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História da Pedagogia
FRANCO CAMBI DA HISTÓRIA DA PEDAGOGIA À HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
São Paulo: UNESP, 1999 Ao longo dos últimos 25 anos operou-se uma profunda transforma-
ção metodológica na pesquisa histórico-educativa, levando a uma radical
mudança de orientação: da "história da pedagogia" passou-se à "história
da educação". Como e por que ocorreu essa mudança? Para responder a
essa pergunta é necessário fazer outra, preliminar a essa: o que era a his-
tória da pedagogia cujo declínio foi decretado pelos últimos decênios?
Como e por quem era exercida? E para quem?
A história da pedagogia no sentido próprio nasceu entre os séculos
XVIII e XIX e desenvolveu-se no decorrer deste último como pesquisa
elaborada por pessoas ligadas à escola, empenhadas na organização de
uma instituição cada vez mais central na sociedade moderna (para for-
mar técnicos e para formar cidadãos), preocupadas, portanto, em su-
blinhar os aspectos mais atuais da educação-instmção e as idéias mestras
que haviam guiado seu desenvolvimento histórico. A história da peda-
gogia nascia como uma história ideologicamente orientada, que valori-
zava a continuidade dos princípios e dos ideais, convergia sobre a
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, quisa doravante reconhecidos e reconhecíveis pela autonomia de ol~jetos história e desenvolver sua pesquisa científica, conduzida segundo prin-
e métodos que os marca, assim COlIlOpela tradiçflo de pesquisa que os cípios metodológicos profunda.rnente renovados. Pelo menos quatro orien-
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une. Assim, aparecem cada vez COIlImaior clareza na pesquisa histórico- tações: 1. o marxismo; 2. a pesquisa dos Annales e a história total; 3. a
educativa a história das teorias e a das instituiçÔes escolares e formativas, contribuição da psicanálise para a pesquisa histórica; 4. o estruturalismo
a história da didática ou do costume ('ducativo, di! infáncia e das mU'lheres e as pesquisas quantitativas.
ou do imaginário (adulto, juvenil 011 int~Ultil). O marxismo trouxe à luz - no que diz respeito aos eventos históricos
Desd~ os anos 50, e cada vez mais nitidamente desde os anos 60 e 70, e às suas matrizes supra-estruturais (sobretudo políticas) - o papel da
desenvolveu-se assim um modo radicalmente novo de fazer história de estrutura econômico-social e incitou a estudar as complexas mediações'"
evelllos pedagógico-educativos, que rompeu com o modelo teoreticista, que ligam economia e política, política e cultura, cultura e sociedade. As
unitário e "continuísta" do passado, fortemente ideoló~ico, para dar vida investigações de Gramsci neste campo foram exemplares e influencia-
a uma pesquisa mais problemática e pluralista, bastante articulada e dife- ram profundamente a pesquisa histórica, e não apenas na Itália. Para os
renciada que - considerada no seu conjunto - pode ser definida como pesquisadores marxistas, a história aparece como luta de classes e de
história da educaçflo, lOmando a noç;io de educaçflo st:ja como cOlÜunto ideologias, que se articulam em torno de sistemas de produção e que
de pr.íticas sociais seja como feixe de saberes. Desde a metade dos anos visam à hegemonia histórica, influenciando cada ámbito da vida social,
70, a passagem da história da pedagogia para uma mais rica e or~ánica da família ao Estado e à cultura. A pesquisa histórica torna-se investiga-
história da educaçflo tornou-se explícita, insistente e consciente, afir- ção complexa, atenta às genealogias profundas dos vários fenômenos (so-
mando-se como uma virada decidid;1 e decisiva. E nflo se tratou de uma bretudo econômico-sociais), jogada através do entrelaçamento de muitos
simples mudança de rótulo; pelo cOl\trário: tratou-se de uma verdadeira saberes e pronta a colher conflitos e contradições, hegemonias e oposi-
e legítima revoluçflo historiográfica que redesen,llOu todo o domínio his- ções. Também a escola dos Annales (uma revista nascida na França em
tórico da educaçflo ~ todo o arsenal da sua pesquisa. Esquematizando,- 1929 e que teve um papel fundamental na renovação da pesquisa histó-
podemos dizer: passou-se de um lIllldo fÍ'cluulo de fazer história em edu- rica, além de uma notoriedade realmente mundial) se inspirou no mar-
caçflo e pedagogia para um modo liberto, consciente da riqueza/comple- xismo, trazendo à luz as permanências ou estruturas referentes aos "acon-
xidade do seu campo de pesquisa t' da "ariedade/arliculaçflo de métodos tecimentos", mas enriqueceu e matizou sua lição ao introduzir o estudo
e instrumentos que de\'em ser usados para desenvolver de modo ade- de estruturas (ou infra-estruturas) não só econômicas, como a mentalida-
quado o próprio trabalho. de, tendo em vista uma história por inteiro, que leve em conta todos os
Por outro lado, a transformaç;lll amadureceu em estreita simbiose fatores e aspectos de um momento ou de um evento histórico. Os Annales
com toda ullla mudança historiogr<ilica, que no curso de alguns decênios sublinharam, assim, o pluralismo da pesquisa histórica e o jogo comple-
xo das muitas perspectivas que acabam por constituí-Ia, relacionando-a
produziu uma no\'a imagem do "ÜIZ('J'história", nascida em torno daque-
com as diversas ciências sociais.
