a
necessidade de estabelecer relações. Na família e na sociedade e, em particular no âmbito da
sua vivência constrói relações. Essas relações estão inseridas em um conjunto de regras que
regulam a vida no espaço temporal e social.
É possível afirmar que a essência de uma instituição, seja familiar ou social qualquer,
se manifesta pelas relações interpessoais. Essas relações não devem ser buscadas na
materialidade das estruturas físicas, porque aí se constituir em ―superficialidade‖.
Pierre Bourdieu (1989:227-8) introduz o conceito de campo a partir do primado do
pensamento de forma relacional em oposição a uma visão do mundo social de maneira real,
concreta ou substancialista:

(...) A noção de campo é, em certo sentido, uma estenografia conceitual de um modo


de construção do objeto que vai comandar - ou orientar – todas as opções práticas da
pesquisa. (...) Por meio dele torna-se presente o primeiro preceito do método que
impõe que se lute por todos os meios contra a inclinação primária para pensar o
mundo social de maneira realista ou substancialista, pensando-o de forma
relacional(...).

Este trabalho tem por embasamento teórico a relação entre os conceitos de habitus e
campo social em Pierre Bourdieu. Acreditamos que a partir dos conceitos de habitus e campo
social teremos um respaldo na teoria para identificar e compreender a realidade do Judiciário
e situar a posição dos Mucker durante o processo que levou ao resultado de que no final da
demanda judicial todos os réus fossem absolvidos.
Inobstante a aplicação dos estudos de Pierre Bourdieu ocupe um lugar de destaque no
sistema de ensino, deve ser registrado uma ressalva da real intenção deste teórico ter buscado
desvendar a mecânica de funcionamento dos diferenciados espaços sociais, citando-se: as
lutas internas, as hierarquias, as condutas existentes nas inter-relações entre o indivíduo e a
sociedade, entre estrutura e ator.
Nogueira e Nogueira (2004) defendem que a problemática comum que permeia o
conjunto da obra de Bourdieu é a compreensão da ordem social de modo que esquive tanto do
objetivismo como do subjetivismo, elaborando uma construção teórica da prática ou do
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conhecimento praxiológico. De tal modo, o objetivismo leva a considerar a estrutura/realidade


social como transcendente ao indivíduo, como algo que determina as ações individuais de fora
para dentro. Ao passo que o subjetivismo leva a ponderar a ordem social como resultado
consciente e intencional da ação individual, pois as ações são determinadas de dentro para
fora. Daí, Bourdieu buscar superar esta dicotomia ao esposar a tese de que o conhecimento é
praxiológico. O conhecimento praxiológico tem por objetivo apreender a articulação entre o
plano de ação ou das práticas subjetivas e o plano das estruturas; investigar as relações
dialéticas entre estrutura e ator e investigar o processo de ―interiorização da exterioridade e de
exteriorização da interioridade‖.
Loïc Wacquant4, com base na obra de Bourdieu, faz um estudo da gênese do conceito
de habitus, argumentando:

(...) Habitus é uma noção filosófica antiga, originária no pensamento de Aristóteles e


na Escolástica medieval, que foi recuperada e retrabalhada depois dos anos 1960
pelo sociólogo Pierre Bourdieu para forjar uma teoria disposicional da acção capaz
de reintroduzir na antropologia estruturalista a capacidade inventiva dos agentes,
sem com isso retroceder ao intelectualismo Cartesiano que enviesa as abordagens
subjectivistas da conduta social, do behaviorismo ao interaccionismo simbólico
passando pela teoria da acção racional. A noção tem um papel central no esforço
levado a cabo durante uma vida inteira por Bourdieu (1972/1977, 1980/1990,
2000/2001) para construir uma ―economia das práticas generalizada‖ capaz de
subsumir a economia, historizando e, por aí, pluralizando as categorias que esta
última toma como invariantes (tais como interesse, capital, mercado e
racionalidade), e especificando quer as condições sociais da emergência dos actores
económicos e sistemas de troca, quer o modo concreto como estes se encontram, se
propulsionam, ou se contrariam uns aos outros. (...)

Como se vê, este é o contexto em que Bourdieu reintroduz um conceito dando uma
nova dimensão a ele no seu complexo esquema para dar uma explicação à articulação da
estrutura com o agente social, que é o conceito de habitus, buscando enfocar a mediação entre
o sujeito e as relações objetivas do mundo social.
O habitus assim seria a mediação entre a estrutura e a prática, sendo que cada sujeito
vivenciaria uma série de experiências, em função de sua posição nas estruturas sociais, que
efetivariam sua subjetividade, constituindo-se uma espécie de ―matriz de percepções e
apreciações‖, que orientam suas ações nas situações posteriores.

4
Pierre Bourdieu Disponível em:
http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/wacquant_pdf/esclarecerohabitus.pdf. Acesso em: 06 nov. 2010.
17

Esclarecem Nogueira e Nogueira (2004, p. 28) que habitus consistiria no produto da


incorporação das estruturas sociais e da posição de origem do sujeito, que passaria a
―estruturar as ações e representações dos sujeitos‖. O habitus serve como uma matriz de
percepção, orientação e de apreciação da ação que se realiza em determinadas condições
sociais. Bourdieu denomina como processo de interiorização da exterioridade e de
exteriorização da interioridade, o que se dá pelo meio do habitus, fazendo com que o passado
sobreviva no momento atual e tenda subsistir nas ações futuras dos agentes sociais.
A par destas ideias, constituindo-se o habitus pelas marcas da posição social que o
indivíduo ocupa e com os símbolos, as crenças, os gostos e as preferências que caracterizam
essa posição social, o que é incorporado pelos sujeitos, não necessariamente o é de forma
consciente. Ao partir desta matriz geradora de ações, os indivíduos agem de acordo com o
senso prático, adquirido no momento histórico em que vivem.
Novamente Nogueira e Nogueira (2004, p. 33) referem que a incorporação do habitus
ocorre quando os indivíduos:

(...) agiriam orientados por uma estrutura incorporada, um habitus, que refletiria as
características da realidade social na qual eles foram anteriormente socializados.
Instalam, assim, uma importância à dimensão do aprendizado passado e afirmam
que este está no princípio do encadeamento das ações; portanto, a prática é resultado
do habitus incorporado a partir de uma trajetória social (...). (grifamos)

Bourdieu classifica o conceito de habitus da seguinte forma: em hábitus primário


como aquele transmitido de maneira implícita, inconsciente, pela educação familiar e regras
de classe, ao passo que o habitus secundário é explícito, metodicamente organizado,
proveniente da educação escolar, da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa.
Ora, na medida em que as condições sociais e históricas são modificadas,
conseguintemente, o habitus se altera e vai incorporando outros esquemas de percepção e
ação, que irão contribuir para a conservação ou a transformação de suas estruturas. A prática é
que vai se realizar quando o habitus entra em contato com uma situação. Portanto, a prática é
o produto de uma relação dialética entre uma situação, que mais tarde foi denominado de
campo social, e um habitus. O campo, então, é o local de mediação entre o autor e a estrutura.
Ortiz (1983) diz que Bourdieu conceitua campo como um espaço social constituído de
uma estrutura própria e relativamente autônoma em relação a outros espaços sociais, com uma
18

lógica própria de funcionamento e de estratificação e princípios que regulam as relações entre


os agentes sociais.
Nogueira e Nogueira (2004) apontam que Bourdieu leva em conta que cada campo
possui hierarquias e disputas, entre dominantes e dominados, por determinados bens
simbólicos e, logo, por posições sociais. No interior de cada campo os indivíduos passariam a
lutar pelo controle da produção e legitimação dos bens produzidos.
Segundo, Nogueira e Nogueira (2004), para analisar a realidade social, Bourdieu
apropria-se do conceito marxista de bem (capital) para ampliá-lo para capital cultural,
econômico, social e simbólico. Disso decorre que o bem teria graus de importância
diferenciados dentro de cada campo social e passaria a ser entendido como uma relação social
que dá poder aos possuidores deste capital frente aos despossuídos. Neste esquema, a pura
posse destes capitais, em graus diferenciados dentro de cada campo específico, determinaria
as posições sociais de cada indivíduo. Os indivíduos ganhariam maior prestígio e poder na
sociedade em geral ou no campo específico de produção simbólica, na medida em que fossem
capazes de produzir, identificar, apreciar e usufruir das produções consideradas superiores.
Voltando ao tema de estudo, depois de realizado este recorte necessário na teoria de
Bourdieu para a compreensão da realidade da época dos Mucker e do processo de constituição
da prática do Judiciário, se passará a estudar as práticas jurídicas e o efeito destas sobre o
processo dos Mucker, cuja analise se dá sob à luz dos conceitos de Bourdieu.
Dentro do processo relacional ocorre o conflito, as tensões próprias da convivência e
que podem ser solucionadas a partir da comunicação dialogada e democrática no seio da
sociedade. Mas, as condições eram adversas na época de estudo para este tipo de mediação.
O Estado Imperial autoritário não permitia a construção de novos modelos de sociedade como
aquela concebida pelos Mucker. Avançar para se lograr uma mediação era impossível naquele
período, no sentido de serem superadas as tensões resultantes das diferenças de visão de
mundo entre os dois grupos: os Mucker e os colonos.
O modelo das instituições sociais articuladas na época pelos Mucker não comportava a
acolhida de si mesmos no meio social e de um encontro positivo com os outros grupos sociais
antagônicos. Por isso, se pode dizer que o conflito trágico deste grupo social com os colonos
não era uma fatalidade. É decorrência da falta de alteridade e da intolerância para com o outro
que se apresentava com uma visão mundana não compatível com aquela experimentada pelos
adversários colonos.
Ambas as partes como sujeitos históricos e de cultura, com suas ações deram
significatividade a realidade complexa, multi-religiosa e multicultural ao tempo em estudo.
19

Vários estudos já foram realizados sobre estes contentores, sendo publicados inúmeros
artigos de jornais e as monografias de vários autores que buscaram entender o movimento dos
Mucker, citando-se as seguintes obras: Os Mucker, do jesuíta católico Ambrósio Schupp
que vivenciou os fatos; O episódio do Ferrabrás, de L. Petry, do final da década de 1950; A
nova face dos Mucker, de M. Domingues e o Conflito Social no Brasil – A revolta dos
Mucker, de Janaína Amado, sendo ambas produzidas no final da década de 1970; Jammerthal,
o vale da lamentação, de J. G. Biehl, de 1991; O messianismo no Brasil e no mundo, neste
livro Maria Isaura Pereira de Queiroz dedica um espaço ao tema sobre o movimento dos
Muckers; e Afetos e circunstâncias, Um estudo sobre os Mucker e seu tempo, de Maria
Amélia Schmidt Dickie.
A. Schupp é um autor de época, porém traz uma versão linear e unívoca que
simplesmente reduz o movimento Mucker a ser um produto da expansão do luteranismo e da
falta de educação formal que levou os elementos do grupo a uma leitura fanática da Bíblia.
Contudo, Schupp por ser religioso se envolveu emocionalmente comprometendo o seu relato.
O livro toma partido nas disputas dos religiosos católicos e protestantes luteranos no processo
de colonização alemã e a sua recomposição dos fatos é discutível, notadamente ao reproduzir
depoimentos que teriam sido prestados pelos opositores dos Mucker e na reconstrução de
supostos diálogos.
L. Petry financiado, em parte, por descendentes de Mucker tem intenção de reabilitar a
imagem histórica negativa do movimento, mas acaba traindo os seus mecenas por não
conseguir avançar além de relativização da culpa atribuída aos sectários Mucker e justificar as
ações como a de fanáticos. Assim como Schupp, Petry foi criticado devido as inexatidões,
exarar amiúde juízos de valor e por falhar na remissão às fontes. O destaque da obra fica pelo
valor aos assuntos abordados sobre a etnia, religião e a levantamento de um segmento étnico.
Moacyr Domingues trouxe novas fontes documentais a que seus antecessores e
Schupp não se ativeram, um material documental inédito (entre estes os Apontamentos de
Noe) e jornalístico com remissão às ―fontes‖. Critica as versões trazidas por seus precursores
e, declaradamente, assume uma linha positivista lastreada objetivamente sobre os fatos.
Apresenta uma reflexão sobre as feições sociológicas, psicológicas e militares do movimento
dos Mucker. Domingues aborda a questão da definição de ignorância e da violência,
interpretado a pressão social contra os Mucker como um ato de violência. Inova, também, ao
considerar os Mucker como sujeitos de ideais e objetivos. Na sua reconstrução histórica abre
caminho sobre as condições de possibilidades.
20

