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LATIM

DO

ZERO

FREDERICO LOURENÇO
Como complemento à Nova Gramática do Latim,
Frederico Lourenço propõe um método atraente e direto
para a aprendizagem da língua latina.

Latim do Zero a Vergilio em 50 Lições começou por ser uma


página da internet estreada no momento em que a pandemia
fechou o país em 2020. Em tempo recorde, obteve milhares de
seguidores. A sua transformação em livro visa agora propor­
cionar um ensino mais sistemático e mais aprofundado: come­
çando do zero, vão sendo construídas as bases gramaticais
necessárias à leitura do maior autor da língua latina, Vergilio.

A primeira parte do livro é constituída por 50 lições, em que


ao ensino pragmático de questões lingüísticas se juntam temas
de cultura e literatura latinas. Privilegiando o uso de frases
originais e de textos autênticos, este método constrói o edifício
gramatical que permite, na sua segunda parte, o acesso direto
à Eneida de Vergilio - em concreto, aos seus Cantos 1 e 4,
estudados na sua forma original e num formato especialmente
pensado para facilitar a sua compreensão. A última parte propõe
a leitura integral do Livro 1 das Odes de Horácio, acompanhada
de abundantes notas explicativas.
Este é um instrumento fundamental para levar leitoras e leitores
de língua portuguesa a sentir o prazer inigualável de ler, no
original, o melhor que existe na língua latina. Passo a passo,
do zero a Vergilio.
FREDERICO
lourenço

LATI M
DO

ZERO
Ensaísta, tradutor, ficcionista e poeta, Frederico
Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é atualmente
professor associado com agregação da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra e membro do
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da
mesma instituição. Foi docente, entre 1989 e 2009,
da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em
Línguas e Literaturas Clássicas (1988) e se doutorou
em Literatura Grega (1999) com uma tese sobre
Euripides, orientada por Victor Jabouille (Lisboa)
e James Diggle (Cambridge). Publicou artigos sobre
Filologia Grega nas mais prestigiadas revistas
internacionais (Classical Quarterly e Journal o f
Hellenic Studies) e, além da Iliada, traduziu também
a Odisséia de Homero, tragédias de Sófocles e de
Euripides, e peças de Goethe, Schiller e Arthur
Schnitzler. No domínio da ficção, é autor de Pode
Um Desejo Imenso (2002). Na poesia, é autor de
Santo Asinha e Outros Poemas e de Clara Suspeita
de Luz. Publicou ensaios como O Livro Aberto:
Leituras da Bíblia, Grécia Revisitada, Estética
da Dança Clássica e Novos Ensaios Helénicos
e Alemães (Prêmio PEN Clube de Ensaio 2008).
Recebeu ainda os prêmios PEN Clube Primeira
Obra (2002), Prêmio D. Diniz da Casa de Mateus
(2003), Grande Prêmio de Tradução (2003), Prêmio
Europa David Mourão-Ferreira (2006).
Em 2016 iniciou na Quetzal a publicação dos seis
volumes da sua tradução da Bíblia — que lhe
valeu o Prêmio Pessoa —, em 2019 publicou
uma Nova Gramática do Latim e, em 2020,
Poesia Grega de Hesiodo a Teócrito — edição
bilingue em grego e português.
ò
QUETZAL. Ave trepadora da América Central,
que morre quando privada de liberdade;
raiz e origem de Quetzalcoatl (serpente
emplumada com penas de quetzal), divindade
dos Toltecas, cuja alma, segundo reza a lenda, teria
subido ao céu sob a forma de Estrela da Manhã.
Latim
do Zero
a Vergilio em 50 lições

F r e d e r ic o L ourenço

ò
Q U ETZA L
LATIM DO ZERO A V ER G lU O EM SO LIÇÕES
FredericoLourenço

1.· e d iç ã o
Novembro de 2020

1.“ REIMPRESSÃO
Dezembro de 2020

C o o rd e n a ç ã o
Francisco José Viegas

R evisão
Diogo Morais Baibosa

P a c in a ç ã o
Gráfica 99

D esig n d a c a p a
Rui Cartaxo Rodrigues

P ro d u ç ã o
Teresa Reis Gomes

O 2020 Frederico Lourenço e Quetzal Editores


Por acordo com Bookofiüce | www.bookoffice.booktailors.com
[Todos os dird to t para a publicação desta obra em Língua
Portuguesa, exceto Brasil, reservados por Q yetzal Editores]

ISBN: 978-989-722-702-8
Código Círculo de Leitores: 1107283
Depósito legal· 474 272/20

Execução gráfica: Bloco Gráfico,


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1500-499 Lisboa PORTUGAL
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quetzal@quetzalcditores.pt
TeL21 7626000
« T h e study o f Virgil brings w ith it the richest
o f all th e rew ards th at Latin has for its initiates.»

R.G. Austin

« O degli altri poeti onore e lume,


vagliami il lungo studio e'l grande amore
che m ’a fatto cercar lo tuo volume.
T u se lo m io m aestro e lo mio autore.»

Dante, Divina Comédia (Inferno 1.82-85)


Sumário

P rbfácio 13
Sinais e abreviaturas 17

I. L iç õ e s

Lição n.° 1 21
(Indicativo presente ativo da l.a conjugação; nominativo e acusativo do singular
[ l.a e 2.a declinações].)

Lição n.° 2 26
(Nominativo e acusativo do plural [ I a e 2 a declinações]; preposições ad e per,
indicativo presente de sum; Lucas 1:46.)

Lição n.° 3 32
(Genitivo; substantivos neutros da 2 a declinação; Cântico dos Cânticos
1:14; 2:2; 1:4; 4:10-11; Mateus 16:18-19; Vergilio, Eneida 1.1.)

Lição n.° 4 41
(Ablativo; indicativo futuro ativo; Mateus 3:16; 5:13-14; 4:7; 4:18; Lucas 1:28;
João 1:1; 10:11.)

Lição n.° 5 47
(Indicativo perfeito ativo; dativo; 3.a declinação; Gênesis 1:1;
Ovídio, Metamorfoses 1.556.)
Lição n.° 6 55
(Infinitivo presente ativo; indicativo imperfeito ativo da l.a conjugação;
indicativo presente e imperfeito ativos da 2.a conjugação; menção das quatro
conjugações; Eclesiastes 1:1; 2:10-11; 1:10; 1:7; 2:4; 3:8; 3:10; Vergilio, Eneida 3.9; 3.21.)

Lição n.° 7 62
(Pronomes pessoais; 1 Coríntios 13:12; Mateus 5:8; 6:9; Ovídio, Metamorfoses
1.6; 1.513; 1.517-8.)
Lição n.° 8 69
(4.a declinação; Vergilio, Eneida 1.34-35; César, Dê Bellõ Gallicõ 6.13.8;
Lucas 8:20; 1:41-42.)
Lição n.° 9 75
(Ovidio, Metamorfoses 1.513-514; 1.517-518; 1.521-524; Mateus 5:3.)

Lição n.° 10 80
(Vozpassiva, indicativo presente e futuro da 1.» e 2 a conjugações; indicativo
presente e futuro ativos da 3.a conjugação; Mateus 5:5-9; Vergilio, Eneida 2.277-279.)

Lição n.° 11 85
(Conjuntivo presente; infinitivo presente e perfeito; vocativo do singular
da 2 a dedinação; Catulo 8 [inicio].)

Lição n.° 12 91
(Vogais longas e breves; Catulo 8 [continuação].)

Lição n.° 13 96
(uolõ e rtóló; formas de imperativo; ut + conjuntivo (final); João 20:17;
Mateus 7:1; 7:6; Catulo 8 [continuação].)

Lição n.° 14 101


(Concordância do pronome relativo; dativo e genitivo do pronome relativo;
Mateus 7:18-19; Catulo 8 [conclusão].)

Lição n.° 15 106


(Partidpios; perfeito passivo; sum + dativo; Lucas 10:33-34; 10:38-39.)
Lição n.° 16 111
(5.a dedinação; conjuntivo presente e imperfeito de sum; imperativos ativos
e passivos; Gênesis 1 [passagens várias]; 1 Coríntios 7:25; 7:27.)
Lição n.° 17 116
(Conjuntivo imperfeito ativo [l.a e 2.a conjugações]; Agostinho, Confissões 1.1;
Lucrécio 1.107-109.)
Lição n.° 18 120
(Oração infinitiva; Ovidio, Tristia 1.1.19; Atos dos Apóstolos 12:11;
Lucrécio 1.107-109; Cícero, PrõArchiã 8; Vergilio, Eneida 3.56-57; Gênesis 12:10.)

Lição n.° 19 126


(Ablativo absoluto; Lucas 19:36-37; Marcos 11:8; Mateus 21:8; João 12:13.)
Lição n.° 20 130
(Agostinho, Confissões 2.6.)
Lição n.° 21 135
(Verbos defetivos [õdt]; mais-que-perfeito; conjuntivo em interrogativas
indiretas; Agostinho, Confissões 3.1; Suetónio, Júlio César 37.)

Lição n.° 22 141


(Conjuntivo perfeito e mais-que-perfeito passivos; Lucas 7:37-50; João 11-19.)

Lição n.° 23 147


(Futuro perfeito; João 13:7-8.)
Lição n.° 24 150
(João 20:24-25; 11-17; Victimae pascháli.)

Lição n.° 25 154


(Adjetivos triformes, biformes, uniformes; gerúndio; Edesiastes 3:1-8; Lucas 24:25.)

Lição n.° 26 159


(Gerundivo; 1 Coríntios 13; Agostinho, Cidade de Deus 14.7; João 21:15-17.)

Lição n.° 27 164


(João 8:3-11.)

Lição n.° 28 170


(Dedinação de três; Atos dos Apóstolos 9:37; 22:5-29; 26:12-17.)

Lição n.° 29 175


(Horácio, Arte Poética 148-152.)

Lição n.° 30 179


(Catulo 2.)

Lição n.° 31 184


(Usos do ablativo; Lucrécio 1.1-9; 44-49; 62-67.)
Lição n.° 32 189
(Perfeitos redobrados; orações condicionais; Lucrécio 1.83-86; 93-99;
Horácio, Sátira 2.3.214-220.)
Lição n.° 33 195
(João 3:8; Lucrécio, 1.269-270; João 20:29; 3:2-3.)
Lição n.° 34 200
(Futuro perfeito e conjuntivo perfeito: homografia e identificação; Horácio,
Odes 4.7.21-24; Horácio, Sátiras 1.5.44; Cícero, Pró Rosciõ 5; Tito Lívio 3.23;
Cícero, PrõMilõne 103; Horácio, Odes 1.11; 1.6.1-4; 1.9.1-4.)
Lição n.° 35 207
(Perifrástica ativa; Ovídio, Metamorfoses 3.192-193; 3.198; 3.203; 3.200-206; 3.231.)
Lição n.° 36 212
(Ovídio, Metamorfoses 10.539-541; 10.715-716; 3.143-148.)
Lição n.° 37 217
(Ovídio, Metamorfoses 2.471-473; 2.478-484; 2.485-492.)
Lição n.° 38 222
(Supino com valor final; Horácio, Arte Poética 361-365; [autor anônimo]
A d Herennium 4.39; Arte Poética 1-5; 6-13.)
Lição n.° 39 227
(Quiz com perguntas de latim.)
Lição n.° 40 231
(Cícero, Catilinária 1, abertura [início].)
Lição n.° 41 236
(Cicero, Catüináría 1, abertura [continuação].)

Lição n.° 42 241


(Pai-Nosso.)
Lição n.° 43 246
(Horácio, Odes 1.4; Cântico dos Cânticos 2:11-13.)

Lição n.° 44 252


(Atração do dativo; Horácio, Odes 1.3; Agostinho, Confissões 4.6.)

Lição n.° 45 257


(Vergilio, Bucólica 4 [inído].)

Lição n.° 46 262


(Vergilio, Bucólica 4 [continuação].)

Lição n.° 47 268


(Vergilio, Bucólica 4 [conclusão]; Horácio, Odes 1.12.49-52.)

Lição n.° 48 275


(Vergilio, Bucólica 6 [inído].)

Lição n.° 49 280


(Vergilio, Bucólica 6 [continuação].)

Lição n.° 50 285


(Vergilio, Bucólica 6 [condusão].)

II. V e rg ílio

Introdução à leitura da Eneida 295


Eneida, Canto 1, texto latino anotado, com tradução interlinear 307
Eneida, Canto 4, texto latino anotado, com tradução interlinear 362

III. Horácio

Introdução à leitura do Livro 1 das Odes de Horácio 417


Odes, Livro 1, edição bilingue anotada 422
Notas às Odes 492

R espostas ao quiz d a Lição n.° 39 522


Índice te m á tic o 523
Prefácio

Quando, em março de 2020, a pandemia da covid-19 levou a Uni­


versidade de Coimbra a substituir, até ao fim do ano letivo, a lecionação
presencial pelo ensino online, pensei em formas de manter motivada a
minha turma de Poesia Latina.
Ocorreu-me a ideia de criar uma página no Facebook, a que chamei
Vergilio em Coimbra, porque a pandemia atacara no momento em que,
justamente, eu me preparava para aprofundar com a turma o estudo de
Vergilio. A turma de Poesia Latina tinha 19 inscritos; depressa com­
preendi que, no Facebook, o universo de interessados era muito maior.
Também me fui dando conta de que, na caixa de comentários dos posts,
iam surgindo perguntas da parte de gente não só interessada nas refle­
xões propostas sobre Vergilio como, ao mesmo tempo, curiosa sobre
como aprender latim a partir do zero. Comecei a perceber que havia
muitas pessoas em Portugal e no Brasil interessadas em saborear as
nuances sublimes da poesia vergiliana - só que lhes faltava, para tal, saber
latim.
Optei então por fazer uma pausa no projeto Vergttio em Coimbra
(entretanto retomado: sigam!) e assim nasceu, ao fim da tarde de 17 de
março de 2020, a página do Facebook Latim do Zero. No dia seguinte
de manhã, para minha enorme surpresa, já tinha 4000 seguidores. Em
menos de uma semana, chegou aos 10 000 seguidores e pouco tempo
depois aos 13 700, confirmando assim a frase com que abre a Nova Gra­
mática do Latim publicada em 2019: «Muitas pessoas gostariam de saber
latim.» Com efeito.
14 Latim d o Z e ro a V e rg ílio em SO L içõ es

O projeto Latim do Zero propõe 50 lições que, passo a passo, visam


dar as bases gramaticais necessárias para ler, na língua original, a Eneida
de Vergílio - sem sombra de dúvida, a maior obra da literatura latina. As
50 lições constituem a primeira parte do presente livro, que segue a m eto­
dologia de ensinar como funciona a língua latina a partir de pequenos
textos de muitas épocas e proveniências, com destaque inicial para a
Vulgata, talvez o melhor instrumento didático para mostrar, a quem se
inicia no estudo do latim, a essência da sua beleza. Recordo, a este pro­
pósito, palavras escritas pelo meu pai, nas quais me revejo plenamente:
«De todas as línguas românicas, a portuguesa é a que mais se assemelha
ao Latim de SãoJerónimo. O leitor da sua tradução do Novo Testamento
não cessa nunca de se admirar perante a miraculosa congruência entre o
ritmo, o vocabulário e a sintaxe da frase» (M.S. Lourenço, O Caminho
dos Pisões, Lisboa, 2009, p. 640).
A segunda parte deste livro propõe material vergiliano - o texto inte­
gral dos Cantos 1 e 4 da Eneida - que possibilita a concretização prática
daquilo que foi ensinado nas 50 lições da primeira parte. Aceitando que,
para a maioria das pessoas, a finalidade de aprender latim é conseguir ler
em latim, a segunda parte do livro procura desmontar o medo da leitura
de um texto poético exigente, apresentando-o com suficientes notas gra­
maticais e com uma tradução interlinear cuja finalidade não é literária,
mas sim didática: a tradução interlinear está pensada para permitir, rela­
tivamente ao texto latino, o entendimento automático do seu léxico; a
decifração imediata da sua morfologia; e a dedução lógica da sua estru­
tura sintática.
Para quem se queira exercitar depois com poesia mais difícil, propo­
nho, na terceira parte, a leitura integral do Livro 1 das Odes de Horácio,
com notas abundantes. Neste caso, a organização do texto corresponde
à tradicional disposição bilingue, com o texto latino na página par e a
tradução portuguesa na página ímpar. De novo, como referi a propósito
da versão portuguesa dos Cantos 1 e 4 da Eneida, a tradução de Horácio
pretende ser apenas uma ponte que dá acesso direto à estrutura grama­
tical das frases latinas. Quem quiser fazer o «desm am e» da tradução
P refácio 15

portuguesa pode ocultar, com uma folha de papel, o texto português de


Horácio que está na página ímpar e só fazer a respetiva consulta em caso
de se ter deparado com uma dúvida irresolúvel.
Se a segunda e a terceira partes deste livro levarem leitoras e leitores
de língua portuguesa a sentir o prazer inigualável de ler, em latim, o
melhor que existe na poesia latina, darei por alcançados os objetivos que
me propus - e que proponho, agora, a todos vós.

F.L.
Coimbra, 2020.
Sinais e abreviaturas

Sinais

1) Na escrita do latim, a letra maiúscula é somente usada em nomes


próprios.
2) Na indicação da quantidade das vogais, é seguido o critério do Oxford
Latin Dictionary: isto é, indicam-se apenas as vogais longas (ã, ê, t,
õ, ü), com a diferença, em relação ao OLD, de que são indicadas todas
as vogais etim ologicam ente longas, mesmo em sílabas fechadas por
duas consoantes. O leitor que lê aqui gins, gentis pode partir do princí­
pio de que o -e- de gentis é breve (apesar de ser longa a sílaba em que
se encontra). Como regra geral, portanto, neste livro é breve qualquer
vogal que não tenha o sinal de longa. Claro que, por uma questão de
ênfase nalgum aspeto fonético, poderei explicitar pontualmente, para
maior clareza, que determinada vogal é breve (d, é, Γ, 0, ü). Mas quem
ler aqui oltua («azeitona»), por exemplo, pode confiar que são bre­
ves as duas vogais que não foram indicadas como longas.

Abreviaturas
Buchheit = V. Buchheit, Vergil über die Sendung Roms, Heidelberg,
1963.
Brink = C.O. Brink, Horace on Poetry, Cambridge, 1963-1982,3 vols.
Austin i = P. Vergili Maronis Aeneidos Liber Pnmus, edited with a com­
mentary by R.G. Austin, Oxford, 1971.
18 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Austin iv = P. Vergili Maronis Aeneidos Liber Quartus, edited with a com ­


mentary by R.G. Austin, Oxford, 1955.
Conte = Publius Vergilius Maro: Aeneis, recensuit atque apparatu critico
instruxit G.B. Conte, Berlin, 2019 (2.a edição).
Fraenkel = E. Fraenkel, Horaee, Oxford, 1957.
Heinze = R. Heinze, Virgils epische Technik, Leipzig, 1915 (3.a edição).
Keller/Holder = Q. Horati Flacci Opera, recensuerunt O. Keller & A.
Holder, Leipzig, 1864.
Klingner = Horatius: Opera, edidit F. Klingner, Leipzig, 1959.
Kühner & Holzweissig = R. Kühner, F. Holzweissig, Ausführliche Gram-
matik der lateinischen Sprache: Elem entarForm en- und Wortlehre,
Darmstadt, 1994.
Kühner & Stegmann = R. Kühner, C. Stegmann, Ausführliche Grammatik
der lateinischen Sprache: Satzlehre, 2 volumes, München, 1962 (edição
revista por A. Thierfelder).
Mynors = P. Vergili Maronis Opera, recognouit breuique adnotatione
critica instruxit RA.B. Mynors, Oxford, 1969.
NGL = F. Lourenço, Nova Gramática do Latim, Lisboa, 2019.
Nisbet & Hubbard, Vol. I = R.G.M. Nisbet & M. Hubbard, A Commen­
tary on Horace, Odes, Book I, Oxford, 1970.
OLD = Oxford Latin Dictionary, Oxford, 1982.
Page = T.E. Page, TheAeneid of Virgil, Books I-VI, London, 1894.
PGHT = F. Lourenço, Poesia Grega de Hesiodo a Teócrito, Lisboa, 2020.
Shackleton Bailey = Horatius: Opera, edidit D.E. Shackleton Bailey,
Stuttgart, 1995 (3.a edição).
s.u. = sub uõce (abreviatura usada quando, na discussão de alguma pala­
vra, se remete para o verbete respetivo num dicionário, por exemplo
«a propósito da palavra Aeneis, cf. OLD s.u.»).
Wickham/Garrod = Q. Horati Flacci Opera, recognouit E. Wickam; edi­
tio altera curante H.W. Garrod, Oxford, 1901.
Woodcock = E.C. Woodcock, A New Latin Syntax, London, 1959.
I.
Lições
Lição n.° 1

Há muitas teorias sobre como ensinar latim e grego. Ao longo de


mais de 30 anos de ensino, tenho vindo a desenvolver uma pedagogia
pragmática. Dei a minha primeira aula de latim em 1988, a uma turma
de 12.° ano na Escola Secundária da Cidade Universitária (Lisboa).
Desde então, fui acumulando experiência, nas universidades de Lisboa
e de Coimbra, em relação ao modo mais racional e prático de levar os
discentes a dominarem, progressivamente, as dificuldades das Unguas
clássicas.
Embora me soUdarize com um método que não é o meu (o método
oral de ensinar latim como Ungua viva), confesso que me revejo mais no
método de ensinar latim usando frases e textos da Antiguidade. Dito isto,
devo ressalvar que, em sala de aula, recorro paralelamente ao método
que sei ter dado ao mundo os melhores latinistas e helenistas que
conheço. É o método tradicional britânico, por meio do qual grandes
classicistas como James Diggle ou Michael Reeve aprenderam grego e
latim. Consiste em compartimentar, numa fase inicial, todos os temas
gramaticais, apresentando-os por meio de frases. A estas frases juntam-se
depois pequenos textos. A terceira fase consiste na leitura e análise de
textos autênticos, escritos na Antiguidade.
Neste livro, opto por fazer uma conciüação das três fases, usando
para tal, em muitas das primeiras üções, um Uvro que, noutras circuns­
tâncias, nem sempre serviu os propósitos da conciliação: a Vulgata latina.
O meu interesse pelo texto grego e latino da Bíblia é de todos conhe­
cido e seria estranho se a este texto eu não recorresse como instrumento
22 Latim do Zero a Vergílio em 50 L ições

pedagógico: na verdade, é algo que faço regularmente nas minhas aulas


de grego na Universidade de Coimbra e aplicarei aqui o mesmo conceito,
tomando por base a Vulgata (mas é claro que usarei muitos textos clás­
sicos também, em verso e em prosa). Além do interesse teológico que
todos reconhecemos ao texto bíblico, ninguém pode ficar indiferente ao
facto de muitas passagens da Bíblia nos darem a ler aquilo que de mais
belo a mente humana (quem sabe se com ajuda não humana) concebeu.
Para seguirem a matéria apresentada neste livro, o único recurso que
precisam de ter à mão é a Nova Gramática do Latim (Lisboa, Quetzal,
2019), para a qual remeterei por meio da sigla NGL. Tirando isso, não é
preciso mais nada. É só preciso começar.
E, assim sendo, mergulhemos já.
A primeira coisa que temos de aprender é a conjugar, no presente
do indicativo, um dos verbos mais simples (em «-a-», como no portu­
guês «amar»). Para quem tem o português como língua materna, isto é
facüimo.
Vejamos, lado a lado, o presente do indicativo de «amar» em por­
tuguês e em latim:

português latim
amo amõ
amas amas
ama amat
amamos amãmus
amais amãtis
amam 1 amant

(Sobre os sinais «õ» e «ã» e sobre como se deve pronunciar o latim,


remeto para o capítulo «Noções básicas de pronúncia», NGL, pp.
41-59.)
Vejamos agora esta lista de verbos que se conjugam como amõ
(notem que, em latim, referimos os verbos pela forma da l.a pessoa do
singular do indicativo presente: falamos no verbo amõ, e menos frequen­
temente no verbo amãre [infinitivo]):
LlÇÀO N.° 1
23

ambulõ («cam inhar»)


clamo («clam ar», «gritar»)
labõrõ («trabalhar»)
nãuigõ («navegar»)
portõ («levar», «transportar»)
salütõ («saudar»)
uocõ («cham ar», «invocar»).

Vejam se conseguem entender e traduzir as seguintes formas verbais


latinas:

salütãs
ambulãtis
clamat
labõrant
nãuigãmus.

Certifiquem-se de que foi isto que traduziram:

«saúdas»
«caminhais»
«chama»
«trabalham»
«navegamos».

Nesta Lição n.° 1, vamos ainda aprender a reconhecer dois tipos de


substantivos:

1. substantivos femininos como rosa («rosa»),puella («menina»),


epistula («carta»);
2. substantivos masculinos como amicus («am igo»), dominus
(«senhor») e equus («cavalo»).
24 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Ora, em latim, a função sintática de um substantivo está expressa na


desinência. O latim é uma língua que retém vários casos do indo-europeu.
Nesta primeira lição vamos falar somente, no singular, do nom ina­
tivo e do acnsativo.

O nominativo (por exemplo, amicus) é o caso do sujeito:

amicus epistulam portat (« O amigo leva a carta»).

O acnsativo é o caso do complemento direto (na frase acima, epis­


tulam).

Sistematizemos. A desinência de acusativo do singular é -m:

puella (nominativo)
puellam (acusativo)

amicus (nominativo)
amicum (acusativo).

Dada a existência de casos em latim (que clarificam a função de cada


palavra na frase), a ordem das palavras na frase não é fixa. Normalmente
coloca-se em primeiro lugar, em latim, o elemento que se quer salientar.
Vejamos:

amicus epistulam portat


epistulam amicus portat
portat epistulam amicus.

Todas estas frases significam o mesmo em português: « O amigo leva


a carta.»
(Notemos desde já o seguinte: não existe artigo definido nem inde­
finido em latim.)
LiçAo N.° 1 25

Para rematar esta Lição n.° 1, proponho-vos duas tarefas.

1. Traduzir para português as seguintes frases latinas:

puella rosam amat


dominus puellam uocat
equus dominum portat
Rõmam amãmus.
amicus amicam salutat

2. Ler dois capítulos introdutórios à língua latina na NG L:

«Noções básicas de pronúncia» (pp. 41-59)


«Introdução aos casos» (pp. 63-71).
Lição n.° 2

Na lição anterior, aprendemos:

1. a conjugar verbos do tipo amõ no presente do indicativo;


2. o nominativo e o acusativo do singular de palavras do tipo rosa ou
dominus.

Vamos olhar para este elenco de verbos que pertencem à mesma


categoria do verbo amõ:

laudõ («louvar»)
dubitõ («duvidar»)
célõ («esconder»)
dclectõ («deleitar», «encantar»)
dõnõ («dar»)
mõnstrõ («mostrar»).

Vejam agora se, confrontados com estas formas verbais, conseguem


entender o que significam:

laudãmus
dubitant
cêlãs
dêlectãtis
dõnat
mõnstrõ.
LiçAo N.° 2 27

Verifiquem se a vossa interpretação corresponde a estas formas em


português:

«louvamos»
«duvidam»
«escondes»
«deleitais»
«dá»
«m ostro».

Recordemos, de seguida, os casos dos substantivos que aprendemos


na lição anterior.
Vimos exemplos de palavras femininas como puella («menina») e rosa
(«rosa»).
Vimos exemplos de palavras masculinas como dominus («senhor»)
e amicus («am igo»).
Verificámos que, no acusativo do singular, encontramos como desi-
nência -m:

puellam, rosam
dominum, amicum.

Vimos também que o acusativo é o caso do complemento direto


(podem ler mais sobre esta questão na p. 69 da NGL).
Assim, na lição anterior já fomos capazes de entender uma frase
latina como:

puella amicum amat.

Percebemos que a frase não significa «O amigo ama a menina», mas


sim «A menina ama o amigo». Porquê? Por causa da desinência de acu­
sativo em amicum, que nos mostra que essa palavra é o complemento
direto da frase.
28 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Vamos agora ver mais palavras que se declinam como rosa e puella.

lüna («Lua»)
hõra («hora»)
cèna («ceia»)
oliua («azeitona»)
Lüsitània («Lusitânia»).

Se tiverem à mão uma folha de papel, escrevam estas cinco palavras


na forma correspondente de acusativo do singular.
Agora olhem para as seguintes palavras que se declinam como amicus:

lupus («lobo»)
locus («lugar»)
fümus («fum o»)
agnus («cordeiro»)
deus («deus»).

Façam o mesmo em relação a estas palavras: escrevam-nas na forma


correspondente de acusativo do singular.
Agora leiam e procurem adivinhar o sentido das seguintes frases em
latim:

lünam fümus celat


amicus mõnstrat locum,
laudamus cênam tuam.

Verifiquem se o vosso palpite corresponde a:

«O fumo esconde a Lua.»


«O amigo mostra o lugar.»
«Louvamos a tua ceia.»
LiçAo N.° 2 29

Como terão reparado, na palavra tuam temos uma forma nova: um


pronome possessivo. Para falantes de português, estas formas latinas são
extremamente intuitivas e não oferecem qualquer dificuldade:

filius meus (« O meu filho»)


amõ filiam meam («Amo a minha filha»).

E com isto já podemos olhar para a nossa primeira frase de latim


autêntico! Olhemos primeiro para este vocabulário:

anima («alm a»)


magnificõ («engrandecer»).

Podemos então ler as famosas palavras de Maria, no Evangelho de


Lucas 1:46:

magnificat anima mea Dominum.


«A minha alma engrandece o Senhor.»

Reparem, pois, na desinência de acusativo em Dominum.

Muito bem. Chegou o momento de vermos estes substantivos no


nominativo e no acusativo do plural:

rosae («rosas», nominativo)


rosãs («rosas», acusativo)

amtci («amigos», nominativo)


amicõs («am igos», acusativo).

E partamos já para as seguintes frases (não sem primeiro dizer que


parõ significa «preparar»; e hortus significa «jardim »):
30 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

amici cênam parant


rosäs tuäs laudamus,
puellae hortós amant
locõs monstrant

Vejam se a vossa interpretação corresponde a isto:

«Os amigos preparam a ceia.»


«Louvamos as tuas rosas.»
«Ás meninas amam os jardins.»
«Eles mostram os lugares.»

Nesta lição, ainda vamos aprender duas preposições: ad e per.


Em latim, as preposições não são seguidas de nominativo, mas sim
de outros casos. Tanto ad como per são preposições seguidas de acusa-
tivo (verNGL, pp. 281-287).
A preposição ad significa «para», «em direção a».
Λ preposição per significa «através de».
Vejamos então as seguintes frases (com a indicação de que insula
significa «ilha»):

per hortos puellae ambulant


amici ad insuläs näuigant

Certamente perceberam que as frases significam:

«As meninas passeiam pelos jardins.»


«Os amigos navegam em direção às ilhas.»

Finalmente, lembremos que, em português, conjugamos assim o


presente do indicativo do verbo «ser»:

sou
és
LiçAo N.° 2 31

é
somos
sois
são.

Para um falante de português, o mesmo em latim não oferece mis­


térios (mas leiam as informações lingüísticas e históricas sobre o verbo
«ser» na p. 145 da NG L):

sum
es
est
sumus
estis
sunt
Lição n.° 3

Nesta lição começamos por falar de um caso fundamentalissimo em


latim: o genitivo. Não é por acaso que, quando queremos referir um subs­
tantivo latino, dizemos a forma de nominativo e a forma de genitivo.
Chama-se a isto «enunciar» um substantivo.
Muitos já ouviram falar da lengalenga rosa, rosae. Esta é a maneira
certa de referir a palavra rosa em latim.
Reparem que rosae não é, aqui, o nominativo do plural (que apren­
demos na Lição n.° 2), mas sim o genitivo do singular.
Existem várias desinências em latim que são homógrafas: aparente­
mente iguais, mas, na realidade, com uma história lingüística diferente.
No caso de rosa, que é o paradigma típico da chamada «primeira decli-
nação» em latim, recomendo a leitura das explicações históricas que dou
a partir da p. 72 da NGL.
Vamos então sistematizar esta ideia: relativamente a substantivos
como rosa, temos estas formas no singular e no plural:

rosa (nominativo do singular)


rosam (acusativo do singular)
rosae (genitivo do singular)
rosae (nominativo do plural: vejam as pp. 75-76 da NGL para perce­
berem a razão histórica da homografía relativamente ao genitivo)
rosãs (acusativo do plural)
rosãrum (genitivo do plural).
LiçAo N.° 3 33

Portanto: rosae tanto pode significar «as rosas» (nominativo do


plural) como «da rosa» (genitivo do singular). É o contexto da frase que
nos dá a resposta certa.
O genitivo é tipicamente o caso do complemento determinativo de
posse: a expressão rosa puellae significa «a rosa da menina». Do mesmo
modo, rosae puellãrum significa «as rosas das meninas».
Se tiverem à mão uma folha de papel, tentem escrever as formas
correspondentes de genitivo do singular das seguintes palavras:

lüna («Lua»)
hõra («hora»)
columba («pom ba»).

Verifiquem se foi isto que escreveram:

lünae
hõrae
columbae.

Agora escrevam a forma correspondente de genitivo do plural das


seguintes palavras:

amica («amiga»)
fêmina («m ulher»)
cena («ceia»).

Verifiquem se foi isto que escreveram:

amicãrum («das amigas»)


fêminãrum («das mulheres»)
cênãrum («das ceias»).
34 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Vejamos agora esta frase lindíssima do Cântico dos Cânticos (1:14):

pulchra es, amica mea; oculi tui columbarum.

Vimos na p. 31 que es é a 2.a pessoa do singular do verbo sum


(«ser»). Significa «és». Apalavra latina oculus significa «olho». Qpanto
a pulchra, é um adjetivo que significa (aqui no feminino) «bela».
Portanto, a frase bíblica significa: «És bela, minha amiga; teus olhos
<são olhos> de pombas.» Novamente em latim:

pulchra es, amica mea; oculi tui columbarum.

(Entre parênteses angulares < > coloco sempre as palavras que têm
de ser subentendidas em latim, pois a língua latina é infinitamente mais
sintética do que a nossa.)
Aproveitemos, ainda, uma frase do Cântico dos Cânticos para rever-
mos algo que vimos na lição anterior: o facto de as preposições latinas se
construírem com casos específicos.
Falámos na p. 30 em ad e per, que se constroem com acusativo:

per hortos puellae ambulant («As meninas passeiam pelos jardins»)


amici ad insulãs nãuigant («O s amigos navegam em direção às
ilhas»).

Outra preposição que se constrói com acusativo é inter (que significa


«entre», «no meio de»).
Com a informação de que sicut significa «assim como» e sie significa
«assim», vejam agora se conseguem adivinhar o sentido desta frase do
Cântico dos Cânticos (2:2):

sicut lilium inter spinãs, sic amica mea interfiliãs.

Mais uma vez, temos de subentender o verbo (neste caso, est):


Lição n .° 3 35

sicut lilium inter spinäs, sic <est> amica mea interfiliäs.

Vejam agora se o vosso palpite corresponde a esta tradução:

«Assim como o lírio entre os espinhos, assim <é> a minha amiga


entre as filhas.»

Dentro da lógica do Cântico dos Cânticos, entender-se-ia aqui


«filhas» como «filhas de Jerusalém». Vejam mais este exemplo (Cân­
tico dos Cânticos 1:4):

nigra sum, sedfõrmõsa, filiae Hierusalem!

Em português:

«Sou negra, mas formosa, filhas de Jerusalém!»

(Só uma nota para referir que os textos hebraico e grego correspon­
dentes não têm o «m as»; têm « e»: «Sou negra e formosa.»)
Ora bem: a partir destas frases do Cântico dos Cânticos em latim,
introduzimos alguns conhecimentos novos:

sicut («assim com o»)


sie («assim »)
sed («m as»)
spina, spinae («espinho»).

Vimos, ainda, a palavra (indeclinável) para «Jerusalém»: Hierusalem.


Outra coisa nova que vimos foi a palavra para «lírio»: em latim,
lilium.

Ora lilium não é um substantivo masculino (nem feminino): é um


substantivo neutro.
36 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Isto porque existem três gêneros gramaticais em latim: feminino,


masculino e neutro.
Os substantivos neutros têm esta característica muito típica: são
sempre iguais no nominativo e no acusativo.
Portanto, lilium tanto pode ser nominativo como acusativo; só o
contexto da frase nos diz ao certo qual é o caso.
Vejamos mais estes exemplos de substantivos neutros:

prãtum («prado»)
saxum («rocha»)
cõnsilium («conselho»)
õuum («ovo»)
theãtrum («teatro»).

Agora relembremos alguns substantivos masculinos que já conhe­


cemos:

amicus («amigo»)
equus («cavalo»)
oculus («olho»)
dominus («senhor»).

Todas estas palavras - as neutras e as masculinas - pertencem à cha­


mada «segunda declinação» (ver a partir da p. 81 da NGL). Têm em
comum a desinência de genitivo do singular, que é -í.
Assim, o genitivo do singular de amicus é amici («do amigo»).
O genitivo do singular de theãtrum é theãtri.

Escrevam agora na vossa folha de papel o genitivo do singular destas


palavras:

oculus
saxum
cõnsilium.
Lição n .° 3 37

Vejam se foi isto que escreveram:

oculi
saxi
consilii

Um pouco à semelhança da forma de genitivo do plural da l.a decli-


nação (rosãrum), a forma de genitivo do plural da 2.a declinação é em
-õrum.
Escrevam, pois, o genitivo do plural das seguintes palavras:

locus («lugar»)
filius («filho»)
bellum («guerra»; c£, em português, «bélico», «belicoso»).

Verifiquem se foi isto que escreveram:

locõrum
filiorum
bellõrum.

Voltando ao Cântico dos Cânticos, vejam agora se conseguem


adivinhar o sentido destas expressões (4:10-11):

odor unguentorum tuõrum.


odor uestimentõrum tuõrum.

Ou seja:

«O odor [perfume] dos teus unguentos.»


«O odor [perfume] das tuas roupas.»

Falta-nos ver como é a forma do nominativo do plural destes subs­


tantivos neutros.
38 Latim do Z ero a Vbrgílio em 50 L ições

Pode parecer contraintuitivo, mas a desinência de nominativo e de


acusatívo do plural neutros é -a. Digo «contraintuitivo» porque estamos
habituados a associar a desinência -a ao feminino do singular; mas em
latim (e em grego), a desinência -a ocorre também no neutro do plural.
A palavra «Bíblia», já agora, é em rigor um neutro do plural, com o
sentido de «livros».
Como o nominativo e o acusatívo são iguais no neutro, temos então
estas formas:

prãtum (nominativo/acusativo do singular)


prãta (nominativo/acusativo do plural)
prãtí (genitivo do singular)
prãtõrum (genitivo do plural).

Escrevam, agora, no nominativo do plural as seguintes palavras neutras:

uxnum («vinho»)
uerbum («palavra»)
templum («templo»)
auxilium («ajuda»).

Verifiquem se foi isto que escreveram:

uina
uerba
templa
auxilia.

Agora, regressemos à conjugação do verbo amõ que vimos na p. 22.


Vimos que, no presente do indicativo, o verbo se conjuga assim:

amõ
amäs
Lição n * 3 39

amat
amãmus
amãtis
amant

Vejamos agora como fica o futuro deste verbo:

amãbõ («am arei»)


amãbis («amarás»)
amabit («am ará»)
amabimus («amaremos»)
amabitis («amareis»)
amãbunt («amarão»).

(Para a explicação histórico-linguística do futuro, vejam a p. 162 da


NGL.)

Escrevam agora na vossa folha de papel o futuro do verbo aedificõ


(«edificar»). Depois de terem escrito, confiram se o vosso resultado foi
este:

aedificabo ( «edificarei»)
aedificabis ( « edificarás » )
aedificabit («edificará»)
aedificabimus («edificaremos»)
aedificabitis («edificareis»)
aedificãbunt («edificarão»).

Para terminarmos esta lição, leiamos em latim a seguinte passagem


do Evangelho de Mateus (16:18-19):

tü es Petrus et super hanc petram aedificãbõ ecclesiam meam. et portae


infert non praeualêbunt aduersum eam. et tibi dabõ clãuès regni caelorum.
40 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

A passagem tem coisas que já conhecemos; e outras que não conhe­


cemos ainda.
Coisas que não conhecemos: os pronomes em acusativo hanc
(«esta»), earn («ela»); e o pronome pessoal tibi («a ti»). Também não
conhecemos ainda a 3.a declinação, a que pertence a palavra clãuês
(«chaves»).
Mas, de resto, intuitivamente já conseguem chegar ao sentido da
passagem!
Estejam atentos aos genitivos: inferi («do inferno»); rêgnt («do
reino»); caelõrum («dos céus»).
E já ficamos com estas palavras também:

nõn («não»)
et («e»).

Curiosamente, em latim temos uma outra forma de exprimir «e»:


colar à palavra a enclitica -que.
Por exemplo, a famosa sigla SPQR corresponde a senãtus populusque
Rõmãnus, «O senado e o povo romano».
Notem a forma populusque (isto é, populus + -que).
E terminemos em beleza, com as primeiras palavras da Eneida de
Vergilio, onde encontram o neutro do plural que aprendemos hoje:

arma uirumque canõ.


«As armas e o varão eu canto.»
Lição n.° 4

Comecemos com alguns pequenos exercícios de reconhecimento


de formas gramaticais latinas.
A nossa primeira frase é tirada do Evangelho de Mateus (3:16):

et uidit Spiritum Dei descendentem sicut columbam.

1. A frase contém pormenores gramaticais que estudaremos mais


tarde (veremos depois o verbo que significa «ver», que em latim é uideõ-,
a forma que está na frase é o perfeito desse verbo), mas a primeira per­
gunta que faço é a seguinte: assim intuitivamente, quantas palavras con­
seguem contar na frase que estejam em acusativo?
Se contarem três palavras, então está certíssimo: Spiritum, descen­
dentem (do verbo latino que significa «descer») e columbam (palavra,
que vimos já anteriormente, com o sentido de «pomba»).
Intuitivamente, conseguimos ligar descendentem a Spiritum; e assim
chegamos à tradução correta da frase, que é:

«E viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba.»

2. A palavra traduzida por «Deus» assume no texto a forma Dei.


Encontra-se no caso que estudámos na lição anterior: o genitivo («de
Deus»).
Continuando com Mateus, vejam se conseguem adivinhar o sentido
destas duas frases, pondo em prática o vosso conhecimento do genitivo:
42 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

uõs estis sãl terrae (Mateus 5:13)


uõs estis lümen mundi (5:14).

(Notem que a grafia uõs corresponde ao pronome português


«vós».)
Portanto, nas duas frases acima transcritas, as palavras em genitivo
são:

terrae («da terra»)


mundi («do mundo»).

Já conseguimos entender que terra é uma palavra da l.a declinação


(que se declina como rosa). £ que mundus é uma palavra da 2.a declinação.
Qpanto a sãl («sal») e lumen («luz»), são palavras da 3 a declinação.

Existem cinco dedinações em latim, mas as primeiras três são as mais


relevantes em termos do número de palavras que abrangem. Veremos
depois que a 4.ae a 5.a dedinações são de entendimento muito intuitivo
para falantes do português. Aliás, não houve qualquer dificuldade em
entender a palavra Spiritum. Trata-se de uma palavra da 4.a declinação.
Mas para já interessa-nos solidificar, pouco a pouco, as primeiras três
dedinações.
£m português, temos imensas palavras que descendem das cinco
dedinações latinas: vejam o quadro que está na p. 73 da NGL. E, no
fundo, nós temos (como falantes do português) as primeiras três
dedinações do latim interiorizadas nalguns dos seus aspetos mais
salientes.
Se um estrangeiro, que ainda está inseguro a falar português, usar
«dentos» como plural de «dente», ou «príncipos» como plural de
«príndpe», somos todos capazes de o corrigir, dizendo-lhe que o plural
de «dente» é «dentes» - e não «dentos».
Mas só seremos capazes de lhe explicar a razão pela qual o plural de
«dente» é «dentes» (e não «dentos») se soubermos latim.
LiçAo N.° 4 43

Do mesmo modo, só conseguiremos explicar que o plural de «ano»


não é «anes» se soubermos a declinação latina a que essa palavra (hoje
portuguesa, mas antes latina) pertence.
Então:

«príncipe» provém da palavra latina princeps (nominativo e acusa·


tivo do plural em latim: principes)
«dente» provém da palavra latina dins (nominativo e acusatívo do
plural em latim: dentes)
«ano» provém da palavra latina annus (acusatívo do plural em latim:
annõs).

Antes, porém, de continuarmos com substantivos, relembremos os


tempos verbais que já conhecemos.
Já conhecemos o presente do verbo «ser» em latim:

sum
es
est
sumus
estis
sunt

Há pouco vimos na frase de Mateus: uõs estis sãl terrae («Vós sois
o sal da terra»).
Conhecemos o presente e o futuro do indicativo dos verbos da
l.a conjugação (como amõ). Relembremos:

presente futuro
amõ amãbõ
amãs amãbis
amat amãbit
amãmus amãbimus
amãtis amãbitis
amant amãbunt
44 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

(Se tiverem curiosidade relativamente a «a» em vez de «ã» nalgu-


mas destas formas, espreitem a explicação histórico-linguística na p. 381
da NG L)
Tendo então relembrado o presente e o futuro, estamos aptos para
traduzir mais uma frase do Evangelho de Mateus:

nõn temptabis Dominum Deum tuum (Mateus 4:7).

Esta frase serve igualmente para rever o acusativo do singular da 2.a


declinação. Como certamente terão percebido, a frase significa «não
tentarás o Senhor teu Deus».
Agora vamos olhar para outra frase do mesmo Evangelho; e vamos
pôr em ação a nossa capacidade, não só intuitiva, mas também lógica,
como falantes do português, de adivinharmos o sentido de algo que nos
está a ser dito em latim.
Lembremos só o verbo ambulõ («caminhar»); e fiquemos com mais
uma preposição que se constrói com acusativo: iuxtã («junto de»).
Então, a frase é esta:

ambulãns iuxtã mare Galilaeae, uiditduõfrãtrês: Simõnem, qut uocãtur


Petrus, etAndréam, frãtrem eins (Mateus 4:18).

Nesta frase temos substantivos das três declinações!


Dois («Galileia» e «André») pertencem à l.a declinação - o que
nos proporciona uma boa oportunidade para referir que existem também
palavras masculinas da l.a declinação (como, por exemplo,poeta e, neste
caso, o nome grego Andreas; o genitivo do singular de ambas as palavras
é previsivelmente poêtae e Andrêae).
Temos um nome da 2.a declinação: Petrus («Pedro»).
E depois temos substantivos da 3.a declinação: more («m ar»); frãter
(«irmão»); Simón («Simão»).
Temos ainda o numeral duõ (cujo sentido acho que conseguem
adivinhar).
Lição n .®4 45

E temos pronomes: qui («que») e eius («dele»). Vê-los-emos mais


tarde.
Temos também uma forma verbal (uocãtur, «é chamado») que já
nos encaminha para a ideia de que, em latim, existe voz ativa e voz pas­
siva. Vejamos de novo a frase:

ambulãns iuxtã mare Galilaeae, uiditduõfrãtrês: Simõnem, quiuocãtur


Petrus, et Andrêam,frãtrem eius.

Vamos então arriscar uma tradução desta frase? Vejam se o vosso


palpite corresponde a isto:

«Caminhando junto do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, que


é chamado Pedro, e André, seu irmão.»

Vamos agora falar de outro caso latino de que precisamos muito:


o ablativo (sobre ele vejam a p. 70 da NGL). E vamos começar primeiro
por conhecê-lo numa das frases mais espantosas em que ele ocorre:
o início do Evangelho de João.

In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum.

Vejamos ainda, na mesma passagem:

et lüx in tenebris lücet


«E a luz nas trevas brilha.»

Na primeira frase, encontramos o ablativo do singular principio; na


segunda, encontramos o ablativo do plural tenebris (em latim, tenebrae;
«trevas»).
Em ambos os casos, o ablativo segue-se à preposição in. Pois essa é,
de facto, uma das funções do ablativo: juntar-se a certas preposições.
Na l.a e na 2.a declinações, portanto, o ablativo do plural é -is.
46 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

No singular, temos a desinência -ã na l.a declinação (vejam o quadro


na p. 75 da NGL) e a desinência -õ na 2 a (vejam o quadro na p. 81).
O ablativo é também usado com certos adjetivos (ver p. 315 da
NGL). Uma das suas utilizações mais famosas está na frase de Lucas 1:28:

aué Mana grãtiã plena.


«Avé Maria, cheia de graça.»

A palavra grãtiã está em ablativo.


Na 3.a declinação, a desinência de ablativo do plural tem uma música
muito própria, pois termina em -ibus. Se pensarem que a palavra latina
ouis significa «ovelha» (não confundir com õuum, que significa «ovo»),
vejam se conseguem adivinhar o sentido desta firase lindíssima que
encontramos no Evangelho de João (10:11):

ego sum pãstor bonus; bonus pãstor dat animam suam prõ ouibus.
Lição n.° 5

O primeiro tema desta lição tem a ver com o alfabeto latino, que,
como muitas pessoas já sabem, constituiu uma adaptação ao latim do
alfabeto grego. Isto não é de admirar, já que, quando Roma foi fundada
(no século v iu a.C.), o grego já era uma das várias línguas faladas na
península itálica. Todo o sul de Itália e a Sicilia constituíam zonas onde
a língua materna dos habitantes era o grego.
Por isso, uma das minhas frases preferidas da NGL (p. 20) é justa­
mente a que diz: «Quando, no século vi a.C., Pitágoras deixou a sua ilha
de Samos (perto da atual Turquia) para se estabelecer em Crotona, no
sul de Itália, teve uma experiência análoga ao português que embarca
num avião em Lisboa e aterra no Rio de Janeiro: atravessou o mar, fez
uma longa viagem, mas a língua falada na cidade de chegada é a mesma
da cidade donde partiu.»
Naturalmente, houve letras do alfabeto grego que não serviram ao
latim; e criaram-se letras no alfabeto latino que não existiam no grego.
Uma delas é a letra «V».
Na Antiguidade, todos os textos eram escritos somente com letras
maiúsculas. Por exemplo, a palavra que já sabemos que significa «prado»
escrevia-se PRATVM. As famosas palavras correspondentes à sigla SPQR
escreviam-se assim por extenso: SENATVS POPVLVSQVE ROMANVS.
A convenção moderna na escrita do latim (em que usamos obvia­
mente letras minúsculas, preciosa invenção dos séculos v i i i - i x d.C.) é que,
quando a letra «V» pertence a uma palavra em que usamos maiúscula, a
sua forma é V. Por exemplo, o nome da deusa do amor: em latim, Venus.
48 Latim do Zero a V ergílio em SO Lições

Mas, quando se trata de uma palavra em que a letra tem de ser minús­
cula, muitos latinistas usam somente u. A palavra para «vinho», por
exemplo, escrita toda em maiúsculas à boa maneira antiga, grafa-se
VINVM. Se a escrevermos com letras minúsculas, a convenção dos lati­
nistas (pelo menos de muitos deles) é escrever utnum.
Isto condiz mais com a pronúncia que V tinha na época clássica,
digamos nos tempos de Cícero e de Vergílio. Quando consideramos a
palavra inglesa para «vinho», vemos ainda o mesmo som inicial (wine),
que era também, antes até dos tempos homéricos, o som inicial da pala­
vra em grego: wotnos (Folvoc).
Curiosamente, em alemão a palavra é pronunciada, apesar do «W »
inicial, com o mesmo som de três Unguas latinas (italiano, francês,
português):

Wein (alemão)
vin (francês)
vino (italiano)
vinho (português).

Claro que há pessoas em Portugal que dizem «binho»; tal como se


diz em Espanha. A troca de «v» e de «b» já começou na Antiguidade
Tardia. Para a história do Ve das outras letras do alfabeto latino (e para
a história da sua pronúncia), remeto para as pp. 46-58 da NGL.
Ora esta grafia de V/u, talvez um pouco confusa para principiantes
(que contudo não pode ser escamoteada, porque o mais importante
recurso para o estudo avançado do latim, o Oxford Latin Dictionary,
segue esta convenção), cria uma pequena dificuldade inicial quando esta­
mos à espera que «a ficha caia» no reconhecimento de palavras que
seriam óbvias se usássemos outra grafia. Já vimos, nas lições anteriores,
as palavras latinas para «ovo» e «ovelha». Não podemos negar que elas
nos saltariam mais depressa à vista com o significado que lhes é próprio
se as escrevêssemos:
LiçAo N.° 5 49

õvum (em vez de õuum: «ovo»)


ovis (em vez de ouis: «ovelha»).

Perceberíamos mais rapidamente que uulnus significa «ferida», se


escrevêssemos vulnus? Talvez.
Mas, por uma questão de correção pedagógica, peço que tenham
esta paciência com a grafia «científico-universitária», que vos ajudará
num dia que queiram prosseguir estudos mais avançados de latim.
Ora bem. Um tempo verbal em que esta questão V/u poderá causar
alguma confusão inicial é o perfeito do indicativo. Olhemos para o per­
feito do verbo amõ:

amãui («amei»)
amãuisti («amaste»)
amãuit («amou»)
amãuimus («amámos»)
amãuistis («amastes»)
amãuêrunt («amaram»).

Talvez o aspeto gráfico deste tempo verbal nos parecesse mais intui­
tivo se usássemos a grafia usual noutros tempos:

amãvi
amãvisti
amãvit
amãvimus
amavistis
amaverunt

Independentemente desta questão da grafia, que vamos agora pôr


de lado, frisemos que o perfeito é um tempo absolutamente fundamental
para compreendermos o funcionamento do verbo latino. Qpando se
enuncia um verbo em latim, os elementos que dizemos são:
50 Latim do Z ero a Vbrgílio em 50 L ições

1. a l.a pessoa do singular do indicativo presente;


2. o infinitivo;
3. a I a pessoa do singular do indicativo perfeito;
4. o supino (não vamos falar dele ainda, mas quem quiser ler o
spoiler poderá olhar para as pp. 141-142 da NGL).

A enunciação, portanto, do verbo amõ é assim:

amõ, amãre, amãui, amãtum.

O verbo amõ é regular: portanto, estas formas podem ser deduzidas


por indução lógica. Veremos que não é sempre esse o caso em latim!
Mas vejamos como funciona a enunciação de um verbo regular que
se conjuga como amõ, o verbo que significa «criar»:

creõ, creãre, creãui, creãtum.

Reparem, agora, na primeira frase da Bíblia em latim:

Inpríncipiõ creãuitDeus caelum et terram.

Ora, esta frase serve-nos para rever duas coisas:

1. Uma delas é a ordem flexível das palavras em latim; mas já perce­


bemos também que nunca há ambigüidade quanto à função de cada ele­
mento na frase, graças aos casos e às declinações.

2. £ já que falámos em casos, vejamos se conseguimos identificar


todos os casos da frase:

principio: ablativo, dependente de in


Deus: nominativo, o sujeito da frase
caelum, terram: acusativos, pois são o complemento direto da forma
verbal creãuit
LiçAo N.° 5 51

Nesta altura, falta-nos ainda falar de um caso importantíssimo:


o dativo. É o caso do complemento indireto (vejam as pp. 69-70 daNGL).
Vejamos uma frase tirada das Metamorfoses de Ovídio (1.556).
O contexto é este. Apoio perseguira Daíne, mas, antes que o deus con­
seguisse apanhá-la, ela foi transformada em árvore: no loureiro, cujo
nome em grego é, justamente, daphnè (δάφνη). Frustrado por não con­
seguir beijar a ninfa, Apoio dá em vez disso beijos à árvore - ou, como
diz Ovídio, «Dá beijos à madeira». Em latim:

õscula dat lignõ.

Ora, a forma lignõ está em dativo; tem aqui a função de comple­


mento indireto.
A palavra lignum (donde vem «lenha» em português) é um subs­
tantivo neutro da 2.a declinação. O mesmo vale para õsculum («beijo»).
Por outro lado, na l.a declinação, a desinência de dativo é -ae. Pen­
semos na frase simples:

poeta rosam fêminae dat («O poeta oferece uma rosa à mulher»).

O dativo na l.a e na 2.a declinações cria a ilusão de estarmos a lidar


com formas homógrafas relativamente a outros casos. Reparem que, sem
o contexto da frase, a palavra/êminae poderia ser:

dativo (fêminae)
genitivo (fêminae)
nominativo do plural (fêminae).

Do mesmo modo, a palavra lignõ poderia ser:

dativo (lignõ)
ablativo (lignõ).
52 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

No entanto, as palavras são só aparentemente homógrafas. As desi-


nências têm, na verdade, uma história lingüística diferente, nos vários
casos. Elas não eram originalmente homógrafas. Mas, para esses ele­
mentos de morfologia histórica, leiam as páginas referentes às três decli-
nações na NGL, onde explico a origem das desinências e as suas
transformações ao longo dos tempos. Para já, o que nos interessa é ver
o aspeto geral da l.a e da 2.a declinações (e vejam os quadros nas pp. 75
e 81 da NGL).
Separo por « /» o singular e o plural. Então, vejamos a l.a e a 2.a
declinações:

n o m in a tiv o : rosa / rosae


ACUS a t i v o : rosam / rosäs
g e n i t i v o : rosae / rosärum
d a t i v o : rosae/ rosis
ABLATIVO: rosã / rosis.

n o m in a tiv o : dominus / domini


ACUSATivo: dominum / dominos
g e n i t i v o : domini/dominorum
d a t i v o : domino / dominis
a b l a t i v o : domino / dominis.

Agora vejamos uma palavra neutra da 2.a declinação:

n o m in a tiv o : prãtum /prãta


A CU SA Tivo: prãtum /prãta
g e n itiv o : prãti / prãtórum
d a t i v o : prãtõ / prãtis
a b l a t i v o * , prãtõ / prãtis.

Para ficarmos com os substantivos mais sólidos, olhemos de seguida


para a 3.a declinação (e notem que a esmagadora maioria dos substantivos
LiçAo N.° 5 53

latinos pertence a estas três declinações). Escolhamos a palavra que sig­


nifica «flor»; em latim,/Zõs (p. 108 daNGL):

N O M IN A TIV O : flõs/flõrês
a c u s a tiv o : florem /flõrés
G E N IT IV O : flõris/flõrum
DATIVO: flo r i/flõribus
a b la tiv o : flõre / flõribus.

Quem se der ao esforço de se familiarizar com estas desinéndas já terá


dado um passo muito importante na iniciação ao latim. Sugiro, pois, que
leiam com calma os capítulos na NGL referentes às declinações l.a, 2.ae 3A
Finalmente, para verem como isto é importante na prática, vejamos
uma frase de Marco Túlio Cícero, o príncipe dos prosadores romanos.
Na sua acusação cortante dirigida ao psicopata Catilina (que, em
rigor ético, teria merecido melhor morte do que a que teve por respon­
sabilidade do seu ilustre acusador), Cícero refere o facto (ou o boato)
de que Catilina estivera em casa de um tal Laeca, onde se pôs a distribuir,
pelos seus coconspiradores, partes de Itália como se a península toda lhe
pertencesse. Cícero (cujo nome, já agora, significa «grão-de-bico»)
exclama em alta indignação:

fuisti apud Lacuum illã nocte, Catilina! distribuisti partes Italiae!

Olhando para esta frase de Cicero (e reparem que ainda vamos na


Lição n.° 5, mas já estamos a ler Cícero...), foquemo-nos primeiro nos
dois exemplos do tempo verbal que aprendemos nesta lição, o perfeito:

fuisti (perfeito do verbo sum, 2.a pessoa do singular)


distribuisti (perfeito do verbo distribuo, 2 apessoa do singular também).

Olhemos só rapidamente para a conjugação do perfeito de sum


(NGL, p. 151):
54 Latim do Z ero a Vbrgílio bm 50 L ições

fui («fili»)
fuisti («foste»)
fuit («foi»)
fuimus («fomos»)
fuistis («fostes»)
fuerunt («foram»).

Refiramos agora a preposição apud (+ acusativo), aqui no sentido


de «em casa de» (como no francês chez; ou no alemão bei).
Depois, temos uma expressão em ablativo: illã nocte. A forma illã
pertence a um pronome que encontram na p. 223 da NGL; quanto a
nocte, é o ablativo de nox («noite»). O ablativo pode servir em latim para
exprimir também (entre outras coisas) tempo: portanto, illã nocte signi­
fica «naquela noite».
Quanto a partes (do substantivo da 3.a declinação pars, partis
[«parte»] - lembrem-se de que os substantivos se enunciam dizendo o
nominativo e o genitivo), conseguem adivinhar o caso?
£ Italiae?Apesar da aparente homografía nas desinências de genitivo
(singular), dativo (singular) e nominativo (plural), conseguem adivinhar
o caso?
E como fica então a tradução da nossa primeira frase de Cícero? Aqui
está ela, em latim:

fuisti apud Laeuum illã nocte, Catilina! distribuisti partes Italiae!


Lição n.° 6

A propósito de, na lição anterior, termos feito uma pequena siste-


matização das primeiras três declinações, comecemos por refletir sobre
a importância de olharmos para cada substantivo sob a forma «nomina­
tivo / genitivo».
Se é indubitavelmente importante aprendermos os substantivos da
l.a e da 2.a declinações com as formas de nominativo e genitivo (por
exemplo: rosa, rosae ou amicus, amici), mais importante ainda se revela
esta disciplina no que toca à 3.a declinação.
Isto porque, no nominativo, os substantivos da 3.a declinação têm
uma grande variedade de formas e, confrontados com um substantivo da
3.a declinação que acaso ainda não conheçamos, não sabemos como o
declinar sem o conhecimento da sua forma no genitivo.
Pensemos na palavra latina que significa «virtude»: uirtüs.
Se não soubermos o genitivo desta palavra (uirtútis), não a sabere­
mos declinar. Mas, perante a informação de que o genitivo é uirtútis (por
conseguinte, 3.a declinação), já não temos dificuldade em prever como
será a declinação completa da palavra (separo singular e plural por meio
de « / » ) :

n o m in a tiv o : uirtüs/ uirtütès


ACUSativo: uirtütem / uirtütès
g e n itiv o : uirtútis / uirtütum
d a tiv o : uirtüti/ uirtütibus
a b la tiv o : uirtúte / uirtütibus.
56 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

Outra informação que importa reter é o gênero da palavra. No caso


de uirtús, uirtütis, a palavra é feminina. A sua declinação não seria dife­
rente se fosse uma palavra masculina.
Agora, tratando-se de uma palavra neutra, temos de ter em atenção
aquilo que caracteriza basicamente as palavras neutras em latim:

1. as formas de nominativo e acusatívo são iguais;


2. encontramos no plural (nominativo e acusatívo) a desinência -a.

Vejamos a palavra latina que significa «tem po». Trata-se, pois, de


uma palavra neutra da 3.a declinação: tempus, temporis.

nom inativo: tempus / tempora


acusatívo: tempus / tempora
gen itivo: temporis / temporum
dativo: tempori/ temporibus
ab lativo: tempore / temporibus.

Muitas pessoas conhecem a expressão que surge na Catilinária 1 de


Cícero:

õ tempora! õ mõrés!

Como veem, são duas palavras da 3.a declinação; mõrés é o plural de


mõs, moris, que significa «costume». Curiosamente, o caso em que
ambas as palavras aqui surgem é o acusatívo: trata-se do chamado «acu-
sativo de exclamação» (ver NGL, p. 294).
Olhemos agora para outra frase famosa, que abre, na Vulgata, o livro
de Eclesiastes:

uãnitàs uãnitãtum - dixit Ecclesiastes - uãnitãs uãnitãtum! omnia uãnitãs!


Lição n .° 6 57

Reparem:

no nominativo: uãnitãs
no genitivo do plural: uãnitãtum
na forma dixit, perfeito do verbo dicõ («dizer»).

A pequena rasteira que a frase comporta é o adjetivo omnia, que é


neutro do plural de omnis. Os adjetivos latinos dividem-se entre aqueles
que seguem as primeiras duas declinações (lembrem-se da frase do Evan­
gelho de João, ego sum pastor bonus: em bonus temos um exemplo de um
adjetivo que segue a 2.a declinação) e aqueles que seguem a 3.a declina-
ção. O adjetivo omnis («todo») segue, pois, a 3.a declinação.
Em latim (e também em grego), muitas vezes um adjetivo no neutro
do plural tem um sentido altamente sintético: a tradução para omnia não
é bem a mesma na situação em que o adjetivo surge sozinho relativa­
mente a outras situações em que surge a qualificar um substantivo.
Na expressão omnia tempora, por exemplo, temos algo que podemos
traduzir por «todos os tempos». Também poderemos traduzir omniaflü-
mina por «todos os rios» (a palavra para «rio», neutra, éflümen,flüminis).
No caso de termos o adjetivo sozinho, a tradução terá de ser dife­
rente: «todas as coisas». Assim, voltando agora à frase uãnitãs uãnitãtum
- dixit Ecclesiastes - uãnitãs uãnitãtum! omnia uãnitãs!, podemos traduzi­
da como «Vaidade das vaidades - disse Edesiastes - vaidade das vaida-
des! Todas as coisas <são> vaidade!».
Prossigamos, agora, com mais duas frases do livro de Edesiastes.
A primeira dá-nos a ver dois pronomes latinos: uma forma do
pronome relativo (aqui quae: cf. NGL, p. 226); e uma forma no dativo
do plural de um pronome demonstrativo (aqui eis: cf. NGL, p. 219),
que substitui muitas vezes em latim o inexistente pronome pessoal da
3.a pessoa.
Tentem adivinhar o sentido da frase:

et omnia quae désiderãuérunt oculi mei nõn negãut eis (Edesiastes 2:10).
58 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

E verifiquem se o vosso palpite corresponde a:

«E todas as coisas que os meus olhos desejaram não lhes neguei.»

Vejamos mais esta frase do mesmo livro da Bíblia, onde encontram


o perfeito do verbo uideõ («ver») e uma forma da palavra latina que
significa «sol» (em latim, sõl, sõlis·, portanto, 3.a declinação):

uidi in omnibus uãnitãtem et adflictiõnem animi et nihil permanere sub


sole (Eclesiastes 2:11).

Esta frase é importante para nós, pois introduz-nos uma forma de


infinitivo {permanere, que corresponde ao português «perm anecer»).
Não conhecemos ainda nihil («nada»), mas a nossa palavra «nii-
lismo» ajuda-nos a captar-lhe o sentido. E o substantivo adflictiõ, adflic-
tiõnis é facilmente reconhecível graças à palavra portuguesa «aflição».
Consideremos então de novo a frase:

uidi in omnibus uãnitãtem et adflictiõnem animi et nihilpermanere sub sole.

E proponhamos a tradução:

«Vi em todas as coisas vaidade e aflição do espírito e nada a perma­


necer debaixo do Sol.»

Então, agora eis um desafio! Vejam se conseguem entender intuiti­


vamente estas cinco frases tiradas do livro de Eclesiastes:

1. nihil sub sõlenouum (1:10).


2. omnia flümina intrant mare (1:7).
3. plantãui uineãs,fêci hortos (2:4-5).
4. tempus belli, tempuspãcis (3:8).
5. uidi adflictiõnem quam dedit Deus filiis hominum (3:10).
LiçAo N.° 6 59

Algumas notinhas: o adjetivo nouus, noua, nouum (dando as formas


de masculino, feminino e neutro) significa «novo»; o substantivo uinea,
uineae significa «vinha»; a forma verbal fie i é o perfeito de faciõ
(«fazer»); em quam, temos novamente o pronome relativo (c£ nova­
mente NGL, p. 226). Aprendamos ainda estas duas palavras tão impor­
tantes da 3.a declinação:

pãx,pãcis («paz»)
homõ, hominis («ser humano», «hom em »).

Como veem, na frase n.° 5 tém uma boa oportunidade para treinar
o dativo (filiis, «aos filhos»: complemento indireto), assim como o geni­
tivo do plural da 3.a declinação. Já agora, dedi é o perfeito do verbo
«dar», que se enuncia dõ, dare, dedi, datum.
A menção que fizemos acima do verbo permanere é uma boa deixa
para falar no facto de que, no verbo latino, temos quatro conjugações:

1. verbos em -a-, como amõ, amãre: l.a conjugação;


2. verbos em -e-, como permaneõ, permanêre: 2.a conjugação;
3. verbos sem vogal temática, como descendo, descendere:3.aconjugação;
4. verbos em -i-, como audiõ, audire («ouvir»): 4.a conjugação.

A boa notícia é que, na verdade, os únicos tempos em que estes ver­


bos são diferentes uns dos outros são o presente, o futuro e o imperfeito.
Nos outros tempos (perfeito, mais-que-perfeito e futuro perfeito) estes
verbos conjugam-se todos da mesma maneira.
Assim sendo, vejamos agora o imperfeito de amõ:

amãbam («amava»)
amãbãs («amavas»)
amãbat («amava»)
amãbãmus («amávamos»)
amãbãtis («amáveis»)
amãbant («amavam»).
60 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Trata-se de um tempo em que o português se manteve incrivelmente


próximo do latim, tirando a troca de « b » e «v».
Vejamos agora um exemplo de verbo da 2.a conjugação, no presente
e no imperfeito (separados por « /» ) . Vamos olhar para o verbo habeõ
(« te r» ), de que ainda temos formas em português no nosso verbo
«haver»:

habeõ / habèbam
habês / habêbàs
habet / habêbat
habêmus / habêbãmus
habêtis / habêbãtis
habent/ habebant

Vamos terminar esta lição com dois versos da Eneida de Vergílio.


