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gligente deixar um enfermo sofrer desnecessariamente por um sentimento de medo,

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ignorância ou confusão mental, quanto o é deixá·lo com uma dor física.
Sete anos trabalhando com pacientes terminais e seus familiares, acompanha­
do de colegas que também fazem o mesmo, deram·me a certeza de que as habil ida­
des dos psiqu iatras e psicoterapeutas podem contribu ir para a com preensão e um
melhor manejo da doença terminal. Tenho feito palestras a um número muito gran­
de de profissionais, incluindo colegas psiquiatras, clínicos-gerais e residentes, estu·
dantes de medicina e teologia, enfermeiras, assistentes sociais e conselheiros. As
perguntas que fazem regularmente mostram a evidência das áreas onde eles encan­
A luta contra o câncer:

tram maior dificuldade. Suas respostas me convenceram de que seria válido registrar
o

o que aprendi, a fim de torná-lo mais acessível aos interessados. a história de uma família

O cenário que figura neste trabalho é uma Unidade de Tratamento Intensivo


que faz parte do hospital geral, integrante do Serviço Nacional de Saúde, com apre­
ciável apoio externo. Ela conta com vinte leitos para os pacientes internados. Ou·
tros são procurados por enfermeiras que visitam enfermos fora do hospital, e muitos
são atendidos numa cI ínica de pacientes externos e unidades que atendem durante
as vinte e quatro horas do dia. To~osos pacientes são adultos e, em geral, portadores
de câncer. Alguns vieram a nós já próximos ao fim da vida, mas outros foram aten­
didos a tempo de usufruir das técnicas de controle de sintomas que todas estas uni­
dades estão desenvolvendo. Eles podem receber alta e ser readm it idos várias ve­ Os Bradwells eram uma família sem problemas, no sentido usual deste termo.
zes, durante meses ou até mesmo anos; alguns deles escolhem morrer em casa, quan­ William, professor universitário, morava numa bela casa num dos melhores bairros
do conseguem conviver com seus problemas. da cidade. Sua esposa, Françoise, era francesa, estabelecida na Inglaterra e vivia fe­
Embora a experiência clínica baseie-se numa unidade de tratamento um tanto liz, embora sentisse saudades de sua família, que residia próximo a Paris. O casal ti­
especial izada, as discussões com colegas de outros hospita is e a prát ica geral com· nha um filho fora de casa, estudando na Universidade, e duas filhas, numa excelen­
provaram que isto é altamente aplicável. Quase todas as opiniões com relação a con­ te escola. Aparentemente, eles constituíam uma família feliz, bem sucedida, até
duta prática, que serão encontradas neste volume, podem ser igualmente úteis em Françoise descobrir um nódulo no seio, um câncer posteriormente confirmado, cuja
t
outros casos, contanto que a equipe tenha interesse, conhecimento e tempo neces­ .' disseminação ocorreu rapidamente. A doença repercutiu em toda a família, provo­
sár ias. cando problemas psicológicos causadores de muito sofrimento. A história dessa fa­
Uma pessoa escreveu este Iivro, porém os colaboradores foram muitos. Os pa­ mília, escolhida para dar início a este livro, ilustra o quanto pode ser feito em be­
cientes são excelentes mestres. Muito deste trat?alho baseia-se num projeto de pes­ nefício do paciente e de sua família, para ajudá-los a ajustarem-se à doença e dimi­
quisa, onde 41 casais, diante da perspectiva da morte e da perda da pessoa querida, nu írem o sofrimento que a mesma lhes causava. Com esse objetivo, apresentaremos
compartilharam suas experiências comigo. Muitas gravações foram feitas e todos fragmentos de comentários e considerações da própria Françoise. No próximo capí­
permitiram que seus relatos fossem registrados para que novas v ítimas do câncer se tulo, apresentaremos os fundamentos teóricos do trabalho e discutiremos várias ir:­
beneficiassem com eles. Nessas narrativas, os nomes dos pacientes ou de outras pes­ tervenções.
soas envolvidas foram alterados, para preservar sua privacidade; mas os episódios O cI ínico geral achava desagradável visitar a casa dos Bradwells porque encon­
relatados e respectivos detalhes são inteiramente verídicos. trava as portas fechadas. Quando acionava a campainha, Will iam aparecia para rece­
bê-Ia e o conduzia ao quarto onde Françoise se encontrava. Logo em seguida, desa­
parecia. Ambos trocavam algumas palavras ao sair o cl ínico, e jamais este falou com
o casal reunido. As filhas nunca apareceram, embora, algumas vezes, ele tivesse per­
cebido que elas estavam em casa. Preocupava-se com elas. Deviam imaginar o quan­
to a mãe estava doente, mas não lhe era permitido procurá-Ias para falar com elas.
Freqüentemente duvidava se elas não estariam ouvindo por detrás das portas.
Françoise ficou arrasada ao descobrir um nódulo no seio. Ela sempre teve pa­
vor de doença, e esta não era a primeira vez em que suspeitava estar com câncer.