M. I. Pereira de Queiroz (1977) apresenta uma construção com base nas teorias da
mudança social para legitimar o movimento Mucker classificado como messiânico, através de
um esquema abrangente como resultado da oposição ao processo de estratificação de uma
sociedade igualitária. A autora é criticada por Dickie (1996) ao associar o processo que
denomina de estratificação de uma sociedade igualitária aos limites da tese de Hobsbawm de
que os movimentos sócio-religiosos seriam meramente anárquicos, de agitação social na
busca de uma vertente política às transformações econômicas. Contudo, Dickie (1996) vê no
trabalho de Queiroz (1977) dois pontos importantes, característicos dos movimentos
messiânicos/milenaristas que Hobsbawm não considerou: o componente de subversão da
ordem e o efeito de intervir com ações efetivas para construção de uma alternativa, como
vetores políticos não mais como sob o enfoque de uma mudança social ampla para erigir uma
nova ordem. Dickie (1996) frisou que Queiroz (1977) foi quem deu à luz, com a sua breve
abordagem sobre os Mucker, a existência de uma oposição destes aos colonos, como um
―plus‖ do que mera diferenciação econômica, por haver analisado sua dimensão étnica.
Janaina Amado (1978) com grande quantidade e diversidade de fontes dá uma nova
interpretação à tese de Pereira de Queiroz. Com base no conceito de modo de produção,
aponta a existência de uma disputa a partir do modo de produção capitalista, advindo do
progresso da colônia de São Leopoldo. O processo de acúmulo de capital nas mãos dos
comerciantes e transportadores da produção das colônias ditaria a nova ordem para um modo
de produção autônomo na organização na Colônia até 1870, isto é, um ―modo de produção
auto-suficiente‖. Porém, faz um contraponto de que os colonos depauperados neste processo
de rompimento com a estrutura interna do seu modo de produção se rebelaram através de um
movimento messiânico. A autora, em sua análise causal, diz que a proposta deste movimento
seria o resgate de um passado igualitário e, ao mesmo tempo, afirma que por causa das
desigualdades, o empobrecimento da população do Ferrabrás e os conflitos vivenciados
teriam levado a negar o presente. O trabalho traz à baila os vários fenômenos secundários na
discussão da tese para explicar a diferenciação econômica entre os colonos, citando-se: as
tradições religiosas dos colonos; a especificidade étnica e sua inserção na realidade local; o
aparecimento pouco recente de intelectuais alemães, maçons e ateus que tentariam atrair os
colonos para o seu projeto de participação política; a grande presença da missão jesuítica, as
experiências para unir as diversas tradições evangélicas dos colonos e a recém
institucionalização das religiões. Amado é criticada por Dickie (1996), tanto por sua análise
da relação causa-efeito como pela referência ao critério de riqueza (empobrecimento dos
colonos), defendendo que a autora teria negligenciado dois aspectos. Em primeiro lugar, cita
21

Dickie (1996), por estar em andamento ―um processo de expansão da ocupação territorial de
colonização que acompanhava o processo imigratório e o próprio processo de reprodução
social do continente já instalado em São Leopoldo‖, sendo que a linha do Febrabrás foi aberta
na década de 1840 e já estava totalmente ocupada na época dos Mucker pela segunda geração
de imigrantes e as parcelas estavam compradas, além dos colonos terem recursos para adquirir
terras adicionais naquele momento de maior ―potencial produtivo da família, quando os filhos
ainda não tinham casado mas produziam como adultos‖. O segundo argumento de Dickie
(1996) é de que os colonos teriam o costume de adquirir terras para fins de doação ou venda a
baixo preço a filhos adultos casadouros e, infere que a diferença de empobrecimento anotada
por Amado (1978) se restringiria a provável resultado do ―ciclo de desenvolvimento do grupo
doméstico‖, além de ignorar a existência de famílias Mucker abastadas com base nos padrões
de riqueza locais (a família Sehn composta de comerciantes e a família Luppa constituída de
transportadores da produção colonial por embarcações).
Biehl, O Vale das Lamentações (1991), traz à tona o discurso dos Brummer,
intelectuais alemães que escreveram contra os Mucker, como uma versão sobre os Mucker,
buscando resgatar a versão dos colonos Mucker e realizar um contraponto com a versão dos
habitantes do interior das regiões de colonização alemã. O autor acessou o jornal alemão
Deutsche Zeitung (D.Z.) dos anos de 1873/1874, onde está inserido o discurso articulado por
Karl Von Koseritz, principal representante dos Brummer. Biel engendrou os Mucker como
representantes da essência colona, mas constroi os colonos e Mucker como o mesmo,
permitindo que, segundo Dickie (1996), os colonos sejam alvo de apreensão de um ―discurso
instituinte‖ (externo e estranho à ―colônia‖), enquanto os Mucker são o ―discurso colono‖ e,
mais especificamente, a essência da colônia, em resistência ao ―discurso instituinte‖. Dickie
(1996) faz uma abordagem diferente de Biel ao considerar os colonos como uma oposição aos
Mucker.
A tese de dissertação de doutorado de Maria Amélia Schmidt Dickie analisou os
aspectos antropológicos e sociais a partir da análise de documentos da época, notadamente, os
autos dos processuais judiciais dando voz ao discurso dos Mucker. Esta obra é uma das
fontes de inspiração para a elaboração da presente monografia.
A autora traz de uma revisão bibliográfica sobre os estudos realizados sobre o que
classifica como ―movimento‖ Mucker, fazendo breves referências aos trabalhos de A.
Schupp, L. Petry, M. Domingues, J. Amado e M. I. P. Queiroz e J. G. Biehl. Depois, Dickie
(1996) traz um estudo aprofundado, com material empírico constituído dos Processos
Judiciais em que os Mucker são réus, além de uma grande variedade de documentos (livros,
22

relatórios oficiais, etc). Sob o enfoque antropológico e social, volta-se a uma abordagem do
discurso deixado pelos Mucker, notadamente nos autos judiciais e na fase do inquisitório
policial, ressaltando aspectos sobre os quais este grupo, como diz a autora: construiu e ―leu‖ o
seu texto.
Os processos judiciais em baila pesquisados pela autora são quatro: PKO5, PKM6,
PKE7 e KSK8, todos relativos aos acontecimentos havidos entre abril a julho de 1874, além
dos estudos da fase inquisitorial.
A partir da análise dos autos do processo judicial, ela analisa os depoimentos
apresentados pelos Mucker presos no período entre as prisões de novembro de 1873 até a
morte de Jacobina (agosto de 1874). Discute as relações conflituosas entre os Mucker e seus
opositores dentro da realidade da sociedade da época, a formação e a construção da visão de
mundo e da vida pelos sectários dos Mucker. Além disso, busca compreender positivamente o
legado de referenciais significativos dos Mucker que lhes permitiu dar sentido ao mundo,
construir a esperança, a redefinição de afetos, metas, rumos e relações dentro do grupo e com
o mundo exterior.
Ao compulsar os autos, Dickie resgata nas versões dos depoimentos o discurso feito
pelos acusados, buscando compreendê-lo na sua essência. Para isso, analisa as circunstâncias
mais gerais do tempo e do lugar em que os acusados construíram os seus discursos e, sem
fugir do contexto, realiza comparações, demonstra as contradições nos depoimentos, as
artimanhas usadas pelos acusados na sua defesa.
A pretensão da autora é unificar os métodos de interpretação dos diferentes discursos
trazidos pelos Muckers. Em especial, centra-se na exploração das versões contidas nos
depoimentos judiciais. À míngua da precariedade da prova colhida, seja em Juízo ou na fase
do inquérito policial, não mede esforços para fazer as conexões e as inferências necessárias
com base nas versões trazidas pelas testemunhas que melhor espelhem a verdade dos
acontecimentos.

5
PKO – sigla convencionada por Maria Amélia Schmidt Dickie na sua obra Afetos e Circunstâncias, um estudo
sobre os Mucker e o seu tempo, a nível de Tese de Doutorado do Programa de Pós Graduação em Antropologia
Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1996. Essa sigla
se refere ao processo judicial contra J.J.Klein e outros por assassinato e incêndios.
6
PKM – sigla convencionada por Dickie (1996) concernente ao processo judicial contra J.J.Mauer e J.J.Klein
por sedição.
7
PKE – sigla convencionada por Dickie (1996) e que diz respeito ao processo judicial contra Carlos Einsfeld
pelo assassinato de Jorge Haubert.
8
KSK – sigla convencionada por Dickie (1996) e se refere ao processo contra Klein, Scheffer e Konrath pelo
assassinato da família e incêndio da casa de M. Cassel.
23

Ela usa deste método de trabalho para içar destes discursos a voz dos Mucker,
sufocada à época dos fatos e ignorada naquele tempo pelos autores de época como, por
exemplo, cite-se A. Schupp, privilegiando tais depoimentos dos seguidores dos Mucker ao
tempo em que se deram os crimes de que estavam sendo acusados.
A autora deixa claro que as agressões (―assaltos‖) cometidos contra as propriedades
privadas ocorreram tanto pelo lado dos Mucker como por parte dos oponentes, inclusive
partiu deles a destruição (material ou simbólica) da propriedade, iniciada pela agressão dos
―colonos‖ aos Mucker, com a derrubada de cercas, destruição de lavouras, corte dos rabos dos
cavalos e etc..
Contudo, só os Mucker e seus seguidores foram indiciados e depois processados!
Além disso, constatou Dickie que tanto os Mucker como seus opositores (os quais
denomina de ―colonos‖), em caso de disputa e solução de discórdias e litígios não
necessariamente necessitavam do mediador protagonizado pela autoridade policial ou
judiciária, uma vez que estas eram mais um recurso alternativo e adicional para fazer valer o
que se considerava o certo, o justo e o legal.
Assentou a autora que era habitual no espaço da cidadania circunscrita em que viviam
os imigrantes alemães na região do Vale do Sinos, onde se desencadearam os fatos, a
utilização deste recurso eventual, se necessário e desejável, de usar às instituições oferecidas
pelo Estado.
Com este argumento explica a invocação do direito à liberdade religiosa, defendido
pelos Maurer e seguidores nas suas manifestações às autoridades policiais e judiciárias e até
ao Imperador, antes que começassem a revidar às agressões, pois seria um recurso à
possibilidade de mediação e arbitragem para resgate do direito que sentiam usurpado.
Contudo, a inoperância destas instâncias policias, judiciárias e do próprio Governo
Central teria provado a correção de ―brigar‖ pelo seu direito contra os colonos que se lhes
opunham como usurpadores.
De outra parte, cita Dickie os vícios inerentes aos processos referentes aos crimes
específicos, no caso de PKE/Einsfeld e KSK/Scheffel e Konrath as perguntas seriam mais
objetivas e diretas, ao passo que nos outros (PKO e PKM), estas estariam confusas e mal
encaminhadas por não perseguir em objetivos claros: ―não exploram meias informações dadas
e fazem uma seleção dos depoentes (tanto acusados como réus) não justificada em nenhum
documento ou procedimento específico‖.
24

