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Jean-Pierre Deffieux
A recusa da psicose
Murielle é uma jovem de vinte anos, que nos foi enviada por um ser-
viço de psiquiatria no qual acabara de passar alguns dias. Os médicos hesitaram
entre uma etiologia orgânica e uma conversão histérica. No formulário de admis-
são podemos ler o seguinte: “ela foi hospitalizada devido a uma artralgia nos
punhos e tornozelos com ritmo inflamatório, provocando grandes queixas. O
Revista Curinga | EBP - MG | n.13 | p.87-95 | set. | 1999 |88|
Uso da metonímia em um caso de psicose
desencadeamento é brutal: em plena noite, ela sentiu dores muito fortes nas qua-
tro extremidades, sem deformação, sem aumento de calor local. Ela chamou
várias vezes os serviços de SOS médicos nas noites seguintes e acabou sendo
hospitalizada para um exame geral que se revelou negativo”. O diagnóstico de
conversão histérica foi, então, feito “com relação a uma labilidade emocional e
uma certa teatralidade no quadro de uma depressão”.
É assim que Murielle chega de ambulância à clínica. Imediatamente ela
pede uma cadeira de rodas para se deslocar. Com nossa ajuda, acaba descendo
lentamente da cadeira e leva cinco minutos para percorrer os vinte metros que a
separam do consultório médico. Seu sofrimento é, aparentemente, muito gran-
de, mas logo de início ela anuncia: “eu quero ficar curada”.
É urgente estabelecermos o diagnóstico de estrutura. A contenção da
entrevistada e interrogatórios difíceis, que duraram mais de uma semana, nos
levaram, finalmente, a refutar o diagnóstico presumido de conversão histérica e
nos orientaram na direção de uma hipocondria no sentido freudiano, ou seja, um
retorno de gozo sobre o corpo a ser situado no quadro de uma estrutura psicótica
do tipo paranoico. As entrevistas são difíceis, pois Murielle está totalmente colada
no seu sofrimento e, a cada vez, é preciso tirá-la desse estado para que ela possa
dizer algumas palavras sobre o que pôde causar o desencadeamento dessa crise.
Durante os primeiros dias, marcamos uma consulta com um especia-
lista de processos inflamatórios, a fim de afastar qualquer possibilidade de uma
síndrome orgânica rara que pudesse nos escapar. Constatamos, de vez em quan-
do, vermelhões que poderiam ser inflamatórios, com um leve edema e uma
pequena febre durante vários dias. O especialista pensa que não há nenhuma
etiologia orgânica, mas pede exames complementares para descartar a possibili-
dade de se tratar de uma síndrome rara de colagenose, visto a eritrodermia que
ela apresenta, a leve febre e a amplidão de seus sofrimentos. Esse diagnóstico
será descartado após os resultados dos exames. A possibilidade de qualquer pro-
cesso orgânico será definitivamente eliminada. A etiologia da febre ficará desco-
nhecida; quanto aos vermelhões e ao ligeiro edema, eles terão sido causados
pelos movimentos permanentes exercidos pela paciente sobre seus membros.
Dos onze aos dezoito anos, Murielle usará um corpete todas as noites:
o corpete é composto por duas conchas de gesso fixadas uma à outra e trocadas
a cada dois meses. É o pai que, todas as noites, “a coloca” no corpete e dá os
laços que o prendem. Seu corpo é, então, mantido em uma concha, somente os
membros ficam livres.
Aos dezoito anos, os médicos decidem retirar definitivamente o cor-
pete de gesso. Ela suporta mal essa decisão: “eu não me sentia mais sustentada”,
diz.
Ela queria bengalas para se apoiar, faixas de algodão para manter seus pés bem
apertados. Ela caminhava totalmente encurvada, extremamente devagar, apoian-
do-se em tudo o que encontrava. Ao longo das semanas, a intensidade, a locali-
zação, a qualidade e o ritmo das dores variavam, e foram diminuindo até desapa-
recer.
Os rituais abrandaram, assim como o pedido de contenção. Um traba-
lho de pesquisa, quanto ao sentido delirante a ser dado a esse gozo enigmático,
tornou-se essencial: “meus pés estão dormindo, eu não sei mais andar”. “Minhas
dores mudam, os dedos dos meus pés estão rígidos, é como se houvesse um fio
dentro deles”. “Isso vem da cabeça e eu massageio os pés para que isso vá embo-
ra”. Ela olhava seus dedos dos pés: “olhem, eles estão colados, eu não os sinto
mais, eles incham, eles me incomodam”.