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cheu-se de coragem para pedir-lhe que ficasse mais tempo. O professor realmente
o nódulo era pequeno e o cirurgião decidiu removê-lo prontamente, assegurando­ o fez, muitas vezes cochilando na cadeira ou corrigindo provas. Contudo, nunca
lhe que o mesmo era benigno. Porém, quando Françoise acordou da anestesia, conversavam abertamente entre si. Certo dia, William me procurou, no refeitório,
William revelou-lhe que as suspeitas dela tinham-se confirmado. O tumor era malig­ para perguntar por que ele podia falar comigo sobre a morte da esposa, e ela, apa­
no e a mastectomia que ela tanto receava fora realizada. Assim, os membros da fa­ rentemente, também podia fazê-lo; no entanto, quando ele tentava falar com Fran­
mília compartilharam da verdade, mas raramente voltaram a tocar no assunto. No çoise, tudo o que esta parecia querer dele era apoio. Chegamos à conclusão de
início, Françoise ficou apavorada. "Horrível, perdi completamente a cabeça" foi a que falar com o médico sobre a morte é bastante doloroso; porém, falar com o
maneira como descreveu-me seus sentimentos. Ela se recuperou muito bem da ope­
próprio marido é muito mais dif ícil, pois envolve a separação de alguém a quem se
ração e a seguir fez sessões de rad ioterapia. No início tudo parecia estar correndo
ama.
bem, como ela mesma disse: "Parecia que, em poucos meses, havia recuperado mi·
Um dos funcionários do hospital tinha uma menina colega de escola das fi.lhas
nha saúde, e o meu equil íbrio mental estava muito bom." de Françoise e William. Ficamos sabendo, então, que estas iam mal no estudo, e que
Passados esses poucos meses, ela comJ!Çou a sentir dores nas costas. As radio·
as amigas estavam preocupadas com elas. Nenhum dos dois pensou se as meninas de­
grafias revelaram que o câncer se espalhara, atingindo os ossos. Françoise voltou à
veriam ser informadas sobre a seriedade da doença de sua mãe, especialmente quan­
rad ioterapia; contudo, quando uma dor d im inu ía, outra começava, e ela percebeu;
do estavam preparando-se para as provas, e as at ividades escolares tinham uma im­
"Era uma coisa atrás da outra. Eu estava na iminência de ter um colapso mental. e
portância enorme naquela casa. Os pais relutavam em considerar a idéia de que as fi­
mais parecia um animal encurralado."
lhas, extremamente inteligentes, tivessem adivinhado a verdade sobre a mãe. A equi­
Perguntei-lhe como se sentia em casa, antes da cirurgia.
pe pressionou-me para persuadir o pai a falar com as jovens, e resolvi tocar no assun­
"É difícil descrever, você sabe, era um sofrimento tanto físico quanto mental. to com ele. William negou que as filhas estivessem contrariadas ou que tivessem per­
Eu gritava em casa, mesmo quando ficava sozinha, durante o dia. Estava apa­ cebido a verdadeira situação, e ofen~eu-se, porque eu, um estranho, sabia mais so­
vorada, pois nada mais era feito, exceto irradiação. Todos me afirmavam estar bre o que se passava na cabeça de suas filhas do que ele, o próprio pai. Um pouco
fazendo o que podiam, porém eu me sentia sozinha, suportando o sofrimen­ hesitante lhe disse que ficáramos sabendo, por fonte indireta, que suas filhas nao
to. Freqüentemente, eu gritava, quando estava só e, algumas vezes, quando iam bem na escola, embora estivessem escondendo isto, muito bem, em casa. Ele
meu marido estava em casa. Ele não sabia o que fazer ou do que se tratava. não acreditou. Sugeri, então, que telefonasse para um dos professores delas e desco­
Era difícil explicar-lhe, porque, a esse tempo, nos comunicávamos muito pou· brisse por si mesmo. Não sei se William fez isso; só sei que, na noite seguinte, pai e
coo Meu marido ia trabalhar todas as manhãs e saía como se tudo estivesse filhas conversaram longamente, durante o jantar, e a conversa produziu apreciáveis
bem. Eu ia às consultas no hospital e voltava em seguida. Ele chegava à tardi­ resultados. Mais tarde (depois da conversa que as garotas tiveram comigo no hospi­
tal), quando perguntei a Françoise se o relacionamento entre William e as meninas