Com relação ao processo geral, menciona Dickie haver apurado pela análise dos
depoimentos prestados pelos acusados no inquérito e no início do processo judicial geral
(PKO/PKM) a falta de uma estratégia racional unificada de defesa.
Apenas, a partir de dez/1874, os depoimentos imediatamente anteriores à primeira
sentença passaram a convergir em sintonia com a tática da defesa, mais tarde exposta nos
argumentos apelatórios. Isso reforçou duas características dos depoimentos anteriores, um
deles por ninguém confessar sob pretexto de apresentar uma justificativa de não participação
nos crimes e, de outro lado, os acusados atribuem a responsabilidade imediata aos chefes a
quaisquer crimes de que estavam sendo acusados, ―nomeavam-nos como aqueles que tinham
preferido a morte a se entregarem à Justiça‖
A estratégia da defesa não vingou diante do libelo acusador e frente ao júri ―formado
por pessoas cujos parentes e/ou vizinhos e amigos haviam sido vítimas nos diversos
confrontos e tinham, agora, a oportunidade da vingança‖.
Ademais, as características do julgamento já haviam sido forjadas pelo relatório
conclusivo do inquérito policial instruído pelo Chefe de Polícia interino da Província,
notadamente quando o mesmo expressa haver deixado de arrolar testemunhas de acusação sob
alegação de que ―todos os habitantes de S. Leopoldo são testemunhas de acusação‖.
Aliás, em meados do final de 1875 registra-se a instalação da Comarca Especial de
São Leopoldo, para onde o julgamento é transferido.
Após, é prolatada em São Leopoldo a primeira sentença em fev/1876, relativa ao
inquérito policial que deu origem ao processo geral contra os seguidores dos Maurer,
encerrado em 03/10/1884, absolveu aqueles aparentemente não referidos nos discursos dos
acusados, porém condenou os demais, uns por provocar constrangimento e terror com
apenamento menor e os demais por serem considerados amplamente responsáveis
criminalmente, asseverando que as decisões dos acusados teriam sido tomadas em sessões em
que todos teriam comparecido (PKO 496/497 e PKM 169) e as mulheres enquadradas como
cúmplices. .
A má instrução processual deu margem à defesa sustentar, em nível de apelação
quanto às falhas processuais e de enquadramento legal, com fundamento de que a questão não
seria a quantificação da responsabilidade, mas a definição específica da autoria para os crimes
específicos apontados pela acusação, na medida em que estes teriam sido diversas ordens,
exigindo enquadramento próprio (agressões à propriedade, assassinatos, cumplicidade, autoria
imediata, etc.).
25

Inexoravelmente, devido à falha na instrução processual, o apelo da defesa para novo


julgamento logrou êxito ao ser acolhida a tese recursal pelos juízes togados, o que veio a
resultar na separação dos processos acima citados.
Aliado a isso, temos o problema da ausência das testemunhas que deram azo a vários
adiamentos de sessão de júri, por falta de constituição de corpo de jurados, levando à
permanência indeterminada dos Mucker na prisão, o que fez parte, possivelmente, da
estratégia dos próprios colonos para retardar o processo e manter os réus presos. Segundo
Tomaz Hobbes9, na obra Leviatã ou matéria, forma e autoridade de uma comunidade
eclesiástica e civil (1642), o maior sofrimento do homem é ser desprezado e, assim o sendo,
―o ofendido procura vingar-se‖ e ―comumente não deseja a morte de seu adversário e deseja
seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de
sua própria superioridade‖.
A violência simbólica, definida por Bourdieu (1994) é a ―capacidade de imposição
consentida de um arbítrio cultural aos dominados‖. Entendemos que a estratégia dos colonos
de não comparecerem às audiências, de forma deliberada, por serem detentores de um capital
cultural e político se tornou uma forma de violência simbólica. Isto se torna evidente,
notadamente quando tal ação negativa trouxe invariavelmente prejuízos aos seus oponentes
Mucker que estavam presos e despossuídos deste capital.
Goffman (1993, p. 13) é útil para interpretar as pistas comportamentais deixadas pelos
colonos durante o processo de interação com os Mucker e ele aponta que os atributos
indesejados são considerados estigmas:

(...) Aquellos que son incongruentes con nuestro estereotipo acerca de cómo debe ser
determinada especie de individuos. El término estigma será utilizado, pues, para
hacer referencia a un atributo profundamente desacreditador; pero lo que en la
realidad se necesita es un lenguaje de relaciones, no de atributos. Um atributo que
estigmatiza a un tipo de poseedor puede confirmar la normalidad de otro y, por
conseguinte, no es ni honroso ni ignominioso en sí mismo. (...)

9
O Empirismo - Tomaz Hobbes - ―Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do
governo, basta descrever o que se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os
seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da
vaidade (pride). O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observa
Hobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário e deseja seu
cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua própria
superioridade‖. Disponível em:: http://www.mundodosfilosofos.com.br/hobbes.htm, Acesso em: 08 nov 2010.
26

Como a sociedade à época dos Mucker estabeleceu formas de categorizar as pessoas e


grupos sociais, neste estereótipo não se enquadravam os Mucker. A ideia da escola positivista
era que indivíduos degenerados apresentavam anomalias comuns. Pela teoria de Bourdieu os
Muckers estariam despojados de um capital social tradicional ajustado as normas de conduta
social exigidas pela sociedade da época. O próprio nome Mucker foi cunhado como alguém
fanático/crente, entre outros pejorativos, como refere Dickie (1996) no seu estudo já citado,
onde ela define os Mucker como uma oposição aos colonos. É sintomático a estigma dos
Mucker, como um grupo diferente do padrão; o atributo estigmatizador atribuído aos Mucker
servia para confirmar a normalidade dos colonos.
Assim, o grupo estigmatizado dos Mucker era espremido à margem da sociedade.
Goffman (1993) analisa os sentimentos da pessoa estigmatizada sobre si própria e a
sua relação com os outros ditos "normais". Ele explora a variedade de estratégias que os
estigmatizados empregam para lidar com a rejeição alheia e a complexidade de tipos de
informação sobre si próprios que projetam nos outros. Com este pensamento não é difícil
concluir ter sido uma possível estratégia dos colonos, considerados por Dickie (1996) como
uma oposição aos Mucker, que deixaram de comparecer às audiências para prejudicar aquele
grupo estigmatizado.
Para os colonos era clara a divisão entre um grupo que se percebia, e que era
reconhecido, como o establishment local em oposição ao outro conjunto de indivíduos e
famílias formada pelos Mucker outsiders. Segundo Elias (1994), as categorias de
estabelecidos e outsiders se definem na relação que as nega e que as constitui como
identidades sociais. Os indivíduos que fazem parte de ambas estão, ao mesmo tempo,
separados e unidos por um laço tenso e desigual de interdependência. De acordo com Elias
(1994), a superioridade social e moral, a autopercepção e o reconhecimento, o pertencimento
e a exclusão são elementos dessa dimensão da vida social que o par estabelecidos-outsiders
ilumina exemplarmente: as relações de poder, na forma "tipicamente inglesa" de conceituar as
relações de poder, de um modo abstrato ou puro, ―independente dos vários contextos
concretos nos quais essas relações podem realizar-se‖. No campo social se travam as relações
de poder propulsionadas a partir da oposição entre o par estabelecidos-outsiders, colonos e
Mucker.
Dessa feita, é possível aquilatar que a suposta estratégia dos established (colonos)
de retardar o curso dos processos, por se ver nisso uma tática nociva aos outsiders, não
passava de uma forma velada, consciente ou inconsciente, de se vingar contra o grupo
estigmatizado representado pelos Mucker.
27

É somado a isso tudo, a morosidade decorrente de erros de procedimentos ocorridos


no curso do processo. Esse contexto causou um grande retardo no julgamento final dos
processos. A situação criada pelas ações individuais dos colonos de não comparecerem às
audiências, intencionalmente ou não, além de ser prejudicial em todos os sentidos aos
Muckers marginalizados pela sociedade representada na figura dos colonos, também foi mais
um problema enfrentado pelos juízes de Direito.
28

2 O PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL

O avalizado Lenine Nequete, na sua obra indigitada publicada em 2000, traça a


epopéia da longa trajetória do Poder Judiciário Brasileiro, desde o Brasil Colônia, a partir do
descobrimento, mais precisamente de 1530, ao ser investido Martim Afonso de Souza pelo
Rei Português de poderes de jurisdição administrativa e judiciária, até os dias de hoje, como
uma evolução de conquistas e de ampliação na distribuição da justiça pelo judiciário brasileiro
com o aumento de suas atribuições.
Em comentário personalizado a esta obra de Nequete, revisada, por ocasião da edição
comemorativa dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, o Ministro Carlos Veloso do STF,
glosou que este avanço do Poder Judiciário é atribuído ao trabalho honesto e eficiente dos
juízos brasileiros e, de outro, à mentalidade dos brasileiros, juridiciaristas por vocação, a
exigir o aperfeiçoamento da justiça e das garantias de independência dos magistrados e dos
tribunais em benefício dos jurisdicionados.
Importante apresentar uma resenha do arcabouço legislativo que foi se criando durante
o Império Brasileiro, o que permite entender a condição do cidadão frente à lei no último
quarto do Império brasileiro.
Para entendermos a evolução legislativa ocorrida durante o Império Brasileiro, se
torna necessária uma reportagem sucinta da estrutura jurídica em vigor à época próxima ao
fim do Período Colonial Português no Brasil. Quando o monarca português D. João VI se
instalou no Brasil, em 1808, escapando da perseguição de Napoleão Bonaparte, devido ao seu
envolvimento político e dependência econômica de Portugal frente à Inglaterra, vigiam as
Ordenações Filipinas. As Ordenações Filipinas, apesar de muito alteradas, constituíram a base
do direito português até a promulgação dos sucessivos códigos do século XIX no Brasil,
inclusive permaneceram vigindo na esfera criminal até o advento do Código Criminal de 1830
e, na área cível, com algumas disposições até o surgimento do Código Civil de 1916.
Durante a permanência da Corte Portuguesa nenhum Código se fez ou se projetou,
pois se governava provisoriamente em face da ideia certa do retorno da Corte a Portugal.
Segundo Nequete (2000), a distribuição da justiça nesta época estava ―confundida, embora,
com um sem número de funções administrativas e policiais – estava confiada a duas Relações:
a da Bahia que foi organizada em 1609, extinta em 1629 durante o domínio castelhano e
restabelecida em 1652, no reinado de D. João IV, e a do Rio de Janeiro criada em 1751, e,
mais, ―aos corregedores de comarca, ouvidores gerais, ouvidores de comarca, chanceréis de
29

comarca, provedores, contadores de comarca, juízes ordinários e de órfãos eleitos, juízes de


fora, vereadores, almotacés e juízes da vintena, a quem auxiliavam os tabeliães, escrivães,
inquiridores, meirinhos e outros oficiais de justiça, os alcaides pequenos e os quadrilheiros‖.
Em 1812 foi instalada a Relação do Maranhão e, como afirma Nequete (2000), a magistratura
não gozava de prestígio, por não se impor diante de toda a dependência do Poder Executivo e
do Poder Moderador e pelos juízos desfavoráveis que incorriam sobre a classe. O descrédito
da magistratura levou o rei D. João VI a recomendar ao Governador da Província do
Maranhão, quando da instalação desta Relação, para que ―vigiasse aos Desembargadores, e
seus criados, para que nenhum dano nem opressão causassem aos moradores da cidade de São
Luís ou de outros lugares, tomando-lhes os mantimentos contra a sua vontade, ou por menores
preços que os usuais‖.
O best-seller atual do jornalista e escritor Laurentino Gomes (2010)10, conta a história
da nossa independência numa linguagem jornalística, compilando textos da época, mas sem
beber nas fontes historiográficas originais. O autor aponta o processo político que nasceu com
a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil e que levou o país a permanecer unido após a
Independência, impedindo a sua fragmentação como ocorreu na América Espanhola. O
escritor citado desmitifica a questão de ter sido pacífica a independência do Brasil e descreve
a guerra que se seguiu à proclamação da Independência: o longo cerco na Bahia, a guerra em
Pernambuco, a invasão do Maranhão por Cochrane e a batalha de Jenipapo. Nestes conflitos
houve a morte de milhares de pessoas para manter nosso país unido. Segundo Gomes (2010),
entre os personagens coadjuvantes que participaram do processo de independência do Brasil
estava o influente José Bonifácio de Andrada e Silva, ―um homem sábio e experiente‖,
defensor do ―fim do tráfico negreiro e da abolição da escravatura, reforma agrária pela
distribuição de terras improdutivas e o estímulo à agricultura familiar, tolerância política e
religiosa, educação para todos, proteção das florestas e tratamento respeitoso aos índios‖.
Destaca Gomes (2010) que o ―próprio imperador Pedro I tinha ideias avançadas a respeito da
forma de organizar e governar a sociedade brasileira‖, uma vez que a Carta Constitucional era
uma das mais inovadoras daquela época, inobstante nascida de um ―gesto autoritário‖ – a
dissolução da Assembleia Constituinte no ano anterior (em 1823). Destaca o citado escritor
que o imperador também ―era um abolicionista convicto, como mostra um documento de sua
autoria hoje preservado no Museu Imperial de Petrópolis‖. Lamenta o escritor (GOMES,