las que podem ser definidas como ;Istrês revoluções historiográticas do
pós-guerra. Quanto à psicanálise, foi sobretudo a área americana que, através da
"psico-história", afirmou sua aplicação à pesquisa histórica. A psico-história
é o estudo das mentalidades coletivas e individuais, legíveis, porém, de
2 TRÊS REVOLUÇÕES EM HISTORIOGRAFIA modo crítico, inspirando-se apenas nos mecanismos que identificam o
pensamento freudiano (inconsciente, repressão, conflito do eu etc.). Neste
flmbito, dirigiu-se a ateriçãoem particular sobre a família, na sua dimensão
Foi através da ação cOl~unta (k muitas orientaçÜes historiográficas
que se 'chegou a determinar a transformação no modo de entender a espiritual e no seu papel de conexão nas diversas sociedades. As inves-
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tigações de Erikson sobre o jovem Lutero ou de De Mause sobre a his- tórico e ler sua estrutura e seu devenir, mas se 'realiza em torno de rriúl-
tória da infância ou ainda de Loewenburg sobre o nazismo são exemplares tiplas metodologias, diferenciadas por objetos, por processos cognitivos,
desta orientação de pesquisa e manifestam o recurso ao estudo dos me- por instrumentos lógicos, de modo a fazer ressaltar o pluralismo das abor-
canismos de formação, seja para o indivíduo seja para os grupos, indivi- dagens e sua especificidade. Doravante, estamos longe da prática do
dualizando um âmbito em que sociedade e mentalidade aàbam por historicismo à maneira de Croce e de Gramsci, que se desenvolvia em
interagir intimamente. torno de um modelo; ao contrário, reconhecemo-nos num tipo de traba-
Enfim, o estruturalismo (pense-se em Foucault) e a história quantita- lho histórico que se desenvolve em muitas histórias e segundo muitos mé-
tiva (utilizada amplamente por Le Roy Ladurie) puseram o acento sobre todos, desde a "história estrutural", econômica, social, "das mentalidades", "
aquilo que é impessoal na história, sobre as estruturas que ref,'l.tlamos até a dos eventos, a local, a oral-vivida, a psico-história, a etno-história, a
comportamentos individuais em profundidade (sejam instituições ou história do cotidiano ete.: são todos âmbitos diferentes de pesquisa que
mentalidades) e as leram como variáveis quantitativas, sujeitas a análises reclamam métodos ad hoc e uma reflexão metodológica que exalte suas
sociais, a reconstruções estatísticas. A história da sexualidade de Foucault autonomias e sua variedade, além das intersecções e convergências na
ou a história do tempo de Ladurie, apesar das profundíssimas diferenças, "história total". A historiografia atual perdeu, portanto, a certeza do mé-
têm alguns pontos em comum, como o recurso às permanências e à sua todo, assumindo a dos métodos e dando vida a uma intensa dialética
função genética no âmbito da produção dos fenômenos históricos. E são metodológica, a que se remetem os historiadores mais atentos dos últimos
permanências objetivas, quer pertençam à história da cultura ou à his- decênios, de Braudel a Aries, de Stone a Le Goff, de Duby a Vilar, de
tória social, profundamente ligadas à natureza ou àquilo que aparece como Veyne a Koselleck. A história se fez pluralista e implicou uma transfor-
tal aos olhos dos homens. mação dos métodos que pusesse em relevo seu complexo jogo recíproco,
No cruzamento dessas diversas posições (além de outras: como a etno- feito de autonomia e de integração, e sua gestão reflexiva (metame-
história, por exemplo) realizaram-se as três revoluções cruciais da todológica: reflexão em torno dos métodos, do seu estatuto, da sua fun-
historiografia contemporânea. A primeira referiu-se aos métodos e afir- ção, da sua riqueza e variedade).