O contexto é o seguinte: Eneias está sentado no banquete oferecido em
Cartago pela rainha Dido e começa a contar a história do saque de Troia
e das errâncias que ele e o seu grupo de refugiados sofreram no Mediter­
râneo (vejam bem: barcos com refugiados no Mediterrâneo... Não venha
ninguém dizer que a literatura latina não é atual...).
Eneias conta o momento em que seu pai, Anquises, deu ordem para
os barcos largarem. Se Vergílio fosse um poeta normal, teria escrito que
Anquises deu ordem para «dar as velas aos ventos». Mas como Vergílio
era um poeta genial, escreveu, em vez de «ventos», a palavra «fados»
(em latimffãtum,fãti, substantivo neutro da 2.a declinação). E note-se
que «ventos» (em latim, o dativo uentis) teria cabido perfeitamente na
métrica do verso. A frase, então, é:

et pater Anchises darefãtts uêla iubêbat (Eneida 3.9).

O verbo iubeõ significa «ordenar» (aqui no imperfeito, como


veem). Conseguem adivinhar como será, no nominativo do singular,
a palavra latina para «vela»?
LiçAo N.° 6 61

Terminamos com o verso em que Eneias conta que estava a sacrifi­


car; na praia; um touro ao rei dos deuses (Júpiter). O verbo latino para
«sacrificar» é mactõ, mactãre (donde vem o nosso verbo «m atar»).
Quanto a «rei», é réx, rêgis (palavra da 3.a declinação):

... rêgí mactãbam in litore taurum (Eneida 3.21).

Aqui, rêgí é dativo, pois trata-se do complemento indireto. Fica esta


pergunta: seriam capazes de escrever o dativo de réx no plural?
Lição n.° 7

Esta lição começa com dois pequenos exercícios de reconhecimento


de formas morfológicas. Recapitulemos só os tempos verbais que já
aprendemos:

1. presente do indicativo ( l.a e 2.a conjugações, isto é, verbos como


amõ e habeõ)·,
2. futuro (do tipo amãbõ e habêbõ);
3. imperfeito do indicativo (como amãbam)·,
4. perfeito do indicativo (como amãut).

Do importantíssimo verbo sum («ser»), já vimos o presente e o


perfeito (fui, fuisti, etc.).
Vejam se conseguem identificar os tempos a que pertencem as
seguintes formas verbais:

1. clamãbàs;
2. laudauêrunt;
3. habêbunt;
4. amãbant

Verifiquem se foi esta a vossa conclusão:

1. imperfeito;
2. perfeito;
LiçAo N.° 7 63

3. futuro;
4. imperfeito.

Agora vejam se conseguem identificar os casos em que as seguintes


palavras se encontram:

1. pãstõribus;
2. uirtüft;
3. prãta;
4. amicõrum.

Confiram as vossas respostas:

1. dativo ou ablativo do plural;


2. dativo do singular;
3. nominativo ou acusativo do plural;
4. genitivo do plural.

Vejam agora, lendo na prática uma frase latina lindíssima, se conse­


guem identificar todos os elementos. Trata-se da frase de São Paulo,
quando ele diz ( l Coríntios 13:12):

uidêmus nunc per speculum in enigmate.

Com a informação de que nunc significa «agora», vejam se conse­


guem classificar todos os elementos da frase:

uidêmus («vemos», l.a pessoa do plural do indicativo presente de


uideõ)
per speculum (acusativo; a palavra speculum, speculi significa «espe­
lho»; como veem, é neutra da 2.a declinação)
in enigmate (ablativo; enigma, enigmatis é uma palavra neutra da
3.a declinação).
64 Latim do Z ero λ Vergílio em 50 Lições

Λ tradução da frase de São Paulo é, à sua maneira, enigmática:


«Vemos agora através de um espelho em enigma.»
Treinemos mais uma frase com o verbo uideõ. Mas, antes de chegar­
mos a ela, fiquemos com a informação de que o adjetivo latino mundus
significa «limpo» (a ideia contrária da nossa palavra «im undície» -,
mas atenção! Não confundir o adjetivo mundus, munda, mundum com
o substantivo mundus, mundi, «m undo»). £ fiquemos a conhecer
este substantivo neutro da 3.a declinação: cor, cordis («coração»).
Vejamos, agora, a frase (Mateus 5:8):

beati mundõ corde quoniam ipsi Deum uidebunt.


«Bem-aventurados <os> de coração limpo, porque eles próprios
verão Deus.»

Notem a conjunção causai quoniam («porque»). £ notem também


um aspeto que já referimos anteriormente: o facto de não existir em
latim um pronome pessoal de 3.a pessoa, pelo que ele tem de ser substi­
tuído por pronomes demonstrativos.
No entanto, a l.a e a 2.a pessoas têm pronomes pessoais, tanto no
singular (eu, tu) como no plural (nós, vós). Vejamos como declinam (cf.
NGL,p.215):

NOMINATIVO: egO / HÕS

A CU SA Tivo: mê/nõs
g e n itiv o : mei/nostri
DATIVO: m ihi/ nõbis
a b la tiv o : m i / nobis.

NOMINATIVO: tü/uÕS
ACUSATIVO: te / UÕS
GENITIVO: tui/uestri
DATIVO: tib i/uóbis
ABLATIVO: te / uõbis.
Lição n .° 7 65

Vejamos algumas frases em que possamos praticar estes pronomes.


Comecemos com a frase em que Jesus ensina o Pai-Nosso (Mateus 6:9):

sie ergõ uõs õrãbitis: Pater noster, qui in caelis es.


«Assim vós rezareis: Pai nosso, que nos céus estás.»

Reparem nos seguintes aspetos:

uõs («vós» em nominativo)


õrãbitis (futuro do verbo õrõ, õrãre, «rezar»).

A conjunção coordenativa conclusiva ergõ (ver NGL, p. 277) signi­


fica «portanto» (como na frase de Descartes cogito ergõ sum).
Vejamos ainda duas frases do Pai-Nosso onde podemos reconhecer
formas do pronome pessoal1:

1. pãnem nostrum supersubstantiãlem da nõbis hodiê («dá-nos hoje o


nosso pão supersubstancial»);
2. liberã nõs ã malõ («liberta-nos do mal»).

E uma frase lindíssima onde temos dois pronomes pessoais (e uma


forma de imperativo na 2.apessoa do plural do verbo diligõ, diligere, «esti­
mar», «am ar»):

ego dicõ uõbis: diligite inimicos uestrõs (Mateus 5:44).

Reparem também na forma de pronome possessivo uestrõs, que


intuitivamente compreendemos ter o sentido de «vossos» (tal como,
em cima, identificámos facilmentepãnem nostrum como «pão nosso»).
É a sorte de aprendermos latim como falantes de português.

Para uma abordagem mais completa ao Pai-Nosso em latim, ver pp. 241-245.
66 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Reflitamos agora como para nós, que nascemos com o português, o


imperfeito do verbo «ser» em latim não causa qualquer confusão. Veja­
mos em português e em latim, lado a lado:

era / eram
eras /erãs
era / erat
éramos /eramus
éreis / erãtis
eram / erant

No entanto, apesar da vantagem que temos na aprendizagem do


latim como falantes de português, haverá sempre uma dificuldade colo­
cada pelo latim: a ordem das palavras, sobretudo em poesia. O latim
permite-se uma liberdade na ordem das palavras na frase que não conhe­
cemos nas línguas modernas. Muitas vezes, por isso, ler uma frase em
latim pode assemelhar-se a um exercício de palavras cruzadas.
Vejamos um verso sintomático das Metamorfoses de Ovídio, no
momento inicial do poema em que o poeta nos diz que, antes de haver
mar, terra e céu, o aspeto da natureza era igual no mundo inteiro (1.6):

ünus erat tõtõ nãtúrae uultus in orbe.


«Um era o aspeto da natureza em todo o mundo.»

Reparem na separação entre as duas palavras em ablativo tõtõ e orbe.


Mas é justamente o facto de ambas estarem em ablativo que nos permite
juntá-las e, assim, dar sentido à frase.
Claro que os poetas têm a liberdade de jogar com a ordem das pala­
vras, usando ou não (conforme lhes apeteça) uma disposição verbal mais
ou menos parecida com a fala normal. Ovídio também põe na boca de
Apoio a frase simples:

nõn ego sum pastor (Metamorfoses 1.513).


L ição n .° 7 67

Voltando ao verbo sum, vejamos agora o futuro (onde, infelizmente,


o português não nos ajuda; ver NGL, p. 148):

erõ («serei»)
eris («serás»)
erit («será»)
erimus («serem os»)
entis («sereis»)
erunt («serão»).

£ demos mais uma espreitadela às maravilhosas Metamorfoses


ovidianas.
Apoio, na sua ânsia de assediar Dafne, que dele foge (há 2000 anos
ninguém pensava ainda em «não é não», muito menos em #MeToo),
tenta aquilo a que no Brasil se chama uma «cantadinha»: paleio, dire­
mos nós, para convencer a assediada a ceder.
Claro que, como filho de Júpiter e deus da beleza e da profecia,
Apoio está numa posição privilegiada para fazer pressão com o argu­
mento «Não me queres porquê, se sou belo e divino e tudo sei?».
Olhemos primeiro para este vocabulário:

pateõ,patére («estar patente», «ser evidente»)


neruus, nerui («nervo», mas também «corda» de um instrumento)
carmen, carminis («canto», «poema»; a palavra é neutra).

E lembremos: -que colado a uma palavra significa «e».

Vejamos então (Metamorfoses 1.517-518):

luppiter est genitor; per mê quod eútquefuitque


estque patet; per mê concordant carmina neruis.12

1. Reparem nas formas do verbo sum.


2. Notem que quod é aqui um pronome, que podem traduzir por
«aquilo que».
68 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

3. Será que conseguem dar sentido à frase per mê concordant carmina


nerui$2?
Quase tão enigmática como a de São Paulo!2

2 «Devido a mim os cantos são consonantes com as cordas», isto é, palavras e música formam,
devido à agência de Apoio, um todo harmonioso. Ver p. 76.
Lição n.° 8

Esta lição começa com o nosso habitual exercício de reconheci­


mento de formas morfológicas, usando para tal um passo da Eneida de
Vergflio (1.34-35). Vejamos primeiro um pouco de vocabulário:

é/ex: preposição com ablativo («a partir de», «de»)


Siculus (adjetivo): «siciliano»
tellus, téllüris (feminino): «terra»
aes, aens (neutro): «bronze».

Os versos vergilianos são estes:

uix ê conspectü Siculae téllüris in altum


uêla dabant laeti etspümãs salis aere ruêbant

1. A primeira pergunta é: conseguem identificar o tempo a que per­


tencem as formas verbais dabant e ruébanti
2. Conseguem identificar o caso em que se encontra a palavra spümãsi
3. Conseguem identificar o caso em que se encontra a palavra aerei

Verifiquem agora as vossas respostas:

1. imperfeito;
2. acusativo do plural;
3. ablativo do singular.
70 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

Um dos desafios de que já falámos em relação ao latim é conseguir­


mos ligar as palavras que pertencem juntas. Logo no primeiro verso
citado, temos de ligar Siculae a tellüris (o que, neste caso, nem é tão difí­
cil, uma vez que as palavras estão lado a lado). Ambas estão em genitivo
do singular; e juntas significam «da terra siciliana».
A expressão depende, por seu lado, de ê conspectü. A desinéncia em
-ü parece-nos exótica, porque ainda não sistematizámos a 4.a declinação
(ver NGL, pp. 122-126). Mas, como vimos acima que a preposição
l/ex se constrói com ablativo, é fácil deduzirmos que conspectü está em
ablativo.
Vejamos então como se declina uma palavra da 4.a declinação
(separo singular e plural por meio de « / »):

n o m in a tiv o : conspectus / conspectus


A C U SA T ivo: conspectum / conspectüs
g e n itiv o : conspectüs / conspectuum
d a tiv o : conspectui / conspectibus
a b la tiv o : conspectü / conspectibus.

Como veem, há várias formas terminadas em -üs. Leiam as explica­


ções linguístico-históricas sobre a 4.a declinação a partir da p. 122 da
NGL.
Vejam agora as três desinências diferentes de dativo, que conhece­
mos bem na seguinte fórmula:

Glória Patri etFiliõ et Spiritui Sanctõ.


«Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.»

Como se depreende, a palavra latina spiritus é da 4.a declinação.


Voltemos aos versos de Vergílio:

uix è conspectü Siculae tellüris in altum


uêla dabant laeti et spümäs salis aere ruebant.
Lição n .° 8 71

Como sempre, Vergilio é quase impossível de traduzir de uma forma


que fique bem em português (por isso é que temos de aprender latim,
para o lermos na língua original...); mas uma tradução possível destes
versos seria (ver p. 310):

«Mesmo há pouco <afastados> da vista da terra siciliana, em direção


ao <mar> alto
davam as velas, alegres, e sulcavam com bronze as espumas de sal.»

A linguagem de Vergüio não é só altamente poética: é altamente sinté­


tica. Por isso temos, por vezes, de subentender palavras (que coloco entre
parênteses angulares). «Mesmo há pouco» é o advérbio uix (outra tradução
seria «mal», ou seja, «mal <se tinham aíastado> da vista da terra sidliana...»).
Talvez a expressão mais poética nestes dois versos seja a imagem que
Vergilio escolhe para descrever os refugiados troianos a remar, «sulca­
vam com bronze as espumas de sal».
Temos de imaginar as ondas espumejantes do mar salgado, que a
proa apetrechada de bronze «sulcava» ou «fazia ruir» no ato de atraves­
sar o mar. Ver p. 310, n. 27.
Bom, mas o nosso propósito nesta fase é trabalhar o reconhecimento
de formas (casos, tempos verbais, etc.). Olhemos agora para esta frase
de Júlio César (Dê bellõ Gallicõ 6.13.8):

hts autem omnibus Druidibuspraeest ünus, qui summam inter eõs habet
auctoritatem.

Como veem, temos três palavras em dativo (o dativo é pedido pelo


verbo praesum): his (pronome demonstrativo), omnibus e Druidibus.
E, mais uma vez, temos de adivinhar quais são as palavras que,
embora separadas, pertencem juntas. Reparem em summam... auctòntã-
tem: acusativo do singular.
Ora bem, Júlio César está a falar da «autoridade suprema» a propó­
sito dos Druidas (em latim, Druidês, Druidum - trata-se de um plural da
72 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

3.a declinação). Reparem agora na forma praeest Pensemos nela como


prae-est, ou seja, como composto do verbo sum. Com efeito, existem em
latim vários compostos do verbo sum, que alteram (por meio de um pre­
fixo) o sentido do verbo - tal como em português «incorrer» não signi­
fica o mesmo que «correr». No caso de praesum, significa «presidir»,
«estar à frente de». Portanto, Júlio César está a dizer que entre todos os
Druidas há um que preside, que tem entre eles a autoridade suprema:

his autem omnibus Druidibus praeest unus, qui summam inter eõs habet
auctõritãtem.

Nesta frase encontramos três pronomes importantíssimos:

1. o pronome demonstrativo hic, haec, hoc (masculino, feminino,


neutro): c£ NGL, p. 221;
2. o pronome demonstrativo is, ea, id (NGL, p. 219);
3. o pronome relativo qui, quae, quod (NGL, p. 226).

Estes pronomes são recorrentes em latim e, por isso, merecem a


vossa atenção (vão aprendendo aos poucos; ninguém consegue decorar
tudo de uma vez). Como já tivemos ocasião de referir, is, ea, id é espe­
cialmente relevante dada a inexistência de um pronome pessoal de 3.a
pessoa em latim. Como terão intuído, na frase acima transcrita de César,
eõs corresponde a «eles» em português.
Como fica então a tradução da frase de César?

his autem omnibus Druidibus praeest ünus, qui summam inter eõs habet
auctõritãtem.
«Pois sobre todos estes Druidas um preside, que tem entre eles
a autoridade suprema.»

Continuemos com pronomes, mas passando agora ao Novo Testa­


mento.
LiçAo N.° 8 73

Com a indicação de que foris significa «lá fora», vejamos agora esta
frase do Evangelho de Lucas (8:20), quando vêm dar a Jesus a seguinte
notícia:

mãter tua etfrãtrés tui stantforis uolentés té uidêre.

E qual é a resposta de Jesus? É esta:

mãter mea etfrãtrés mel hi sunt qui uerbum Del audiunt etfaciunt

Notem os pronomes que surgem nestas duas frases:

o pronome pessoal de 2.a pessoa té (acusativo)


os pronomes possessivos (meu, tua, etc.)
o pronome demonstrativo hi (nominativo do plural de hic, «este»)
o pronome relativo qui («que»).

Reparem que, em audiunt (do verbo audiõ, audire, «ouvir») temos


um verbo da 4.a conjugação; e em faciunt (defaciõ,facere, «fazer», «pôr
em prática») temos um verbo da chamada «conjugação mista» (toda
conjugada nos quadros a partir da p. 191 da NGL), que combina elemen­
tos da 4.a e da 3.a conjugações.
No entanto, penso que não é difícil adivinhar o sentido destes
verbos; nem perceber também o sentido do participio presente uolentés,
do verbo irregular uolõ («querer»; NGL, p. 200).
Vejamos de novo as frases:

mãter tua etfrãtrés tui stantforis uolentés té uidêre.


mãter mea etfrãtrés mel hl sunt qui uerbum Dei audiunt etfaciunt.

Para esta lição, relembremos a 4.a declinação e leiamos estas belíssi­


mas palavras a propósito de Isabel e de Maria (Lucas 1:41-42). O evan­
gelista diz de Isabel que:
74 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

repleta est Spiritü Sanctõ Elisabeth; et exclamãuit uõce magnã et dixit:


«benedicta tú inter mulieres et benedictusfructus uentris tui!»

Reparem no uso dos ablativos:

no caso de Spiritu Sanctõ, a justificação para o ablativo é a construção


de repleta (como em auê Maria, GRÄTIÄ plena)
no caso de uõce magnã («com grande voz», «em voz alta»), trata-se
de um ablativo que especifica como ocorreu a exclamação.

Finalmente, reparem emfructus, tão bem comportado... Mas encerra


a rasteira de ser uma palavra da 4.a declinação.
Lição n.° 9

Começamos por retomar aqueles versos de Ovídio que nos mostra­


ram, na mesma frase, o presente, o futuro e o perfeito do verbo «ser»
em latim - e que terminam com uma expressão curiosa (para não dizer
difícil!) de traduzir. Relembremos então o contexto.
Trata-se do episódio de Apoio e Dafne, no Canto 1 das Metamorfoses.
Este poema tem sido visto ultimamente como um compêndio de assédio
sexual: personagens masculinas forçam femininas a situações sexuais que
só convêm ao desejo do homem; a recusa da mulher leva normalmente
à violação, à transformação (ou às duas coisas). No caso de Dafne, ela
consegue fugir de ser violada por Apoio; mas a metodologia extrema a
que teve de recorrer para evitar o estupro foi ficar transformada em
árvore. Antes disso, Apoio tentara persuadir a ninfa de que deveria ceder,
gabando-se primeiro a si mesmo (1.513-514):

nõn ego sum pastor, nõn hic armenta gregèsque


horridus obseruõ!

Notem que, nas palavras armenta gregèsque, temos dois tipos de acu-
sativo do plural: no caso de armenta («manadas»), temos um plural
neutro da 2.a declinação; no caso de gregês (do substantivo grex, gregis,
«rebanho»), temos um plural masculino da 3.a declinação.
Quanto a htc, não se trata neste contexto do pronome demonstrativo
hic, haec, hoc («este», «esta»; NGL, p. 221), mas sim do advérbio que
significa «aqui»: h\c.
76 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

A honidus podemos dar o sentido de «desleixado», «desgre­


nhado», «mal cuidado». £ temos aqui obstruo, obseruãre no sentido
próprio de seruãre, que é «guardar».
Penso que estes dois versos não levantam dificuldades de tradução:

«Eu não sou pastor; não guardo aqui, desgrenhado, manadas e reba­
nhos.»

Depois, Apoio diz à ninfa o seguinte (1.517-518):

luppiter est genitor; per mê quod eritquefuitque


estque patet; per mê concordant carmina neruis.

As informações sobre as palavras acima transcritas estão na Lição


n.° 7. Vejamos agora a tradução:

«Júpiter é <meu> progenitor; devido a mim aquilo que será e foi


e é fica patente; devido a mim os cantos são consonantes [isto é,
harmonizam-se] com as cordas <da lira>.»

Vejamos ainda mais quatro versos desta passagem maravilhosa das


Metamorfoses. Na Antiguidade, o deus Apoio era tido como patrono da
medicina, além de patrono da música e da arte de disparar flechas a par­
tir de arcos (porque é que em português não há uma palavra equivalente
à inglesa archery?). Ovidio explora, de forma muito saborosa, a ironia
de o deus da medicina estar incuravelmente doente de amor; e a ironia de
o deus do arco e da flecha ter sido atingido pela flecha de Cupido. Num
acesso de pena de si próprio, Apoio desabafa (1.521):

inuentum medicina meum est.


«A medicina é invenção minha.»

(Notem que inuentum, -í [«invenção»] é uma palavra neutra da


2.®declinação.)
LiçAo N.° 9 77

... opiferqueper orbem


dicor...

O adjetivo ορι/er significa «auxiliador» (é uma mistura do substan­


tivo feminino da 3.a declinação ops, opts [«recurso», «auxílio»] com
o verboferõ [«trazer»]).
Portanto, as palavras acima significam:

«<Como> auxiliador pelo mundo


sou referido.»

Reparem que dicor é um presente da voz passiva (a ela chegarémos


em breve): «sou dito» (e não «digo», que seria dtcõ).
Continuando:

... et herbãrum subiecta potentia nõbis.

Temos aqui uma oportunidade para rever o pronome pessoal de


l.a pessoa do plural («nós»), que está no dativo, em virtude da constru­
ção de subiecta, forma participial do verbo subiciõ («submeter a», mais
propriamente «atirar para debaixo de»). Reparem que as nossas palavras
portuguesas «subjetividade» e «subjetivo» são formadas a partir deste
verbo.
Portanto, a tradução das palavras transcritas seria:

« £ a potência das ervas <medicinais> está sujeita a nós.»

Em «nós» temos um plural poético, aqui pela necessidade métrica


de mihi não ficar bem no final do verso - mas mihi vem logo a seguir:

ei mihi, quod nüllts amor estsãnãbilis herbis!

Aqui, ei é uma exclamação:


78 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

«Ai de mim, porque o amor é sanável por ervas nenhumas!» (Ou


seja, «o amor não é curável por meio de ervas.»)

necprõsunt domino quaeprõsunt omnibus artes!


«Nem são úteis ao dono as artes que são úteis a todos!»

Repare-se em mais um composto do verbo sum: neste caso, prõsum


(«ser útil»). O verbo constrói-se com dativo: daí as formas domino e
omnibus.
Vejam agora se conseguem ler de seguida estes quatro versos das
Metamorfoses de Ovídio, entendendo tudo o que estão a ler. Leiam várias
vezes e saboreiem o facto de estarem a ler Ovídio no original:

inuentum medicina meum est opiferqueper orbem


dicor et herbarum subiecta potentia nõbis.
ei mihi, quod nullis amor estsãnãbilis herbis,
necprõsunt domino quaeprõsunt omnibus artes!

Alguns aspetos a ter em conta: quod é aqui conjunção causal (NGL,


p. 278), e não o pronome relativo (NGL, p. 226) de que encontramos
no último verso a forma quae (pronome relativo no feminino do plural:
o antecedente do relativo é artes, embora a ordem das palavras seja o
habitual puzzle artístico dos grandes poetas latinos).
Além de quod, outra conjunção causai que importa conhecer é quo­
niam. Leiamos o início das bem-aventuranças no Evangelho de Mateus
(5:3):

beãtipauperês spmtü, quoniam ipsõrum estrègnum caelõrum.

Reparem, já agora, na forma de ablativo da 4.a declinação que vimos


na lição anterior: spiritü (portanto, «pobres pelo espírito», que podería­
mos talvez interpretar como «voluntariamente pobres»: aqueles que,
pelo espírito, optam pela pobreza; a nuance é um pouco diferente em
Lição N.° 9 79

grego, dado que no texto grego deste Evangelho lê-se «mendigos pelo
espírito»; podem olhar para a nota a esta passagem na minha tradução
dos Evangelhos).
Vejamos ainda:

beãti mites, quoniam ipsi possidebunt terram.

O adjetivo mitis (cuja declinação segue o esquema da 3.a declinação)


significa «suave», «brando», «gentil».
Conseguem adivinhar o tempo em que está a forma possidebunt7.
Na próxima lição continuamos com as bem-aventuranças, que nos
darão a introdução à voz passiva.
Lição n.° 10

As línguas que descendem do latim (entre as quais o português) não


mantiveram um aspeto muito próprio da conjugação verbal latina: o
facto de existirem formas sintéticas do verbo para a voz passiva. Em por­
tuguês, dizemos:

«louva» (voz ativa: presente)


«é louvado» (voz passiva: presente)
«louvará» (voz ativa: futuro)
«será louvado» (voz passiva: futuro)
«louvava» (voz ativa: imperfeito)
«era louvado» (voz passiva: imperfeito).

Em latim, nestes tempos (presente, futuro, imperfeito) correspon­


dentes ao sistema do Infectum (ver NGL, p. 138), as formas da voz passiva
são sintéticas, isto é, não recorrem ao verbo auxiliar «ser»:

laudat (voz ativa: presente, «louva»)


laudãtur (voz passiva: presente, «é louvado»)
laudabit (voz ativa: futuro, «louvará»)
laudãbitur (voz passiva: futuro, «será louvado»)
laudãbam (voz ativa: imperfeito, «louvava»)
laudãbâtur (voz passiva: imperfeito, «era louvado»).
Lição n.° 10 81

Vejamos a conjugação do indicativo presente da voz passiva (verbo


laudõ, l.a conjugação):

laudor
laudãris
laudatur
laudãmur
laudamini
laudantur.

(Para uma explicação linguístico-histórica das desinéncias, ver NGL,


p. 158.)

Se olharmos para o indicativo futuro passivo deste verbo da l.a con­


jugação, verificamos que a característica do futuro (bõ/bi), tal como a
vimos na voz ativa (NGL, p. 164), está também presente na voz passiva.
Vejamos lado a lado o futuro de laudõ, nas formas ativa e passiva:

laudãbõ / laudãbor
laudabis / laudaberis
laudabit / laudabitur
laudabimus / laudabimur
laudabitis / laudãbimini
laudabunt / laudabuntur.

Ver a conjugação assim «a seco» não é a maneira mais intuitiva de


percebermos a voz passiva, até porque o que interessa, na realidade, é
sermos capazes de reconhecer as formas num texto e dar-lhes sentido.
Voltemos, por isso, a ler as bem-aventuranças do capítulo 5 do Evan­
gelho de Mateus e vejamos como nos entendemos com a voz passiva.
Comecemos por esta:

beàti pãcifici, quoniamfilii Dei uocãbuntur.


82 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Vimos na lição anterior que quoniam significa «porque». A frase


deixa-se interpretar intuitivamente (e corretamente) como «Bem-
-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus».
Com a informação de que lugeõ, lugêre significa «chorar», «estar de
luto», leiamos agora mais esta bem-aventurança:

beãti qui lugent, quoniam ipsi cõnsõlãbuntur.

Agora, com a informação de que ésuriõ, ésurire (4.a conjugação) sig­


nifica «ter fome» e de que sitiõ, sitire significa «ter sede», vejamos mais
esta bem-aventurança:

beãti qui esuriunt et sitiunt iüstitiam, quoniam ipsi saturãbuntur.

Facilmente adivinhamos aqui o sentido do verbo saturo, saturãre


(«saciar»). Mais difícil para nós é pormos em português «justiça» como
complemento direto de «ter fome» e de «ter sede»: «Bem-aventurados
os que têm fome e têm sede de justiça, porque eles serão saciados.»
Vamos agora continuar a olhar para verbos no indicativo: concreta-
mente, para o presente e o futuro da 3.a conjugação. Vejamos o exemplo
do verbo descendo, descendere, «descer» (separo o presente e o futuro
por meio de « / »):

descendo / descendam
descendis / descendes
descendit / descendet
descendimus / descendemus
descenditis/ descendetis
descendunt / descendent.

(Para explicações linguístico-históricas de -é- no futuro dos


verbos da 3.a e da 4.a conjugações, ver NGL, pp. 162-164.)
LiçAo N.° 10 83

Armados com esta informação, leiamos agora versos da Eneida de


Vergilio.
Estamos num momento emocionante: os Gregos saíram a meio da
noite do cavalo de pau; Troia está em chamas; Eneias está a correr empânico
para tentar salvar a mulher e o filho quando... vê Helena, causadora da guerra,
iluminada pelos fogos que estão a destruir Troia. E tem uma ideia. Matá-la.
Eneias justifica em voz alta as suas razões (Eneida 2.577-579):

scilicet haec Spartam incolumis patriãsque Mycênãs


aspiciet, partõque ibit regina triumphõ?
coniugiumque domumque patris nãtõsque uidèbit?

Note-se o seguinte:

Mycênãs em latim (e em grego) é um plural (como «Atenas», «Sira-


cusas» e outros nomes de cidades). Aqui está no acusativo, mas o nomi­
nativo seria Mycênae
incolumis («incólume») é um adjetivo como omnis, que segue a
3.a declinação
partõque... triumphõ é uma expressão bem arrojada. Pois partus é o
participio perfeito de pariõ («parir»). Os estudiosos discutem ainda
hoje o que Vergilio quis dizer com esta expressão, mas talvez a ideia se
relacione com o próprio cavalo de pau, em cujo «útero» (como Vergilio
diz mais de uma vez no Canto 2 da Eneida) se esconderam os Gregos que
causaram a derrota dos Troianos
em ibit temos o futuro do verbo latino eõ, ire (um verbo irregular
donde vem o nosso próprio verbo «ir»; vejam a apresentação linguístico-
-histórica deste verbo na NGL, p. 198)
o plural nãtõs também é curioso, na medida em que Helena não tinha
«filhos», mas sim uma filha única, Hermione. Mas talvez a intenção de
Vergilio fosse mostrar-nos que, porventura, Eneias não conhecia Helena
assim tão bem - a ponto de pensar que ela tinha deixado para trás, em
Esparta, «filhos» (e não uma filha única).
84 Latim do Z ero a Vbrgílio em 50 Lições

Vejam, agora, se conseguem traduzir os versos de Vergilio:

scilicet haec Spartam incolumis patriãsque Mycênãs


aspiciet, partöque ibit regina triumphõ ?
coniugiumque domumque patris nãtõsque uidêbit?

£ confiram se a vossa interpretação condiz com a minha proposta:

«Então esta, incólume, £sparta e as pátrias Micenas


verá - e irá, rainha, no triunfo parido?
Verá cônjuge e a casa do pai e os filhos?»

Nas próximas lições, armados do conhecimento do futuro ativo e


passivo, vamos conseguir ler um poema inteiro de Catulo.
Lição n.° 11

Pensemos no início do Pai-Nosso em português. «Pai nosso... SAN­


TIFICADO SEJA o vosso nome, VENHA a nós o vosso reino, SEJA
FEITA a vossa vontade...»
As formas verbais em maiúsculas são de conjuntivo presente. Em
SANTIFICADO SEJA e em SEJA FEITA, temos a voz passiva; em
VENHA temos a voz ativa.
Em termos daquilo que marca, em português, o conjuntivo presente,
temos duas situações. Ora vejamos:

ame / escreva
ames / escrevas
ame / escreva
amemos / escrevamos
ameis / escrevais
amem / escrevam.

O facto de, nos verbos portugueses como «amar», a vogal no conjun­


tivo ser «e» e o facto de, nos outros verbos, a vogal ser «a» leva muitas
pessoas a enganarem-se nas formas. Todos já ouvimos coisas do tipo «É
preciso que nós escrevemos», no lugar de «É preciso que nós escrevamos».
Esta situação de os verbos em «-a-» terem «-e-» no conjuntivo e
de os outros terem «-a-» é herdada do latim, onde acontece precisa­
mente o mesmo. Vejamos o conjuntivo presente ativo dos verbos amõ,
amãre ( l.a conjugação) e scrtbõ, scribere («escrever», 3.a conjugação):
86 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

amem/scribam
amês/scribãs
amet/ scribat
amemus / scribãmus
amêtis / scribãtis
ament / scribant

Vejamos agora na voz passiva:

amer/scribar
ameris / scribãris
ametur/ scribatur
amèmur / scribãmur
amemini / scribamini
amentur / scribantur.

O conjuntívo tem vários usos em latim (vejam o panorama apresen­


tado a partir da p. 265 da NGL). Um dos usos típicos do conjuntívo é
justamente o que encontramos no Pai-Nosso: o conjuntívo «jussitivo»,
que é, no fundo, uma alternativa ao imperativo (de resto, as formas cor­
respondentes no Pai-Nosso em grego estão no imperativo). O conjun­
tívo exprime aqui aquilo a que, gramaticalmente, se chama uma «ordem
direta» (para a distinguir de uma ordem indireta, que se constrói de
outra maneira em latim, como veremos mais para a frente). Claro que
dar ordens a Deus poderá não ser boa ideia; mas é essa a explicação gra­
matical do conjuntívo no Pai-Nosso em latim:

Pater noster, qui in caelis es! SÃNCTIFICÈTVR nõmen tuum, VENIAT


regnum tuum, FIAT uoluntãs tua, sicut in caelõ et in terrã.

A razão pela qual temos «-è-» em sãnctificêtur e «-a-» em ueniat e


fiat é que só sãnctificêtur pertence a um verbo em -a: sanctificare.
Já agora:
Lição n.° 11 87

o infinitivo presente dos verbos em -a- é em -ãre (cf. amãre)


o infinitivo presente dos verbos em -e- é em -ére (cf. habêre: acentua­
ção paroxítona)
o infinitivo presente dos verbos em consoante é em -ére (cf scribere:
acentuação proparoxítona)
o infinitivo presente dos verbos em -i- é em -ire (cf audire).

Ora bem: o latim é uma língua tão bela na lógica da sua gramática
que até tem uma forma própria, sintética, para o infinitivo perfeito.
Nós, em português, temos formas compostas para o infinitivo
perfeito:

infinitivo perfeito de «amar»: «ter amado» (por exemplo: «Como


vegano, arrependo-me de TER AMADO presunto»)
infinitivo perfeito de «ver»: «ter visto» (por exemplo: «Eu gosta­
ria tanto de TER VISTO Maria Callas em palco»).

Em latim, como já ficou dito, existe uma forma própria para o infi­
nitivo perfeito, que é formado, logicamente, a partir do perfeito.

Perfeito do indicativo de amõ: amãut («eu amei»).


Infinitivo perfeito de amõ: amãuisse («ter amado»).

Esta terminação em -isse é o elemento que nos alerta para o facto de


estarmos perante um infinitivo perfeito.
Antes de avançarmos, aprendamos este vocabulário:

dêsinõ, désinere («desistir»)


ineptiõ, ineptire («sofrer de inépcia», «desatinar»)
dücõ, dücere («liderar» [como em dux, donde a palavra portuguesa
«duque»], mas também «considerar», «pensar»).
88 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Vamos agora ler, pouco a pouco, nesta e nas próximas lições,


o poema 8 de Catulo, onde veremos na prática vários temas gramaticais
que temos aprendido.
Catulo é um poeta da primeira metade do século i a.C.: é, junta­
mente com Lucrécio, o último grande poeta da Roma republicana. A sua
poesia abrange muitos registos: desde o mais sofisticado ao mais obs­
ceno. Alguns dos seus poemas são dirigidos a uma mulher a quem ele
chama «Lésbia». Outros falam numa «namorada» (em latim, puella),
que poderá ou não ser Lésbia; e outros falam em namorados (um dos
quais nomeado: Juvêncio). Esta voz poética bissexual deixou-nos alguns
dos mais belos poemas de amor alguma vez escritos, onde há lugar para
a exaltação do amor e também para o reconhecimento de que a paixão
por outrem é uma doença.
Vários poemas de Catulo têm por tema o fim do relacionamento.
Um deles é o poema 8, em que muito provavelmente a puella («nam o­
rada») referida será Lésbia.
Leiamos os primeiros dois versos:

miser Catulle, dêsinãs ineptire,


et quod uidês perisse perditum dücãs.

Ponhamos, uma a uma, as palavras debaixo do microscópio:

miser: intuitivamente, como falantes de português, sentimos logo


à flor da pele o sentido deste adjetivo latino (miser, misera, miserum):
«infeliz», «miserável»
Catulle: temos aqui uma excelente oportunidade para falar do último
caso do latim que nos falta referir: o vocativo, que só é diferente do nomi­
nativo nalgumas palavras da 2.a declinação (e só no singular); nas outras
declinações, nominativo e vocativo são iguais. Por exemplo, na oração
do Pai-Nosso, as duas primeiras palavras estão em vocativo, embora a
sua forma, em latim, não seja diferente do nominativo (no Pai-Nosso
grego, a palavra para «Pai» tem uma desinência própria de vocativo que
Lição n.° 11 89

a distingue do nominativo). Ora, a desinéncia de vocativo do singular na


2 a declinação, em palavras terminadas em -us, é -e. Mas nem todas! Logo
deus forma o vocativo igual ao nominativo. Por exemplo, no Glória dito
na missa, diz-se em latim, na parte correspondente a «Senhor Deus, rei
dos céus»: Domine Deus, rêx caelestis. Estas quatro palavras latinas estão
todas em vocativo, mas só vemos de facto a marca de uma desinéncia
diferente em Domine
dêsinãs: cá temos um exemplo de conjuntivo jussitivo: «que desistas»
ineptire: infinitivo presente de ineptiõ, que pessoalmente gosto de
traduzir por «desatinar»
quod: é aqui pronome relativo
uidês: 2.a pessoa do singular de uideõ, uidêre («ver»)
perisse: temos aqui um exemplo de um infinitivo perfeito. O verbo
pereõ, perire significa «perecer». É um verbo formado a partir do irregu­
lar ire («ir»), cujas bizantinices podem descobrir a partir da p. 197 da
NGL. O sentido aqui é «ter perecido»
perditum: perditus, perdita, perditum significa «perdido» - mas cui­
dado com o acento: em português a acentuação é paroxítona, mas em
latim é proparoxítona (perditum)
dücãs: conjuntivo (novamente jussitivo) de dücõ, no sentido de
«considerar».

Leiamos novamente os versos de Catulo:

miser Catulle, dêsinãs ineptire,


et quod uidês perisse perditum dücãs.

E proponhamos a seguinte tradução:

«Infeliz Catulo, para de desatinar [= que desistas de desatinar]


e aquilo que vês ter perecido considera perdido [= e que consideres
perdido aquilo que vês ter perecido].»
90 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

O que Catulo vê ter perecido é o relacionamento com a puella.


Na próxima lição, vamos continuar a ler este maravilhoso poema, que
é também um maravilhoso instrumento didático.
Lição n.° 12

Uma das características mais distintivas (e bonitas) da língua latina


é o facto de ter vogais longas e breves. Aquilo que nos parece ser um
conjunto de cinco vogais - a, e, i, o, u - constitui, na verdade, um con­
junto de dez vogais:

ã /â
ê/ è
ϊ/ϊ
õ/ ö
ü / ü.

A convenção estabelecida pelo Oxford Latin Dictionary é que, na


grafia do latim para fins pedagógicos, só se marcam as vogais longas, de
modo a não sobrecarregar visualmente a grafia com sinais inúteis. Parte-
-se simplesmente do princípio de que são breves as vogais que não estão
marcadas como longas.

Relembro os dois versos de Catulo que lemos na lição anterior:

miser Catulle, dêsinãs ineptire,


et quod uidés perisse perditum dücãs.

Como veem, nem todas as vogais estão marcadas: só estão marcadas


as vogais que são longas pela sua etimologia.
92 Latim do Z ero λ Vergílio em 50 Lições

Um aspeto a ter em conta é que se uma vogal breve for seguida de


duas consoantes, a sílaba de que essa vogal breve faz parte passa a contar
como longa para efeitos de acentuação e de ritmo métrico, embora a
natureza da vogal se mantenha breve.
Por exemplo, o primeiro «-e-» de ineptire é breve; mas a sílaba em
que se encontra é longa, porque o <<-e->> breve está seguido de duas con­
soantes («-pf-»).
Não é este o momento, ainda, para aprofundarmos esta temática
(sobretudo no que toca ao ritmo poético); mas eu gostaria de vos sensi­
bilizar para o facto de, mesmo em português, haver vogais cuja duração
é ligeiramente maior do que a de outras. Isto porque, em português,
podemos notar que tantas vezes as vogais átonas são mais breves na dura­
ção do que as tônicas.
Pensem no imperfeito do verbo «dizer»: «dizia».
Para os ouvidos de muitos de nós, o primeiro «-i-» soa breve; o
segundo «-i-» soa longo, porque, sendo tônico, nos demoramos mais
nele.
Pensemos no fenômeno de duas consoantes, em latim, alongarem
uma sílaba e pronunciemos a palavra portuguesa «Alcântara».
Não vos parece claro que os primeiros dois «-a-», mesmo com um
timbre diferente, são mais longos do que o terceiro e quarto «-a-»?
E o mais breve dos quatro «-a-» em «Alcântara» é o penúltimo:
por isso tantos lisboetas pronunciam «Alcântara» como «Alcantra» (tal
como dizem «Lsboa», «fliz», «mnistério», «dnheiro»).
Em português, pronunciar uma vogal longa como breve (ou vice-
-versa) não muda o sentido à palavra. Em inglês, como todos sabemos,
não é assim: ship pronunciado com «-i-» longo (sheep) significa
«ovelha». Em alemão, a palavra para «primo» (Vetter), cujo «-e-»
é breve, passa a significar «pais» se for pronunciada com «-e-» longo:
Väter.
A palavra latina que significa «povo» épopulus (portanto, com «-o-»
breve). Se a pronunciarmos com «-o-» longo (põpulus), não estamos a
dizer «povo», mas sim «choupo».
LIÇÃO N.° 12 93

O adjetivo malus («m au») passa a ser o substantivo que significa


«mastro» se o pronunciarmos com «-a·» longo (mãlus). Outro adjetivo
latino que se presta a mudança de sentido conforme a quantidade da
vogal: leuis («leve»); lèuis («liso»).
Tudo isto para dizer que a quantidade das vogais não é indiferente
em latim. Claro que, em poesia, vemos casos em que os poetas «aldra­
bam» as quantidades por conveniência métrica. No poema de Catulo
que estamos a ler (o n.° 8), o dativo do pronome pessoal tü (em latim,
tibi) aparece sob a forma correta tíbl Mas no poema n.° 1, aparece duas
vezes sob a forma ttbi (sobre a questão das quantidades de tibi e mihi, ver
NGLf p. 216). No entanto, este tipo de «batota» ocorre em poucas pala­
vras, normalmente em palavras dissilábicas cujo sentido não se presta a
ambigüidade. Não conheço nenhum caso em latim onde põpulus
(«choupo») significa «povo» (populus).
Notemos agora o seguinte. Para quem escrevia em versos de métrica
exigente como eram os latinos no século i a.C., havia alternativas legíti­
mas na própria língua latina que podiam revelar-se úteis.
Um exemplo claro é a terminação da 3.a pessoa do plural do indica­
tivo perfeito ativo. A forma mais freqüente é amãuêrunt («amaram»).
Mas ocorre também - com bastante frequência em poesia - uma forma
em que a última sílaba é breve: amãuêre.
Esta possibilidade foi muito útil a Catulo no v. 3 do poema 8, em que
ele quis dizer «fulgiram outrora para ti sóis brilhantes». Em latim:

fulsére quondam candidi tibi sõlês,


cum uentitãbãs quõ puella ducébat,
amãta nõbis quantum amabitur nülla.

Se Catulo tivesse escrito fulserunt («fulgiram»), teria ficado uma


sílaba longa numa posição do verso que tem de ser breve. Com fulsère,
Catulo resolveu o problema (sobre a desinência de perfeito -êrunt/-êre,
verNGL, p. 176).
94 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Vejamos agora debaixo do microscópio as palavras acima citadas:

fiilsêre: 3.a pessoa do plural do indicativo perfeito ativo de fulgeõ,


fiilgêre, fulsi («fulgir», «brilhar»)
quondam: advérbio, com o sentido de «outrora»
candidi: nominativo plural do adjetivo candidus («branco», «bri­
lhante»); curiosamente, a palavra portuguesa «candidato» vem deste
adjetivo (porque se esperava de candidatos a cargos políticos que se ves­
tissem de branco)
tibi: dativo de tü
sõlés: nominativo do plural de sol, sõlis («sol»)
cum: aqui é a conjunção «quando» (mas atenção à preposição cum,
com ablativo, donde vem a nossa «com »)
umtitãbàs: o verbo uentitãre implica a ideia reiterada de ir e vir; trata-
-se do indicativo imperfeito ativo
quõ: aqui advérbio de lugar (como em quõ uãdis?), com o sentido de
«para onde?»; note-se, porém, que quõ pode também ser o ablativo sin­
gular do pronome relativo
dücêbat: indicativo imperfeito ativo de dücõ, aqui no sentido de
«conduzir»
amãta: como falantes de português, compreendemos intuitivamente
que esta forma (participio perfeito de amõ) significa «amada»
nõbis: dativo de agente («por nós», isto é, «por mim»); ver NGL,
p.298
quantum: «como» (no sentido de «tanto quanto»)
amabitur: temos aqui o nosso já conhecido indicativo futuro passivo
(«será amada»)
nülla: «nenhuma».

Leiamos agora os cinco versos de seguida:

miser Catulle, désinãs ineptire,


et quod uidês perisse perditum dücãs.
LiçAo N.° 12 95

fulsêre quondam candidi tibi sõlês,


cum uentitãbãs quõ puella ducêbat,
amãta nõbls quantum amabitur nülla.

E proponhamos esta tradução:

«Pobre Catulo, para de desatinar;


e aquilo que vês ter perecido considera perdido.
Fulgiram para ti outrora sóis brilhantes,
quando ias e vinhas para onde a <tua> namorada conduzia,
amada por mim como nenhuma será amada.»
Lição n.° 13

As chamadas «irregularidades gramaticais» constituem um elemento


por vezes aborrecido para quem se inicia no estudo de uma lingua nova
- porque representam coisas que têm de ser estudadas caso a caso, muitas
vezes sem lógica. Mas para quem já tem alguma dose de experiência, as
irregularidades são muito mais interessantes do que as regularidades.
Para mim, um verbo regular em latim ou em grego é algo que nem
me aquece nem me arrefece. Um verbo irregular, pelo contrário, é algo
de continuamente sedutor e fascinante! Nunca me canso dos verbos
irregulares gregos e latinos, e é sempre com gosto que repito, ano após
ano, o seu respetivo ensino.
Em grego, tenho os meus verbos irregulares preferidos, cujo elenco
não vale a pena enumerar aqui, à exceção de um que também existe em
latim: o verbo φέρω (em latim,/ero, «levar», «carregar»). Em latim,
os verbos irregulares que acho mais fascinantes são os que significam
«querer» (uolõ) e «não querer» (nõlõ).
Uma coisa que é preciso dizer já é a boa notícia a respeito dos verbos
irregulares latinos: eles só são irregulares no presente e, por vezes, no
futuro e no imperfeito. Não existem verbos que sejam irregulares no per­
feito, no mais-que-perfeito e no futuro perfeito: nestes três tempos, todos
os verbos latinos são regulares.
Nos casos de uolõ («querer») e nõlõ («não querer»), o imperfeito
é regular e o futuro (embora raro) é regular também. A irregularidade
vê-se, no fundo, no presente. Vejamos o indicativo presente de uolõ:
LiçAo N.° 13 97

uolõ («quero»)
uis («queres»)
uult( «quer»)
uolumus («querem os»)
uultis («quereis»)
uolunt («querem »).

(Para uma explicação mais pormenorizada deste verbo, leiam a see-


ção que começa na p. 200 da NGL.)

Outro verbo irregular fascinante é fiõ, fieri, cuja história poderão


consultar a partir da p. 204 da NGL. Todos conhecemos a frase do início
do Gênesis (1:3): fiat lúx ( «Faça-se luz»). Frase onde podem relembrar
o conjuntivo presente (pois fiat é um conjuntivo com valor jussitivo,
como vimos na Lição n.° 11).

Voltemos agora ao poema de Catulo que estamos a estudar


(poema n.° 8). O poeta começou com um desabafo de autocomisera-
ção e depois referiu o tempo de submissão feliz às vontades da namo­
rada (um dos encantos da poesia heterossexual de Catulo é que
subverte os papéis masculino e feminino: o papel dele, namorado, é
passivo face ao papel ativo dela). Namorada, diz ele, amãta ttõbis quart-
tum amãbitur nülla.
Curiosamente, o sentido mais frequente do verbo fiõ, não obstante
a sua forma ativa, é passivo: funciona, nos tempos do Infectum (presente,
imperfeito e futuro), como forma passiva defaciõ («fazer»; vejam a já
referida p. 204 da NGL). Mas outro sentido do verbo é «acontecer».
Vejamos então os versos que se seguem no poema de Catulo:

ibi illa multa cum iocõsafiêbant,


quae tü uolêbãs nec puella nõlêbat,
fulsere uêrè candidi tibi sõlês.
98 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

«Então quando aquelas muitas coisas divertidas aconteciam,


que tu querias nem a <tua> namorada recusava,
ftdgiram verdadeiramente para ti sóis brilhantes.»

ibi: advérbio de lugar, com o sentido de «ali», «então»


illa: pronome no neutro do plural (ver NGL, p. 223)
cum: no sentido (que já encontrámos) de «quando»
iocõsa: trata-se de um adjetivo substantivado (iocõsus, «brinca­
lhão»), no sentido de «folguedos» (certamente folguedos eróticos)
fiêbant: imperfeito defiõ, «acontecer» (embora pudéssemos tradu­
zir também como «Então quando aquelas muitas coisas divertidas eram
feitas»)
quae: pronome relativo (neutro do plural): ver NGL, p. 226
uolêbãs: imperfeito de uolõ («querer»)
nõlèbat: imperfeito de nõlõ («não querer»)
uéré: advérbio («verdadeiramente»).

Curiosamente, o verbo uolõ não tem imperativo, mas nõlõ tem. E é


justamente a partir do imperativo de nõlõ que se forma (em prosa, sobre­
tudo) o imperativo negativo dos outros verbos latinos. É o que vemos na
célebre frase dita por Jesus a Madalena: nõli ml tangere («Não me
toques» [João 20:17]). As formas são:

nõli (imperativo de 2.a pessoa do singular)


nõlite (imperativo de 2.a pessoa do plural).

Vejamos agora a frase em que Jesus diz «Não julgueis para que não
sejais julgados» (Mateus 7:1):

nõlite iüdicãre ut nõn iüdicémini.

Nesta frase podem (re)ver:


Lição n .° 13 99

o imperativo negativo
o conjuntivo presente passivo (aqui de iüdicõ, iüdicàre, «julgar»)
e um primeiro exemplo de oração subordinada: uma oração final
de ut + conjuntivo.

Vejamos outra frase do mesmo Evangelho (Mateus 7:6):

nõlxte dare sanctum canibus neque mittãtis margaritas uesträs anteporcos.


«Não deis <o que é> santo aos cães nem atireis as vossas pérolas
diante de porcos.»

O verbo mitto, mittere significa «atirar», «lançar». Conseguem


identificar o tempo e o modo em que aqui se encontram? (E toda a gente
sabia que o nome «Margarida» significa «pérola»?)

Leiamos mais quatro versos do poema de Catulo:

nunc iam illa nõn uult: tü quoque, inpotèns, nõlv,


nec quaefugit sectare, nec miser uiue,
sed obstinata mente perfer, obdürã.

«Agora ela já não quer: tu também, impotente, não queiras;


nem persigas aquela que foge, nem vivas infeliz;
mas de mente obstinada aguenta, persevera.»

Consideremos as formas de imperativo que encontramos nos versos


acima transcritos:

nõlt: 2.a pessoa do singular do imperativo de nõló


sectãre: 2.a pessoa do singular do imperativo de sector, sectãrí («per­
seguir»; este verbo é depoente, categoria de que falaremos depois; mas
vejam para já NGL, pp. 210-213)
uiue: 2.a pessoa do singular do imperativo de uiuõ, uiuere, «viver»
(trata-se de um imperativo regular da 3.a conjugação)
100 Latim do Z ero a V e rg ílio em SO Lições

perfer: cá temos uma forma de um composto do verbo ferõ, cujo


sentido é «aguentar» (novamente 2.apessoa do singular do imperativo)
obdürã: 2.a pessoa do singular do imperativo de obdürõ, obdürãre,
também com o sentido de «aguentar» (trata-se de um imperativo regu­
lar da l.a conjugação).

Fiquem agora com tudo o que já lemos deste poema em latim. Leiam
várias vezes e saboreiem o gosto de ler um grande poeta latino no origi­
nal. Na próxima lição terminaremos este poema.

miser Catulle, dêsinãs ineptire,


et quod uidês perisse perditum dücãs.
fulsere quondam candidi tibi sõlês,
cum uentitãbãs quõ puella ducebat,
amãta nõbis quantum amãbitur nulla.
ibi illa multa cum iocõsafiebant,
quae tii uolêbãs nec puella nõlêbat,
fulsêre uêrê candidi tibi sõlês.
nunc iam illa nõn uult: tü quoque, inpotêns, nõli;
nec quaefugit sectare, nec miser uiue,
sed obstinãtã mente perfer, obdürã.
Lição n.° 14

Uma das vantagens trazidas pela marcação das vogais longas em


latim é facilitar uma compreensão mais imediata da frase:

nõn potest arbor bonafrüctús malõsfacere, nec arbor malafrúctús bonds


facere (Mateus 7:18).

No caso do substantivo frúctiis, frúctús, saber a quantidade do pri­


meiro «-M-» é uma bizantinice que só interessa a especialistas de lingüís­
tica histórica; mas da quantidade do segundo «-u-» depende o sentido
da frase. Porque nestes substantivos da 4.a declinação, como já vimos,
a desinênçia -us é recorrente. No nominativo do singular, temos -ús. Mas
no genitivo do singular, no nominativo do plural e no acusativo do plural
temos -ús.
O caso da frase acima citada do Evangelho de Mateus é muito simples,
porque juntamos logo, intuitivamente, frúctús malõs e também frúctús
bonõs: «frutos maus» e «frutos bons».

«Não pode uma árvore boa produzir [à letra, fazer] frutos maus,
nem pode uma árvore má produzir frutos bons.»

Em potest, temos mais um composto do verbo sum. Trata-se do


verbo que significa «poder» (explicado a partir da p. 194 da NGL).
E facilmente intuímos o sentido de arbor, arboris («árvore»).
102 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

Continuemos a seguir o raciocínio de Jesus nesta passagem:

omnis arbor quae nõnfacitfrüctum bonum exciditur et in ignem mittitur


(Mateus 7:19).

Esta frase é uma excelente ajuda didática por duas razões:

1. notem a presença do pronome relativo: quae («que»);


2. notem as formas verbais na voz passiva: exciditur («é cortada»)
e mittitur («é enviada»).

O caso do verbo excidõ é muito expressivo no que toca à questão de


marcarmos a quantidade das vogais. É que existem o verbo excidõ (acen­
tuação paroxítona) e o verbo excidõ (acentuação proparoxítona). O pri­
meiro (excidõ) significa «cortar»; o segundo (excidõ) significa «cair».
O que Jesus está a dizer é:

«Toda a árvore que não produz fruto bom é cortada e é enviada para
o fogo.»

Olhemos agora para o pronome relativo: quae. A forma é feminina,


porque o antecedente (arbor) é feminino. B está em nominativo porque
a íunção desempenhada pelo pronome relativo nesta oração relativa é de
sujeito.
Curiosamente, a mesma frase, que Jesus aqui diz, já João Batista
dissera em Mateus 3:10:

omnis arbor quae nõnfacitfrüctum bonum exciditur et in ignem mittitur.

Bssa passagem em que João Batista fala de Jesus é útil para vermos
mais usos do pronome relativo. João Batista diz o seguinte:

ego uõs baptizõ in aquã inpaenitentiam; qui post mê uentürus estfortior


mi est, cuius nõn sum dignus calciamenta portãre (Mateus 3:11).
LiçAo N.° 14 103

Notem aqui os usos de ablativo e de acusativo:

in aquã (ablativo), in paenitentiam (acusativo)


post mé (acusativo; post + acusativo significa «depois» ), fortior mi
(ablativo; aqui por ser o segundo termo de comparação: ver NGL, p. 311).

Não vamos nesta altura aprofundar questões como o comparativo


(fortior) nem a forma verbal perifrástica uentürus est (mas espreitem, se
quiserem, NGL, p. 143, § 1.2.). Vamos olhar, antes, para cuius, o genitivo
do singular do pronome relativo:

cuius nõn sum dignus calciamenta portãre.


«Do qual não sou digno de levar os sapatos» (há várias palavras
formadas a partir do verbo latino calceõ, «calçar», entre as quais calcea­
mentum, também escrito com «-i-»).

Retenhamos agora o seguinte. O genitivo e o dativo do singular do


pronome relativo têm uma forma que é igual nos três gêneros:

cuius (genitivo - donde vem «cujo» em português)


cui (dativo).

O pronome relativo qui, quae, quod (masculino, feminino, neutro)


tem uma afinidade morfológica claríssima com o pronome interroga­
tivo quis, quis, quid. Às vezes a sua permutabilidade mostra como, para
os próprios falantes de latim, não havia grande diferença entre a cate­
goria de pronome relativo e a de pronome interrogativo. Recomendo
que leiam NGL, pp. 226-229, onde procuro clarificar estas categorias
gramaticais com a ajuda de citações de Sophia de Mello Breyner
Andresen.
De qualquer maneira, retenhamos a ideia do genitivo cuius e do
dativo cui. E, armados com este conhecimento, olhemos para os versos
finais do poema n.° 8 de Catulo, que nesta lição acabamos de ler:
104 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Liçôbs

scelesta, uae ti, quae tibi manet uita?


quis nunc ti adibit? cui uideberis bella?
quem nunc amãbis? cuius esse diceris?
quem bãsiãbis? cui labella mordebis?

Catulo acumula aqui as interrogativas diretas e um dos seus veículos:


neste caso, os pronomes interrogativos. Vejamos a tradução:

«Desgraçada, ai de ti, que vida te fica?


Quem agora te visitará? A quem parecerás [serás vista como] bela?
Quem agora amarás? De quem serás dita <como sendo amante>?
Quem beijarás? A quem morderás os lábios?»

Reparem como estes versos servem também como revisão do futuro.


Notem que adibit é o futuro de adeõ, composto de eõ, ire (NGL, pp. 197-
-199). E reparem nas formas de futuro passivo uidéberis (o verbo uideõ
na voz passiva tem o sentido de «parecer») e diciris.

Nos versos anteriores aos citados, temos um jogo interessante com


o futuro ativo e o futuro passivo. Notem este vocabulário:

requirõ, requirere («requisitar», «solicitar»)


rogõ, rogãre («pedir», «rogar»)
ualé (imperativo de ualeõ, como cumprimento ou despedida:
«adeus!» (no plural, ualète).

Vejamos então:

ualê, puella, iam Catullus obdürat,


nec té requiret nec rogãbit inuitam.
at tü dolibis, cum rogãberis nülla.

Portanto, após despedir-se dapweí/α e dizer que já está empedernido


(obdürat, «persevera»), Catulo promete que:
LiçAo N.° 14 105

«Nem te requisitará nem <te> rogará, contrariada.


Mas tu sofrerás, quando fores rogada como maria-ninguém.»

Não é fácil traduzir expressões como puella, como inuitam, como


nullal Por isso o melhor é ler em latim.
E estão neste momento aptos a ler um poema inteiro, de um dos mais
geniais poetas de sempre, na língua original, ao fim de 14 lições de latim:

Catulo, poema n.° 8

miser Catulle, dêsinãs ineptire,


et quod uidés perisse perditum dücãs.
fulsere quondam candidi tibi soles,
cum uentitãbãs quõ puella ducebat,
s amãta nõbis quantum amabitur nülla.
ibi illa multa cum iocõsafiebant,
quae tü uolêbãs nec puella nõlébat,
fulsere uêrê candidi tibi sõlés.
nunc iam illa nõn uult: tü quoque, inpotèns, noli;
io nec quaefugit sectare, nec miser uiue,
sed obstinãtã mente perfer, obdürã.
ualé, puella. iam Catullus obdürat,
nec té requiret nec rogabit inultam,
at tü dolêbis, cum rogaberis nülla.
is scelesta, uae té, quae tibi manet uita?
quis nunc té adibit? cui uidêberis bella?
quem nunc amãbis? cuius esse dicéris?
quem bãsiãbis? cui labella mordébis?
at tü, Catulle, destinãtus obdüra3.

3Só um comentário final: dcstinàtus não tem aqui um sentido muito diferente de obstinatus (que
não teria ficado bem no verso, por causa da seqüência metricamente incômoda Catulle
obstinatus).
Lição n.° 15

Uma categoria altamente expressiva do verbo latino que importa


conhecer é a dos participios. Leiamos a passagem do Evangelho de Lucas
(10:33-34) em que o bom samaritano chega junto do homem que tinha
sido assaltado e espancado. Notem primeiro as palavras em maiúsculas -
que são partidpios - e depois veremos mais em pormenor os significados:

Samaritãnus autem quidam iter FACIÈNS uênit secus eum; et VIDENS


eum misericordiã mõtus est; et ADPROPIÃNS alligãuit uulnera eius,
INFVNDÉNS oleum et uinum; et IMPÕNÊNS illum in iumentum suum
duxit in stabulum et cüram eius egit

As palavras em maiúsculas são participios presentes. A tradução mais


cômoda de um participio presente latino para português recorre ao nosso
gerúndio:

faciêns («fazendo»)
uidéns («vendo»)
adpropiãns («aproximando-se»)
infundens («derramando»)
impõnêns («pondo», «impondo»).

O participio presente em latim não varia consoante o gênero: amãns,


amantis (que segue o padrão da 3.adeclinação) pode ser masculino, femi­
nino ou neutro.
LiçAo N.° 15 107

O participio perfeito já diferencia o gênero; segue a 1 ®e a 2.a decli-


nações: amãtus, amãta, amãtum. Como percebemos intuitivamente,
o participio perfeito é passivo: «amado, amada». Do mesmo modo,
a nossa palavra portuguesa «amante» sugere-nos que, em latim, amãns,
amantis é ativo.
O participio perfeito latino é especialmente importante porque é
com recurso a ele que se forma o perfeito passivo. Em português dizemos
«eu fui amado». Em latim, diz-se amãtus sum. O perfeito passivo latino
comporta, porém, uma rasteira para falantes de português, porque a
nossa tendência natural seria traduzir amãtus sum como «sou amado».
Mas não. Significa «fui amado». Vejamos a conjugação do indicativo
perfeito passivo de amõ:

amãtus sum («fui amado»)


amãtus es («foste amado»)
amãtus est («foi amado»)
amãtisumus («fomos amados»)
amãtl estis («fostes amados»)
amãti sunt («foram amados»).

O agente da passiva (cf. a frase típica em português «O homem foi


mordido PELO CÃO») é expresso em ablativo, normalmente precedido
de ã ou ab quando se trata de um ser animado e, quando não, em ablativo
simples.
É o que vemos na palavra misericordiã na frase sobre o bom Samari­
tano:

et uidêns eum misericordiã mõtus est


«E vendo-o foi movido pela misericórdia.»

A forma verbal mõtus estéo indicativo perfeito passivo do verbo


moueõ, mouêre, mõui, mõtum - donde vêm palavras portuguesas como
«mover», «moto», «motor», etc. A última forma listada na enunciação
108 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

de um verbo latino é o chamado «supino» (do qual falaremos depois):


transformando o supino num adjetivo triforme com masculino, feminino
e neutro, temos o participio perfeito.
Vejamos estes exemplos:

moueõ, mouère, mõui, mõtum: participio perfeito mõtus, mõta, mõtum


scribõ, scribere, scripsi, scriptum: participio perfeito scriptus, scripta,
scriptum.

Leiamos novamente a passagem do bom Samaritano:

Samaritãnus autem quidam iterfaciens uènit secus eum; et uidêns eum


misericordià mõtus est; et adpropiãns alligãuit uulnera eius, infundens oleum
et uinum; et imponens illum in iumentum suum duxit in stabulum et curam
eius egit.

Nesta passagem temos três formas de indicativo perfeito ativo:

alligãuit (do verbo alligõ, alligãre, «ligar»)


dúxit (do verbo dücõ, dücere, düxi, ductum, «liderar», «conduzir»,
donde vêm palavras portuguesas como «aqueduto», «duque», entre
outras)
êgit (do verbo agõ, agere, êgi, ãctum, «conduzir», «realizar», donde
vem o nosso verbo «agir» e palavras como «ação», «ato», «ator»).

Olhemos para estas três palavras importantes:

autem: «ora» (retomando uma ideia ou prosseguindo uma narra­


tiva)
quidam: «um certo» (portanto: «Ora um certo samaritano...»)
secus: preposição com acusativo, com o sentido de «para junto de».
LiçAo N.° 15 109

R eparem , ainda, nos substantivos neutros:

iter, itineris: « c a m in h o » (d o n d e vem a nossa palavra « itin erário » )


uulnus, uulneris: « fe rid a » (cf., em português, «vulnerável»)
oleum, olet: « a z e ite » (cf. « ó le o » )
uinum, uini: « v in h o »
iumentum, iumenti: « ju m e n to »
stabulum, stabuli: « e stá b u lo » .

C o m o veem , todas estas palavras existem em português. D á vontade


de rir (o u de chorar) quando nos é dito que o latim não serve de nada
para o e studo do português... M as adiante. Verifiquem se são capazes de
dizer a form a de nom inativo do plural destes substantivos neutros.
£ releiam agora a passagem do bom sam aritano, tentando com-
p reen d er cada palavra:

Samaritanus autem quidam iterfaciêns uinit secus eum; et uidéns eum


misericordiã mötus est; et adpropiãns alligãuit uulnera eius, infundens oleum
et uinum} et imponens illum in iumentum suum duxit in stabulum et curam
eius egit.

Para o quadro do p ronom e dem onstrativo a que pertencem as for­


m as eum e eius, cf. NGL, p. 219.

O ra, o pro n o m e quidam tem urna forma feminina: quaedam. T en te­


m os en ten d e r esta passagem do m esm o Evangelho de Lucas (10:38-39):

mulier quaedam, Martha nõmine, excepit illum in domum suam; et huic


erat soror, nomine Maria, quae etiam sedens secus pedes Domini audiebat
uerbum illius.

E sta frase ajuda a rever:


110 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

,
1 . formas de perfeito (excipit do verbo excipiõ, excipere, excepi,

exceptum, que pode significar «subtrair a» - como sugere a nossa palavra


«exceção» mas também, como neste caso, «acolher»);
2. participio presente: sedens (de sedeõ, sedêre, sêdi, sessum, «sentar-
-se»);
3. a preposição secus, que ocorreu na passagem do bom samaritano;
4. o indicativo imperfeito (audièbat, do verbo audiõ, audire,
«ouvir»).

Vejamainda se se sentem confortáveis com as formas destes pronomes:

illum (NGL, p. 223)


huic (NGL, p. 221)
quae (NGL, p. 226)
illius (NGL, p. 223).

Finalmente, temos nesta passagem das irmãs Marta e Maria uma


construção latina muito típica: o verbo sum construído com dativo; huic
erat soror significa, à letra, «para esta existia uma irmã», mas a tradução
mais elegante é «esta tinha uma irmã», transferindo a forma em dativo
para a função de sujeito da frase.
Recomendo, ainda, que leiam a explicação sobre os particípios nas
pp. 142-143 da NGL.
Como veem, nesta lição dei-vos menos traduções das passagens em
latim; mas estou certo de que as conseguiram entender.
Lição n.° 16

Leiamos o início do livro de Gênesis em latim:

In principio creãuit Deus caelum et terram. terra autem erat inãnis et


uacua et tenebrae superfaciem abyssi, et spiritus Deiferebãtur super aquäs.

Recordemos que o verboferõ significa «levar», «carregar», «trans­


portar»; aqui temos o indicativo imperfeito passivo: «era levado».
Quanto ao adjetivo inãnis, significa «vazio», «oco». Note-se, ainda, que
a seguir a abyssi é preciso subentender erant.
A abertura do livro de Gênesis proporciona-nos a oportunidade de
falar da declinação que ainda nos falta referir: a 5.a declinação.
Temos na frase acima citada um exemplo dessa declinação: o subs­
tantivo femininofades, faciêi (donde vem «face», em português). Veja­
mos como se declina faciês (separo singular e plural por meio de « / »;
encontram um quadro com esta declinação na NGL, p. 127):

nominativo:/aciês/faciês
acus ativo:f aciem /faciês
genitivo:faciêi/ faciêrum
dativo:faciêi/faciêbus
ablativo ifaciê /faciêbus.

Antes de prosseguirmos, não se esqueçam de que -que colado a uma


palavra significa o mesmo que et («e»).
112 Latim do Zero a V ergílio em SO Lições

dixitque Deus: «fiat lüx». et facta est lüx. et uldit Deux lucem, quod
esset bona, et diuisit lücem ac tenebräs. appelläuitque lücem «diem» et tene-
bräs «noctem».

Ora bem: aqui temos mais uma palavra da S.a declinação: a palavra
diès, diei, donde vem a nossa palavra portuguesa «dia».
£ a frase é útil para introduzirmos mais um tempo do conjuntivo:
o imperfeito, que aqui vemos na forma verbal esset. Vejamos o presente
e o imperfeito do verbo sum:

sim /essem
sis / esses
s it/ esset
simus / essemus
sitis / essetis
sint/ essent.

Na frase quod esset bona («que era boa») temos uma situação fasci­
nante. Deus viu que a luz era boa; mas tanto em hebraico como em grego
não temos forma do verbo «ser», porque em ambas as frases (a hebraica
e a grega) o verbo está subentendido. O que é fascinante no texto latino é:

1. termos a forma do verbo «ser» explicita;


2. estar no conjuntivo.