10
O jornalista e escritor Laurentino Gomes esteve na quinta-feira (04/11/10) na UNISINOS dialogando com os
alunos da Unisinos. Gomes é autor dos best sellers 1808 e 1822 e já trabalhou como repórter e editor do jornal O
Estado de S. Paulo e da revista Veja, além de ter sido diretor da Editora Abril (Fonte: Revista Eletrônica da
Unisinos, Ciências Humanas, Ano 4 - 16ª edição – 3 nov. 2010).
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2010) que nem todas as essas ―ideias saíram do papel, em especial aquelas que diziam
respeito à melhor distribuição de renda e oportunidades em uma sociedade absolutamente
desigual‖. A ruptura dos vínculos com a metrópole portuguesa se deu sem a ruptura da ordem
social vigente, um sistema embasado no tráfico negreiro que vinha sendo praticado na colônia
por mais de três séculos de colonização. Inquestionável está que a política e a economia da
época eram por demais dependentes da mão de obra escrava. Por isso, a abolição da
escravatura na Independência revelou-se impraticável e, apenas perto do final do Império, a
questão da abolição dos escravos vai servir de bandeira política dos Republicanos. Em 1884,
segundo Gomes (2010) faltando cinco anos para a Proclamação da República, ainda havia no
Brasil 1.240.806 escravos. A abolição da escravatura vai ser implementada ao apagar das
luzes do Segundo Reinado, por decreto da Princesa Izabel, filha do Imperador D. Pedro II.
Arremata Gomes (2010) que o resultado destas circunstâncias fez o país ser ―edificado de
cima para baixo‖ e ―coube à pequena elite imperial, bem preparada em Coimbra e outros
centros europeus de formação, conduzir o processo de construção nacional, de modo a evitar
que a ampliação da participação para o restante da sociedade resultasse em caos e rupturas
traumáticas‖, sendo que as alternativas ―democráticas, republicanas e federalistas, defendidas
em 1822 por homens como Joaquim Gonçalves Ledo, Cipriano Barata e Frei Joaquim do
Amor Divino Caneca, este líder e mártir da Confederação do Equador, foram reprimidas e
adiadas de forma sistemática‖.
A Primeira Constituição do Brasil foi outorgada em 1824 pelo Imperador e, em seu
bojo, continha do ponto de vista jurídico as primeiras leis que regulavam a ordem e as
relações da sociedade política dos cidadãos ativos do Estado brasileiro recém-estabelecido.
Entretanto, apesar do país ter rompido os vínculos com a metrópole portuguesa com a
declaração da Independência, as circunstâncias políticas, sociais e econômicas da época,
limitavam a aplicação da Lei Maior do Império na prática cotidiana.
Por três quartos de século vigorou a Lei Maior do Império de 1824 outorgada pelo
primeiro imperador do Brasil, através do qual inseriu uma invenção maquiavélica de Dom
Pedro I, um instituto sui generis que era o poder moderador. Na verdade, consistia este em um
poder único, como aponta Frei Caneca11, citado por Nequete, instrumento poderoso para
extirpar a liberdade dos povos, mas cuidou a Providência de haver assumido o trono Pedro II
para não adquirir ―feições de Poder – nem o Legislativo, nem, muito menos, o Judiciário‖.

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Frei Caneca, sem ser jurista, foi quem formulou em 1823 a melhor e mais simples definição: "Constituição é a
ata do pacto social"
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O Poder Moderador era ―uma instituição livresca do que histórica, a verdade é que
funcionou a contento durante o período de expansão e consolidação do Império, conforme
observação de João Camilo de Oliveira Torres. Nequete endossa este parecer argumentando
que o Poder Moderador funcionou em ―uma democracia imatura como era o Brasil Imperial‖
e asseverou que ―Quando o detentor destas funções arbitrárias era um homem da moderação e
das virtudes de Dom Pedro II, era de se esperar uma boa execução delas‖.
Mais tarde, em 1830 surgiria o Código Criminal que, segundo o historiador Américo
Jacobina Lacombe (1951), após a Carta de 1824 seria "o segundo monumento legislativo
derivado das Câmaras do Império", trazendo regulamentação da ordem social, estabelecendo
as relações do conjunto da sociedade (pessoas livres ou cativos), cuidando dos proprietários
de escravos, da "plebe" e dos cativos, havendo sido incluídos pontos polêmicos como a pena
de morte e a de galés.
Este Código Criminal foi a base para regulamentar a ordem social do país, havendo
vigido por 60 anos e alcançou os primeiros anos republicanos, tratando dos crimes e dos
delitos e, consequentemente, das penas a serem aplicadas. No seu bojo continha três tipos de
crimes: a) os públicos - aqueles contra a ordem política instituída, o Império e o imperador e,
dependendo da abrangência, estes seriam chamados de revoltas, rebeliões ou insurreições; b)
os crimes particulares – aqueles cometidos contra a propriedade ou contra o indivíduo; c) os
policiais – cometidos contra a civilidade e os bons costumes, incluindo-se os vadios, os
capoeiras, as sociedades secretas e a prostituição, assim como também era considerado neste
tópico o crime de imprensa. As penas previstas pelo Código, cita-se a prisão perpétua ou
temporária, com ou sem trabalhos forçados, banimento ou condenação à morte.
Após seguiu-se outra importante providência legal legislativa que foi o Código de
Processo Criminal de 1832, mais tarde reformado, continha em seu seio original normas de
normas de direito processual com nítida inspiração liberal e, assim como o Código Criminal
de 1830, vigorou até a derrubada do Império.
Em 03/12/1841, através da Lei 261, regulada pelo Decreto 120/1842 houve a reforma
deste Código Adjetivo Criminal de 1832 e, entre outras medidas, determinou que Juízes de
Direito das cidades populosas, notadamente as capitais do Império, seja o Chefe de Polícia,
competindo ao Poder Executivo velar pela Segurança Pública com todos os meios indireto à
sua disposição. Com estas modificações restringiram-se as atribuições dos Juízes de Paz, as
quais, na quase integralidade, passaram para o Chefe de Polícia e seus delegados, bem como
de conceder fiança aos réus que prendessem ou pronunciassem. Os mandados de busca e
apreensão poderiam ser concedidos independente de oitiva de testemunhas, à vista apenas dos
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indícios veementes ou fundada probabilidade da existência dos objetos ou do criminoso no


lugar suspeitado. Foi alterada a forma de nomeação dos Juízes Municipais e Promotores,
dispensada a proposta das Câmaras Municipais, porém exigindo maior nível para a sua
investidura. Deu-se novas e amplas atribuições aos Juízes de Direito, após o decurso de quatro
anos desta lei, estes seriam recrutados apenas dentre os bachareis formados que houvessem
servido com distinção nos cargos de juízes municipais, de órfãos ou promotores públicos, ao
menos por um quatriênio concluído. Foram abolidas as Juntas de Paz e o Júri de Acusação,
além de restringir-se mais a fiança e princípios mais enérgicos se estabeleceram quanto à
prescrição. Redimensionou-se a formação da culpa com novas regras sobre o corpo de delito
indireto e quanto ao número de testemunhas a serem inquiridas, recursos de pronúncia dos
delegados e subdelegados para os juízes municipais, etc. Instituiu-se novas regras sobre o Júri,
recursos em sentido estrito, apelações e revistas e quanto ao habeas corpus se fixou a
competência para concessão do remédio do juiz superior ao que decretou a prisão.
Dias antes desta reforma de 1841 do Código Processual Penal de 1832, havia sido
criado o Conselho de Estado, como um apêndice do Poder Moderador, com poderes de
ingestões nos domínios judiciários.
Em 1850, veio o ato legislativo mais importante, depois da reforma de 1841 e do
regulamento de 1842, que foi o Código Comercial tratando da administração da justiça dos
negócios e causas comerciais e, paralelamente, a este adveio o Decreto 559 que dividia as
Comarcas do Império em três entrâncias, sendo que a nomeação dos magistrados se faria
sempre para a primeira e as promoções só se dariam para a segunda entrância decorridos
quatro anos e para terceira depois de três anos de serviço.
Depois do Código Comercial até o advento da Lei 2.033 de 20/09/1871, que substituiu
a Lei de 1841 e o seu regulamento de 1842, escassas e insignificativas foram as alterações
propostas ao organismo do Poder Judiciário e quanto a sua competência.
O Ministro da Justiça Francisco José Furtado recomendava, em 02/01/1865 aos
presidentes das províncias, evitar os abusos contra a liberdade individual praticados já por
prisões preventivas, fora dos casos legais, uma vez que a demora na formação da culpa ou do
processo para a concessão das fianças, pois determinou a lei, com relação às ordens de prisão,
uma série de medidas cautelares, como a apresentação imediata do preso à autoridade
competente mais próxima, duplicada de mandados, proibição do carcereiro de receber
quaisquer presos sem ordem escrita da autoridade ordenadora da prisão, salvo em fragrante
delito e impossibilidade de urgente apresentação do preso à dita autoridade, proibição de
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prisão antes da culpa formada, salvo fragrante delito e em crimes inafiançáveis e mandado
escrito da autoridade competente.
A Lei de Reforma de 1871 eximiu magistrados da obrigação de aceitar o cargo de
Chefe de Polícia12 criado pela Lei 261/1841, cuja nomeação deveria recair sempre sobre estes
magistrados ou em doutores de direito com quatro anos de prática. Essa legislação declarou
incompatíveis os cargos policiais com os de juiz municipal ou juiz substituto, além de
extinguir a jurisdição dos Chefes de Polícia, delegados e subdelegados para julgar os crimes
policiais, das infrações dos termos de bem viver e segurança e das infrações às posturas
municipais e quanto ao processo de pronúncia nos crimes comuns. A Lei de Reforma de 1871,
ressalvou aos Chefes de Polícia a faculdade de procederem a formação da culpa e pronúncia
no caso de se acharem envolvidas nos acontecimentos pessoas, cujo poderio ou prepotência
poderia tolher a marcha regular da justiça do lugar do delito, sem recurso ao Presidente da
respectiva Relação, nas províncias de fácil comunicação com a mesma, ou então o juiz de
direito da capital. Conservaram às autoridades policiais as suas demais atribuições como a de
preparar os processos crimes policiais até a sentença, inclusive proceder de ofício quanto a
estes crimes, diligenciar nos crimes comuns para descoberta dos fatos delituosos e suas
circunstâncias, auxiliando assim na formação da culpa, além de conceder fiança provisória.
Esta reforma de 1871 restabeleceu a competência do júri para os crimes que a Lei 562
de 07/071850 havia atribuído aos juízes, além de revigorar o art. 332 do CPP, derrogado pela
Lei de 1841, voltando a ser exigida a unanimidade de votos do júri para a imposição da pena
de morte e um capítulo onde figuravam os crimes culposos de homicídio e ofensas físicas,
atribuindo ao juiz formador da culpa conhecer os casos de absoluta imputabilidade e daqueles
crimes que houvessem sido cometidos por consequência de violência causada por força ou
medo irresistíveis ou, casualmente, no exercício ou prática de ato ilícito, cabendo nestes casos
decisão definitiva com remédio recursal dirigido de ofício para as Relações. Além disso,
regrou que a pronúncia suspenderia o exercício das funções públicas, assim como o direito de
ser votado ou nomeado a cargo público.
Em 03/02/1874, o Des. Tristão de Alencar Araripe, que havia sido nomeado em
23/03/1870 Desembargador da Relação da Bahia foi removido em 1873 desta Relação para a
de São Paulo e designado Presidente da mesma. Em seu discurso, quando da instalação da
Relação de São Paulo, argumentou pela necessidade de:

12
O PODER Judiciário no Rio Grande do Sul: livro comemorativo do centenário do Tribunal da Relação de
Porto Alegre. Porto Alegre: Rev. de Jurisprudência do TJRS, 1974. V2, p. 26.
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Vencer longas distâncias, e depois achar comunicações pessoais, indispensáveis aos


litigantes, eram incômodos peníveis. Não era, porém, esse o lado pior dessa anômala
situação. A justiça assim disposta podia com razão dizer-se que era a justiça do rico
e do poderoso, mas não a justiça de todos, a benéfica entidade protetora de todos os
direitos. A longitude do juiz superior, o régulo aldeão achava incentivo à opressão
do fraco, que, agredido e suplantado no seu longínquo município não encontrava na
autoridade pública senão recursos excedentes às suas faculdades, recursos
meramente nominais. Oprimido, o cidadão desprovido de fortuna considerava-se
vencido; e muitas vezes, desatinado pela impotência do desagravo legítimo,
imputava à sociedade convivência com o opressor, e descria do axioma fundamental
da igualdade perante a lei. Tal era o nosso estado! E todos vós compreendeis,
senhores, quão danoso era ele ao sossego dos povos e à paz do Império
(NEQUETE, 2000, p. 89).

Nessa época foram instaladas as novas Relações, todas na primeira metade de 1874,
em fevereiro as de Fortaleza, São Paulo, Ouro Preto, Belém e Porto Alegre13; as de Goiás em
maio.
Devido à demora na concessão da fiança veio a Lei 2.033/1871 instituir a fiança
provisória.
Quanto ao habeas corpus, cabe mencionar que, ainda em 1878, o Ministro da Fazenda,
ignorando a farta jurisprudência em favor do administrado, contestava o fato de que o
Supremo Tribunal de Justiça pudesse conhecer, julgar e cumprir14 os seus julgados proferidos
em sede de habeas corpus formulado contra uma prisão administrativa decretada por aquele
ministério
Sem embargo a reforma de 1871, criticava-se que nenhum dos grandes princípios
consagrados pela Constituição que assentou o poder judicial triunfou completamente, pois a
Constituição Imperial garante a independência deste poder, porém o poder executivo,
entretanto, nomeia, remove e aposenta o magistrado, sendo que nenhum destes atos se
encontra previsto no art. 151 da Carta Imperial uma defesa e assenta Nequete ―contra os
abusos que o aniquilam, em todos tem o executivo o poder de mal usar; e se a isto se
acrescentam ordenados tão exíguos, que obrigam o magistrado a uma vida de privações, ter-
se-á feito idéia da independência do juiz brasileiro‖.
O governo central usava o Judiciário com base na rede nacional do clientelismo, cuja
trama de ligação política do Séc. XIX dava suporte a quase todos os atos políticos no Brasil,
levando Richard Graham (op. cit., 1996) a afirmar:
13
O PODER Judiciário no Rio Grande do Sul: livro comemorativo do centenário do Tribunal da Relação de
Porto Alegre. Porto Alegre: Rev. de Jurisprudência do TJRS, 1974. V1, p. 134.
14
A referência é sobre os momentos da jurisdição. Estes momentos representam o desenvolvimiento do
exercício da função jurisdiccional no processo, ou seja, conhecer, julgar e fazer cumprir o resolvido.
35

(....) Em contraste com os delegados e comandantes da Guarda Nacional e mais


perecidos ao clero e aos oficiais do exército, os Juízes buscavam avançar dentro de
uma hierarquia profissional. Embora pudessem ter terras, escravos ou negócios e
querer designação para os lugares onde sua família tinha força, recebiam um salário
do governo e sofriam frequentes transferências. O Judiciário, reconheceu um
escritor, não poderia ser um poder independente ―enquanto os magistrados
dependerem de um governo que os nomeia, transfere e aposenta sempre que quer,
para satisfazer os presidentes‖.
Os juízes distritais e municipais eram advogados formados por uma das duas
faculdades de Direito, de São Paulo e Recife. Essas escolas forneciam todos os
quadros políticos do país. A admissão nelas dependia tanto de exames quanto de
conhecer as pessoas certas. O mesmo acontecia para passar nas matérias. Em 1860,
um pai preocupado explicava para um fazendeiro da província do Rio de Janeiro:
―Meu filho em São Paulo não recebeu as cartas que lhe pedi em favor dele, bem
como algumas que mandei a ele. (...) Ele escreveu-me para dizer que por falta delas
foi reprovado em Retórica‖.
Aquele que detinha autoridade possuía na literalmente e podia com legitimidade
cedê-la, ou parte dela, para outrem. A capacidade de distribuir postos tornava-o
automaticamente um chefe e facilitava muito a construção de uma clientela. Desta
forma, os cargos públicos transformaram-se em um recurso a ser utilizado como
qualquer outro. Podiam ser ―possuídos‖, concedidos, ou retirados. Quem recebia um
cargo, o fazia como se fosse um presente. Quando alguém assumia um posto, dizia-
se que havia ―tomado posse‖, expressão usada ainda hoje, e pagava um estampilha,
como se faria ao adquirir uma propriedade. ―Os bacharéis, fossem juízes ou
membros do Parlamento, não atuavam apenas como agentes para impor a autoridade
pública sobre o domínio privado, mas também amarravam os governos nacional e
locais com laços de amizade, de família e de lealdade pessoal (...)

Com todos estes senões, aponta Nequete, não era pouco o prestígio social e político
que gozava o juiz de direito, na quadra final do Império. Inobstante sem o ônus fixo da função
policial, conforme determinava a Lei de 3 de Dezembro/1841 e suas reformas, continuou
sendo escolhido para a chefia da polícia, sendo que nesta classe os governos recrutavam o
maior número dos seus agentes para as províncias, que as governavam como presidentes.
Nequete (2000) traz na citação de Pedro Calmon, ―Organização Judiciária‖, in Livro
do Centenário dos Cursos Jurídicos, vol. I, p. 95, o seguinte comentário de que

O Supremo Tribunal obedecia ao mais rigoroso exame da honestidade profissional e


das virtudes públicas dos concorrentes. Chegou-se, destarte, a estabelecer um
contraste vivo entre o juiz do Segundo Reinado, amovível, facilmente perseguido, se
era um ruim juiz, inevitavelmente recompensado, se o distinguia a honradez, e os
desembargadores do último período colonial (como os via, de uma feita, D.
Fernando José de Portugal), corruptos, desanimados, chicanistas, contra os quais de
contínuo se açaimavam os governadores, denunciando-lhes, para o Reino, a
impropriedade, a ignorância e a indolência.
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Com efeito, devem ser tomados com reserva tais elogios que o autor faz ao Judiciário
da época, pois nem tudo eram flores na atuação do judiciário daquele período. Até
compreendendo-se a versão trazida por Nequete de enaltecer a magistratura nacional na época
do Império, indiscutíveis são as suas qualidades na magistratura gaúcha e sua notabilidade
como pesquisador, reporta-se a uma impressionante bibliografia, prestigiada pelo Supremo
Tribunal Federal. Não se pode olvidar se tratar de uma versão sobre aquela realidade vista
pelos olhos do magistrado e não do historiador nato.
O ensinamento de Bourdieu (1994) evidencia que como o conceito de habitus está
atrelado ao de campo e, no caso, dentro do campo jurídico, os operadores do direito ―tendem a
reproduzi-lo em suas atitudes e percepções. Acrescendo-se, na época dos Mucker, os
operadores do direito provinham da classe dominante, o que reflete uma reprodução dessas
percepções em suas ações jurídicas, seja em sentenças, petições, etc. Resulta disso que o
direito acaba sendo construído sobre uma base de formalismo jurídico, em que a legitimação
das decisões se dá na crença em sua neutralidade, universalidade e justiça.
Consequentemente, conforme Bourdieu (1994) aponta, tal conjunto de regras
aparentemente neutras e necessárias à administração da justiça coopera para que o campo
permaneça estável em relação à distribuição do poder no seu interior. Os operadores do direito
detentores de capital cultural, jurídico e político e provenientes à época de um campo social
onde representavam a classe dominante guinavam sua prática à reprodução do sistema. Isso
explica que os elogios que o autor Nequete (2000) faz ao Judiciário da época dos Mucker,
pois como se viu a situação relativa à atuação judiciário daquele período não era florida,
construída na base do formalismo jurídico, estava cheio de contradições e os seus objetivos de
neutralidade, universalidade e de justiça não se realizavam plenamente na prática forense.
A Constituição outorgada em 1824 declarou o Poder Judiciário independente (a
chamada autonomia do Judiciário em relação aos demais poderes) e sua organização judicial
incluía a magistratura togada desde os juízes municipais até os ministros do Supremo Tribunal
de Justiça.
Os juízes de direito possuíam estabilidade e só perdiam o cargo por processo legal,
contudo estavam susceptíveis de serem removidos de um lugar para outro, ao passo que os
juízes municipais e de órfãos eram nomeados entre bacharéis com um mínimo de um ano de
prática forense para períodos de quatro anos e estavam sujeitos a ser promovidos a juiz de
direito, ou ser nomeados para outro quadriênio, ou mesmo abandonar a carreira, uma vez que
não tinham estabilidade.
37

Os cargos judiciários da primeira instância sempre estiveram muito próximos das


práticas administrativas, especialmente no poder executivo, assim como das políticas, junto ao
legislativo. Além disso, Nequete (2000) cita vários casos de corrupção, malversação das
coisas públicas, sem contar com a venalidade e o cinismo da magistratura, não ignorando que
o governo fixou tribunais em todo o país. A venalidade dos juízes igualada pelo cinismo,
―rouba-lhes a autoridade que deve ser inerente à magistratura‖, e ao invés de aumentar o
número de tribunais ―deveria exercer a vigilância ativa para garantia das leis e da equidade no
seio da administração‖ (NEQUETE, 2000, p. 182/183).
O pensamento de Bourdieu (1994) revela que por mais que ocorra o encontro de
conteúdos dos campos, isto é, a comunicação do campo político com o ético, o jurídico, o
senso comum faria uma função de perceber este último como uma forma neutra e
universalizante, como um produto da racionalidade. Conclui o autor a deduzir que o campo
jurídico apresenta uma grande resistência à mudança, o que se atribuiria à conexão entre as
profissões jurídicas e a estrutura da racionalidade formal do campo jurídico.
Essas situações fragilizaram a atuação do Judiciário na época do Império, sendo que
no período do julgamento dos Mucker a situação não foi diferente, havendo os mesmos sido
expostos a todas as mazelas de que padecia o sistema judiciário brasileiro da época.
38