nha e me perguntava como passara o dia; esta pergunta era feita como se nada
tinha mudado, ela respondeu:
estivesse acontecendo. Então, eu escondia, até não agüentar mais, quando ti­
nha esses ataques de gritos." "Muito, quase inacreditável. A respeito de comunicarem-se, William disse, ou­
tro dia, uma frase fora do comum. É que, realmente, ele nao se dava conta de
Ao chegar pela primeira vez no hospital, Françoise gritava. Tinha dores todas
que nossas filhas já são adultas; pensava nelas ainda como adolescentes. Certa­
as vezes que nós a mov íamos; no entanto, não era fácil aliviá-Ia com as drogas habi·
mente, não as supunha com a maturidade que já demonstram. Acho que essa
tuais, tal como esperávamos; logo entendemos haver um componente de medo mui·
maturidade resultou da conversa que elas mantiveram no hospital e que mu­
to grande. Estava apavorada de tal modo, que ficava tensa o tempo todo; e suas ex·
dou muito o seu relacionamento com o pai. Anteriormente, todos evitavam
pressões revelaram que seu problema era maior do que uma simples dor física. Fui
alusões ou não falavam a respeito de minha moléstia, mas agora tudo se escla­
chamado para ajudar. A princípio, ela relutava em crer que um psiquiatra tivesse ai'
receu. O medo e o sofrimento diminu íram muito, por meio de uma intimida­
go para oferecer a uma pessoa como ela. Somente muito mais tarde pôde admitir
de fam ii iar genu í na. Antes disso, todos procuravam esconder a verdade."
que muitos dos gritos representavam medo de morrer, sem que alguém compreen­
desse como ela se sentia e quanto estava doente. Françoise passou a ver seu marido como um homem muito intel igente, cuja
As enfermeiras nota ra m qu e Fra nçoise pa rec ia mu ito 50 Iitá ria e recebia pou­ cabeça estava nas nuvens, e não se envolvia com os assuntos domésticos. Tentava
cas visitas. O marido ficava com ela poucos minutos em cada visita, embora soubés­ protegê-Io da tensão da vida diária e não via quanto ele era capaz de corresponder na
semos que seus colegas tinham-se oferecido para assumir suas tarefas, a fim de que ocasião necessária. Quando ela ficou acamada, o pai e as meninas-moças começaram
ele ficasse mais tempo com Françoise. Ele dizia não poder abandonar os alunos e ela a trabalhar juntos, de uma maneira nova, o que deixou a enferma bem mais tranqüi­
respeitava os seus compromissos de trabalho. Um dia, ela me confidenciou que gos· la. Falando sobre as meninas-moças ela disse:
taria de vê-lo mais seguidamente e, ao perceber que compreendi como se sentia, en·
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"Aquilo provavelmente fazia parte do sofrimento anterior. Elas queriam saber roo, e, de volta do hospital, andava pela casa, muito bem, tomando parte nos afaze­
como o pai se sairia frente ao fato, se eu desaparecesse. E que seria delas? Es­ res domésticos. Falava freqüentemente que tinha esperanças de curar-se. Quando fi­
tou cp.rta de que isso era parte de seu medo, e elas presumiam que para ele cou mais fraca, sua irmã veio para lhe fazer companhia e ajudar a enfermeira. Uma
certamente seria horr ível. Não estou dizendo que seria fácil - mas, certamen­ semana antes de sua morte, ela disse, pela primeira vez, a William não ignorar que
te, agora elas compreendem que W.illiam poderia enfrentar. Antes, eu achava estava morrendo, e acrescentou em seguida: "Há algo que eu possa fazer, no sentido
que, se eu desaparecesse, tudo ruiria; agora antevejo que todos podem adap­ de tornar isso mais fácil para você, depois?". Então falaram abertamente e discuti­
tar-se à situação com suas próprias capacidades. Não quero dizer com isso ram onde ela queria ser sepultada. No dia seguinte veio o padre, e, depois da sua vi­
que entender a capacidade de eles lutarem seja motivo para eu desanimar. Ao sita, a esperança brilhou uma vez mais. Françoise ficou entusiasmada com uma des­
contrário, isso me deu mais determinação para lutar e adaptar-me à nova si­ coberta que poderia ajudá·la. Mas isso não aconteceu. Em sua própria casa, onde an­
tuação. " teriormente tivera intenso medo, ela morreu em paz.