Em latim, uma utilização assim do conjuntivo numa oração de


quod (aqui «que» em sentido integrante/completivo) indica o des-
comprometimento ou distanciamento de quem escreve em relação
àquilo que está a escrever (ver NGL, pp. 270-271). Nesta frase, perce­
bemos que, para o tradutor latino da Bíblia, o «autor» da Bíblia não é
Deus: ele percebeu que a voz que estamos a ouvir, que nos conta a
criação do mundo, é a voz de alguém que narra as ações de Deus; mas
não é Deus. £ quando este narrador nos transmite pela primeira vez
LiçAo N.° 16 113

um sentimento/pensamento de Deus, usa o conjuntivo para sublinhar


que está a reportar, em segunda mão, o que Deus terá sentido. E o que
é mesmo fascinante é que esta nuance esteja ausente do texto hebraico
e do texto grego. Só existe na Bíblia em latim.
Também é fascinante o facto de as primeiras palavras atribuídas a
Deus terem o verbo no conjuntivo presente: o chamado «conjuntivo
jussitivo», de que já falámos. Depois de fiat lux, reparem na seguinte
seqüência (os conjuntivos presentes estão em maiúsculas):

dixit quoque Deus: «FIATfirmamentum in meiiõ aquãrum et DIVI­


DAT aquàs ab aquis».

Vejamos agora os conjuntivos que encontramos no versículo em que


Deus cria os astros no céu:

dixit autem Deus: «FIANT lüminãria in firmamento caeli, ut DIVI­


DANT diem ac noctem et SINT in signa et tempora et diès et annõs, ut
LVCEANT infirmamento caeli et INLVMINANT terram».

Nesta frase acima transcrita, só o primeiro conjuntivo é jussitivo;


verão porquê se atentarem na tradução:

«Disse então Deus: “FAÇAM-SE [haja] luminárias no firmamento


do céu, para que DIVIDAM dia e noite e EXISTAM para <determina-
rem> sinais e estações e dias e anos, para que BRILHEM no firmamento
do céu e ILUMINEM a terra.”»

Como notaram na tradução portuguesa, os outros conjuntivos têm


valor final: isto é, constituem o predicado de uma oração subordinada
final introduzida pela conjunção ut («para que»).
(Para começarem a entrar nesta temática da sintaxe latina, eu acon­
selharia que lessem o capítulo «Introdução ao estudo da sintaxe latina»,
que começa na p. 253 da NGL.)
114 Latim do Zero λ V ergílio em 50 Lições

Continuemos a ler mais passagens do livro de Gênesis - mas antes


vejamos os seguintes imperativos, ativos e passivos (separados por « / » ):

amã («ama!») / amãre («sê amado!»)


amâte («amai!») / amãmini («sede amados!»)

rege («rege!») / regere («sê regido!»)


regite («regei!») / regimini («sede regidos!»).

£ lembremos também a existência de verbos depoentes em latim:


são verbos que têm forma passiva, mas sentido ativo (cf. NGL, pp. 210-
-213). Um deles é o verbo dominor, dominãri («dominar»).

et creãuit Deus hominem ad imaginem suam: ad imaginem Dei creãuit


illum, masculum etfêminam creãuit eõs. benedixitque illis Deus et ait: «cres­
cite et multiplicãmini et replête terram et subicite eam; et dominamini pisci­
bus maris et uolãtilibus caeli et üniuersis animantibus quae mouentur super
terram».

Na expressão benedixitque illis Deus et ait («Deus abençoou-os e


disse»), a forma illis em dativo reflete a construção clássica do verbo
benedico. Agora, no caso de dominämini, a construção clássica seria com
in + acusativo ou ablativo. Aqui temos uma construção mais tardia,
com dativo: «Dominai os peixes do mar e as aves do céu e todos os seres
que se movem sobre a terra.»

(Para entenderem a conjugação do verbo a que pertence a forma ait,


leiam a explicação a partir da p. 206 da NGL.)

Finalmente, comentemos a frase mais célebre e controversa: créscite


et multiplicãmini et replête terram et subicite earn.
O verbo subiciõ (na grafia usual até ao século xx, subjiciõ), significa
«submeter», «subjugar», «subordinar». Será que Deus o teria empregado
LiçAo N.° 16 115

se soubesse o que o ser humano haveria um dia de fazer com este perigosís-
simo cheque em branco?
Mas curiosa é também a frase «crescei e multiplicai-vos»: a frase
que põe na boca do Deus do Antigo Testamento a ordem para nos repro­
duzirmos, para nos dedicarmos à procriação de filhos. Um dos aspetos
fascinantes do pensamento e das convicções dos primeiros cristãos era
justamente a ideia contrária: não procriar. Se repararem bem, não há
frases colocadas pelos evangelistas na boca de Jesus que nos digam para
procriarmos. É certo que Jesus fala na indissolubilidade do casamento,
mas não aproveita o ensejo para incentivar a procriação de filhos. Nas
cartas autênticas de São Paulo, também não há incentivo à procriação.
Temos, antes, o incentivo à virgindade.
É certo que São Paulo afirma que não recebeu instrução de Deus
sobre a virgindade (l Coríntios 7:25):

dê uirginibus autem praeceptum á Deõ nõn habeõ; consilium autem dõ...


«Acerca de virgens, porém, não tenho preceito da parte de Deus; no
entanto, dou um conselho...»

Para finalizarmos a presente lição, fiquemos com esta frase de São


Paulo: o conselho que ele dá aos homens solteiros, que vos permitirá
rever o imperativo negativo, com nõli + infinitivo (l Coríntios 7:27):

nõli quaerere uxõrem.


«Não procures esposa.»
Lição n.° 17

A lição anterior terminou com o curiosissimo conselho de São Paulo


aos homens solteiros:

nõli quaerere uxõrem.


«Não procures esposa.»

Ora, o mesmo verbo quaerõ, quaerere (3.a conjugação) está presente


na seguinte passagem de Santo Agostinho (Confissões l.l), que nos dá
uma boa oportunidade para revermos os particípios presentes e o uso
jussitivo do conjuntivo (além de que poderão, ainda, rever o futuro).
Vejamos primeiro o trecho com os particípios presentes em maiúsculas:

laudãbunt Dominum qui requirunt eum: QVAERENTÉS enim inue-


niunteum et INVENIENTES laudãbunt eum. quaeram te, Domine, INVO­
CANS tê; et inuocem tê CREDENS in te.

Já sabemos que laudõ significa «louvar». Quanto a requiro, requirere,


tem um sentido muito próximo de quaerõ: «procurar», «buscar». Por
sua vez, inueniõ, inuenire significa «descobrir», «encontrar» (cf., em
português, «invenção»).
Vejamos agora o mesmo trecho com os conjuntivos em maiúsculas:

laudãbunt Dominum qui requirunt eum: quaerentes enim inueniunt


eum; et inuenientês laudãbunt eum. QVAERAM tê, Domine, inuocãns tê;
et INVOCEM tê crédêns in tê.
LiçAo N.° 17 117

Verifiquem agora se conseguiram entender bem o sentido da frase


de Santo Agostinho:

«Louvarão o Senhor aqueles que o buscam; pois procurando-o,


encontram-no; e encontrando louvá-lo-ão. Que eu te procure, Senhor,
invocando-te; e que eu te invoque, crendo em ti.»

Continuemos, agora, com a passagem de Santo Agostinho, com


atenção à forma que encontraremos de pronome relativo:

inuocat tê, Domine, fidês mea, quam dedisti mihi, quam inspirasti mihi
per humãnitãtem filii tui.

Como mencionámos numa lição anterior (cf. p. 102), o caso do pro­


nome relativo em latim está dependente da função sintática que este
desempenha na oração relativa. Na passagem citada mais acima, qui
(nominativo plural) tem a função de sujeito; aqui, quam (acusativo sin­
gular) tem a função de complemento direto. Notem, também, que o
pronome relativo concorda com o antecedente em gênero.
Ora, na segunda passagem, o antecedente do pronome relativo quam
éfidês («fé»; cf. «fidelidade»), mais uma palavra da 5.a declinação, que
vimos na lição anterior. Os substantivos desta declinação são todos femi­
ninos, com a exceção curiosa de diês, diêi, que é quase sempre um subs­
tantivo masculino em latim (quase sempre, porque por vezes surge como
substantivo feminino). Notem como «dia», em português, manteve o
gênero da palavra latina.
É interessante vermos que, no caso de outras palavras que o latim
deu ao português, o gênero não se manteve. Por exemplo:

õrdõ, õrdinis («ordem») é um substantivo masculino em latim; em


português dizemos «a ordem»
põns, pontis («ponte») também é um substantivo masculino em
latim; em português dizemos «a ponte»
118 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

finis, finis («fim») é fluido no que toca ao gênero: Horácio escreve


certum... finem (Epístolas 1.2.56), mas Lucrécio certam finem (1.107).
Vergílio, na Eneida, usa os dois gêneros4.

A passagem de Lucrécio em que ocorre certam... finem é especial­


mente saborosa, porque veicula uma ideia que seria chocante para futu­
ros leitores cristãos (não foi à toa que, na Divina Comédia, Dante colocou
Epicuro, filósofo idolatrado por Lucrécio, no sexto círculo do inferno).
Pois a passagem de Lucrécio diz que «Se os homens vissem que
existe um limite certo [certamfinem] dos sofrimentos, por alguma racio­
nalidade conseguiriam resistir às religiões e às ameaças dos sacerdotes».
Em latim:

... nam si certamfinem esse uidêrent


aerumnarum hominês, aliquã ratiõne ualêrent
religionibus atque minis obsistere uãtum.

Notem este vocabulário:

aerumnae, aerumnarum: «preocupações», «sofrimentos»


minae, minàrum: «ameaças»
obsistõ, obsistere: «resistir»
uâtés, uâtis: «vate», «sacerdote».

Reparem na frase «se os homens vissem»; em latim, si... VIDÈRENT...


homines. Olhem também para «por alguma racionalidade consegui­
riam...»; em latim, aliquã ratiõne VALÊRENT.
As formas verbais em maiúsculas são de conjuntivo imperfeito.
Na lição anterior, vimos o conjuntivo imperfeito do verbo sum; veja­
mos agora o conjuntivo imperfeito ativo de amõ e de uideõ:

4Cf. a nota de R.D. Williams a Eneida 3.145 em P. Vergili Maronis Aeneidos Liber Tertius, Oxford,
1962, p. 86.
Lição n .° 17 119

amãrem / uidèrem
amãrês / uidêrês
amãret/ uidêret
amãrêmus / uidèrèmus
amárêtis/ uidêrêtis
amãrent/ uidêrent.

É preciso chamar a atenção para o facto de o conjuntivo imperfeito


ativo comportar uma rasteira para falantes de português: desprevenidos,
olhamos para amãrêmus e pensamos tratar-se do futuro (como em por­
tuguês: «amaremos»). Portanto, é fundamental estarmos atentos a este
pequeno empecilho em que os principiantes tropeçam.
O conjuntivo imperfeito é um tempo importantíssimo em latim, pois
serve para construir muitos tipos de frase. No caso da frase de Lucrécio
que acabámos de ler, o conjuntivo imperfeito confere à frase condicional
introduzida por si («se») um valor irreal:

«Se os homens vissem que existe um limite certo [certamfinem] dos


sofrimentos, por alguma racionalidade conseguiriam resistir às religiões
e às ameaças dos sacerdotes.»

Ao longo das próximas lições, vamos aprofundar um pouco o uso do


conjuntivo imperfeito; e veremos também uma estrutura sintática ver­
dadeiramente basilar do latim, que está escondida na citação de Lucrécio.
Lição n.° 18

Exilado por Augusto para os confins do império romano, Ovidio


dirige-se ao livro de elegias que terá a felicidade, sonegada ao seu autor,
de viajar até Roma:

... sine mi, liber, ibis in urbem...

escreve o poeta, queixoso. E acrescenta (atenção ao ablativo instru­


mental):

uade, liber, uerbisque meis loca grata salútãl

Apesar de proibido de voltar a Roma e obrigado a estar numa povoa-


ção desoladora no mar Negro, Ovidio tem consciência de que, na palavra
escrita, encontrou um meio poderoso para fazer prova de vida. O livro,
escrito por ele, chegará a Roma; e lá uluere mi dices.
Estas três palavras (que ocorrem em Tristia 1.1.19) sintetizam um
dos elementos mais importantes da gramática latina: a chamada «oração
infinitiva».
Em português nós diríamos «dirás QUE eu estou vivo». Este
«que», chamado na terminologia antiga «que integrante» ou «que
completivo», introduz a oração que completa o sentido de verbos como
«dizer» e «pensar» (entre outros).
Estes verbos precisam de orações completivas porque não veiculam
comunicações completas. Se eu disser apenas «eu digo», esta pequena
frase afigura-se-nos logo incompleta: digo o quê?
Lição N.° 18 121

Digo (por exemplo) QUE a língua latina é bela.


Ora este «que», neste tipo de contexto gramatical, não existe em
latim clássico. A oração que completa o sentido de verbos como «digo»
ou «penso» tem estas características bizarras para quem se inicia na
língua latina:

1. o sujeito está em acusativo (e não em nominativo, o caso normal


do sujeito);
2. o verbo está no infinitivo.

É como se disséssemos, em português, «Eu digo a língua latina ser


bela» (dtcõ linguam latinam pulchram esse).
Voltemos à frase que Ovídio dirige ao seu livro de elegias: uiuere mê
dices.
A oração principal é constituída apenas pelo indicativo futuro dices
(«dirás»). Dirás o quê? «Dirás eu viver.» Ou, em português correto,
«dirás que eu vivo».
A oração infinitiva é, no latim clássico, um dos meios privilegiados
para reportar discurso indireto. Qpase poderíamos dizer: quanto mais
clássico e requintado o texto, mais discurso indireto encontramos.
Quanto mais simples e acessível, mais se procuram estratégias para man­
ter o discurso direto. Reparem nesta frase dos Atos dos Apóstolos
( 12: 11):

Petrus dixit: «nunc sciõ quia misit Dominus angelum suum.»


«Pedro disse: “Agora sei que o Senhor enviou o seu anjo.”»

Percebemos, na frase, a vontade de evitar construções complicadas,


para a frase ser mais facilmente compreensível. O quia de sciõ quia cor­
responde ao nosso «que».
A Bíblia em latim, como sabemos, pertence a uma época diferente
da dos grandes autores clássicos. O que não significa que nela não encon­
tremos orações infinitivas. Por exemplo: na mesma página em que lemos,
122 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

no texto latino de São Paulo, a construção sciõ quoniam («sei que...»),


encontramos também duas orações infinitivas (2 Coríntios 5:10-11).
Mas é importante frisar que a construção clássica de verbos declarativos
(e outros: ver NGL, pp. 325-326) é com oração infinitiva. (Para uma
abordagem mais completa às orações infinitivas, leiam a explicação a
partir da p. 321 da NGL.)
Voltemos agora aos versos de Lucrécio (1.107-109) que lemos na
lição anterior, cujo sentido é «Se os homens vissem QUE existe um
limite certo [certamfinem] dos sofrimentos, por alguma racionalidade
conseguiriam resistir às religiões e às ameaças dos sacerdotes»:

... nam si CERTAM FINEM esse uidêrent


aerumnarum hominés, aliquã ratiõne ualêrent
religionibus atque minis obsistere uãtum.

Como veem, não há nenhuma palavra na frase latina que corres­


ponda ao «que» colocado em maiúsculas na tradução. E reparem que,
na citação em latim, as palavras em maiúsculas são o sujeito, em acusa-
tivo, da oração infinitiva, cujo predicado é esse.
A existência de orações infinitivas é um dos elementos da gramática
latina a que nos vamos habituando lentamente, à medida que vamos
avançando no estudo do latim.

Na brilhante defesa que Cícero proferiu do poeta grego Árquias (um


dos textos mais belos, na minha opinião, de toda a literatura latina), há
um passo em que ele refere a presença em tribunal do ilustre Marco
Luculo, cujas qualidades éticas Cícero sublinha. Diz então Cícero
(e notem que adsum, composto de sum, significa «estar presente»):

adest uir summã auctoritate et religione etfide, qui dicit SÈ scire (Prõ
Archiâ 8).
Lição N.° 18 123

Notem:

1. as expressões em ablativo summã auctoritãte et religiõneetfide ( «está


presente um varão de suprema autoridade e escrúpulo e confiança»);
2. depois a oração relativa, introduzida por qui («que», «o qual»),
oração relativa essa cujo predicado é dicit, do qual vai depender a oração
infinitiva, cujo sujeito é aqui o pronome $ê (acusativo). Isto acontece
quando o sujeito da oração infinitiva é o mesmo do sujeito do verbo que
a introduz.

Resumindo, há basicamente duas regras a saber sobre as orações


infinitivas em latim:

1. as orações infinitivas em latim têm o sujeito em acusativo e o pre­


dicado em infinitivo;
2. quando o sujeito da oração infinitiva é o mesmo do verbo que
a introduz, aparece sob a forma de sé.

Como exemplo fácil da regra 1, temos a frase de Ovidio que vimos


mais acima: umere mê dices («dirás que eu vivo»).
Como exemplo fácil da regra 2, a frase de Cícero: dicit sé scire («ele
diz que ele próprio sabe»).
Olhemos de novo para a frase ciceroniana, mas para destacarmos
nela outro aspeto:

adest uir summã auctoútãte et RELIGIÕNE etfide, qui dicit sé scire.

Talvez tenham estranhado que, na tradução que propus acima desta


frase, religiõ, religionis seja traduzido pela palavra portuguesa «escrúpulo».
Pois, na verdade, é este o sentido primário de religiõ, que surge expresso
no Oxford Latin Dictionary como «a supernatural feeling of constraint».
Esta é a aceção n.° 1 do verbete correspondente a religiõ. A aceção n.° 10
propõe «punctilious regard for one's obligations, conscientiousness».
124 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Portanto, quando Cícero fala de Marco Luculo como homem de


«suprema autoridade e religião», é à sua escrupulosidade conscienciosa
que ele se quer referir.
A aceção é, por conseguinte, positiva. No entanto, a palavra religiõ
pode também ser usada em aceção pejorativa, como faz Lucrécio na frase
que já conhecemos:

... nam si certamfinem esse uidêrent


aerumnãrum hominês, aliquã ratiõne ualêrent
RÈLIGIÕN1BVS atque minis obsistere uãtum.

Aqui, «religiões» tem um sentido análogo a «superstições» e, jun­


tamente com as «ameaças» dos vates, sugere um ponto de vista crítico
e negativo.
Ora, outra palavra do foro religioso onde encontramos também
uma ambigüidade comparável é sacer, donde vem a palavra portuguesa
«sacro». £m páginas contíguas da sua Eneida, Vergílio usa este adje­
tivo em sentido negativo e, daí a poucos versos, em sentido positivo:

... quid nõn mortãlia pectora cógis,


auri SACRAfames!
«A que não obrigas os peitos mortais,
maldita fome de ouro!» (Eneida 3.56-57)

Poucos versos depois, Vergílio (pela boca de Eneias, que está a con­
tar a história das suas viagens a Dido), refere a ilha de Delos como sacra...
tellús (3.73), expressão onde não há a mínima dúvida de que sacra signi­
fica «sagrada».
Qual será a aceção mais antiga de sacer? «Maldito» ou «sagrado»?
A primeira aceção é indubitavelmente antiga. Já a arcaica Lei das Doze
Tábuas, que os Gauleses destruíram no século iv a.C. (mas que nos che­
gou por citações de autores mais tardios), emprega sacer no sentido de
«maldito», quando determina o seguinte:
Lição n.° 18 125

patrõnus si clientifraudem fecerit, sacer estõs.


«Se um patrono terá cometido fraude com um cliente, que seja
amaldiçoado.»

Iremos em breve aprender o tempo a que pertencefêceút (o futuro


perfeito, muito usado em condicionais) e também a curiosidade estõ. Por
ora, a propósito da palavra/amês ( «fome» ), que vimos acima, deixo-vos
esta frase para relembrarem o conjuntivo imperfeito que vimos na lição
anterior: φ

facta est autemfames in terra dêscenditque Abram in Aegyptum utpere­


grinaretur ibi (Gênesis 12:10).5

5Warmington, Remains of Old Latin (3.490-491).


Lição n.° 19

Montado num burro, Jesus entra em Jerusalém e, à medida que


avança, as pessoas à sua volta estendem e depõem (em latim, o verbo
substemõ, substernere) na via pública as suas capas. Esta narração, própria
do Domingo de Ramos no calendário cristão, permite-nos avançar no
nosso estudo da gramática latina:

eunte autem illõ, substernebant uestimenta sua in uiã. et cum adpro-


pinquãret iam ad descensum montis Oliuêti) coeperunt OMNÊS TVRBAE
DISCENTIVM gaudentes laudãre Deum uõce magna.

A versão latina de Lucas (19:36-37) que a Vulgata nos dá a ler apre­


senta uma curiosidade em relação ao original grego, que por sua vez tam­
bém levanta uma questão textual curiosa. Como veem na expressão
destacada em maiúsculas, o evangelista fala aqui em «todas as multidões
de discípulos» (em latim, omnês turbae discentium; note-se que discentium
é o genitivo do plural do participio presente de discõ, discere, «aprender» ).
«Todas as turbas de discípulos» parece um pouco hiperbólico, pois
sugere muitas multidões constituídas por discípulos de Jesus. Seriam assim
tantas? Na verdade, o texto grego dá-nos a ler a palavra para «multidão»
no singular: onde em latim lemos omnês turbae, em grego lemos «a mul­
tidão dos discípulos» (tóplêthos tõn mathêtõn, τό *Xfj0oc των μαθητών).
No entanto, há uma razão pela qual a Vulgata operou o milagre da
multiplicação das multidões de discípulos: é que, nos manuscritos mais
antigos de Lucas em grego, o verbo está no plural (ainda que o sujeito
Lição n.° 19 127

esteja no singular). Em latim lemos coepérunt, indicativo perfeito do verbo


coepiõ, coepere («começar»), Esta forma reflete com precisão a forma
verbal correspondente grega, pelo menos como ela surge nos manuscritos
mais antigos (curiosamente, o manuscrito bilingue grego/latim do Novo
Testamento do final do século iv, o Codex Bezae, atualmente em Cam­
bridge, dá-nos a ler, em grego, «começou», em vez de «começaram»),
Leiamos agora de novo a passagem de Lucas em latim, focando a
nossa atenção nas palavras que agora porei em maiúsculas:

EVNTE autem ILLÕ, substernebant uestimenta sua in uiã. et CVM


ADPROPINQVÃRET ad descensum montis Oliuêti, coepérunt omnês
turbae discentium gaudentes laudãre Deum uõce magna.
«Pois enquanto ele avançava, estendiam as suas vestes na via. E quando
chegou à descida do monte Oliveto, começaram todas as turbas de dis­
cípulos, regozijando-se, a louvar Deus em voz alta.»

A primeira palavra, eunte, é o ablativo do participio presente do verbo


eõ, ire ( «ir»). Este participio é, no nominativo, iêns, mas nos outros casos
muda:

nom inativo: iéns / euntês


ACU SATivo: euntem / euntês
g en itiv o : euntis / euntium
d ativ o : eunti/ euntibus
a b la tiv o : eunte / euntibus.

Se acharem estranha esta declinação, estão em boa companhia: os


próprios falantes de latim oscilavam nas formas desta declinação (e por
isso formas como o genitivo ientis e o dativo/ablativo do plural ientibus
estão documentadas epigraficamente).
O principal a reter é que se trata do participio do verbo «ir»; e, na frase
de Lucas que estamos a analisar, surge em ablativo: eunte. Aliás, o que temos
é eunte... illõ: um participio em ablativo com um pronome em ablativo.
128 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Esta construção chama-se ablativo absoluto e é, juntamente com a


oração infinitiva que vimos na lição anterior, uma das estruturas firásicas
mais típicas do latim. Aliás, eu diria que as três estruturas firásicas mais
típicas (e recorrentes) da sintaxe latina são:

1. a oração infinitiva (que vimos na lição anterior);


2. o ablativo absoluto (que estamos a ver na passagem de Lucas);
3. a oração de cum + conjuntivo imperfeito (que está também pre­
sente na nossa passagem de Lucas).

A constituição de um ablativo absoluto é tipicamente um participio


em ablativo e um pronome ou substantivo, também em ablativo. O abla­
tivo absoluto mais canônico é aquele em que o sujeito do participio é
independente do sujeito do verbo principal, relativamente ao qual o
ablativo absoluto funciona como expressão subordinada - tanto assim
que, na tradução para português, optamos normalmente por transformar
o ablativo absoluto numa oração temporal ou causai. Vejamos de novo
a frase de Lucas seguida da tradução:

EVNTE autem ILLÕ, substernebant uestimenta sua in uiã. et CVM


ADPROPINQVÃRET ad descensum montis Oliuêti, coeperunt omnês
turbae discentium gaudentes laudare Deum uõce magnã.
«Pois enquanto ele avançava, estendiam as suas vestes na via. E quando
chegou à descida do monte Oliveto, começaram todas as turbas de dis­
cípulos, regozijando-se, a louvar Deus em voz alta.»

Como veem, traduzi eunte... illõ por «enquanto ele avançava». E per­
cebemos também aquilo que referi da independência do sujeito do abla­
tivo absoluto em relação ao verbo principal: o sujeito do ablativo absoluto
éJesus; o sujeito de substernebant são as pessoas que estendiam na via as
suas vestes.
Agora reparem na oração «quando chegou...»: em latim, cum adpro-
pinquãret Temos aqui cum (como conjunção: «quando») juntamente
Liçào N.° 19 129

com o conjuntivo imperfeito do verbo adpropinquõ, adpropinquãre


(«aproximar-se», «chegar perto»). Notarão muitas vezes daqui para a
frente a grande frequência deste tipo de oração temporal em latim (que
pode também surgir com conjuntivo mais-que-perfeito).
Agora, não sei se repararam: embora Lucas esteja a narrar os acon­
tecimentos associados à celebração cristã do Domingo de Ramos, não
menciona quaisquer ramos.
Comparemos os relatos dos outros evangelistas, mas primeiro con­
firamos este vocabulário:

sterno, stemere, strãul, stratum: «estender»


caedó, caedere: «cortar»
accipiõ, accipere, accepi, acceptum: «tomar»
prõcêdõ, prõcêdere, processi, processum: «avançar»
obuiam + dativo: «ao encontro de».

Marcos (11:8): multi autem uestimenta sua strãuêrunt in uiã; alii


autemfrondes caedebant dê arboribus et sternebant in uiã.

Mateus (21:8): plurima autem turba strãuêrunt uestimenta sua in uiã;


alii autem caedêbant ramõs de arboribus et stemêbant in uiã.

João (12:13): accêpêrunt ramõs palmarum et processerunt obuiam ei.

Como se vê, a palavra «ramos» está presente em Mateus e João -


mas não em Marcos, que fala apenas de «folhagens» (em latim,Jrondês).
£ só João fala em «ramos de palmeira».
Quanto a Lucas, se ele pudesse prever a importância que o cristia­
nismo posterior daria aos ramos, decerto não se teria esquecido de os
mencionar. Mas Lucas, afinal de contas, é o evangelista que, ao narrar a
paixão de Cristo, não só omite a flagelação de Jesus como a própria coroa
de espinhos. Talvez a ausência dos ramos seja, comparativamente, algo
de somenos.
Lição n.° 20

Numa passagem célebre do Livro 2 das suas Confissões, Santo Agos­


tinho recorda o dia em que, juntos no mesmo balneário, seu pai reparou
que o filho adolescente já estaria apto para a procriação de filhos.
Decorria o ano de 369; o local era uma pequena cidade no norte de
Africa (hoje Souk Ahras, na Argélia); Patrício e Mónica, pais de Agosti­
nho, estavam a passar dificuldades financeiras que tinham levado à neces­
sidade de o filho interromper, durante um período, os seus estudos.
Na fase de maior descontrolo hormonal da adolescência, Agostinho teve
de deixar a escola noutra cidade e voltar a viver com os pais.
Antes de lermos a passagem, lembremo-nos de que vimos na lição
anterior o significado de coepiõ, coepere, coepi, coeptum: «começar».
Vejamos ainda este vocabulário:

excêdõ, excedere, excessi, excessum: «exceder», «ultrapassar»


caput, capitis: «cabeça» (substantivo neutro da 3.a declinação)
ueprés, uepris: «espinheiros», «silvas» (este substantivo tanto pode
ser masculino como feminino).

Comecemos pela frase em que Santo Agostinho diz que teve de


interromper os estudos (atenção ao ablativo absoluto no texto) e voltou
a viver com os pais (Confissões 2.6):

sed ubi sextõ illó et decimõ annõ, INTERPOSITO ÕTIÕ ex necessitate


domesticã, fêriãtus ab omni scholã cum parentibus esse coepi, excesserunt
caput meum ueprés libidinum, et nulla erat érãdicàns manus.
LiçAo N.° 20 131

O ablativo absoluto é fácil de reconhecer graças às maiúsculas. Repa­


rem como é constituído por um participio (interposito, participio perfeito
de interpõnõ, interponere, «interpor», «intrometer-se») e por um subs­
tantivo (õtiõ), ambos em ablativo. Notem também o sentido temporal,
«tendo-se intrometido o ócio».
Também a ubi («onde» ou «quando») podemos atribuir aqui um
sentido temporal Vejamos a tradução:

«Mas quando, naquele décimo sexto ano, tendo-se intrometido o


ócio por necessidade doméstica, em férias de toda a escolaridade come­
cei a viver [esse] com os pais, ultrapassaram a minha cabeça espinheiros
de desejos - e nenhuma mão erradicante havia.»

Continuemos a narrativa (com ubi novamente no sentido de


«quando»; tenham atenção ao hipérbato INQVIETÃ indütum ADOLES­
CENTIA, «vestido de inquieta adolescência»):

ubi mê illepater in balneis uidit pubescentem et inquieta indütum adolès-


centiã, quasi iam ex hõc in nepõtês gestiret

Notemos o seguinte vocabulário:

indütus: «vestido» (participio perfeito de induõ, induere, «vestir»)


nepõs, nepõtis: «neto»
gestiõ, gestire: «desejar», «estar ansioso por» (o sentido primário
é «gesticular de alegria»).

A imagem «vestido de inquieta adolescência» é expressiva, porque


justamente o jovem Agostinho não estavavestido: o que levou o pai a alegrar-
-se na expectativa de brevemente ter netos foi o facto de ter visto o filho nu.
O pai, exultante, contou o sucedido à mãe (gaudêns mãtfi indicãuit),
mas Santa Mónica ficou tudo menos exultante com a notícia. O receio
de que o filho incorresse em pecado (né fornicárer, «não fosse eu
132 Latim do Zero a Vergílio em SO Lições

fornicar») suscitou da parte dela muitos avisos (monitüs, no plural), que


levaram o filho adolescente a corar. Com a vantagem de olhar para trás
graças à sabedoria da retrospeção, Agostinho compreende que, afinal,
os avisos da mãe eram avisos de Deus:

illi [isto é, os monitüs, os avisos] tut erant et nesciebam; et tê tacére


putãbam atque illam loqui, per quam mihi tü nõn tacêbãs.

Intuitivamente, como falantes de português, compreendemos que


o verbo taceõ, tacere significa «estar calado» (cf., em português,
«tácito»). E o nosso adjetivo «néscio» ajuda-nos a compreender o sen­
tido do verbo nesciõ, nescire («desconhecer»).

Na frase de Agostinho há mais dois verbos fundamentais que temos


de juntar ao nosso vocabulário:

loquor, loqui, locütus sum: «falar» (trata-se de um verbo depoente,


ou seja, tem forma passiva e sentido ativo: ver NGL, pp. 210-213)
putõ,putãre: «pensar».

Notem as orações infinitivas (que coloco agora em maiúsculas),


ambas dependentes de putãbam:

illi tui erant et nesciebam; et TÉ TACÉRE putãbam atque ILLAM


LOQVl, per quam mihi tü nõn tacêbãs.
«Aqueles <avisos> eram teus e eu desconhecia; e eu pensava que tu
te calavas e que ela falava, através da qual tu não te calavas para mim.»

No Livro 2 das Confissões, Agostinho pinta um quadro impressio­


nante da impulsividade sexual na adolescência, situação a que um olhar
mais racional dará o desconto de ser meramente própria da idade (e nada
de por aí além), mas que o futuro bispo de Hipona e santo da Igreja
Católica descreve com severidade intransigente.
Lição n.° 20 133

«Pois a dada altura eu ardia», escreve Agostinho, «por ser saciado


dos infernos na adolescência; e ousei tornar-me selvagem com vários e
sombrios amores» (Confissões 2.1).
Em latim (atenção ao verbo semidepoente [NGL, p. 213] que sig­
nifica «ousar»: audeõ, audére, ausus sum):

exarsi enim aliquando satiari inferis in adulescentia, etsiluescere ausus


sum uariis et umbrosis amoribus.

A linguagem usada é tudo menos morna:

exãrsi (indicativo perfeito do verbo exãrdêscõ, exãrdêscere, exãrsi,


exãrsum, «arder», «inflamar-se»)
siluêscõ, siluèscere: «tomar-se agreste», «tomar-se selvagem».

Claro que os inferi são os lugares infernais; mas o que foram esses
vários e sombrios amores?
Agostinho carrega na linguagem do exagero, mas poupa na da cla­
reza: diz que ficou putrefacto diante dos olhos de Deus ao agradar-se
a si mesmo e ao querer agradar aos olhos dos homens (notem a prepo­
sição cõram + ablativo, «diante de»):

computrui cõram oculis tuis, placêns mihi et placere cupiens oculis


hominum.

(Não esquecer que hominum é genitivo do plural de horno, hominis.)

E, por fim, não é sem razão que Agostinho pergunta, naquela que é
a mais simples e avassaladora definição do amor:

et quid erat quod mê delectabat, nisi amãre et amãri?


134 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Reparem na força do infinitivo ativo (amãre) ao lado da do infinitivo


passivo amãri:

«E o que era que me deleitava, a não ser [nisi] amar e ser amado?»

Nós poderemos perguntar se seria tão mau assim, do ponto de vista


cristão, «amar» e «ser amado». Afinal, o Novo Testamento não diz que
«Deus é amor»?
Diz, em português. Porque, em latim, a frase não é bem a mesma.
O que nós gostamos de repetir como «Deus é amor» tem outra nuance
na Bíblia latina que Agostinho conhecia:

Deus cãritâs est( 1João 4:8).

Não é a mesma coisa.


Lição n.° 21

Vêni Carthaginem, escreve Santo Agostinho no início do Livro 3 das


suas Confissões. Logo de seguida, descreve Cartago como «frigideira»
de amores ilícitos.
A palavra para «frigideira» é curiosa: em latim, sartãgõ, sartãginis
- vocábulo que certamente foi escolhido por Agostinho por rimar com
Carthãgõ.
A etimologia de sartãgõ é controversa, mas a teoria predominante é
que deriva do verbo latino sarciõ, sarcire, sarsi, sartum, que significa
«coser». Note-se: «coser»; não «cozer». Deste verbo latino vem o
nosso português «cerzir», assim como o adjetivo «sartório».
No entanto, nós sabemos que uma frigideira coze os alimentos; não
os cose. Por outro lado, dada a aceção de «consertar», que também é
própria do verbo latino sarciõ, talvez possamos imaginar que a sartãgõ
conserta o sabor dos alimentos (quem não ama fritos?). Talvez por isso,
nalgumas zonas de Portugal tenha o nome de «sertã».
Mas voltemos às duas palavras iniciais do Livro 3 das Confissões: uêni
Carthãginem. A explicação do acusativo tem que ver com a vocação deste
caso para exprimir movimento: o chamado «acusativo de direção».
E em uêni temos o indicativo perfeito de ueniõ, uenire, uêni, uentum
(«chegar»), forma que muitas pessoas conhecem da frase uêni, utdi, uici
(«cheguei, vi, venci»), letreiro usado porJúlio César num dos seus cor­
tejos triunfais em Roma (cf. Suetónio, Júlio César 37).
Voltando a Agostinho e à sua sertã de amores ilícitos, são memorá­
veis as palavras com que ele descreve aquela predisposição dos jovens
136 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

para se apaixonarem: o fenômeno tão bem descrito em inglês pela expres­


são «in love with love», expressão essa que, contudo, vem de Agostinho:

nõndum amãbam, et amãre amabam·, et secrêtiõre indigentiã õderam


mê, minus indigentem.

Vejamos a tradução:

«Eu ainda não amava, e amava amar; e por causa de uma carência
secreta eu me odiava, menos carente.»

A frase é magnífica, mas de interpretação há muito polêmica.


O entendimento talvez mais lógico é pensarmos que minus indigentem
significa «menos carente <do que deveria ter sido o meu caso>», isto é,
«não suficientemente carente». E aqui temos de imaginar que o Agos­
tinho quarentão das Confissões está a olhar para trás, para o jovem
Agostinho acabado de chegar a Cartago, e se dá conta de que, naquela
época de juventude, lá na sertã de amores ilícitos, não sentiu suficiente­
mente a carência de Deus.
Morfologicamente, temos na frase citada uma novidade que importa
conhecer: a forma õderam, do verbo que significa «odiar».
Trata-se de um verbo que, em latim, não tem o sistema do Infectum
(isto é: não tem presente, imperfeito e futuro imperfeito). É um verbo
dito «defetivo» (ver NGL, pp. 205-206). Assim, o perfeito (õdi) fun­
ciona como o presente do verbo. Logicamente, se o perfeito funciona
como presente, o mais-que-perfeito funciona como tempo do passado.
Em latim, o indicativo mais-que-perfeito forma-se juntando o imper­
feito do verbo «ser» ao tema do perfeito. No caso de õdi, o tema é õd-.
Vejamos então o mais-que-perfeito:

õderam
õderãs
õderat
LiçAo N.° 21 137

õderãmus
õderãtis
õderant.

Aproveitemos para ver também o mais-que-perfeito indicativo e


conjuntivo de amõ (separados por « / »):

amãueram / amãuissem
amãuerãs / amãuissès
amãuerat / amãuisset
amãuerãmus / amãuissêmus
amãuerãtis / amãuissêtis
amãuerant / amãuissent.

(Sobre a formação do mais-que-perfeito, ver pp. 172-173 da NGL.)

Continuemos agora com Agostinho em Cartago:

quaerêbam quid amãrem, amãns amàre, et õderam secüritãtem et uiam


sine müscipulis.

Já vamos às formas verbais, mas para já atentemos na palavra musci­


pula, muscipulae, «ratoeira». Ele odiava, pois, uma via sem ratoeiras?
De facto. «Rato» em latim é müs, müris (cf., em inglês, mouse, e em
alemão Maus). A palavra müscipula junta a palavra para «rato» ao verbo
para «apanhar»: em latim, capiõ.
Quanto aos verbos, já conhecemos quaerõ («procurar»), aqui no
indicativo imperfeito, a que se segue amãrem, no conjuntivo imperfeito.
Podemos já apontar a razão do conjuntivo: trata-se de uma oração inter­
rogativa indireta. Estas orações, em latim, têm habitualmente o verbo no
conjuntivo (ver NGL, pp. 345-346).
138 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Leiamos de novo a frase:

quaerêbam quid amarem, amãns amãre, et õderam secüritãtem et uiam


sine müscipulis.
«Eu procurava o que amar, amando amar, e odiava a segurança e
uma via sem ratoeiras.»

Começamos, pois, a entrever esta sertã do sexo que era a cidade


de Cartago como um local onde pelo menos um jovem estudante não
se preocupou com o que hoje chamaríamos «sexo seguro». Mas, no
fundo, o que Agostinho queria era amar:

amãre et amâri dulce mihi erat, magis si et amantis corporefruerer.


«Amar e ser amado me era doce, sobretudo se também fruísse do
corpo da amante.»

Na frase latina devemos notar duas coisas: uma delas é o verbo


depoente fruor, frux, que tem complemento em ablativo (corpore; ver
NGL, p. 314).
A outra é bem mais controversa: traduzi o genitivo amantis por «da
amante», assumindo por default o gênero feminino (amãns, amantis
tanto pode ser masculino como feminino), pressupondo que Agostinho
está a falar de uma situação heterossexual. Poderá parecer estranho aos
não iniciados que se discuta a vida sexual de Santo Agostinho na sertã de
Cartago em termos de heterossexualidade e de homossexualidade, mas
é isso que encontramos efetivamente na bibliografia especializada6.
É claro que sabemos da relação posterior de Agostinho com uma
mulher, de quem teve um filho, que recebeu dos pais solteiros o nome
engraçado Ãdeõdatus («Dado-por-Deus»). Terá Agostinho tido, antes
disso, experiências com pessoas do mesmo sexo? Na frase seguinte

6 Cf. R. Lane Foz, Augustine: Conversions and Confessions, London, 2015, p. 75; e o l.° volume
da edição das Confissões por Carolyn Hammond na série Loeb da Harvard University Press,
2014, p. xxiii.
Lição n.° 21 139

àquela em que ele afirma que era doce fruir do corpo da/do amante,
lemos a confissão de que ele costumava inquinar a veia da amizade com
a imundície (sordês, sordis) da concupiscência, assim obnubilando o
candor da amizade a partir do inferno da libido:

uênam igitur amicitiae coinquinabam sordibus concupiscentiae can-


dõremque eius obnübilâbam dê tartarõ libidinis.

Seriam amigas com quem ele assim inquinava a veia da amizade?


Seriam amigos? Um pouco mais tarde, quando Agostinho começa a sua
carreira de professor na cidade onde nasceu, acontece uma amizade de
extraordinária intensidade com um seu coetâneo. Felizmente, esta nar­
ração permite-nos treinar o mais-que-perfeito. Ora vejamos (as formas
de mais-que-perfeito estão em maiúsculas):

in illis annis quõ primum tempore in municipio quõ nãtus sum docêre
COEPERAM, COMPARAVERAM amicum, societate studiorum nimis
cãrum, coaeuum mihi et conflõrentemflõre adulescentiae.
«Naqueles anos, no tempo em que primeiramente no municipio
onde nasci comecei a ensinar, arranjei um amigo, muito caro pela socie­
dade dos estudos [isto é, pelos estudos que partilhávamos], meu coevo
e desabrochando também na flor da adolescência.»

Agostinho dirige-se depois a Deus, qui conuertis nõs ad tè miris modis


(«que nos convertes a ti de maneiras mirificas»):

ecce abstulisti hominem dê hãc uitã, cum uix EXPLEVISSET annum in


amicitiã meã, suãui mihi super omnés suãuitãtés illius uitae meae.
«Eis que retiraste o homem desta vida, quando mal ele cumprira um
ano na minha amizade, mais suave para mim acima de todas as suavida-
des daquela minha vida.»
140 Latim do Zero a Vergílio em SO Lições

A forma verbal em maiúsculas é o conjuntivo mais-que-perfeito do


verbo expleõ, explêre, explêui, explêtum («cumprir», «encher»). A oração
temporal pertence ao tipo que vimos na lição anterior (cum + conjuntivo
imperfeito ou conjuntivo mais-que-perfeito).
A morte por febre violenta do amigo de Agostinho (curiosamente,
nunca o nome dele é explicitado) ocasiona um período terrível de
luto.

«Tudo o que com ele eu comungara, sem ele em enormidade


excruciante se transformou.»

Notem, mais uma vez, os mais-que-perfeitos:

quidquid cum illõ COMMVNICÃVERAM, sine illõ in crüciàtum imma­


nem VERTERAT.

Por fim, só o choro (flêtus, flétús, 4.a declinação) era doce a Agosti­
nho: sucedera ao amigo nas delícias da sua alma. £ com mais um mais-
-que-perfeito, terminamos esta lição:

sõlusflêtus erat dulcis mihi etSVCESSERAT amicó meõ in deliciis animi


mel
Lição n.° 22

No meio do jantar para que fora convidado em casa de um fariseu,


Jesus divide com uma mulher anônima o protagonismo de uma cena não
tanto singular (porque surge sob outras formas noutros Evangelhos)
como especial.
A mulher entra em cena de forma intempestiva (ou, pelo menos, sem
ser convidada); mulher, como nota o evangelista, quae erat in ciuitãte
peccatrix (Lucas 7:37). Para surpresa de todos, o que faz esta mulher
(cujo nome Lucas nunca diz)?

lacrimis coepit rigãre pedes eius et capillis capitis sul tergebat; et


õsculãbãtur pedes eius et ungentõ unguebat.

Nesta fase em que nos encontramos da iniciação ao latim, esta frase


não vos causará dificuldade:

1. já conhecemos o verbo coepiõ>coepere («começar»);


2. conseguimos identificar o indicativo imperfeito (note-se tergeõ,
donde vem a palavra portuguesa «detergente»);
3. já nos habituámos ao uso instrumental daablativo:

lacrimis: «com lágrimas»


capillis: «com os cabelos»
unguentõ: «com unguento» (perfume).
142 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Continuemos a narração:

uidéns autem Pharisaeus qui uocãuerat eum, ait intrã sé, dlcèns: «hic si
esset propheta, sciret quae et quãlis mulier, quae tangit eum».

Note-se o mais-que-perfeito (tempo que vimos na lição anterior)


uocãuerat; e note-se o uso do conjuntivo imperfeito, que confere à frase
condicional do fariseu um sentido contrafactual:

«Se este fosse profeta, saberia que tipo de mulher <é esta> que lhe
está a tocar.»

Mas é evidente que Jesus sabe muito bem que mulher é esta. £ diz
a frase extraordinária7:

remittentur eipeccâta multa, quoniam dilixit multum.

Notem o indicativo futuro passivo remittentur. O verbo remitto sig­


nifica «mandar para trás», «devolver à proveniência». Os pecados dela
serão devolvidos à proveniência, mandados para trás: recambiados para
o seu lugar próprio, que é o passado dela e, por conseguinte, esse lugar
já é irrelevante. O que há a relevar, sim, no passado da mulher é que diléxit
multum («muito amou»).
Em seguida, Jesus dirige-se diretamente à mulher (e notem a
mudança do tempo verbal):

remittuntur tibi peccãta.

7À apresentação do texto e à respetiva análise subjaz a Vulgata Stuttgartensia, que é a edição da


Vulgata usada para fins académico-universitários (e que pretende oferecer uma edição do texto
latino tal como ele teria sido idealizado porJerónimo). É preciso ressalvar que, no caso concreto
desta passagem de Lucas, as opções textuais são diferentes tanto na Vulgata Clementina como
na Nova Vulgata (para uma explicação destes termos, ver p. 243).
LiçAo N.° 22 143

Ou seja:

«Estão recambiados os teus pecados.»

Já não valem nada, porque já não interessam.


À volta deles, do Mestre e da pecadora, ouve-se o burburinho de
vozes escandalizadas:

qut est hic, quípeccãta dimittit?

E reparem: dimittõ significa «deixar partir». As pessoas estão escan­


dalizadas porque este homem «deixa partir» os pecados; renuncia à sua
importância (e «renunciar» é também uma aceção de dimittõ).
A subtileza é expressiva: Jesus emprega o verbo remittõ («mandar
embora»); os seus críticos, o verbo dimittõ («deixar partir»).
Ora, uma das razões pelas quais temos vantagem em ler o Novo Tes­
tamento não só em grego mas também em latim é o facto de a Vulgata
nos abrir horizontes diferentes de interpretação. Nesta passagem de
Lucas que temos estado a ler, não há diferença, no texto grego, entre o
verbo usado por Jesus (remittõ na Vulgata) e pelos seus críticos (dimittõ).
Em grego, tanto Jesus como os circunstantes escandalizados usam o
mesmo verbo aphiêmi (άφίημι), cujo sentido corresponde a dimittõ, «dei­
xar partir».
Outra diferença está no tempo usado por Jesus quando:

1. diz ao fariseu que os pecados da mulher serão mandados embora


(remittentur: futuro);
2. quando diz à mulher que os seus pecados estão mandados embora
(remittuntur tibi peccãta: presente).

Em grego, não há esta diferenciação: em ambas as frases, Jesus


emprega a mesma forma verbal do indicativo perfeito passivo: apheõntai
144 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

(άφέωνται)8. Isto é, «Os teus pecados foram deixados partir» (perdoe-se


a estranheza do português).
Se o latim ganha em expressividade na passagem que estivemos a
ver, na frase que termina este episódio é claramente a versão grega que
ganha em subtileza. Em latim, Jesus diz à mulher:

fidès tua tl saluamfêcit. uãde in pãce.


«A tua fé te fez salva. Vai em paz.»

Embora uma fraseologia grega igual a esta exista num manuscrito do


Novo Testamento copiado no final do século iv (o Codex Bezae, que já
tive ocasião de referir), a frase que tem a maior probabilidade de ser
original (e que está nos outros manuscritos gregos) não é «Vai em paz»,
mas sim «Caminha rumo à paz» (em grego, πορεύου ele ειρήνην).
Talvez a sabedoria das palavras gregas de Jesus resida nesta ideia:
não é pela imobilidade passiva que alcançamos a paz. Temos de caminhar
ativamente em direção a ela.

Mudando agora de episódio e de Evangelho: vamos fazer a experiên­


cia de ler um texto em que nos focaremos nas formas que surgem no
conjuntivo.
Estamos no Evangelho de João (11:19): Lázaro já morreu e foi
sepultado; e os amigos do falecido vieram consolar as irmãs, Maria e
Marta. Estes ficam surpreendidos quando, de repente, Maria se levanta
e se apressa em direção ao túmulo do irmão.

cum uidissent Mariam quia citõ surrêxit et exiit, secütl sunt eam, dicen­
tes quia uädit ad monumentum, ut ploret ibi. Maria ergõ cum uinisset ubi
erat lêsus, uidlns eum cecidit ad pedes eius et dixit ei: «Domine, sifuisses hic,
nõn esset mortuusfrãter meus».

8O perfeito grego é imitado (de forma infeliz, a meu ver) na Nova Vulgata, onde se perderam,
nesta passagem, todas as subtilezas aqui analisadas e que eram próprias do texto como ele era
lido em latim na Antiguidade Tardia.
LiçAo N.° 22 145

Vejamos as formas verbais em conjuntívo e a sua justificação:

uidissent (conjuntívo mais-que-perfeito de uideõ·, trata-se de uma


oração temporal-causal de cum + conjuntívo imperfeito ou mais-que-
-perfeito; ver NGL, p. 336)
plõret (conjuntívo presente de plõrõ, plõrãre; a justificação do con-
juntivo é que se trata de uma oração final de ut + conjuntívo; ver NGL,
p. 326)
uênisset (mesma justificação de uidissent)
fuisses... mortuus esset (conjuntívo mais-que-perfeito, respetívamente
de sum e de morior, trata-se de uma frase condicional com sentido con-
trafactual ou irreal: «Se tivesses estado presente aqui, o meu irmão não
teria morrido.»).

Aproveitemos a ocorrência do verbo morior, mori, mortuus sum


(«morrer») para vermos o funcionamento do conjuntívo perfeito e
mais-que-perfeito na voz passiva.
O verbo morior é depoente (ver NGL, pp. 210-213), o que significa
que a sua conjugação é passiva, não obstante o seu sentido ativo. Já sabe­
mos que em tempos como o perfeito e o mais-que-perfeito todos os
verbos latinos se conjugam da mesma maneira, sem distinção entre
as conjugações. Portanto, se soubermos como funciona o conjuntívo
perfeito e mais-que-perfeito de amõ, sabemos como funcionam todos os
outros verbos.
Trata-se, simplesmente, de articular perifrasticamente o participio
perfeito com o auxiliar sum no conjuntívo presente (isto para o perfeito
passivo) e no conjuntívo imperfeito (isto para o mais-que-perfeito pas­
sivo). Parece complicado, mas não é. Separo o conjuntívo perfeito e
o mais-que-perfeito por meio de « / »:

amãtus sim / amãtus essem


amâtus sis / amãtus esses
amãtus s it/ amãtus esset
146 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

amãti simus / amãti essemus


amãti sitis / amãti essêtis
amãti sint / amãti essent

Agora leiamos de novo o texto, dando especial atenção às formas de


indicativo perfeito:

cum uidissent Mariam quia citõ surrêxit et exiit; secüti sunt eam, dicen­
tes quia uàdit ad monumentum, ut ploret ibi. María ergõ cum uênisset ubi
eratlêsus, uidêns eum cecidit ad pedes eius et dixit ei: «Domine, sifuisses hic,
nõn esset mortuus frãter meus».

surrêxit (indicativo perfeito de surgõ, surgere, surrêxi, surrèctum,


«levantar-se»)
exiit (indicativo perfeito de exeõ, exire, «sair»)
secüti sunt (indicativo perfeito do verbo depoente sequor, sequi, secu­
tus sum, «seguir»)
cecidit (indicativo perfeito de cadõ, cadere, cecidi, cãsum, «cair»).

Só nos falta a tradução:

«Quando viram Maria - que depressa se levantou e saiu - seguiram-


-na, dizendo que ela vai ao túmulo, para que chore lá. Então Maria,
quando chegou onde estavaJesus, vendo-o caiu aos pés dele e disse-lhe:
“Senhor, se tivesses estado aqui, não teria morrido o meu irmão.”»
Lição n.° 23

Perante o olhar estupefacto dos discípulos, Jesus despe as suas rou­


pas, pega num pano, atira água para dentro de uma bada (em latim,peluis,
-is, donde vem o termo anatômico), et coepit lauãre pedes discipulorum.
Chega a vez de Pedro, que diz:

Domine, tú mihi lauãs pedes?

Prossigamos a narrativa (João 13:7-8):

respondit Iêsus et dicit ei: «quod egofaciõ tú nescis; modo scies», autem
postea dicit ei Petrus: «nõn lauãbis mihi pedes in aeternum».
«Respondeu Jesus e diz-lhe: “Aquilo que eu faço tu desconheces;
em breve saberás.” Porém, de seguida Pedro diz-lhe: “Não me lavarás os
pés até à eternidade."»

Reconhecemos aqui facilmente as formas de futuro: sciês e lauãbis.


Mais difícil é atribuirmos um sentido a in aeternum. Pedro está a dizer a
Jesus «Não me lavarás os pés até à eternidade»? Na realidade, temos
aqui a tradução para latim de uma expressão grega (eis tòn aiõna, ele τόν
αιώνα), cujo sentido é adaptável ao contexto: «por tempo indetermi­
nado», «para sempre», «até à eternidade»9. Aqui, vem na seqüência de
uma negação forte (expressa em grego por meio de uma construção espe­
cial) e serve para carregar ainda mais na negação.

Cf. R. Bultmann, Das Evangelium des Johannes, Gottingçn, 1986, p. 137, η. 1.


148 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

respondit Ièsus ei: «si nõn lauerõ tè, nõn habêspartem mêcum».

Ora, esta frase introduz-nos um tempo verbal (em lauerõ) que ainda
não vimos: o futuro perfeito. Trata-se de um tempo que faz parte do
sistema do Perfectum (portanto, é sempre regular) e é formado juntando
ao tema do perfeito o futuro do verbo sum.
Vejamos o caso do futuro perfeito de amõ - isto é, amãuerõ («eu
terei amado») - ao lado do conjuntivo perfeito do mesmo verbo, pois
são dois tempos muito próximos e parecidos (e que os próprios falantes
de latim confundiam: ver NGL, p. 152). Separo o indicativo futuro per­
feito do conjuntivo perfeito por meio de « / »:

amãuerõ / amãuenm
amãueris / amãueris
amâuerit/ amãuerit
amãuerimus / amâuerimus
amãueritis / amãueritis
amãuerint/ amãuerint.

Uma utilização muito típica do futuro perfeito latino é em frases


condicionais, como aquela que vimos acima: si nõn lauerõ tè, nõn habês
partem mêcum. À letra, «Se eu não te terei lavado, não terás parte
comigo». Mas o sentido, traduzido de forma mais simples, é «Se eu não
te lavar, não terás parte comigo». (Para este tipo de condicionais, ver
NGL, p. 332.)

Um pouco mais à frente nesta passagem, temos um exemplo de con­


juntivo perfeito. Jesus acabou, pois, de lavar os pés dos discípulos e
pergunta-lhes:

scitis quidfécerim uõbis?


«Sabeis o que eu vos fiz?»
L içào N.° 23 149

A justificação aqui do conjuntivo perfeitofêcerim é o facto de se tra­


tar de uma interrogativa indireta, função que já mencionámos anterior­
mente (pp. 137-138; ver também NGL, pp. 345-346).
Vejamos agora mais um pouco desta passagem do Evangelho de
João (riquíssima de possibilidades didáticas no que toca aos tempos ver­
bais). Nas palavras de Jesus, estejam atentos ao segundo termo de com­
paração expresso em ablativo:

domino suõ («do que o seu senhor»)


eõ («do que ele»).

nõn est seruus maior domino suõ, neque apostolus maior eõ qui misit
illum, si haec scitis, beati eritis sifeceritis ea. nõn dê omnibus uõbis dicõ: «egõ
sciõ quõs êlêgerim».

Vejam se conseguem identificar as formas verbais nos tempos que


vimos nesta lição:

féceritis: futuro perfeito defaciõ («sereis felizes se as fizerdes»);


justifica-se por se tratar de uma frase condicional
êlêgerim: conjuntivo perfeito de êligõ, êligere, êlêgi, êlectum, «esco­
lher», «eleger»; justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta
(essa realidade está mais óbvia na frase original grega, mas podem confiar
que se trata aqui de uma interrogativa indireta).

Leiamos mais uma vez a frase e vejamos a tradução:

nõn est seruus maior domino suõ, neque apostolus maior eõ qui misit
illum, si haec scitis, beãti eritis siféceritis ea. nõn dê omnibus uõbis dicõ: «egõ
sciõ quõs êlêgerim».
«Não é o servo maior do que o seu senhor, nem o apóstolo maior
do que aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, sereis felizes se as
fizerdes. Não de todos vós digo: “Eu conheço <aqueles> que escolhi.”»
Lição n.° 24

Já me perguntei tantas vezes: porque é que, na tradição portuguesa,


chamamos «Tomé» (e não «Tomás») ao apóstolo que, no Novo Tes­
tamento grego e latino, se chama Thõmãs7.
Seja como for, vamos olhar para o mais famoso episódio em que
Tomé/Tomás intervém na Bíblia, pois, entre outras coisas, dar-nos-á
uma oportunidade para rever o indicativo futuro perfeito (que vimos na
lição anterior).
Estamos no final do Evangelho de João, no penúltimo capítulo. Jesus
já foi crucificado, já ressuscitou e já apareceu uma vez aos discípulos; mas
numa ocasião em que Tomé não estava presente. Vejamos a passagem
(João 20:24-25):

Thõmãs autem, ünus ex duodecim, nõn erat cum eis quando uènit
Iêsus. dixerunt ergõ ei alii discipuli: «uidimus Dominum». ille autem
dixit eis: «nisi uiderõ in manibus eiusfiguram clãuõrum et mittam digi­
tum meum in locum clãuõrum et mittam manum meam in latus eius nõn
credam».

Reparem, pois, na frase de Tomé, nisi uiderõ... (à letra, «a não ser


que eu terei visto», mas, na prática, «a não ser que eu veja»), que ele
remata depois com nõn crêdam («não acreditarei»).
Continuemos a narração (e reparem no ablativo absoluto ianuis
clausis [«estando as portas fechadas»]):
Lição n .° 24 151

et post dies octõ iterum erant discipuli eius intus et Thomas cum eis. uênit
Iésus ianuis clausis et stetit in mediõ et dixit: «pãx uóbis». deinde dicit
Thõmae: «infer digitum tuum hüc et uidè manus meas; et adfer manum
tuam et mitte in latus meum; et nõli esse incredulus sedfidelis».

Aqui, as formas infer e adfer são formas de imperativo (ambos os


verbos são compostos deferõ:ver NGL, p. 196). Terminemos o episódio:

respondit Thõmãs et dixit ei: « Dominus meus et Deus meus!» dicit ei


Iésus: «quia uidisti me credidisti beati qui nõn uidêrunt et crediderunt».

A forma de imperativo acima (nõli esse, «não sejas») corresponde a


uma estrutura que já encontrámos (nõli ou, no plural, nõlite + infinitivo).
Aparecera um pouco antes, no mesmo Evangelho, na famosa cena em
que Jesus diz a Maria Madalena nõli mê tangere (João 20:11-17):

Maria autem stabat ad monumentum foris plõrãns. dum ergõfleret,


inclinãuit sé et prospexit in monumentum et uidit duõs angelõs in albis seden-
tês, ünum ad caput et ünum ad pedés, ubi positumfuerat corpus lêsú. dicunt
ei: «mulier, quidplõrãs?» dicit eis: «quia tulérunt Dominum meum et nes­
cio ubi posuèrunt eum», haec cum dixisset, conuersa est retrorsum et uidet
Iésum stantem et nõn sciêbat quia Iésus est. dicit ei Iésus: «mulier, quid
plõrãs? quem quaeris?» illa, existimãns quia hortulãnus esset, dicit ei:
«domine, si tü sustulisti eum dicito mihi ubi posuisti eum et ego eum tollam»,
dicit ei Iésus: «Maria», conuersa, illa dicit ei: «rabboni» (quod dicitur
«magister»). dicit ei Iésus: «nõli mê tangere».

Notem as seguintes informações:

Maria: trata-se de Maria Madalena


foris: «fora»
plõrõ: «chorar»
fleõ: «chorar»
152 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

prospexit: perfeito de prõspiciõ, «espreitar»


in albis: «com <vestes> brancas»
positum: de põnõ, põnere, posui, positum, «colocar», «pôr»
tulerunt: perfeito deferõ, «levar» (ver NGL, p. 197)
nesciõ ubi posuerunt eum: repare-se na interrogativa indireta com
indicativo em vez de conjuntivo
conuersa est: perfeito passivo de conuertõ, «voltar-se»
retrorsum: «para trás»
hortulanus: «jardineiro»
sustulisti: perfeito (2.a pessoa do singular) de tollõ, tollere, sustuli,
sublãtum, «levantar»
tangõ, tangere, tetigi, tactum: «tocar».

Leiamos, ainda, as belíssimas palavras da liturgia de Domingo de


Páscoa. Notem, logo a abrir o poema, o dativo uictimaepaschãll·, reparem
depois no indicativo perfeito cõnflixére (equivalente a conflixerunt), do
verbo cõnfligõ, confligere, cõnflixi, conflictum, donde vem a palavra portu­
guesa «conflito».
Mais umas dicas para a compreensão do texto:

testes significa «testemunhas»


reparem na oração infinitiva, com sujeito em acusativo e com o verbo
no infinitivo perfeito: scimus CHRISTVM SVRREX1SSE («sabemos que
Cristo ressuscitou»)
miserêre admite duas interpretações possíveis: pode ser conjuntivo
presente (2.a pessoa do singular) do verbo depoente miseror, miserãrl·,
assim sendo, o sentido de miserêre seria jussitivo, significando «que te
apiedes»; porém, esta interpretação eqüivale à outra, que é a de ver
miserêre como imperativo de misereor («apieda-te!»). Atendendo à
equivalência entre miserêre e a forma grega de imperativo eléêson
(έλέηοον) no Salmo 50, é provável que a segunda interpretação seja
a mais acertada.
Lição n .° 24
153

uictimae paschãli laudés


immolent Christiãní
agnus redimit ouês:
Christus innocens Patri
reconciliãuit peccãtõrls.
mors et uita duello
cõnflixêre mirando:
dux uitae mortuus
regnat uiuus.
«dic nobis, Maria,
quid uidisti in uiã?»
« sepulcrum Christi uiuentis
et gloriam uidi resurgentis;
angelicos testis, sudarium et uestls.»
surrlxit Christus, spls mea:
praecidet suõs in Galilaeam,
scimus Christum surrexisse
a mortuis ulrl.
tü nõbis, uictor rlx, miserlre.
Lição n.° 25

Já foi possível entrever, nas lições anteriores, que os adjetivos latinos


se dividem entre:

1. aqueles que têm três formas (masculino, feminino, neutro) e


seguem o padrão da l.a e da 2.a declinações;
2. aqueles que têm uma forma unissexo, digamos assim, para masculino
e feminino, e uma forma para o neutro (estes seguem a terceira declinação).

Um exemplo de adjetivo triforme é tõtus, tõta, tõtum; um exemplo


de adjetivo biforme é omnis, omne.
£ um exemplo de uma terceira categoria de adjetivos - os adjetivos
uniformes, que têm a mesma forma para masculino, feminino e neutro -
é uetus, cujo genitivo é ueteris. Portanto, também estes adjetivos seguem
a 3.a declinação.
Existem mais pequenos subgrupos e mais pormenores a aprender
em relação aos adjetivos (também há adjetivos, por exemplo, que são
triformes e seguem a 3.a declinação, como o adjetivo latino do qual pro­
vém o nosso adjetivo «acre»); mas aqui vamos focar-nos somente no
essencial: para uma visão mais completa, vejam as pp. 231-242 da NGL.
Voltemos a considerar uetus, ueteris («velho»), que nos serve para
chamar a atenção para um fator que nunca é de mais sublinhar (descul­
pem, não tenho paciência para as pessoas que ficam histéricas com rimas
internas em português): muitas vezes em latim, as desinências são enga­
nadoras, justamente pelo facto de serem tão polivalentes. As desinências
Liçà O N.° 25 155

-ae, -i, -is podem marcar mais do que um caso, como já sabemos; e até a
inocente desinência -us pode surgir-nos na 2.a, na 3.ae na 4.adeclinações:

amicus, amici (2.a declinação)


tempus, temporis (3.a declinação)
manus, manús (4.a declinação).

No caso de tempus, temos, ainda para mais, um substantivo que é


neutro. Temos de estar sempre com atenção, nas frases latinas, ãs fruições
que as palavras desempenham, pois é isso que nos ajuda a resolver, no
imediato, as ambigüidades. Consideremos esta frase do livro de Edesias-
tes (3:1):

omnia tempus habent

A forma verbal no plural indica-nos logo que tempus não pode ser ο
sujeito da frase; tem, por conseguinte, de ser o complemento direto;
sendo o complemento direto, tem de estar em acusativo; e para uma
palavra terminada em -us estar em acusativo, tem de ser neutra.

omnia tempus habent


«Todas as coisas [neutro do plural] têm <seu> tempo.»

Ora, o capítulo 3 do livro de Eclesiastes contém uma seqüência


muito famosa, na qual, em português, vemos uma série de infinitivos:

«Tempo de nascer e tempo de morrer,


tempo de plantar e tempo de arrancar o que foi plantado,
tempo de matar e tempo de curar,
tempo de destruir e tempo de edificar,
tempo de chorar e tempo de rir,
tempo de lamentar e tempo de dançar,
tempo de atirar pedras e tempo de <as> juntar,
156 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

tempo de abraçar e tempo de ficar longe de abraços,


tempo de adquirir e tempo de perder,
tempo de guardar e tempo de atirar fora,
tempo de rasgar e tempo de coser,
tempo de calar e tempo de falar.»

Na versão grega deste texto, todos estes infinitivos que vemos em


português são também infinitivos gregos (apresentados como depen­
dendo da palavra para «tempo» por meio do artigo definido em geni­
tivo). Reparem, por outro lado, na situação que se nos depara em latim:

tempus nãscendi et tempus moriendi,


tempus plantandi et tempus euellendi quod plantãtum est,
tempus occidendi et tempus sãnandi,
tempus destruendi et tempus aedificandi,
tempusflendi et tempus ridendi,
tempus plangendi et tempus saltandi,
tempus spargendi lapides et tempus colligendi,
tempus amplexandi et tempus longefieri ã complexibus,
tempus adquirendi et tempus perdendi,
tempus custodiendi et tempus abiciendi,
tempus scindendi et tempus consuendi,
tempus tacendi et tempus loquendi.

Todas estas formas, que vimos sob o aspeto de infinitivos em portu­


guês, têm em latim a classificação de «gerúndio».
É importante separar, mentalmente, o termo «gerúndio» quando
falamos de gramática latina do termo que conhecemos referente à gra­
mática do português.
£m latim, o gerúndio é um substantivo verbal que permite declinar
o infinitivo. Não tem nominativo (porque o seu nominativo é, no fundo,
a própria forma de infinitivo), mas tem genitivo, acusativo (precedido de
aí), dativo e ablativo. Vejamos o caso de amãre (ver NGL, p. 140):
Lição n .° 25 157

genitivo : amandi («de amar»)


ACU SATivo: ad amandum («para amar»)
dativo : amando («a amar»)
ablativo : amando («por meio de amar»).

O gerúndio em latim tem várias utilizações (que são sistematizadas


nas pp. 359-363 da NGL). Como já vimos o uso em genitivo na passagem
de Eclesiastes, vejamos agora a famosa passagem de Emaús no Evangelho
de Lucas, quando Cléopas e o seu amigo vão a caminho de Emaús, con­
versando sobre todas as coisas que tinham acontecido nos últimos dias:
a crucificação de Jesus e o túmulo que as mulheres encontraram vazio.
Jesus, sem que eles o reconheçam, junta-se ao passeio e à conversa e diz-
-lhes (24:25):

õ stulti et tardi corde ad credendum in omnibus quae locütisuntprophe­


tae! nõnne haec oportuit pati Christum et ita intrãre ingloriam suam?

Notem o uso do gerúndio com acusativo: ad credendum. E relem­


brem o facto de o verbo loquor ser depoente, pelo que locuti sunt significa
«disseram».

Vejamos a tradução*.

«Ó estultos e lentos de coração para crer em todas as coisas que os


profetas disseram! Não era necessário que o Cristo sofresse estas coisas
e assim entrar na sua glória?»