mou sua liberalização e seu radical pluralismo. A segunda tratou do tem-
po, dando vida a uma visão pluralista e dialética do tempo histórico. A
terceira voltou-se para os documentos, ampliando esta noção, articulan- A REVOLUÇÁO DO TEMPO
do-a e desenvolvendo uma nova percepção das fontes e uma nova orga-
nização dos arquivos. Dessas três revoluções, amadureceu uma imagem Foi particularmente Braudel quem pôs às claras este processo de re-
crítica da história, que trouxe à luz o pluralismo das abordagens e a com- visão da temporalidade histórica, mostrando como o tempo histórico é
diferente daquele, artificial, dos relógios ou do tempo, vivido, das práxis
plexidade de sua fisionomia, assim como a dialética do tipo de pesquisa
que vem investigá-Ia. cotidianas. Diferente, antes de mais nada, porque plural, poliestruturado,
problemático e jamais unívoco-unitário. Diferente, depois, porque liga-
do ao ponto de vista, à intencionalidade que guia seu uso e sua
A REVOLUÇÁO DOS MÉTODOS estruturação. Três, diz Braudel, são os tempos da história (e do histórico):
o dos acontecimentos (ou eventos), próximo do vivido e do cronológico;
Foi uma revolução profunda e radical que trouxe à luz sobretudo seu um tempo fracionado e ligado ao caleidoscópio daquilo que acontece,
pluralismo. O "fazer história" não está ligado a um processo único (do variegado e - meio no limite - medido pelo ins,tante, que é o tempo da
tipo narrativo-explicativo) capaz de enfrentar todo tipo de fenômeno his- história-narração; depois, o da curta duração (ou conjunturas, instituições
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nexão de autores e de textos, de elaborações ligadas às correntes, de e a da "vida interna" da escola, com suas regras, seus rituais. seus deli-
filiações de idéias e de modelos delineou-se uma história do pensamento neamentos ligados à iniciação à vida social) e que, portanto. acabam por
pedagógico que põe em evidência, porém, o seu vértice, o aspecto mais constituir um mapa complexo de campos de pesquisa, articulados em tor-
alto e mais luminoso, o da construção racional e orgânica, reflexa e coe-
no de metodologias bastante diversas (ora quantitativas e seriais. ora nar-
rente. Ao lado desta vertente filosófica, vieram dispor-se, como formas
rativas e qualitativas, até () limite do vivido próprio da histÚria oral e de
de teorização pedagógica, as ideologias (religiosas, políticas, culturais) e
outras técnicas de investigaçflo, como a memorialística, as epistolares ete.),
as ciências, que se juntaram às filosofias para redesenhar - e enriquecer/ e a serem usadas de maneira entrelaçada para restituir aos fllnhitos
matizar - o terreno da teorização pedagógica na história. Na Idade Mo-
institucionais seja a sua relevância sociológica, stõja a sua determinaçflO'
derna, sobretudo, tanto as ideologias quanto as ciências delinearam-se hist<írica e vivida.