A última observação refere-se ao fato de que ela estava na iminência de ir pa­


ra casa, depois de vários meses no hospital. Tinha se Iivrado da dor e co nsegu ira um
equilíbrio entre a aceitação e a esperança; sentia-se capaz de encorajar a família, pa­
ra enfrentar o fato de que ela "ia morrer", mas estava determinada a viver da me­
lhor maneira possível, enquanto estivesse em casa.
Isso ela conseguiu (faleceu, em casa, poucas semanas mais tarde). Normalmen­
te, após sua saída do hospital, teríamos mantido contato com ela e a família, através
de nossas enfermeiras; mas, nessa ocasião, o clínico geral e sua equipe tinham se res­
ponsabilizado inteiramente pelo caso. Gostaria de ter mantido contato com os Sra­
dwells, mas percebi que a minha presença não era bem-vinda. Embora soubesse que
eu queria vê-Ia, Françoise nunca me chamou. Descobri, mais tarde, que, em certa
ocasião, ela dissera ao marido, meio irritada comigo, que nunca mais queria ver-me.
Depois, ela não disse a William que tinha mudado de idéia e ele ficou com a impres·
são de que a sua raiva ainda persistia. Mais tarde, ele disse a um amigo que a equipe
do hospital tratara sua esposa muito bem, com exceção do psiqu iatra, que era assaz
intruso. Provavelmente, foi ele quem insistiu para que o cl ínico geral assumisse o
tratamento, a fim de assegurar-se de minha exclusão.
Um ano mais tarde escrevi a William, perguntando se poderia usar partes das
gravações de sua esposa, para ilustrar uma conferência que estava fazendo. Ele me
convidou para ir à sua casa e me disse que as filhas, agora, achavam que os pais lhes
tinham negado oportunidades de participar da doença da mãe, e que gostariam de
ouvir a gravação. Com um pouco de receio, deixei-a com eles e me ofereci para vol·
tar mais tarde e discutir alguns pontos, caso quisessem rever..Nada mais fiquei sa·
bendo sobre as jovens, mas o pai me escreveu, dizendo que ouvir a gravação foi uma
experiência muito estranha para ele. Diz ia, também, que partes do que ouviu não
eram verdadeiras, e que Françoise nunca gritava em casa. Acreditei nela, porque a
ouvi gritar no hospital. Teria ele reprim ido as lembranças por serem basta nte peno­
sas, ou ela, que sempre gostou de dramatizar, exagerou-se, no hospital, para ter cer·
teza de que eu compreenderia como era intenso o seu sofrimento? Isso nunca sa­
beremos.
Durante a minha visita, Will iam falou-me sobre o período em que Françoise
esteve em casa e sobre a sua morte. O cI ínico geral e a enfermeira vinham regular­
mente; a enferma continuava sem dor. Ela mandara colocar uma cama no andar tér­

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,~

4. os problemas sociais e psicológicos preexistentes.