Na interrogação direta, temos a salientar em primeiro lugar a palavra


que a introduz, nõnne. Trata-se de uma partícula interrogativa que pres­
supõe uma resposta afirmativa. Se pressupusesse uma resposta negativa,
seria num (ver NGL, p. 344).
Em segundo lugar, notemos a forma oportuit, perfeito do verbo
impessoal oportet («é necessário»), que se constrói com oração infi­
nitiva (NGL, p. 356). Assim, Christum está em acusativo por ser o
158 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

sujeito da oração infinitiva (cujo predicado é pati, infinitivo de patior,


«sofrer»):

õ stulti et tardi corde ad credendum in omnibus quae locüti sunt prophe­


tae! nõnne haec oportuit pati CHRISTVM et ita intrãre in gloriam suam?
Lição n.° 26

Uma das mais belas passagens da literatura universal que, para estu­
dantes da língua latina, tem o valor acrescido de oferecer um treino útil
do indicativo futuro perfeito (e do conjuntivo, também) é o famoso voo
poético de São Paulo na l.a Carta aos Coríntios (capítulo 13).
Ninguém consegue ficar indiferente a esta maravilha:

«Se nas línguas dos homens e dos anjos eu falar, mas caridade não
tiver, tornei-me bronze ecoante ou címbalo ruidoso. £ se eu tiver pro­
fecia e souber todos os mistérios e todo o conhecimento; e se tiver
toda a fé a ponto de mover montanhas, mas caridade não tiver, nada
sou.»

Vejamos em latim - e reparem nas formas verbais destacadas em


maiúsculas:

si linguis hominum LOQVAR, et angelorum câritãtem autem nõn


HABEAM, factus sum uelut aes sonãns aut cymbalum tinniens; et si
HABVERÕ prophetiam etNÕVERIM mysteria omnia et omnem scientiam,
et HABVERÕ omnem fidem ita ut montes TRANSFERAM, caritatem
autem nõn HABVERÕ, nihil sum.

loquar... habeam: conjuntivo presente


habuerõ: indicativo futuro perfeito
160 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

nõuerim: conjuntivo perfeito (do verbo nõscõ, nõscere, nõui, nõtum,


«conhecer»)10
transferam: conjuntivo presente de trãnsferõ.

Sobre o substantivo que significa «bronze» (aes, aeris), ver a p. 56,


n. 13, da NGL.
A continuação da passagem de Paulo traz-nos uma curiosidade na
comparação da versão latina com o original grego. Vejamos primeiro em
português a frase da Vulgata:

«£ se eu distribuir em alimentos dos pobres todas as minhas facul­


dades e se entregar o meu corpo para que eu arda, mas não tiver caridade,
de nada me serve.»

Em latim:

et st distribuero in cibõs pauperum omnêsfacultãtês meãs etsi tradidero


corpus meum ut ãrdeam, cãritãtem autem nõn habuero, nihil mihi prodest.

No entanto, o sentido da frase grega é diferente:

«E se eu transformar em comida todos os meus bens e se eu entregar


o meu corpo para que me vanglorie, mas amor não tenho, de nada eu
sirvo.»

Como veem, as diferenças são subtis, mas expressivas. Acima de tudo,


é claro, há a sublinhar a diferença - que já se nota na passagem inicial - de
a palavra grega para «amor» (άγάπη) ser traduzida por cãritãs.
Na verdade, a palavra latina amor quase não ocorre no Novo Testa­
mento em latim. Por extraordinário que isso possa parecer, existem

10A estranheza do indicativo futuro perfeito misturado com o conjuntivo perfeito nesta frase é
explicada por K. Sidwell como elemento que antecipa a maior liberdade no uso do conjuntivo
no latim medieval (Reading Medieval Latin, Cambridge, 1995, pp. 371-372).
LiçAo N.° 26 161

somente duas ocorrências de amor (l Pedro 1:22; 2 Pedro 1:7). Isso


poderia sugerir que amor seria visto, em contexto cristão, como equiva­
lente da palavra grega para «amor sensual», erõs (έρως), que de facto
nunca ocorre no Novo Testamento grego.
No entanto, temos o testemunho de Santo Agostinho do contrário:
na visão deste pensador cristão, é um erro afirmar que amor tem só cono­
tações negativas e que dilectiõ («estima») tem somente conotações
positivas. Vejamos a fascinante passagem da Cidade de Deus (14.7) em
que Agostinho aborda este assunto e afirma que, sendo embora cãritãs
o termo mais usado nas Escrituras, amor também se encontra na Bíblia.
Já vimos que a palavra latina amor ocorre somente duas vezes no
Novo T estamento (e nunca na boca deJesus). Por sua vez, o verbo amãre
ocorre nas seguintes passagens dos Evangelhos:

Mateus 6:5 (Jesus fala nos hipócritas que «amam» estar de pé a


rezar nas sinagogas)
Mateus 10:37 (qui amat patrem aut mãtrem plüs quam mê nõn estmé
dignus; et qui amatfilium autfiliam super mê nõn est mê dignus)
Mateus 23:6 (Jesus fala sobre escribas e fariseus, que «amam» os
primeiros lugares nas ceias: amant autem primos recubitõs in cênis)
Lucas 20:46 (de novo os escribas qui amant salütãtiõnês inforõ)
João 11:3,36 (aqui fala-se de Jesus que «ama» Lázaro)
João 12:25 (Jesus diz qui amat animam suam perdet eam)
João 16:27 (Jesus diz ipse enim Pater amat uõs quia uõs mê amãstis)
João 20:2 (o evangelista refere o discípulo quem amãbat lêsus)
João 21:15,16,17.

Esta última passagem do Evangelho de João vale a pena ser citada


por extenso, também porque Agostinho a cita no livro referido da Cidade
de Deus. Vejamos, pois, João 21:15-17, que nos traz uma conversa de
terminologia enigmática entre Jesus e Pedro, com a oscilação entre dili­
gere («estimar») e amãre (e também os termos «anhos» e «ovelhas»
para os cristãos).
162 Latim do Z ero λ V erg Ilio em SO L içõ e s

cum ergõprandissent, dicit Simõni Petrõ Iésus:« Simõn Iõhannis, diligis


mêplús his?» dicit ei: «Domine, tü scis quia amõ té», dicit ei: «pasce agnõs
meõs». dicit ei iterum: «Simõn Iõhannis, diligis mê?» ait illi etiam:
«Domine, tü scis quia amõ té», dicit ei: «pasce agnõs meõs». dicit ei tertiõ:
«amãs mê?» et dicit ei: «Domine, tü omnia scis; tü scis quia amõ té», dicit
ei: «pasce ouês meas».

Ora, Agostinho cita esta passagem, para propor duas idéias interes­
santes. Primeiro, exprime o que lhe diz a sua sensibilidade enquanto
falante de latim: que não existe diferença de sentido entre diligõ e amõ:

cum dicébatDominus «diligis mê» nihil aliud dicêbat quam « amãs mê».

£m segundo lugar, comenta o seguinte (e vejamos primeiro em por­


tuguês as palavras de Agostinho):

«Por este motivo pensei que isto deve ser lembrado, porque alguns
pensam ser uma coisa “estima” ou “caridade”; outra coisa, “amor”. Dizem
pois que “estima” deve ser entendida em <sentido> positivo, “amor” em
<sentido> negativo... mas foi necessário dar a conhecer que as escrituras
da nossa religião, cuja autoridade antepomos a todas as outras literaturas,
não dizem ser “amor” uma coisa, outra coisa “estima” ou “caridade”. Pois
demonstrámos que também amor é dito em sentido positivo.»

Em latim:

hocproptereã COMMEMORANDVM putãui, quia nõnnülli arbitran­


tur aliud esse dilectionem siue cãritãtem, aliud amõrem. dicunt enim dilec­
tionem accipiendam esse in bonõ, amõrem in malõ... sed scriptürãs religionis
nostrae, quãrum auctoritatem cêteris omnibus litteris anteponimus, nõn aliud
dicere amõrem, aliud dilectionem uel cãritãtem INSINVANDVMfuit. nam
et amõrem in bonõ dici iam ostendimus.
L içã o n.° 26 163

Nesta passagem de Agostinho encontrámos uma forma verbal que


nos cumpre agora conhecer, depois de termos conhecido o gerúndio na
lição anterior. Trata-se do gerundivo (em maiúsculas).
Ora, o gerundivo é a forma adjetival do gerúndio (ver NGL, pp. 143-
-144). A sua principal função é exprimir obrigatoriedade.
Na frase hoc proptereã COMMEMORANDVM <esse>putâui, temos
na forma commemorandum <esse> o chamado «infinitivo perifrástico
passivo», termo que não vos deve preocupar agora. O sentido é «deve
ser lembrado».
£m insinuandumfiiit, a tradução é «foi necessário dar a conhecer».
Encontram uma explicação mais pormenorizada do gerundivo e suas
utilizações nas pp. 143-144 e 359-363 da NGL.
Lição n.° 27

O episódio da mulher adúltera é, para muitas pessoas, a pedra de


toque da nova mensagem trazida há 2000 anos por Jesus.
Cristo não condena à morte, segundo a lei judaica, a mulher adúl­
tera; e dá como óbvio que ninguém à face da terra (tirando ele próprio,
diremos nós) está livre de erros (para usar o termo grego), pecados (em
latim) - ou seja qual for o termo que queiramos usar.
Qiiando eu era jovem católico - e, à maneira típica dos jovens cató­
licos, um bocado preguiçoso para me pôr a ler o Novo Testamento de
forma concentrada -, parti sempre do princípio de que o episódio da
mulher adúltera era contado por Mateus, Marcos, Lucas e João. Mais
tarde, quando comecei a interessar-me pela leitura mais séria do Novo
Testamento, dei-me conta de que só ocorre no Evangelho de João.
Mais tarde ainda, quando tomei a decisão de traduzir os Evangelhos,
percebi algo que me intrigou bastante: o episódio da mulher adúltera está
ausente de imensos manuscritos que nos transmitem o Evangelho de
João, desde logo os mais antigos, os codicés Sinaiticus e Vaticanus, que são
os primeiros textos completos de qualquer livro do Novo Testamento
(ambos foram copiados no século iv, provavelmente sob o mecenato do
imperador Constantino).
Ora, o primeiro manuscrito que nos dá a ler o episódio da mulher
adúltera é da passagem do século iv para o século v: é o Codex Bezae, que
tem o encanto adicional de ser um manuscrito bilingue. De um lado está
o texto grego; do outro, o latino (este, numa versão anterior à Vulgata
dejerónimo).
L içã o n .° 27 165

Este manuscrito preciosíssimo pertence desde o final do século xvi


à Universidade de Cambridge e está na biblioteca onde eu passei tanto
tempo, entre 1996 e 1998, a estudar para a minha tese de doutoramento.
Nessa altura, embora eu já lesse «só para mim» os Evangelhos em grego,
estava muito longe de me interessar pelos primeiros manuscritos da
Bíblia. Hoje tenho pena de não ter aproveitado, nas várias idas a Cam­
bridge, para ver o Codex Bezae com os meus próprios olhos. Mas, em
compensação, ele agora pode ser lido online, numa excelente digitaliza­
ção. Posso estar horas no computador a olhar para a primeira versão
escrita da mulher adúltera - a aumentar a letra, a ver todos os pormeno­
res - sem que ninguém me venha dizer que está na hora de me ir embora.
No Codex Bezae, a narração em latim sobre a mulher adúltera começa
assim:

ADD UCUNTAUTEMSCRIBAEETPHARISAEL

Pois. Na Antiguidade Clássica e Tardia, escrevia-se assim, em letras


maiúsculas, sem separação de palavras. Vejamos o mesmo com separação
de palavras:

ADDUCUNT AUTEM SCRIBAE ETPHAR1SAEL

(Como veem, já se usava a letra «U».)

A tradução:

«Trazem, pois, os escribas e os fariseus...»

IN PECCATO MULIERE MULIEREM CONPRAEHENSAM.


«Em pecado uma mulher mulher [sie] apanhada.»

Reparem como o copista se enganou e escreveu «mulher» duas


vezes: primeiro escreveu erradamente em ablativo (muliere) e depois
corretamente em acusativo (mulierem).
166 Latim d o Z ero λ V e r g ílio em 50 L içõ e s

Outra coisa muito interessante: não é esta a redação da frase que


lemos na Vulgata. Este Codex Bezae (como eu disse, a primeira versão
conhecida do episódio da mulher adúltera) diz in peccatõ mulierem
conpraehensam; na Vulgata, lemos mulierem in adulterio deprehensam.
Há várias pequenas diferenças entre esta tradução latina mais antiga
e aquela que ficaria como canônica na Igreja Católica. Talvez a diferença
mais curiosa seja quando Jesus diz à mulher que não a condena: na Vul­
gata, lemos nec egõ tê condemnãbõ («Nem eu te condenarei»). Mas, no
Codex Bezae, Jesus usa o presente, «Nem eu te condeno»: nec egõ tê
condemnõ.
Diga-se, de passagem, que a frase original em grego se prestaria a
ambigüidade, escrita (como se fazia nesta época) em letras maiúsculas e
sem acentos. O presente condemnõ é κατακρίνω e o futuro condemnãbõ
é κατακρίνω. Mas na Antiguidade as formas era homógrafas: ΚΑΤΑ­
ΚΡΙΝΩ.
No entanto, há um pormenor, que apoia a ideia do indicativo pre­
sente, na página correspondente do Codex Bezae com o texto em grego.
É que os helenistas mais picuinhas nestas coisas saberão que o iota de
κρίνω no presente é longo (krinõ), ao passo que é breve no futuro (κρίνω
[krínõ]). A ortografia curiosa da frase de Jesus «Nem eu te condeno»
no texto grego do Codex Bezae parece dar a entender que se quis vincar
o facto de o iota ser longo, grafando-o como o ditongo -ei-:

ΟΤΔΕ ΕΓΩ CE ΚΑΤΑΚΡΕΙΝΩ (= ούδέ έγώ ce κατακρίνω).


«Nem eu te condeno.»

É preciso ressalvar, contudo, que o -ei- pode ser apenas erro de orto­
grafia: no século IV, o antigo ditongo grego ei já era pronunciado i há
mais anos do que aqueles que nos separam do nascimento de Luís de
Camões.
Leiamos, agora, todo o episódio da mulher adúltera: primeiro, na
sua versão escrita mais antiga (Codex Bezae); depois, na sua versão canô­
nica (Vulgata).
LiçAo N.° 27 167

palam: «às claras»


êrigõ, êrigere, êrêxi, èréctum: «levantar-se»
aproveite-se para rever eõ, ire (NGL, p. 197), cujos compostos se
entendem intuitivamente (como exire, «sair»)
e relembre-se o sentido de dücõ, «conduzir»
uti = ut. O sentido de uti omnès exire (Codex Bezae) é consecutivo
(e está a imitar o texto grego deste manuscrito, onde temos uma oração
consecutiva com infinitivo).

Mulher adúltera, Codex Bezae (João 8:3-11):

addücunt autem scribae etpharisaei in peccãtõ muliere [sic!] mulierem


conpraehensam et statuentes eam in mediõ dicunt illi, temptantes eum, sacer­
dotes, ut haberent accusare eum. «Magister, haec mulier conpraehensa est
palam in adulterio. Mõysès autem in lêgepraecepit tãlês lapidãre. Tü autem
nunc quid dicis?» IHS [abreviatura para Jesus] autem inclinatus digito suõ
scribebat in terram. Cum autem immanerent interrogantes, erexit sê et dixit
illis: « quis est sine peccãtõ uestrum prior super eam mittat lapidem», et
iterum inclinatus digito suõ scribebat in terram. Unus quisque autem
Iudaeõrum exiêbant, incipientes a presbyteris, uti omnes exire et remansit
sõlus. et mulier in mediõ cum esset, êngêns sê IHS dixit mulieri: «ubi sunt?
nímõ té condemnãuit?» a d [ - at] illa dixit illi: «nêmõ, Domine», ad ille
dixit: «nec egõ tê condemnõ. uãde et ex hõc iam nõlipeccare».

Em português:

«Então os escribas e fariseus trazem uma mulher apanhada em


pecado e, colocando-a no meio, dizem-lhe, tentando-o, os sacerdotes,
para que tivessem <com que> o acusar: “Mestre, esta mulher foi apa­
nhada às claras em adultério. Pois Moisés na Lei preceituou apedrejar
<mulheres> tais. Tu que dizes agora então?”Jesus, tendo-se inclinado,
escrevia com o seu dedo na terra. Como eles permanecessem interro-
gando<-o>, ergueu-se e disse-lhes: “Quem de vós está sem pecado
168 Latim do Z ero λ V ergílio em 50 Lições

primeiro atire sobre ela uma pedra.” £ tendo-se inclinado de novo, escre­
via com o seu dedo na terra. Cada um dos judeus saíam, começando
pelos presbíteros, a ponto de todos saírem e ele ficou só. £ como a
mulher <ainda ali> estava no meio, levantando-se Jesus disse à mulher:
“Onde estão? Ninguém te condenou?” Então ela disse-lhe: “Ninguém,
Senhor.” £ntão ele disse: “Nem eu te condeno. Vai e a partir de agora
não peques.”»

Vejamos agora o mesmo na versão da Vulgata (e note-se que o


advérbio deorsum significa «para baixo»):

adducunt autem scribae et Pharisaei mulierem in adulterio deprehensam


et statuerunt eam in mediô et dixerunt ei: «Magister, haec mulier modo
deprehensa est in adulterio. in lege autem Mõsès mandãuit nobis huiusmodi
lapidare, tü ergõ quid dicis?» haec autem dicebant temptantes eum, ut possent
accusare eum. Iêsus autem inclinans sê deorsum digito scribebat in terra, cum
autem perseuerãrent interrogantes eum, êrêxit se et dixit eis: «qui sine pecca-
tum est uestrumprimus in illam lapidem mittat», et iterum inclinans scribebat
in terrã. audientes autem ünuspost ünum exiêbant, incipientes a senioribus, et
remansit solus et mulier in mediõ stãns. êrigêns autem sê Iêsus dixit ei: «mulier,
ubi sunt? némõ té condemnãuit?» quae dixit: «nêmõ, Domine», dixit autem
Iêsus: «nec egõ té condemnabo, uäde et amplius iam nõlipeccãre».

Uma diferença curiosa entre as duas versões tem que ver com a des­
crição de Jesus a escrever na terra:

in terram (Codex Bezae - o acusativo sugere talvez a ideia do dedo


a penetrar mais fundo na terra)
in terrã (Vulgata).

Outra diferença expressiva é a formulação com que os fariseus dizem


«mulheres dessa laia». No Codex Bezae, tãlès («<mulheres> tais»); na
Vulgata, <mulierês> huiusmodi («<mulheres> dessa laia»).
L iç ã o n .° 27 169

Nas duas versões, encontrámos compostos do verbo maneõ, manêre,


mãnst, mãttsum (donde vem, em português, «permanecer»).
Sobre o uso do genitivo partitivo uestrum na frase qui sine peccãtum
est VESTRVM primus in illam lapidem mittat, ver NGL, p. 303. E o con-
juntivo mittat tem, claro, função jussitiva.
Lição n.° 28

O autor dos Atos dos Apóstolos (que escreveu também o Evangelho


de Lucas) foi claramente um admirador incondicional de São Paulo,
a ponto de estranharmos, até, o titulo que, mais tarde, foi dado à obra:
seria bem mais consentâneo com o conteúdo do livro o título Atos do
Apóstolo.
Paulo é o herói do livro atribuído a Lucas. Na verdade, para o autor
de Atos, Paulo é uma figura nada menos que heroica: autor de curas
milagrosas (16:16-18), de espantosos exorcismos (19:11-12) e dono de
poderes que lhe permitem falar ininterruptamente uma noite inteira ou
até ressuscitar um morto (20:7-12). Estes dons extraordinários nunca
são referidos (decerto por modéstia) nos textos assinados pelo próprio
Paulo.
Além destas informações sobre Paulo, estamos também dependen­
tes do livro de Atos para outras que não encontramos alhures. Assim, é
somente o livro de Atos a dizer-nos que Paulo era cidadão romano
(22:22-29) e que era natural da cidade de Tarso (22:3); só o livro de
Atos nos diz que ele se chamava Saulo antes de passar a ser conhecido
como Paulo; só o livro de Atos nos diz que ele estudou em Jerusalém
com Gamaliel (22:3) e que tinha a profissão de skénopoiós («fazedor de
tendas» [18:3]); só o livro de Atos nos fala da famosa «estrada» de
Damasco.
A estrada de Damasco é um momento de tal forma fulminante que
o autor de Atos sentiu necessidade de o narrar três vezes. Curiosamente,
não se deu conta de que contou a história de três maneiras diferentes.
L iç ã o n .° 28 171

1. Leiamos, em latim, a primeira narração (Atos 9:3-7), em que


Paulo está a caminho de Damasco quando de repente uma luz divina
brilha à sua volta. Ele cai ao chão (o cavalo do célebre quadro de Cara­
vaggio não é mencionado no Novo Testamento...) e ouve uma voz que
lhe pergunta: «Saulo, Saulo, porque me persegues?» Paulo diz: «Quem
és tu, Senhor?» A voz responde: «Sou Jesus, a quem tu persegues.
Levanta-te e entra na cidade; lá ser-te-á dito o que fazer.» Nesta primeira
versão, é referido que os acompanhantes de Paulo ficaram estupefactos,
porque ouviram a voz, embora não vissem ninguém. Repare-se que
Paulo, segundo o autor de Atos, não vêJesus.
O texto é o seguinte (atenção ao imperativo ingredere do verbo depoente
ingredior, ingredi, ingressus sum, «entrar»; e reparem também que a voz de
Jesus vinda do céu emprega corretamente o conjuntivo na interrogativa indi­
reta em oporteat; sobre a construção deste verbo, ver NGL, pp. 356-357):

Vocabulário:
contingo, contingere, contigi, contactum: aqui «acontecer» (mas tam­
bém «tocar», como sugere a palavra portuguesa «contacto», que vem
deste verbo)
fulgeõ,fulgère, fulsi: «brilhar» (aqui no composto circumfulgeo).

et cum iterfaceret, contigit ut adpropinquãret Damasco, et subitõ cir­


cumfulsit eum lúx dê caelõ. et cadèns in terram audiuit uõcem dicentem sibi:
«Saule, Saule, quid mêpersequeris?» qui dixit: «quis es, Domine?» et ille:
«ego sum Iêsus, quem tü persequeris, sed surge et ingredere duitatem et dice­
tur tibi quid tê oporteat facere», uiri autem illi qui comitãbantur cum eõ
stabant stupefacti, audientes quidem uõcem, neminem autem uidentês. sur-
rêxit autem Saulus dê terra; apertisque oculis nihil uidêbat. ad maniis autem
illum trahentes introduxerunt Damascum; et erat tribus diebus nõn uidêns.
et nõn mandücãuit neque bibit.

Aproveitemos a menção de que Saulo/Paulo ficou cego durante três


dias (erat tribus diébus nõn uidêns) para ver a declinação do numeral
172 Latim do Z ero a V ergílio em 50 L ições

biforme «três» em latim. Separo por « / » masculino + feminino e


neutro (só no nominativo e acusativo, pois nos outros casos as formas
são iguais):

nominativo : três / tria


acusativo: três /tria
genitivo : trium
dativo: tribus
ABLATIVO: tribus.

2. Na segunda versão da mesma história (Atos 22:5*29), a narração


é colocada pelo autor na boca do seu herói. Paulo afirma que estava a
caminho de Damasco e que, por volta do meio-dia (pormenor ausente
da primeira versão), brilhou uma luz do céu. Como na primeira versão,
Paulo cai ao chão e o diálogo com Jesus processa-se de modo análogo
ao que vimos na primeira versão. A grande diferença é que se diz, agora,
que os acompanhantes de Paulo não ouviram a voz. Vejamos o texto
(e notem os ablativos absolutos iniciais):

tunte mê et adproquinquante Damasco, media diê subitõ dê caelõ cir­


cumfulsit mê lüx copiõsa. et decidêns in terram audiui uõcem dicentem mihi:
«Saule, Saule, quid mê persequeris?» egõ autem respondi: «quis es,
Domine?» dixitque ad mê: «egõ sum lêsus Nazarénus, quem tü perseque­
ris». et qui mêcum erant lúmen quidem uidérunt, uõcem autem nõn audiêrunt
eius qui loquebãtur mêcum. et dixi: «quid f aciam, Domine?» Dominus
autem dixit ad mê: «surgêns uãde Damascum et ibi tibi dicêtur dê omnibus
quae tê oporteatfacere», et cum nõn uiderem prae clãritãte luminis illius, ad
manum dêductus a comitibus uêni Damascum.

3. Na terceira versão (Atos 26:12-17), o acontecimento passa-se de


novo ao meio-dia, mas há a explicitação de que a luz celestial era mais
forte do que a luz do Sol. Nesta versão, explicita-se também a língua em
que decorreu o diálogo entre Paulo e Jesus: hebraico. No entanto, este
LiçAo N.° 28 173

Jesus que fala supostamente em hebraico revela-se um excelente conhe­


cedor da literatura grega e latina, já que a expressão «pontapear contra
o aguilhão», que Cristo emprega, nada tem a ver com hebraico, sendo
antes uma frase grega que se encontra em Pindaro (Ode Pitica 2.94-95),
Ésquilo (Agamémnon 1624) e Euripides (Bacantes 795); e, em versão
latina, no comediógrafo Terêncio (Formião 1.2.27)11.
As palavras de Jesus são também menos lacônicas na terceira versão
do que fora o caso nas duas anteriores. É só na terceira versão que Jesus
diz expressamente a Paulo para pregar aos gentios. Vejamos a redação
mais apurada nesta terceira versão da estrada de Damasco (reparem, em
especial, no infinitivo perfeito circumfulsisse):

diè media in uiâ uidx dê caelõ suprã splendorem sõlis circumfulsisse mê


lümen et eõs qui mêcum simul erant omnêsque nõs cum decidissemus in ter­
ram, audiui uõcem loquentem mihi hebraica linguã: « Saule, Saule, quid mê
persequeris? dürum est tibi contra stimulum calcitrãre». egõ autem dixi:
«quis es, Domine?» Dominus autem dixit: «egõ sum Iésus, quem tüperse­
queris. sed exsurge et stã super pedês tuõs. ad hoc enim apparui tibi ut cons­
tituam tê ministrum et testem eõrum quae uidisti et eõrum quibus apparèbõ
tibi, êripiêns tê dê populõ et gentibus in quãs nunc ego mittõ tê».

Quanto às sequelas desta experiência extraordinária, a primeira e


a segunda versões da estrada de Damasco em Atos referem que Paulo
ficou temporariamente cego. Isso nunca é dito pelo próprio Paulo em
nenhum dos seus escritos; e também não é dito pelo autor de Atos
quando a história é contada pela terceira vez.
O episódio continua, na primeira versão (capítulo 9 de Atos), com o
relato da visão de Ananias, discípulo e habitante de Damasco. Nesta visão,
Jesus indica a Ananias que deve procurar Paulo. Este recupera a visão, é
batizado e começa logo a anunciar a boa-nova nas sinagogas de Damasco.

“ Cf. F.F. Bruce, The Acts of the Apostles: Greek Text with Introduction and Commentary, Grand
Rapids, 1990, p. SOI.
174 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Eis, no entanto, mais um problema: a ideia de Paulo a pregar nas


sinagogas também contradiz a imagem que Paulo dá de si próprio nos
seus escritos, onde é claro que ele se vê como apóstolo dos gentios. Aliás,
a própria palavra «sinagoga», que encontramos mais de 50 vezes no
Novo Testamento, apresenta a particularidade de nunca ocorrer nos
textos de... São Paulo.
(Atendendo a tudo isto, o cavalo de Caravaggio é uma invenção bem
inofensiva.)
Lição n.° 29

Numa passagem célebre da sua Epístola aos Pisões (mais tarde conhe­
cida como Arte Poética), Horácio dedica versos memoráveis ao maior
poeta da Antiguidade: Homero.
O que sobretudo encanta Horácio na arte de Homero é a intuição per­
feita com que o ponto certo da narrativa é escolhido. A história de Helena
não é contada a partir do «ovo gêmeo» do qual ela nasceu (sua mãe, Leda,
fora violada por Zeus sob a forma de um cisne; naturalmente, pôs um ovo);
nem o regresso de Diomedes é contado a partir da morte de Meleagro.
£m vez disso, o que Homero faz é avançar rapidamente até ao evento
marcante da narrativa, arrebatando assim o ouvinte para ações que já
vão a meio, como se o ouvinte já lhes conhecesse os antecedentes. Os
assuntos que Homero intui não brilharem poeticamente são deixados de
lado. £ a capacidade de invenção homérica é de tal ordem que «com
verdadeiras ele mistura coisas falsas», conseguindo assim o milagre que
é a impressão de coerência.
Vejamos primeiro, em português, estes versos fulcrais da Arfe Poética
( 148- 152):

«Sempre para o acontecimento <Homero> se apressa; e para ações


que já vão a meio,
como que conhecidas, arrebata o ouvinte; e os assuntos que
receia, <por ele> tratados, não poderem brilhar, abandona;
e de tal modo inventa que com verdadeiras mistura coisas falsas,
para que o meio do princípio, e o fim do meio, não destoe.»
176 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

Antes de lermos em latim, vejamos este vocabulário:

festino,festinare: «apressar-se»
rapiõ, rapere: «arrebatar», «raptar»
dêspêrõ, dèspêrãre: «perder a esperança», «desesperar»
nitéscõ, nitêscere: «brilhar»
mentior, mentiri: «mentir», «inventar»
imus, ima, imum: «fundo», «estremo», «último».

Eis, então, os versos 148-152 em latim (e expliquemos, já agora, que


no V . 149 a expressão nõn secus ac tem o sentido «como que»):

semper ad èuentumfestinat et in mediäs rés


nõn secus ac nõtãs auditorem rapit, et quae
déspêrat tractãta nitêscere posse relinquit,
atque ita mentitur, sic utrisfalsa remiscet,
primõ nê medium, mediõ ne discrepet imum.

Foquemos in mediãs rés: a expressão está no plural e em acusatívo,


porque implica a ideia de movimento. O verbo que suscita a expressão é
rapit («arrebata»), porque «raptar» e «arrebatar» são verbos cuja ação
sugere de imediato movimento. Para onde é que Homero rapta o
ouvinte? Para «ações médias», isto é, para «ações que vão a meio». Não
é fácil encontrar uma tradução portuguesa (ou inglesa ou francesa) para
in mediäs rés e, por isso, há o costume internacional de citar estas palavras
em latim.
Em termos de estrutura, note-se o conjuntivo discrepet (do verbo
discrepõ, discrepáre, «destoar») dependente de nê («para que não»).
Trata-se de uma oração final negativa (ver NGL, pp. 326-328).
Na parte da Arte Poética em que Horácio faz este elogio extraordi­
nário de Homero, encontramos, à guisa de introdução, o verso cortante
com que ele descreve o poeta medíocre, convencido da sua genialidade,
que promete um poema ambicioso.
L iç ã o n .° 29 177

«Que <poema> digno de tal bazófia trará <à luz> este promete­
dor?», pergunta Horácio. «Os montes parirão; nascerá um ridículo rato.»
Vejamos em latim (note-se que hiatus, por implicar a imagem de
alguém de boca aberta, significa aqui «bazófia»):

quid dignum tantõferet hic promissor hiãtú?


parturient montes, nascetur ridiculus müs.

Quão diferente é Homero (exclama Horácio)! Porque Homero


«não tenciona <dar> fumo a partir de fulgor, mas dar luz a partir de
fumo, para que daqui faça aflorar deslumbrantes prodígios». Em latim:

nõnfümum exfulgore, sed exfümõ dare lücem


cõgitat, ut speciõsa dehinc mirãcula prõmat.

Note-se que traduzi o conjuntivoprõmaí por «faça aflorar». O verbo


em causa éprõmõ, prõmere,prõmpsi,prõmptum («fazer sair», «manifes­
tar»), donde vem uma palavra que usamos todos os dias em português:
«pronto».
Há pessoas que, em vez de «pronto», dizem «prontos»; e outras
dizem agramaticalidades ainda maiores quando tentam citar a expressão
horaciana in mediãs rés. Não têm culpa; a culpa é do sistema educativo
que privou portuguesas e portugueses de uma base sólida em latim. No
ramalhete de cravos vermelhos com que eu celebro o 25 de Abril, não
posso esconder que há um cravo negro a simbolizar o luto pelas reformas
educativas que arrancaram, à árvore do ensino do português, as suas
raízes: o estudo da língua latina.
Mas fiquemos com algo de mais alegre, que é a beleza do latim de
Horácio. E leiamos mais uma vez a passagem sobre Homero, primeiro
em português e depois no original:

«Nem o regresso de Diomedes desde a morte de Meleagro,


nem a guerra troiana ele estrutura a partir do gêmeo ovo.
178 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

Sempre para o acontecimento se apressa; e para ações que já vão a


meio,
como que conhecidas, rapta o ouvinte: e os assuntos que,
<por ele> tratados, ele receia não poderem brilhar ele abandona;
e de tal modo inventa que com verdadeiras mistura coisas falsas,
para que o meio do principio, e o fim do meio, não destoe.»

nec reditum Diomêdis ab interitü Meleagri


nec geminõ bellum Trõiãnum orditur ab õuõ.
semper ad êuentumfestinat et in mediãs rês
nõn secus ac nõtãs auditorem rapit, et quae
dêspêrat tractãta nitescere posse relinquit,
atque ita mentitur, sic uèrisfalsa remiscet,
primõ ne medium, mediõ ne discrepet imum.
Lição n.° 30

No século I a.C., um poeta de Verona que estava a viyer em Roma


escreveu, talvez por volta do ano 55 a.C., um poema que, a despeito da
sua aparência simples, é tão complexo que, até hoje, ninguém sabe o que,
nestes dez versos, Catulo quis dizer.
A primeira palavra do poema é passer, donde vem a palavra portu­
guesa «pássaro». Qualquer falante de língua portuguesa que leia o
poema 2 de Catulo tem, pelo menos na primeira palavra, um vocábulo
isento de dificuldade. No mesmo verso inicial do poema surge a palavra
puella, cujo sentido, pelo contexto, é mais «namorada» do que
«menina». O poeta tem uma namorada (não nomeada no poema) e a
namorada tem um pássaro. Simples. Ou não?
No final do século xv, o humanista Angelo Poliziano lançou uma
controvérsia que dura até hoje, ao sugerir que o pássaro de Catulo não
é, na verdade, um pássaro: é uma metáfora obscena. De forma irritante,
tendo lançado a bomba, Poliziano afirmou que, por motivos de castidade
e de modéstia, não podia explicar o que era a metáfora obscena. Coube,
mais tarde, ao holandês Isaac Vossius, no século x v i i , explicitar o que
Poliziano se negara a dizer: o pássaro não é um pássaro; é um pênis.
Segundo esta interpretação, o que o poeta está a dizer no poema é o
seguinte: o «pássaro» que faz as delicias da sua namorada é algo que,
separado da namorada, não faz as delícias do poeta. Os versos finais do
poema são a chave da interpretação. £m português, lemos:

«Pudesse eu, como ela, brincar contigo


e aliviar os tristes cuidados do meu espírito!»
180 Latim do Zbro a Vergílio em 50 Lições

Segundo a interpretação obscena, a namorada sente felicidade a


brincar com o «pássaro», porque, para ela poder brincar com o «pás­
saro», o namorado tem de estar presente. O namorado, por outro lado,
não consegue aliviar as saudades da namorada brincando ele próprio com
o «pássaro». A masturbação, por outras palavras, não substitui o prazer
do sexo a dois.
O poema é uma criação extraordinária, mas é um texto difícil a vários
níveis. O estado em que ele chegou até nós poderá não corresponder à
redação exata de Catulo, já que todos os manuscritos que temos de
Catulo descendem de um só, que, tendo sido encontrado por acaso no
século XIV, foi copiado - e perdeu-se logo de seguida. Com a sua poesia
bissexual ao mesmo tempo cheia de obscenidade e de rococó, Catulo
não foi um autor lido na Idade Média. Por conseguinte, o facto de o seu
texto ter chegado a nós através de cópias de um manuscrito muito tardio
levanta numerosos problemas no que toca à sua fixação.
Leiamos o poema, primeiro em português (e notem o retardo a que
é sujeita a forma verbal «costuma» no v. 4, espelhando o latim), e depois
em latim:

«Pássaro, delícia da minha namorada,


com quem brincar, a quem no peito reter,
a quem, quando ele ataca, dar a ponta do dedo
e incitar a acres mordidelas ela costuma,
quando à que brilha por causa do meu desejo
apraz brincar com algo de querido
(como pequeno consolo da sua dor,
julgo), quando o grave ardor acalma:
pudesse eu, como ela, brincar contigo
e aliviar os tristes cuidados do espírito!»

passer, deliciae meae puellae,


quicum ludere, quem in sinu tenere,
cui primum digitum dare appetenti
LiçAo N.° 30 181

et ãcris solet incitare morsus,


cum desiderio meõ nitenti
cãrum nescio quid lubet iocãri
(ut solaciolum sui doloris,
crêdõ), cum grauis acquiescit ardori
têcum lüdere sicut ipsa possem
et tristis animi leuãre cüràs!

O requinte deste poema nota-se no jogo de aparências e de ambi­


güidades que é materializado não só na sua semântica, como também na
sua gramática. Vejamos só os casos que podem causar mais dificuldade:

passer e deliciae: vocativo


meae puellae: genitivo
cui... appetenti: dativo (refere-se ao pássaro); appetenti é o participio
presente em dativo do verbo appetõ, donde vem a palavra portuguesa
«apetite»; o pássaro tem apetite pelo dedo da namorada do poeta, e por
isso ela incita-o a dar «acres mordidelas»
ãcris... morsús: acusativo do plural
cum... cum: «quando... quando»
dêsideriõ meõ: ablativo («por causa do meu desejo», ou seja, «por
causa do desejo dela por mim»; atenção ao facto de não depender de
cum, porque cum é aqui conjunção temporal)
nitenti: dativo (depende de lubet [«apraz»] e refere-se à namorada;
trata-se do participio do verbo depoente nitor, que significa «brilhar»;
Catulo está aqui a imitar uma expressão de Anacreonte [fr. 444], «bri­
lhando de desejo» [πόθωι οτίλβων ])
tristis... cürãs: acusativo do plural.

Vejamos agora mais em pormenor os primeiros quatro versos;

passer, deliciae meae puellae,


quicum lüdere, quem in sinü tenere,
182 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

cui primum digitum dare appetenti


et ãcris SOLET incitãre morsus...

Note-se, em primeiro lugar, o aspeto ao qual já aludi: o extraordiná­


rio retardo que constitui a posição de solet (em maiúsculas), do verbo
soleõ, solêre, solui, solitum, que significa «costumar». Em português dize­
mos, por isso, «insólito» de algo que não é habitual.
Note-se, ainda, que sinus, sinús significa «colo». Portanto, à invoca­
ção ao pássaro segue-se a descrição do comportamento habitual da
namorada com ele: ela costuma mantê-lo no colo, brincando com ele;
costuma dar ao pássaro «cheio de apetite» a ponta do dedo e incitá-lo
a acres mordidelas (bem interpretadas por André Simões e José Pedro
Moreira, na tradução que publicaram de Catulo na editora Cotovia,
como «valentes bicadas»).
Ora, qual é a situação habitual em que esta cena acontece? A resposta
só vem no V . 8: cum grauis acquiescit ãrdor («quando o grave ardor
acalma»). A frase pode ser interpretada de várias maneiras (e é uma das
frases em que a incerteza textual é maior: sigo o texto estabelecido por
James Diggle, no artigo que cito no final).
A interpretação mais lógica, para mim, é que o «grave ardor» se
refere às maratonas sexuais vividas pelo poeta e pela namorada. Assim,
quando o namorado não está, o grave ardor acalma; e a namorada outra
opção não tem do que brincar com o pássaro.
(Claro que isto levanta outra linha de leitura possível. O pássaro, se
não for pássaro, poderia ser um dildo, objeto de que não havia falta na
Antiguidade Clássica; cf. Aristófanes, Lisístrata 158. No entanto, o
poema 3, que lamenta a morte do pássaro, para ser lido em clave alegó­
rica, implica que o pássaro morreu de exaustão, ou seja, que o pênis do
poeta já não aguenta mais sexo com a namorada.)
Ao poeta não assiste o «pequeno consolo» do pássaro (em latim,
sõlãciolum). Se o pássaro for de facto o pênis, o poeta está na posição em
que mais tarde se encontrarão as amigas de Joey na série Friends, que
para grande surpresa de Joey (homem obcecado com seios femininos)
L iç ã o N.° 30 183

não acham excitantes as suas próprias mamas. Certo é que o poeta - seja
o pássaro o seu próprio pênis, um dildo, ou somente um pássaro - está
sujeito a preocupações tristes (tristis... cürãs) insuscetíveis de alívio.
Por isso, a melhor interpretação deste fascinante poema está, para
mim, na seguinte frase de James Diggle: «In expressing the wish that he
might play with the bird himself and enjoy from that play the same con­
solation which Lesbia enjoys, he seemingly commends the therapy which
the bird provides. But in picturing the bird as her substitute lover, he
allows us to see that he is jealous of the bird for enjoying her favours, and
perhaps a little disappointed with Lesbia that she can be so readily con­
soled» (James Diggle, «On the Text of Catullus», Materiali e discussioni
per Vanalisi dei testi classici 57 [2006], pp. 85-88).

Outra bibliografia importante:

1. sobre a história da interpretação do pássaro como pênis, cf.Julian


W. Jones, Jr. «Catullus* ‘Passer as ‘Passer», Greece and Rome 45 (1998),
pp. 188-194;
2. sobre os problemas textuais do poema, além do artigo do Prof.
Diggle recomendo Robin Nisbet, «Notes on the Text of Catullus», Pro­
ceedings of the Cambridge Philological Society 24 (1978), pp. 92-115.
Lição n.° 31

Qual é a natureza do divino? £xiste um Ente ou entes no plano


celeste que se preocupa(m) com a vida humana na terra? O divino é
indiferente ao humano - ou intervém ativamente na vida de mulheres
e homens?
Estas interrogações são de todos os tempos e, não obstante as várias
religiões que se impuseram no mundo (sendo hoje o cristianismo, o isla-
mismo e o hinduísmo as mais representadas numericamente), não estão
resolvidas e arrumadas. E o grande problema que subjaz à dificuldade de
encontrarmos uma resposta é o facto de nós próprios não sermos deuses,
mas sim seres humanos. Muitos de nós seguimos uma religião que afirma
ter sido o homem criado à semelhança de Deus; outros de nós ficamos
a pensar até que ponto esse Deus não terá sido criado à semelhança do
homem: porque o único lugar vagamente objetivo onde talvez Ele exista
é a mente humana.
Seja como for, estas questões ocuparam Gregos e Romanos, povos
a quem devemos a nossa tradição ocidental do pensamento filosófico.
No século vi a.C., um filósofo grego chamado Xenófanes teve a intuição
brilhante de que, se os bois tivessem deuses, esses deuses seriam imagi­
nados como bois divinos. Protágoras afirmou famosamente que o
homem é a medida de todas as coisas: na verdade, pensar fora da caixa
que é a mente humana não está ao alcance do ser humano.
Em Roma, Cícero dedicou-se à análise desta problemática na sua
obra Dê nãtürã deõrum. Um contemporâneo seu, cujo talento poético
Cícero admirou, dedicou-se também a esta reflexão, num longo poema
LiçAo N.° 31 185

em seis livros chamado Dê rêrum nãtürã. O posicionamento conceptual


de ambos não foi coincidente - mas como poderia ser, tratando-se de
um tema com estes contornos? Cícero afirma que se subtrairmos a reli­
gião à vida humana, perturbãtiõ uitae sequitur et magna cõnfúsiõ (cf. Dê
nãtürã àeõrum 1.2). Para Lucrécio, pelo contrário, subtrair à vida humana
os grilhões da religião é a única forma de o homem encontrar a felicidade.
Curiosamente, Lucrécio não nega a existência dos deuses: nega
somente que a religião exprima o plano divino e que a sua prática o
influencie. Na visão de Lucrécio, os deuses existem, mas nem se interes­
sam por nós, nem ouvem as nossas preces, nem intervém de qualquer
forma que seja no mundo que vemos à nossa volta. Se Cícero precisou
de um longo tratado para tratar a questão da natureza dos deuses, Lucré­
cio sintetizou a sua própria posição em poucos versos (que começaremos
por ler em português, depois em latim):

«Pois é necessário que por si toda a natureza dos deuses


íhia de vida etema com paz suprema,
afastada das nossas coisas e separada para longe;
pois privada de toda a dor, privada de perigos,
ela própria forte com seus recursos, em nada de nós precisada,
nem é positivamente influenciada por ações <nossas> nem é atin­
gida pela ira.»

Em latim, estes versos (1.44-49) proporcionam uma excelente opor­


tunidade para estudar os usos do ablativo:

omnis enim per sê diuum nãtürã necesse est


immortãli aeuõ summã cum pãcefruãtur
sêmõta ab nostris rêbus seiunctaque longê;
nam priuãta dolõre omnt, priuãta periclis,
ipsa suis pollêns opibus, nihil indiga nostri,
nec bene promeritis capitur nec tangitur ira.
186 L a t im do Z ero λ V e r c íl io em SO L i ç õ e s

Notemos os seguintes aspetos gramaticais nos versos em latim:

diuum: genitivo do plural de diuus, «deus» (ver NGL, p. 86)


necesse est + conjuntivo (no caso,fruãtur)
immortãli aeuõ: em ablativo em virtude da construção com ablativo
do verbofruor (ver NGL, p. 314)
summã cum pãce = cum summãpãce (a colocação de cum no meio do
sintagma é habitual em poesia [e não só: cf. a expressão summã cum
laude])
dolõre omni., periclis: as palavras estão em ablativo por causa da cons­
trução do adjetivo priuãta (ver NGL, p. 315)
o mesmo se aplica a suis... opibus, dependente de pollens («pode­
roso», «forte»); note-se que opibus é o ablativo do plural de ops, opts
(«recurso»)
nostri: aqui o genitivo depende do adjetivo indiga (ver NGL, p. 307)
promeritis... irã: o ablativo justifica-se por estas palavras terem a fun­
ção de agente da passiva.

Para Lucrécio, quem libertou o ser humano da religião foi o grego


Epicuro, figura tutelar em Dê rêrum nãtürã por quem Lucrécio mostra
uma devoção intensa; tão intensa que até estranhamos, num poeta dis­
posto a prescindir da religião, a sua incapacidade de resistir ao apelo
daquele hero worship relativamente a sacerdotes, xamãs e gurus que
tantas vezes as religiões inspiram.
Estava, pois, a vida humana «vergonhosamente» presa pela religião
(escreve Lucrécio) quando veio um salvador anunciar que a religião é
um logro (1.62-67):

«Quando a vida humana jazia vergonhosamente ante os olhos <de


todos>
oprimida nas terras sob a pesada religião,
<religião > que mostrava a cabeça das regiões do céu
ameaçando os mortais com horrível aspeto,
Lição n .° 31 187

um homem grego, em primeiro lugar, <ousou> levantar contra <ela>


olhos mortais e ousou, primeiro, resistir contra <ela>.»

humãna ante oculõsfoedê cum uita iacêret


in terris oppressa graui sub rêligiõne,
quae caput ã caeli regionibus ostendebat
horribili super aspectü mortalibus instans,
primum Graius homõ mortãlis tollere contrã
est oculos ausus primusque obsistere contrã.

Registemos estes apontamentos:

foedê: advérbio («vergonhosamente»)


mortãlis... oculõs: separar o adjetivo do substantivo com que con­
corda é quase um ponto de honra na poesia latina
ausus: temos de subentender aqui est, pois audeõ é um verbo semi-
depoente (ver NGL, p. 213) e o tempo aqui usado é o indicativo perfeito.

Para muitos leitores de Lucrécio, a maior perplexidade está na


forma como este homem (que denuncia a religião como logro e afirma
que os deuses se estão alegremente marimbando para nós) inicia o seu
poema, com uma longa invocação à deusa Vénus, que não só é das pas­
sagens mais belas da poesia universal, como inspirou o famoso quadro
de Botticelli, O Nascimento de Vénus.
Leiamos os versos iniciais do poema de Lucrécio, saboreando
a beleza superlativa de cada palavra em latim (atenção ao retardo a que
é sujeita a forma verbal concelebrãs, «preenches»):

Aeneadum genetrix, hominum diuumque uoluptãs,


alma Venus, caeli subter lãbentia signa
quae mare nãuigerum, quae terrãsfrügijerentis
concelebrãs, per té quoniam genus omne animantum
concipitur uisitque exortum lumina sõlis:
188 Latim do Z ero a V ergílio em 50 L ições

tè, dea, tefugiunt uenti, tê nübila caeli


aduentumque tuum, tibi suãuis daedala tellús
summittitflõrès, tibi rident aequora ponti
plàcãtumque nitet diffuso lumine caelum.

«Dos Enéadas progenitora, dos homens e dos deuses prazer,


alma Vénus, que sob os signos deslizantes do céu
o mar navegável, que as terras portadoras de cereais
preenches, porque através de ti toda a raça de seres vivos
é concebida e vê, uma vez nascida, as luzes do Sol:
de ti, deusa, fogem os ventos; de ti <fogem> as nuvens do céu
e <fogem> da tua chegada; para ti a terra habilidosa
dá flores suaves; para ti sorriem as águas do mar
e o céu apaziguado brilha com luminosidade derramada.»
Lição n.° 32

Um argumento aduzido por Lucrécio contra a religião é que a sua


prática não leva necessariamente as mulheres e os homens a serem pes­
soas melhores. Na geração seguinte à de Lucrécio, Horácio põe na boca
do filósofo Estertínio uma observação que, levada às últimas conseqüên­
cias, nos conduziria à ideia de que a prática da religião é uma forma
de doença mental. Um interessante denominador comum entre ambas
as passagens é que alicerçam a argumentação num célebre episódio da
tragédia euripidiana: o sacrifício de Ifigênia, degolada em Áulide pelo
próprio pai, por exigência dos deuses.
Ora a passagem de Lucrécio dá-nos um excelente pretexto para filiar­
mos nos perfeitos redobrados latinos, porque justamente ao dizer que
«Muitas vezes a religião pariu atos criminosos e ímpios» (1.83), Lucré­
cio emprega um perfeito redobrado:

rêligiõ peperit scelerosa atque impiafacta.

A forma verbal peperit é o indicativo perfeito ativo de pariõ, parere,


peperi, partum, donde vem o nosso verbo português «parir» e o nosso
substantivo «parto».
O perfeito redobrado é sobretudo uma característica muito típica da
língua grega, mas também existe em latim. O redobro consiste na duplica­
ção da consoante inicial (uma vogal acontece de permeio, para possibilitar
a pronúncia). Os verbos que mais obviamente têm este tipo de perfeito
são os que significam «cantar», «correr», «morder», «parir» e «tocar»:
190 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

canõ, canere, cecini, cantum


currõ, currere, cucurri, cursum
mordeo, mordere, momordi, morsum
panõ, parere, peperi, partum
tango, tangere, tetigi, tactum.

(Para mais informações sobre estes perfeitos redobrados, ver NGL,


pp. 177-179.)

Voltando à passagem de Lucrécio, a afirmação de que muitas vezes


a religião «pariu» crimes é justificada do seguinte modo (1.84-86):

«Em Áulide por que pacto o altar da virgem Trivia


mancharam vergonhosamente com o sangue de Ifigênia
os líderes escolhidos dos Dânaos, primores de homens!»

Antes de vermos estes três versos em latim, há um aspeto a salientar


desde logo: o facto de o sujeito da frase surgir só no terceiro verso. Depois,
verificaremos que, nos versos em latim, se nos vai deparar a forma mais antiga
de genitivo do singular da l.a dedinação, em -ai (a forma que se imporá
depois será -ae). Sobre esse genitivo arcaico, ver NGL, pp. 75-76. E, já agora,
esses nomes próprios em que veremos a desinência arcaica são Triuia
(um nome da deusa Diana) e Iphianassa, nome alternativo para Ifigênia:

Aulide quõpactõ Triuiái uirginis aram


Iphianassãi turpãrunt sanguinefoede
ductores Danaum dilecti, prima uirõrum!

Note-se que ãra significa «altar»; foede (advérbio) significa «ver-


gonhosamente»; e prima é um neutro do plural, de sentido generalizante
e, neste caso, irônico: «primores de homens!»
Lucrécio continua a descrever a cena horripilante do sacrifício
humano: descreve a tristeza do pai; descreve como os sacerdotes
LiçAo N.° 32 191

escondiam (para Ifigênia não ver) a faca com a qual seria morta; e como
ela, muda de medo, se ajoelhou - ou, na expressão incrível de Lucrécio,
«procurava a terra com os joelhos»:

müta metü terram genibus summissa petêbat

O facto de ser filha nada lhe valeu diante do pai, seu assassino. Como
bem lembra Lucrécio, Ifigênia era a filha mais velha de Agamémnon; foi
o nascimento dela que fez de Agamémnon, que já era rei, algo de mais
humano: um pai. Por outras palavras, como o poeta diz, «ela, primeira,
presenteara o rei com nome paterno» (1.93-99):

«£ não podia à desgraçada valer em tal momento


que ela, primeira, presenteara o rei com nome paterno;
pois foi levantada pelas mãos de homens e, tremente, para os altares
foi levada, não para que, com costume solene dos ritos
cumprido, pudesse ser acompanhada em preclaro Himeneu,
mas para que incastamente casta, no próprio tempo de casar,
caísse como vítima triste por matança do pai.»

nec miserae prõdesse in tali tempore quibat,


quod patriõ princeps dõnãrat nõmine rigem;
nam sublata uirum manibus tremibundaque ad ãràs
diducta est, nõn ut sollemni more sacrorum
perfecto posset clãrõ comitari Hymenaeo,
sed casta incesti nubendi tempore in ipsõ
hostia concideret mactãtü maesta parentis.

Notemos os seguintes aspetos:

miserae: dativo
prõdesse: composto de sum (trata-se do verbo prõsum, com o sentido
de «ser útil»)
192 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

quibat: indicativo imperfeito de queõ («conseguir»): ver NGL, p. 199


princeps: refere-se a Ifigênia, porque foi ela a «primeira» a presen­
tear o pai com nome paterno
dõnãrat = dõnãuerat (mais-que-perfeito; para estas formas sincopa­
das no sistema do Perfectum [como o perfeito turpãrunt = turpãuèrunt,
que lemos na p. 190], ver NGL, pp. 176-177).
patnõ... nõmine: repare-se na separação entre adjetivo e substantivo
sublãta: subentender est: trata-se do indicativo perfeito passivo de
tollõ, tollere, sustuli, sublãtum («levantar», explicado na p. 197 da NGL)
uirum: genitivo do plural (ver NGL, p. 86)
sollemni mõre: para variar (!), temos o adjetivo junto do substantivo
(mõs, mõris significa «costume»)
casta incesti: isto é, «casta incastamente»; trata-se do recurso esti­
lístico chamado «figura etimológica» (a alternância vocálica «casta
incesté» constitui um caso de apofonia: ver NGL, pp. 375-376)
nübendi: gerúndio (vimos o gerúndio na Lição n.° 25).

Lucrécio remata esta descrição com o ponto a que pretende chegar:

tantum réligiõ potuit suadére malõrum!


«A tamanho <grau> de males pôde a religião convencer!»

Abordando, uns anos depois, a mesma situação sob outra perspetiva,


Horário propôs (por interposta pessoa: o que ouvimos, no poema em
causa, é o discurso reportado de um filósofo) que a religiosidade de
Agamémnon era, no fundo, um sintoma de doença mental.
A argumentação é curiosa: se um homem gostasse de cuidar de uma
linda cordeirinha, dando-lhe nome de menina («Rufa») e uma liteira
como transporte; se esse homem presenteasse o animal com escravas e
ouro; se tratasse de organizar as bodas da cordeira com um belo marido
- decerto seria tido como louco.
Assim sendo, um homem que trata a própria filha como cordeira,
que a leva para um altar como vítima sacrificial e a mata, integer est animi?
(«está íntegro de espírito?», isto é, está bom da cabeça?).
LiçAO N.° 32 193

Vejamos a ironia cortante na Sátira 2.3 (w. 214-220) de Horácio.

«Se alguém gostasse de transportar numa liteira uma bela cordeira


e a ela, como a uma filha, desse escravas, desse ouro,
e lhe chamasse Rufa ou Posila e a ilustre marido
a destinasse como mulher, a este interditado o pretor tiraria todo o poder
jurídico e a tutela passaria aos familiares sãos.
Então? Se alguém sacrifica a filha em vez de uma cordeira muda,
está bom da cabeça?»

si quis lecticã nitidam gestãre amet agnam,


huic uestem, ut gnatae, paret ancillas, paret aurum,
Rufam aut Posillam appelletfortique marito
destinet uxorem, interdicto huic omne adimat iüs
praetor et ad sãnõs abeat tütêla propinquos.
quid?si quis gnãtam prõ mutã dêuouet agnã
integer est animi?

Nos versos latinos, reparemos nos seguintes aspetos:

lecticã: ablativo («numa liteira»)


nitidam... agnam: separação de adjetivo e substantivo (nitidus neste
contexto significa «lindo»)
huic... gnãtae: dativo.

Atenção aos conjuntivos da frase condicional, em que temos con-


juntivo presente tanto nas orações de sí como nas orações principais.
Os conjuntivos dependentes de si são:

amet (de amõ, amãre)


paret (de parõ, parãre)
appellet (de apellõ, apellãre)
destinet (de destino, destinare).
194 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

Os da oração principal são:

adimat (de adimõ, adimere, «tirar», «subtrair»)


abeat (de abeõ, abire, composto de eõ, ire; ver NGL, pp. 197-199).

Na terminologia gramatical consagrada pela tradição (que continuo


a achar a melhor, pelo menos para ensinar grego e latim), a oração de si
é a prótase da frase condicional, sendo a oração principal a apódose. Isto
está explicado com os pormenores necessários a partir da p. 330 da NGL.
Lição n.° 33

Nas duas lições anteriores estivemos a considerar trechos de Lucré­


cio, poeta de influência esmagadora na geração seguinte, a ponto de
podermos dizer que a poesia de Vergilio, de Horácio e depois de Ovídio
não ostentaria a beleza fulgurante que todos lhe reconhecemos se não
tivesse haurido grande parte dessa beleza do manejo espantoso da língua
latina nas mãos desse gênio que foi Lucrécio. Quando consultamos um
comentário acadêmico a Vergilio, Horácio ou Ovídio, estamos sempre
a encontrar remissões para Lucrécio, de tal forma importantes são os elos
poéticos que ligaram a geração dos mais novos à do autor de Dê rêrum
nãtürã.
Esses elos são voluntários, porque Vergüio, Horácio e Ovídio estu­
daram afíncadamente o texto do poeta mais velho. Existe, no entanto,
um elo involuntário entre o poema de Lucrécio e outro grande texto da
Antiguidade (a meu ver, um dos maiores textos da Antiguidade): o Evan­
gelho de João. Que possa haver qualquer coincidência que seja entre o
texto do refutador da religião e o texto do mais divino de todos os livros
divinos constitui uma curiosidade que devemos saborear.
No Livro 1 do seu poema, Lucrécio reflete sobre a existência de algo
que não vemos, mas cuja ação sentimos: o vento. O facto de o vento ser
invisível está longe de implicar a sua inexistência (1.269-270,277-279).
A mesma ideia parece estar implícita na frase dita por Jesus a Nico-
demos (João 3:8), onde aproveito para chamar a atenção para os con-
juntivos ueniat e uãdat nas interrogativas indiretas dependentes de nõn
sãs («não sabes»):
196 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

spiritus ubi uult spirat et uõcem eius audis, sed nõn scis unde ueniat et
quõ uãdat.

A palavra latina spiritus tem o triplo sentido de «sopro», «vento»


e «espírito» (tal como a palavra correspondente no texto grego de João,
pneüma [πνεύμα]). Portanto as primeiras palavras da frase prestam-se a
três traduções diferentes:

«O sopro sopra onde quer.»


«O vento sopra onde quer.»
«O espírito sopra onde quer.»

O denominador comum entre «sopro», «vento» e «espírito» é a


sua invisibilidade: são «corpos», como diria Lucrécio, «que existem in
rêbus [ou seja, na realidade] mas não podem ser vistos» (1.269-270).
A questão da visibilidade/invisibilidade é fulcral na conversa entre
Jesus e Nicodemos. Antes de mais, porque a primeira coisa que Jesus diz
a Nicodemos é «A não ser que alguém tenha nascido de novo, não pode
VER o reino de Deus»:

nisi quis nâtusfuerit dênuõ nõn potest VIDÊRE rêgnum Dei.

(Comentemos só que o advérbio dênuõ, uma compressão de dê nouõ,


tem o problema de não salvaguardar o sentido duplo que é próprio do
advérbio correspondente na frase grega, ánõthen [άνωθεν], que significa
«do alto» e «de novo», jogo de palavras importantíssimo na passagem
grega do Evangelho e que se perde em latim.)

Na seqüência da conversa, Jesus recorrerá novamente ao verbo que


significa «ver» na frase «O que sabemos, dizemos; e o que vimos, tes­
temunhamos» (3:11):

quod scimus, loquimur; et quod uidimus, testãmur.


L iç ã o n .° 33 197

Na frase grega, a forma correspondente a uidimus está também no


perfeito: heõrâkamen (έωράκαμεν). Note-se que o perfeito em grego
pode ter sentido presente pelo facto de muitas vezes descrever o resul­
tado presente de uma ação passada. Esta nuance semântica do perfeito
indo-europeu leva a que, tanto em latim como em grego, haja verbos que
não têm presente e cujo perfeito é, na realidade, o presente. Isso acontece
em latim de forma muito clara nos verbos que significam «odiar» e
«recordar» (verNGL, pp. 205-206):

õdi («odeio»)
memini («recordo»).

Em grego, isto acontece no verbo que significa «saber», justamente


o verbo que é usado em João 3:11: «O que SABEMOS, dizemos.»
Estas subtilezas lingüísticas, cuja existência só o grego e o latim nos
podem mostrar, vão muito ao encontro do tema de que temos estado a
falar: de entidades que, apesar de invisíveis, pelo próprio freto de pode­
rem ser verbalizadas na fala humana adquirem realidade pelo menos
conceptual. E, nessa categoria, nenhuma entidade invisível galvaniza
mais a mente humana do que Deus, imediatamente mencionado por
Nicodemos na primeira frase que dirige a Jesus (3:2):

Rabbi, scimus quia ã Deõ uénisti magister. nêmõ enim potest haec signa
facere, quae tufacis, nisifuerit Deus cum eô.
«Rabbi, sabemos que vieste da parte de Deus <como> mestre. Pois
ninguém pode realizar estes sinais, que tu realizas, a não ser que Deus
esteja com ele.»

(Sobre a forma verbal fuerit, já encontrámos em lições anteriores


exemplos do indicativo futuro perfeito usado neste tipo de frase condi­
cional.)
198 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

Deus é, por definição, Algo que não se pode ver, como o próprio
evangelista afirma logo no primeiro capítulo do seu Evangelho (1:18;
Deum nêmõ uldit umquam, «ninguém jamais viu Deus»).
Acima, escrevi que o tema da invisibilidade/visibilidade é fulcral na
conversa entre Jesus e Nicodemos, mas trata-se no fundo de um tema
que está imbuído da mais significativa importância no Evangelho de João
no seu todo. No penúltimo capítulo do Evangelho, Jesus diz a Tomé
(20:29):

quia uidisti mê credidisti beãti qui nõn uidèrunt et crediderunt.

Voltando à frase dita por Jesus a Nicodemos (3:3):

nisi quis nãtusfuent dénuõ nõn potest uidêre régnum Del

É uma frase que, como escreveu o gigantesco Rudolf Bultmann, prín­


cipe entre os comentadores do Evangelho de João, arranca Nicodemos
à esfera do pensamento racional12. E, como é óbvio, arranca-nos a nós à
certeza (ou ilusão dela) que o pensamento racional nos proporciona,
obrigando-nos a ponderar a existência de realidades que não vemos.
A frase também nos arranca à esfera de outra certeza: a certeza de
que um fariseu, princeps Iudaeõrum, falaria com Jesus em aramaico. Na
verdade, há unanimidade entre os comentadores relativamente ao facto
de o jogo de palavras com o advérbio grego άνωθεν ser prova de que a
conversa nos está a ser relatada pelo evangelista como tendo tido lugar
em grego, pelo facto de tal jogo de palavras não ter correspondência em
aramaico/hebraico.
No entanto, a primeira palavra dita por Nicodemos (curioso o facto
de Nicodemos [Νικόδημος] ser um nome 100% grego...) é Rabbi, que
obviamente não é uma palavra grega. O uso de palavras como «Rabbi»
e «Messias» no Evangelho de João (e note-se que as duas únicas

12Das Evangelium des Johannes, p. 95.


L iç ã o n .° 33 199

ocorrências de «Messias» no Novo Testamento são neste Evangelho)


lembram um pouco a situação que mais tarde encontraremos na peça
Maria Stuart de Friedrich Schiller, em que as personagens britânicas
falam o tempo todo em alemão, mas salpicam o seu discurso com Sir
e Lady para conferir ao texto um perfumezinho inglês.
Seja como for, este fariseu de nome grego protagoniza, com Jesus,
uma das conversas mais extraordinárias de que há memória escrita. Tenho
pena de que este episódio do Evangelho de João não tenha inspirado os
grandes pintores: a representação mais bonita que conheço de Nicode-
mos é no quadro de Cima da Conegliano, que está na Academia de
Veneza, onde vemos Nicodemos segurando Jesus morto, com o evange­
lista João a olhar estarrecido para o Mestre que o amou. Uma maravilha.
Lição n.° 34

Na lição anterior, referimos o uso do indicativo futuro perfeito em


orações condicionais de sentido eventual. Como já sabemos, o indicativo
futuro perfeito apresenta a característica um pouco confusa de ser homó-
grafo relativamente ao conjuntivo perfeito, a não ser na l.a pessoa do
singular. Vejamos o caso de habeõ (que se aplica a todas as conjugações,
pois em latim a conjugação do sistema do Perfectum é sempre igual em
todos os verbos; leiam a partir da p. 172 na NGL). Separo o indicativo
futuro perfeito do conjuntivo perfeito por meio de « / »:

habuerõ / habuerim
habueris / habueris
habuerit/ habuerit
habuerimus / habuerimus
habueritis / habueritis
habuerint / habuerint.

Além da l.apessoa do singular, a única diferença que vemos é a quan­


tidade do «i» na desinência de algumas pessoas, mas mesmo essa dife­
rença é ilusória, uma vez que os próprios poetas romanos se enganavam
constantemente em relação a estas quantidades (ver NGL, p. 152),
às vezes no mesmo poema e até em versos contíguos, como é o caso da
Ode 7 do Livro 4 de Horácio, quando é dito a Torquato (4.7.21-24):
LiçAo N.° 34 201

«Uma vez que tiveres morrido e Minos a teu respeito


tiver feito esplêndidos julgamentos,
não a linhagem, ó Torquato, não a eloqüência,
não a piedade te restituirá.»

Em latim (e cuidado que se trata aqui do verbo occidõ [«morrer»]


e não do verbo occidõ [«matar»]):

cum semel occideris et dê tè splendida Minos


jêcerit arbitria,
nõn, Torquate, genus, nõn téfãcundia, nõn tê
restituet pietãs.

A métrica curiosa do poema (uma espécie de dístico elegíaco a que


falta metade do segundo verso) prova-nos que, embora fêcerit tenha a
quantidade certa no «i», occideris tem a quantidade errada. Isto é, par­
tindo do princípio de que é lícito falar aqui em certo e errado, já que os
maiores cultores da língua latina não viam a questão assim. É que não
estamos a falar de certo e de errado ao nível do que ouvimos em portu­
guês, quando pessoas na televisão dizem o errado «estêjamos» em vez
do correto «estejamos».
No exemplo anterior de Horácio, vimos dois futuros perfeitos, um
com a quantidade do «i» «errada» e outro com a quantidade «certa».
No primeiro verso da Ode 18 do Livro 1, temos o exemplo do conjuntivo
perfeito do verbo serõ, serere, sêui, satum («plantar») cujo «i» teorica­
mente é longo, mas que a métrica nos diz que, neste verso, é breve:

nüllam, Vãre, sacrã uite prius sêueris arborem...


«Nenhuma árvore plantes, Varo, de preferência à vinha sagrada...»

Independentemente do problema da quantidade do «i», fica na


mesma o problema muito concreto da homografía das formas de indica­
tivo futuro perfeito e conjuntivo perfeito. O que nos leva à pergunta
202 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

óbvia: quando as formas são homógrafas, como é que sabemos se estamos


perante um indicativo futuro perfeito ou um conjuntivo perfeito?

Fiquemos com as seguintes dicas:

1. Em frases condicionais (ou afins das condicionais), quando


encontramos uma forma verbal que, pela grafia, poderia ser indicativo
futuro perfeito ou conjuntivo perfeito, é importante olhar para o outro
verbo que compõe a estrutura condicional (à oração de «se», chamada
«prótase», corresponde a apódose: ver NGL, p. 330). Tipicamente, se
houver utilização do indicativo futuro perfeito, o outro verbo estará no
indicativo; se houver utilização do conjuntivo perfeito, o outro verbo
estará no conjuntivo.

2. Observemos sempre cuidadosamente o tipo de frase (no caso de


frases não condicionais) e retenhamos a dica de que o uso mais frequente
do conjuntivo perfeito acontece:

em ordens diretas negativas (ver NGL, p. 348): por exemplo, nêfece­


ris («não faças»)
em orações independentes, por vezes sob a forma de perguntas retó­
ricas, como conjuntivo potencial (trata-se de uma utilização do conjun­
tivo latino próxima do nosso condicional numa frase como «Eu não
DIRIA que D. Sebastião foi o melhor rei de Portugal»)
em orações subordinadas, como interrogativas indiretas (e até em
orações relativas e orações completivas introduzidas por ut) 13.