3 O PODER JUDICIÁRIO NO RIO GRANDE DO SUL E A ORIGEM DOS JUÍZES

O que se percebe nas práticas administrativas ao longo do período imperial são traços
das heranças ibéricas, tanto é que Dom Pedro I era português e governou o Brasil até a
abdicação em 1831, e os português ocuparam muitos cargos públicos neste período. Existe
um predomínio de uma linha de continuidade entre a estrutura do Judiciário nacional e as
práticas repetidas na província de São Pedro do Rio Grande.
A história gaúcha revela que essa província teve uma ocupação tardia, de um lado os
conflitos de fronteira, de outro, o baixo interesse econômico deixaram o extremo sul relegado
a um segundo plano no projeto colonizador. Apenas no século XVIII iniciaram-se as
tentativas de ocupação e demarcação territorial definitivas. Foi só aí que a região passou a ter
justiça de primeira instância, sendo criada em 1749 a ouvidoria de Santa Catarina com
jurisdição em todo o território compreendido entre a Barra do Araquari e a Lagoa Mirim. A
subordinação do Rio Grande a Santa Catarina acaba em 1812, quando é criada a comarca de
São Pedro do Rio Grande e Santa Catarina, invertendo-se a situação, Porto Alegre passa a ser
a cabeça de comarca, até que em 1821, criou-se a comarca de Santa Catarina, a partir daí cada
província correspondia a uma comarca.
Em 1816, numa tentativa de punir os réus na própria capitania, estabeleceu-se a
criação de uma Junta de justiça instalada em 1818. A determinação era de que a junta se
reunisse semanalmente para ―julgar os réus de todos os crimes, exceto os de lesa-majestade e
os crimes que envolvessem militares e eclesiásticos‖. Essas formas eram exclusivas para
julgamentos de primeira instância. Os processos que recorressem a julgamento na segunda
instância eram encaminhados para o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, Corte
responsável pelos feitos da região.
Apesar da criação desta Junta no Rio Grande do Sul, Nequete (2000, p. 160/161)
transcreve na sua obra o relato de viagem ao Rio Grande do Sul de Auguste de Saint-Hilaire,
1820-1821 (trad. de Leonan de Azevedo Pena, Ariel Editora Ltda, Rio, 1935, 295, p.), que

Antes do governo do Marquês de Alegrete (...) os criminosos da Capitania eram


julgados no Rio de Janeiro. Mas nessa distante cidade era difícil reunir provas
suficientes para os condenar e como ninguém ficasse contra eles, era hábito deixá-
los durante vários anos nas prisões, terminando por dar-lhes liberdade sem
julgamento prévio. O Marquês de Alegre pediu e obteve do Rei a criação de uma
junta Criminal, que se deve reunir todos os anos, composta do General, do Ouvidor e
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do Juiz de Fora de Porto Alegre, dos Juízes de Foro de Rio Grande e Rio Pardo e de
dois desembargadores que residem atualmente em Porto Alegre. A formação desta
junta apresenta o inconveniente de forçar os juízes de Foro de Rio Grande e Rio
Pardo a abandonar suas funções ordinárias, distanciando-se um sessenta e outro
trinta léguas de suas residências habituais. Em conseqüência do proverbial descaso e
morosidade que se aplica a tudo o quanto diz respeito à administração pública, a
Junta ficou, durante muitos anos, sem se reunir, e quando se reunia era por pouco
tempo. Este ano ela dissolveu-se após ter julgado quatro indivíduos, entre os
duzentos acusados existentes nas prisões de Porto Alegre. Segundo me informou um
dos membros da Junta, os crimes são aqui muito freqüentes principalmente entre os
negros, o que não é para admirar dado o fato de serem vendidos nesta Capitania os
escravos de má índole provenientes do Rio de Janeiro. (grifamos).

Como se vê, a criação das juntas era mero engodo na administração da Justiça na
Província de São Pedro do Rio Grande, devido à ineficiência da Justiça seja porque no Rio de
Janeiro era difícil reunir a prova ou por aqui a Junta Criminal não conseguir se reunir, acabou
se dissolvendo.
Apenas em 1833 a administração judiciária começaria a se delinear aos moldes
brasileiros, isso porque a legislação normativa só foi completada no ano anterior, com a
conclusão do Código de Processo Criminal de 1832. No mês de março de 1833, em
atendimento do Código de Processo Criminal, o Conselho Administrativo da província de São
Pedro do Rio Grande deliberou a nova organização judiciária, criando em seu território cinco
comarcas: Missões, Piratini, Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo. Os juízes de direito, um
ou dois por comarca (o menor número de magistrados necessários), eram nomeados pelo
Ministério da Justiça. Os promotores e os juízes municipais, pelo presidente da província, que
só poderia providenciar a nomeação depois de receber uma lista enviada pelas câmaras
municipais com o nome de no mínimo três candidatos idôneos para tais funções. Os juízes de
paz eram eleitos, no mesmo pleito dos vereadores, sendo as câmaras municipais responsáveis
pela organização do processo eleitoral.
Entre 1835 e 1845, o Rio Grande do Sul esteve envolvido na chamada Revolução
Farroupilha, as atividades administrativas e judiciárias ficaram amplamente prejudicadas em
função da guerra entre os imperiais e os farroupilhas. As marchas e contramarchas das tropas
e os constantes combates entre as tropas farroupilhas e imperiais impossibilitaram a
constituição do júri15, por não dispor de número suficiente para compor o seu Conselho de
Sentença.

15
FELIX, Loiva Otero; GEORGIADIS, Carolina; SILVEIRA, Daniela Oliveira, Tribunal de Justiça do RS: 125
anos de história 1874-1999. Porto Alegre: Tj/Rs, Departamento de Artes Gráficas, 1999, p. 32.
40

Assim, o quadro inicial era melancólico, a pouca eficiência e a inexperiência dos


magistrados enfrentava o óbice das aspirações políticas, o que tumultuava o funcionamento da
justiça. Ademais, como alerta Elaine Sodré (2006), com a nova exigência legal de serem os
juízes municipais ―tirados entre os seus habitantes formados em Direito, ou advogados hábeis,
ou outras quaisquer pessoas bem conceituadas, e instruídas;‖ era indício de inexperiência.
Importante frisar que as únicas duas faculdades de direito do país haviam iniciado seus
cursos em 1827 (Faculdade de São Paulo e de Olinda), mas frequentar uma delas demandava
custos elevados, inacessíveis para a grande maioria da população pobre, até para alguns
considerados abastados.

Por sua vez, a formação de uma elite homogênea, educada na Faculdade de Coimbra
e, a seguir, nas faculdades de Olinda-Recife e São Paulo, com uma concepção
hierárquica e conservadora, favoreceu a implementação de uma política cujo
objetivo era o da construção de um Império centralizado. (FAUSTO, 2002, p. 100).

Consequentemente, os bacharéis, advogados ou ―instruídos nas leis‖ se encontravam


fora da Província de São Pedro do Rio Grande. Não custa lembrar que a Faculdade de Direito
de Porto Alegre (UFRGS) tão-somente foi criada em 17/02/1900.
A dificuldade era imensa de se encontrar na província homens aptos para serem
magistrados e a Reforma de 1841 poderia ter solucionado esse problema, pois entre muitas
das alterações estava aquela que os juízes municipais passavam a ser nomeados pelo
Ministério da Justiça.
Contudo, na prática, permaneciam as dificuldades. Em 1847, em resposta à
Presidência da Província, se lê: ―se há dificuldade em encontrar, nessa província, Bacharéis
que aceitem os cargos de Juízes Municipais e de órfãos de alguns dos seus termos, muito mais
sensível se torna ela nessa Corte‖ (...) ―o Governo Imperial não perderá de vista devendo V.
Exª. entretanto, também diligenciar encontrar nessa província, bacharéis que queiram servir
tais cargos‖.
Na prática, nem um, nem outro era hábil em ―encontrar‖ pessoas que desejassem
preencher os cargos vagos. Uma solução possível foi remunerar melhor determinadas
localidades, em 1866, a presidência da província em correspondência ao Ministério da Justiça:
41

―lembra a conveniência de se mandar abonar aos juízes nomeados uma gratificação razoável,
como já se tem feito aos que vão para os termos da fronteira16‖.
Percebe-se a utilização de diferentes meios de convencimento, mas que nem sempre
foram eficientes e, na prática, o que se observa, pelo menos até meados do século XIX, é que
na maior parte do tempo quem de fato jurisdicionava eram os suplentes dos juízes municipais.
No mesmo sentido, a falta de atrações para o exercício da magistratura vem exposta na
obra de Nequete (2000), quando menciona a Mensagem na sessão de 29/01/1879, na Câmara
dos Deputados, do Ministro da Justiça Lafayete Rodrigues Pereira, menos pelas sugestões do
seu Projeto de Reorganização da Magistratura, do que pelas considerações em torno da
posição do Poder Judiciário no quadro das Instituições políticas, quando o Ministro explicou
ter vivido em contato com juízes e havia investigado as causas responsáveis pelo seu estado
de prostração, de fraqueza, mais: de profundo desalento e essas causas poderiam reduzir-se a
três:
a) Falta de independência pessoal;
b) Modicidade de vencimentos;
c) Pouco rigor nas condições para a primeira investidura.
A modicidade dos vencimentos, a falta de independência pessoal e o pouco rigor nas
condições para a primeira investidura seriam obstáculos enfrentados pelo Judiciário para
preenchimento dos cargos.
Além disso, quanto às nomeações feitas pelo Ministério da Justiça entre magistrados
que de fato ocuparam o cargo de juiz de direito, a primeira constatação é que eram
magistrados predominantemente brasileiros e de formação paulista e havia uma rotatividade
constante entre esses magistrados dentro da província. Permutavam de comarcas e não raro
retornavam as mesmas comarcas onde já haviam trabalhado.
Casos raros foram os de remoções para fora da província, situação que ocorria,
geralmente, apenas no momento de promoção para instância superior, sendo que o maior
número deles foi para a Relação do Rio de Janeiro.
Cita Elaine Sodré (2006), da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, em artigo
capturado na internet, ‖O poder judiciário no Império: práticas políticas e administrativas‖,
que praticamente todos os magistrados ocuparam outras funções além das judiciárias ao ponto
de poder se ler em um relatório provincial o seguinte: ―designei o Dr. Luiz Alves Leite de

16
Aviso do Ministério da Justiça de 2-3-1866. B1-114. Acervo AHRS
42

Oliveira Bello, Juiz de Direito da primeira vara desta Comarca, único de todos os Juízes de
Direito da Província que se acha em exercício‖.
Constata-se que, no momento, em que o relatório foi assinado, não haveria mais
nenhum juiz de direito no exercício de suas funções, sendo que o magistrado em questão Luiz
Alves Leite de Oliveira Bello era o vice-presidente da província, assumindo a função
executiva da administração provincial diante da ausência do titular.
Segundo Sodré (2006), essa situação inevitavelmente gera o questionamento sobre o
―paradeiro‖ de todos os juízes de direito da província, pois: ―Nem sempre estar fora de sua
jurisdição significava estar fora das atividades judiciárias‖. Argumenta, ainda, que a partir da
Reforma ao Código de Processo de 1841, as funções policiais teriam sido reforçadas e os
―cargos de delegado, e principalmente, o de chefe de polícia deveriam ser ocupados por
desembargadores ou juízes de direito, trazendo como fonte o Relatório do Estado da província
do Rio Grande de S. Pedro do Sul, apresentado ao Exmo. Sr. Conde de Caxias, pelo chefe da
divisão Pedro Ferreira de Oliveira, ao entregar-lhe a presidência da mesma província. Porto
Alegre: Typographia do Mercantil (1851. p. 6), do qual transcreve:

A segurança individual e de propriedade tem adquirido maiores garantias, e os


partidos políticos não tem lançado mão de meios criminosos para alcançar seus fins,
o que atribuo também a ação vigorosa, prudente e incessante da polícia que tem por
chefe o hábil e distinto magistrado o Dr. João Evangelista de Negreiros Sayão
Lobato, que conquanto permaneça a maior parte do ano impedido do exercício pelos
seus trabalhos legislativos, é constantemente substituído pelo não menos digno Juiz
de Direito da Comarca de Piratini o Dr. Antônio Ladisláu de Figueiredo Rocha.