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Para nustrar a utilidade de uma lista de problemas, apresentamos a seguir a
que fo i ret irada das notas de Françoise e que será usada para organizar o estudo e a
discussão sobre o caso.

Teoria e prática: A listagem dos problemas

a história interpretada 1. Carcinoma de seio com múltiplas ramificações ósseas secundárias, exigindo
muito cuidado e originando muito medo de dor e de ficar deformada.
2. Comunicação bloqueada com o marido e com as filhas, e entre estas e aque­
le. Relutância em deixar-se entrevistar.
3. As jovens reconhecem ter insucesso escolar, mas nada dizem a seu pai.
4. Falta de diálogo com a mãe sobre sua enfermidade. Ela, preocupada com
isso, mas também silenciosa, na suposição de estar agi ndo corretamente.
5. Problemas conjugais - ela que sempre deu apoio, agora é quem precisa; am­
bos com dificuldade de se ajustarem a esta mudança.
No trabalho com pacientes terminais e seus familiares, uma aproximação 6. Ela se recusa a ver os am igos, embora sempre pareça desejar alguém ao seu
orientada para o problema é de mu ita utilidade. Antes de mais nada, o paciente de­ lado; não vai ao espelho e está com raiva do seu corpo, por tê-Ia decepcionado.
seja falar sobre a causa de sua preocupação no momento, e devemos perm it ir que a 7. Medo de se tornar viciada em morfina, e da dependência em geral.
disponibilidade de tempo atenda essa necessidade. Mais tarde, poderá ser feito um 8. Medo de não adaptar-se ao ambiente, quando voltar para casa.
histórico formal, que perm ita maior compreensão dos antecedentes da situação em Somente os dois primeiros itens foram inicialmente anotados; todos os ou­
foco, e assegure que informações importantes não sejam omitidas. Isso, algumas ve­ tros, acrescentados no decorrer do trabalho.
zes, deve ser deixado para entrevistas posteriores. O objetivo da primeira entrevista OS PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO, muito freqüentes, na maioria das ve­
é estabelecer uma boa Iigação com o paciente e, sobretudo, conquistar a sua coope­ zes, são os mais fáceis de se resolver. A fam ília Bradwell apresentava mu itos deles.
ração, esclarecendo que algo de útil poderá ser feito por ele. Para esse fim, é conve­ Está descrito no capítulo precedente como se procedeu para ajudar as duas filhas. O
niente fazer uma lista de problemas - uma tarefa da qual o paciente pode partici­ filho estava fora de casa, e suas necessidades foram negligenciadas por todos nós.
par. Para o propósito deste livro, define-se o problema como sendo a área de preo­ Françoise ocultou a sua doença, quanto pôde, de sua mãe; porém, antes disso, con­
cupação acerca da qual: tou para suas irmãs. O trabalho que foi feito com o casal merece aqui um comentá­
1. precisa-se tomar prov idênc ias espec íficas, ou r io mais detalhado.
2. o paciente e o terapeuta concordam em prosseguir conversando, ou Como já foi visto anteriormente, percebemos logo de início que algo estava
3. efetuar entrevistas com outras pessoas. errado entre Françoise e William, pois as suas visitas eram muito breves e ela ficava
O progresso pode ser revisto mais tarde, observando-se o resultado dessas me­ perturbada, depois que ele ia embora. William justificava-se que nao podia abando­
didas. Mesmo na primeira entrevista, com suas tensões naturais, deve-se dispor de nar os alunos; ela concordava em que o trabalho dele era tão importante que não
tempo para a conversa amistosa e também para o silêncio, levando o paciente a fa­ deveria sofrer interrupções para ele visitá-Ia. A enferma estava, dessa forma, usando
zer perguntas e a mostrar seus sentimentos. uma maneira defensiva, para não dividir seu sofrimento, e isso significa que ela nega­
Os problemas freqüentemente enfrentados pelos pacientes terminais podem va sua própria necessidade. Françoise adm itiu, logo em seguida, que gostaria de ver
ser considerados em quatro grupos e formam a estrutura na qual está baseado este seu marido mais vezes, mas não podia pedir-lhe suas visitas. Ela sempre se via a pes­
Iivro. São os segu intes: soa que dava, que protegia; agora devia aprender que lhe competia pedir, e pensar
1. a exposição dos problemas; mais em si mesma.
2. os efeitos imediatos da doença e do tratamento; Passou um fim de semana depois da minha primeira entrevista com Françoise.
3. as reações de ajustamento impostas pela mudança de papéis; Na segunda-feira, ela me cumprimentou, dizendo:

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"Tenho novidades para você... Você me deu coragem para falar com William.
Eu lhe disse que teria, provavelmente, mais duas semanas de vida e que preci­ . Em uma ocasião, quando lhe falei que William desejava compartilhar mais dos
sava dele. As prioridades mudaram. Agora ele está vindo mais seguidamente." sentimentos dela, sua resposta foi furiosa:
Quando sua esposa lhe fez esta revelação, ele ficou profundamente comovido. "Antes, ele não queria falar; estava em pânico, porque eu gritava. William é
Ela tentava, antes, protegê-lo e depo is acu sava-o de desatento. t. um intelectual - não está acostumado com essas coisas. Eu estava m.orrendo
Quando ela descobriu como era agradável chamar diretamente a atenção e sozinha e ele não sabia como eu me sentia. Agora, ele quer falar sobre tudo, e
obtê-Ia, tentou recuperar o tempo perdido e passou a exigir demais de William. "Es­ terá de esperar."
tou testando-o, para ver quanto ele fará por mim", disse Françoise. Ele pareceu ter O vigor da sua resposta mostrava quanto era importante para ela que ele não
compreendido isso, realizando, com paciência e boa vontade, todos os seus incoe­ percebesse quanto ela sabia.
rentes desejos e absurdas solicitações. Talvez, ele também estivesse querendo com­ O marido teve de esperar por mais de três meses. Tanto quanto a necessidade
pensar o tempo perdido. Mais tarde, um equilíbrio foi alcançado. Ela pareceu ter de ela manter sua defesa, parte da sua reserva para com o marido representava o de·
compreendido melhor que era amada, e não precisava comprová-lo a todo instante. sejo de protegê-lo da tensão. No dia que ela lhe disse saber que estava morrendo
Se ele precisava sair para uma conferência e não podia visitá-Ia como de costume, (apenas uma semana antes de isto acontecer) ela acrescentou logo em seguiçja: "Há
ela aceitava essa ausência e não mais se lamentava ante as enfermeiras, para compen­ algo que eu possa fazer para tornar isso mais fácil para você, depois?"
sar-se. O que aconteceu depois já foi descrito. Se Françoise e William não tivessem
O casal alcançou, desta maneira, um novo nível de compreensão; mas, ainda aceitado a ajuda oferecida a eles, provavelmente o resultado teria sido bem diferen­ . I
assim, havia algumas lacunas evidentes. Por muito tempo, William acreditou que te. Ele, provavelmente, teria continuado a lutar absorvendo-se no seu trabalho, e ela
Françoise não tinha idéia do quanto estava doente. Ele achava que as observações teria seu trespasse isolada, longe dele, talvez num hospital.
tais como "Eu posso ter apenas duas semanas de vida" eram puramente retóricas e A dor de Françoise representava um dos PROBLEMAS DI RETAMENTE RE­
não implicavam uma aceitação profunda da situação. Ele estava parcialmente certo. LACIONADOS COM SUA DOENÇA. Sem a psicoterapia é bem provável que ela
Uma vez, no decurso de uma conversa, eu lhe disse: "Se você pudesse viver apenas nunca tivesse sido controlada satisfatoriamente. Na sua gravação, Françoise falava
um ou dois anos... ". Ela lançou-se sobre mim em lágrimas e furiosa. Eu a fiz lem­ como se o medo da morte fosse algo do passado, quando ela estava sozinha em casa
brar que, fazia pouco, ela mesma tinha mencionado menos tempo. Françoise com muita dor, pensando que ninguém a compreendia e pouco estava sendo feito
respondeu-me desta maneira: "Eu posso dizer coisas como esta, mas você nunca para ajudá-Ia. Quando ela chegou ao hospital, todos nos conscientizamos de que es­
deve fazê-lo. Eu quero esquecer isto, agora". Este incidente fqi motivo para ela távamos tratando com uma mulher apavorada e que também o medo impedia que
dizer a William que eu era muito grosseiro, para ser um psiquiatra, e que ela não nós alivíassemos a sua agonia. Depois de várias semanas quase sem dor, a "angústia"
queria ver-me nunca mais. Após seu falecimento, William surpreendeu-se ao desco­ apareceu novamente, quando lhe foi sugerido fazer uma visita em casa. Ela disse que
brir que nós nos tínhamos encontrado outras vezes, e que ela gravou muita coisa estava ansiosa para ir, "mas que isso seria impossível uma vez que a dor havia retor­
depois desse episódio. nado." Quando eu lhe disse que ela poderia estar com medo de ir para casa, Fran­
Ela, talvez, não tivesse falado com William sobre a continuidade do nosso rela­ çoise ficou irritada, embora eu tenha explicado que o medo era muito compreensí­
cionamento, porque eu a ajudava não só a manter a esperança, como também a acei­ vel, uma vez que as últimas semanas envolveram muito sofrimento. Aceitei a sua rai­
tar a inevitabilidade da morte. Quando se sentia melhor e o medo da morte desapa­ va e pedi que considerasse a possibilidade de haver uma ligação entre a volta da dor
recia, ela não queria que isso abalasse .a sua esperança. Algumas pessoas podem al­ e a visita proposta. Na próxima vez que a vi, ela comentou: "Eu não me supunha da­
cançar aquele notável equilíbrio, onde aceitam, logo e totalmente, a morte, devido quela espécie de gente que tem dor por razões emocionais. Achava que somente as
a sua doença. E esta aceitação, depois de um período inicial de tristeza, náo prejudi­ r·~·
outras pessoas eram assim."
ca a sua maneira de viver e lutar pelo presente. Para alguns isso é até um est ímulo. A maior parte dos problemas relacionados com a doença e o tratamento é
"Já que a minha vida será curta, quero fazer tudo o que posso, agora", dizem eles. atendida, diretamente, pela equipe de especialistas que abrange cirurgiões, radiotera­
Outros, como Françoise, têm ta nto medo de morrer que só podem manter a espe­ peutas, etc. Os pacientes, contudo, preferem discutir seu tratamento com alguém
rança reprimindo o medo e negando que estão morrendo. O marido, na ocasião, que não esteja encarregado do caso: quem entenda, mas sem responsabilidade. Fran­
compreendeu isso melhor do que eu, e foi do apoio dele que ela precisou. Talvez, çoise mu itas vezes sofria sem necessidade, pois se recusava a tomar morfina adequa­
ela tivesse percebido que, se o casal falasse abertamente sobr.e o fato de ela estar da, por achar vergonhoso, mas também com medo de ficar dependente dela e, por
sucumbindo, a negação como defesa não estaria disponível para ela. A enferma ne­ isso, a estigmatizas·sem como viciada. Ficou contente em saber que, provavelmente,
cessitava, desesperadamente, desta defesa, pois sabia, por experiência, quanto o me­ não seguiríamos aplicando ou aumentando a dose e, assim que esta lhe fosse desne­
do significava para ela, especialmente em casa. cessária, não teríamos dificuldade em reduzi-Ia novamente. Ela considerava uma de­