'cada vez mais como fatores centrais da elaboração teórica das pedago-
Um funbito tamhém específico e fundamental é o das políticas
gias, dada a sua intersecção, de um lado, com classes e grupos sociais,
educativas, escolares, formativo-profissionais que se coloca em estreita
com grupos de governo, com sistemas de controle do social; de outro,
simbiose com a hist()ria dos Estados e dos movimentos políticos. das es-
com processos cognitivos voltados para o domínio do real e a descoberta
truturas administrativas das várias sociedades ete. Os ol~jelos de investi-
de seus fundamentos em qualquer âmbito, incluindo o dos comporta-
gaçflO são, neste caso, os projetos coletivos de conformação ou de alfabe-
mentos humanos. Neste processo de enriquecimento das teorias pedagó-
tização, ou outro, que correspondem a um plano preciso e tendem a
gicas como objeto de pesquisa histórica, os métodos também vêm se de-
provocar efeitos destõjados no comportamento social, a tornar mais com-
senvolvendo: da análise conceitual da filosofia, do seu teoreticismo
pacta e homogênea a vida social. Sobretudo na modernidade, as políticas
(especialmente no ponto em que era reduzida a um puro sistema de
educativas se tornaram mais explícitas, já que mais dinfllllicas, menos con-
idéias), passou-se a uma análise mais contextual das teorias, relacionan-
fundidas com a transmissflO inconsciente da cultura. mais intencionais e
do-as com o social e o político, recolocando-a no terreno da história de
prognlll1áticas. Não sÚ, mas também produzidas por mÚltiplos agentes:
uma sociedade. Às investigações lógico-sistemáticas sucederam-se análi-
pelo Estado e pela Igrtõja, também por partidos, por grupos sociais. cul-
ses genealógicas e estruturais, capazes de fixar a profunda intersecção ou
turais e profissionais ete. Deste pluralismo de projetos toma corpo um
simetria entre atividade social e pensamento, entre teoria e sociedade.
processo complexo, caracterizado por excIusóes e interferências, mas que
Um setor extremamente autônomo e organicamente desenvolvido é
estrutura em ptofi.mdidade os processos de socialização e de formação
o referente às instituições educativas, com a escola em primeiro lugar,
dos indivíduos.
mas que abrange também a família, o "botequim" e depois a fábrica, as
Quanto à história social, nos seus mÚltiplos aspectos - como hist6ria
associações e organizações dedicadas ao tempo livre (dos oradores aos
das mulheres, história da inmncia, história do costume educativo ete. -, é
grupos esportivos, especialmente na sociedade contemporânea, mas, para
um setor de desenvolvimento recente, mas que se vai tornando cada vez
o primeiro aspecto, já na medieval). Trata-se de instituições às quais é
mais central, ao se ligar à etno-história e à psico-história. mostrando a
confiado um papel formativo preciso nos diversos tipos de sociedade e
formação de mentalidades educativas, de valores pedagógicos. de prá-·
que devem ser pesquisadas com instrumentos quer sociológicos, quer his-
tóricos tout court, quer, ainda, teóricos, que esclareçam a função articu- ticas formativas que agem como modeÍos inconscientes (ou quase) no
funhito de uma sociedade, mas que são sempre produtos histÚricos, eFei-
lada que elas têm nas sociedades, através de processos de análises ora
contextualizantes, ora fortemente disciplinares. Estamos diante de âm- tos de um processo sociocultural diacronicamente definido e delinívcl.
bitos que, por sua vez, se articulam depois em outros ~~bsetores (na his- Os métodos que agem neste flmbito de pesquisa são por deliniçflO di-
tória da escola: a história dos docentes ou a da didática, a história legislativa ferenciados, já que devem permitir o alcance ~aqueIcs fenÔmenos ou
eventos fugidios que na educação envolvem aspectos do inconsciente co-
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Ademais, o conflito das interpretações não acaba sendo o verdadeiro e Na pesquisa histórico-educativa existe ainda uma característica de
último modelo da pesquisa histórica, sublinhando sua dispersão e seu minoridade historiográfica, qedebilidade e de insegurança de iniciativa
___ ~ caráte~_.~_ip.otético,assim como a incomensurabilidade entre os diversos que pode ser corrigi da por ~ina consciência inetodológica mais viva, a
programas de pesquisa, incidindo naqueles riscos ou erros imputados a ser exercida com maior constância e coerência, como também por uma
toda epistemologia anárquica, como se reprochou ao filósofo/historiador vontade de superar aquela conotação ideológica que - especialmente na
da ciência Feyerabend? Sim e não. Pluralismo e conflitualidade, inde- Itália, pela contraposição já arcaica entre leigos e católicos- bloqueia a