Argumenta Elaine Sodré (2006) que pela fala do presidente da província se identifica
que os magistrados se encontrariam no legislativo, sentenciando que do quadro inicial de
juízes de direito, a maioria ocupou uma vaga de deputado. Até 1855 essa era uma situação
legal, o que apenas deixou de existir a partir dali, devido ao fato de que a lei eleitoral que
passou a vigorar naquele ano vetava a eleição de magistrados para cargos parlamentares na
sua área de jurisdição. Isso levou a que, na segunda metade do império, poucos juízes de
direito ocupassem cargos no legislativo, porém muitos dos juízes municipais passaram a
ocupar aqueles lugares. Apenas a partir da reforma de 1871, o juiz de direito ficou ainda mais
restrito às funções judiciárias.
43

Com isso, conclui que os cargos judiciários da primeira instância sempre estiveram
muito próximos das práticas administrativas, especialmente no poder executivo, assim como
das políticas, junto ao legislativo.
Quanto à segunda instância, a Constituição de 1824 previa a instalação de tribunais de
segunda instância, à época denominados de Relações e que seriam tantas quantas necessárias.
Tão somente em 1873, o governo editou uma série de decretos regulamentando a criação de
sete novos Tribunais de Apelação para o Império, totalizando onze. As províncias de São
Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina correspondiam ao território jurisdicionado pelo
8º distrito, com sede na cidade de Porto Alegre. Na primeira província, havia vinte e quatro
comarcas; e na segunda, dezessete.
Se na primeira instância foi possível observar os magistrados saindo fisicamente do
local das práticas judiciárias para assumir outras funções, com a segunda instância a situação
era diferente, sendo que os desembargadores não deixavam a Relação para desempenhar
outras atividades.
Contudo, apenas em 1874 foi criada na província gaúcha a Relação de Porto Alegre, o
que teve impacto na magistratura da província.
Nesse segundo caso, observa Elaine Sodré (2006), as Relações passaram a
desempenhar a função de fiscal de seus pares (do próprio poder judiciário), citando que na
Relação de Porto Alegre, entre 1875 e 1887, foram julgados quinze processos contra
magistrados por crimes de responsabilidade, sete juízes de direito e oito municipais foram
pronunciados pelo Tribunal da Relação.
É interessante o exemplo que Elaine Sodré (2006) traz do julgamento pela Relação do
caso do bacharel Evaristo de Araújo Cintra, juiz de direito da comarca de Alegrete, entre 1877
e 1878, que respondeu por três processos de responsabilidade, mas foi absolvido em todos,
inclusive com argumentos muito semelhantes, sendo que em dois deles se lê na conclusão do
acórdão do Tribunal que: ―visto como da argüida demora não se seguiu provavelmente
prejuízo público a particular‖, com isso, deixavam de pronunciar o juiz.
Bourdieu (2001), no campo do Direito, dirige suas críticas, defendendo que os
interesses no campo jurídico não estariam na eficiência jurídica ou na justiça social. Segundo
Bourdieu haveria uma luta no interior do campo jurídico determinando a divisão do trabalho
jurídico a ser imposto aos agentes e às instituições envolvidas. Existiria uma distinção entre os
profissionais integrantes do campo jurídico e aqueles que não fazem parte, os ditos profanos.
Entre os primeiros, os que fazem parte do campo jurídico, havia uma subdivisão entre os
teóricos e os práticos. Ao passo que os teóricos conceberiam o direito pela luz de uma teoria
44

pura, um sistema autônomo e auto-suficiente revelador da ―herança do Direito Continental


Romano Germânico‖ (DAYANE, 2009). Já os práticos pela teoria de Bourdieu vislumbram o
direito pela prática diária de casos que demandam uma solução, não no sentido de elaboração
de uma teoria pura do direito. Pela ótica dos práticos, a interpretação de textos legais serviria
para dar solução a casos concretos. Essa postura dos práticos se afina com as ―características
da tradição anglo-saxônica, muito mais próxima do ativismo judicial do que de uma
dogmática positivista‖ (DAYANI, 2009). Nesta ordem de ideias, o ―triunfo da formalização
do direito dependeria da capacidade dos teóricos e dos práticos para imporem a sal visão de
direito‖ (DAYANI, 2009), o que levaria o direito a tornar uma forma de violência simbólica,
perpetuada pela prática jurídica, vista como legítima.
Contudo, se constata que na época dos Muckers, prevaleceu o interesse atrelado à
crença no formalismo do direito, no reconhecimento dos valores que se litigam e no domínio
de suas regras.
É bem verdade que, na realidade, os Juízes no campo do raciocínio e da argumentação
jurídica normalmente pendem para uma das duas correntes, realista ou formalista, ou
assumem uma posição eclética buscando conciliar as duas correntes, ora assumindo uma
posição realista em um dado processo e em outras situações se enveredam a adotar uma
argumentação e raciocínio puramente formalista.
Na tese de mestrado defendida por Luiz Fernando Castilhos Silveira, titulada
Raciocínio e argumentação jurídicos e a dicotomia 'descoberta versus justificação':
compreensão, cognição e comunicação em Bernard Lonergan como via para pensar a questão
do solipsismo17, orientada por Darci Guimarães Ribeiro e defendida na Universidade do Vale
do Rio dos Sinos em 20/12/2007, resgatamos esta discussão acerca os inconvenientes dos
juízes adotarem uma ou outra linha de raciocínio e argumentação jurídica nas suas
manifestações, seja pelo exercício de um raciocínio puramente formal encobrindo outros
elementos que participam da prática forense ou pela perseguição de uma posição realista
comprometida com todo o subjetivismo desta praxe. Dentro deste debate, aponta a tese de
mestrado pela resolução de se focar apenas a justificação:

17
Solipsismo (do latim "solu-, «só» +ipse, «mesmo» +-ismo".) é a concepção filosófica de que, além de nós, só
existem as nossas experiências. O solipsismo é a consequência extrema de se acreditar que o conhecimento deve
estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta
entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles. O "solipsismo do momento presente"
estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente.
Com o intuito de demonstrar como considerava ridícula esta idéia, Bertrand Russel refere o caso de uma mulher
que se dizia solipsista, estando espantada por não existirem mais pessoas como ela. Disponível em:
www.wikipédia.com.br. Acesso em: 14 nov. 2010.
45

(...). Este trabalho trata de uma investigação de aspectos do raciocínio e


argumentação jurídicos, tomados como caso particular do raciocínio e argumentação
em geral enquanto elementos necessários à produção de conhecimento (jurídico ou
qualquer outro). Uma das premissas da pesquisa diz respeito ao fato de que
raciocínio ou argumentação jurídicos compreendem mais do que aquilo comumente
atribuído pelos juristas a esses campos. Concepções tradicionais, via de regra
calcadas em uma racionalidade típica da modernidade, se reportam ao Direito como
interpretação (de normas, regras, leis, princípios, ou de fatos juridicamente
relevantes, e assim por diante) e aplicação (dos mesmos elementos, subsumindo uns
aos outros); o papel do processo seria o de permitir que se reconstrua os fatos, por
meio da prova e dos argumentos das partes, sendo que a função do julgador seria a
de, abstendo-se da discussão, dizer o Direito com base nesses elementos (normas
mais fatos). Pode-se dizer, caricatamente, que argumentação seria tomada pelas
afirmações de possíveis (ou desejosamente necessárias) interpretações; e, raciocínio,
por uma dedução lógico-formal a partir daquilo que é interpretado. Pensadores não
demoraram a notar, no entanto, que essa descrição da prática judicial é insatisfatória,
por dois motivos principais: a um, porque um tal formalismo não é desejável, visto
que, frente a problemas tais como a impossibilidade de se antever todas as
possibilidades de aplicação das normas, é causador, não raro, de péssimas soluções
jurídicas; a dois, porque não é, de fato, uma boa descrição das atividades racionais e
argumentativas desempenhadas no âmbito jurídico e é corrente a denúncia dos
realistas americanos, no sentido de que a manutenção de uma estrita aparência de
raciocínio puramente formal em verdade encobre todos os outros elementos que
participam da prática do Direito, deixando-os operar livremente. Essa segunda
concepção do raciocínio e argumentação jurídicos não conseguiu, porém, se
desvencilhar das acusações de permitir uma arbitrariedade e uma subjetividade
excessivas (problema, note-se, em que incorrem os extremos das duas posições,
formalista ou realista). Uma das “soluções” a esse impasse foi o de esquecer a
problemática da descoberta (como se chegam às decisões ou se criam soluções
para problemas jurídicos), focando apenas a justificação (como se as
fundamenta) (...). (grifamos).

Nada obstante, na época dos Mucker, se verificava a ascensão do positivismo no


campo jurídico e a influência kantiana18 das teorias filosóficas metafísicas do conhecimento
do século XIX. Com a promoção do positivismo, a epistemologia passa progressivamentede
de teoria do conhecimento à teoria da ciência, e não especificamente das ciências empíricas da

18
A teoria kantiana foi desenvolvida por Immanuel Kant ou Emanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 —
Königsberg, 12 de fevereiro de 1804). Ele foi um filósofo prussiano, geralmente considerado como o último
grande filósofo dos princípios da era moderna, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes.
Depois de um longo período como professor secundário de geografia, começou em 1755 a carreira universitária
ensinando Ciências Naturais. Em 1770 foi nomeado professor catedrático da Universidade de Königsberg,
cidade da qual nunca saiu, levando uma vida monotonamente pontual e só dedicada aos estudos filosóficos.
Realizou numerosos trabalhos sobre ciência, física, matemática, etc.
Kant operou, na epistemologia, uma síntese entre o Racionalismo continental (de René Descartes e Gottfried
Leibniz, onde impera a forma de raciocínio dedutivo), e a tradição empírica inglesa (de David Hume, John
Locke, ou George Berkeley, que valoriza a indução). Kant é famoso, sobretudo pela elaboração do denominado
idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência)
para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar. A filosofia da
natureza e da natureza humana de Kant é historicamente uma das mais determinantes fontes do relativismo
conceptual que dominou a vida intelectual do século XX. No entanto, é muito provável que Kant rejeitasse o
relativismo nas formas contemporâneas, como por exemplo, o Pós-modernismo. Kant é também conhecido pela
filosofia moral e pela proposta, a primeira moderna, de uma teoria da formação do sistema solar, conhecida
como a hipótese Kant-Laplace. Disponível em: www.wikipédia.com.br. Acesso em: 14 nov. 2010
46

natureza (valorização do conhecimento a partir da experiência, da prática). Hans Kelsen19,


nascido poucos anos após o conflito dos Mucker, foi um dos juristas de maior influencia no
século XX, o qual veio a formular a Teoria Pura do Direito20 e abstraiu do conceito do Direito
a ideia de justiça.
Inobstante toda essa discussão doutrinária entre as duas práticas dos juristas, entre os
realistas e os formalistas, é inquestionável que o formalismo jurídico que se verificou ver
aplicado no processo dos Mucker se revelou prejudicial aos réus. Pois, como vimos, a demora
na solução do litígio judicial teve contribuição da estratégia dos colonos de não
comparecerem nas audiências e, a isso, se somaram os erros de procedimentos ocorridos no
percurso do processo, deduzindo-se que o Judiciário: aplicou a forma e abstraiu a realização
da justiça.
Como podemos demonstrar, tanto na primeira quanto na segunda instância, o Poder
Judiciário além de suas ―atribuições naturais‖ desempenhou direta ou indiretamente funções
em outras esferas administrativas e políticas. E pelo que se constata do julgamento antes
citado, onde estava sendo acusado o juiz de direito da comarca de Alegrete, o Tribunal (a
Relação) foi tolerante, uma vez que consabido que os magistrados desempenharam múltiplas
funções e que a burocracia imperial era composta por eles. Resultado deste julgamento