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SOnra depender totalmente de drogas; mas, quando lembrou que os diabéticos de­ seus benefícios. Poderia, mesmo, ser considerado como um verdadeiro sacrifício,
pendem da insulina e os pacientes com, por exemplo, artrite reumatóide, também pelo seu alcance, porquanto possibilitou que ela fosse tratada em casa, e nao mais
vivem melhor quando a sua dor é controlada com sucesso, ela aceitou a medicação no hospital. O mais importante é que o caso ilustra a capacidade dos pacientes de
com menos ansiedade. aproveitarem a psicoterapia, e de que modo esta pode complementar o trabalho de
A DIFICULDADE EM ADAPTAR-SE às limitações causa, muitas vezes, sofri­ todos os outros membros da equipe médica, conseguindo, pelo menos, uma solução
mento desnecessário, e aqui também a psicoterapia provou a sua ajuda a Françoise. parcial para o que, a princípio, parece a mais atemorizadora série de problemas.
Era óbvio que ela se encontrava solitária. Toda a vez que uma enfermeira e'ntrava no
quarto, ela mantinha conversa, exigindo muito tempo e atenção. Mas quando pes­
soas amigas telefonavam, desejando vê-Ia, Françoise reiteradamente recusava a sua
visita.
O modo como discutimos isto com ela ajudou-a a compreender que sentia in­
veja dos amigos estarem gozando de ótima saúde, e não queria ser lembrada de que
estava perdendo a sua. Era verão, e ela não queria ouvir falar sobre tênis, pois não
podia jogar. Quando superou isso, passou a receber suas visitas e ficou muito menos
isolada. Então, já não exigia a anterior atenção e amizade das enfermeiras. Só na
ocasião que lhe estava facultado ir para casa, ela aceitou completamente que nunca
mais poderia jogar tênis, mas pretendia ir assistir aos jogos, na esperança de que tal­ ?·l
vez seus amigos a convidassem para ser o juiz.
OS PROBLEMAS PREEXISTENTES podem aparecer diante de uma nova
,~
tensão, tal como a ameaça de uma doença terminal. Determinados padrões de casa­ 11
mento e vida familiar podem parecer satisfatórios a todos os envolvidos até aquele ;:~~~
momento, mas causam uma considerável dificuldade no ajustamento, quando o frá­ '.i"