cisão e incerteza são certamente características fundamentais do fazer audácia de desenvolver novas perspectivas de investigação, novos modelos
história hoje, inclusive em educação; entretanto; não estamos diante de de pesquisa (ou 'mantendo-os um tanto marginalizados e ocultos). '{
.um resultado anárquico, mas radical e dialeticamente crítico. É justa-
mente da integração dinâmica e atenta (= crítica) das diversas perspec-
tivas de leitura que emerge a possibilidade de ler a história segundo a 5 ATIVAR A MEMÓRIA PARA COMPREENDER O PRESENTE
verdade, deixando sempre espaço para aprofundament.os ulteriores, para
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aproximações, para um .objeto complexo e fugidio, como é o histórico, e o "fazer história" - exercido ainda nesta forma não-ideológica, débil
em particular o histórico-educativo. I e polimorfa - representa um momento central da atividade cultural e
Por meio destas múltiplas frentes de pesquisa, da liberalização dos II dotado de uma função específica e essencial. A história é o exercício da
métodos e pluralismo das leituras, da coexistência, do conflito e do diá- memória realizado para compreender o presente e para nele ler as pos-
logo entre os diversos "programas de pesquisa" (ou orientações de pes-
quisa relacionadas com objetos, com métodos, com cortes interpretativos
I
1
sibilidades do futuro, mesmo que seja de um futuro a construir, a esco-
lher, a tornar possível. Mas é justamente a atividade da memória, a
coerentes e lineares, mas difer~nciados entre si) consegue-se constituir o i focalização do passado que anima o presente e o condiciona, como tam-
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trabalho histórico orientado no sentido abrangente, ou seja, capaz de ler I bém o reconhecimento das suas possibilidades sufocadas ou distantes ou
os processos históricos - educativos, no caso - sem comprimir sua com- I interrompidas, .e portanto das expectativas que se projetam do passado-
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plexidade e variedade constitutiva, mas elegendo-a como critério semân- i presente para o futuro, que estabelece o horizonte de sentido de nossa
tico da pesquisa histórica, portanto como estrutura de sentido (faz-se his- I ação, de nossas escolhas. A memória não é absolutamente o exercício de
tória se, e somente se, se conseguir fazer reaparecer a complexidade dos !l uma fuga do presente nem uma justificação genealógica daquilo que é, e
l
eventos e suas agitadas inter-relações, seu perfil instável, múltiplo e, ao l tampouco o inventário mais ou menos sistemático dos monumentos de
j
mesmo tempo, unitário). I um passado encerrado e definitivo que se pretende reativar por intermé-
No campo histórico-educativo, se o pluralismo dos níveis já é bem I dio da nostalgia: não, é a imersão na fluidez do tempo e o traçado de
reconhecido (como salientamos no parágrafo anterior), por outro lado, o
I seus múltiplos - e também interrompidos - itinerários, a recomposição
conflito-diálogo - a riqueza e variedade dos "programas de pesquisa" - não de um desenho que, retrospectivamente, atua sobre o hoje projetando-o
resulta igualmente consolidado. Predominam ainda perspectivas de pes- para o futuro, através da indicação de um sentido, de uma ordem ou de-
quisas tradicionais (ideológicas, sobretudo) ou girando em torno de um sordem, de uma execução possível ou não.
único eixo metodológico, às vezes um tanto banalmente narrativas, ao A memória torna-se assim a categoria portante do fazer história, com
passo que seria necessário dar vida a um pluralismo mais intenso de lei- seus condicionamentos e suas amnésias, seus desvios e o peso da tra-
turas e d.emodelos, de maneira a realizar aquele cOI].frontode interpre- dição, logo com seu trabalho não-linear, sempre sub fudice, sempre in-
tações pelo qual se pode atingir a verdade: a aproximação de uma com- completo, mas sempre necessário. E exercer a memória, exercê-Ia criti-
preensão dinâmica (aberta e policêntrica) d.os.eventos histórico-educativos. camente, sem fechamentos preliminares e condicionãmentos castradores,
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sig~ifica mergulhar num trabalho de tipo hermenêutico: relacionado com Compreendendo minuciosamente aquele passado em cada uma de suas
uma compreensão que age como regressão e como autenticação do senti- formas. Inclusive nas formas.educativas que constituem talvez o trait
do, através do uso dos instrumentos possíveis (todos) para fazer salientar d'union fundamental entre o passado e o presente: elas são o meio pelo
estes percursos e estes desenhos. qual o passado age no futuro através das sedimentações operadas sobre
A memória aplicada ao passado histórico significa o reconhecimento/ o presente.
