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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

ESCOLA DE HUMANIDADES
FACULDADE DE ESCRITA CRIATIVA
REPERTÓRIO II
Profa. Maria Tereza Amodeo

Acadêmica: Ana Claudia da Silva Nascimento de Sá.


Matrícula: 21201322.
Data: 01/10/2021.

Conceição Evaristo, bela e desconcertante

A produção literária de Conceição Evaristo, é tão bela quanto desconcertante.


Desconcertante, porque retrata a condição da mulher afrodescendente em uma sociedade
estruturalmente racista e machista. E bela, porque a maioria das suas personagens são
mulheres sonhadoras e afetivas, são: as mães, as esposas, as filhas e as irmãs que carregam no
peito uma nítida esperança de que no futuro, seus descendentes possam viver uma vida
melhor.
Na obra Olhos D'água, Conceição nos apresenta em seus contos, uma sequência de
mulheres à margem da sociedade e que são constantemente maltratadas pela miséria, pela
fome e por pessoas que as violentam não só por suas vulnerabilidades sociais, mas também
pela cor de suas peles. Assim, no conto de mesmo nome do título da obra, conhecemos uma
mãe e suas sete filhas, e elas tentam superar e enganar a fome por meio do afeto, por exemplo:
"[...] nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. [...] Eu
sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa
fome. E a nossa fome se distraía." (p. 16-17).
No conto Ana Davenga, Ana estava grávida e ainda que fosse inocente, pagou com a
própria vida, pelos erros de seu parceiro quando a polícia entrou na casa deles; a inocência de
Ana, de nada importava, e a sua morte não virou notícia como foi noticiada a morte de um
policial; Ana foi só mais uma morte banal, só mais uma moradora de favela, só mais um
inconveniente resolvido e finalizado "pela lei": "[...] Os noticiários depois lamentavam a
morte de um dos policiais em serviço. Na favela, os companheiros de Davenga choravam a
morte do chefe e de Ana, que morrera ali na cama, metralhada, protegendo com as mãos um
sonho de vida que ela trazia na barriga." (p.30)
Em Maria, temos a realidade de uma mulher que trabalhava na casa de outras pessoas,
e ela se contentava com os restos de comidas de seus patrões, porque para ela, era um luxo
levar uma sacola de frutas, das quais ela não tinha condições de adquirir no cotidiano e
oferecer aos filhos. Maria estava em mais um dia comum, fazendo seu trajeto rotineiro para
casa e foi brutalmente assassinada, ouviu várias vezes sobre sua cor antes de morrer, como se
a cor de sua pele fosse a confissão de um crime do qual ela não havia cometido: "[...] ela
levava para casa os restos.[...] Ganhara as frutas e uma gorjeta." (p.39) E também:
"[...]aquela negra safada [...] Lincha!Lincha!Lincha! [...] quando chegou a polícia, o corpo
da mulher estava todo dilacerado, todo pisoteado."(p.42)
Em Insubmissas lágrimas de mulheres, Conceição Evaristo nos conta sobre crianças
raptadas e escravizadas, que tiveram suas infâncias e suas vidas roubadas em um momento em
que elas queriam experimentar um tanto de felicidade:" [...]Um jipe e um casal estrangeiro
(depois, com o tempo, descobri, eram pessoas do sul do Brasil) em nossas paragens. Pararam
em nossa porta, desceram, conversaram conosco e ofereceram aos grandes, caso eles
permitissem, um passeio com a criançada. Foi permitido."(p. 38)
Já em Ponciá Vicêncio, a autora nos apresenta o quanto o conhecimento, por vezes, é
negado de acordo com a cor da pele do indivíduo, e isso fica perceptível no trecho a seguir:
"[...] Negro não pode aprender. [...] Negro aprendia sim! Mas o que é que negro ia fazer com
o saber de branco?"(p. 15)
Em síntese, ainda que cada conto seja escrito de forma tão poética, eles nos
desconcertam; é que as histórias são tão cruas e reais, que é como se depois que víssemos uma
reportagem de tragédias na televisão, fôssemos conhecer a verdadeira história e o verdadeiro
sentimento de cada vítima. O título Olhos D'águas, é fiel ao sentimento que nos causa em
muitas linhas, é que os olhos úmidos e já embaçados, cansados de ler tanta dor, tentam fechar.
Porém, fechar os olhos para essas histórias, nunca deverá ser uma opção.

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