:,1

gil equilíbrio é perturbado. Isso foi o que aconteceu com Françoise e William. Ele .4
·,1
era um homem de talento, absorvido em seu trabalho, e ela achava que a sua tarefa
principal de esposa era protegê-lo contra a tensão e cu idar dele e dos filhos. Esse pa­
pei, para ela - senhora muito inteligente ealegre - era assaz limitador. Françoise pro­
~
curou lecionar numa parte do dia, o que ela gostava de fazer. Mas esta não era ain­ 't
da uma boa solução. Sua família a considerava uma pessoa preocupada demais com .~

os mínimos detalhes do andamento da casa; era tão minuciosa que irritava e ao seu
redor tudo tinha de estar perfeito. Muitas coisas que pareciam triviais à sua família
eram mu ito importantes para ela. Mesmo antes da doença, Françoise sempre estava
mu ito preocupada com a sua aparência e com a sua saúde. Tentava comer e dar pa­
ra sua fam ília uma ai imentação correta; tomava todas as med idas para manter-se
saudável e afastar os sinais prematuros da meia- idade. Não é de admirar que ela não
quisesse olhar-se no espelho, quando ficou magra e pálida, embora, se o tivesse fei­
to, talvez se surpreendesse ao ver uma beleza nova e diferente que surgia, refletindo
uma enorme tranqüilidade. Ela tinha verdadeiro pavor de doença e de morte. As
suas filhas me disseram: liA mamãe estava sempre pensando que tinha alguma doen­
ça grave. Entretanto, foi a última pessoa a enfrentar o que estava acontecendo."
Mesmo assim, ela enfrentou muito bem. Françoise e William tinham mais pro­
blemas do que outros casais da série de pesquisas que eu estava fazendo. Dediquei
mais tempo a eles do que a qualquer outro caso. Durante dez semanas, tive vinte en­ i
trevistas com Françoise e vários membros de sua família, algumas de poucos minu­
tos; outras, porém, muito longas. Este foi um investimento pequeno comparado aos tJ ~

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