apropriação de todas as formas de vida (estmturas sociais e culturais, de
mentalidades etc., além das tipologias do sujeito humano, seus saberes,
suas linguagens, seus sentimentos etc.) que povoam aquele passado; o
reconhecimento das suas identidades, suas condutas, suas contradições; 6 A HISTÓRIA QUE ESTÁ POR TRÁS:
a reapropriação de seu estilo, de sua funcionalidade interna, de sua pos- A ANTIGÜIDADE E A IDADE MÉDIA,
sibilidade de desenvolvimento. Tudo isso com o objetivo de repovoar A MODERNIDADE E A CONTEMPORANEIDADE
aquele passado com muitas histórias entrelaçadas e em conflito e de res-
tituir ao tempo histórico o seu pluralismo de imagem e a sua proble- Por trás do nosso presente, como infra-estrutura condicionante uni-
maticidade. Com isso, entretanto, realiza-se também um distanciamento tária e dotada de sentido orgânico e permanente no tempo, opera a
do puro presente e de 'Suarigidez, para relê-l o, porém, sobre o fundo do Modernidade. Por trás da Modernidade, coloca-se a Idade Média, e por
qual ele emerge e, assim, relativizá-Io na audoritas que lhe vemjustamen- trás desta a Idade Antiga; e, antes ainda, o Mediterrâneo como encmzi-
te do fato de ser presente (evidente e necessário, logo verdadeiro), re- lhada de culturas, o Oriente como matriz de muitas formas culturais do
considerado segundo perspectivas críticas que ponham em evidência suas Ocidente, a grande revolução do Neolítico e o advento das sociedades
alternativas e pobrezas, possibilidades e aberturas. Através do passado hidráulicas. A história é um organismo: o que está antes condiciona o que
criticamente revisitado, o presente (também criticamente) se abre para o vem depois; assim, a partir do presente, da Contemporaneidade e suas
futuro, que se vê carregado dos impulsos não realizados do passado, mes- características; seus problemas, deve-se remontar para trás, bem para trás,
mo o mais distante ou o mais marginalizado e sufocado. Em suma, além até o limiar da civilização e reconstruir o caminho complexo, não-linear,
de paixão pelas diversas formas de vida (pelo pluralismo do humano, articulado, colhendo, ao mesmo tempo, seu processo e seu sentido. O
podemos dizer), a memória está sempre carregada de escatologia; carga processo feito de rupturas e de desvios, de inversões e de bloqueios, de
que torna o presente projetado para o possível, para o enriquecimento possibilidades não-maturadas e expectativas não-realizadas; o sentido re-
de sentido e para a finalização (mesmo que seja constantemente atualiza- ferente ao ponto de vista de quem observa e, portanto, ligado à interpre-
da), isto é, aberto sobre si mesm~, problemático e envolvido na sua trans- tação: nunca dado pelos "fatos", mas sempre construído nos e por meio
formação, na sua - sempre radical - construção/reçonstrução. dos "fatos", precário e sub judice.
Mas o exercício da memória, se não desdenha absolutamente o pas- A Antigüidade, também em pedagogia e em educação, consigna ao
sado mais distante, e o privilegia às vezes,justamente para fixar melhor a Ocidente as suas estmturas mais profundas: a identidade da família, a
alteridade das formas de vida ou para ler as raízes mais antigas (e pro- organização do Estado, a instituição-escola, mitos educativos (nas fábulas,
fundas) do presente - e sobre este plano a atenção atual dos historia- por exemplo) e ritos de passagem (da infância, da adolescência), um rico
dores se fixa sobretudo na Idade Média ou na AnÜgÜidade -, deve inves- mostmário de modelos socioeducativos, que vão desde a pólis grega até a
tigar em particular o passado do qual o presente é filho, do qual carrega romana, características que se sobrepõem, se entrecortam, se
res jJUblica
o patrimônio genético e sobre o qual deve reconstmir a própria auto- entrelaçam até formar o riquíssimo tecido da educação ocidental. Além
nomia e a própria abertura para o possível e para a finalização. Como? disso, a AntigÜidade produz a passagem, tanto em educação como em
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ética e até em gnoseologia, do ethos para a theoria, fazendo nascer a re- mações radicais em todos os campos, da econonÚa à política, da cultura
flexão auto-regulada, universal e rigorosa, em torno dos processos à mentalidade, ao estilo de, vida; permanente, já que age de maneira
educativos, isto é, a pedagogia, articulando-a numa múltipla série de constante por muitos séculos; consciente também, como manifestam as
modelos, também reunidos pelo ideal de paidéia: de uma formação hu- oposições às práxis medievais de economistas, políticos, intelectuais ete.