Vejamos alguns exemplos do conjuntivo perfeito usado com nuance


potencial:

Horácio (Sátira 1.5.44): «Nada eu compararia, de mente sã, com


um bom amigo»: em latim, nil ego contulerim iucundõ sãnus amicõ

13 Quem quiser um dia aprofundar este conhecimento poderá consultar a p. 178 do Vol. I da
monumental gramática latina de Kühner & Stegmann.
LiçAo N.° 34 203

Cícero (Prõ Rosciõ 5): «Talvez eu tenha agido temeraríamente»:


em latim,forsitan temerêfêcerim
Tito Livio (3.23): «Eu não ousaria afirmar <isso> como certo»: em
latim, certum affirmare nõn ausim
Cícero (Pro Milõne 103): «Com tua licença eu diria...»: em latim,
pãce tuã dixerim...

Um texto excelente para praticarmos a identificação de formas de


futuro perfeito e de conjuntivo perfeito é um dos poemas mais célebres
da Antiguidade Clássica: o poema em que surgem as palavras carpe diem.
Trata-se da Ode 11 do Livro 1 de Horácio, que começaremos porler em
português:

«Tu não indagues, pois não é permitido saber, que fim a mim, que
fimati
os deuses terão dado, ó Leucónoe, nem babilónicos
cálculos experimentes. É melhor aguentar o que tiver de ser,
quer Júpiter conceda muitos invernos, quer seja este o último,
que agora desgasta o mar tirreno nos rochedos opostos.
Compenetra-te, decanta os vinhos e poda com breve espaço <de
tempo>
uma esperança longa. Enquanto falamos, terá fugido a invejosa
idade. Colhe o dia, confiada o menos possível no de amanhã.»

Reparem agora nas formas verbais em maiúsculas no poema em


latim (note-se que temptâris eqüivale a temptãueris [ver NGL, p. 177];
o poema é comentado na NGL, p. 405):

tü nê QVAESIERlS, scire nefãs, quem mihi, quem tibi


finem di DEDERINT, Leuconoe, nec Babylõniõs
TEMPTÂRIS numerõs. ut melius, quidquid erit, pati,
seu plüris hiemes seu tribuit luppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
204 L a t im do Z ero a V e r g íl io em 50 L i ç õ e s

Tyrrhenum! sapiãs, uina liquês et spatiõ breui


spem longam reseces. dum loquimur, FVGERIT inuida
aetas, carpe diem, quam minimum credula postero.

Neste poema, há três formas de conjuntivo perfeito e urna de indi­


cativo futuro perfeito:

quaesieris: conjuntivo perfeito (ordem direta negativa)


dederint: conjuntivo perfeito (interrogativa indireta)
temptàris: conjuntivo perfeito (ordem direta negativa)
fügerit: indicativo futuro perfeito (e note-se que o verbo que faz par
com ele está ele próprio no indicativo: loquimur).

Vejamos mais três estrofes horacianas. A primeira pertence à Ode 6


do Livro 1, em que Horácio diz ao poderosíssimo militar bilionário
Agripa que vai passar a batata quente de ter de escrever sobre ele para
Vário, amigo de Vergílio e talentoso poeta («meónio» é um adjetivo
equivalente a «homérico», pois «Meónia» designava a região onde fica
a cidade de £smima, uma das várias que se arrogavam ter sido o berço
de Homero):

«Serás celebrado [isto é, serás escrito] por Vário, ave de meónio canto,
<como> forte vencedor de inimigos;
<escreverá> tudo o que o feroz militar, com navios ou com cavalos,
terá feito, sendo tu líder.»

Em latim (note-se que scriberis é o indicativo futuro passivo; e que


ãles, ãlitis significa «ave», aqui talvez, em concreto, o cisne; a forma ãlite
concorda com Variõ [ablativo de agente, sem preposição]; e note-se,
ainda, que tê duce é um ablativo absoluto):

scriberis Variõfortis et hostium


uictor Maeonii carminis ãlite,
LiçAo N.° 34 205

quam rem cumqueferõx nâuibus aut equis


miles tê duce gesserit

Em relação à forma verbal gesserit (do verbo gero, gerere, gessi, ges­
tum, donde vem o nosso verbo português «gerir» e o nosso substantivo
«gesto»), os autores do melhor comentário a Horário escrevem «“ges­
serit” of course is future perfect»14, mas penso que não há aqui «of
course». Nada me impediria de interpretar gesserit como um conjuntivo
perfeito potencial numa oração relativa (remeto para a página já citada
de Kühner & Stegmann na nota 13 da p. 202).

Na mesma ode de Horácio, lemos na quarta estrofe o seguinte:

«Quem <sobre> Marte vestido de túnica adamantina


dignamente teria escrito, ou <sobre> Meriones, negro
de pó troiano, ou <sobre> o Tidida, par, por poder de Palas,
dos <deuses> supemos?»

quis Martem tunicã téctum adamantinã


digne scripserit aut puluere Trõicõ
nigrum Merionen aut ope Palladis
Tydiden superis parem ?

Aqui, eu interpretaria scripserit como conjuntivo perfeito, com valor


potencial numa pergunta retórica. Mas já ouvi a forma interpretada como
indicativo futuro perfeito. Quando se trata da opção entre indicativo
futuro perfeito e conjuntivo perfeito, nem sempre é válida a «abordagem
of course».
Para finalizar, leiamos uma das estrofes mais deslumbrantes de
Horácio, que abre a Ode 9 do Livro 1 (o Soracte é um monte perto
de Roma):

14Cf. R. Nisbet & M. Hubbard, Λ Commentary on Horace Odes, Book I, Oxford, 1970, p. 85.
206 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

«Vés como de alta neve está branco


o Soracte, nem já os bosques sobrecarregados
sustêm o peso <da neve> e por causa do gelo
afiado os rios pararam?»

Vides ut altã stet niue candidum


Sõracte, nec iam sustineant onus
siluae labõrantés, gelüque
flümina constiterint acütõ?

O facto de termos ut a governar os conjuntivos stet e sustineant não


deixa dúvida quanto à classificação de constiterint como conjuntivo per­
feito. Vá lá, neste caso até podemos dizer «of course».
Moral da história (ou desta lição): o latim obriga-nos a questionar
cada elemento da própria enunciação verbal e a vermos cada palavra
debaixo do microscópio. É uma disciplina de que todos precisamos; e da
qual todos podemos beneficiar.
Lição n.° 35

Entre as maravilhas da arte mundial, um lugar de destaque cabe às


Metamorfoses de Ovídio (tapeçaria sinestésica cujo autor parece ter des­
coberto o cinema) e também à coroa de glória da sua receção na cultura
europeia: os seis quadros de Ticiano chamados Poesias, ilustrando
momentos fulminantes de sexo e de morte nas Metamorfoses.
Estes quadros foram pintados para Filipe II de Espanha (uns anos
antes de se ter tomado Filipe I de Portugal) e tal era a sua força erótica
que os descendentes pudicos de Filipe se foram desfazendo aos poucos
dos quadros da série: hoje só um dos quadros se encontra em Espanha
(Vénus e Adónis, no Prado - aliás, o meu preferido da série), estando os
outros dispersos pelo mundo anglo-saxónico: Dânae pertence ao duque
de Wellington e está exposta em Londres (Apsley House); Diana e
Actéon e Diana e Calisto acabaram por ir parar à coleção do duque de
Sutherland, que os vendeu à nação britânica (alegadamente a preço
de saldo) já no século xxi (50 milhões de libras por cada quadro); Perseu
eAndrómeda está na Wallace Collection de Londres; e O Rapto de Europa
está no Museu Gardner de Boston.
No ano de 2020, foi organizada uma exposição na National Gallery
de Londres que reuniu os seis quadros, que não eram vistos juntos há
450 anos. Mal abriu a exposição, porém, estalou o coronavirus: as portas
fecharam ao público. Confesso que fiquei cheio de pena, pois acalentava
a esperança de conseguir dar um salto a Londres para ver as Poesias jun­
tas (só conheço, de ver ao vivo, Vénus e Adónis e Perseu e Andrómeda).
Agora, já não será possível.
208 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

Mas sejamos positivos: em homenagem às superlativas Poesias de


Ticiano, dedicaremos esta e as próximas duas lições ao estudo de passa­
gens nas Metamorfoses que inspiraram o genial pintor veneziano, come­
çando por Diana e Actéon, episódio narrado por Ovídio no Livro 3 do
seu poema.
Ora, a zona do poema em que esta história se situa tem que ver com
narrativas horripilantes sobre a casa real de Tebas. Um príncipe dessa casa
chamado Actéon surpreende, durante uma caçada, a deusa Diana a tomar
banho, nua, no meio da floresta. A deusa olha para ele e diz: «Agora podes
narrar que fui vista por ti sem roupa, se conseguires narrar.»
Que peso fatídico nesta oração condicional, «se conseguires nar­
rar» ! Pois de imediato a deusa transforma Actéon em veado, que desata
a fugir dos seus próprios cães de caça - cães esses que, obviamente,
o matam. Que ironia sádica, pois, em «se conseguires narrar»!
O sadismo, no entanto, não é só de Diana. É também de Ovídio, que
coloca na boca da deusa uma das frases mais gramaticalmente retorcidas
das Metamorfoses. Acho que nenhum latinista consegue resolver o sudoku
da frase sem a ler várias vezes. À terceira ou quarta releitura, lá acaba por
cair a ficha.
Um dos problemas da frase de Diana é que Ovídio optou por uma
ordem de palavras imensamente arrojada - eu diria mesmo, recorrendo
a uma palavra inglesa, outrageous. A frase, se a lêssemos com as palavras
na ordem lógica, teria uma de duas formas:

1. nunc licet <ut> narres mê uisam <esse> tibi uèlãmine positõ, sipoteris
narrãre: «Agora é lícito que narres que eu fui vista por ti de roupa
deposta, se conseguires narrar»;
2. nunc licet tibi <ut> narres mê uisam <esse> uèlãmine positõ, si poteris
narrãre: «Agora é-te lícito narrar que eu fui vista de roupa deposta, se
conseguires narrar».

A forma de pronome pessoal de 2.a pessoa em dativo (tibi) pode


ser entendida como parte da construção do verbo impessoal licet
LiçAo N.° 35 209

(ver NGL, p. 355) ou como dativo de agente (cf. NGL, p. 298). Ora licet
pode introduzir uma oração infinitiva, uma oração de ut+ conjuntivo ou
uma oração de conjuntivo (subentendendo o ut). Quando lemos as pala-
vras na ordem que Ovídio lhes deu, o facto de termos este tibi ambíguo
e duas formas de infinitivo baralham à primeira o nosso pobre cérebro.
Quais são esses infinitivos, já agora? São:

uisam <esse>: infinitivo perfeito passivo (ver NGL, p. 139) de uideõ,


uidére, uidi, uisum («ver»)
narrãre: infinitivo presente de narrõ.

Na realidade, licet introduz aqui uma oração com conjuntivo (nar­


res), da qual por sua vez depende a oração infinitiva mê uisam <esse>.
£ ainda temos a considerar o ablativo absoluto uêlãmine positõ, consti­
tuído pelo substantivo neutro uêlãmett, uêlãminis («velame», «véu»,
«roupa») e o participio perfeito de põnõ, põnere, posui, positum
(«pôr»).
O esqueleto que estrutura o enunciado fatídico de Diana, no entanto,
é a frase condicional: st poteris narrãre (prótase), nunc licet... (apódose).
Ambos os verbos estão no indicativo (poteris é o futuro de possum; ver
NGL, p. 195)1S.

Vejamos então a frase tal como Diana a diz nas Metamorfoses (3.192-
-193):

nunc tibi mê positõ uisam uêlãmine narrês,


si poteris narrãre, licet.

Sem mais ameaças, Diana transforma Actéon: dá-lhe a forma de um


animal habitualmente caçado por ele e, com requinte de malvadez,

l&Quanto à permissibilidade de tempos diferentes do indicativo na prótase e na apódose da


firase condicional, quem quiser um dia aprofundar estas questões poderá ver Woodcock, Λ New
Latin Syntax, London, 1959, p. 150.
210 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

additus etpauorest (3.198). «Foi adicionado também o pavor» próprio


de um veado, embora a mente de Actéon, dentro do corpo de veado, se
tenha mantido como era: mêns tantum pristina mãnsit (3.203). Cuidado
que a pronúncia certa de pristina é proparoxítona (muitas pessoas, que
a leram no Nome da Rosa de Umberto £co, pronunciam a palavra como
se fosse paroxítona).
Ora, Actéon vai beber água num riacho e vê o seu reflexo. A passa­
gem é um precioso auxílio didático para vermos o futuro perifrástico
(a chamada «periflrástica ativa» em latim, que é formada com o partici­
pio futuro + formas do verbo sum; o seu sentido exprime a intenção de
fazer/empreender algo).
Se olharmos para os três particípios do verbo amõ, amãre, amãui,
amãtum, facilmente identificamos que o participio futuro é formado a
partir do mesmo tema que dá origem ao participio perfeito (o tema do
supino; sobre o supino, ver NGL, pp. 141-142):

amãns, amantis (participio presente)


amãtus, -a, -um (participio perfeito)
amãtürus, -a, -um (participio futuro).

Vejamos Metamorfoses 3.200-206, primeiro em português:

«Quando, na verdade, viu na água o semblante e os cornos,


"ai de mim", estava para dizer; nenhuma voz se seguiu.
Gemeu. A voz foi essa; e as lágrimas por faces
não suas fluíram; a mente, apenas, pristina permanece.
Que haveria de fazer? Procuraria a casa e os régios tetos
ou enconder-se-ia nos bosques? O temor impede isto; o pudor, aquilo.
Enquanto duvida, os cães viram<-no>...»

Leiamos agora em latim, com atenção à forma da perifrástica ativa


(dictürus erat; NGL, p. 143) e aos conjuntivos deliberativos (faciat, repe­
tat, lateat; NGL, p. 269); atenção também ao acusativo de exclamação
LiçAo N.° 35 211

(mê miserum; NGL, p. 294) e à enclitica -ne, que funciona como partícula
interrogativa (NGL, p. 344):

ut uêrõ uultus et comua uldit in undã,


«mê miserum!» dicturus erat: uõx nülla secüta est;
ingemuit: uõx illafuit, lacrimaeque per õra
nõn suafluxerunt; mens tantum pristina mansit
quidfaciat? repetatne domum et rêgãlia têcta
an lateat siluis?timor hoc, pudor inpedit illud,
dum dubitat, uidere canes...

Segue-se um catálogo dos nomes dos cães que integram a matilha;


o catálogo ocupa vinte versos, mas depois Ovidio diz quase comicamente
que seria muito demorado estar a referir os outros (3.225). O veado foge
dos cães; e os cães perseguem com furia indefetível o animal que é, na
realidade, o seu dono. Chega o momento da matança: «O éter ressoa de
latidos» (3.231). Em latim, resonat latratibus aether.
O castigo de Diana foi exagerado? Actéon mereceu este castigo hor­
ripilante? Na lição seguinte vamos abordar esse assunto, combinando-o
com o tema de Vénus e Adónis.
Lição n.° 36

Os mitos de Diana e Actéon e de Vénus e Adónis têm dois pontos


em comum: em ambas as narrativas, alguém é obrigado a sentir na pele
o sofrimento que, antes, sistematicamente infligira a outros; e em ambas
as histórias, um caçador morre pouco depois de ter estado envolvido
numa situação de cariz sexual.
Ovídio conta, no Livro 10 das suas Metamorfoses, como a deusa
Vénus, acidentalmente ferida pela flecha do seu filho Cupido quando este
beijava a mãe, se apaixonou pelo jovem caçador Adónis e, à boa maneira
camoniana, logo a amadora se transformou na coisa amada. A deusa que,
até aí, a pouco mais dera atenção do que à sua cosmética e ao suscitar de
paixões tóxicas nos corações humanos, agora vagueia por bosques e sar-
çosos penhascos (persiluãs dümõsaque saxa uagãtur [10.535]), vestida à
maneira de Diana, incitando, aos gritos, os cães de caça; e fazendo a vida
negra, não a humanos apaixonados, mas a lebres, veados e corças. Com
o seu gosto pela elaboração barroca, Ovídio explicita que a deusa se abs­
teve de caça grossa, como lobos, ursos, javalis e leões (10.539-541):

«... de fortes javalis se abstém;


e lobos rapaces e ursos armados de garras
ela evita, assim como leões saturados com a matança de gado.»

... afortibus abstinet apris


raptõrêsque lupõs armãtõsque unguibus ursõs
uitat et armenti saturatos caede leõnês.
LiçAo N.° 36 213

Vénus tenta convencer o seu belo amante a fazer o mesmo: evitar


caçar animais perigosos, porque (explica ela) esses animais não vão per­
ceber quanto ele é gostoso, pois são insensíveis aos encantos da beleza
(10.547-549):

«... a juventude não comove


nem a beleza - as quais Vénus comoveram - leões
e cerdosos porcos e os olhos e os corações das feras.»

... nõn mouet aetãs


necfaciês nec, quae Venerem mouére, leõnês
saetigerõsque sues oculõsque animõsqueferãrum.

Andar à caça por montes e vales, por muito que ela tente gostar, não
é aquilo de que mais gosta a deusa do sexo. Virando-se para Adónis,
Vénus comenta «mas este esforço insólito já me cansou...» (sed labor
insolitus iam mê lassãuit...) e convida o rapagão a deitar-se com ela à som­
bra de um choupo, onde a relva lhes proporciona um leito gratíssimo.
Ela intercala beijos nas palavras que se seguem (mediis interserit óscula
uerbis).
Vénus intercala beijos na conversa e Ovídio intercala na conversa
outra história: a de Atalanta e de Hipómenes. Narrada a qual, Vénus volta
à vaca fria: Adónis deve evitar animais perigosos, para que «a tua virili­
dade não seja danosa para nós dois» (nê uirtús tua sit damnõsa duõbus
[10.707]). Como a palavra latina uirtüs vem de uir («homem»,
«varão»), o seu sentido primário não é tanto «virtude» como «mascu­
linidade». Vénus sabe (como se diz em inglês) que «boys will be boys».
E escusado será dizer que, mal Vénus se afasta, levada pelo seu carro
puxado por cisnes, Adónis desata logo a caçar um javali que - não por
acaso - «lhe crava bem fundo as presas na virilha» (10.715-716): tõtõs
sub inguine dentes / abdidit Note-se que a palavra latina inguen, inguinis
(em português falamos de uma hérnia «inguinal») tanto significa
«virilha» como «órgãos genitais».
214 Latim do Z ero a VergIlio em 50 Lições

O facto de Adónis morrer, numa caçada, no seguimento de uma


valente cornada nos testículos não é um pormenor arbitrário da história.
A mitologia antiga conservava antiquissimos tabus referentes à vida do
caçador, bem explicados pelo grande especialista da religião grega Walter
Burkert (cujo livro indispensável Religião Grega na Época Clássica e
Arcaica está traduzido em português, em edição da Gulbenkian). Na
crença antiga, o caçador tinha de se abster do sexo: era o sacrifício que
ele tinha de oferecer à natureza em troca dos seres vivos que a sua ativi­
dade de caçador sacrificava. Levantar-se da relva do amor à sombra do
choupo e ir logo disparado para a caça, sem primeiro ter cumprido um
período ritual de castidade, leva a que Adónis tenha de pagar muito caro
o preço das suas matanças: paga com a própria vida.
O caso de Actéon é semelhante. Ao ato de voyeurismo, à excitação
sexual implícita na surpresa de ver a deusa nua segue-se a sua morte, que
assume no Livro 3 das Metamorfoses contornos alusivos à situação de
Vénus, que sofre na pele o sofrimento de amor sistematicamente por ela
infligido a outros. Actéon sofre na pele (na pele de um veado) o sofrimento
que ele, por hábito, infligia aos veados. Hoje fala-se muito no conceito de
«nature strikes back». Os antigos já tinham essa intuição e aplicavam-na
ao comportamento ritual (abstenção de sexo) exigido ao caçador.
Até porque Actéon estava a pedi-las. Quando Ovídio introduz a his­
tória de Actéon, impressiona-nos o grau cruento de matança de que
Actéon era capaz. Uma coisa é o caçador-recoletor que caça por neces­
sidade de sobrevivência: tira à natureza, sim, mas para se alimentar; e a
castidade assegura que, pelo menos num certo período de tempo, não
serão gerados mais humanos despojadores dos recursos naturais. Mas
Actéon exagerava: ele matava animais em quantidades chocantes. Era
matar por matar.
Veja-se como Ovídio introduz, pois, a história de Actéon (3.143-148):

«O monte estava infecto [ = tingido] com a matança de feras várias


e já o meio-dia contraíra as sombras das coisas
e o Sol distava por igual de ambas as metas,
LiçAo N.° 36 215

quando o jovem tebano os participantes dos trabalhos,


errantes por veredas desviadas, convoca com plácido tom de voz:
"As redes pingam, companheiros, e as armas também com o sangue
das feras...”»

Em latim, temos de ter atenção ao facto de Ovídio empregar um


adjetivo rebuscado para «tebano»: Hyantius. E precisamos de estar aten­
tos aos hipérbatos no antepenúltimo e no penúltimo versos da citação:
iuuetiis concorda com Hyantius no verso seguinte; e placidõ concorda
com õre:

mõns erat infectus uariãrum caedeferãrum,


iamque diês medius rèrum contraxerat umbrãs
et sõl ex aequõ mètã distabat utrâque,
cum iuuenis placidõ per dêuia lustra uagantès
participes operum conpellat Hyantius õre:
«lina madent, comitês, ferrumque cruõreferãrum...»

Que Actéon, sanguinário abusador do mundo natural, morra numa


situação análoga às que ele toda a vida provocou surge quase como um
castigo de elementar justiça. No caso de Adónis, foi mais outro tipo de
problema. O sexo é cansativo para as pernas e por isso os futebolistas se
abstém dele antes de uma final da Liga dos Campeões. O javali, qual
avançado pago a preço de ouro, intuiu a oportunidade de marcar - e
marcou, literalmente, um golo do c******.

Finalmente, só uma pequena nota sobre o quadro de Ticiano que


está no Prado (pois há vários Ticianos e pseudo-Ticianos com este tema
de Vénus e Adónis). O do Prado é reconhecidamente o mais belo (ainda
que se tenha descoberto, ao que parece, por meio de análise por radio­
grafia, que o de Moscovo poderá ter sido a sua primeira versão).
Na cena como Ticiano a imagina, ressalta da imagem o tema, ine­
rente ao mito, que já foquei: Vénus sofre agora o que sempre obrigou os
216 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

outros a sofrer. Os humanos apaixonam-se perdidamente e sofrem hor­


rores com a separação do ente amado; no auge da paixão, nada dói mais
do que a despedida. Só que Cupido está a dormir (portanto, o desejo de
sexo por parte de Adónis está adormecido) e o jarro entornado mostra
que já foram ejaculados todos os líquidos que havia a ejetar: a dor da
despedida, agora, é inelutável, porque chegou o momento em que sobre­
vêm ao macho a saciedade da fêmea - o que o macho quer, agora, é sair
à rua e matar alguém (qualquer ser vivo serve)16. Vénus está, pois, na
posição vulnerável, bem conhecida das vítimas da deusa, de querer evitar
a tortura da despedida, segurando Adónis para ele não partir. Mas
Ticiano achou por bem dar a Vénus um gostinho do seu próprio veneno.
Bem feita!

16Como canta Tannhäuser, já saturado de tanto sexo com Vénus na ópera de Richard Wagner,
«conflito e luta eu quero enfrentar, / seja para morrer, seja para matar» (tradução livre de «zu
Kampf und Streite will ich stehn / sei's auch auf Tod und Untergehn»).
Lição n.° 37

Violada por Júpiter, a ninfa Calisto toma-se duplamente vítima no


momento em que a sua gravidez é descoberta pelo bando de seguidoras
de Diana, obrigadas ao dever de virgindade. As outras ninfas tiram-lhe a
roupa à força para mostrar a barriga, prova do crime, à deusa. Crime esse
que, para as virgens, é da «vadia» que se deixou violar, não do violador.
A vítima do estupro é, de imediato, banida por Diana: «Não poluas estas
fontes sagradas!» A ex-virgem toma-se (em sentido literal) vagabunda.
Vagueia, sem ter onde morar ou quem a acolher.
Mas os seus problemas não acabaram aí. A mulher legítima do vio­
lador foca na vítima da violação toda a sua raiva. A desgraçada Calisto já
dera à luz o filho, sozinha no meio da floresta. A ira de Juno não tem
limites (Metamorfoses 2.471-473):

« “Decerto isto ainda faltava, ó adúltera”, disse,


“que ticasses prenhe e que pelo parto se tomasse a injúria
conhecida do meu Júpiter e a infâmia comprovada!”»

Em latim (note-se que dêdecus, dedecoris é um substantivo neutro


com o sentido de «infâmia»; parafores como alternativa a esses [conjun-
tivo imperfeito de sum], ver NGL, p. 151):

«scilicet hoc etiam restabat, adultera,» dixit


«ut fecunda foresfieretque iniüria partü
nota Iouisque mei testatum dedecus esset!»
218 L a t im do Z ero a V e r g íl io em SO L i ç õ e s

Curioso, não é? É a vítima da violação, menina solteira, que é referida


como «adúltera» (como se o violador, homem casado, não o fosse).
E que mentalidade a da esposa traída! Para ela, a criança ilegítima da
estuprada é infame porque deixa o violador ficar mal.
«Não levarás isto impunemente!», exclamaJuno (como se Calisto
não tivesse já tido o castigo de ser violada; de ser expulsa do meio onde
vivia; de ter levado sozinha, até ao fim, a gravidez; e de ter dado à luz no
meio da floresta). «Tirar-te-ei a beleza, com a qual agradas, ó descarada,
ao meu marido!» Juno agarra em Calisto pelos cabelos e atira-a ao chão.
A desgraçada levanta os braços em súplica, mas de nada lhe serve (2.478-
-484):

«Os braços começaram a eriçar-se de pelos negros;


e as mãos a tomar-se curvas e a crescer para garras aduncas
e a servir na função de pés; e as faces outrora louvadas
por Júpiter a tomar-se disformes por causa do grande focinho;
e para que preces e palavras implorantes não comovessem os ânimos,
é-lhe arrancado que consiga falar: uma voz irada e ameaçadora
e plena de terror sai da goela rouca.»

Em latim, notem os infinitivos que se seguem a coepêrunt («come­


çaram»): horrescere, curuãrt, crêscere,fungf (donde vem «funcionar» em
português),fieri; notem também a oração final negativa introduzida por
nêue (com o verbo no conjuntivo,flectant):

hracchia coepêrunt nigris horrescere uillis


curuãrique manús et aduncos crêscere in unguês
officiõque pedumfungi laudãtaque quondam
õra Ioui lãtõfieri dêformia rictw,
néueprecês animõs et uerha precantiaflectant,
posse loqui êripitur: uõx iracunda minâxque
plénaque terrõris raucõ dê gutturefertur.
LiçAo N.° 37 219

O requinte máximo da malvadez divina é que, transformada em ursa,


Calisto mantém a consciência humana; assim o castigo dói muito mais
(2.485-492):

«A mente antiga fica (fica embora em ursa transformada)


e com gemido assíduo testemunhou as suas dores
e as mãos (fossem quais fossem) levanta ao céu e às estrelas;
e sente, embora dizer não consiga, que Júpiter é ingrato.
Ah, quantas vezes não se atreveu a descansar na floresta solitária
e diante da casa e dos campos outrora seus vagueou!
Ah, quantas vezes foi levada por entre os rochedos pelos latidos dos cães
e, caçadora, fugiu aterrada com medo dos caçadores!»

Em latim, repare-se na oração infinitiva dependente de sentit; as pala­


vras em acusativo ingrãtum louem são o sujeito da oração infinitiva (ver
NGL, p. 321), na qual é preciso subentender esse (infinitivo de sum):

mens antiqua manet (factã quoque mãnsit in ursã),


adsiduõque suõsgemitú testãta dolórès
quãlêscumque manüs ad caelum et sidera tollit
ingrãtumque Iouem, nequeat cum dicere, sentit,
ã, quotiens sõlã nõn ausa quiescere siluã
ante domum quondamque suis errãuit in agris!
ã, quotiens per saxa canum latratibus ãcta est
uênãtrixque metü uénãtum territafügit!

Ovidio faz aqui soar o tema que já ouvimos nas passagens analisadas
na lição anterior: a caçadora sente agora na pele o que antes a sua ativi­
dade venatória levara os animais caçados a sentir.
O filho de Calisto, Árcade, tomar-se-á também caçador e mais tarde,
com inevitabilidade fatídica, no meio de uma caçada, deparará com uma ursa
que é a própria mãe. No momento em que ele vai para matar a ursa, «o
Omnipotente» (escreve Ovídio) transforma ambos em constelações no céu.
220 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

Nem assim, porém, a raiva de Juno fica apaziguada; e exige que a


nova constelação (que fora Calisto) nunca mergulhe nas águas do mar,
nêpürõ tingatur in aequorepaelex (2.530), isto é, «para que a rameira não
se molhe na água pura». A palavra paelex, paelicis (do grego παλλακίο),
com o sentido de mulher «desonesta», é o último insulto de Juno contra
a jovem violada por Júpiter (ainda para mais tendo ele assumido a forma
da deusa Diana). É com mais este gesto de victim blaming que o episódio
fecha.

O quadro de Ticiano sobre o tema de Diana e Calisto é, para mim,


a mais perturbadora das Poesias; e não só pelo episódio de Ovidio que
representa. O momento escolhido por Ticiano é a situação confrange-
dora em que Calisto é achincalhada e agredida pelas outras ninfas diante
de Diana: uma encenação triste do já aludido victim blaming. O que mais
me perturba, porém, neste quadro é que foi pintado para agradar à hete-
rossexualidade pujante de Filipe II (que em 1556 tinha 29 anos): tal
como as outras Poesias, este quadro de Ticiano é pornografia de luxo,
realizada por um artista de primeiríssima categoria para um cliente que
era o homem mais rico e poderoso do mundo. Que este grupo de mulhe­
res nuas - a atacarem a única dentre elas que foi brinquedo sexual de um
homem - possa ter sido planeado por um homem como algo de sexual­
mente aliciante para o olhar de outro homem é, para mim, incomodativo.
Depois de pertencer a Filipe II, este quadro pertenceu a outros
homens poderosos, tendo ido mais tarde parar à coleção dos duques de
Sutherland, família de triste fama pela brutalidade com que, no século
XIX, atirou para o estatuto de sem-abrigo populações inteiras no norte
da Escócia, para rentabilizar melhor os terrenos onde essas populações
viviam (foram os infames Highland clearances). Já no século xxi, o atual
duque de Sutherland chegou à conclusão de que tinha demasiado
dinheiro empatado em quadros e teve então a «generosidade» de vender
esta pintura à nação britânica por «apenas» 50 milhões de libras (é certo
que, em leilão, um Ticiano com esta qualidade e fama teria arrecadado
muito mais).
L içã o n .° 37 221

Hoje em dia, discute-se se as Metamorfoses de Ovídio, com a sua


feição de «Bíblia do estupro», deveriam ainda ser lidas. Pela mesma
ordem de idéias, poderíamos perguntar se uma obra com as desagrada-
bilíssimas implicações de Diana e Calisto deveria ainda ser vista e discu­
tida - e se, no Reino Unido, os contribuintes e muitos dadores anônimos
deveriam ter posto mais 50 milhões de libras nas unhas do duque de
Sutherland. A minha opinião, quanto a Ovídio e Ticiano, é sim: devemos
ler, discutir e problematizar tudo de Ovídio e de Ticiano. Também por­
que, na beleza exterior de que dotaram as suas obras, a fealdade humana
é o gato escondido com o rabo de fora. £ isso, para nossa instrução e
melhoramento, é fundamental conhecermos.
Lição n.° 38

Vtpictüra poêsis, escreveu Horácio no mais influente texto de teoria


literária alguma vez composto em latim. As reflexões que fizemos nas
lições anteriores a propósito da leitura comparativa do poeta Ovidio e
do seu pictórico intérprete, Ticiano, conduzem-nos à consideração da
famosa frase de Horácio - a qual, como quase tudo na poesia do Venu­
sino, é bem mais difícil do que parece.
As palavras famosas encontram-se no v. 361 da Arte Poética (o título
que se deu mais tarde à epístola dirigida a dois irmãos de nome Pisõ - daí
a designação Epístola aos Pisões). Em português, o contexto diz-nos o
seguinte (361-365):

«Como pintura <é> a poesia: haverá aquela que, se te colocares mais


próximo,
mais te captará; e aquela que <te captará> se te afastares para mais
longe.
Esta ama a obscuridade; esta quer ser vista à luz,
ela que não teme a arguta exigência do crítico.
Esta agradou uma só vez; esta agradará dez vezes repetida.»

Em latim, as palavras são estas:

ut pictüra poêsis: erit quae, si proprius stés,


tê capiat magis, et quaedam, si longius abstés.
haec amat obsciirum, uolet haec sub lüce uidêri,
L iç ã o n .° 38 223

iüdicis argutum quae nõnformidat acumen;


haec placuit semel, haec decies repetita placebit

A necessidade de subentendermos palavras que não estão presentes


no estilo comprimido de Horácio deixa-nos inseguros quanto ao sentido
da afirmação que, de resto, é suficientemente ambígua para ser interpre­
tada por alguns como exaltação das capacidades pictóricas da poesia e por
outros como sentença corroboradora dapoeticidade da pintura. Na gera­
ção anterior à de Horácio, já se discutia em Roma a ideia atribuída ao
poeta grego Simónides, segundo a qual um poema deveria ser pintura
falante, do mesmo modo que uma pintura deveria ser poesia silenciosa.
O autor anônimo de um tratado de retórica em latim cristalizou a ideia na
frase poema loquêns pictüra, pictüra tacitum poema debet esse (cf. Ad Heren­
nium 4.39). De alguma forma, é esta ideia que subjaz aos maravilhosos
versos de Sophia de Mello Breyner Andresen, «Eras bela como a pintura
de Mantegna, / Decifrando a escrita da ressurreição» (no livro Dual).
No entanto, não parece ser isso o que Horácio está a dizer na Arte
Poética. A intenção subjacente parece apontar para a necessidade de a
poesia, tal como a pintura, não temer o argütum... acümen do crítico.
O que as artes têm em comum é que as suas melhores manifestações não
só não devem recear o acümen crítico como conseguem agradar depois
de lidas/vistas dez ou mais vezes.
Ora, a escolha da palavra acümen é problemática para quem queira
encontrar um termo correspondente em português, pois reúne vários sen­
tidos: o seu sentido primacial é «ponta» (como a ponta de uma lança),
mas significa também «aguilhão» e, por extensão de sentido, «agudeza
de espírito». A crítica pode, portanto, funcionar de modo positivo como
«espora» para o artista fazer mais e melhor: para chegar ao ponto de
maestria em que consiga produzir obras que agradem à décima vez.
Na zona em que nos encontramos da Arte Poética, já vamos a caminho
do fim do poema (que tem um total de 476 versos). Percebemos, assim,
que Horácio está a retomar a ideia que lhe serviu de abertura para a epís­
tola: a ideia de que podemos falar sobre poesia usando para tal o discurso
224 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições

próprio da teorização artística. A Arte Poética começa, com efeito, com a


consideração de uma pintura imaginária tão estrambólica que, pura e sim­
plesmente, não funciona. As razões pelas quais o quadro falha são tidas,
pelo autor, como igualmente válidas no campo da poesia: se um poema
ostentasse literariamente as características pictóricas do quadro absurdo
que Horário descreve, seria, na mesma medida, absurdo (1-5):

«Se, a cabeça humana, um pintor quisesse pescoço


equino juntar e variegadas plumas aplicar
a membros reunidos de toda a parte, a ponto de torpemente
em negro peixe terminar uma mulher formosa por cima,
para ver <tal pintura> admitidos, conteríeis o riso, amigos?»

Estes versos em latim proporcionam uma excelente oportunidade


para vermos, em ação, o já mencionado supino (cf. no v. 5 a forma spec-
tãtum, supino do verbo da l.a conjugação spectõ, «observar»; o valor
sintático do supino terminado em -um é final, como podem ver na
p. 363 daNGL; portanto, spectãtum significa aqui «para ver»):

hütnãnõ capiti ceruicem pictor equinam


iungere si uelit et uariãs indücere plümãs
undique collãtis membris, ut turpiter ãtrum
desinat in piscem mulierfõrmôsa superne,
spectãtum admissi risum teneãtis, amici?

Quem visse, pois, este quadro - representando uma figura com


cabeça de mulher, pescoço de cavalo e extremidade de peixe - desataria,
segundo Horácio, às gargalhadas. (Devo dizer que a minha reação seria
mais bocejar do que rir; não acho graça quando a arte quer ser assim
«engraçadinha».) No v. 6, Horácio aplica de imediato o que acabou de
dizer à literatura (6-13), numa antevisão curiosa do que certa escrita
literária viria a ser no século xx:
LiçAo N.° 38 225

«Acreditai, Pisões: a esta pintura será um livro


semelhante, cujas vãs representações como sonhos de um doente
fossem concebidas, de tal modo que nem pé nem cabeça
a uma só forma pudesse dizer respeito. aA pintores e a poetas
sempre assistiu poder igual de ousar em relação ao que quer que seja.”
Sabemos; e esta liberdade a procuramos e damos reciprocamente.
Mas não para que com <animais> mansos copulem os bravos;
não para que serpentes se unam a aves; ou a tigres, cordeiros.»

Em latim (atenção à oração infinitiva dependente de credite, cujo


sujeito em acusativo é librum e cujo predicado é fore, infinitivo futuro
de sum, como podem ver na p.148 da NGL; atenção ao gerúndio
audendi):

credite, Pisõnês, isti tabulaefore librum


persimilem cuius, uelut aegri somnia, uãnae
fingentur species, ut nec pes nec caput uni
reddaturformae, «pictoribus atque poetis
quidlibet audendi semperfuit aequa potestas.»
scimus, et hanc ueniam petimusque damusque uicissim;
sed nõn ut placidis coeant immitia, nõn ut
serpentes auibus geminentur, tigribus agni.

Alguns casos nestes versos podem suscitar dificuldade:

isti tabulae: dativo


uãnae... species: nominativo
uni... formae: dativo (para a declinação de ünus, ver NGL, p. 368)
immitia: nominativo neutro do plural (subentende-se animalia).

Quanto a quidlibet, é um pronome indefinido (NGL, p. 229) dificil


de traduzir para português, mas aqui com o sentido aproximado de «o que
quer que seja».
226 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

A ideia, defendida por Horácio, de que a obra de arte deve estar


imbuída de uma coesão unitária marcou todo o percurso da arte europeia
até ao século xx. O próprio cinema - a última arte a submeter-se ao
acümeti dos críticos - só se libertou de Horácio com a N ouvelle Vague
francesa. A coerência interna e a coesão estética serão, afinal, assim tão
importantes numa obra de arte? Horácio tinha razão? Ocorrem-me os
versos que Sophia escreveu sobre Santa Clara de Assis, mas que eu apli­
caria igualmente à grande pintura e à grande poesia: «Eis aquela que
soube na paisagem / adivinhar a unidade prometida» (no livro No
Tempo Dividido).
Lição n.° 39

Esta lição aproveita o milagre da multiplicação dos pães no Evange­


lho de João (e outros milagres do mesmo capítulo 6) para espalhar a
multiplicação das boas notas. Porquê? Porque hoje temos um quiz, com
20 perguntas de latim, cujas respostas encontram no final deste livro, na
p. 522. Até lá, desafiem os vossos conhecimentos e vejam se conseguem
adivinhar as respostas às perguntas que se seguem. Quem acertar em
todas obtém naturalmente 20 valores.

1. subiit ergõ in montem Iésus et ibi sedêbat cum discipulis suis. (João 6:3)
Em que tempo se encontra a forma verbal sedibat?

2. unde emémus pãnés, ut mandücent hi? (6:5)


Atendendo a que o infinitivo de emõ («comprar») é emere, em que
tempo se encontra a forma emêmus?

3. est puer ünus hic qui habet quinque pãnês et duõs piscês. (6:9)
Em que caso se encontram as palavras panes e piscis?

4. dixit ergõ Usus: «facite hominis discumbere.» discumbirunt ergo


uirl (6:10)
Em que tempo se encontra a forma verbal discumbirunt? (Note-se
que discumbo significa «reclinar-se», «deitar-se», aqui mais concreta-
mente «sentar-se».)
228 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

5. accêpit ergõ Iésuspãnês; et cum grãtiãs êgisset, distribuit discumben­


tibus. (6:11)
Atendendo a que a expressão grãtiãs agere significa «dar graças»
(e que o verbo se enuncia agõ, agere, êgi, ãctum), em que modo se encon­
tra a forma êgissetl

6. Na mesma frase da pergunta n.° 5, em que caso se encontra a


forma discumbentibus?

7. <distribuit> similiter ex piscibus quantum uolêbant. (6:11)


Em que caso se encontra piscibus?

8. uidentlésum ambulantem suprã mare. (6:19)


Atendendo a que o verbo se enuncia uideõ, uidêre, uidi, uisum, como
seria uident na forma correspondente de perfeito (isto é, na 3.apessoa do
plural do mesmo modo e voz) ?

9. ille autem dicit eis: egõ sum, nolite timere. (6:20)


Como ficaria nolite timere no singular?

10. superuênérunt nãuês iuxtã locum ubi mandücâuérunt pãnem, grã­


tiãs agente Dominó. (6:23)
Como se chama a estrutura que vemos em agente Dominó (note-se
que Dominus se refere aqui aJesus)?

11. dixêrunt ergõ ad eum: quidfaciemus ut operemur opera Dei?(6:28)


Apesar da aparente semelhança, as formas verbaisfaciêmus (defaciõ,
facere,féci,factum) e operemur (de operor, operãri, «realizar») estão em
modos diferentes. Qual é a forma que está no conjuntivo?

12. Na mesma frase, opera é o plural de opus, operis. Como é que se


escreve o acusativo do singular desta palavra?
L iç ã o N.° 39 229

13. pãnis enim Dei est, qui dê caelõ dêscendit et dat uitam mundõ. (6:33)
Apesar da aparente semelhança entre caelõ e mundõ, só uma das pala­
vras está em dativo. Qual é?

14. nêmõ potest uenire ad mé nisi Pater, qui misit mê, traxerit eum.
(6:44)
Dedicámos alguma atenção ao problema da semelhança entre o indi­
cativo futuro perfeito e o conjuntivo perfeito, e dei-vos umas dicas para
distinguirem estas formas homógrafas. De acordo com as dicas dadas,
acham que trãxerit (do verbo trahõ, trahere, trãxi, tractum) é indicativo
futuro perfeito ou conjuntivo perfeito?

15. Apliquemos a mesma pergunta à seguinte frase: hic est pãnis dê


caelõ descendens: ut si quis ex ipsõ mandücãuerit, nõn moriãtur. (6:50)
Atendendo a que o verbo morrer é morior, mori, mortuus sum (o que
vos ajudará a tirar por indução lógica o modo de moriãtur), a forma man-
ducãuerit é indicativo futuro perfeito ou conjuntivo perfeito?

16. litigãbant Iudaei dicentês: «quõmodo potest hic nõbis carnemsuam


dare ad manducandum?» (6:52)
Como se chama a forma mandücandum?

17. uerba quae egõ locutus sum uõbis spiritus et uita sunt (6:63)
A forma verbal locutus sum pertence ao verbo loquor, loqui. Como se
chama este tipo de verbo?

18. sciebat enim ab initio Iésus qui essent nõn credentes et quis traditurus
esset eum. (6:64)
Há uma razão específica para o facto de duas formas verbais nesta
citação estarem no conjuntivo?

19. hic estpãnis qui dê caelõ dêscendit. nõn sicut mandücauèruntpatrês ues-
tri manna et mortui sunt, qui mandücat huncpãnem, uiuet in aeternum. (6:58)
230 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Como ficaria a forma uiuet (do verbo uiuõ, uiuere) se a quiséssemos


escrever no conjuntivo presente (e na mesma pessoa e número)?

20. egõ sum pãtiis uitae. (6:48)


Para finalizar, uma pergunta fácil: qual das duas palavras está em
genitivo, pãttis ou uitae7.
Lição n.° 40

Lembro-me de que, há muitos anos, uma excelente aluna de latim


traduziu assim as famosas palavras que abrem a primeira Catilinária de
Cícero: «Afinal até quando serás o abutre, ó Catilina, da nossa paciên­
cia?» Gostei da criatividade e compreendi a tentação de optar por esta
tradução: olhando assim impressionisticamente para a forma latina abü­
têre, não ocorre pensar na palavra portuguesa «abutre»?
No entanto, «abutre» tem uma etimologia diferente do verbo abu­
tor, que é um composto de ütor, üti, üsus sum, o verbo depoente que
significa «usar». O composto iniciado por ab é donde vem o nosso verbo
«abusar». £ a forma abütêre, que lemos na primeira frase da primeira
Catilinária, é a 2.a pessoa do singular do futuro («abusarás»).
Tanto o verbo ütor como abütor constroem-se com ablativo (ver
NGL, p. 314). Daí os «-a» longos em patientiã nostrã. Note-se que quõ
usque significa «até quando»; e tandem, «afinal»:

Quõ usque tandem abütêre, Catilina, patientiã nostrã?


«Até quando afinal abusarás, ó Catilina, da nossa paciência?»

Até agora, ainda não abordámos de modo mais analítico textos de


prosa latina clássica (categoria literária em que o rei e imperador é
Cícero), porque, para conseguirmos decifrar este tipo de texto, é neces­
sário ter uma noção já bastante organizada (digamos assim) da forma
como funcionam as frases em latim. Mas nesta altura já sabemos identi­
ficar algumas das estruturas mais importantes (orações infinitivas,
232 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições

ablativos absolutos, interrogativas indiretas, orações finais e condicio­


nais) e, por isso, já podemos partir à aventura (mas passo a passo, com
muita calma) na conquista desta importante competência: conseguir ler
prosa latina clássica.
A primeira Catilinária de Cícero é considerada, há séculos, o texto
modelar que exemplifica a expressividade e a beleza da prosa latina,
embora a circunstância que levou à sua composição de beleza nada
tivesse.
Lúcio Sérgio Catilina pertencia à mais alta aristocracia de Roma
- a sua família era, aliás, tão ilustre que, quando Cícero pressionou para
que Catilina fosse condenado à morte, muitos senadores (e o próprio
Júlio César) foram da opinião de que a altíssima linhagem do réu o ilibava
da pena capital. Mas Cícero, aos olhos da velha aristocracia um arrivista
e novo-rico (homõ nouus), teimou na sua campanha contra o patrício; e
conseguiu convencer os senadores (e a opinião pública) de que Catilina
- proponente do perdão de dívidas e da reforma agrária - tinha mesmo
de morrer. Os contornos do caso são ainda hoje duvidosos, porque nos
falta ouvir Catilina. Será verdade que ele foi o psicopata retratado por
Cícero (epor Salústio, baseando-se decerto no testemunho de Cícero)?
Não o sabemos.
A primeira Catilinária foi proferida em 63 a.C., no senado, na presença
do próprio Catilina. E podemos dizer desde já que, atendendo ao teor do
discurso de Cícero, nenhum de nós teria gostado de estar no lugar do
homem visado por palavras tão ásperas e agressivas. Mas vamos ao latim!
As primeiras três frases da primeira Catilinária têm o verbo no futuro
(destacado a negrito):

quõ usque tandem abütére, Catilina,patientiã nostrã? Quam diü etiam


furor iste tuus nõs êlüdet? Quem adfinem sésé effrénãta iactãbit audácia?

«Até quando afinal abusarás, ó Catilina, da nossa paciência? Quanto


tempo mais este teu furor nos insultará? Até que término se lançará a
audácia desenfreada?»
L iç ã o n .® 40 233

Notemos os seguintes aspetos:

diü: advérbio («muito tempo», «longamente»)


élüdõj êlüdere, êlüsi, élúsum: aqui no sentido de «troçar», «insultar»,
«escarnecer»
sésê: forma redobrada do pronome sê (ver NGL, pp. 218-219).

A frase seguinte é um comboio de sujeitos: tem seis sujeitos! £ só


depois deles é que surge em último lugar o predicado, mõuêrunt («move­
ram»). Antes do comboio de seis sujeitos, surge primeiro o comple­
mento direto (té), o que cria confusão à primeira leitura da frase. Outro
efeito extravagante da frase n.° 4 da primeira Catilinária é a repetição
(seis vezes, também) de nihil («nada»), aqui com valor adverbial e fun­
cionando como negação mais enfática do que «não». Juntando a isto o
efeito do assíndeto (ausência da copulativa «e»), Cícero criou uma frase
de deixar os senadores pasmados.
Vejamos primeiro os seis sujeitos:

nocturnum praesidium Palati: «guarnição noturna do Palatino»


urbis uigiliae: «vigílias da cidade»
timor populi: «temor do povo»
concursus bonõrum omnium: «reunião de todos os nobres» (isto é,
senadores)
hic munitissimus habendi senãtüs locus: à letra, «este armadíssimo
local de haver senado» (atenção ao facto de senãtüs ser genitivo do sin­
gular); trata-se aqui da construção chamada «gerundivo por gerundio»,
explicada nas pp. 361-363 da NGL
õra uultüsque: «rostos e semblantes» (õra é o plural de õs, õris [«boca»,
«rosto»]; cf., em português, «oral»; uultüs é nominativo do plural).

Então, agora respiremos fundo e leiamos a frase completa (e notem


que o -ne colado a nihil [nihilne] é uma partícula interrogativa, que aler­
tava ouvintes e leitores antigos para o facto de se tratar de uma pergunta;
234 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

a nós, leitores modernos, alerta-nos para o facto de, no fim, nos esperar
um ponto de interrogação):

nihilne tè nocturnum praesidium Palãti, nihil urbis uigiliae, nihil timor


populi, nihil concursus bonõrum omnium, nihil hic munitissimus habendi
senãtús locus, nihil hõrum õra uultüsque mõuêrunt?

«Nada te moveram a guarnição noturna do Palatino, nada as vigílias


da ddade, nada o temor do povo, nada a reunião de todos os nobres, nada
este armadíssimo lugar onde decorre o senado, nada os rostos e os sem­
blantes destes <aqui presentes>?»

Como veem, tanto a ordem das palavras como o respetivo efeito são
impossíveis de manter em português; tal como é impossível manter a
cláusula métrica ( - U ------ : crético + espondeu) com que Cícero
remata a frase (por uma questão de curiosidade, podem ler o capítulo a
explicar o que são cláusulas métricas em prosa nas pp. 407-413 da NGL).

A próxima frase é constituída por duas perguntas: o predicado da


primeira é nõn sentis («não sentes?») e o da segunda é nõn uidês («não
vês?»). De cada uma destas formas verbais depende uma oração infini­
tiva com sujeito em acusativo:

patere tua cõnsilia nõn sentis?

sujeito da infinitiva: tua cõnsilia (acusativo neutro do plural)


predicado da infinitiva: patêre (infinitivo presente de pateõ, «tornar
patente», «expor»)
tradução: «Não vês que os teus planos se tornam patentes?»

constrictam iam hõrum omnium scientià tenêri coniürãtiõnem tuam nõn


uidês?

sujeito da infinitiva: coniürãtiõnem tuam


predicado da infinitiva: tenêri (infinitivo passivo de teneõ, «segurar»)
LiçAo N.° 40 235

agente da passiva (em ablativo): scientiã («pelo conhecimento»)


constrictam concorda com coniüratiõnem
tradução: «Não vés que a tua conjuração é impedida [à letra, man­
tida constrangida] pelo conhecimento de todos estes <aqui presentes>?»

Vamos ler só mais uma frase. Desta vez, da oração infinitiva depen­
dem várias interrogativas indiretas, com o verbo no conjuntivo perfeito.
Mais uma vez, o verbo principal chega só no fim (arbitraris, do verbo
depoente arbitror, arbitrãri, «pensar», «considerar»):

quid proxima, quid superiore nocte egeris, ubifueris, quõs conuocãueris,


quid cõnsili ceperis, quem nostrum ignõrãre arbitrãris?

Aqui é importante ter atenção aos genitivos, ambos partitivos (NGL,


P· 303):

cõnsili (atenção à acentuação proparoxítona)


nostrum (ver NGL, p. 215)
tradução: «Pensas que alguém de nós ignora o que na noite anterior
e anterior a essa fizeste, onde estiveste, quantos convocaste, que plano
tomaste?»

Leiamos de seguida, para finalizar, todo este fantástico «naco» de


prosa latina:

quõ usque tandem abütêre, Catilina, patientiã nostrã? Quam diü etiam
furor iste turn nõs êlüdet? Quem ad finem sêsê effrênãta iactãbit audácia?
nihilne tê nocturnum praesidium Palãti, nihil urbis uigiliae, nihil timor
populi, nihil concursus bonõrum omnium, nihil hic munitissimus habendi
senatus locus, nihil hõrum õra uultüsque mõuêrunt? patere tua consilia nõn
sentis, constrictam iam hõrum omnium scientiã teneri coniüratiõnem tuam
nõn uidês?quid proximã, quid superiore nocte egeris, ubifueris, quõs conuo­
cãueris, quid cõnsili cêperis, quem nostrum ignõrãre arbitrãris?
Lição n.° 41

Õ tempora, õ mõrêsl

É assim que Cícero continua o discurso cujo início lemos na lição


anterior. Juntamente com a frase carpe diem de Horácio (que vimos na
Lição n.° 34), são as palavras mais famosas do latim clássico.
Encerram, no entanto, uma pequena rasteira. Contrariamente ao
que se poderia pensar, õ tempora, õ mõrés não é vocativo, mas sim acusa-
tivo de exclamação (NGL, p. 294).
A frase seguinte é muito acessível, pois os verbos estão no presente.
Note-se que com a palavra cônsul Cícero se está a referir a si mesmo; que
hic («este») se refere a Catilina; que immõ uêrõ é adverbial («na ver­
dade»); e que o substantivo feminino caedes, caedis significa «matança»:

senãtus haec intellegit, cônsul uidet; hic tamen uiuit uiuit? immõ uêrõ
etiam in senãtum uenit, fit püblict cõnsili particeps, notat et designat oculis
ad caedem ünum quemque nostrum.

«O senado percebe estas coisas; o cônsul vê; este, porém, vive. Vive?
Na verdade, ainda vem para o senado, é participante da decisão pública,
nota e designa com os olhos para a matança cada um de nós.»

(nostrum, genitivo de nõs [NGL, p. 215], é genitivo partitivo [NGL,


p. 303].)
LiçAo N.° 41 237

Nas duas frases seguintes, note-se que:

na primeira, istius (genitivo do pronome demonstrativo iste, ista,


istud, «este» [que segue a declinação de ille illa illud; cf. NGL, pp. 223-
-224]) se refere a Catilina
na segunda, temos duas orações infinitivas dependentes de oportêbat
(imperfeito de oportet; ver NGL, p. 356), cujos sujeitos (em acusativo)
são respetivamente tê e pestem.

Note-se ainda que o substantivo têlum, -i significa «arma». Vejamos:

nõs autem, fortes uiri, satisfacere reipüblicae uidêmur, si istiusfurõrem


ac têla uitãmus. ad mortem tê, Catilina, düci iussü cõnsulis iam pridem opor­
têbat, in tê conferri pestem quam tü in nõs omnês iam diü mãchinãris.

«Nós, porém, homens fortes, parecemos fazer o suficiente em prol


da república se evitamos o furor e as armas deste. Já há muito era neces­
sário, ó Catilina, que tu fosses levado para a morte por ordem de um
cônsul e que contra ti fosse levada a peste [= ruína] que tu há muito
maquinas contra nós.»

A tradução portuguesa não está bonita, procurando somente ajudar­


mos a encontrar as palavras (e a dar-lhes sentido) no texto latino. (Existe
uma tradução magnífica das Catilinárias de Cícero feita pelo saudoso
Doutor Sebastião Tavares de Pinho.)
Um aspeto importante a assinalar na frase acima citada é o valor
semântico de uideõ («ver») na voz passiva: «parecer».

Cícero continua o seu discurso com justificações e exemplos que


surgem aos nossos olhos modernos como eticamente reprováveis. No
fundo, o que o cônsul-orador está aqui a fazer é a incitar ao linchamento
de Catilina, apoiando-se em linchamentos e execuções sumárias pratica­
dos em séculos anteriores por grandes personagens.
238 L a t im do Z ero a V e r g íl io em 50 L i ç õ e s

O primeiro exemplo refere como Públio Cornélio Cipião Nasica


Serapião, pontífice máximo, liderou uma turba de indignados que mata­
ram Tibério Semprónio Graco e chacinaram trezentos apoiantes seus
(isto no século π a.C.).
O segundo exemplo perturba-nos ainda mais. No século v a.C,
houve uma fome tremenda em Roma e um benemérito de classe alta,
Espúrio Mélio (em latim, Spurius Maelius) comprou com o seu próprio
dinheiro uma quantidade enorme de cereal e vendeu-o ao povo a preço
baixíssimo (com avultado prejuízo próprio). O herói que Cícero aqui
elogia não foi, contudo, este homem que gastou o seu dinheiro para aju­
dar os pobres, mas sim Gaio Servüio Ahala, que matou sumariamente
Espúrio Mélio à punhalada, por entender que as ações beneméritas de
Mélio estavam a exacerbar as tensões entre plebeus e patrícios.
Vejamos primeiro a parte sobre Públio Cipião, que na condição de
priuãtus (isto é, sem ter poder legal para o fazer) matou Semprónio
Graco.

Note-se este vocabulário:

mediocriter: «moderadamente»
labefacto, labefactare: «abalar», «minar»
status, statús: «estado»
interficio, interficere, interfeci, interfectum: «matar».

an uêrõ uir amplissimus, P. Scipio, pontifex maximus, Tiberium Grac­


chum mediocriter labefactantem statum rei publicae priuãtus interfecit

O segundo membro contrastivo desta afirmação diz o seguinte


(note-se que perferõ significa «aguentar», «suportar»; quanto a cupiõ,
cupere, significa «desejar»):

Catilinam orbem terrae caede atque incendiis uastãre cupientem nõs


cônsules perferemus?
Lição n .° 41 239

Juntos, os dois membros desta afirmação podem ser traduzidos (sem


pretendermos emular o requinte literário do Doutor Pinho) da seguinte
maneira:

«Pois na verdade um varão distintíssimo, Públio Cipião, pontífice


máximo, matou ccomo cidadão> privado Tibério Graco, que estava a
abalar moderadamente o estado da república. Nós, cônsules, suportare­
mos Catilina, que está desejoso de devastar a orbe da terra com matança
e incêndios?»

Cícero passa mais brevemente por cima do caso de Espúrio Mélio,


assassinado por Servilio Ahala:

nam illa nimis antiqua praetereo, quod Gaius Seruilius Ahäla Spurium
Maelium nouts rebus studentem manü suã occidit

Nesta frase, notemos os seguintes aspetos:

illa antiqua: acusativo do plural neutro («aqueles assuntos antigos»)


nimis: advérbio («demasiado»)
praetereo,praeterire: «passarpordma» (cf., em português, «preterir»)
quod: aqui como conjunção no sentido de «que»
nouis rêbus: dativo (devido à construção de studeõ, aqui no sentido
de «dedicar-se a»); o significado de «assuntos novos» sugere a ideia de
«assuntos revolucionários», pois o que Espúrio Mélio estava a tentar
fazer era visto pelos patrícios como uma revolução na ordem social
romana
occidõ, occidere: «matar» (não confundir com occtdõ, «cair»).

Estes exemplos servem a Cícero para afirmar que houve, outrora, em


Roma uirtüs (nominativo do singular). Já sabemos que uirtús vem de uir
(«varão») e que a palavra significa a decantação abstrata do que é
«viril». Quando Cícero diz que houve anteriormente essa «virtude
240 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

varonil» em Roma, o que ele quer dizer é que os senadores e outros


patrícios do seu tempo não são «suficientemente homens» para lidar
com Catilina como os heróis de antanho teriam lidado: matando-o sem
mais nem menos, sem tribunais, sem julgamentos, sem cerimônia.
Repare-se na repetição patética defuit:

fuit, fuit ista quondam in hãc ré püblicã uirtús, ut uirifortes ãcriõribus


suppliciis âuem perniciosum quam acerbissimum hostem coercerent.

«Houve, houve outrora nesta república esta virtude, a ponto de


homens fortes reprimirem um cidadão pernicioso com suplícios mais
acres do que <aqueles com que refreariam> um inimigo acerbissimo.»

Nesta frase, temos o nosso primeiro exemplo de uma oração conse­


cutiva («a ponto de...», «de tal forma que...»), introduzida por ut
(e com o verbo no conjuntivo; ver NGL, pp. 328-330). O segundo termo
de comparação é introduzido por quam.

Breve reflexão final: esta passagem de Cícero faz-me sempre lembrar


de um almoço em casa do meu avô (comandante da marinha) quando
eu era adolescente, em que a minha mãe e o meu avô se embrenharam
numa discussão sobre D. João II. O meu avô achava D. João II o melhor
rei de Portugal, o Príncipe Perfeito, que sabia socorrer-se de atos decisivos
em todas as circunstâncias, não hesitando em pegar no punhal para matar
o próprio cunhado, o duque de Viseu, depois de ter conseguido num
processo (com contornos semelhantes aos de Catilina) condenar à
morte o duque de Bragança. A minha mãe, por seu lado, achava D. João
II um assassino e um manipulador monstruoso. Isto lembra-me Cícero
porquê? Porque o príncipe perfeito dos oradores que compôs as Catili-
nárias (e que conseguiu a morte de Catilina) não deixou de ser também
o príncipe dos manipuladores.
Lição n.° 42

«Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o Teu nome. Che­
guei ao Teu reino; seja feita a Tua vontade...»
Certamente notaram algo de estranho. Aqueles de nós que rezamos
o Pai-Nosso não dizemos «cheguei ao Teu reino». Dizemos «venha a
nós o Teu reino» (em latim, adueniat [também ueniat, dependendo dos
manuscritos] rêgnum tuum).
No entanto, a forma mais antiga da frase em latim, por incrível que
pareça, é uênt ad rêgnum tuum. Encontra-se no primeiro manuscrito
latino (que conheçamos) a transmitir textos dos Evangelhos: o Codex
Bobiensis, do século iv (atualmente em Turim).
O copista estaria distraído? Ou teria regado o almoço com muito
vinho? Certo é que ninguém lhe deu (ou dá) qualquer crédito, porque a
formulação «cheguei ao Teu reino» é por todos os especialistas consi­
derada um lapso. O texto grego correspondente («chegue <agora> o teu
reino», com o imperativo aoristo de 3.apessoa έλθέτω) é estável na trans­
missão manuscrita grega.
Sendo decerto implausível que Jesus nos tenha ensinado a rezar a
Deus «cheguei ao Teu reino», a ideia em si mesma não é inconcebível,
se a tomarmos em aceção mística: lembro-me de ter lido, quando era
adolescente, um livro sobre santos e místicos onde se dizia que Santa
Clara, quando rezava, nunca passava das primeiras palavras Pater noster,
porque entrava logo em êxtase devido à colossalidade cósmica que é um
ser humano poder tratar Deus por «Pai». Eu diria ainda que quem escuta
o Benedictus da Missa Solene de Beethoven consegue entender bem o
242 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições

que a pena do copista do Codex Bobiensis o levou a escrever, «cheguei


ao Teu reino». É, de facto, música que nos transporta misticamente para
o reino de Deus. Quem sabe o que terá passado pela cabeça daquele
homem que escreveu em latim o primeiro Pai-Nosso que conhecemos?
Na Lição n.° 11, abordámos brevemente o Pai-Nosso em latim, a
propósito dos conjuntivos com valor jussitivo. Vamos agora dedicar um
pouco de atenção ao estudo desta oração fundamental na vida de tantas
pessoas. Antes disso, porém, a informação com que iniciámos esta lição
serve de mote para a pergunta: que Pai-Nosso em latim?
Quando falamos da Bíblia latina empregamos muitas vezes, de forma
imprecisa, termos como «Vulgata» e «versão de São Jerónimo»; na
verdade, são termos que, se os quisermos empregar com precisão, levan­
tam alguns problemas.
Contrariamente ao que por vezes se pensa, Jerónimo não traduziu a
Bíblia para latim a partir do zero, mas corrigiu uma tradução já existente,
a que se dá o nome de «Vetus Latina» para a distinguirmos da Vulgata
(e note-se que o próprio termo «Vulgata» aplicado à Bíblia revista por
Jerónimo não vem da Antiguidade; vem do Concilio de Trento, no
século XVI; na Antiguidade, o termo editio uulgata referia-se ao Antigo
Testamento latino traduzido a partir da versão grega, a Septuaginta).
Não sabemos quem foi o responsável (ou responsáveis) pela tradu­
ção Vetus Latina. Há muitas teorias sobre isso. Os primeiros pensadores
cristãos de língua latina (nos séculos n e m) estavam ainda inseridos num
mundo marcado pelo bilinguismo cultural grego/latim. Os textos do
Novo Testamento que eles liam estavam em grego; e quando precisavam
de os citar em latim, muitos deles faziam as suas próprias traduções «na
hora». Terá sido o caso, certamente, de Tertuliano, em cujas citações do
texto bíblico em latim raramente há coerência: basta dizer que ele tanto
era capaz de citar o início do Evangelho de João como in principio erat
uerbum como á primordio erat uerbum.
Podemos falar da existência da tradução Vetus Latina a partir do
momento em que notamos uma certa uniformidade nas citações, feitas
por pensadores cristãos de língua latina, de passagens da Bíblia em latim.
LiçAo N.° 42 243

Esta situação nota-se nos escritos de Cipriano, mártir e bispo de Cartago


no século ui.
Jerónimo empreendeu a sua revisão da Bíblia em finais do século iv.
Dedicou-se à revisão dos Evangelhos na década de 80 desse século. Uma
mudança de paradigma importante trazida porJerónimo foi a ordem em
que lemos os Evangelhos. A ordem da Vetus Latina era Mateus-João-
-Lucas-Marcos. Outras mudanças têm a ver com o texto propriamente
dito - onde temos, no caso do Pai-Nosso no Evangelho de Mateus, uma
mudança que seria significativa se soubéssmos o que significa.
Como foi sobretudo no Evangelho de Mateus que Jerónimo focou
o seu trabalho de revisão, notamos que nos Evangelhos de Lucas e de
João temos, na Vulgata, um texto muito mais parecido com a Vetus
Latina do que é o caso em Mateus e Marcos. O que se terá passado?
A energia daquele grande homem terá esmorecido? Ficou cansado do
trabalho? Certo é que, na Vulgata de Jerónimo, a alteração feita no Pai-
-Nosso em Mateus não foi feita no Pai-Nosso em Lucas. Mas já lá iremos.
Antes disso, ofereçamos apenas mais esta informação sobre o termo
«Vulgata». Já referi que foi só a partir do Concilio de Trento que o termo
passou a ser aplicado à Bíblia revista porJerónimo. No final desse mesmo
século X V I, saiu em Roma, em 1590, aquilo a que se chama «Vulgata
Sistina», publicação empreendida sob os auspícios do papa Sisto V
(a cujo nome está associada a tentativa de impor, nos estados papais,
a pena de morte para adultério - em flagrante contradição com o que
preconizou Jesus Cristo). O papa morreu nesse mesmo ano e a Vulgata
Sistina foi retirada de circulação (alegadamente devido ao número ele­
vado de gralhas), tendo sido substituída, em 1592, pela Vulgata Clemen­
tina, publicada no pontificado de Clemente VIII (também de triste
memória para muitos de nós, por ter sido sob este papa que Giordano
Bruno foi queimado em praça pública). Uma pequena confusão adicional
é que a Vulgata Clementina proclamava no frontispício que era a Vulgata
Sistina; mas podemos deixar agora essa questão e dar um salto no tempo
até 1979, quando saiu (no pontificado deJoão Paulo II) a Nova Vulgata,
que é hoje o texto bíblico oficial da Igreja Católica.
244 L a t im do Z ero a V e r c íl io em 50 L iç õ e s

Apolivalência do termo «Vulgata» não fica, contudo, pelas varian­


tes Vulgata Sistina, Vulgata Clementina, Nova Vulgata. Em paralelo com
estas Vulgatas católicas, temos edições pensadas mais para uso
académico-universitário. Aqui podemos falar na Vulgata Stuttgartensia
(também conhecida como Vulgata de Weber-Gryson, que eu próprio
uso habitualmente, embora goste também de ler o Novo Testamento na
versão da Nova Vulgata católica) e na Vulgata Oxoniensis. E há outras
mais17.
Indo agora ao caso do Pai-Nosso de Mateus (6:9-13): há pequenas
diferenças entre o que lemos na Nova Vulgata e na Vulgata Stuttgarten­
sia. Separo as duas versões por « / », dando primeiro o texto da Vulgata
Stuttgartensia:

Pater noster qui in caelis es / Pater noster, qui es in caelis


sanctificetur nõmen tuum / [igual]
ueniat régnum tuum / adueniat regnum tuum,
fiat uoluntäs tua sicut in caelõ et in terrã / [igual]
pãnem nostrum supersubstantialem dã nõbis hodiè/ [igual]
et dimitte nõbis debita nostra / [igual]
sicut et nõs dimisimus debitoribus nostris / sicut et nõs dimittimus debi­
toribus nostris
et né indücãs nõs in temptãtiõnem / et nê indücäs nõs in tentãtiõnem
sed liberã nõs ã malõ / sed liberä nõs ã Malõ,

A diferença mais expressiva é, na antepenúltima linha, dimisimus


(«perdoámos», perfeito) por dimittimus («perdoamos», presente).
Esta oscilação segue o que verificamos nos manuscritos gregos, onde há
oscilação entre presente e aoristo (tempo equivalente ao perfeito latino).
Devemos pedir a Deus «perdoa as nossas dívidas tal como nós per­
doamos aos nossos devedores», ou «perdoa as nossas dívidas tal como

17Ver sobre estes temas H.A.G. Houghton, The Latin N ew Testament: A Guide to its Early History,
Texts, and Manuscripts , Oxford, 2016.
LiçAo N.° 42 245

nós PERDOÄMOS aos nossos devedores»? O perfeito faz sentido, na


medida em que mostrámos já a Deus o bom exemplo de sermos capazes
de perdoar aos outros, antes de Lhe pedirmos que nos perdoe a nós. No
entanto, não é a opção escolhida no meio eclesiástico, ainda que seja
justamente o que lemos nos manuscritos mais antigos que preservam o
Evangelho de Mateus, o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus gregos,
ambos do século iv.
A grande diferença introduzida porJerónimo no texto do Pai -Nosso
de Mateus foi pãnem nostrum supersubstantiãlem, em vez do que se lê na
Vetus Latina, que é pãnem nostrum cotidiãnum. A forma supersubstan­
tiãlem procura reproduzir em latim o enigmático epiousion (έπιούαον)
do texto grego, que ninguém sabe ao certo o que significa. Talvez signi­
fique «crástino» (isto é, o pão de amanhã). Mas seria imprudente pôr
as mãos no fogo.
Curiosamente, embora Jerónimo não tenha gostado de cotidiãnum
em Mateus, deixou a palavra intacta no Pai-Nosso de Lucas (onde em
grego se coloca de novo a questão se devemos ler «perdoamos» ou
«perdoámos», embora seja preciso sublinhar que, no caso de Lucas, os
manuscritos mais antigos apoiam «perdoamos», ao contrário do que se
verifica no texto de Mateus).
Como nota final: a deseducação em matéria religiosa no nosso pais
leva muitas pessoas a supor que o Pai-Nosso que dizem na missa corres­
ponde às palavras estabelecidas por Jesus nos dois Evangelhos em que
nos diz para rezarmos o Pai-Nosso (a oração está ausente de Marcos e
de João). A verdade é que, por muitas Vulgatas que tenhamos ao nosso
dispor para estudo e consulta, estamos longe de saber o que são, exata­
mente, essas palavras.
Lição n.° 43

O regresso da primavera, com a sua promessa de verão, leva muitos


de nós a pensar no melhor da vida. Para Horácio, porém, nos dois bri­
lhantes poemas que escreveu sobre o tema, o que a vinda da primavera
nos traz é a morte.
As duas «primaveras» de Horácio foram compostas com algum
intervalo de tempo: a primeira é a Ode 4 do Livro 1 das Odes; a segunda
é a Ode 7 do Livro 4. Sabemos que Horácio escreveu o Livro 4 das Odes
bastante tempo depois de ter terminado o monumentum constituído
pelos Livros 1, 2 e 3. A «primavera» do Livro 4 é uma revisitação do
tema e da sua premissa principal de que ao viço primaveril se segue ine­
xoravelmente a palidez da morte.
Os latinistas discutem qual dos dois poemas será o melhor. Na minha
opinião, são ambos igualmente maravilhosos, mas tenho um fraquinho
especial pelo ritmo da primeira ode, com os seus dísticos a misturar dácti-
los e itiíâlicos (no primeiro verso) e um crético ensanduichado (x - U - x)
por duas ancípites (e também seguido por um itifálico) no segundo verso
(sobre esta terminologia, leiam a partir da p. 383 na NGL).
Os ritmos dos dáctilos e dos itifálicos, à partida, nada têm a ver um
com o outro, mas aqui funcionam bem juntos, um pouco à semelhança
de um prato que conseguiu misturar peixe e carne (e logrou, não obs­
tante, resultar bem: como esse argumento irrefutável em prol da conci­
liação de opostos que é a paella).
A textura rítmica do poema, assim constituída por dois elementos
tão contrastantes, parece refletir a sua mensagem de que existem,
LiçAo N.° 43 247

na realidade humana, dois polos opostos que são vida e morte. Também
em termos gramaticais encontramos um reflexo desta polaridade: todos
os verbos estão no presente na parte do poema que refere a vida; quando,
numa transição abrupta, o tema passa a ser a morte, os verbos surgem
conjugados no futuro.
Comecemos por considerar os primeiros quatro versos:

«O acre inverno é dissolvido pela grata mudança da primavera e do


Favónio;
e as máquinas arrastam as quilhas secas;
e já nem o gado se agrada com os estábulos nem o agricultor com
o fogo;
nem os prados com alvas geadas se branqueiam.»