As crises se espaçaram e ela pôde começar a se interessar e a falar de
outra coisa.
As demandas foram menos insistentes, menos urgentes. Aproveitamos
para adiar as nossas respostas, para prorrogar suas demandas, para limitar cada
vez mais nosso apoio.
Essa posição deliberada adotada nesse caso não foi claramente calcu-
lada.
Foram, provavelmente, as referências teóricas aos ensinos de Freud e
Lacan, associadas ao savoir faire de cada um, que fizeram com que não recuásse-
mos em nomear a escolha da interpretação. O guia teórico nesse caso foi bastan-
te simples: nós localizamos, seguimos e acompanhamos o fio metonímico do
sujeito, dando-lhe todo o seu valor terapêutico, que era o de margear esse gozo
invasivo. Qual é aqui essa série metonímica? É preciso fazê-la começar pelo ritual
da bacia d’água quando ela era pequena, dar todo valor ao corpete da adolescên-
cia e, a partir daí, acompanhar o obstinado trabalho metonímico da paciente
durante a hospitalização. Esse trabalho começa pelo ritual do banho dos pés e
das mãos e, sempre seguindo essa série, ele vai se limitar pouco a pouco em
molhar os pés, envolver as mãos numa toalhinha molhada e enfaixar os dedos
dos pés.
O último elemento da série lhe foi proposto durante uma entrevista,
ou seja, o conselho de usar um “creme hidratante”. Esse último elemento lhe
será suficiente de agora em diante.
O sofrimento desapareceu completamente, mas ela ficou com um
andar particular, precavido, como se pisasse em ovos. Visivelmente, ela não habi-
tava seu corpo, ela desconfiava do que ele podia lhe reservar, o que, aliás, não a
impediu, de forma alguma, de fazer ginástica quotidianamente e com muito
ardor.
Conscientes de que ela não era mais um puro Sujeito do gozo, nossa
preocupação foi a de permitir que ela restabelecesse relações com o Outro.
Pouco a pouco, nós a inscrevemos em uma nova série, a das diversas atividades
do estabelecimento.
Foi, então, que verificamos que não basta que um estabelecimento
proponha atividades para que elas tenham uma função terapêutica. Elas são, a
maior parte do tempo, um enxerto ocupacional. Certamente uma rede de ativi-
dades no seio de um estabelecimento é útil, mas com a condição de que cada
sujeito possa se inscrever nela por um percurso singular.
No caso de Murielle, o que permitiu que ela reinvestisse um laço social
após esse corajoso combate com o gozo que ocupara todos os espaços, foi a sua
inscrição numa revista semanal, onde era pedido que ela selecionasse, junto com
outras pessoas, uma série de artigos sobre um determinado tema no conjunto
das publicações da imprensa. Depois, ela tinha que participar da elaboração da
revista que, em seguida, era afixada numa parede do estabelecimento, exposta ao
olhar de todos os pacientes.
Havia chegado para ela, de novo, o momento de exercer a disciplina
do corpo por meio dos movimentos de ginástica e também de reencontrar um
laço estruturado com o Outro e com o mundo.
Compreendemos com esse caso, no qual a psiquiatria não tem os ele-
mentos para uma localização clínica, a utilidade da psicanálise na instituição para
o estabelecimento do diagnóstico de estrutura. Mas, teremos também mostrado
que a interpretação vai amplamente além dos limites de um tratamento analítico
estrito. Na instituição e na psicose, ela pode ser, como nesse caso, nem tanto
palavra interpretativa, mas a escolha de uma conduta que se apoia no sentido que
cada um dá ao esforço inventado pelo sujeito para escapar do seu sofrimento.
Isso não acontece sem uma descoberta de cada um daqueles que atendem nessa clí-
nica.
NOTAS
1 DEFFIEUX, Jean-Pierre. Usage de la métonymie dans un cas de psychose. In: Mental n. 5,
Bruxelles, 1998, p. 95-106.
2 N.T.: Brevet de Technicien Supérieur, diploma francês que corresponde ao nosso curso técnico.