mana que é antes de tudo formação cultural e universalização (por in- Em segundo lugar, a Modernidade é uma época histórica com caracte-
termédio da cultura e do "cultivo" do sujeito que ela implica e produz) rísticas orgânicas e complexas que investem - como veremos mais adian-
da individualidade.
te - a reorganização do poder ou dos saberes, fazendo-os assumir
Com a revolução cristã opera-se uma radical revisão do processo e dos conotações' novas e específicas. Foi definida como a Idade das Revo-"
princípios educativos: a paidéia organiza-se agora em sentido religioso, luções, como o tempo da emancipação, como a base histórica que de-
transcendente, teológico, ancorando-se nos saberes da fé e no modelo da pura e legitima as diferenças: foi, sem dúvida, um arco plurissecular que
pessoa do Cristo, sofredora mas profética, depositária de uma mensagem colocou no centro o problema da liberdade e o seu acidentado caminho,
caracterizada pela caridade e pela esperança; os processos educativos rea- também o pluralismo de formas de vida, de modelos sociais, de classes,
lizam-se sobretudo dentro de instituições religiosas (mosteiros, catedrais de ideologias etc. No centro deste itinerário está 1789, o ano da Revo-
etc.) e são permeados de espírito cristão; toda a cultura escolar organiza- lução Francesa, que se põe como emblema (embora não seja absoluta-
se em torno da religião e de seus textos; mas, assim fazendo, toda a vida mente o eixo) deste percurso de liberação dos modelos tradicionais de
socialse pedagogiza e opera segundo um único programa educativo, con- sociedade (ainda permeados de características medievais) e como recons-
centrado em torno da mensagem religiosa cristã. A Idade Média inovará trução de uma sociedade nova, ao mesmo tempo mais livre e mais coesa.
ab imis a tradição pedagógica e educativa, influenciando profundamente a Mas a Modernidade, em terceiro lugar, é também nascimento e de-
própria Modernidade, que dela se separa e a ela se contrapõe polemi- senvolvimento de um sistema organizativo social que tem como eixo o
camente, mas incorporando instâncias relacionadas tanto com o pensa- indivíduo, mas que o alicia por meio de fortes condicionamentos por
mento quanto com a práxis (a ótica metafísica de um lado, a práxis auto- parte da coletividade, dando vida a um "mundo moderno" em cujo cen-
ritária e de domínio de outro, só para exemplificar). tro estão a eficiência no trabalho e o controle social. E foram sobretudo
A Modernidade delineia-se como o precedente mais imediato e o Marx e Weber que sublinharam esses aspectos organizativos do moderno,
interlocutor mais direto da nossa Contemporaneidade, sobre a qual de- como Kant, Hegel e Croce sublinharam os, acima lembrados, de liber-
vemos fixar o olhar, pois é esta que se trata de compreender: sem igno- dade e de inovação, de independência e de desenvolvimento criativo.
rar, porém, que o estudo do passado é também (e já o dissemos) a re- Através destas características - a mptura, a liberdade, o domínio capilar
cuperação de vias interrompidas, de possibilidades bloqueadas, de - toma corpo uma era organicamente compacta que chegou até hoje"
itinerários desprezados, que devem ser compreendidos e afirmados e in- ,conferindo à nossa história contemporânea sua coesão e sua estmtura.
dicados como alternativas possíveis não só do passado, mas também do Nem mesmo a chamada Pós-Modernidade alterou em profundidade es-
presente, pelo menos como alternativas teóricas, percursos diferentes, ses sinais. Até a Complexidade, que é invocada como característica da
integradores e corretores de um modelo. Pós-Modernidade, é estmtura da mesma Modernidade, da qual ela
A Idade Moderna é um fenômeno complexo, definível de modo enfatiza o pluralismo e a divergência, estreitamente ligados à liberdade e
unívoco apenas por abstração, mas dotado .de características homogê- à independência.
ne.:1.Se fortes, capazes de estruturar por muitos séculos os eventos his- Todavia, para além de reconhecimentos gerais - e um tanto gené~
tóricos mais díspares. A Modernidade é, antes de tudo, uma mptura em rico.s- sobre as características da Modernidade, é oportuno mostrar con-
relação à Idade Média; uma mptura vertical, já que implica transfor- cretamente (ou momento por momento) sua organização na diacronia dos
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