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Leia o texto e resolva às questões Passo a observá-los.

O pai, depois de
contar o dinheiro que discretamente retirou do
A ÚLTIMA CRÔNICA bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na
cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob
a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel,
vagamente ansiosa, como se aguardasse a
aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o
pedido do homem e depois se afasta para atendê-
lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a
reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali.
A meu lado o garçom encaminha a ordem do
freguês. O homem atrás do balcão apanha a
porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho –
um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma
pequena fatia triangular.
A caminho de casa, entro num botequim da A negrinha, contida na sua expectativa,
Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o
realidade estou adiando o momento de escrever. A garçom deixou à sua frente. Por que não começa a
perspectiva me assusta. Gostaria de estar comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha,
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A
busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante,
cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa
diária algo de seu disperso conteúdo humano, de fósforos, e espera. A filha aguarda também,
fruto da convivência, que a faz mais digna de ser atenta como um animalzinho. Ninguém mais os
vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. observa além de mim.
Nesta perseguição do acidental, quer num São três velinhas brancas, minúsculas, que
flagrante de esquina, quer nas palavras de uma a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E
criança ou num acidente doméstico, torno-me enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o
simples espectador e perco a noção do essencial. fósforo e acende as velas. Como a um gesto
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo ensaiado, a menininha repousa o queixo no
meu café, enquanto o verso do poeta se repete na mármore e sopra com força, apagando as chamas.
lembrança: “assim eu quereria o meu último Imediatamente põe-se a bater palmas, muito
poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. compenetrada, cantando num balbucio, a que os
Lanço então um último olhar fora de mim, onde pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você,
vivem os assuntos que merecem uma crônica. parabéns pra você…”. Depois a mãe recolhe as
Ao fundo do botequim um casal de pretos velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha
acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de agarra finalmente o bolo com as duas mãos
mármore ao longo da parede de espelhos. A sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está
compostura da humildade, na contenção de gestos olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha
e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe
uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim,
toda arrumadinha no vestido pobre, que se satisfeito, como a se convencer intimamente do
instalou também à mesa: mal ousa balançar as sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a
perninhas curtas ou correr os olhos grandes de observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se
curiosidade ao redor. Três seres esquivos que perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a
compõem em torno à mesa a instituição cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se
tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, abre num sorriso.
porém, que se preparam para algo mais que matar Assim eu quereria minha última crônica:
a fome. que fosse pura como esse sorriso.

Fernando Sabino (1923-2004)


1. Localize no texto os seguintes elementos da narrativa:

a) Foco narrativo (narrador-personagem ou narrador-observador):


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b) Lugar onde a história se passa:


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c) Personagens:
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3. No texto "A última crônica", o autor Fernando Sabino começa mostrando, aparentemente, uma rotina que
foi modificada inicialmente por qual acontecimento?
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4. O narrador descreve a cena onde se passa a história com uma grandeza de detalhes que
faz o leitor realmente crer que ele estava lá apreciando. Qual trecho do texto é possível
concluir que o casal que entrou tentava ser discreto no botequim?
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5. O autor escreveu o texto em primeira pessoa, transmitindo a impressão de que realmente viveu a situação.
Ele se posicionou em relação à cena, demonstrando sua sensibilidade e seus sentimentos. Escreva abaixo um
trecho que está escrito em primeira pessoa. 
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6. Localize no texto a que / quem os termos grifados estão se referindo:

a) “Passo a observá-los.”
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b) “... inclinando-se para trás na cadeira...”


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c) “... que merecem uma crônica.”


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d) “... larga-o no pratinho...”


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e) “... torna a guardá-las na bolsa....”


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7. Localize no texto um trecho que aparece linguagem informal.


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