19
Hans Kelsen (Praga, 11 de outubro de 1881 — Berkeley, 19 de abril de 1973) a quem se atribui a teoria kansi
foi um jurista austro-americano, um dos mais importantes e influentes do século XX. Disponível em:
www.wikipédia.com.br. Acesso em: 14 nov. 2010)
20
Com a Teoria Pura do Direito desenvolvida por Kelsen, o Jurista procurou lançar no campo teórico as bases de
uma Ciência do direito, excluindo do conceito de seu objeto (o próprio Direito) quaisquer referências estranhas,
especialmente aquelas de cunho sociológico e axiológico (os valores), que considerou, por princípio, como sendo
matéria de estudo de outros ramos da Ciência, tais como da Sociologia e da Filosofia. Assim, Kelsen, por meio
de uma linguagem precisa e rigidamente lógica, abstraiu do conceito do Direito a ideia de justiça, porque esta, a
justiça, está sempre e invariavelmente imbricada com os valores (sempre variáveis) adotados por aquele que a
invoca, não cabendo, portanto, pela imprecisão e fluidez de significado, num conceito de Direito universalmente
válido.
Uma de suas concepções teóricas de maior alcance prático é a ideia de ordenamento jurídico como sendo um
conjunto hierarquizado de normas jurídicas estruturadas na forma de uma pirâmide abstrata, cuja norma mais
importante, que subordina as demais normas jurídicas de hierarquia inferior, é a denominada norma hipotética
fundamental, da qual as demais retiram seu fundamento de validade. Com o tempo Kelsen concretiza sua
formulação afirmando que tal norma fundamental é a norma de direito internacional que aduz que os pactos
devem ser cumpridos. Todavia, muitos constitucionalistas se apropriaram da teoria da pirâmide Kelseniana e
formularam modelos nos quais a constituição surge como norma fundamental, modelos dos quais se extrairia o
conceito de rigidez constitucional, o que vem a possibilitar e a exigir um sistema de tutela da integridade da
Constituição. Apropriação e modificação, uma vez que Kelsen possuía uma visão monista do Direito, com
primazia do Direito Internacional sobre o nacional e por isso seria contraditório considerar a Constituição de um
Estado como norma fundamental, uma vez que na verdade a validade da Constituição estatal deriva do Direito
Internacional.
Sobre a teoria kelseniana é de grande relevância o volume do filósofo do direito italiano Mario G. Losano (a cura
di), "Forma e realtà in Kelsen", Comunità, Milano 1981, 229 pp. (Trad. em espanhol: "Teoría pura del derecho.
Evolución y puntos cruciales", Bogotá 1992, XVI-267 pp.). O autor é também organizador do volume que ilustra
a polêmica entre Hans Kelsen e Umberto Campagnolo, a propósito do direito internacional, cuja edição brasileira
è Hans Kelsen - Mario G. Losano, "Direito Internacional e Estado Soberano", Martins Fontes, São Paulo 2002.
Disponível em: www.wikipédia.com.br. Acesso em: 14 nov. 2010.
47

manifestado através de acórdão foi no sentido do órgão colegiado não ter imposto nenhuma
condenação ao magistrado em face da morosidade. A desídia deste juiz não sofreu uma
reprimenda, sob o fundamento de não ver a instituição de segunda instância ―prejuízo público
a particular‖.
48

CONCLUSÃO

Com base nestas considerações se pode retomar a questão Mucker e apresentar o


conjunto de conclusões para explicar como o caso terminou sem que ninguém fosse
condenado. Inobstante tivessem muitos dos Mucker sobreviventes permanecido prisioneiros
durante o curso dos processos judiciais e sob a custódia do Estado, alguns deles, devido ao
excesso de prazo na formação da culpa, se livraram por força de soltura provocada pelo
remédio heroico do habeas corpus para aguardar o julgamento em liberdade. Os demais
tiveram que aguardar presos até a conclusão do processo.
O encerramento da análise se prende especificamente às circunstâncias envolvendo o
Poder Judiciário daquela época das agitações provocadas pelo movimento dos Mucker e, em
especial, das falhas correntes na instituição do Judiciário, servindo o estudo no sentido de
colaborar para o entendimento do tema problematizado.
Os elementos colhidos no trabalho de pesquisa levaram a compreender através de um
exercício analítico a apreender as determinações e as especificidades que se expressam na
realidade empírica quanto à situação da magistratura provinciana. A situação do Poder
Judiciário do Rio Grande do Sul não era diferente do que ocorria no Judiciário nas demais
províncias do Império.
Observou-se que a magistratura era lerda, ineficiente e incompetente na condução dos
processos que lhe eram submetidos. Os juízes se enveredavam a adotar outras práticas que
não essencialmente jurisdicionais. Eles passavam a figurar na cena política e atuavam
diretamente nos quadros do legislativo ou regulamentavam os pleitos eleitorais. Este acúmulo
de funções foi altamente prejudicial ao exercício das funções judiciárias, levando a inúmeras
falhas e erros de procedimento na condução do processo ou, quiçá, a erros de julgamento
quanto ao mérito (‖error in judicando‖).
Assim, a magistratura ao assumir outras funções alheias a sua natureza fez com que a
máquina do Judiciário se emperrasse com desvio nos seus objetivos precípuos de julgar. Com
isso, este órgão perdeu a sua flexibilidade e agilidade de alcançar a prestação jurisdicional
rápida e eficiente, somando o fato de incorrer em erro de procedimento nos seus julgamentos.
Com efeito, os resultados obtidos com a pesquisa permitiram constatar que ao longo
do Império, o Poder Judiciário sempre esteve inserido tanto nas práticas políticas quanto nas
administrativas.
49

Mas é certo dizer que, no caso dos Mucker, o fato de ter impelido os membros do
Poder Judiciário daquele período a assumir várias atribuições políticas e administrativas levou
à absolvição de todos os envolvidos?
Indubitavelmente, o Poder Judiciário daquela época ao extrapolar a natureza do seu
poder para abarcar atribuições de ordem político-administrativa não observou a evolução de
suas próprias pertenças, inerentes à sua atividade jurisdicional.
Além desse problema jurídico, havia a questão social pertinente ao estigma que pesava
sobre os Mucker. Com a instalação dos conflitos com os colonos, o grupo estigmatizado
representado pelos Mucker, na condição de um grupo outsider, se viu espremido à margem da
sociedade e veio a ser alvo de uma série de represálias.
Não se olvide o leitor, ao responder às agressões, primeiro, os Mucker optaram pela
via pacífica de peticionar às autoridades competentes os direitos que entendiam terem lhes
sido violados. A partir do momento em que os Mucker viram que essa estratégia não oferecia
solução às suas pretensões se sentiram abandonados pelo Governo Central. A falta de atenção
do Estado com a situação que estava ocorrendo com eles, compeliu os Mucker a apelar ao
revide aos colonos. Com isso, se desencadearam todas as formas de violência, cuja
responsabilidade criminal foi apurada nos processos judiciais. Responderam ao processo
criminal apenas os Mucker, envolvidos no conflito com os colonos, certamente um efeito
induzido e consequente da pecha do estigma que incorria sobre eles.
Certamente, a estratégia adotada pelos colonos de não comparecer às audiências,
esconde uma violência simbólica. Possivelmente ocorreu de forma deliberada, com intenção
consciente ou não dos colonos de prejudicar o grupo estigmatizado dos Mucker. Nesta altura,
os opositores dos colonos estavam presos. Como ensina Bourdieu (1994), a imposição
consentida de um arbítrio cultural aos dominados, não detentores de capital simbólico,
inquestionavelmente é uma forma de violência simbólica. Notadamente foi flagrante toda a
forma de hostilidades que desta violência simbólica decorreram até culminar no conflito
armado para extermínio dos Mucker.
Os Mucker foram considerados por seus contemporâneos como excluídos, outsiders
(―os de fora‖). Essa tática dos colonos de se opor ao bom andamento do processo por verem
nisso uma maneira de prejudicar os seus oponentes, acabou contribuindo para tumultuar ainda
mais aqueles processos judiciais a que os Mucker respondiam.
Adicionando-se este inconveniente que levou a vários adiamentos à prática de atos
processuais com a fragilidade do Judiciário da época – onde os magistrados assumiam
inúmeras funções alheias à atividade jurisdicional, resultou na deflagração dos problemas
50

verificados na instrução dos processos contra os Mucker. O somatório de todos estes fatores
influiu na anulação de sentenças judiciais exaradas de cunho condenatório proferidas contra
os Mucker na condição de réus. Tais decisões judiciais exaradas pelos magistrados estavam
contaminadas por pecar a fase cognitiva processual da má observação pertinente aos preceitos
processuais. As sentenças foram alvo de censura pela instância superior, aliás, como não
poderia ser diferente, num sistema Judicializado pela crença das regras dentro do campo
jurídico, mais do que a eficácia jurídica ou justiça.
Não podemos olvidar que, à época, muitos nobres juristas defendiam a monarquia e a
escravidão com vários argumentos, inclusive constitucionais. Afinal, interpretava-se a
Constituição apenas com elementos jurídicos, sem adentrar nos aspectos sociais e políticos.
O clientelismo tecia uma rede unificadora da política no Brasil do século XIX
alicerçando em todos os planos os atos políticos Os Juízes buscavam avançar dentro de uma
hierarquia profissional. Mas, o Judiciário não poderia ser um poder independente se os juízes
dependiam do Governo Imperial que os nomeava, fazia as transferências e a sua própria
aposentação, sempre ao sabor dos interesses políticos, em especial dos presidentes das
províncias.
Dentro deste contexto, sorrateiramente, assim, no Tribunal de Relação de Porto Alegre
procedeu a reforma dos julgados de primeira instância, inclusive quanto ao próprio mérito.
O triunfo da formalização jurídica da época dos Mucker acabou por consagrar a
violência simbólica, perpetrada pela prática jurídica vista como necessária e conveniente ao
sistema imperial. Os colonos conhecedores das regras jurídicas e portadores de capital cultural
e político engendraram uma estratégia, consciente ou não, de não comparecerem às
audiências, cuja ação negativa trouxe invariavelmente prejuízos aos Mucker que estavam
presos.
Esta crítica no que diz respeito ao foco dado pelo Judiciário da época tem sentido. O
Judiciário estava preso a um formalismo jurídico - que se constituiu numa verdadeira crença
no reconhecimento dos valores em conflito e o domínio pelas regras dentro do campo jurídico
(BOURDIEU, 2002), mais do que a eficácia jurídica ou da justiça social. Os magistrados
ostentando um capital jurídico e político gozavam de prestigio social. O Direito se
constituindo um campo autônomo é o resultado das lutas entre os agentes na distribuição do
poder, impondo-se aqueles detentores do capital jurídico sobre os despossuídos do mesmo. A
característica deste campo jurídico à época dos Mucker se revestia pelo exagerado formalismo
jurídico.
51

A circunstância da ilegalidade na tramitação do processo, por error in procedendo,


acarretou uma demora melancólica a feito judicial até ser afastada pelo tribunal. A Corte
Recursal com hierarquia superior aos juízes de primeira instância, mais tarde retomou o
julgamento derradeiro, porém os Mucker como réus, mesmo todos absolvidos, saíram
prejudicados por terem permanecido encarcerados sem uma culpa formada.
Por tais motivos, não causa espécie a anulação do processo geral dos Mucker pelo
Tribunal de Relação de Porto Alegre, seja devido ao erro na aplicação da lei na condução do
processo ou pela própria crença no formalismo jurídico. Como a ilegalidade levantada no
recurso processual não era sanável e, constatado o vício perante o Juízo ad quem a anulação
do processo era a consequência imediata, contribuindo assim para a longa marcha processual
até o julgamento definitivo da causa.
Logo leva a se arrematar que essa prática política-administrativa da magistratura
nacional não foi diferente durante o período de instrução e julgamento dos processos dos
Mucker, embora houvesse sido instalada, em 1874, a Relação em Porto Alegre e a legislação
tivesse sofrido uma nova reforma em 1871. Essas novidades não eram suficientes para alterar
a estrutura deficiente do Judiciário da época, sob as amarras do formalismo jurídico,
possibilitando que, ao final do processo, todos os envolvidos acabassem sendo absolvidos.
52

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