Note-se o seguinte vocabulário, antes de lermos em latim:

hicms, hiemis (feminino): «inverno»


uicis, uicis (feminino): «mudança», «recorrência», «alternância»
uêr, uêris (neutro): «primavera»
cãnus, a, um: «branco» (aplicado aos cabelos; cf., em português, «cãs»)
pruina, -ae: «geada».

soluitur ãcris hiemsgrãtã uice uêris etFauõni,


trahuntque siccãs màchinae carinàs
ac neque iam stabulis gaudet pecus aut arãtor igni,
nec prata canis albicant pruinis.

O Favónio é o Zéfiro, cujas brisas amenas e primaveris impedem que


os prados fiquem brancos de geada. Nas palavras que compõem este
primeiro grupo de quatro versos, destaco o interesse de uicis (com a sua
polissemia e com a sua etimologia, que a relaciona com a palavra alemã
para mudança, Wechsel); de carina, com o sentido de «quilha», mas cuja
etimologia a relaciona com a ideia de «casca» (em grego, kâruon
248 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

[κάρυον], e em sânscrito karakah, «coco»); e destaco, ainda, pruina,


palavra cognata defrigus («frio») e defreeze em inglês. Já agora, o adje­
tivo canus (proveniente de uma antiga forma càsnus) está relacionado
com a palavra para «ancião» em osco (casnar), um dos dialetos itálicos
que o latim acabou por exterminar.
Na secção seguinte, mostra-se o mundo natural em que as atividades
humanas se desenrolam como habitado, também, por seres divinos, que
não se alegram menos do que os humanos com o bom tempo:

«Já Vénus Citereia conduz as danças sob lua sobranceira;


e juntas com as Ninfas as Graças decorosas
percutem a terra com pé alternado, enquanto Vulcano
ardente visita as possantes oficinas dos Ciclopes.»

Nos versos em latim, note-se o sentido do verbo quatiõ, quatere


(«bater», «sacudir», percutir»):

iam Cytherêa choros dücit Venus imminente lünã,


iunctaeque Nymphis Grãtiae decentes
altemõ terram quatiunt pede, dum grauis Cyclõpum
Vulcànus ãrdêns uisit officinâs.

O sentido do verbo uisõ aqui é «visitar». A lição uisit está nos


manuscritos carolíngios que são os testemunhos mais antigos que temos
do texto de Horácio (o mais antigo deles pertenceu depois à rainha Cris­
tina da Suécia, que o deixou em legado ao papa - razão pela qual se
encontra, hoje, na Biblioteca Vaticana), mas outros manuscritos mais
recentes dão-nos a ler ürit («queima»). Curiosamente, era esta a lição
presente no texto de Horácio que Camões conheceu, como se vê no
V . 17 da ode «Fogem as neves frias», em que o poeta português imitou

o latino: «Enquanto as oficinas / dos Cidopas Vulcano está queimando.»


A menção de deuses conduz à homenagem que lhes é devida pelos
humanos:
LiçAo N.° 43 249

«Agora fica bem ou a lustrosa cabeça atar com verde mirto


ou <atá-la> com uma flor que as terras soltas oferecem.
Agora fica bem sacrificar a Fauno em bosques sombrios,
quer ele exija uma cordeira, quer prefira um cabrito.»

Os versos latinos retomam o verbo inicial soluitur na forma solütae.


Atenção ao verbo impessoal decet (ver NGL, p. 355):

nunc decet aut uiridi nitidum caput impedire myrtõ


autflõre terrae quemferunt solutae;
nunc et in umbrosis Faunö decet immolãre lücis,
seu poscat agnã siue mãlit haedõ.

De forma brutal e inesperada, a «pálida Morte» irrompe nos versos


que se seguem; versos que, em tom sombrio, terminam o poema que
começara no registo oposto:

«A pálida Morte atinge, com pé imparcial, casebres de pobres


e torres de reis. Ó bem-aventurado Séstio,
o píncaro breve da vida impede-nos de dar início a uma esperança longa;
já a noite te oprimirá, assim como os Manes da fábula
e a casa insípida de Plutão. Assim que lá chegares,
nem as soberanias do vinho sortearás com dados,
nem mirarás o jovem Lícidas, com quem se escalda a rapaziada
toda agora e <com quem> em breve as virgens se vão encalorar.»

O poema tem 20 versos, mas é só no v. 14 que descobrimos o nome


do dedicatário: Lúcio Séstio, grande amigo de Bruto (assassino de Júlio
César), que sobreviveu «bem-aventuradamente» ao facto de ter sido
proserito após a vitória de Octaviano e de Marco Antônio sobre os assas­
sinos de César. A vida humana, de facto, está separada da morte humana
(e da morte às mãos de humanos) por um triz.
250 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Nos versos em latim, colocarei as formas de futuro em maiúsculas,


para as destacar. Mas vejamos, antes de os lermos, algumas rasteiras que
se acumulam nos quatro últimos versos deste poema:

exflts (adjetivo): «insípido» (aplica-se à domus Plütõnia, a casa de Plutão)


meãris = meáueris, futuro perfeito (forma sincopada; ver NGL,
p. 177) de meõ, meãre («ir»)
sortiere=sortieris (2.apessoa do singular do futuro do verbo depoente
sortior, sortiri, «tirar à sorte»)
tãlis: ablativo do plural de talus, -í («dado»; a ideia subjazente é a
de tirar algo à sorte com dados)
mirãbere = mirãberis (2.a pessoa do singular do futuro de miror,
mirãri, « admirar» ).

pallida Mors aequõ pulsat pede pauperum tabernas


rêgumque turris. õ beãte Sesti,
uitae summa breuis spem nõs uetat inchoare longam;
iam tê PREMET noxfãbulaeque Mãnès
et domus exilis Plütõnia; quõ simul MEÃRIS,
nec rêgna uini SORTIERE tãlis
nec tenerum Lycidãn MlRÃBERE, quo calet iuuentüs
nunc omnis et mox uirginés TEPÈBVNT.

No meio dos futuros que fecham o poema, temos o presente calet


(do verbo caleõ, calêre, «estar quente», «arder», «inflamar-se»), por
meio do qual (na correlação com o futuro tepêbunt) Horário se atém ao
estereótipo greco-latino de que a beleza masculina é mais atraente para
pessoas do mesmo sexo quando é imatura; e mais desejada por pessoas
do sexo oposto depois de atingida a maturidade.
Note-se, ainda, que a expressãofãbulaeque Mãnès é enigmática. A inter­
pretação que lhe dou é que fâbulae se encontra no genitivo do singular18.

18Ver A.S. Hollis, Fragments o f R om an Poetry, Oxford, 2007, p. vii.


LiçAo N.° 43 251

No poema que, mais tarde, Horácio escreverá sobre o regresso da


primavera, as primeiras palavras são diffugere niuès, em que diffügêre é
uma forma de perfeito (= diffugerunt). As restantes formas verbais desse
poema do Livro 4 oscilam e variam mais do que é o caso no poema do
Livro 1 que acabámos de ler na íntegra, mas só a forma verbal que abre
o poema está no perfeito. Não deixa de ser curioso que Camões tenha
«corrigido» esse perfeito solitário para presente em «Fogem as neves
frias».
Curiosa é também a circunstância, já agora, de no Cântico dos Cân­
ticos (tanto na versão grega como na latina) predominar o perfeito na
descrição do regresso da primavera, com a mudança para o presente
quando se refere o florescimento das vinhas (2:11-13):

«Eis que o inverno passou; a chuva passou e foi-se embora. As flores


apareceram na terra; o tempo da poda chegou. A voz da rola ouviu-se na
nossa terra. A figueira deu seus figos; as vinhas florescem e já deram
perfume.»

Em latim:

iam enim hiems transiit; imber abiit et recessit; flõrês apparuerunt in


terra; tempus putãtiõnis aduênit; uõx turturis audita est in terrã nostrá;ficus
prõtulit grossos suos; uxneaeflorent; dederunt odorem.

A palavra latina grossus (de etimologia desconhecida, mas usada por


Plínio-o-Antigo) refere um figo que não chegou a amadurecer: um figo
abortado, portanto morto. Se a primavera for de mais, o futuro é anteci­
pado. E sabemos por Horácio que o futuro anunciado pela primavera é
a morte. Vivamos, pois, no presente.
Lição n.° 44

Uma expressão de Horácio serve a Santo Agostinho para dar sentido


ao desalento do luto; por seu lado, uma reflexão de Agostinho serve-nos
a nós para enquadrar melhor uma passagem de Horácio.
O desgosto de Agostinho pela morte do seu grande amigo (não
nomeado) marca, como já tivemos ocasião de referir anteriormente
(p. 140), de forma especial o Livro 4 das Confissões. A certa altura, Agos­
tinho comenta que «alguém disse acertadamente de um seu amigo <que
era> metade da sua alma». £sse «alguém» (em latim, quidam) é Horá­
cio, que na Ode 1.3 assim se refere a Vergilio.
A ocasião que dá origem ao enunciado «metade da minha alma»
é uma viagem marítima até à Grécia prestes a ser empreendida por Ver­
gilio, viagem essa que leva Horácio a compor um poema a cujo gênero
os dassicistas dão o nome grego propemptikón (isto é, um poema escrito
por ocasião de uma viagem por mar, essencialmente com o propósito
de desejar boa viagem - embora Horácio tivesse experimentado, uns
anos antes, escrever um poema ao contrário, desejando ao dedicatário
tempestades e tudo de mau [Epodo 13]). A viagem de Vergilio já tem
sido interpretada por alguns latinistas em clave alegórica: não é uma
viagem por mar que ele vai empreender, mas sim a composição da
Eneida. Seja como for, Horácio socorre-se dos elementos tradicionais
do propemptikón (já presentes em Safo) e abre a Ode 1.3 da seguinte
maneira:
L iç ã o n .° 44 253

«Assim a deusa poderosa de Chipre,


assim os irmãos de Helena, estrelas luzentes,
e o pai dos ventos te dirija,
atados os outros <ventos>, à exceção do Iápix,
ó nau! <Tu> que <me> deves Vergilio
a ti confiado: que às praias áticas <o>
devolvas incólume - peço -
e guardes metade da minha alma.»

sie té diua potêns Cypri


sicfrãtrês Helenae, lúcida sidera,
uentõrumque regat pater
obstrictis aliis praeter Iãpyga,
nãuis, quae tibi creditum
dêbês Vergilium,finibus Atticis
reddas incolumem precor
et seruês animae dimidium meae.

A deusa poderosa de Chipre é Vénus, deusa do amor, cuja presença


causa aqui ligeira estranheza, pelo facto de nada termos em que basear a
suposição de que a amizade entre Horácio e Vergilio seria de natureza
erótica. Os irmãos de Helena são Castor e Pólux (a constelação de
Gêmeos era vista como protetora dos marinheiros). Qpanto ao Iápix, é
o vento de noroeste, portanto o vento certo e desejável para impelir uma
nau de Itália para a Grécia. No texto latino, note-se o ablativo absoluto
obstrictis aliis (o verbo obstringo, obstringere, obstrinxi, obstrictum significa
«atar», «prender», «constranger»). Temos ainda a destacar os três
conjuntivos jussitivos (regat, reddãs, seruês).
Ora, a expressão animae dimidium meae («metade da minha alma»)
é citada por Agostinho sob a forma dimidium animae suae. O bispo de
Hipona prossegue com a confirmação da aplicabilidade da frase à cir­
cunstância que o atormentou quando o amigo morreu. Antes, porém,
de avançarmos, leiamos a passagem toda (4.6):
254 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições

«Eu admirava-me, pois, que os demais mortais vivessem, porque ele,


a quem eu estimara como <alguém> que não iria morrer, morrera; por­
que eu era um segundo ele, eu admirava-me de viver, tendo ele morrido.
Acertadamente alguém disse de um seu amigo <que era> metade da sua
alma. Pois eu senti que a minha alma e a alma dele eram uma só alma em
dois corpos; e por isso a vida me era um horror, porque eu não queria
viver a metade; e por isso, porventura, eu receava morrer, não fosse todo
ele morrer, a quem eu muito amara.»

mirabar enim cêterõs mortãlês uiuere, quia ille, quem quasi nõn mori­
turum dilixeram, mortuus erat, quia ille alter eram, uiuere illo mortuo
mirabar, bene quidam dixit di amicõ suõ: dimidium animae suae. nam ego
sensi animam meam et animam illius ünamfuisse animam in duobus corpo­
ribus, et ideõ mihi horrori erat uita, quia nolebam dimidius uiuere, et ideõ
forte mori metuebam, nê tõtus ille moreretur quem multum amãueram.

Na passagem em latim, note-se o seguinte:

oração infinitiva dependente de mtrãbar com sujeito em acusativo


(cêterõs mortãlês)
participio futuro moritürum (em acusativo a concordar com quem)
ablativo absoluto (illo mortuo)
oração infinitiva dependente de sensi com sujeito em acusativo (ani­
mam meam... animam illius)
oração dependente de verbo a exprimir receio (mêtuêbam nê...) com
verbo no conjuntivo (morerêtur); ver NGL, p. 353.

Estes aspetos gramaticais já foram todos abordados em lições ante­


riores. Na passagem de Agostinho temos, porém, uma novidade: um
exemplo do fenômeno gramatical chamado «atração do dativo» na
expressão mihi HORRÕRl erat uita, em que o caso de horror sofre o efeito
da atração do dativo mihi. Um exemplo célebre deste fenômeno ocorre
no início da comédia Rudêns de Plauto, quando a estrela Arcturo, que
LiçAo N.° 44 255

abre a peça, diz nõmen Arctürõ est mihi (em vez de nõmen Arcturus est
mihi).
Um pouco mais adiante no mesmo Livro 4, Agostinho deixa-nos
uma reflexão espantosa sobre o tempo, que complementa a visão hora-
ciana aflorada na lição anterior.
O tempo não passa de forma oca (afirma Agostinho) nem flui des-
propositadamente através dos nossos sentidos. Na verdade, opera na
mente humana coisas estranhas. Notemos como, dir-se-ia para vincar a
polivalência do efeito do tempo em nós, Agostinho opta pelo plural
«tempos» (em latim, tempora):

«Os tempos não passam de forma vazia nem fluem ociosamente


através dos nossos sentidos; realizam no espírito obras estranhas.»

nõn uacant tempora nec õtiõsé uoluuntur per sensüs nostrõs: faciunt in
animõ mira opera.

Referindo-se à dor enorme causada pela morte do amigo, Agostinho


pergunta (e na tradução vou inventar [?] a forma portuguesa «mon­
turo», a partir do participio futuro latino):

«Pois donde tão facilmente aquela dor penetrara em mim e nos


<recônditos mais> íntimos, a não ser porque eu derramara na areia a
minha alma, amando um monturo como se não fosse morituro? Decerto
muito me restauravam e recreavam as consolações de outros amigos,
com os quais eu amava aquilo que em vez de Ti amava; e isto era uma
enorme fantasia e uma longa mentira.»

Antes de lermos em latim, atenção aos seguintes aspetos:

foderam: indicativo mais-que-perfeito defondo,fundere, fodi,füsum


(«derramar»)
diligendo: gerundio
256 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

neutros do plural: in intima, sõlãcia


quippe: aqui como advérbio («decerto»).

nam unde mê facillime et in intima dolor ille penetrãuerat, nisi quia


fúderam in harênam animam meam diligendo moritürum acsi nõn mori-
türum? maxime quippe mê reparabant atque recreabant aliorum amicorum
sõlãcia, cum quibus amabam quod prõ tê amabam, et hoc erat ingensfabula
et longum mendacium.

Curiosamente, Agostinho emprega aqui a mesma palavra/ãbu/α que


encontrámos, na lição anterior, na Ode 1.4 de Horácio, quando o poeta
romano refere os «Manes da fábula», ou seja, as entidades sobrenaturais
que são fabulosas por só existirem fora da realidade, no plano divino. Na
visão de Agostinho, pelo contrário, o que é real é o divino; e o que ele vê
como «fábula» e «longa mentira» são as amizades humanas. Acrescen­
temos, apenas, a observação triste de que todos nós, nalgum momento
das nossas vidas, tivemos ocasião de confirmar que Agostinho tem (infe­
lizmente) razão.
Lição n.° 45

Entre os textos mais belos e enigmáticos alguma vez compostos,


temos de contar um poema que faz parte da coletânea das dez Bucólicas
de Vergilio - o conjunto de poemas com que o poeta de Mântua (após
um período de estudo epicurísta em Nápoles) mostrou à intelectualidade
e à aristocracia romanas que algo de muito especial nascera no mundo
das letras greco-latinas: uma voz, finalmente, não só capaz de competir
com a grande poesia grega, mas capaz, até, de a superar. Numa coletânea
de poemas bucólicos, o poema que se tomou mais célebre foi paradoxal­
mente o único não bucólico. O estilo é diferente dos demais; a estética
rítmica (no jogo, a prenunciar a Eneida, entre acento tônico e acento
métrico) é diferente; e o tema é tão, tão diferente das convenções dos
amores pastoris que o poema pôde ser lido, durante séculos, como pro­
fecia sobre o nascimento de Jesus Cristo.
O poema, escrito em 40 a.C., refere, de facto, o nascimento de um
menino. Note-se: de um menino; não de O Menino. Quem esse menino
possa ter sido é mistério para o qual os latinistas já contabilizaram sete
respostas (sendo Jesus Cristo a n.° 7), nenhuma delas capaz de reunir
consenso19. Certo é só este facto: o ano de 40 a.C. foi um ano fulcral na
precipitação de eventos que, após o assassinato deJúlio César em 44, con­
duziram à morte definitiva da república romana e ao surgimento de um
regime político autocrático. Pois o regime imperial outra coisa não foi do
que uma ditadura a longo prazo: se aceitarmos que esta ditadura começou

19Cf. R. Coleman, Vergil: Eclogues, Cambridge, 1977, pp. 150-154.


258 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

realmente em 31 a.C. com a vitória de Octaviano (Augusto a partir de


27 a.C.) sobre Marco Antônio e Cleópatra e terminou simbolicamente
em 1453 com a morte de Constantino XII, o último imperador romano
(quando Constantinopla caiu nas mãos dos Turcos), temos uma ditadura
(de mãos dadas com a igreja cristã a partir do século iv) que durou bem
mais do que os intermináveis 48 anos do Estado Novo português.
Mas, em 40 a.C., tudo isso ainda estava no futuro: o poder em Roma
ainda era rotativo e os dois cônsules desse ano foram Asínio Polião e
Domício Calvino. O primeiro, brilhante; o segundo, apagado. Tão bri­
lhante, de resto, foi Polião que, na geração precedente, fora mencionado
em poesia - no poema 12 de Catulo. Aliás, os poetas desdobraram-se nos
elogios e nas dedicatórias a Polião. Na lição anterior, falámos no gênero
poético chamado propemptikón, um poema composto para desejar boa
viagem a uma figura ilustre. Um dos amigos talentosos de Catulo, cha­
mado Hélvio Cina (tragicamente linchado por engano pela multidão a
seguir ao assassinato deJúlio César), escrevera o mais marcante exemplo
deste gênero poético, o Propempticon Pollionis (que não chegou até nós).
Do mesmo circulo a que Catulo e Cina pertenciam, destacou-se ainda
outro amigo de Polião: Licinio Calvo. Na geração seguinte, Vergílio
(Bucólica 4) e Horácio (Ode 2.1) dedicam-lhe poemas. E Vergílio vai
mais longe: elogia o talento poético de Polião e põe a poesia trágica do
aristocrata ao mesmo nível de Sófocles!
Tanta bajulice porquê? Em primeiro lugar, a riqueza bilionária de
Polião. Em segundo lugar, a sua importância política: basta dizer que, em
44, quando César foi assassinado, Polião era governador da Hispânia
Ulterior (província a que pertenciam, em 44, partes do território a que
hoje chamamos Portugal). Em terceiro lugar, a sua cultura e os seus con­
tactos. A Hispânia Ulterior tinha capital em Corduba (hoje Córdova) e
Polião tornou-se amigo de uma família onde conheceu certo jovem pro­
missor: Séneca (mais tarde grande escritor e pai do outro Séneca, futuro
conselheiro de Nero). É fascinante, de facto, pensarmos que Polião con­
viveu pessoalmente com os letrados Catulo, Cina, Calvo, Vergílio, Horá­
cio, Séneca pai; foi amigo de Júlio César (com quem invadiu a Itália em
LiçAo N.° 45 259

49 a.C), de Octaviano e de Marco Antônio. E como se isso não bastasse


para uma lista ilustre de amigos numa qualquer rede social, no ano 40,
em que este poema foi escrito, Polião recebeu em sua casa, em Roma,
outro amigo: o rei Herodes (o do massacre dos inocentes).
Além disto tudo, Polião fundou a primeira biblioteca pública de
Roma (com secção grega e secção latina). Colaborou, é certo, na instau­
ração do novo regime, mas recusou-se a combater em Áccio contra o seu
ex-amigo Marco Antônio. Foi pai de um filho com o mesmo nome, que
herdou os seus privilégios e a sua grande fortuna, mas que não ficou
imune às arbitrariedades injustas típicas do regime que o pai ajudara a
instaurar. Pois Asínio Polião filho, não obstante o seu nascimento ilustre
e a sua fortuna bilionária, haveria de morrer à fome, na prisão, por ordem
do imperador Tibério.
Antes da sua morte tristíssima, Gaio Asínio Polião filho gabava-se
de ser o menino cantado por Vergilio na Bucólica 4. Os especialistas
atuais não lhe concedem, porém, esse penacho. Pois há dois candidatos
melhores - candidatos que, na realidade, acabaram por ser candidatas.
Porque é muito interessante cantar um menino maravilhoso que vai nas­
cer; o problema (na sociedade romana) é quando o menino nasce e,
afinal, se verifica que é menina. Se, como alguns latinistas pensam, o
menino seria o futuro filho de Octaviano e Escribónia (que casaram em
40 a.C.), a criança nascida deste casamento curto foi uma menina: Júlia.
A reação de Octaviano à notícia de que o filho era uma filha foi, de ime­
diato, divorciar-se da mulher.
Outro casamento ocorrido em 40 foi o de Marco Antônio com a irmã
de Octaviano: Octávia (mulher inteligente e culta). Octávia já tinha um
filho (Marcelo) do casamento anterior; esse primeiro casamento acabara
no mesmo ano de 40 com a morte do marido. Do casamento de Octávia
com Marco Antônio (que já tinha dois filhos do anterior casamento com
Fúlvia, trisneta de Cipião Africano - quem disse que a revista Caras é mais
interessante do que a aristocracia romana?!) nasceram duas filhas, ambas
chamadas Antónia: a mais velha viria a ser avó de Messalina; a Antónia
mais nova seria a mãe do imperador Cláudio. Que casaria com Messalina.
260 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Já agora: os dois filhos de Marco Antônio - e também o filho que ele


teria com Cleópatra - acabariam por morrer às ordens de Octaviano tor­
nado Augusto. £ Augusto ainda mandou crucificar o precetor de um deles.
Qpe Octaviano não era flor que se cheirasse ficou provado de muitas
formas. Mas justamente, em 40 a.C., a crueldade de Octaviano, antes da
escrita da Bucólica 4, tinha ficado bem patente no cerco de Perusia (hoje
Perugia) e com a execução em massa da elite da cidade. Os círculos da
aristocracia romana vitoriosa bem precisavam de um poeta a dizer-lhes
que um menino estava para nascer, graças a quem os «vestígios do nosso
crime», agora nulificados, «libertarão do perpétuo medo as terras». Em
latim, perpetua soluentformidine terras.
O poema começa com três versos introdutórios, com a invocação
das Musas da Sicilia (a ilha onde nascera Teócrito, o criador grego da
poesia bucólica):

Sicelidés Müsae, paulõ maiõra canãmus!


nõn omnis arbusta iuuant humilèsque myricae;
si canimus siluae, siluae sint cõnsule dignae.

«Musas sicilianas, cantemos <temas> um pouco maiores!


Não a todos os arbustos agradam e os tamarindos humildes;
se cantamos bosques, que sejam bosques dignos de um cônsul.»

Facilmente se percebe o valor jussitivo dos conjuntivos canãmus


e sint, pelo que podemos avançar para o verdadeiro início do poema
(os trés versos iniciais são apenas um prelúdio a justificar o carácter não
bucólico de um poema que não foi escrito como bucólico, mas integra
uma coletânea de Bucólicas):

ultima Cümaei uênit iam carminis aetãs;


magnus ab integro saeclorum nãscitur õrdõ.
iam redit et Virgõ, redeunt Sãturnia rêgna,
iam noua progenies caelõ demittitur alto.
LiçAo N.° 45 261

«Chegou já a última idade do canto de Cumas;


a grande ordem dos séculos nasce de novo.
Já regressa a Virgem, regressam os reinos satúmios;
já uma nova progénie é enviada pelo céu alto.»

O início verdadeiro do poema começa sem dificuldades de latim


e com aquilo a que os latinistas chamam «verso dourado»: adjetivos e
substantivos equilibram-se pela posição polarizada e com o requinte
adicional dos casos diferentes de cada sintagma:

ultima... aetãs (nominativo)


Cümaeí... carminis (genitivo).

O «canto de Cumas» alude aos oráculos da Sibila - ade Cumas,


a mais famosa no mundo romano. Os livros contendo os seus oráculos
tinham sido destruídos num incêndio em 83 a.C.; mas procedeu-se
depois à compilação de novos oráculos, de teor órfico e também,
à maneira oriental, de teor apocalíptico. Quanto à Virgem (que leitores
cristãos interpretaram mais tarde como alusão a Maria), é a constelação
em que se transformara aJustiça (ou, noutra leitura, o Pudor - em grego,
Άιδώο), que abandonara a terra (segundo Hesiodo e Arato) devido à
repugnância causada pela injusta e sanguinária raça humana. Diremos
nós que, em 40 (depois de Perusia), a Virgem escolheu um momento
complicado para voltar à terra e para dar início aos «reinos satúmios»,
isto é, a uma nova Idade de Ouro (pois os Romanos acreditavam que
a Idade de Ouro acontecera sob a regência de Saturno, antes da do seu
filho,Júpiter).
L ição n.° 4 6

Recapitulemos os versos que abrem a Bucólica 4 de Vergilio, apre­


sentados e traduzidos na lição anterior:

Sicelidés Müsae, paulõ maiõra canãmus!


nõn omnis arbusta iuuant humilésque myricae;
si canimus siluae, siluae sint consule dignae,
ultima Cümaei uênit iam carminis aetãs;
5 magnus ab integro saeclorum nascitur õrdó.
iam redit et Virgõ, redeunt Sãtumia rêgna,
iam noua prõgeniés caelõ demittitur altõ.

À simplicidade destes versos segue-se uma seqüência bem mais com­


plexa, com separações arrojadas entre alguns sintagmas e as palavras de
que sintaticamente dependem. É só no terceiro verso da seqüência
seguinte que surge a forma verbal fauê, imperativo de faueõ,fauêre
(«favorecer»), que determina o dativo nascentipuerõ; por sua vez, o tü
inicial concorda com casta... Lücina (este nome é um epíteto de Diana,
na sua função de deusa dos partos); eferrea tem como referente gins, que
aparece só no verso seguinte:

tü modo nascentipuerõ, quõferrea primum


dêsinet ac tõtõ surgetgéns aurea mundõ,
ío castafauê Lücina: tuus iam rêgnat Apollõ.
LiçAo N.° 46 263

«Tu agora ao menino nascente - por meio do qual primeiramente


a férrea <gente>
cessará e em todo o mundo surgirá a gente áurea -
favorece, casta Lucina: já reina o teu Apoio.»

Nos versos inaugurais, os verbos estavam todos no presente; agora,


temos a projeção no tempo trazida pelo futuro (desinet, surget). Daqui
para a frente, praticamente todos os verbos até ao v. 45 estarão no futuro;
assim, quando no v. 46 surgir o perfeito dixêrunt, o efeito está calculado
para criar um sobressalto no leitor.
Passaram dez versos quando chegámos, acima, ao nome de Apoio
(irmão de Diana, por isso tuus; no entanto, não é clara a razão pela qual
Vergüio pensa que o reino de Apoio antecederá o de Saturno). Notámos no
v. 3 a menção não esclarecida a um cônsul; é agora o momento de o poeta
referir Polião (figura que apresentei na lição anterior). Note-se a insistência
no pronome pessoal de 2.apessoa (em ablativo) té, primeiro na antecipação
dos ablativos absolutos (têque adeõ; o advérbio adeõ [aqui sem grande valor
semântico] apenas reforça e sublinha têque) e depois nos ablativos absolutos
propriamente ditos, tê cõnsule e té duce; note-se, ainda, que decus hoc («este
adorno») é neutro (o substantivo é decus, decoris; ver p. 492, n. 7):

têque adeõ decus hoc aeui, tê cõnsule, inibit,


Polliõ, et incipient magniprõcêdere mênsês)
tê duce, si quã manent sceleris uestigia nostri,
inrita perpetua soluentformidine terras.

«Este adorno da idade começará [inibit], sendo tu, sendo tu cônsul,


ó Polião, e os grandes meses começarão a avançar;
sob tua liderança, se acaso permanecem vestígios do nosso crime,
nulificados [inrita] libertarão as terras do medo perpétuo.»

De seguida, diz-se algo de extraordinário sobre o menino que vai


nascer:
264 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições

is ille deum ultam accipiet diuisque uidêbit


permixtõs hèrõas et ipse uidêbitur illis,
pãcãtumque reget patriis uirtütibus orbem.

«Ele receberá a vida dos deuses; e verá com os deuses


os heróis misturados; e ele próprio será visto entre eles;
e regerá o mundo apaziguado pelas virtudes paternas.»

Como já vimos em lições anteriores, deum é genitivo do plural (ver


NGL, p. 87) e uirtús tem um sentido que funde «virtude» com «virili­
dade» (por causa da derivação de uir, uiri, «homem»).
A próxima secção do poema descreve o mundo como ele será após
o nascimento do menino. A um conjunto de três versos, em que o sujeito
tellús («terra» [tellús, tellüris]) está no fim do verso do meio (e o respe­
tivo predicado [fundet] no verso seguinte), seguem-se três versos mais
claros na sua exposição gramatical. Os primeiros três levantam, ainda,
dificuldades de ordem botânica: se as «errantes heras» parecem eviden­
tes, não é inteiramente certo o que possa ser baccar, baccaris (talvez cída-
men?) ou cobcãsium (talvez as folhas do inhame?). Por sua vez, «acanto»
é claro, embora o não seja o motivo pelo qual é descrito como «sorri­
dente». A palavra para «berço» (isto é, cünãbula, cünãbulõrum) é mor-
fologicamente um plural neutro, ainda que semanticamente seja um
singular.

at tibi prima, puer, nüllõ munuscula cultü


errantis hederäs passim cum baccare tellús
20 mixtaque ridenti colocasiafundet acanthõ.
ipsae lacte domum referent distenta capellae
úbera, nec magnos metuent armenta leones;
ipsa tibi blandosfundent cünãbulaflõrês.

«Primeiramente para ti, menino, a terra sem cultivo algum


derramará presentinhos [münuscula]: heras errantes com cídamen
LiçAo N.° 46 265

e colocásios misturados com o sorridente acanto.


As próprias cabras trarão para casa as tetas inchadas
de leite; e os rebanhos não temerão os grandes leões;
o próprio berço derramará para ti brandas flores.»

Leões misturados com rebanhos haveriam de sugerir a futuros lei­


tores dos profetas hebraicos em latim um paralelo com Isaías 11:6, onde
se diz que «o novilho e o leão e a ovelha morarão juntos e um puer
pequenino os conduzirá» (uitulus et leõ et ouis simul morãbuntur et puer
paruulus minãbit eõs). Também nas outras previsões da realidade que há
de vir, leitores de séculos posteriores encontrariam elementos passíveis
de galvanizar a imaginação cristã: o poeta fala na «serpente» que mor­
rerá; e depois de «vestígios da antiga fraude». Não foi por causa de uma
serpente que o pecado original entrou no mundo? £ Isaías não tinha
associado cobras com um menino? («£ um menino jovem em ninho de
víboras e em leito de crias de víboras porá a mão. £ elas não farão mal
nem matarão na Minha montanha santa» [Isaías 11:8-9]). Vergilio diz
que «a serpente perecerá» (occidet et serpéns); Isaías diz que «as serpen­
tes não matarão» (nõn occident). Mas atenção: não obstante a aparente
semelhança, occidõ («tombar», «perecer») e occidõ («matar») não são
o mesmo verbo.

occidet et serpéns, etfallãx herba uenêni


25 occidet; Assyrium uulgõ nascétur amõmum.

«Perecerá também a serpente; e a enganadora erva do veneno


perecerá; nascerá sem cultivo [uulgõ] o cardamomo assírio.»

Apesar do que se tinha dito antes (que o menino iria ser visto no
meio de deuses e heróis - subentende-se heróis gregos, devido à morfo-
logia grega do acusativo hêrõàs no v. 16), o perfil de heroísmo deste
menino não será o de um iletrado herói homérico ou o de um analfabeto
cavaleiro medieval: será por meio da LEITURA que este menino tomará
266 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

contacto com os louvores dos heróis antigos e com as façanhas de seu


pai (Octaviano? Marco Antônio?). Nesse momento em que o menino
começará a ler, o milagre da leitura tomará flavas as searas - o que em si
não seria um acontecimento milagroso, pelo que temos de supor que o
pão do futuro virá de searas de trigo que nascem espontaneamente, sem
cultivo:

at simul hêrõum laudis etfacta parentis


iam legere et quae sit poteris cognoscere uirtüs,
molli paulãtimflãuêscet campus aristã
incultisque rubêns pendêbit sentibus üua
30 et dürae quercüs südãbunt roscida mella.

«E logo que os louvores de heróis e as façanhas do pai


já possas ler e reconhecer o que seja a virtude,
o campo pouco a pouco ficará flavo com a delicada espiga
e a uva vermelha penderá dos incultos espinhos [sentis, sentis= espinho]
e os duros carvalhos suarão orvalhos melados.»

Restarão ainda, porém, alguns vestígios da «antiga fraude»:

pauca tamen suberunt priscae uestigiafraudis,


quae temptare Thetim ratibus, quae cingere mürts
oppida, quae iubeant telluri infindere sulcos.

«Porém restarão poucos vestígios da prisca fraude,


os quais ordenarão a tentar Tétis [o mar] com naus, a dngir com muros
as cidadelas, a fender sulcos à terra.»

Do ponto de vista gramatical, repare-se nas orações relativas (quae...


quae... quae...), com verbo no conjuntivo (iubeant) por se tratar de rela­
tivas de caracterização (cf. NGL, p. 342). A expressão «fender sulcos à
terra» (tellüri é dativo) evoca a ideia antiga de que a agricultura é uma
Lição n .° 46 267

violação da natureza, tal como a navegação é uma profanação do mar.


Estes versos lembram pelo conteúdo (e pelo tratamento do hexâmetro
dactílico) uma passagem do poema 64 de Catulo, que assumirá na parte
final da Bucólica 4 um papel importante.
L ição n.° 4 7

Vimos já que a Idade de Ouro anunciada por Vergüio na Bucólica 4


traz consigo um surpreendente «porém»: em latim, tarnen (w. 31-33).
Pois não obstante ter sido dito que «a serpente morrerá», mesmo assim
restarão vestígios da «antiga fraude» (decerto as fratricidas guerras civis
em que Roma estava embrenhada há cem anos), vestígios esses que obri­
garão a «tentar» Tétis (o mar) com barcos, pôr muralhas à volta das
cidades e impor sulcos à terra:

pauca tamen suberunt priscae uestigiafraudis,


quae temptãre Thetim ratibus, quae cingere müris
oppida, quae iubeant telluri infindere sulcos.

Virá então uma nova idade heroica: mais uma viagem dos Argonau-
tas e outra Guerra de Tróia (dois símbolos da forma como a poesia con­
segue mitificar realidades como colonização, exploração, escravização e
extermínio, fazendo dos seus agentes «heróis» e «descobridores»).
Note-se que o nome Tiphys designa o timoneiro da nau Argo que levou
os Argonautas à Cólquida, para lá roubarem o simbólico «velo de ouro»;
em termos de latim, o conjuntivo uehat (do verbo uehõ, uehere, uexx, uec~
tum, «levar»; cf., em português, «vetor») justifica-se ou como oração
relativa final ou, em alternativa, como oração relativa de caracterização
(ver NGL, pp. 341-342). Note-se que hêrõãs é de novo um acusativo do
plural grego (ver NGL, p. 120).
L ição n .° 47 269

alter erit tum Tiphys et altera quae uehatArgõ


35 dêlectõs hérõas; erunt etiam altera bella
atque iterum ad Trõiam magnus mittitur Achilles.

«Haverá então um segundo Tifís e uma segunda Argo que transporte


escolhidos heróis; haverá ainda outras guerras
e de novo para Troia será enviado o grande Aquiles.»

Será este o ponto de viragem. Pois a partir daqui (em latim, hinc),
assim que a passagem do tempo tiver feito (futuro perfeito em latim:
f icerit) do menino um adulto, parará a navegação e parará toda a ativi­
dade econômica; parará a agricultura: a terra toda tudo dará! Nem será
preciso tingir a lã das ovelhas com cores mentirosas! As ovelhas nascerão
já com lã multicolor!

hinc, ubi iamfirmãta uirum tificerit aetãs,


cedet et ipse mari uector, nec nautica pinus
mütãbit mercis; omnisferet omnia tellus.

«A partir daqui, quando a idade estabilizada te tiver feito homem,


o próprio marinheiro [uector] cederá ao mar; nem o náutico pinheiro
mudará <de lugar> mercadorias; toda a terra dará todas as coisas.»

Vejamos agora os milagres na natureza (e os animais libertos da


exploração humana), com destaque para três vocábulos tirados das tin-
turarias mais finas de Roma: mürex, müricis («púrpura»), lütum («lírio
que dá tinta amarelada»), sandyx, sandycis («vermelhão»). Mencione­
mos, ainda, os adjetivos rubens («rubro») e croceus («cor de açafrão»).
No campo do instrumentário agrícola, temos as palavras rastrus
(«enxada») efalx,faleis («foice»):

40 nõn rastros patiitur humus, nõn uineafalcem;


robustus quoque iam tauris iuga soluet arator.
270 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

nec uariõs discet mentiri lãna colores,


ipse sed in prãtis ariès iam suaue rubenti
mürice, iam croceõ mütãbit uellera lütõ;
45 sponte suã, sandyx pascentis uestiet agnõs.

«A terra não sofrerá enxadas; nem a vinha, a foice;


o robusto agricultor também libertará o jugo aos touros.
Nem a lã aprenderá a mentir cores diferentes,
mas nos prados o próprio carneiro ora suavamente com rubro
múrice [púrpura], ora com açafronado lírio mudará os velos;
de sua própria iniciativa, o vermelhão vestirá os anhos a pastar.»

Após dezenas de versos com o verbo no futuro, de repente surge uma


forma de perfeito: dixêrunt. Quem é que «disseram»? As Parcas, que
têm aqui, como se diz em show business, uma guest appearance (um pouco
como quando vedetas da série Sexo e a Cidade apareciam por convite
especial na série Seinfeld). O ambiente próprio das Parcas e do seu canto
era o poema 64 de Catulo; Vergílio dá-lhes aqui dois versos que ecoam
explicitamente o refrão por elas repetido no texto do seu antecessor:

«Tâlia saecla», suis dixêrunt« currite» fusis


concordes stabilifãtõrum nümine Parcae.

«eÓ séculos tais” a seus fusos disseram "correi!”


as Parcas concordantes com a estável divindade dos fados.»

A frase tem todo o retorcimento rococó próprio do estilo elevado


de Catulo. £ Catulo não ficou esquecido nos dois versos que se seguem
(w. 48-49), já que o v. 49 constitui uma raridade na métrica vergiliana
que é, contudo, uma banalidade em Catulo: um hexâmetro cujo quinto
pé é um espondeu (— ) em vez de um dáctilo ( - U U).
Em termos de enunciação poética, os muitos futuros e o perfeito iso­
lado dão lugar a imperativos (prenunciados no currite das Parcas). São eles:
LiçAo N.° 47 271

adgredere (imperativo de 2.apessoa do singular de adgredior, adgredi,


adgressus sum, «avançar»; a grafia alternativa aggredior, aggredi, aggressus
sum dá-nos a etimologia de «agredir» em português, cujo sentido eti-
mológico sugere a ideia de se chegar [demasiado] perto de alguém)
aspice (do verbo aspiciõ, aspicere, aspexi, aspectum, «observar»,
donde vem em português «aspeto»).

Em termos de vocabulário, notemos subolés, is («progénie») e pon­


dus, ponderis («peso»),

adgredere õ magnos (aderit iam tempus) honõrês,


cara deum subolés, magnum louts incrementum!
so aspice conuexõ nutantem pondere mundum,
terräsque tractüsque maris caelumque profundum;
aspice, uentürõ laetentur ut omnia saeclo!

«Avança para as grandes honras (chegará já o tempo),


ό cara progénie dos deuses, grande acrescento [incremento?] deJúpiter!
Observa o mundo oscilando no seu peso convexo,
<observa> as terras e as extensões de mar e o céu profundo;
observa, para que todas as coisas se alegrem com o século vindouro!»

Nem todos os manuscritos nos dão a ler o conjuntivo laetentur; se


seguirmos um dos antiquissimos manuscritos do Vaticano (conhecido
por «R»), teríamos aqui o indicativo laetantur, pelo que precisaríamos
de dar um valor diferente a ut: «Observa como todas as coisas se alegram
com o século vindouro.»
Outra dúvida: o menino é visto como acrescentando algo aJúpiter?
Ou como representando Júpiter na terra? O conceito de um rei (ou de
um papa) como representante do deus supremo na terra será uma autoe-
vidência para as gerações futuras, mas já está latente na geração de Ver­
gilio, como se vê por esta passagem em que Horácio invocaJúpiter (Odes
1.12.49-52):
272 L a t im do Z ero λ V e r g íl io em 50 L i ç õ e s

«Pai e protetor da raça humana,


nascido de Saturno, a ti foi dado pelos fados
o cuidado do grande César; que tu reines,
estando César em segundo <lugar>.»

Em latim:

gentis humãnae pater atque custos,


orte Sãtumõ, tibi cüra magni
Caesarisfãtis data; tü secundo
Caesare rêgnés.

Curiosamente, Horácio desdiz aqui o que dissera no v. 18 do mesmo


poema, onde fora afirmado que não existe «número dois» relativamente
aJúpiter. Afinal esse «número dois» existe: é (sem surpresa) Augusto.
Voltando à Bucólica 4 de Vergílio, entramos agora em registo de
êxtase poético, com a menção de cantores míticos e divinos: Orfeu, Lino
e o deus Pã (cuja rememoração proporciona, já no final do poema, um
elo com o gênero bucólico, esquecido desde os versos iniciais). Se a Ver­
gílio fosse dado cantar as façanhas do menino adulto, venceria todos
estes cantores, sendo juíza a própria Arcádia (portanto a própria emble-
matização, em forma de paisagem, da poesia de Early Virgil, para evocar
o título de um livro célebre de William Berg).

õ mihi tum longae maneat pars ultima uitae,


spiritus et quantum sat erit tua dicerefacta!
55 nön mi carminibus uincet nec Thrãcius Orpheus
nec Linus, huic mater quamuis atque huic pater adsit,
Orphei Calliopea, Linõfõrmõsus Apollo.
Pän etiam, Arcadia mècum si iüdice certet,
Pan etiam Arcadia dicat si iüdice uictum.
Lição n .° 47 273

«Oh que me reste a última parte de uma vida longa


e espírito e quanto será suficiente para cantar as tuas façanhas!
Não me vencerá com cantos o trácio Orfeu
nem Lino, ainda que com este esteja presente a mãe e com este o pai:
com Orfeu, Calíope; com Lino, o formoso Apoio.
Pã, até, se com a Arcádia por juíza comigo competisse,
Pã até se diria vencido com a Arcádia por juíza.»

Depois desta visão épico-heroica da vida futura do «incremento»


de Júpiter, os últimos quatro versos do poema lembram que estamos a
falar de um bebé que ainda não nasceu (e a quem só um salto inseguro
da imaginação pode atribuir, antes da nascença, o sexo masculino), mas
que pode ser visualizado como tendo nascido e já deitado no berço.
Voltam os imperativos (incipe... incipe, «começa... começa...») e volta
também o rebuscamento gramatical.
A quantidade do «e» de tulêrunt (em vez do normal tulêrunt) causa
surpresa (ver NGL, p. 176); mais surpresa ainda o qui plural (com a 3.a
pessoa do plural risêre) seguido de hunc singular. O verso final representa
uma compressão violenta da frase nec deus <dignãtus est> hunc ménsã
<suã>, nec dea dignãta est <hunc> cubili <suõ>, isto é, «nem um deus
julgou este digno da sua mesa, nem uma deusa o julgou digno da sua
cama». Uma frase ousada, de facto! Sobretudo atendendo ao facto de
que o menino, afinal, nasceu menina (ver Lição n.° 45).
Fiquemos com os versos finais, não sem primeiro explicar a gravidez
de «dez» meses (lunares) como conta igual à que fazem outros autores
latinos (Plauto e Aulo Gélio):

incipe, parue puer, rísü cognoscere mãtrem


(mãtri longa decem tulêruntfastidia mênsês)
incipe, parue puer: qui nõn risêre parenti,
nec deus hunc mênsã, dea nec dignãta cubili est.
274 Latim do Zero a Vbrgílio em 50 Lições

«Começa, menino pequeno, a reconhecer a mãe com um sorriso


(os dez meses trouxeram longos fastios à mãe),
começa, menino pequeno: aqueles que não sorriram à progenitora,
nem um deus da <sua> mesa, nem uma deusa <o> julgou digno da
<sua> cama.»
Lição n.° 48

Um sinal inconfundível do novo mundo que nasce após as conquis­


tas de Alexandre Magno é o facto de, nos séculos m -ι a.C., a chama
sagrada da poesia grega passar também pelas mãos de poetas que (tanto
quanto sabemos) nenhuma ligação tiveram com os territórios de língua
grega donde emanara, nos séculos anteriores, a grande poesia em grego:
aJónia (hoje Turquia); a Grécia continental e insular; e a Magna Grécia
(sul de Itália e Sicilia). Não há dúvida de que o mais influente poeta grego
do século ui a.C. foi Calímaco, oriundo de Cirene (Líbia); e essa honra,
no século i a.C., caberá a Meleagro, natural de Gádara, uma das flores­
centes cidades gregas à volta de uma terriola que, no século i d.C., se
tornaria célebre por razões não inteiramente desligadas do poder comu­
nicativo da língua grega: Nazaré.
Calímaco deixou a sua Cirene e foi viver para Alexandria, onde tra­
balhou na biblioteca e produziu uma obra poética singular, própria de
um scholar poet Evitando e até rejeitando a banalidade da poesia épica
do seu tempo, composta ou para celebrar generais oportunistas ou para
gratificar o narcisismo do próprio poeta com tópicos requentados do
cardápio homérico, Calímaco apostou num caminho antiépico de poesia
difícil e preferencialmente curta, o que suscitou críticas entre os seus
coevos em Alexandria e, mais tarde, elogios deslumbrados em Roma. Se
perguntarmos o que têm em comum poetas latinos tão diferentes como
Énio, Lucilio, Lucrécio, Catulo, Vergilio, Horácio, Propércio, Tibulo e
Ovídio - a resposta é simples: Calímaco. Todos leram, devoraram, sor­
veram e absorveram a poesia de Calímaco; e todos tentaram, à sua
276 L a t im do Z ero λ V e r g I l io em 50 L iç õ e s

maneira, ser «Calímaco em Roma» (título de um livro marcante de


Walter Wimmel20).
O poema mais influente de Calímaco intitulava-se Aitia (Αίτια).
Composto em dísticos elegíacos, tinha por tema as «causas» ou «ori­
gens» (é isso que significa Aitia em grego) de realidades várias (desde
costumes a topónimos) no mundo grego. Chegou até nós sob forma frag­
mentária, mas temos a sorte de possuir um fragmento que presumivel­
mente abria o poema, onde Calímaco justifica as suas opções poéticas e
defende a ideia da poesia magra - superior, segundo ele, à poesia gorda21.
Calímaco relata que, quando começou a escrever poesia, teve uma epifa-
nia de Apoio: o deus explicou ao jovem poeta que o gado sacrificial no
altar dos deuses deve ser gordo, mas a poesia tem de ser magra. Como o
conteúdo polémico-apologético do prólogo dos Aitia se prestava a ser
lido como uma rejeição da poesia heroica, tal leitura serviu muito bem
de desculpa quando poetas romanos, financeiramente dependentes de
generais milionários, queriam livrar-se da pressão de terem de celebrar
em verso heroico as campanhas militares dos seus patronos. Estabeleceu-
-se, inclusive, um novo gênero poético em Roma: Versos-Justificando-a-
-Recusa-em-Escrever-Versos-Celebrando-um-Grande-Homem. Em
latim, simplesmente recüsâtiõ.
Do desenvolvimento conceptual deste tipo de poema fazia parte a
explicação, por parte do poeta, de que o Grande Homem era, na verdade,
grande de mais para o pequeno talento do poeta; e que outros decerto
haveria, muito mais aptos para empreender tão exigente e sublime tarefa.
Na sua coletânea de Bucólicas, Vergilio incluiu um poema com estas
características - mas a Bucólica 6 é muito mais do que uma estereotipada
recüsâtiõ. O «grande» homem que suscita a nega de Vergilio chama-se
Varo - provavelmente o mesmo Alfeno Varo que encontramos em

20'W. Wimmel, Kallimachos in Rom: Die Nachfolge seines apologetischen Dichtens in derAugusteer-
zeit, Wiesbaden, 1960. Ver também R. Hunter, The Shadow of Callimachus: Studies in the Recep­
tion of Hellenistic Poetry at Rome, Cambridge, 2006.
210 fragmento está editado e traduzido no meu livro Poesia Grega de Hesiodo a Teócrito, Lisboa,
2020, pp. 284-287.
LiçAo N.° 48 277

poemas de Catulo (10, 22, 30) e Horácio (Odes 1.18). Natural (como
muitos séculos mais tarde Monteverdi) da cidade de Cremona, Varo bene­
ficiara, sem grande margem para dúvida, de um acrescento significativo à
sua fortuna, oriundo das imorais confiscates e redistribuições de terras
no norte de Itália. Talvez por isso o mantuano Vergilio não tenha querido
empenhar-se muito em pôr por escrito as laudês e os tristia bella de Varo.
No meio de tantas recüsãtiõnés na poesia augustana inspiradas em
Calímaco, a Bucólica 6 de Vergilio distingue-se pelo facto de ser a mais
explicita na citação do poeta alexandrino. É também explicita na home­
nagem que faz a outro imigrante na cidade de Alexandria: Teócrito,
o poeta siciliano que inventou, para todos os efeitos, a poesia pastoril.
Quando Vergilio fala em «verso siracusano» no primeiro verso da Bucó­
lica 6, está explicitamente a referir-se a Teócrito.
Entrando já no texto, repare-se na extravagância do efeito por que
Vergilio opta a abrir este poema: o adjetivo inicial prima concorda com
a última palavra do segundo verso, o nome de uma das Musas: Thalêa.

prima Syrãcosiõ dignáta est lüdere uersü


nostra neque érubuit siluãs habitãre Thalêa.

« Como primeira a nossa Talia se dignou brincar em verso siracusano


e não corou por habitar os bosques.»

cum canerem rêgês et proelia, Cynthius aurem


uellit et admonuit: «pastorem, Tityre, pinguis
pascere oportet ouis, deductum dicere carmen».

«Quando eu cantava reis e batalhas, Cintio [Apoio] a orelha


me puxou e avisou: “Convém que o pastor, ó Titiro,
apascente ovelhas gordas <mas> que cante um poema esbelto.”»

Depois desta citação explícita de Calímaco (que escrevera no pró­


logo dos Aitia «quando pela primeira vez a tabuinha coloquei / sobre os
278 Latim do Zero λ V ergílio em 50 Lições

joelhos, foi isto que me disse Apoio Liceu: / “Lembra-te, querido poeta:
o animal para o sacrifício deve ser / o mais gordo possível; mas a Musa,
caro amigo, delgada”»), Vergílio prossegue com o motivo da recusa
(a ideia convencional de que outros poetas haverá para cumprir a tarefa)
e com a justificação da sua opção, tentando fazer ver que, mesmo um
poema calimaquiano, como aquele que irá escrever, poderá ser tido
como homenagem a Varo, pelo simples facto de Vergílio lá ter escrito o
seu nome. A fraseologia escolhida por Vergílio é diplomática («nenhuma
página agrada mais a Apoio do que uma em que esteja escrito o nome de
Varo»), mas, na realidade, a justificação valoriza, acima de tudo, o poeta:
é como se Vergílio dissesse «para obteres prestígio, basta que eu escreva
o teu nome num poema que nem sequer é sobre ti». O autor está acima
do tema.

nunc ego (namque super tibi erunt qui dicere laudês,


Vãre, tuãs cupiant et tristia condere bella)
agrestem tenui meditabor harundine Müsam:
nõn iniussa canõ. si quis tamen haec quoque, si quis
captus amõre leget, te nostrae, Vãre, myricae,
ti nemus omne canet; nec Phoebo gratior ulla est
quam sibi quae Vari praescripsit página nõmen.

«Agora eu (pois restar-te-ão aqueles que queiram cantar teus louvores,


Varo, e as tuas tristes guerras)
treinarei a Musa silvestre com tênue flauta:
não canto a despropósito. Contudo se alguém estes <poemas>,
se alguém apanhado pelo amor <os> ler, os nossos tamarindos, ó Varo,
e todo o bosque te cantará; nem a Febo alguma página é mais grata
do que aquela que escreve à cabeça o nome de Varo.»

A dicção poética de Vergílio é, como se nota, extremamente requin­


tada neste poema. Vejamos estes pormenores:
LiçAo N.° 48 279

super... erunt: trata-se aqui do futuro do verbo supersum («restar»,


«sobreviver», mas neste contexto «sobreabundar»); a separação do
prevérbio super de erunt é um efeito típico da poesia grega, chamado
«tmese»
tenui... harundine: o adjetivo tenuis é frequentemente usado pelos
poetas augustanos na reprodução do termo grego a que Calímaco recor­
rera para rotular a poesia por ele considerada certa: leptós (λεπτός), com
o seu sentido de «fino», «subtil»
«não canto a despropósito»: a frase latina nõn iniussa cano não é
inteiramente clara (à letra, «não canto temas não-encomendados»; tal­
vez uma réplica ao que lemos no fragmento 612 de Calímaco, «não canto
temática não-documentada», frase passível de ser interpretada como
mote do poeta doctus)
ulla... página: como habitualmente na poesia latina, este tipo de
hipérbato confere à frase poética o requinte da dificuldade.

Continuaremos nas lições seguintes a leitura e análise da Bucólica 6,


onde veremos passar em caleidoscópio rápido a criação do mundo; os
amores chocantes de Pasífae com um touro; e a Estrela da Tarde, atra­
vessando um céu que não quer anoitecer.
Lição n.° 4 9

Despachada a declaração de preito e menagem aos alexandrinos


Teócrito e Calímaco - e feito o aviso ao romano Varo de que bem poderá
esperar sentado quanto a poemas bacocamente laudatórios em sua
homenagem -, Vergilio entra no cerne do seu poema. Ou, antes, no seu
mistério. Pois a Bucólica 6 é um texto profundamente misterioso, por ser
um ato de ventriloquismo. Vamos ouvir poesia vergiliana - a mais ele­
gante e requintada poesia que Vergüio escreveu -, mas pela boca de um
velho gordo e repulsivo, viciado em vinho e sexo. Só que o velho gordo,
não obstante a sua aparência disforme e os seus excessos alcoólicos e
eróticos, é um sábio e um gênio. É Sileno.
Na mitologia grega, Sileno é precetor de Dioniso, deus do vinho, e
dono da mais esotérica sabedoria. Não ama o amor; ama o sexo. É dis­
tinto conhecedor dos mistérios da música e da dança, como se lê num
fragmento do poeta grego Pindaro (142b). Não será por acaso que o
romano Propércio falará depois da sua iniciação nos mistérios da poesia
calimaquiana como tendo lugar numa gruta onde se veem representadas
as orgias das Musas e a imagem do pai Sileno (orgia Müsãrum et Stlêni
patris imãgõ [3.3.29]).
Repousando ut semper do vinho do dia anterior, Sileno é encontrado
a dormir, no poema de VergÜio, por dois jovens, Crómis e Mnasilo, a
quem o velho prometera, a brincar, a esperança de uma canção. Atando
Sileno com as grinaldas de flores que tinham ficado da hesterna festança,
os rapazes (acompanhados por £gle, «a mais bela das Náiades») conse­
guem forçar a canção desejada. O que sai então da boca de Sileno é uma
LiçAo N.o 49 281

decantação sortilega da poesia que o jovem Vergilio lera e admirara:


Lucrécio, Catulo e os amigos ditos «neotéricos» de Catulo (isto é, poetas
que escreviam poesia à maneira alexandrina, onde uma estética de pre­
cioso rebuscamento contrastava com a temática de amores chocantes).
Estamos agora no v. 13 da Bucólica 6: como que para atirar para trás
das costas o que fora dito na primeira parte do poema (analisada na lição
anterior), Vergilio exclama «prossegui, ó Piérides!» (as Piérides são as
Musas, que usavam as faldas da Piéria, perto do Olimpo, como pista de
dança).
Vejamos este vocabulário antes de lermos em latim:

pergõ, pergere, perrexi, perrectum: «avançar», «prosseguir»


uêna, -ae: «veia»; note-se que, no texto, uénãs é acusativo de relação
(cf. NGL, pp. 293-294)
serta, sertõrum: «grinaldas»
atterõ, atterere, attriui (também atterui), attritum: «gastar»
cantharus, -i: «taça»
ãnsa, -ae: «asa» (de uma taça).

pergite, Pieridés! Chromis etMnäsyllös in antrõ


Silènum pueri somnõ uidêre iacentem,
is inflatum hestemõ uénãs, ut semper, Iacchõ;
serta procul tantum capiti delapsa iacêbant
etgrauis attritã pendebat cantharus ãnsã.

«Prossegui, Piérides! Crómis e Mnasilo, <dois> rapazes, numa gruta


viram Sileno jazendo de sono,
inchado nas veias, como sempre, do hestemo Iaco [vinho];
as grinaldas jaziam um pouco descaídas longe da cabeça
e uma pesada taça de asa gasta pendia <da sua mão>.»

Os dois rapazes (ainda que tímidos e necessitados do apoio moral


da náiade Egle) avançam para pregar ao ancião a partida matreira;
282 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

a náiade não resiste a cometer a desfeita de besuntar a cara do velho com


vermelhíssimas («sanguíneas») amoras (em latim, mõrae). Sileno,
porém, reage bem à brincadeira: promete aos rapazes o cumprimento da
canção esperada; e à náiade o velhote (que, a despeito da sua genialidade,
é um grande ordinário) promete «outra recompensa» cuja natureza
melhor seria não perguntarmos. No que toca ao latim, note-se que a
palavra para «recompensa» (mercês) está em genitivo (mercêdis) com
função partitiva (ver NGL, p. 303). No fundo, aliud mercêdis («outro
<tipo> de recompensa») eqüivale a alia mercês («outra recompensa»).

adgresst (nam saepe senex spê carminis ambõ


lüserat) Iniciunt ipsis ex uincula sertis,
20 addit sê sociam timidisque superuenit Aegie,

Aeglê Nãiãdum pulcherrima, iamque uidenti


sanguineisfrontem mõris et tempora pingit
ille dolum ridèns «quõ uincula nectitis?» inquit;
«soluite mê, pueri; satis est potuisse uidèri.
25 carmina quae uultis cognoscite; carmina uõbis,
huic aliud mercêdis erit» simul incipit ipse.

«Tendo-se acercado <dele> (pois amiúde o velho com a esperança


de uma canção
a ambos iludira), atiram amarras <feitas> das próprias grinaldas.
Junta-se £gle como parceira e aos tímidos dá ajuda,
Egle mais bela das náiades; e àquele que está a ver [Sileno]
ela pinta a fronte e as têmporas com sanguíneas amoras.
Ele, rindo-se do dolo, “Porque entrelaçais amarras?” diz;
“Soltai-me, rapazes; é suficiente que eu tenha podido ser visto.
As canções que quereis conhecei; para vós haverá canções;
para esta, outro tipo de recompensa.”E logo ele começa <a cantar>.»

O narrador poético intromete a sua própria voz brevemente em qua­


tro versos que descrevem o efeito órfico do canto de Sileno sobre a
L iç ã o n .° 49 283

natureza. Depois disso, a Bucólica 6 entra em modo ventríloquo, tecendo


uma teia de conjuntivos perfeitos e mais-que-perfeitos que nos dão a ver
o que é a elegância incomparável do discurso indireto em latim. Antes
disso, pois, versos que colocam o gênio poético de Sileno não só acima
do de Orfeu, como também do de Apoio (Vergüio inverte a ordem dos
nomes, dando assim a entender que o talento de Orfeu superava o de
Apoio).

turn uêrõ in numerum Faunósqueferãsque uidérès


lüdere, tum rigidäs mõtãre cacümina quercús;
nec tantum Phoebõ gaudet Pamãsia rüpés,
30 nec tantum Rhodopê miratur et Ismarus Orphea.

(A expressão in numerum sugere a ideia de compasso musical.


Ródope e Ismaro são montanhas na Trácia; repare-se no toque poético
do verbo no singular não obstante o duplo sujeito. Note-se, ainda, que o
acusativo Orphea [ver NGL, p. 121] é aqui tratado por Vergilio como
dissílabo.)

«Então, na verdade, no compasso musical terias visto faunos e feras


a dançar; então <terias visto > os rígidos carvalhos mover as copas.
Nem tanto o rochedo do Parnaso se alegra com Febo;
nem tanto Ródope e ísmaro admira<m> Orfeu.»

O canto de Sileno começa com a narração da origem do mundo,


numa passagem cujo vocabulário vem de Lucrécio (e que, muitos séculos
mais tarde, influenciaria C.S. Lewis no primeiro livro da série Námia,
intitulado The Magicians Nephew: o canto cosmogónico de Aslan é um
claro decalque destes versos da Bucólica 6). O facto de o canto ser repor­
tado em discurso indireto justifica os conjuntivos coãcta... faissent, con-
crêuerit (do verbo concrêscò, na aceção de «tomar-se» sólido; é do supino
deste verbo [concrétum] que vem «concreto» em português), coeperit,
stupeant, cadant, incipiant, errent.
284 L a t im do Z ero λ V e r g íl io em 50 L i ç õ e s

namque canêbat uti magnum per inãne coàcta


semina terràrumque animaeque marisquefuissent
et liquidi simul ignis; ut his ex omnia primis,
omnia et ipse tener mundi concrèuerit orbis;
35 tum dürãre solum et discludere Nèrea pontö
coeperit et rêrum paulãtim sümerefõrmãs;
iamque nouum terrae stupeant lücêscere sõlem,
altius atque cadant summõtis nübibus imbres,
incipiant siluae cum primum surgere cumque
rãraper ignârõs errent animãlia montis.

«Pois cantava que pelo vazio imenso se tinham juntado


as sementes das terras e do ar e do mar
e ao mesmo tempo do líquido fogo; <cantava> que todas as coisas
a partir destes princípios,
todas as coisas e o próprio orbe tenro do mundo se solidificou;
que <o orbe> começou a endurecer o solo e a fechar Nereu no mar
e, pouco a pouco, a assumir formas de coisas;
que as terras admiram o novo Sol a luzir
e que mais altamente caem as chuvas das nuvens afastadas;
e <cantava> quando os bosques começam a surgir
e quando os raros animais erram pelos montes <ainda> desconhecidos.»
Lição n.° 50

O canto de Sileno começou, em linguagem imitada de Lucrédo, com


a criação do mundo. Foi referido como as terras se espantaram com o
novo Sol a brilhar, como as chuvas caíram das nuvens e como, pouco a
pouco, os animais começaram a conhecer os bosques. A partir daqui
(hinc, em latim), ele refere as pedras lançadas por Pirra, das quais surgi­
rão os primeiros humanos; refere a Idade de Ouro sob o reinado de
Saturno (Sãtumia regna); e ainda as aves do Cáucaso e o furto de Pro­
meteu, usando para tal a figura de estilo conhecida pelo termo grego
hysteron próteron (ΰοτερον πρότερον), cujo exemplo clássico ocorre na
Eneida vergiliana (2.353): moriãmur et... ruãmus, isto é, «morramos e
ataquemos» (um pouco como se disséssemos em português «calcemos
os sapatos e as meias»). Claro que, no caso de Prometeu, primeiro houve
o furto e só depois as águias vieram torturá-lo todos os dias no Cáucaso.
O que impressiona, contudo, é a opção de VergOio pela síntese minia­
tural destas histórias, contando-as numa forma que nós aproximaríamos do
haiku oriental, mas que na realidade constitui, em termos de literatura
latina, a miniaturização de um gênero poético que já é de si uma miniatura:
o epüio, gênero poético helenístico que procurava contar uma história do
repertório épico num número de versos que não ultrapassasse sensivel­
mente metade de um canto da Iliada. Temos só um epílio completo da
poesia latina anterior a Vergilio: o poema 64 de Catulo («Bodas de Tétis e
Peleu», com 408 versos). O que Vergilio faz na Bucólica 6, com os seus 86
versos, é incrustar nanoepílios na textura poética. Se pensarmos bem, os
w. 41-42 correspondem a uma redução à expressão mínima de três epüios:
286 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

hinc lapides Pyrrhae iactõs, Sãtumia rêgna,


Caucasiãsque refert uolucrísfurtumque Promethei.

Como que relembrando o alexandrino Teócrito, referido no pri­


meiro verso da Bucólica 6, poeta que escrevera um epílio «Hilas» (idÜio
13), Vergílio pega no mesmo tema do jovem namorado de Héracles
(vítima de rapto por parte de ninfas que o afogam). Hilas fora cantado
pelo poeta helenístíco em 75 versos; Vergílio emagrece o tema ao ponto
de o concentrar apenas em dois:

his adiungit, Hylan nautae quõfonte relictum


clâmãssent, ut litus «Hylã, Hylã» omne sonãret.

«A estes <temas> acrescenta: junto de que fonte os marinheiros por


Hilas deixado
clamaram, de tal forma que todo o litoral "Hilas, Hilas” ressoou.»

£m termos lingüísticos, estes dois versos suscitam três comentários:

clâmãssent - clãmãuissent (conjuntivo mais-que-perfeito sincopado


[ver NGL, p. 177]; encontraremos ainda outros cinco perfeitos e mais-
-que-perfeitos sincopados neste poema: implerunt [v. 48], quaesisset
[51], uexasse [76], lacerasse [77],parãrit [79]): o conjuntivo clamassent
justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta
ut... sonãret: aqui o conjuntivo imperfeito justifica-se por se tratar de
uma oração consecutiva
note-se o efeito dos vocativos Hylã, Hylã, em que o fenômeno hele-
nizante do abreviamento do segundo «a» em hiato antes de omne sugere
o eco a ficar mais longínquo.

A seguir ao nanoepílio em dois versos sobre Hilas, vem uma nova


miniaturização mitológica (mas agora em 16 versos) dedicada aos amo­
res chocantes de Pasífae, rainha de Creta, com um boi. Vergílio aduz,
LiçAo N.° SO 287

em jeito de narrativa incrustada (como mais tarde Ovídio fará muitas


vezes nas Metamorfoses), o mito das Prétides, princesas gregas que,
tendo sofrido a alucinação de que eram vacas, foram viver para os cam­
pos, enchendo-os (como nota o poeta com ironia deliciosa) de mugidos
«falsos». Não obstante o receio das Prétides de que, sendo vacas,
alguém lhes pusesse um jugo e as obrigasse a fazer trabalho agrícola
(afinal de contas, por muito vacas que pensassem ser, não deixavam de
ser também princesas), nenhuma delas foi (comenta o poeta) ao ponto
de querer torpes cópulas com um boi. Pasífae foi até às últimas conse­
qüências; e desses amores viciosos, tão fascinantes para os poetas neo-
téricos da geração anterior à de Vergilio, nasceu o Minotauro (o qual,
contudo, Vergilio não menciona - ainda que a ele aluda mais tarde em
Eneida 6.24-26).
Um aspeto importante da apresentação do bestialismo de Pasífae
por meio da estratégia ventríloqua de ser Sileno a cantar é que o tom, não
sendo abonatório, também não é condenatório: é compreensivo. Porum
lado, a própria figura de Sileno representa a irracionalidade do frenesim
erótico; por outro, como figura divina, ele sabe bem que a paixão de
Pasífae pelo boi não é culpa dela, mas sim dos deuses, cujas transações
com os seres humanos estão sempre tingidas de crueldade. O primeiro
verbo que surge na secção referente a Pasífae é sõlãtur, o sujeito é Sileno.
«Pasífae - afortunada se jamais tivessem existido manadas! - ele consola
pelo amor de um níveo boi.»

45 etfortünãtam, si numquam armentafuissent,


Pãsifaén niuei sõlãtur amõre iuuenci.
ã, uirgõ infêlix, quae té dementia cépit!
Proetides impleruntfalsis mugitibus agrõs,
at nõn tam turpis pecudum tamen ulla secuta
so concubitus, quamuis collõ timuisset aratrum
et saepe in lêui quaesisset cornuafronte,
ãl, uirgõ infêlix, tü nunc in montibus errãs:
ille latus niueum mollifultüs hyacintho
288 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Liçôbs

ilice sub nigrã pallentis ruminat herbäs


ss aut aliquam in magnõ sequitur grege, «claudite, Nymphae,
Dictaeae Nymphae, nemorum iam claudite saltüs,
si quàforteferant oculis sêsê obuia nostris
errabunda bouis uestigia; forsitan illum
aut herbã captum uiridi aut armenta secütum
60 perdúcant aliquae stabula ad Gortynia uaccae.»

45 «E a afortunada - se jamais tivessem existido manadas! -


Pasífae ele consola pelo amor de um níveo boi.
Ah, virgem infeliz, que demência te tomou!
As Prétides encheram de falsos mugidos os campos,
mas nenhuma seguiu porém dos gados tão torpes
so cópulas, embora temesse um arado no pescoço
e amiúde na lisa fronte os cornos procurasse.
Ah, virgem infeliz! Tu erras agora nos montes.
Ele, tendo amparado o flanco no delicado jacinto,
sob uma negra azinheira rumina as ervas pálidas
ss ou segue alguma <vaca> da grande manada. "Fechai, ó ninfas,
ó ninfas dicteias, fechai já as clareiras dos bosques,
para o caso de eventualmente aos nossos olhos se oferecerem
os rastros errantes do boi; pode ser que a ele, apanhado por erva
verdejante <pu> seguindo as manadas,
60 algumas vacas conduzam até aos estábulos de Gor tina.”»

Nestes versos, que, não obstante a sua temática perturbadora em


grau máximo, conseguem apesar disso ser não só hilariantes como lin­
díssimos, há vários aspetos a relevar no latim:

1. imitando a semântica grega da palavraparthénos (παρθένοο), Ver­


gílio usa aqui uirgõ numa aceção que não significa necessariamente «vir­
gem»; pode significar apenas «mulher jovem» (como em Homero,
Pindaro, Sófocles e Aristófanes);
Lição n .° 50 289

2. outro helenismo é a quantidade breve da última sílaba de Proetides;


3. um terceiro helenismo surge emfultüs hyacintho, em que a desi-
nência defultus («amparado»; participio perfeito do verbofulciõ,fulcire,
fulsi, fultum), apesar de nominativo do singular (portanto, fultüs), se
torna longa como se o «h» tivesse o valor de uma consoante (trata-se
de um fenômeno que ocorre na poesia homérica);
4. toques neotéricos estão visíveis na utilização decorativa de topóni-
mos cretenses (ninfas «dicteias», isto é de Dicte, montanha na ilha de
Creta; ou Gortina, a segunda cidade de Creta depois de Cnossos); na ima­
gem contrastiva que nos dá a ver o maciço boi deitado numa pradaria de
delicados jacintos; e, finalmente, no minimonólogo psicologizante em dis­
curso direto da própria Pasífae, inquieta por causa do ciúme contra o qual
ela, não-vaca, nada pode perante putativas rivais que são, de facto, vacas.

O poema prossegue com mais dois nanoepüios: Atalanta, a corre-


dora que perde a corrida mais importante da sua vida por causa das maçãs
das Hespérides, atiradas sobre a pista por Hipómenes (que Vergilio não
menciona, já que optou por contar a história de Atalanta num só verso:
o poeta conta com a cultura douta dos seus leitores para preencher tudo
o que fica por dizer); e as irmãs de Faetonte, as Faetoncíades (com
direito a dois versos), que tanto choraram a morte do irmão que os deu­
ses as transformaram em álamos:

tum canit Hesperidum mirátam mãla puellam;


tum Phaethontiadas muscõ circumdat amãrae
corticis atque solõ prõcêrãs erigit alnos.

«Depois canta a donzela admirada com as maçãs das Hespérides;


depois circunda as Faetoncíades com musgo de amarga
cortiça [casca] e faz subir do solo alongados álamos.»

Nestes versos, a faculdade que assiste à palavra poética de fazer acon­


tecer as coisas narradas está bem patente em circumdat e em érigit, em
contraste com o mais convencional canit.
290 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Liçõbs

Temos agora dez versos que atualizam o tópico grego da «dedica­


ção do poeta», do qual o exemplo clássico é o encontro de Hesiodo com
as Musas, narrado na Teogonia. No poema arcaico grego, Hesiodo
recebe um bastão das deusas, símbolo da sua «eleição». Na Bucólica 6,
Vergílio foca o protagonismo em Comélio Galo, aristocrático autor de
elegias (hoje perdidas) cujo mandato narcisista como governador do
£gito levaria ao desagrado de Augusto e à morte de Galo em 26 a.C.
(ainda hoje vemos o obelisco dedicado por Galo aJúlio César - e depois
trazido para Roma por Caligula - à frente da Basílica de São Pedro, no
Vaticano).
Pela boca de Sileno, é-nos dito como Galo a passear junto do rio
grego Permesso foi levado para os «montes aónios» (na Beócia, terra
de Hesiodo) por uma das Musas; à sua chegada, «todo o coro de Febo»
se levantou em sinal de homenagem. £, pela mão do cantor mítico Lino,
são entregues a Galo os cálamos (flautas) do próprio Hesiodo, a quem
é atribuída a capacidade órfica de mover as árvores. Calímaco também
não fica esquecido, pois as mesmas flautas permitirão a Galo cantar o
αίτιον (origó) do bosque de Grineia, localidade sagrada a Apoio.
No texto em latim, note-se a elegância dos conjuntivos perfeitos
dúxerit, adsurrêxerit, dixerit na transmissão indireta do canto de Sileno;
note-se também o acusativo de relação crinis (NGL, p. 293) e o dativo
de agente tibi referente a dicãtur (NGL, p. 298); o nê que inicia o último
verso desta seqüência tem valor final (NGL, p. 326) e rege o conjuntivo
iactet. O «velho de Ascra» é Hesiodo.

tum canit, errantem Permessi adflumina Gallum


65 Ãonas in montis ut duxerit üna sororum,
utque utro Phoebi chorus adsurrêxerit omnis;
ut Linus haec illi diuino carmine pastor
floribus atque apiõ crinis ornãtus amãrõ
dixerit: «hõs tibi dant calamos (en accipe) Müsae,
70 Ascraeõ quõs ante seni, quibus ille solebat
cantando rigidäs diducere montibus ornos.
L i ç Ao N.° SO 291

his tibi Grynei nemoris dicatur origõ,


ni quis sit lucus quõ sé plus iactet Apollõ.»

«Depois canta como a Galo errante junto das correntes do Permesso


65 uma das irmãs conduziu para os montes aónios,
e como para o varão todo o coro de Febo se pôs de pé;
como Lino, pastor de canto divino,
adornado nos cabelos de flores e de aipo amargo
lhe disse estas coisas: “As Musas (aceita!) dão-te estes cálamos
70 que antes <deram> ao velho de Ascra, com os quais ele costumava,
cantando, trazer dos montes os rígidos freixos.
Com estes <cálamos> seja por ti dita a origem do bosque grineu,
para que arvoredo não haja com que mais se vanglorie Apoio.”»

O poema está a chegar ao seu termo: faltam só os versos finais, onde


se listam temas que não serão cantados - mas que, ao serem brevemente
descritos, constituem também nanoepílios: Cila; Tereu e Filomela.
O facto de os temas preteridos mas mencionados pertencerem à epopeia
homérica (Odisséia) e à tragédia sofocliana (uma peça perdida do autor
do Rei Êdipo tratava o tema de Tereu e Filomela) sugere um reforço da
identidade calimaquiana de Sileno. No contexto da estética de Calímaco,
evitar a epopeia e a tragédia é sinal de bom gosto.

quid loquar aut Scyllam Nisi, quamfãma secuta est


75 candida succintam latrantibus inguina monstris
Dülichiãs uexasse rates et gurgite in altõ
ã! timidõs nautas canibus lacerasse marinis;
aut mütãtõs Terei narrãuerit artüs,
quas illi Philomela dapes, quae dõna parãrit,
so quõ cursü deserta petiuerit et quibus ante
infélix sua têcta super uolitãuerit ãlis?
omnia, quae Phoebo quondam meditante beatus
audiit Eurotas iussitque ediscere lauros,
292 Latim do Z ero λ Vergílio em 50 Lições

ille canit, pulsae referunt ad sidera uallès.


85 cõgere dõnec ouis stabulis numerumque referre
iussit et inuitõ processit Vesper Olympo.

«Porque mencionarei Cila, filha de Niso, a quem a fama seguiu


75 de, cingida nas brancas virilhas por monstros latidores,
ter abalado as naus dulíquias [= itacenses] e no fundo remoinho,
ah!, ter lacerado os marinheiros com cães marinhos?
Ou que ele narrou os membros metamorfoseados de Tereu,
e que refeições e que dons Filomela lhe preparou,
80 com que caminho procurou <locais> desertos e com que

asas a infeliz voou por cima dos seus próprios tetos?


Todas as coisas que outrora, quando Febo cantava, o beato
Eurotas ouviu, e mandou os loureiros aprender,
ele canta; os vales percutidos levam <o eco> até aos astros,
es Até que a Estrela da Tarde [Vesper] mandou recolher as ovelhas e
contar o seu número; e avançou no constrangido Olimpo.»

É interessante repararmos como os conjuntivos próprios do discurso


indireto dão lugar ao indicativo (perfeito e presente) nos últimos quatro
versos do poema. Sileno canta (ille canit) e a terra leva o eco do canto às
estrelas. No penúltimo verso do poema, há como que a lembrança de que
(teoricamente, pelo menos) isto é poesia bucólica - portanto, o poema
não pode fechar sem referir ovelhas. A Estrela da Tarde ( Vesper) é Vénus,
o astro do amor que traz a noite a um céu (Olimpo) que preferiria brilhar
ainda com fulgor diurno. Mas a sombra da noite é «grave» para os can­
tores, dirá Vergílio na Bucólica 10 (v. 75). Mais importante do que isso
é a tomada de consciência de que para tudo tem de haver um fim. Até
para o canto de Sileno.
II.
Vergilio
Introdução à leitura da E n eid a

Depois de, nas Lições 45-50, termos estudado as Bucólicas 4 e 6 de


Vergilio, avançamos, agora, para a leitura dos Cantos 1 e 4 da Eneida (que
formam uma narrativa contínua, uma vez que os Cantos 2 e 3 da Eneida
constituem um flashback que narra eventos anteriores ao arranque do
poema).
Os textos são apresentados na íntegra e em formato corrido, com
tradução interlinear e com notas gramaticais (não resisti a pôr também
notas de teor interpretativo)1.
O meu conselho é que, se já leram com proveito as 50 lições, foquem
primeiro a vossa atenção em pequenos blocos do texto latino dos dois
cantos propostos da Eneida: tentem ler devagar trechos de mais ou menos
cinco a dez versos em latim, sem dar inicialmente muita atenção à tradu­
ção interlinear.
Depois, voltem atrás e esclareçam as vossas dúvidas com a ajuda da
tradução; pois esta está pensada para que possam resolver, por indução
lógica, todos os problemas de léxico, de morfologia e de sintaxe (e por
isso está longe de ser uma tradução literária: trata-se de uma tradução
literalíssima, com intuito exclusivamente didático).
Uma vez esclarecidas, com a ajuda da tradução, as dúvidas suscitadas
pela primeira leitura da passagem em latim, voltem a lê-la na língua

' O estabelecimento do texto é da minha responsabilidade. Baseei-me nas edições de Mynors e


de Conte (esta especialmente rica no que toca ao seu aparato critico), procurando uma forma
do texto que julgo ser consensual.
296 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

original, saboreando agora a plasticidade expressiva das frases e a sono­


ridade musical do verso (para uma explicação do verso - hexâmetro
dactflico - em que a Eneida está composta, ver NGL pp. 383-406, espe­
cialmente pp. 396-397).
Nos passos em que há dificuldades que a tradução interlinear não
tem hipótese de esclarecer totalmente, as notas dão explicações suple­
mentares. A minha experiência como pedagogo tem-me alertado para o
facto de que, tanto em grego como em latim, os discentes empancam
muitas vezes no porquê de determinada forma verbal estar no conjuntivo
(ou, no caso do grego, no optativo). Para vos ajudar, procurei esclarecer
todos os conjuntivos difíceis nos Cantos 1 e 4 da Eneida; mas alerto para
o facto de não me ter parecido necessário explicar os casos em que o
conjuntivo surge em orações finais, pois essa é a utilização mais fácil e
mais óbvia do conjuntivo em latim (ver NGL, pp. 326-328).
Antes de mergulharmos no mar da epopeia vergiliana: o que preci­
samos de saber sobre a Eneida e sobre Vergílio para empreendermos a
leitura dos Cantos 1 e 4? Vejamos.

1. Em síntese

A composição da Eneida ocupou Vergílio durante os últimos dez


anos da sua vida (ele morreu em 19 a.C., com 51 anos). Que o poeta da
Bucólica 6, que recorrera (como vimos na p. 277) à desculpa calima-
quiana para não escrever poesia épica, tenha depois composto a mais
genial epopeia da história da literatura seria surpreendente se não fosse
o caso de Vergílio ter, na Eneida, descoberto a quadratura do círculo:
epopeia, sim; calimaquiana, sim.
£m grande parte, a solução do problema (como ser calimaquiano e
ao mesmo tempo poeta épico?) obteve uma solução de base na escolha
do tema. Calímaco foi o poeta dos Aitia (Origens). Então a epopeia de
Vergílio seria, justamente, um poema etiológico, um grandioso e sofisti­
cado aition: a origem de Roma.
Introdução A leitura da Eneida 297

Contudo, a narração da origem de Roma foca-se num tempo tão


remoto que o poema acaba 400 anos antes de Roma ser fundada. Serão
mais tarde os descendentes do herói do poema a fundar Roma.
A Eneida obedece a dois movimentos narrativos: um deles é narrar
a chegada de um grupo de refugiados, vindos de Tróia, a Itália. A primeira
parte da Eneida dá-nos a ler um poema de migração: barcos cheios de
refugiados em pleno Mediterrâneo, ansiosos por chegar a Itália - podía­
mos estar em 2020 d.C., mas estamos no século xn a.C.
A segunda parte da Eneida representa agora esses imigrantes como
colonizadores: a identidade de refugiados vulneráveis, que fora a dos
troianos sobreviventes nos Cantos 1-6 da Eneida, dá lugar à identidade
de colonizadores que agridem e dizimam a população autóctone de Itália.
Com estes dois movimentos narrativos, Vergilio dá-nos um poema
cheio de tensões e de realidades simbólicas - que ainda nos ocupam nos
dias de hoje, quer pensemos na situação atual de refugiados, quer pense­
mos no passado de colonização, próprio de um país como Portugal.
Vergilio lança a sua narrativa in mediãs rês (para usar a expressão
mais tarde cunhada por Horácio: ver p. 176): quando começamos a ler
o Canto 1, a história já começou. Os barcos dos refugiados sofrem uma
tremenda tempestade marítima e vão ter ao norte de África, perto da
nova cidade de Cartago (também ela povoada por refugiados). Amavel­
mente recebidos pelos Cartagineses (que fiituramente serão os maiores
inimigos dos Romanos e sobre quem os Romanos praticarão genocídio),
é no banquete oferecido pela rainha Dido em honra dos Troianos que
Eneias contará (Canto 2) como Troia foi destruída pelos Gregos (graças
ao estratagema do cavalo de madeira); e como os fugitivos sofreram
diversos problemas no mar (e falsos inícios noutras terras) até chegarem
a Cartago.
Fascinada com a voz, com o aspeto e com o passado de Eneias, a
rainha cartaginesa, Dido, apaixona-se por este homem em quem se con­
segue rever: ela também teve a experiência da fuga e do exílio; também
teve a experiência do luto (tanto Eneias como Dido são viúvos quando
se conhecem - Eneias ainda para mais está sob o efeito de um luto
298 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

acrescido pela morte recente do pai); também épia (isto é, vive a sua vida
numa atitude de respeito perante o divino); tal como Eneias é pius.
Uma das grandes questões que a Eneida nos coloca a nós, leitores
modernos, é se esse divino é assim tão merecedor da reverência que os
seres humanos no poema lhe dedicam. Dido, em particular, surge como
uma pessoa admirável e piedosa que duas deusas torturam sem piedade
até à morte. Claro que devemos evitar considerações anacrônicas; e seria
ridículo estarmos à espera de que os deuses greco-romanos correspon­
dessem ao lema «Deus é amor» (1 João 4:8) que nos reconforta projetar
num ente divino. A Divindade Bondosa, de que falará mais tarde Frie­
drich Schiller na sua «Ode à Alegria», não existe no ideário da epopeia
grego-latina.
Já em Homero os deuses são maus, pérfidos, invejosos, narcisistas,
indiferentes ao sofrimento alheio, abusadores sexuais e assassinos: são
exatamente iguais, por outras palavras, aos seres humanos. Vergílio podia
ter seguido na linha do seu amado Lucrécio e imaginado uma realidade
épica em que os deuses, ainda que existindo (algures, remotamente), não
se interessassem pelos seres humanos nem interferissem na realidade
humana. Podia ter antecipado Lucano (poeta do século i d.C.), que escre­
verá uma epopeia (Dê bellõ ciuili, também conhecida entre nós como
Farsália) em que, por decisão do poeta, os deuses foram alvo de despe-
dimento coletivo.
Mas não: Vergílio preferiu aproveitar ao máximo todas as possibilida­
des que os deuses homéricos oferecem ao escritor de uma epopeia. E segue,
no fundo, no encalço de Homero ao deixar implícita a ideia de que os
seres humanos viveriam num mundo mais pacífico, mais harmonioso e
mais feliz se os deuses não existissem; ou se, existindo, não interviessem
na vida humana. Mas para Homero, tal como para Vergílio, os deuses são
entes cujo grande entretenimento é contribuir para o sofrimento humano,
porque a existência divina - imortal e perfeita - acaba por ser uma enorme
maçada sem o jogo viciante que é a intervenção maliciosa na vida terrena.
Assim, no início do Canto 4 da lUada, Homero mostra-nos os deuses
sentados no seu Olimpo, brindando-se com taças de néctar e assistindo,
Introduç Ao A leitura da Eneida 299

empolgados, à série Guerra de Trota, como se fosse um êxito imperdível


da Netflix. Com uma vantagem relativamente ao ato de assistir passiva­
mente a uma série: as guerras humanas, os dramas humanos são diverti­
mentos interativos, porque os deuses podem intervir, podem manipular
a história desta ou daquela maneira. Podem tomar as histórias humanas
mais excitantes para eles, deuses, e mais excruciantes para os humanos.
Um mundo em paz cheio de seres humanos que se entendem em perfeita
harmonia seria, para os deuses, um tédio igual à existência divina: por
isso, tanto em Homero como na Eneida, as divindades tudo fazem para
que a vida na terra seja bem dramática.
Como leremos, os Cantos 1 e 4 da Eneida dão-nos de tudo isto elo­
qüentíssimo testemunho.

2, Vergilio

Quando Júlio César foi assassinado em 44 a.C., Publio Vergilio


Marão tinha 26 anos (pois nascera, nos arredores de Mântua, a 15 de
outubro de 70 a.C.). Atendendo a que, na Antiguidade, um homem
de 26 anos já era mais que adulto (hoje considerá-lo-íamos um «rapaz»),
fica claro que Vergilio viveu os seus anos de formação num clima político
perigosamente instável, cheio de convulsões e de reviravoltas: só a partir
da Batalha de Áccio em 31 a.C., em que Octaviano (sobrinho-neto e
herdeiro de Júlio César) derrotou Marco Antônio e Cleópatra, é que des­
ceu sobre o mundo romano um período estável de paz. Claro que essa
paz teve um custo, que o clarividente Vergilio não podia deixar de ver.
Mas, por outro lado, a saturação geral relativamente à instabilidade das
décadas anteriores levou a que esta nova paz fosse vista, em termos prag­
máticos, como preferível à situação até aí vivida.
O pouco que sabemos sobre a vida de Vergüio vem de duas biografias
antigas (de Suetónio e de Donato), nas quais não podemos depositar
confiança cega, pois a tradição biográfica na Antiguidade era quase uma
forma de ficção. O que nos é dito, em concreto, sobre a personalidade de
300 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

Vergilio? Muito pouco: ficamos a saber que não era heterossexual e que
era sociofóbico, ainda que fosse permeável a convites por parte de Octa­
viano (Augusto a partir de 27 a.C.) e de Mecenas, bilionários a quem o
poeta devia a sua estabilidade financeira. Ficamos a saber também que
o nortenho Vergílio desenvolveu uma ligação especial com a cidade de
Nápoles, onde em jovem aprofundou o estudo da filosofia epicurista e
onde, já poeta famoso, preferiu viver (embora tivesse casa em Roma).
Vergílio acabaria por morrer em Brindisi (21 de setembro de 19 a.C.),
à volta de uma viagem malograda à Grécia, mas foi sepultado, justamente,
em Nápoles.
Ora Nápoles e os seus arredores constituíam, na altura, o mais impor­
tante centro epicurista em Itália. Os escritos de Epicuro e dos seus segui­
dores enchiam, em língua grega, as bibliotecas de grandes aristocratas
romanos que tinham, na zona, casas luxuosas. Que Vergílio conheceu essa
literatura em grego é muito provável (a sua poesia em latim revela um
domínio perfeito do grego, seja ele de Homero ou de outros poetas); mas
a obra que mais influência exerceu na sua formação intelectual e na sua
maneira de escrever poesia foi o Dê rèrum nãtürã de Lucrécio, poema epi­
curista e notável obra-prima literária em latim. Quando lemos Vergílio
(sobretudo as Geórgicas e a Eneida), a influência de Lucrécio é sempre
palpáveL
De acordo com o percurso biográfico reconstruído pelos classicis-
tas, a coletânea das dez Bucólicas foi a primeira obra poética de Vergí­
lio a chamar a atenção para o talento do autor (que em 38 a.C., quando
o livro começou a ser difundido, tinha 32 anos). Que ele já dera nas
vistas aos olhos das altas esferas de Roma parece evidente a partir da
leitura da Bucólica 4 (ver p. 257), mas talvez não tivesse ainda chegado
mesmo ao topo da pirâmide social romana. Porquê? Porque o nome de
Mecenas está ausente da coletânea (embora bem presente nas Geórgi­
cas). Qpanto a Octaviano, há duas teorias: há a teoria, maioritária entre
os latinistas, de que Octaviano é o jovem, equiparado a um deus, da
Bucólica 1; depois há a teoria minoritária (que pessoalmente considero
a mais verosímil) de que Octaviano está ausente das Bucólicas e que
Introdução à leitura da Eneida 301

o jovem equiparado a um deus na Bucólica 1 é Lúcio, irmão de Marco


Antônio*2.
Que retrato nos dão as Bucólicas do seu artista enquanto (relativo)
jovem? Mostram-nos que ele andava obsessivamente a ler o siciliano Teó-
crito (poeta do século m que escrevera em grego); e que andava também
a ler Calímaco. No caso de Calímaco, lê-lo e tomá-lo como modelo não
era nada de novo em Roma: já Énio, Catulo e Lucrécio (cada um à sua
maneira) tinham feito o mesmo. Calímaco serviu muitas utilidades ao
mesmo tempo (pois estudar a sua obra, no século I a.C. em Roma, era
simplesmente tirar o curso de poeta: vejam-se os casos de Horácio, Pro-
pércio, Tibulo e Ovídio). Teócrito, por outro lado, permitiu a Vergilio
marcar pontos em dois âmbitos inovadores: em primeiro lugar, inaugurar
(e fechar - pois o que veio depois em latim no mesmo gênero vale pouco)
o gênero bucólico em Roma; em segundo lugar, dar uma lição sobre o
que devia ser, na verdade, a adaptação a latim de um poeta grego. O que
foi que Vergilio mostrou neste segundo aspeto? Mostrou que se pode
transfigurar o modelo helénico, inundando-o de sentidos novos com que
o poeta grego nunca sonhou. O que Vergilio faria mais tarde com Homero
na Eneida começou logo a fazer com Teócrito nas Bucólicas.
No caso das Bucólicas, nenhum dos dez poemas mostra isto com mais
acuidade do que o primeiro. Os pastores de Teócrito são seres tristonhos,
nas garras do sofrimento provocado pelo amor não correspondido: têm
à sua volta uma natureza paradisíaca, mas o seu sentir subjetivo - e a dor
letal do amor (cf. o caso de Dáfnis no Idílio I de Teócrito3) - não lhes
permite felicidade. Os pastores das Bucólicas 1 e 9 de Vergilio têm preo­
cupações mais concretas, pois estão nas garras de um sofrimento pior do
que a paixoneta que correu mal: é a sua vida que está em causa, é a sua
subsistência. As injustiças da guerra e da ambição política de homens
muito acima deles na escala social (ambição essa, afinal, motora da

2Leia-se o importantíssimo (mas quase ignorado - decerto por ter sido publicado numa revista
portuguesa) artigo de R.P.H. Green, «Octavian and Vergil’s Eclogues», Euphrosyne 24 (1996),
pp. 22S-236.
2Cf. PGHT, pp. 300-309.
302 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

guerra) deixam os pobres mais pobres: com crueldade arbitrária, as terras


destes pobres são-lhes tiradas e são oferecidas como recompensa a mili­
tares oportunistas. Lucrécio contrastara a ambição política com a alegria
de estar no meio da natureza - sem ambições de qualquer tipo, e sem
precisar de outros luxos (2.1-39). A Melibeu, na Bucólica 1, é tirado o
luxo de ter o mínimo com que viver. Na mundividência vergiliana, a natu­
reza não é um pano de fundo (como em Teócrito), que está lá, linda,
como dado adquirido. Em Vergílio, a natureza é uma realidade maravi­
lhosa, sem dúvida, mas sujeita a ser transformada pela ganância humana
num espaço de risco. Não é um dado adquirido. Para citar o título de um
conto que escrevi há muitos anos, é uma «Arcádia Precária».
Mas nem sempre assim terá sido. Um tema fulcral da obra vergiliana
é a nostalgia pelo reino de Saturno, que os Romanos faziam eqüivaler à
Idade de Ouro (já cantada por Hesiodo no seu mito das cinco idades4).
Na Geórgica 1, à guisa de prelúdio ao que virá depois, Vergílio descreve
o estado perfeito da natureza ante Iouem, isto é «antes de Júpiter», o que,
para os Romanos, significava a realidade paradisíaca do reino de Saturno
- a tal Idade de Ouro - em que não havia agricultura, nem comércio, nem
navegação, nem guerra, nem caça, nem pesca: não havia necessidade de
nada disso, pois todos viviam em paz e a terra dava tudo espontanea­
mente - até o vinho era espontâneo (G. 1.132). Só que depois veio Júpi­
ter, que (a imagem não podia ser mais simbólica) pôs o veneno nas
serpentes e ordenou aos lobos que passassem a caçar presas. Então os
homens aprenderam as várias artes. Aprenderam a enganar os animais
com a caça (G.1.139), depois aprenderam a domesticá-los e a subjugá-los
(não falemos nos açaimes de ferro colocados nos focinhos dos cabritos
para eles não mamarem nas tetas das mães [G.3.399], nem do novilho
espancado até à morte para que da sua carcaça golpeada nasçam abelhas
[G.4.299-302], nem das asas arrancadas às abelhas [G.4.106-7]).
Esta nostalgia pelo reino de Saturno está também presente na Eneida,
porque é assim que Vergílio nos retrata a vida dos ítalos (ou de alguns

4Ver PGHT, pp. 30-37.


Introduç Ao A leitura da Eneida 303

deles) antes da chegada dos conquistadores troianos. O tema da caça é


de novo usado como metáfora do paraíso perdido, mas agora é também
símbolo da depredação da natureza pelo colonialismo: o que desencadeia
a guerra feroz entre Troianos e ítalos é o facto de Ascânio, filho de Eneias,
ter caçado com cães e com arco e flecha um veado que, naquela sociedade,
era um venerado animal de estimação (7.483-502). Vergilio não se coíbe
de descrever o sofrimento e a morte do veado como se estivesse a falar
de um ser humano. Com a chegada dos Troianos, pois, a gente ítala
(Sãturnia gêns 7.203; ver também 8.319-320) vê chegar o fim do reino
de Saturno (aurea... saecula [8.324-325]). Agora é Júpiter, que nas Geór-
gicas encheu as cobras de veneno e ordenou aos lobos que caçassem,
a conduzir o projeto do mundo. E como parte integrante desse projeto,
o poderio romano, como leremos em Eneida 1.278-296. Em conse­
qüência disto - e atenção a este grande arco conceptual na obra de
Vergilio -, tal como, na Bucólica 1.3-4, Melibeu se lamentou pela perda
da sua terra, também a ítala Juturna se lamentará no último canto da
Eneida (12.236-237), usando a mesmíssima linguagem.
Isto levanta, é claro, uma questão fundamental para o entendimento
da Eneida: o futuro imperialismo romano é algo de positivo ou negativo?
Vergilio é a favor - ou é contra?
Sempre (ou quase sempre) se leu a Eneida como um poema a glori­
ficar Roma e o seu império; mais, como texto defensor do próprio con­
ceito de império: não esqueçamos quanto o fascismo de Mussolini
investiu na Eneida como cartilha italiana, à semelhança, aliás, do modo
como o salazarismo investiu n’Os Lusíadas. No entanto, nos anos 60 do
século passado (quando muitos intelectuais olhavam consternados para
a Guerra no Vietname e para a Guerra Colonial Portuguesa), começaram
a sair artigos e livros sobre o «lado sombrio» da Eneida. É costume
chamar-se a esta corrente «escola de Harvard», mas ela está representada
em muitas outras universidades. No fundo, esta nova leitura5pretendeu

5Mas seria assim tão nova? Remeto para C. Kollendorf, The Other Virgil: Pessimistic Readings of
the Aeneid in Early Modem Culture, Oxford, 2007.
304 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

ler nas entrelinhas do poema uma outra voz, como que a antecipação
da voz que mais tarde Camões dará ao Velho do Restelo (no Canto 4
d’Os Lusíadas): uma voz critica, que «sabota» a mensagem mais óbvia,
patriótica e glorificadora. Um dos livros mais interessantes a propor esta
abordagem é The Poetry oftheAeneid, de M.CJ. Putnam (Harvard, 1965).
Mas o melhor, a meu ver, é Further Voices in Vergil's Aeneid, de R.O.A.M.
Lyne (Oxford, 1987), um dos estudos mais fascinantes alguma vez escri­
tos sobre poesia latina.
Entre os sustentáculos desta leitura sombria da Eneida temos a refe­
rir o grande custo pessoal da missão de Eneias: não só ele nunca consegue
ser feliz, como espalha infelicidade à sua volta. Creúsa, Dido, Palinuro,
Miseno, Palante, Niso, Euríalo, Camila, Amata e finalmente Turno: todas
estas personagens perdem a vida de forma trágica e prematura por causa
da futura missão imperialista de Roma.
Mas a questão da felicidade individual, tema próprio da nossa con-
temporaneidade, constitui um anacronismo quando estamos a falar da
Roma do século i a.C. Tal como não passava pela cabeça de ninguém que
as mulheres devessem ser tratadas com igualdade de direitos relativa­
mente aos homens - ou que os escravos tivessem o direito de ser tratados
como seres humanos (ou que o ser humano tivesse o direito de não ser
escravizado) -, também não havia a noção de que almejar a realização
individual coubesse como direito fosse a quem fosse. Havia uma socie­
dade; e havia um lugar estabelecido nessa sociedade para cada pessoa.
Uns, debaixo do chicote, remavam acorrentados nas naus que assegura­
vam a primazia militar romana; outros viviam uma vida inconcebivel-
mente privilegiada no Palatino. Era assim «de direito», porque as leis de
Roma assim determinavam.
Falar, pois, em «direito» e em «leis» não é despropositado no que
toca à Eneida, porque é esse o conceito que, pela boca de Júpiter (o tal
deus, mais uma vez, que pôs o veneno nas cobras e ordenou aos lobos
que caçassem), legitima o imperialismo romano. Diferentes impérios,
como sabemos, encontraram justificações diferentes para as suas ofensi­
vas colonialistas: se portugueses e espanhóis tinham a desculpa santinha
Introdução à leitura da Eneida 305

de levar a fé católica aos quatro cantos do mundo, os britânicos, por seu


lado, escudavam-se atrás do argumento de que a sua missão era levar a
paz ao globo terrestre (aliás, o famoso mural no Foreign Office de Lon­
dres, pintado no século xix, mostra a imagem de Britannia Pacificatrix
recebendo as armas depostas dos povos dominados pela Grã-Bretanha).
A Eneida oferece-nos duas justificações para o imperialismo romano:
uma surge na boca de Anquises e assenta na mesma propaganda a que mais
tarde recorrerá o imperialismo britânico: impor a paz (6.853). A outra
surge na boca de Júpiter (4.231): a missão de Roma será pôr o mundo
inteiro sub lêgês («debaixo de leis»).
Quais leis? Pois.

Duas dicas para facilitar a leitura da Eneida em latim

1. Atenção à terminação -is como desinência de acusativo do plural


da 3.a declinação, como vimos em turpis... concubitus (Bucólica 6.49-50,
p. 287); cf. NGL, p. 100.

2. Atenção à terminação -ére por -êrunt na 3.a pessoa do plural do


indicativo perfeito ativo; cf. NGL, p. 176.
Vergilio, E n e id a , Canto 1

Arma uirumque canõ, Troiae qui primus ab õris


As armas c o homem6eu canto, que primeiro das regiões de Troia
Italiam7fãtõ8profugus Lãuiniaque uénit
a Itália - devido ao fado, um fugitivo - e aos lavínios litorais chegou;
litora, multum ille et terris iactãtus et altõ
muito foi ele arremessado tanto nas terras como no <mar> alto
ui superum9saeuae memorem Iünõnis ob iram;
pela violência dos supemos, por causa da ira lembrada de Juno cruel;

6 «Armas» e «homem » aludem da forma mais sintética possfvel à Iliada e à Odisséia (note-se que
a primeira palavra da Odisséia é «homem» em acusativo: em grego, ándra [ftvSpa] = uirum).
Repare-se, no entanto, na diferença: Veigflio escreve, na l.apessoa do singular, canõ («eu canto»);
todavia, tanto na lUada como na Odisséia, a primeira forma verbal é um imperativo, dirigido à deusa
( lliada) ou Musa (Odisséia), na 2.a pessoa do singular. Quando, no v. 8, Vergilio se dirige
«homericamente» à Musa, pede para ela lhe «lembrar» (não «dizer», como na Odisséia) as
causas da animosidade de Juno contra Eneias. Embora o verbo memoro signifique também
«relatar», julgo que entra aqui em jogo a aceção «lembrar» (OLD sm. 4), pois Vergilio está a
explorar alusivamente o facto de as Musas serem filhas da Memória (como fazem o autor do
Panegírico de Messala [«Tibulo» 3.7.191]; Estácio na Ttbaida 7.289- e o próprioVeigflio em7.645,
meministis... et memorare potestis). Ora «lembrar» pressupõe rememorar algo que já sabemos: por
conseguinte, podemos ver a omnisciéncia do narrador da Eneida como algo que lhe é inerente, o
que constitui uma emancipação relativamente ao narrador homérico, o qual descreve a sua narração
como dependente das Musas, afirmando explicitamente que, por si, nada sabe (Ilíada 2.486).
7A palavra Ítâlíã é, em rigor, impossivel de encaixar no hexâmetro dactílico; a solução adotada
por Vergilio (já experimentada por Calímaco) é considerar longo o «i» inicial (ítâlíã). No
mesmo verso, encontramos outra licença métrica em Làuinia, tratada como trissílabo. Note-se,
ainda, a ausência de preposição no sintagma sintético Italiam (como se fosse ad Italiam: chama-
-se a este acusativo «de movimento» ou «de ponto de chegada»). Já Sérvio, comentador de
Vergilio no século iv, observa que a freqüente omissão de preposições faz parte do estilo
vergiliano.
8Ablativo de causa («por causa do fado»).
9 Genitivo do plural (= superõrum).
308 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

s multa quoque et bellõ passus, dum conderet10urbem,


muito sofreu também na guerra, até que fundasse uma cidade
inferretque deõs Latiõ, genus unde Latinum,
e introduzisse os deuses no Lácio - donde a raça latina,
Albãnique patres11atque altae moenia Rõmae12.
os antepassados albanos c as muralhas da alta Roma.
Müsa, mihi causas memora, quõ nümine laesõ,
Musa, lembra-me as causas13, por que divindade ofendida,
quidue doléns, rêgina deum14tot uoluere cãsüs
com que <coisa> ressentida, a rainha dos deuses a revolver tantos
io insignem pietãte uirum, tot adire labõrês
infortúnios, a tantos esforços enfrentar um homem insigne pela piedade
impulerit15, tantaene animis caelestibus16irae17?
impeliu. Tamanhas iras tém os espíritos celestes?

urbs antiqua fuit, Tyrii tenuére colõni,


Houve uma cidade antiga; colonos tírios <a> habitaram:
Karthãgõ, Italiam contra Tiberinaque longê
Cartago, defronte de Itália e a grande distância da foz do Tibre,
õstia, diues opum studiisque asperrima belli,
rica em recursos e aspérrima nos esforços da guerra,
is quam Iünõ fertur terris magis omnibus ünam
a qual, única, Juno (diz-se) mais do que todas as terras

10O conjuntivo confere à oração temporal um segundo sentido final.


11É importante ter em conta a conotação de nobreza empatris (mais tarde também «senadores»,
por definição aristocratas).
12Vergílio fecha significativamente o primeiro «parágrafo» da sua epopeia com a palavra
«Roma», depois de ter colocado «Troia» no primeiro verso e «Itália» à cabeça do segundo.
13O conceito de «causas» (em grego, αίτια) leva-nos, por um lado, para o pensamento histo-
riográfico ateniense (pense-se na análise de causas históricas própria do grande Tucídides) e,
por outro, para a poesia etiológica calimaquiana.
14Genitivo do plural (NGL, p. 87).
15O conjuntivo perfeito justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta.
16animis... caelestibus (dativo). Subentender sum com sentido de posse (NGL, pp. 298-299).
17Imaginemos que Vergílio tinha optado por não incluir as palavras, articuladas como pergunta,
tantaene animis caelestibus irae?. A pergunta pertence à categoria daquelas que veiculam
veladamente uma crítica, pois é (como viu Heinze, p. 243, n. l) uma «pergunta dolorosa».
«Não há a mínima dúvida de que com esta pergunta, ainda que indiretamente, está a ser
expresso um juízo de valor sobre o comportamento dejuno: a atitude dela não pode estar certa»
(Buchheit,p. 19).
V ergílio, Eneida , Canto 1 309

posthabitã coluisse Samõ; hic illius arma,


estimou, postergada <até> Samos. Aqui <estiveram> as armas dela,
hic currus fuit; hoc régnum dea gentibus esse,
aqui esteve o carro; que este seja um reino para os povos,
si quã Fãta sinant18, iam turn tenditque fouetque.
se por alguma via os Fados permitirem, já a deusa procura e favorece.
progeniem sed enim Trõiãnõ ã sanguine dúci19
Mas que uma progénie seria derivada de sangue troiano
20 audierat, Tyriãs õlim quae uerteret20arcés;
ela ouvira, que um dia derrubaria as cidadelas tírias;
hinc populum lãtê rêgem bellõque superbum
daí um povo, abrangentemente rei e soberbo na guerra,
uentürum21 excidiõ22Libyae: sic uoluere Parcas.
viria para a destruição da Líbia; assim as Parcas <o destino desfiavam.
id metuêns, ueterisque memor Saturnia belli,
Receando isto e lembrada a Satúmia23da guerra antiga,
prima quod ad Troiam pro caris gesserat Argis-
que antes contra Troia travara pelos caros Argivos -
25 necdum etiam causae irarum saeuique dolõrés
pois as causas das iras e as dores cruéis ainda não
exciderant animõ: manet altã mente repostum
lhe tinham saído do espírito: permanece, na mente altiva guardado,
iüdicium Paridis sprétaeque iniüria fõrmae,
o julgamento de Páris e a injúria da beleza desprezada,
et genus inuisum et rapti Ganymedis honõrês.
e a raça odiada, e as honras do raptado Ganimedes24.
his accénsa super, iactâtõs aequore tõtõ
Por estas coisas inflamada, os no mar todo arremessados

18 O conjuntivo transmite-nos, de forma indireta, o pensamento subjetivo de Juno (NGL,


pp. 270-271).
19Infinitivo presente passivo (a oração infinitiva - sujeito em acusativo prõgeniem - depende de
audierat).
20O conjuntivo confere valor final à oração relativa (NGL, p. 341).
21 Subentender esse (infinitivo futuro). Tanto este como o outro infinitivo do verso (uoluere)
dependem ainda de audierat.
22Dativo de fim (NGL, p. 299).
25Juno (filha de Saturno).
24Além de amante homossexual de Júpiter (segundo a tradição grega; cf. Pindaro, Olímpicas 1
[PGHT, pp. 164-165]), Ganimedes tinha ainda o defeito para Juno de ser troiano.
310 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

30 Trõas, reliquias Danaum atque immitis Achilli,


Troianos, remanescentes dos Dânaos e do implacável Aquiles,
arcêbat longe Latiõ, multõsque per annõs
ela mantinha à distância do Lácio; e muitos anos
errabant, ãcti Fãtís, maria omnia circum.
vaguearam, levados pelos fados, em volta de todos os mares.
tantae mölis25erat Rõmãnam condere gentem!
De tal mole era fundar a gente romana!

uix26è cõnspectü Siculae tellüris in altum


Há pouco <afastados> da vista da terra siciliana, em direção ao alto
3S uêla dabant laeti, et spümãs salis aere ruebant,
davam, ledos, as velas; e as espumas do sal com o bronze27sulcavam;
cum lünõ, aeternum seruãns sub pectore uulnus,
quando Juno, guardando sob o peito uma ferida eterna,
haec sêcum: «mène inceptõ dêsistere28uictam,
estas coisas <diz> consigo: «Eu desistir, vencida, do que comecei!
nec posse Italiã Teucrorum auertere régem29!
Nem poder afastar de Itália o rei dos Teucros!
quippe uetor fatis. Pallasne exürere classem
Decerto sou impedida pelos Fados. Não pôde Palas queimar
40 Argluum atque ipsõs potuit submergere pontõ,
uma frota de Argivos e afundá-los no mar,
ünius ob noxam et furiãs Äiäcis Oilei?
por causa da culpa de um e dos delírios de Ájaz filho de Oileu?
ipsa, Iouis rapidum iaculãta é nübibus ignem,
Ela própria, tendo arremessado das nuvens o fogo rápido de Júpiter,
disiêcitque ratês éuertitque aequora uentis,
dispersou as naus e revolveu os mares com os ventos;

25tantae mõlis: genitivo (mólés, -is: «fardo», «mole»).


u uix (advérbio): «a custo», «mal» (em sentido temporal, e.g.: «Mal ouvi a notícia, saí logo
de casa»).
27 O «bronze» refere-se provavelmente ä decoração da proa (pormenor que não vemos em
Homero).
23Tanto dêsistere como posse, no verso seguinte, são infinitivos de exclamação.
29Vergílio emprega aqui réxem aceção homérica: na IIfada e na Odisséia, «rei» tem muitas vezes
o sentido de «príncipe».
Vergílio, Eneida , Canto 1 311

illum expirantem trãnsfíxõ pectore flammãs


e a ele, expirando chamas do peito trespassado,
45 turbine corripuit scopulõque infixit acútõ.
ela apanhou com um turbilhão e empalou num rochedo afiado30.
ast ego, quae diuum incêdõ régina, Iouisque
Então eu, que me movo como rainha dos deuses, de Júpiter
et soror et coniünx, ünã cum gente tot annõs
irmã e esposa, com uma só gente tantos anos
bella gerõ! et quisquam nümen Iünõnis adõrat
travo uma guerra! E quem a divindade de Juno adora
praeterea, aut supplex áris impõnet honorem?»31
doravante, ou, suplicante, porá honra nos altares?»

so tãlia flammatõ sécum dea corde uolütãns


Tais coisas consigo mesma no peito inflamado revolvendo, a deusa
nimborum in patriam, loca féta furentibus Austris,
à pátria das rajadas - lugares grávidos de Austros32enfurecidos -
Aeoliam uenit. hic uastõ rêx Aeolus antrõ
à Eólia chega. Aqui o rei Éolo, num vasto antro,
luctantis uentõs tempestãtêsque sonõrãs
os ventos rebeldes e as tempestades sonoras
imperiõ premit ac uinclis et cárcere frénat.
com autoridade submete e com grilhões e cárcere refreia.
55 illi indignantês m agnõ cum m urm ure m ontis
Eles, indignados, com grande rugido da montanha,
circum claustra fremunt; celsã sedet Aeolus arce
fremem à roda das barreiras; na sua alta cidadela se senta Éolo

30 Não é bem assim que Homero descreve a morte deste Ájax (não é o que enlouqueceu e se
suicidou em Tróia) em Odisséia 4.499-511. A imagem vergiliana de Ájax empalado numa rocha
é, de facto, horripilante: o castigo por ele ter violado Cassandra não podia ser mais explicito
(embora, é certo, Vergilio tenha optado por não ser explicito quanto à violação quando refere
Cassandra arrastada e desgrenhada em 2.403 - até porque nessa passagem posterior é Eneias
a narrar o saque de Troia na 1.* pessoa e Vergílio atém-se à focalização restritiva).
31 Os w. 46*49 chamam a atenção pelo facto de neles vermos repetido o mesmo padrão de
hexâmetro (dáctilo + 3 espondeus + dáctilo + espondeu), efeito que Vergílio (poeta da
musicalidade multimoda) normalmente evita. A intenção é, decerto, vincar quanto o estado
mental de Juno é obcecadamente monocórdico.
32Ventos do sul.
312 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

scêptra tenèns, mollitque animos et temperat irãs.


cetros segurando; e suaviza os ânimos e tempera as iras.
ni33faciat, maria ac terras caelumque profundum
Se o não fizesse, mares e terras e o céu profundo
quippe ferant rapidi sêcum uerrantque per aurãs.
decerto, rápidos, eles levariam consigo é os varreriam pelos ares.
60 sed pater omnipoténs speluncis abdidit ãtrls,
Mas o pai omnipotente em escuras grutas <os> escondeu,
hoc metuêns, mõlemque et montis Insuper altos
isto receando; e uma mole e montes altos sobre <eles>
imposuit, rêgemque dedit, qui foedere certõ
impôs e deu<-lhes> um rei, que, com pacto certo,
et premere et laxãs sciret34*dare iussus habênãs.
saberia apertar e relaxar, tendo comandado, as rédeas.
ad quem turn Iünõ supplex his uõcibus üsa est:
Ao qual então Juno suplicante usou destas palavras:
6s «Aeole (namque tibi diuum pater atque hominum réx
«Éolo (pois a ti o pai dos deuses e rei dos homens
et mulcêre dedit flüctüs et tollere uentõ),
concedeu1*amainar as ondas e levantá<-las> com vento),
géns inimica mihi Tyrrhênum nãuigat aequor,
uma gente minha inimiga navega o mar Tirreno,
Ilium in Italiam portãns uictõsque Penãtês:
trazendo ílion para Itália e os vencidos Penates.
incute uim uentis36submersãsque obrue puppis,
Incute violência aos ventos e esmaga as popas submersas,
70 aut age diuersõs et dissice corpora pontõ.
ou leva<-os> separados e espalha os corpos no mar.

11ni (= nisi) + conjuntivo (faciat)...ferant: cf. NGL, p. 332, §5 (ii).


34O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma oração relativa de caracterização (NGL, p. 342).
3*Na verdade, no imaginário mítico de Vergílio, não concedeu inteiramente - como a própria
narrativa vergiliana nos mostra, desdizendo assim Odisséia 10.22. Ao contrário do que lemos
em Homero (onde Éolo é «guardião dos ventos, / podendo estancá-los ou incitá-los, conforme
lhe aprouvesse»), em Vergílio Éolo tem capacidade técnica (digamos assim) para interferir na
meteorologia marítima, só que não deve, porque não tem autoridade para o fazer (como Neptuno
dirá daqui a pouco).
36Dativo.
Vergílio, Eneida , Canto 1 313

sunt mihi37bis septem praestanti corpore nymphae,


Eu tenho duas vezes sete ninfas de corpo formoso,
quãrum quae fõrmã pulcherrima Déiõpéã,
das quais Deiopeia, lindíssima pela beleza,
cônübiõ38*iungam stabili propriamque dicãbõ,
por estável conúbio atrelarei e <esposa tua> própria declararei19,
omnis ut técum meritis prõ tãlibus annõs
para que ela contigo passe todos os anos em troca de tais
75 exigat et pulchrã faciat té prõle parentem.»
favores c te faça pai com bela progénie.»
Aeolus haec contra: «tuus, õ régina, quid optés40
Éolo em resposta: «Teu labor, ó rainha, é procurar
explõrãre labor; mihi iussa capessere fas est
o que desejas; a mim cumpre executar as <tuas> ordens.
tü mihi, quodcumque hoc rêgni, tü scêptra Iouemque
Tu a mim este <domínio> de um reino <dás>, tu os cetros eJúpiter
concilias, tü dãs epulis accumbere diuum,
concilias, tu dás<-me> reclinar nos banquetes dos deuses,
80 nimbõrumque facis tempestãtumque potentem.»
fazes<-me senhor> poderoso das rajadas e das tempestades.»41

haec ubi dieta, cauum conuersã cuspide montem


Quando estas coisas foram ditas, com a lança revirada o côncavo monte
impulit in latus: ac uenti, uelut agmine factõ,
feriu no lado: e os ventos, como se tivesse um esquadrão sido formado,

17A quantidade do segundo «i» de mihi oscila consoante a conveniência métrica. No v. 67 era
longo; aqui é breve (ver NGL, p. 216).
MEscandido como trissílabo.
19Vergílio está aqui a imitar Iliada 14.267-276, passo onde o suborno prometido por Hera (=Juno)
é uma das Graças como Akoitic («companheira de cama»). A Juno vergiliana insiste na
legitimidade do enlace de Éolo com Deiopeia, mesmo que para tal tenha de fazer tábua rasa do
facto de, em Homero (Odisséia 10), Éolo já ser casado e ter doze ülhos.
40O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta.
41Esta ideia (de que Éolo deve aJuno os seus privilégios) parece ser uma originalidade vergiliana.
O v. 80 dá-nos a sensação de que estamos a presenciar a conversa de dois graxistas mitómanos:
Juno afirma, como lisonja, que Éolo tem a autoridade (que não tem) para fazer o que ela quer
que ele faça; ele responde com a lisonja ainda maior de que tal autoridade só a ela,Juno, é devida.
A oferta de uma esposa, contudo, fica de fora da resposta de Éolo: talvez ele conhecesse melhor
o guião homérico e soubesse que, na verdade, já era casado e tinha doze filhos.
314 Latim d o Z ero a V e r g ílio em 50 L ições

quã data42porta, ruunt et terras turbine perflant.


assim que a porta foi aberta, irrompem e em turbilhão assopram as terras.
incubuere mari, tõtumque ã sédibus Imis
Caíram no mar; e <o mar> todo, desde as sedes mais fundas,
85 ünã Eurusque Notusque ruunt crêberque procellis
simultaneamente o Euro e o Noto revolvem e o cerrado de procelas,
Africus, et uãstõs uoluunt ad litora flüctüs.
o Africo; e rolam vastas ondas contra as costas.
insequitur dãmorque uirum stridorque rudentum.
Segue-se o grito de homens e o estrépito dos cabos.
éripiunt subitõ nübês caelumque diemque
Arrancam subitamente as nuvens o céu e o dia
Teucrorum ex oculis; pontõ nox incubat ätra.
dos olhos dos Teucros; no mar uma noite negra se deita.
90 intonuêre poli et crebris micat ignibus aether,
Trovejaram os polos e com cerrados fogos o éter cintila;
praesentemque uiris intentant omnia mortem,
todas <as circunstâncias> indicam aos homens a morte presente43.
extemplõ Aenéae soluuntur frigore membra:
Imediatamente os membros de Eneias se deslassam com frio <fremente>4445.
ingemit et duplicis tendéns ad sidera palmas
Geme e esticando para as estrelas as duas palmas
tãlia uõce refert: «õ terque quaterque beati,
tais coisas diz com a voz: «Ó trés e quatro vezes bem-aventurados43

42Subentender est (perfeito passivo de dõ, dare).


43A descrição vergiliana da tempestade segue o modelo homérico: Odisséia 5.291-332; 12.403-
-425; 14.301-313. Recomendo a consulta de Fernando Patrício de Lemos, Tempestades Épicas:
VergílioOvidio, Homero, Camões, Ariosto, Lisboa, 1997.
44A primeira descrição de Eneias é quase igual à última de Turno, no penúltimo verso da Eneida:
at illi soluunturfrigore membra (12.951).
45Imitação das palavras ditas por Odisseu na tempestade do Canto 5 da Odisséia (w. 306-308:
« ó trés e quatro vezes bem-aventurados os Dânaos, / que morreram na ampla Troia para fazer
um favor aos Atridas! / Quem me dera que com eles tivesse também eu perecido...»). Umaspeto
importante a reter é que Eneias está também a ecoar a repugnância expressa por Aquiles
relativamente â morte por afogamento, por não ser digna de um herói. Nas palavras de Aquiles:
«Oxalá tivesse sido Heitor a matar-me, o melhor dos homens de lá: / valor teria tido quem
matara, valor teria tido quem fora morto. / Mas agora por uma morte miserável foi decidido
que eu fosse / apanhado no grande rio, como um rapazinho tratador de porcos / a quem arrasta
a torrente invernosa que tentou atravessar» (Ilíada 21.279-283).
Vbrgílio , E neida , Canto 1 315

95 quis46ante õra patrum Trõiae sub moenibus altis


aqueles a quem diante dos rostos dos pais, sob as altas muralhas de Troia,
contigit oppetere! õ Danaum fortissime gentis
coube encontrar <a m o rto ! Ó da gente dos Dânaos fortíssimo
Tydidê! mêne Iliacis occumbere47campis
Tidida48! Eu não ter podido jazer nos campos iliacos,
nõn potuisse; tuãque animam hanc effundere dextra,
e exalar esta alma por meio da tua dextra,
saeuus ubi Aeacidae têlõ iacet Hector, ubi ingêns
lá onde o feroz Heitor jaz devido à lança do Eácida49, onde <jaz> o grande
íoo Sarpédõn, ubi tot Simois correpta sub undis
Sarpédon, onde sob as ondas o Simoente tantos
scúta uirum galeãsque et fortia corpora uoluit!»
escudos arrancados de homens e elmos e corpos fortes revolve!»

tãlia iactanti stridêns Aquilõne procella


Àquele que estas <palavra$> lançava, uma procela estridente de Aquilão
uêlum aduersa ferit flüctüsque ad sidera tollit.
atinge a vela de frente e levanta as ondas até ás estrelas.
franguntur rémi; turn prõra ãuertit et undis
Quebram-se os remos; então a proa desvia-se e ãs ondas
105 dat latus; insequitur cumulo praeruptus aquae mõns.
dá o flanco; segue-se em massa um monte íngreme de água.
hi summõ in flüctü pendent; his unda dehiscéns
Estes pendem no topo da onda; para estes a onda hiante
terram inter flúctüs aperit; furit aestus harênis.
abre terra entre as ondas; a água <fervilhante> enfurece-se de areias.
tris Notus abreptas in saxa latentia torquet
O Noto torce trés <naus> arrancadas para as rochas escondidas
(saxa uocant Itali mediis quae in flüctibus Aras,
(os ítalos chamam ãs rochas que <estão> no meio das ondas Aras,
i io dorsum immane mari summõ), tris Eurus ab altõ
um dorso enorme à superfície do mar); o Euro empurra trés <naus>

46Dativo (= quibus). Ver NGL, p. 226.


47 Novamente inflnitivo de exclamação (como no v. 37).
48Diomedes.
49Aquiles.
316 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

in breuia et syrtis50urget, miserãbile uisü,


do <mar> alto para baixios e bancos arenosos, coisa triste de ver,
inlíditque uadis atque aggere cingit harênae.
e encalha<-as> nos baixios e cerca<-as> com um monte de areia.
ünam, quae Lyciõs fidumque uehêbat Orontèn,
A uma <nau>, que levava os Lícios e o fiel Orontes,
ipsius ante oculõs ingêns ã uertice pontus
ante os olhos dele [Eneias] uma onda ingente de cima
i is in puppim ferit: excutitur prõnusque magister
fere contra a popa: é ejetado, desequilibrado, o timoneiro
uoluitur in caput; ast illam ter flúctus ibidem
e revolvido de cabeça; porém a onda torce <a nau> trés vezes no mesmo sítio,
torquet agéns circum et rapidus uorat aequore uortex.
levando<-a> à volta; e o rápido vórtice devora<-a> com mar.
apparent rãri nantés in gurgite uãstõ51,
Aparecem raros nadadores no vasto abismo,
arma uirum tabulaeque et Trõiã gaza per undãs.
armas de varões, tábuas e troiano tesouro pelas ondas.
120 iam ualidam ílionei nãuem, iam fortis Achãtae,
Já a válida nau de llioneu, já <a> do forte Acates,
et quã uectus Abäs, et quã grandaeuus Alétés,
e <a nau> pela qual Abante era transportado e pela qual o idoso Aletes
uícit hiems; laxis laterum compãgibus omnês
a tempestade venceu; todas elas, afrouxadas as junturas dos flancos,
accipiunt inimicum imbrem rimisque fatiscunt,
recebem a chuva inimiga e abrem-se com fendas.

intereã magno miscéri52murmure pontum


Entretanto que o mar se remexia com grande rebuliço
125 émissamque hiemem sénsit Neptünus et imis
e que uma tempestade fora desencadeada Neptuno sentiu, e que desde as mais fundas

50Estes baixios fazem pensar no golfo de Sirtes (Líbia). Ver p. 512, n. 343.
51Este verso famoso causou perplexidade a Sérvio, que não entendeu como podiam «aparecer»
raros nadadores se a escuridão era total (como léramos nos w. 88-89).
52Predicado da primeira de trés orações infinitivas dependentes de sênsit (com êmissam e com
refüsa subentender esse). Os sujeitos em acusativo são pontum, hiemem e stägna.
V ergílio , E neida , Canto 1 317

stãgna refusa uadis, grauiter commõtus; et altõ


águas as calmas foram revolvidas <ele sentiu>, gravemente indignado; e sobre o alto
prôspiciéns, summá placidum5354caput extulit undã.
<mar> olhando, levantou a plácida cabeça da onda mais alta.
disiectam Aenéae tõtõ uidet aequore ciassem,
Vê por todo o mar a frota espalhada de Eneias,
flüctibus oppressos Trõas caelique ruína,
os Troianos oprimidos pelas ondas e pelo desabamento do céu;
130 nec latuére doli frãtrem Iúnõnis et irae.
nem os dolos de Juno passaram despercebidos ao irmão nem as iras.
Eurum ad sé Zephyrumque uocat, dehinc tãlia fatur:
Chama a si o Euro e o Zéfiro34; em seguida tais <palavras> profere:

«tantane uõs generis tenuit fidúcia uestri?


«Tamanha confiança vos possuiu da vossa linhagem?
iam caelum terramque meõ sine nümine, uenti,
Já o céu e a terra, à revelia da minha divindade, ó ventos,
miscére et tantãs audétis tollere mõlés?
remexer e levantar tais moles ousais?
13S quõs ego - sed mõtõs praestat componere flúctüs.
Os quais eu...ss! - mas acalmar as ondas agitadas interessa <agora>.
post mihi nõn simili poenã commissa luétis.
Depois pagar-me-eis, com pena não equivalente, as coisas cometidas.
maturate fugam régique haec dicite uestrõ:
Apressai a fuga e ao vosso rei estas coisas dizei:
nõn illi imperium pelagi saeuumque tridentem,
não a ele o império do pélago e o feroz tridente,

53 Apesar de muitos latinistas se terem interrogado (cf. Austin i, p. 64) sobre a aparente
incoerência da parte do poeta em descrever primeiro Neptuno como «gravemente indignado»
e, logo de seguida, elevando «da onda mais alta» (ou, em alternativa, «da onda à superfície»)
a «plácida cabeça», a mim parece clara a intenção de Vergílio: embora Neptuno esteja indignado
com uma tempestade ocorrida sem a sua autorização, ele não é afetado pela tempestade em si
mesma, pois nenhuma tempestade poderia afogar o deus do mar (nem, mais tarde, o Holandês
Voador de Richard Wagner).
54Já vários leitores da Eneida notaram que o Zéfiro não fazia parte do elenco de ventos culpados
nos w. 102-110.
55 Exemplo clássico da figura de estilo chamada «aposiopese» («silenciamento brusco»).
318 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições

sed mihi sorte datum, tenet ille immania saxa,


mas a mim, foi dado pela sorte; ele possui as rochas implacáveis,
140 uestràs, Eure, domõs; illã sé iactet56in aulã
vossas moradas, ó Euro; nessa corte se vanglorie
Aeolus et dausõ uentõrum cárcere régnet.»
Éolo e no fechado cárcere dos ventos reine!»

sie àit, et dictõ citius tumida aequora plãcat,


Assim ele fala; e mais depressa do que o dito acalma as túmidas águas
colléctãsque fugat núbês sõlemque redücit.
e põe em fuga as nuvens reunidas e traz de volta o sol.
Cymothoe simul et Tritõn adnixus acütõ
Cimótoe57*e o esforçado Tritão, ao mesmo tempo, do afiado
145 détrúdunt nãuis scopulõ; leuat ipse tridenti
rochedo empurram as naus; o próprio <deus as> ergue com o tridente;
et uàstás aperit syrtis et temperat aequor
e abre os vastos bancos de areia e retempera o mar;
atque rotis summãs leuibus perlãbitur undãs.
e com rodas leves desliza sobre a superficie das ondas.
ac uelutí magnõ in populõ cum saepe coorta est
Tal como quando51, entre um grande povo, surgiu
sêditiõ saeuitque animis ignobile uulgus,
um tumulto e se embravece nos ânimos o vulgo ignóbil
150 iamque facés et saxa uolant, furor arma ministrat;
e já voam feixes e pedras, <pois> a loucura ministra as armas;
tum, pietãte grauem ac meritis si forte uimm quern59
então, se acaso algum homem sério pela piedade e pelos méritos
conspexere, silent arréctisque auribus adstant;
eles viram, calam-se e ficam de pé com ouvidos atentos;

56iactcL·. regnet: conjuntivos jussitivos (NGL, p. 269).


57Divindade marítima referida no catálogo de Nereides na liíada (18.41).
51Trata-se do primeiro símile da Eneida. Vergílio mostra logo a sua independência relativamente
ao modelo homérico, porque em vez de comparar (como Homero) uma situação da esfera
humana com outra da esfera da natureza, Vergílio fez justamente o contrário: compara a natureza
(tempestade) a uma situação humana (tumulto político). O «homem sério pela piedade e pelos
méritos» é, para muitos leitores, uma alusão (porventura não tão crípdca assim) a Augusto.
59Pronome indefinido (NGL, p. 229): uirum quem = «algum homem».
V e r g íl io , E n e id a , C a n t o 319

ille re g it d ic tis a n im õ s e t p e c to ra m u lcet:


ele domina com as palavras os ânimos e suaviza os peitos:
sic c ü n c tu s p elag i ce c id it fragor, a eq u o ra p o stq u a m
assim todo o fragor do pélago baixou, assim que, para as águas
155 p rõ sp ic iê n s g e n ito r c aelõ q u e in u e c tu s a p e rto
olhando, o progenitor, a céu aberto levado,
flectit e q u õ s c u rrú q u e u o lãn s d a t lõra se c u n d o 60,
guia os cavalos e, voando, dá rédeas ao carro secundante.

défessi A en ead ae q u a e 61 p ro x im a lito ra cu rsü 62*


Os exaustos Enéadas esforçam-se no curso por alcançar
c o n te n d u n t p e te re e t L ibyae u e rtu n tu r ad õrãs.
os litorais próximos e viram-se para as costas da Líbia.
e st in secessü lo n g õ locus: in su la p o rtu m
Existe numa baía longa um lugai*5: uma ilha forma
160 efficit o b ie c tü lateru m , q u ib u s o m n is ab altö
um porto com a barreira dos flancos, por meio dos quais toda
fra n g itu r in q u e sin ü s sc in d it sêsê u n d a red u ctõ s.
a onda do alto se quebra e se reparte em ondulações retrocedentes.
h in c a tq u e h in c u astae rú p é s g em in iq u e m in a n tu r
De um lado e de outro enormes rochas e rochedos gêmeos
in caelu m scopuli, q u o ru m su b u e rtic e lãté
ameaçam em direção ao céu, sob o vértice dos quais latamente
a e q u o ra tü ta silen t; tu m siluis scaen a co ru scis
as águas seguras se calam; então <mostra-se> um pano de fundo com florestas
165 d é su p e r h o rre n tiq u e ã tru m n e m u s im m in e t u m b rã.
coruscantes e por cima um escuro bosque está sobranceiro com horrenda sombra.

60 Para o sentido aqui de secundus, ver OLD $.u. A2a, onde este verso é citado («travelling with
the current»). Note-se que curru é uma forma de dativo arcaico (cf. Kühner & Holzweissig,
pp. 395-396). A imagem de Neptuno deslizando sobre as ondas é inspirada em Iliada 13.23-31.
61 Subentender sunt para completar a oração relativa introduzida por quae.
61O sentido aqui de cursü é quase adverbial (= rapide).
6i Vergílio baseia-se aqui nos versos lindíssimos que lemos em Odisséia 13.96-104, mas
acrescenta algo de muito especial que não está em Homero: a arte de fazer com que as palavras
nos transmitam a sensação de uma paisagem ao mesmo tempo idealizada e viva (como mais
tarde os pintores franceses Claude Lorrain e Poussin farão em registo pictórico). Um aspeto
importante a notar é o seguinte: os versos imitados da Odisséia referem-se â chegada de Odisseu
a ítaca. Estará Vergílio a dizer-nos que, se não fosse a obrigação de assegurar o futuro imperialista
de Roma imposta por Júpiter, Eneias teria encontrado em Cartago a sua ítaca?
320 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

fronte sub aduersä scopulis p e n d e n tib u s a n tru m ;


Sob a fronte adversa <mostra-se> um antro com rochedos pendentes;
intus aquae dulces u iu õ q u e sedilia saxõ,
lá dentro <há> águas doces e assentos de pedra viva,
nym pharum dom us: hic fessãs n õ n u in cu la n ãuis
morada de ninfas: aqui nenhumas amarras retém as naus
ulla tenent, u ncõ n õ n alligat a n co ra m o rsü .
cansadas; a âncora não <as> liga com recurva mordida.
170 h üc septem A enêas colléctis n ãu ib u s o m n i
Para aqui, Eneias com sete naus juntadas do número total
ex num ero subit; ac m agnõ tellúris a m õ re
se abriga; e com grande amor pela terra firme
égressi o p tâtà p o tiu n tu r T rõès h arén ã,
tendo saído, os Troianos apoderam-se da desejada areia
e t sale tãbentis artú s in lítore p õ n u n t.
e descansam na praia os membros derretidos de sal.
ac prim um silici scintillam excú d it A châtês,
Então logo Acates tirou uma faísca do sílex
175 succépitque ignem foliis atque ãrida circum
e apanhou o fogo com folhas e deu à volta
nutrim enta d ed it rap u itq u e in fõ m ite flam m am ,
áridos nutrientes e arrebatou numa acha a chama.
tum C ererem co rru p ta m u n d is C ereãliaq u e a rm a
Então Ceres64estragada pelas ondas e os instrumentos de Ceres
expediunt fessi rérum , firügèsque recep tas
eles tiram, cansados das coisas; e os cereais salvos
e t torrére paran t flam m is e t frangere saxõ.
se preparam para torrar com chamas e esmagar com uma pedra.

180 A enéãs scopulum intereã co n scen d it, e t o m n e m


Entretanto Eneias sobe a um rochedo, e toda
p rospectum lãté pelagõ p e tit, A n th e a si q u e m 656
a vista latamente no pélago procura, <para ver> se Anteu
iactãtum u en tõ u id eat P h rygiãsque b irém ís
lançado pelo vento ele veria e as birremes firígias,

64A deusa do cereal (Ceres) na aceção de «cereal».


66Novamente pronome indefinido.
Vergílio, Eneida, Canto 1 321

a u t C a p y n a u t celsis in p u p p ib u s arm a Càici.


ou Cápis, ou as armas de Caíco nas altas popas.
nãuem in cõnspectü nüllam, tris litore ceruõs
Nau à vista nenhuma - <mas> no litoral trés cervos44*48
iss prospicit errantis; hõs tõta armenta sequuntur
errantes ele vé; estes toda a manada segue
ã tergõ et longum per uallis pascitur agmen.
atrás e pelos vales uma linha comprida <de animais> pasta.
constitit hic arcumque manü celerisque sagittãs
Ele estaca ali c o arco com a mão e as céleres flechas
co rrip u it fidus quae téla gerébat A chãtés,
agarrou, armas que usava o fiel Acates.
d u ctõ résq u e ipsõs p rim u m capita alta ferentis 67
Primeiro os líderes <da manada>, levando altas as cabeças
190 cornibus arboreis sternit, tum uulgus et omnem
com cornos arbóreos, ele estatela; depois o vulgo e toda
miscet agéns télis nemora inter frondea turbam;
a turba ele remexe, direcionando com dardos no meio dos bosques frondosos.
n ec p riu s 68 absistit, q u am sep tem in gentia uicto r
Nem desiste antes que, como vencedor, sete corpos enormes
c o rp o ra (u n d at h u m i e t n u m e ru m cu m nãuibus a e q u e t
deite no chão e igualize o número <dos animai$> com as naus.
h in c p o rtu m p e tit e t socios p a rtitu r in om nis.
Daqui procura o porto e divide<*os> entre todos os companheiros49.
195 u m a b o n u s quae d e in d e cadis onerãrat 70 A cestês
Depois divide o vinho que o bom Acestes guardara em jarros

44Tratando-se de África, serão antílopes? Talvez Vergílio não tenha pensado muito na exatidão
destes pormenores zoológicos.
47 Os w. 189-202 chamam a atenção pelo freto de os hexâmetros serem todos diferentes no
que toca à distribuição de dáctilos e de espondeus. Em catorze versos, o poeta usa, uma a seguir
à outra, catorze das dezasseis tipologias possíveis de hexâmetro (isto excluindo o rarissimo
[em Vergílio e Horácio] hexâmetro espondaico). Trata-se de uma das passagens da Eneida em
que Vergílio aposta mais na variedade musical.
48 prius... quam = priusquam («antes que»). Atenção aos conjuntivos fitndat e aequet, que
antecipam o resultado expectável da oração temporal (cf. NGL, pp. 336-337, $4).
44Como é que Eneias e Acates levaram sete animais enormes? No episódio da Odisséia em que
Vergílio aqui se baseia (10.156-173), Odisseu mata um só veado e, mesmo assim, Homero dá-se
ao trabalho de descrever a dificuldade sentida pelo herói no transporte do animal.
70Mais-que-perfeito sincopado (= onerâuerat).
322 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

litore Trinacrio dederatque abeuntibus hérõs


no litoral trínácrio71e dera, <esse> herói!, aos que partiam;
diuidit, et dictis m aerentia pectora m ulcet:
e com palavras acalma os peitos enlutados:

« õ socii (neque enim ignari sum us ante m alorum )


« ó companheiros (pois não somos anteriormente ignorantes de desgraças)
õ pass! grauiõra, d abit deus his qu o q u e finem .
ó sofredores de coisas piores, o deus dará também para estas coisas um fim.
200 uõs et Scyllaeam rabiem p enitusque sonantis
Vós a raiva de Cila72e os rochedos ressoando por dentro
accestis 73 scopulos, uõs e t Cyclopia saxa
abordastes; e vós as rochas do Ciclope
experti: reuocãte anim õs m aestum que tim õrem
experimentastes; chamai de volta os ânimos, e o triste temor
m ittite: forsan et haec õlim m em inisse iuuàbit.
mandai embora; talvez até estas coisas um dia aprazerá recordar.
per uariõs cãsüs, p e r to t discrim ina rêrum
Através de vários percalços, por todo o tipo de situações
205 tendim us in Latium, sédés ubi fata quiêtãs
vamos para o Lácio74, onde os fados <nos> mostram sedes
ostendunt; illic fas régna resurgere Trõiae.
tranqüilas. Lá é lícito que os reinos de Troia ressurjam.
dürãte, et uõsm et rêbus seruãte secundis.»
Aguentai, e guardai-vos para circunstâncias favoráveis.»

tãlia uõce refert cúrisque ingentibus aeger


Tais <palavras> com a voz profere e, doente de preocupações enormes,
spem uultü simulat, prem it altum corde dolõrem .
simula com o rosto a esperança; no coração reprime a dor elevada75.

71Ou seja, na Sicilia.


72Cila e o Ciclope são terrores tirados da Odisséia e que serão depois referidos (emflashback)
no Canto 3 da Eneida.
73accestis = accessistis (accessi é o perfeito de accêdõ).
74Lácio? £sta certeza quanto ao destino contrasta com a incerteza vislumbrável noutros passos
da Eneida. £ onde é que Eneias foi buscar o topónimo «Lácio»? Nem todos concordaremos
com a segunda parte da afirmação de Austin: «We do not know how Aeneas knew the name
Latium, nor does it matter» (Austin i, p. 84).
75Isto é, a dor de «nível alto». Note-se como Vergilio nos dá acesso ao que Eneias verdadeiramente
sente, em contraste com aquilo que ele finge sentir: mais um avanço relativamente ao modelo homérica
Vergílio, Eneida, Canto 1 323

210 illi sé praedae accingunt dapibusque futüris:


Eles cingem-se para a presa e para as refeições próximas;
tergora diripiunt costis et uiscera nüdant;
esfolam as peles dos costados e expõem as vísceras;
pars in frústa secant ueribusque trem entia figunt;
uma parte em bocados cortam e cravam <os pedaços> frementes em espetos.
litore aéna locant alii flam m ãsque m inistrant.
Outros põem caldeirões na praia e tratam das chamas.
tum uictü reuocant uiris, fusique p er herbam
Então com comida recobram forças e deitados na relva
215 im plentur ueteris Bacchi pinguisque ferinae.
enchem-se de velho Baco c de gorda carne de caça.
postquam exém pta famés epulis m énsaeque rem õtae,
Depois que a fome foi banida pelas iguarias e as mesas foram afastadas,
amissõs longõ sociõs serm õne requirunt;
longamente, em conversa, inquirem <sobre> os companheiros perdidos,
spem que m etum que inter dubii; seu uiuere crédant 76
duvidosos entre esperança e medo, se hão de acreditar que eles vivem,
siue extrema pati nec iam exaudire 77*uocãtõs.
ou se eles sofreram <destinos> extremos e, invocados, ji não ouvem.
220 praecipuê pius Aenéãs nunc ãcris O ronti;
Sobretudo o pio Eneias ora do feroz Orontes,
nunc Amyci cãsum gem it et crüdêlia sêcum
ora de Amico a sorte lamenta e, consigo mesmo, <lamenta> os cruéis
fãta Lyci fortem que Gyãn fortem que C loanthum .
fados de Lico, <lamenta> o forte Gias e o forte Cloanto.

et iam finis erat; cum Iuppiter aethere sum m õ


E ji era o fim <da refeição7*quando Júpiter, do éter supremo
despiciens mare uêliuolum terrãsque iacentis
observando o mar vogado de velas e as terras jazentes
225 litoraque et lãtõs populõs, sic uertice caeli
e os litorais e os vastos povos, assim no vértice do céu

76Conjundvo deliberativo (ver NGL, p. 269).


77Predicado da segunda oração infinitiva introduzida por crèdant. O sujeito implícito (sociõs)
da primeira (cujo predicado é uiuere) está em correlação com uocàtõs.
n Ou do dia?
324 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

constitit e t Libyae defixit lüm ina régnis.


se deteve e fixou os olhos nos reinos da Líbia.
atque illum talis iactantem p ecto re cüräs
£ a ele, lançando no peito tais preocupações,
tristior et lacrimis oculõs suffusa nitentis
mais triste79e marejada de lágrimas nos olhos brilhantes
adloquitur Venus: « õ q ui rês h o m in u m q u e d e u m q u e
Vénus dirige a palavra: «Ó tu que os assuntos dos homens e dos deuses
230 aeternis regis imperiis et fulmine terrês,
com eternos poderes reges e com o relâmpago aterrorizas,
quid m eus A enêãs in tê com m ittere 80 tan tu m ,
que coisa tamanha pôde cometer contra ti o meu Eneias,
quid Trões potuêre, quibus to t funera passis
no que puderam os Troianos <ofender-te>, aos quais, tendo sofrido tantos óbitos,
cünctus ob Italiam terrarum clauditur orbis?
toda a orbe das terras se fecha por causa de Itália?
certé hinc R õm ãnõs õlim, u o lu en tib u s annis,
Com certeza que daqui, um dia, os Romanos, volvidos os anos,
23S hinc fore 81 ductõrés, reuocãtõ ã sanguine Teucri,
daqui seriam derivados a partir do sangue restaurado de Teucro,
qui mare, qui terras om nis diciõne te n ê re n t82,
os quais o mar, os quais todas as terras com poder possuiriam
pollicitus, quae té, genitor, sen ten tia uertit?
tu prometeste - que pensamento, Pai, te desviou?
hõc equidem occãsum Trõiae tristlsq u e ruinãs
Com isto, pois, em relação ao ocaso de Troia e às tristes ruínas
sõlãbar, fatis 83 contraria fãta rependêns;
eu me consolava, pesando contra fados contrários fados.

79Em rigor, frâfioréum comparativo. Dado que, em Homero, Afrodite («deusa dos sorrisos»)
é caracterizada de outra maneira, talvez o comparativo aponte implicitamente para a ideia de
que esta deusa é «mais triste» do que a sua contrapartida homérica. É preciso reconhecer, já
agora, que oJúpiter de Vergílio está num patamar de serenidade superior ao do Zeus homérico.
90É necessário subentender potuit (cf. potuêre no verso seguinte).
81Infinitivo futuro de sum (NGL, p. 148), predicado da oração infinitiva dependente de potíicitus
<es> («prometeste»).
02O conjuntivo pode explicar-se como oração relativa de caracterização (NGL, p. 342) ou como
oração relativa final (NGL, p. 341).
8JAlguns latinistas consideram quefàtis é dativo; outros optam por interpretá-lo como ablativo.
Vergílio, Eneida, Canto 1 325

240 n u n c eadem fo rtü n a uirõs to t casibus ãctõs


Agora a mesma fortuna os homens levados por tantas desgraças
insequitur, quem das finem, rêx magne, labõrum?
persegue. Que fim dás, grande rei, <dcstes> esforços?
A nténor potuit, mediis élãpsus Achiuis,
Antenor póde, escapado no meio dos Aqueus,
Illyricos p en etra re sinús atq u e in tim a tü tu s
penetrar, seguro, os golfos ilíricos e os reinos interiores
régna L ib u rn o ru m e t fo n tem su p erãre T im ãui,
dos Liburnos*
*4e passar além da fonte de Timavo,
245 u n d e p e r õra n o u e m uastõ cu m m u rm u re m o n tis
donde por nove bocas com vasto ruído da montanha <o rk »
it m are p ro ru p tu m e t pelagõ p re m it aru a so n an ti,
vai, irrompido, até ao mar e oprime os campos com seu pélago sonante.
hic tam en ille urbem Pataui sédésque locáuit
Aqui ele localizou a cidade de Pádua e as moradas
Teucrorum et genti nõm en dedit arm aque fixit
dos Teucros e à gente deu nome e fixou as armas
Trõiã, nunc placidã com postus pãce quiêscit:
troianas; agora descansa, posto em plácida paz:
250 nõs, tu a prõgeniês, caeli q u ib u s ad n u is arcem ,
nós, tua progénie, a quem consentes a cidadela do céu,
nãuibus (in fan d u m !) am issis ü n lu s o b iram
tendo perdido as naus*s (infando!), por causa da ira de urna**,
prodim ur atque Italis longê disiungim ur oris.
somos traídos e desatrelados longe das costas itálicas.
hic p ietatis honos? sic n õ s in scep tra re p o n is? »
É esta a honra da piedade? Assim nos repões nos cetros?»

94Correspondem ao território que hoje chamamos Croácia. Tito Livio (1.1) menciona, ainda,
que Antenor veio ter à zona dos Vénetos (mais tarde Veneza, a partir do século vil d.G). Ficamos
a pensar se o primus do primeiro verso da Eneida não será uma pequena inverdade (pelo menos
no âmbito da História mítica, onde elas, de resto, abundam).
*$ Um pequeno exagero da parte de Vénus, pois a única nau que se perdeu foi a de Orontes
(w. 113-117). No V. 381 ficaremos a saber que a frota de Eneias era constituída, no total, por
vinte naus.
96Vénus abstém-se de mencionar o nome de Juno.
326 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

olli 87 subridéns h o m in u m sato r atq u e d eo ru m ,


Sorrindo-lhe o Semeador dos homens e dos deuses
2S5 uultü, q u õ caelum tem p estãtêsq u e serên at8889,
com o rosto com que serena o céu e as tempestades,
õscula libãuit nãtae, d eh in c tãlia fatur:
provou os beijos da Olha" e depois diz tais <palavras>:
« p arce m etü 90, C ytheréa, m a n e n t im m õ ta tu õ ru m
«Poupa o medo, Citereia91: permanecem imóveis para d
fata tibi92; cem és u rb em e t p rom issa L auini
os fiados dos teus; verás a cidade e as muralhas prometidas
m oenia sublim em que ferés ad sidera caeli
de Lavinio, e levaris sublime até ás estrelas do céu
260 m agnanim um A enéãn; n eq u e m ê se n te n tia u e rtit.
o magnânimo Eneias; nenhum pensamento me desviou9*.
hic tibi (fabor 94 enim , q u a n d o h aec té cü ra re m o rd e t,
Este para ti (pois falarei, uma vez que esta preocupação te morde,
longius et uoluéns fatõ ru m arcãna m o u é b õ )
e desenrolando mais longe moverei os segredos dos fados)
bellum ingéns geret Italiã p o p u lõ sq u e ferõcis
travará uma grande guerra em Itália; e povos ferozes

97Forma arcaica de i7/í (cf. NGL, p. 224).


** Imitação de Énio, poeta épico do século li a.C., que escrevera os versos Iu p p iter hic risit;
tempestãtêsque serenae / risêrunt omnés risú louts om nipotentis (A nais 1.446-447). Este «som»
eniano, solene e arcaico, opera um pouco o mesmo efeito a que Richard Wagner recorrerá no
tema musical que exprime a dignidade serena de Wotan e de Valhalla, onde os acordes de um
coral antigo conferem intemporalidade ao ambiente musical. Vergílio recorre a Énio com
intenção análoga.
89Vergílio, no seu infinito bom gosto, evita o extremo quase pornográfico de Camões, que descreve
assim Júpiter «acendido» (!) beijando Vénus: «Co vulto alegre, qual, do Céu subido, / Toma
sereno e claro o ar escuro, / As lágrimas lhe alimpa e, acendido, / Na face a beija e abraça o colo
puro; / De modo que dali, se só se achara, / Outro novo Cupido se gerara» (O s Lusíadas 2.42).
90Dativo arcaico (ver nota ao v. 156), o que faz todo o sentido na abertura do discurso deJúpiter!
91Talvez por ter provado os beijos da filha, Júpiter - não fosse incorrer nos desejos incestuosos
mais tarde sentidos peloJúpiter camoniano - opta por lhe chamar «Citereia», nome que aponta
para a outra tradição relativa ao nascimento de Afrodite/Vénus, isto é, que nasceu da espuma
formada pela queda no mar dos órgãos genitals de Úrano, castrado por Crono (ver Hesíodo,
Teogonia 192; P G H T , pp. 24-25).
92Dativo ético (cf. N G L , pp. 297-298).
93Ou «desvia»? A forma uertit tanto pode ser presente como perfeito.
94Para o jogo de palavras, ver N G L , p. 208.
Vergílio, Eneida, Canto 1 327

c o n tu n d e t m õ rè sq u e uiris e t m o e n ia p õ n e t,
esmagará; e para os homens costumes e muralhas estabelecerá95,
265 tertia d u m L atiõ ré g n a n te m u id e rit 96 aestãs,
até que o terceiro verão o veja reinando no Lácio
te rn aq u e tra n sie rin t R u tu lis h ib e rn a subãctis.
e tenham passado trés invernos, depois de subjugados os Rútulos.
at p u e r A scanius, cui n u n c c o g n o m e n íü lõ
Mas o rapaz Ascánio, a quem o cognome Iulo
additur (Ilus erat, dum rés stetit Ilia régnõ),
é adicionado (era Ilo, enquanto estava de pé o estado ílio em reinado)97,
trig in tã m agnos u o lu e n d is m e n sib u s o rb is
trinta grandes ciclos com meses volventes
270 im periõ explébit, rê g n u m q u e ab séd e L au in i
cumprirá em poder; e o reino da sede de Lavinio
transferet, e t L ongam m u ltã ui m ü n ie t A lbam ,
transferirá; e com muita força munirá Alba Longa.
hic iam te r cen tu m tõ tõ s ré g n ã b itu r an n õ s
Aqui durante trezentos anos inteiros reinar-se-á
gente sub H ecto reã, d õ n e c rég in a sacerd õ s
sob a gente de Heitor, até que uma sacerdotisa régia,
M ãrte grauis g em in am p a rtü d a b it Ilia prõ lem .
grávida de Marte, dará à luz - ília98 - uma prole gêmea.

95 Em duas palavras ( môrés , «costumes»/«leis», e m oenia, «muralhas»), Vergílio sintetiza


o programa futuro do imperialismo romano (ou, em termos propagandísticos, da «missão
civilizadora de Roma»). Claro que primeiro é preciso esmagar os «ferozes» que se opõem a
ser colonizados - o que, para alguns leitores de Vergílio, «faz sentido porque sobre a barbárie
triunfa a civilização e a justiça», ou, ecoando a propaganda fascista portuguesa durante a Guerra
Colonial, «a guerra, como caminho para a paz» (M.H. Rocha Pereira, Estudos de H istória d a
Cultura Clássica II, Lisboa, 2009, 4.* edição, p. 315 e p. 323). Note-se, ainda, que na frase de
Júpiter os costumes e as muralhas acontecem uiris, «para os homens», isto é, «para os varões».
As mulheres ficam fora deste «filme».
96 uiderit... transierint: indicativo futuro perfeito. Rutulis... subãctis é ablativo absoluto.
97A tradição de que Ascánio se chamava também Iulo é de antiguidade duvidosa (cf. Austin i,
p. 103), mas é claro que, a partir do momento em que é verbalizada pelo próprio Júpiter nesta
passagem fulcral da Eneida, já não precisa de mais pergaminhos.
9#Reia Sílvia de nome civil (digamos assim). Mas, no presente contexto, «ília» (por causa de
«Ilion» e «Iulo») vai mais longe.
328 Latim do Zbro a V ergIlio bm SO Liçõbs

275 inde lupae fuluõ n ütricis tegm ine laetus


Então regozijando-se na fulva cobertura da loba <sua> ama,
R õm ulus excipiet gentem e t M ãu o rtia c o n d e t
Rómulo tomará a gente e fundará as mavórcias
m oenia R õm ãnõsque suõ d ê n õ m in e dicet.
muralhas e chamará <à gente> Romanos a partir do seu próprio nome.
his ego nec m étãs rêru m n ec te m p o ra p õ n õ ;
A estes nem limites nem prazos de govemo eu ponho;
im perium sine fine dedi, q u in aspera Iünõ,
um império sem fim eu dei". Pois a áspera Juno,
230 quae m are nun c terrãsq u e m e tü caelu m q u e fatigat,
que agora o mar e as terras e o céu com medo cansa,
cõnsilia in m elius referet, m é cu m q u e fo u éb it
levará <seus> conselhos para melhor e comigo acalentará
R õm ànõs rêrum d om inos g en tem q u e togatam ,
os Romanos, senhores das coisas e gente vestida de toga.
sic placitum *100, u en iet lüstris läb en tib u s aetãs,
Assim <me> aprouve. Virá o tempo, deslizados os lustres,
cum dom us A ssaraci P h th iam clãrãsque M ycênãs
quando a casa de Assáraco101a Ftia e a predara Micenas
285 seruitiõ prem et, ac uictis d o m in ã b itu r Argis.
com escravidão102esmagará e, vencidos os Argivos, dominará.
nãscêtur pulchrã T rõiãnus o rigine C aesar,
Nascerá, de nobre origem, o troiano César,
im perium Õ ceanõ, fãm am qui te rm in e t astris,
<que> o império no oceano, que a fama nas estrelas terminará103:

" Que bom, para leitores romanos, saber que o seu «império sem fim» era dádiva expressa de
Júpiter!
100Subentender est mihi.
101 Filho de Trós, rei lendário de Troia, e avó de Anquises (portanto, bisavô de Eneias). Ftia
refere a região de que Aquiles era rei. Note-se que «Micenas» (como «Atenas») é plural em
grego e latim.
102servitium, -í, «escravidão».
103No verso em latim, terminet i conjuntivo, porque a oração relativa tem um sentido final (NGL,
p.341).
Vergílio, Eneida, Canto 1 329

Iülius, ã m ag n õ d ém issu m n õ m e n íülõ.


Júlio, nome que descende do grande Iulo104.
h u n c tú õlim caelõ, spoliis O rie n tis o n u stu m ,
Este tu um dia no céu, carregado com os espólios do Oriente105,
290 accipiés sêcüra; u o c ã b itu r hic q u o q u e uõtis.
receberás, segura; também este será invocado com votos.
aspera tu m p ositis m ité sc e n t saecula bellis;
Os ásperos séculos suavizar-se-ão, acabadas as guerras;
cãna Fidés et Vesta, R em õ cu m frãtre Q u irin u s,
a branca Fidelidade e Vesta e Remo com o irmão Quirino
iüra d a b u n t; dirae ferrõ e t co m p ag ib u s a rtis
darão as leis; tremendas de ferro e de ferrolhos cerrados,
c lau d e n tu r Belli p o rta e ; F u ro r im p iu s in tu s,
as portas da Guerra serão fechadas; lá dentro, o ímpio Furor,
29s saeua sedêns su p e r arm a, e t c e n tu m u in c tu s aénis
sentado sobre armas ferozes e atado com cem brônzeos
p o st tergum nõdis, frem et h o rrid u s õ re c ru e n to .»
nós atrás das costas106, fremirá horrendo com boca sangrenta.»

haec ãit e t M ãiã g e n itu m d é m ittit ab altõ,


Estas <palavras> profere; e envia do alto o filho de Maia,
u t terrae, u tq u e n o u ae p a te a n t K arth ãg in is arcés
para que as terras e para que as novas cidadelas de Cartago se abram

104Ver nota ao v. 268.


105Os «espólios do Oriente» aplicar-se-iam melhor a Augusto do que a Júlio César (razão pela
qual alguns latinistas pensam que, ao referir Júlio César no verso anterior, Júpiter alude na
verdade a Augusto). Neste passo da Eneida (tal como no fim da Geórgica 1), as exigências de
compor poesia consentânea com as expectativas de um texto panegírico por parte do poder
político ficam a um milímetro de comprometer a verdadeira grandeza do olhar vergiliano,
normalmente focado, no seu modo darívidente de ver a realidade humana, naquilo a que se
chama em inglês the bigger picture.
106A imagem do Furor atado com cem nós evoca o monstro Briareu na Ilíada (1.403), mas
Vergílio introduz uma subtileza significativa: se, na mitologia grega, é a força bruta de Briareu
que salva Zeus da rebelião dos deuses, na visão de Vergílio é a própria força bruta que constitui
o problema cósmico, pelo que a paz só é possível se Furor-Briareu for acorrentada Sendo impius,
o Furor será logicamente a antítese daquilo que Eneias pius representa.
330 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

hospitio Teucris, nè fati nescia D id õ


em hospitalidade para os Teucros, não fosse Dido, ignorante do destino107,
300 finibus arcêret: uo lat ille p e r ãèrã m agnum
barrá<-los> com <suas> fronteiras. Ele [Mercúrio] voa pelo ar vasto
rèm igiõ ãlãrum , ac Libyae citus a d stitit õris.
pelo remigio das asas e depressa estacou nas costas da Líbia.
et iam iussa facit, p ô n u n tq u e ferõcia P o en i 108
E ji cumpre as ordens; e os Púnicos põem de lado os ferozes
corda uolente deõ; in prim is régina q u iétu m
pensamentos, por vontade do deus; entre os primeiros, a rainha recebe
accipit in Teucrõs anim um m en tem q u e benignam .
em relação aos Teucros um ânimo sereno e uma mente benigna.

305 at pius Aenêãs, p e r no ctem p lürim a uoluêns,


Mas o pio Eneias, durante a noite muitas coisas revolvendo,
u t prim um lüx alm a data est, exire locõsque
quando surgiu a primeira luz, sair e os lugares
explõrãre nouõs, quãs u e n tõ accesserit 109 õrãs,
novos explorar, a que costas teria abordado por causa do vento,
qui teneant, nam inculta u id ê t110, h o m in ésn e feraene,
quem <as> possuem - pois vé <terras> incultas se homens ou feras,
quaerere constituit sociisque exãcta referre.
resolveu descobrir e trazer aos companheiros as notícias.
310 ciassem in conuexõ n e m o ru m sub rü p e cauãtã
A armada numa enseada de bosques, sob uma rocha cavada.

107 No século XIX, um penetrante comentador de Vergílio escreveu: «Why should Dido drive
away the Trojans because she was “in ignorance of destiny”?Surely Dido would have been much
more likely to drive them away if she had been acquainted with destiny, for Aeneas was to cause
her death and the descendants of the Trojans were to destroy Carthage» (Page, p. 170). Já no
século XXI, outro comentador achou que o «ânimo sereno» e a «mente benigna» que Mercúrio
incute em Dido garantem «her own madness and death. Can this be viewed as anything but
divine cruelty?» (D.O. Ross, Virgil's Aetteid: A Reader's Guide, Oxford, 2007, pp. 108-109). No
Canto 5 da Odisséia, o Mercúrio grego (Hermes) é enviado por Zeus a Calipso com a mensagem
de que ela tem de abdicar de Odisseu (mais tarde, no Canto 4 da Eneida, Mercúrio será enviado
a Eneias para dizer que ele tem de abdicar de Dido). Nas palavras da Calipso homérica, ela
própria uma deusa, «Sois cruéis, ó deuses, e os mais invejosos de todos!» ( Odisséia 5.118).
,0$ Poeni («Púnicos»): «Cartagineses».
109acesserit.. teneant: os conjuntivos justificam-se por se tratar de interrogativas indiretas.
1,0Em rigor, deveria ser uidêt.
Vergílio, Enbida, Canto 331

arb o rib u s clausam circum atque h o rren tib u s u m bris


fechada por árvores à volta e por sombras horrendas
occulit; ipse ú n õ g rad itu r co m itatus Achãté,
ele escondeu; e ele próprio avança acompanhado só por Acates,
b in a m an ü lãtõ crispans hastilia ferrõ.
agarrando na mão duas lanças de ferro larga
cui m ãter m ediã sêsé tu lit o b u ia 111 siluã
A ele, no meio da floresta, a mãe no caminho se apresentou,
315 uirginis õs h ab itu m q u e g erêns e t uirginis arm a
rosto e traje de virgem usando e armas de virgem
Spartanae, uel quãlis eq u õ s T h reissa fatigat
espartana ou como <quando> cansa os cavalos a trácia
H arpalycé uolu crem q u e fugà p ra e u e rtitu r H eb ru m .
Harpálice112e ultrapassa na fuga o Hebro voador.
nam que um eris dê m o re hab ilem su sp en d erat arcum
Pois dos ombros, à maneira, pendurara o arco ajustado
uênãtrix d ederatque com am d iffundere u entis,
<como> caçadora; e dera a cabeleira aos ventos para espalharem,
320 nüda genü n õ d õ q u e sinús collêcta fluentis.
de joelho nu, tendo juntado com um nó as vestes flutuantes.
ac prior, « h e u s » in q u it « iu u e n ê s, m õ n strãte m eãru m
E antes <que ele fale>, «Ai», diz, «ó jovens, indicai se das
uidistis si quam hic e rran tem fo rte so rõ ru m ,
minhas irmãs acaso aqui vistes uma errante,
succinctam ph aretra e t m aculosae tegm ine lyncis,
cingida com uma aljava e com pele de um lince malhado,
aut spüm antis apri cursum clãm õre p re m e n te m .»
ou acossando com clamor o rasto de um espumejante javali.»

111Vergilio evita a concordância natural de obuia («that is in the way or path, placed so as to
meet» [OLD]) com sisc (também porque obuiam iria contra a métrica), fazendo em vez disso
a concordância com mãter.
112Filha atlética (na visão tradicional, «maria-rapaz») de um rei lendário da Trácia (o Hebro é
o rio que ela ultrapassava na corrida). A ironia é que Vénus não é uma virgem masculinizada,
mas sim a mais feminina (e menos virgem) das deusas.
332 Latim do Zero a VergÍlio em 50 Lições

325 sic Venus et Veneris co n trä sic fílius õrsus:


Assim <falou> Vénus; e o filho de Vénus assim falou em resposta:
« n ü lla tu ãru m audita m ihi n eq u e uisa so ro ru m ,
«Nenhuma das tuas irmãs por mim foi ouvida nem vista -
õ quam té m em o re m 113, uirgõ? n am q u e h a u d tib i u u ltu s
ó como te chamarei, ó virgem? Pois não tens rosto
m ortalis, nec uõx h o m in em so n at; õ, d ea certê
mortal nem a voz tem som humano, ó deusa decerto114
(an P hoebi soror? an n y m p h aru m sanguinis õ n a?)
(talvez irmã de Febo? Ou uma do sangue das Ninfas?),
330 sis 115 fêlix, n o stru m q u e leuês, q u aecu m q u e, lab o rem ,
que sejas feliz e que tomes leve, quem quer que sejas, o nosso esforço,
et, quõ sub caelõ tan d em , q u ib u s orb is in õris
e sob que céu, finalmente, em que costas do mundo
iactêmur, doceãs. ignãri h o m in u m q u e lo c õ ru m q u e 116
somos lançados nos ensina! Ignaros dos habitantes e dos lugares
errãm us u entõ h ü c uãstis e t fluctibus ãcti:
erramos, trazidos para aqui pelo vento e por vastas ondas.
m ulta tibi ante ãrãs n o strã cad et h o stia d ex trã.»
Numerosa vítima cairá para ti por nossa dextra ante os <teus> altares.»

335 tum Venus: « h a u d eq u id em tãli m ê d ig n o r h o n õ re ;


Então Vénus: «Não me considero digna de tal honra;
uirginibus Tyriis m õs est gestãre p h aretram ,
as virgens tírias tém o costume de levar aljava
p urpureõque altê súrãs uincire co th u rn õ .
e de atarem as pernas117*até cima com purpúreo cotumo.

11J Conjuntivo deliberativo (NGL, p. 269).


114Para Eneias, é óbvio que a mulher estranha só pode ser uma deusa, pois o que estaria a fazer
(naquela sociedade!) uma mulher sozinha no meio da floresta? Que ele trate, porém, Vénus por
«virgem» é, como sugeri, no mínimo irônico - e o facto de ela ser mãe dele é só uma das muitas
razões.
m sis... leuês... doceãs: conjuntivos jussitivos (NGL, p. 269).
116Verso hipermétrico (tem uma sílaba a mais). Não é fenômeno para o qual a poesia grega dê
muitos exemplos (embora haja um em Calímaco); a licença seguida por VergÍlio funciona, antes,
como homenagem a Énio.
117súra, -ae: «barriga da perna». O adereço de púrpura faz todo o sentido em termos de cor
local, já que os Cartagineses eram originalmente de Tiro - e os Tírios eram os maiores
comerciantes de púrpura (obtida a partir de um molusco) na Antiguidade.
Vergílio, Eneida, Canto 1 333

P ü n ica rêgna uidés, T y riõ s e t A g én o ris u rb em ;


Vés os reinos púnicos, os Tírios e a cidade de Agenor.
sed finés Libyci, g en u s in tractab ile bellõ.
Mas as fronteiras são líbicas, gente invencível na guerra.
340 im p eriu m D id õ T y riã reg it u rb e p ro fecta,
Dido rege o poder, tendo saído da cidade tíria,
g erm an u m fugiéns. lo n g a e st iniúria, longae
fugindo do irmão. Longa <de contar> é a injúria, longos
ambãgês; sed summa sequar fastigia rérum.
os meandros; mas traçarei os pontos altos <destes> assuntos.
h u ic con iü n x Sychaeus erat, d itissim u s a u ri 118
Ela tinha como cônjuge Siqueu, riquíssimo em ouro
P h o en icu m , e t m ag n õ m iserae d ile c tu s am õ re,
dos Fenícios, e amado pela infeliz com grande amor;
345 cui pater intãctam dederat primisque iugãrat
a ele o pai dera a virgem e <a> atrelara <em casam ento nos primeiros
õm inibus. sed rêgna T y ri g erm ã n u s h a b ê b a t
auspícios. Mas o irmão detinha o reino de Tiro,
Pygm alion, scelere a n te aliõs im m a n io r o m n is.
Pigmalião119, no crime mais monstruoso à frente de todos os outros.
qu õ s in ter m ediu s u ê n it furor, ille S y c h aeu m 120
Entre os dois surgiu uma loucura. Ele, ímpio,
impius ante ãrãs, atque auri caecus amõre,
diante dos altares, cego pelo amor do ouro,
350 ciam ferrõ incautum superat, sécürus amõrum
às escondidas com a espada vence Siqueu incauto, indiferente aos amores
germãnae; factumque diü cêlãuit et aegram
da irmã; longamente ocultou o facto e a amante aflita
m u lta m alus sim ulãns u ã n ã spê lü sit a m a n te m .
(simulando ele, mau, muitas coisas) com esperança vã enganou.
ipsa sed in so m n is in h u m ã ti u ê n it im ãgõ
Mas a própria imagem do marido insepulto apareceu em sonhos,

119Os manuscritos de Vergílio dão-nos a ler agri (lição seguida na edição de Conte). A conjetura
auri (adotada por Mynors) baseia-se na ideia de que os Fenícios eram mais comerciantes do
que agricultores.
119Este Pigmalião nada tem a ver com o de Ovídio, escultor que se apaixonou pela sua escultura
(Metamorfoses 10.243-297).
120No V. 343, o «y» de Sychaeus era longo; agora, poucos versos depois, é breve!
334 Latim do Zero a V ergílio em 50 L iç õ b s

coniugis õra m o d is atto llen s p allida m iris;


levantando as foces pálidas com modos mirificos,

355 crúdèlis ãrãs trãiectaq u e p e c to ra ferrõ


e os cruéis altares e o peito trespassado com a espada
n ü d ãu it caecum que d o m ü s scelus o m n e retêxit.
ele desnudou, e desvendou todo o crime cego da casa.
tu m celerare fugam p atriãq u e excedere su ad et,
Então persuade<-a> a apressar a fuga e a sair da pátria,
auxilium que uiae ueterês tellúre reclü d it
e como auxílio para o caminho revelou na terra velhos
thésaurõs, ign õ tu m argenti p o n d u s e t auri,
tesouros, acervo desconhecido de prata e de ouro.
360 his com m õta fugam D id õ so ciõ sq u e p arab at:
Por estas coisas movida, Dido preparava a fuga e os companheiros:
conueniunt, qu ibus a u t o d iu m c rü d êle ty ra n n i
reúnem-se aqueles que tinham implacável ódio do tirano
aut m etus ãcer erat; nãuis, q u ae fo rte paratae,
ou acre medo; naus, que por sorte estavam preparadas,
corripiunt o n eran tq u e auro: p o rta n tu r au ãri
arrebatam e carregam de ouro; são levadas no mar as riquezas
Pygm alionis opés pelagõ; d u x fêm in a facti,
de Pigmalião avaro; líder da situação <é> uma mulher.
365 déuénêre locõs ubi n u n c in g en tia ce m é s
Chegaram aos lugares onde agora verás enormes
m oenia surgen tem q u e n o u ae K arth ãg in is arcem ,
muralhas e a cidadela a surgir da nova Cartago,
m ercãtique solum , facti dé n õ m in e B yrsam ,
e compraram terreno (<chamado> Birsa a partir do nome do foeto121)
taurinõ quantum possent circumdare tergõ.
tanto quanto pudessem circundar com uma pele de touro.
sed uõs qui tandem? quibus aut uênistis ab õris?
Mas vós, afinal, quem <sois>? De que costas viestes?
370 quõue tenétis iter?» quaerenti tãlibus ille
para onde tendes itinerário?» À que pergunta tais coisas ele <responde>
suspirãns imõque trahêns ã pectore uõcem:
suspirando, tirando a voz do peito mais fundo:

121Vergílio mistura aqui etiologia com etimologia (em grego, ßvpca significa «pele de boi»).
Vergílio, Eneida, Canto 1 335

« õ dea, si p rim ã re p e tê n s ab o rig in e p e rg a m


« ó deusa121, se eu começar a partir da primeira origem
e t u a c e t an n ãlis n o s tro ru m a u d ire la b õ ru m ,
e houver vagar para ouvir os anais dos nossos labores,
a n te d iem clauso c o m p o n e t V esper O ly m p o .
antes <di$so> a Estrela da Tarde deitará o dia, fechado o céu.
375 n õ s T rõiã a n tiq u a , si u e strä s fo rte p e r au ris
A nós desde a antiga Troia, se acaso pelos vossos ouvidos
T rõiae n õ m e n iit, d iu e rsa p e r a e q u o ra u e c tõ s
o nome de Troia passou, levados por mares diversos
fo rte suã L ibycis te m p e sta s a d p u lit õris.
a tempestade (por capricho seu) trouxe às costas líbicas.
su m p iu s A enéãs, ra p to s q u i ex h o ste P en ã tis
Sou o pio Eneias, que os Penates arrebatados ao inimigo
classe u eh õ m êcu m , fãm ã su p e r a e th e ra n õ tu s.
na armada transporto comigo, conhecido pela fama nos céus12123.
380 Italiam quaerõ patriam et genus ab Ioue sum m õ.
Procuro Itália, <minha> pátria124, e uma linhagem de Júpiter supremo.
bis d én is P h ry g iu m c o n sc e n d i n ä u ib u s ae q u o r,
Com duas vezes dez naus125embarquei no mar frígio,
m ãtre d eã m o n s tra n te u ia m d a ta fãta se c ü tu s;
tendo <minha > mãe mostrado o caminho, seguindo os fados declarados.
uix sep te m co n u u lsa e u n d is £ u rõ q u e s u p e rsu n t.
A custo sete sobrevivem, estilhaçadas pelas ondas e pelo Euro.

122Eneias não deu qualquer crédito ao fingimento da «virgem» cartaginesa.


123Na Odisséia (9.19-20), Odisseu diz: «Sou Odisseu, filho de Laertes, conhecido de todos os
homens / pelos meus dolos. A minha fama já chegou ao céu.» Se Odisseu pode dizer que a sua
característica mais saliente (o dolo) já levou a sua fama ao céu, temos de deixar que Eneias diga
o mesmo sobre o facto de ser pius.
124A lenda seguida por Vergílio é que Dárdano, filho de Zeus e fundador de Troia, era originário
de Itália (supostamente da zona que conhecemos hoje como Toscana).
125O número vinte é uma homenagem à Odisséia, onde «vinte» é o número-fetiche do poeta:
«aparelha com vinte remadores» (1.280), «pelo preço de vinte bois» (1.431), «vinte medidas
de cevada moída» (2.355), «aí me retiveram os deuses vinte dias» (4.360), «escolhendo os
vinte melhores homens dentre o povo» (4.530), «cortou vinte árvores» (5.244), «nem que
tivesse vinte mãos e vinte pés» (12.78), «cá em casa tenho vinte gansos» (19.536), etc. E claro
que o cão de Odisseu morre quando viu o dono «ao fim de vinte anos» (17.327). Já agora, no
Canto 24 da lUada, Helena, ao fim de dez anos em Troia, fiz a afirmação desconcertante de que
está lá há vinte anos («Pois na verdade este é já o vigésimo ano / desde que saí de lá e deixei
a minha pátria» [765-766]).
336 Latim do Zero a Vergílio bm 50 Lições

ipse ignotus, egéns, L ibyae d eserta peragro,


Eu próprio, desconhecido, destituído, atravesso os desertos da Líbia,
38s E uropa atque A sia p u lsu s.» n ec plü ra q u e re n te m
escorraçado da Europa e da Ásia.» Não tendo Vénus aguentado que o queixoso
passa Venus m ediõ sic interfata dolõ re est:
mais coisas <dissesse>, no meio da dor <dele> assim falou:

«q u isq u is es, haud, crêdõ, inuisus caelestibus aurãs


«Sejas quem fores, não, creio, odioso aos celestes os sopros
uitãlis carpis, T yriam qui a d u é n e ris126 u rb em .
vitais colhes, tu que chegaste à cidade tíria.
perge m odõ atque h inc tê réginae ad lim ina perfer,
Continua somente e vai-te daqui aos limiares da rainha.
390 namque tibi reduces127*sociõs classemque relatam12®
Pois a ti companheiros restituídos e que a armada foi recuperada
n üntiõ et in tü tu m uersis A q u ilo n ib u s ãctam ,
anuncio, trazida para <lugar> seguro por aquilões mutáveis,
ni firústrã augurium uãni docuêre parentes,
a não ser que, vãos, <meus> pais me ensinaram para nada o augúrio.
aspice bis sénõs laetantis agmine cycnõs,
Vé duas vezes seis cisnes exultantes em formação,
aetheriã quõs lãpsa plagà Iouis ãles aperto
os quais a ave de Júpiter, caindo da praia aérea, a céu aberto
395 turbãbat caelõ; nunc terras õrdine longõ
agitava; agora parecem ou em fila longa as terras
aut capere aut captas iam dêspectãre uidentur:
ocupar, ou observar <terras por outro$> já ocupadas.
ut reducés illi lüdunt stridentibus ãlis,
Tal como eles, salvos, brincam com asas estridentes
et coetü cinxere polum cantüsque dedêre,
e circundaram o polo em companhia e deram os seus cantos,
haud aliter puppésque tuae pübêsque tuõrum
não de modo diferente as tuas popas e a juventude dos teus

126 O conjuntivo perfeito justifica-se por se tratar de uma oração relativa de caracterização (NGL,
p. 342). Sobre a quantidade errada do «i», ver p. 201.
m Trata-se do adjetivo redux, reducis ( «restituído»).
m Subentender esse.
Vergílio, Eneida, Canto 1 337

400 a u t p o rtu m te n e t a u t p lê n õ su b it õ stia uélõ.


ou ocupa <já> o porto ou se aproxima da foz com vela plena.
perge m o d o et, q u ã té d ü c it uia, d érige g ressu m .»
Continua somente e, para onde o caminho te leva, dirige o passo.»

dixit e t ãu ertên s roseã ceru ice refulsit,


Falou e, afastando-se, refulgiu com róseo pescoço129,
am bro siaeq u e co m ae d iu rn u m u e rtic e o d o re m
e os cabelos ambrosiais de cima um perfume divino
spirãuére; p ed és u estis dêflü x it ad im õs,
expiraram; a veste caiu até aos pés mais abaixo;
40S e t u éra incessü p a tu it d e a 130, ille ubi m a tre m
e pelo andar se revelou a deusa verdadeira. Ele, quando a mãe
agnõuit tãli fug ien tem est u õ c e secü tu s:
reconheceu, com esta palavra seguiu a fugitiva:
« q u id n ãtu m to tién s, crü d élis tü q u o q u e , falsis
«Por que razão o filho tantas vezes, cruel também tu, com falsas
lúdis im aginibus? c ü r d ex trae iu n g ere d e x tra m
imagens ludibrias? Por que razão juntar dextra a dextra
n õ n datur, ac uérãs au d ire e t re d d e re u õ c è s? »
não <me> é dado e ouvir e devolver palavras verdadeiras?»

410 tãlibus incüsat, g ressu m q u e ad m o e n ia te n d it.


Com tais <palavras a> censura; e o passo dirige para as muralhas.
at Venus obscürõ gradientis aere saepsit,
E Vénus rodeou os que avançavam com ar opaco,
e t m u ltõ n ebulae c irc u m 131 d ea fu d it am ictü ,
e a deusa derramou à volta <deles> uma cobertura abundante de nuvem,
cern ere n ê quis eõs n e u q u is co n tin g e re p o sse t
para que ninguém os visse, nem pudesse tocar<-lhes>.

129 Também na IUada (3.396) é a beleza do pescoço de Afrodite que dá a conhecer a deusa,
apesar do disfarce.
130Curioso o hiato dea itte.
131circum...füdit = circumfiidit Um toque homérico (tmese).
338 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

mõllriue moram aut ueniendl poscere causas.


ou prolongar uma demora ou perguntar as causas de virem132.
415 ipsa Paphum sublimis abit sédêsque reulsit
Ela própria abala, sublime, para Pafos e as revisita133,
laeta suás, ubi tem plum illi, centum que Sabaeõ
leda, suas, onde tem o templo, onde cem altares com sabeu
türe calent ärae sertisque recentibus halant,
incenso esquentam e exalam <perfumes> de grinaldas recentes.

corripuere uiam interea, quã sémita monstrat.


Entretanto se apressavam no caminho, por onde a vereda indica.
iamque ascendébant collem, qui plürim us urbi
E já subiam uma colina, que bastante à cidade
420 imminet aduersãsque adspectat désuper arcés.
está sobranceira e contempla do alto os baluartes que estão defronte.
mirãtur mõlem Aenéãs, mãgãlia 134 quondam ,
Eneias admira a mole, outrora cabanas,
mirãtur portas strepitumque et strãta uiãrum.
admira os portões e o barulho e os pavimentos das ruas.
instant ãrdentês Tyrii: pars dücere 135 múrõs
Esforçam-se, empenhados, os Tirios: uma parte a orientar muralhas,
mõlirique arcem et manibus subuoluere saxa,
e a levantar a cidadela e a fazer rolar pedras com as mãos;
425 pars optàre locum téctõ et conclúdere sulcõ.
outra parte a escolher o lugar para habitação e delimitar com um sulco.
iüra magistrãtüsque legunt sãnctumque senãtum.
Escolhem leis e magistrados e um santo senado.

132 Cf. Odisséia 7.14-17: «Então Odisseu pôs-se a caminho da cidade. Sobre ele Atena /
/ derramara um denso nevoeiro, para assim o ajudar, / não fosse algum dos magnânimos Feaces
encontrá-lo / no caminho e interrogá-lo, desafiando-o a dizer quem era.» Vergílio evita o
exagero de Apolónio de Rodes, em cujo poema Hera espalha nevoeiro numa cidade inteira para
quejasão não dé nas vistas (Argondutica 3.210-212).
133Cf. Odisséia 8.362-363: «Mas para Chipre se dirigiu Afrodite, deusa dos sorrisos; / foi para
Pafos, pois aí tem seu templo e seu perfumado altar.»
134mãgãlia, -um: «cabanas» (palavra alegadamente cartaginesa).
133Os infinitivos dücere, mõlirí, subuoluere, optàre, conclúdere dependem de instant.
Virgílio, Eneida, Canto 1 339

hic p o rtü s alii effodiunt; hic alta theãtrís


Aqui outros escavam os portos; aqui os fundos alicerces para os teatros134*
fu n d am en ta locan t alii im m ãnisque colum nas
outros colocam e enormes colunas
rü p ib u s excidunt^ scaenis d ecora alta futüris.
talham das rochas, altos adornos para cenários futuros.
430 quãlis apés aestãte nouã per flõrea rúra
Tal como ás abelhas, na estação nova, pelos campos floridos
exercet sub sõle labor, cu m gentis adu lto s
o labor exercita sob o Sol, quando trazem para fora os jovens adultos
éd ú cu n t fétüs, au t cum liq u en tia m ella
da <sua> gente, ou quando o mel líquido
stip an t e t dulci d is te n d u n t n ectare cellãs,
acumulam e incham os favos com doce néctar,
aut onera accipiunt uenientum , aut agmine facto
ou recebem os fardos das que chegam, ou de esquadrão formado
435 ignãuum fucõs pecus ã praesépibus arcent:
afastam das colmeias os zangões, manada inútil:
feruet o pus red o len tq u e th y m õ fragrantia m ella,
o trabalho fervilha e o mel perfumado cheira a tomilho137.
« õ fortúnãti, q u o ru m iam m o e n ia su rg u n t!»
«Ó afortunados, cujas muralhas já surgem!»
Aenêãs ãit et fastigia suspicit urbis.
Eneias diz; e contempla os pontos altos da cidade.
infert sé saeptus nebulã (mirabile dictü)
Faz-se entrar, coberto de névoa (coisa mirifica de dizer!)
440 p e r m ediõs m iscetq u e u iris n eq u e c e rn itu r ú lli138.
pelo meio <deles> e mistura-se com os homens e não é visto por ninguém.

134Não podemos passar em branco o anacronismo delicioso que consiste na fantasia de que já
existiriam teatros no período da Guerra de Troia. Um dado histórico importante a ter em conta
foi o facto de Augusto ter mandado reconstruir Cartago, cidade que seria mais tarde a morada
(por uns tempos) de um leitor fervoroso da Eneida: Santo Agostinho.
137Na sua Geórgica 4, Vergilio representara as abelhas como modelo de uma sociedade romana
ideal, onde todos trabalham e todos se sacrificam, e onde a felicidade individual não tem lugar.
Aqui as abelhinhas fanáticas de trabalhar são os Cartagineses, os quais, de modo antecipadamente
romano, Eneias aprova e qualifica defortúnãti.
,3eDativo de agente (em latim, é raro encontrarmos o dativo de agente com um verbo conjugado
no presente).
340 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

lücus in urbe fuit media! laetissimus umbrae,


Um bosque havia no meio da cidade, de sombra agradabilíssimo,
quõ prim um iactãti undis et turbine Poeni
onde primeiro os Púnicos, arremessados por ondas e turbilhão,
effodere locõ signum, quod régia Iünõ
desenterraram no lugar um sinal, que a régia Juno
m õ n stràrat139, c ap u t ãcris equi; sic n am fore bellõ
indicara, uma cabeça de impetuoso cavalo; pois assim seria <aquela> gente
445 egregiam et facilem u ictú p e r saecula g entem .
ilustre na guerra e despreocupada no sustento pelos séculos.
hic templum Iünõni ingéns Sidõnia D idõ
Aqui um enorme templo a Juno a sidónia Dido140
condébat, dõnis opulentum et nüm ine diuae,
fundava, opulento de dons e da divindade da deusa141,
aeréã cui gradibus surgêbant limina nexaeque 142
cujas soleiras brònzeas se levantavam com degraus e traves <estavam>
aere trab és, foribus cardõ strid ê b a t aênis.
ligadas com bronze e o gonzo chiava nas portas de bronze.
450 hõc prim um in lücõ n o u a rés ob lãta tim õ re m
Primeiro neste bosque uma nova circunstância oferecida apaziguou
léniit, hic prim um Aenêãs sperãre salütem
o temor; aqui, primeiro, £neias a salvação esperar
ausus et adflictis melius confidere rêbus.
ousou e <ousou> confiar melhor nas situações aflitas.
namque sub ingenti lüstrat dum singula tem plo
Pois enquanto sob o templo monumental ele observa cada coisa,
réginam opperiéns, dum quae fortuna sit urbi
aguardando a rainha; enquanto, que sorte a cidade tem,
455 artificum que m an ü s in te r sé o p e ru m q u e lab o rem
e as mãos dos artífices entre si e o trabalho das obras

139Indicativo mais-que-perfeito sincopado = mõnstrãuerat.


140Sidon e Tiro são cidades diferentes (ainda hoje), mas para Vergílio parecem ser a mesma; ou
então (como bom calimaquiano) ele conhecia a tradição segundo a qual Tiro fora fundada por
Sídon.
141Eneias diz-se pius - e Dido mostra-se pia. Depois de termos percebido que ela também é uma
exilada e refugiada, Vergílio dá-nos mais este dado para irmos compreendendo que são almas
gêmeas.
142Outro verso hipermétrico (cf. v. 332).
Vergílio, Eneida, Canto 1 341

m iratur, u id e t Iliacãs ex õ rd in e pugnas,


ele admira, vé por ordem os combates iliacos,
b ellaq u e iam fãm ã tõ tu m u u lg ãta p e r o rb em ,
e as batalhas já pela fama divulgadas pelo mundo inteiro:
Atrídãs Priam um que et saeuum am bõbus Achillem.
os Atridas e Priamo e Aquiles feroz contra ambos.
constitit et lacrimãns «quis iam locus» inquit «A chãté,
Fica parado; e, chorando, «Que lugar já», diz, «ó Acates,
460 quae regiõ in terris nostri nõn pléna labõris?
que região nas terras não está cheia do nosso sofrimento?
én Priamus! sunt hic etiam sua praem ia laudi,
Eis Priamo! Também aqui existem para o louvor os seus prêmios;
su n t lacrim ae ré ru m e t m e n te m m o rtã lia ta n g u n t.
<também aqui> existem as lágrimas das coisas141*e o que é mortal toca a mente.
solue m etús; feret haec aliquam tibi fäma salütem .»
Liberta os medos; esta fama te trará alguma salvação.»
sic ãit atque anim um pictürä pascit inani,
Assim fala; e alimenta o espírito com a pintura imaterial,
465 m ulta gem éns, larg õ q u e ü m e c ta t flü m in e u u ltu m .
muito gemendo, e humedece o rosto com largo caudal <de lágrimas>.
nam que uidébat, uti bellantês Pergama circum
Pois ele estava a ver como, combatendo à volta de Pérgamo,
hãc fugerent 144 Graii, prem eret Trõiãna iuuentüs;
por aqui os Gregos fugiam e a juventude troiana <os> oprimia;
hãc Phryges, instaret currü cristatus Achilles.
por aqui <fugiam> os Frígios <e> Aquiles cristado acossava com o carro.
nec procul hinc Rhêsi niueis tentõria uêlis
Não longe dali as tendas com panejamentos niveos de Reso

141A expressão celebérrima sunt lacrimae rérum é intraduzível (Robert Fagles propôs «thc world
is a world of tears»). Em termos mais literais, outro sentido possível é «também aqui existem
lágrimas por situações adversas», ou seja, «também aqui as pessoas se comovem perante o
sofrimento». A minha leitura pessoal, porém, vai noutra direção: intuo a partir do contexto
específico (contemplação de uma pintura) que as «lágrimas das coisas» se constituem,
relativamente à arte, ao mesmo tempo origem e tema. Vergílio propõe, a meu ver, uma situação
de autorreflexividade estética: ao mostrar-nos o herói da sua obra de arte comovendo-se com
arte e alimentando o seu espirito «com pintura imaterial», Vergílio faz de Eneias o espelho do
leitor-destinatário da arte vergiliana, que alimenta o seu espirito com este extraordinário poema.
144fugerent... premeret... instaret: o conjuntivo justifica-se por se tratar de interrogativas indiretas.
342 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

470 agnoscit lacrim ans, p rim õ quae p rõ d ita so m n õ


ele reconhece, lacrimejante, que traídas no primeiro sono
Tydidés m ultã uãstãbat caede cruentus,
o Tidida muito devastou, sangrento de morticínio,
ãrdentisque ãuertit equõs in castra, prius quam
e desviou os fogosos cavalos para o acampamento, antes que
pãbula gustãssent Trõiae X anthum que bibissent.
provassem o pasto de Troia ou bebessem o Xanto*1445*.
parte aliã fugiéns ãmissls Trõilüs armis,
Por outra parte Troilo, fugindo, perdidas as armas,
475 infêlix puer atque im par congressus Achilli,
rapaz infeliz e desigual combatente para Aquiles,
fertur equis currüque haeret resupinus inãni,
é levado pelos cavalos e o reclinado adere ao carro vazio,
lõra tenéns tam en; huic ceruixque com aeque trah u n tu r
segurando porém as rédeas; dele o pescoço e os cabelos são arrastados
per terram, et uersã puluis inscribitur hastã.
por terra e o pó é inscrito pela lança virada144.
intereã ad tem plum nõn aequae Palladis ibant
Entretanto para o templo da desfavorável Palas iam
480 crinibus Iliades passis peplum que ferêbant,
as mulheres de Troia com cabelos desalinhados e levavam um peplo147,
suppliciter tristés et tünsae pectora palmis;
à maneira de suplicantes tristes e batendo os peitos com as mãos;
diua solõ fíxõs oculõs ãuersa tenêbat.
a deusa <de cabeça> desviada mantinha os olhos fixos no chão.
ter circum Diacõs raptãuerat H ectora múrõs,
Trés vezes i volta dos muros iliacos <Aquiles> arrastara Heitor,

>4SRio de Troia. A história de Diomedes («Tidida») a levar os cavalos de Reso é contada no


Canto 10 da Híada (secçáo do poema que não foi composta por Homero) e também na tragédia
Reso (atribuída a Euripides, mas que Euripides certamente não escreveu).
144Amorte de Troilo às mãos de Aquiles era o tema de uma tragédia perdida de Sófodes. Vergílio
está, por um lado, a referir-se à lenda de que Troia não cairia se Troilo (o mais novo dos filhos
de Príamo) chegasse aos 20 anos; por outro lado, faz soar aqui a primeira nota de um leitmotiv
característico da Eneida: a morte prematura de « young men at war» (para citar P. Hardie, Virgil,
Aeneid IX, Cambridge, 1994, p. 14).
147O episódio aqui referido pertence ao Canto 6 da Itiada (w. 297-311).
Vbrgílio, Eneida, Canto 1 343

exanim um que aurõ corpus uendébat Achillés.


e Aquiles vendia o corpo sem vida por ouro148.
485 turn u é rõ in g e n te m g e m itu m d a t p e c to re ab im õ,
Então, verdadeiramente, dá um gemido do peito mais fundo,
u t spolia, u t cu rrü s, u tq u e ip su m c o rp u s am ici
quando viu os espólios, os carros, e o próprio corpo do amigo
tendentem que m anüs Priam um conspexit inerm is,
e Priamo estendendo as mãos desarmadas.
sé quoque principibus perm ixtum agnõuit Achiuís,
Reconheceu-se a si mesmo misturado entre os príncipes aqueus,
Êõãsque aciés et nigri M em nonis arm a.
e as falanges da Aurora e as armas do negro Mémnon.
490 dúcit A m ãzonidum lünãtis agm ina peltis
Lidera os esquadrões das Amazonas com escudos em forma de lua
Penthesiléa furéns, m ediisque in m ilibus ãrdet,
a furiosa Pentesileia e inflama-se no meio de milhares <de soldados>,
aurea subnectêns exsertae cingula m am m ae
atando cintas douradas à mama desnuda,
bellatrix, audetque uiris concurrere uirgõ.
guerreira; e ousa, virgem, combater com homens149.

haec dum D ardaniõ Aenéae m iranda uidentur,


Enquanto estas coisas admiráveis são vistas pelo dardânio Eneias,
495 d u m stu p e t o b tü tü q u e h a e re t d efix u s in ü n õ ,
enquanto pasma e fica preso, fixo num só olhar,
régina ad tem plum , fõrm ã pulcherrim a Didõ,
a rainha ao templo, Dido lindíssima na beleza,

148 Os episódios aqui ilustrados pertencem vagamente aos Cantos 22 e 24 da Iliada (mas a
imagem de Aquiles a «vender» por ouro o cadáver de Heitor suscita a possibilidade de Vergilio
se estar a referir também a uma tragédia [hoje fragmentária] de Énio, Hectoris Lytra, «O Resgate
de Heitor»; por outro lado, o ato de arrastar Heitor á volta das muralhas de Troia faz lembrar
mais a Andrómaca de Euripides [v. 105] do que propriamente a Ilíada, poema em que Aquiles
arrasta o cadáver de Heitor à roda do túmulo de Pátrocio).
149 Mémnon e Pentesileia eram temas do ciclo épico grego. A menção de uma virgem que
combate no meio de homens é proléptica (cf. Camila no Canto 11 da Eneida).
344 Latim do Zbro a Vergílio em 50 Liçõbs

incessit m agnà iu u e n u m stip an te cateruã.


avança com grande caterva acompanhante de jovens1*0.
quãlis in Burõtae ripis au t p e r iuga C y n th i
Tal como nas ribas do Eurotas ou pelas cumeadas do Cinto
exercet D iana choros, q u am m ille secütae
Diana conduz as danças, <à volta de> quem mil Oréades, seguindo,
soo hinc atque h inc g lo m eran tu r O réãdès; illa p h a re tra m
por aqui e por acolá se aglomeram; ela uma alvaja
fert um erõ gradiénsque deãs su p e re m in e t o m n is
leva ao ombro e, avançando, sobressai acima de todas as deusas
(L ãtõnae tacitu m p e rte m p ta n t gaudia p e c tu s!):
(alegrias invadem o coração calado de Latona!):
tãlis erat D idõ, tãlem se laeta ferêbat
assim era Dido, assim se levava a si mesma, leda,
p er m ediõs instan s o p eri rêgnisque futúris.
pelo meio <das pessoas>, empenhada na obra e no reino futuro1*1.
505 tu m foribus diuae, m edia te stü d in e tem pli,
Então às portas da deusa, na abóbada central do templo,
saepta arm is, soliõque alté subnixa resêdit.
cercada de armas, num trono apoiada se sentou elevadamente.
iúra dabat legésque uirís, o p e ru m q u e lab o rem
Dava julgamentos e leis aos homens1*2; e o esforço das obras*152

'*° Estes «jovens» (iuuenés) são do sexo masculino, o que logo à partida nos convida a olhar
para Dido com olhos romanos: afinal que mulher é esta, que lidera uma cidade como se fosse
um homem e é acompanhada por um séquito de rapazolas? Pensemos no choque e no escândalo
que surgiu em Roma quando Agripina, viúva de um imperador (Cláudio) e mãe de outro
(Nero), se preparava para receber embaixadores juntamente com Nero como se ela fosse um
homem. Os circunstantes, segundo Tácito (Anais 12.5), ficaram constrangidos de vergonha;
e a situação escandalosa só se resolveu graças à reação rápida de Séneca, que evitou a subida
de Agripina à tribuna. Nós vemos Dido como personagem maravilhosa e como mulher
independente a viver em pleno uma vocação política (antes de a paixão tóxica a destruir). Será
que os leitores romanos de Vergílio a romantizariam como nós? Ou passagens como esta
provocar-lhes-iam, antes, uma sensação de vergonha alheia?
151 O símile a comparar Dido com Diana evoca o símile do Canto 6 da Odisséia que compara
Nausícaa com a Diana grega, Artemis. Claro que (tratando-se de Vergílio) a comparação está
longe de ser inocente: o tema do amor e da caça já estava implícito na epifania de Vénus
disfarçada de caçadora; será depois durante uma caçada no Canto 4 que o amor de Dido e Eneias
é consumado.
152Cf. a nota ao v. 497. A escolha da palavra uiris não será decerto acidental.
Vergílio, Eneida, Canto 1 345

partibus aequãbat iústis aut sorte trahébat:


igualizava em partes justas ou tirava à sorte,
cum subitõ Aenéãs concursü accédere m agnõ
quando de súbito Eneias vê, na grande multidão, a avançar
sio A nthea Sergestum que uidet fortem que C loanthum ,
Anteu e Sergesto e o forte Cloanto
Teucrõrum que aliõs, ãter quõs aequore turbõ
e outros dos Teucros, a quem o violento turbilhão no mar
dispulerat penitusque aliãs ãuéxerat õrãs.
espalhara e levara, para longe, para outras costas.
obstipuit simul ipse simul perculsus A chãtés
Logo ele próprio ficou estupefacto e logo atingido <ficou> Acates
laetitiãque m etüque; auidi coniungere dextrãs
pela alegria e pelo medo; ávidos por juntar as dextras
sis ãrdébant, sed rés anim õs incognita turbat.
eles ardiam; mas a situação desconhecida agita os ânimos.
dissimulant et nübe cauã speculantur amicti,
Dissimulam e, cobertos com nuvem oca, ficam a observar
quae fo rtü n a uiris, ciassem q u õ lito re lin q u a n t153,
que fortuna <calharia> aos homens, em que costa teriam deixado a frota,
quid ueniant; cünctis nam lécti nãuibus ibant,
a que vêm; pois avançavam escolhidos de todas as naus,
õrantés ueniam et tem plum clam õre petêbant.
suplicando um favor; e o templo com clamor pretendiam alcançar.

520 postquam introgressi et cõram data cõpia fandi,


Depois que entraram e foi dada liberdade de falar diante <da rainha>,
m axim us Ilio n eu s p la c id õ sic p e c to re c o e p it:
o mais velho, llioneu, com plácido peito assim começou:
« õ régina, nouam cui condere Iuppiter urbem
«Ó rainha, a quem Júpiter concedeu fundar uma cidade nova
iü stitiãq u e d e d it g en tis frèn ãre su p erb ãs,
e com justiça refrear gentes soberbas,
Trões té miseri, uentis m aria om nia uecti,
<nós> Troianos, infelizes, levados pelos ventos por todos os mares,

153linquant... ueniant: conjundvos cm interrogativas indiretas.


346 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

525 õrãmus, prohibé infandõs ã nàuibus ignis,


te suplicamos: afasta das naus os fogos infandos,
parce piõ generi et propius rés aspice nostrãs.
poupa uma raça pia e mais cuidadamente observa as nossas circunstâncias.
nõn nõs aut ferrõ Libycôs populare 154 Penatis
Nós não viemos com a espada para devastar os líbicos Penates,
uènimus, aut raptas ad lítora uertere praedàs;
nem para os litorais encaminhar espólios roubados;
nõn ea uis animo nec tanta superbia uictis.
não tem <nosso> ânimo essa violência, nem os vencidos <tém> tanta soberba.
530 est locus, Hesperiam Grãi cognomine dicunt,
Existe um lugar, a que os Gregos dão o nome de Hespéria,
terra antiqua, potêns armis atque úbere glaebae;
terra antiga, forte nas armas e na riqueza do solo;
O enõtri 155 coluére uiri; mine (ama m inõrés
habitaram<-na> homens Enótrios; agora (<diz> a fama) os mais jovens
Italiam dixisse ducis dé nõm ine gentem.
chamaram â gente "Itália” a partir do nome do líder.
hic cursus fuit156:
Este foi o <nosso> caminho:
535 cum subitõ adsurgêns flüctú nim bõsus O riõ n 157
quando de súbito o chuvoso Orion, surgindo com ondulação,
in uada caeca tulit penitusque procacibus 158 Austris
<nos> levou para baixios invisíveis e para longe com austros ferozes
perque undãs superante salõ perque inuia saxa
pelas ondas, vencendo<-nos o mar> salgado, e por rochas ínvias
dispulit; húc pauci uestris adnãuimus õris.
<nos> dispersou; para aqui poucos nadámos até às vossas costas.

154populõ, populäre: «devastar», «espoliar». Ver nota a 4.403. A grande ironia é que, séculos
mais tarde, os futuros Romanos destruirão a cidade fundada por Dido.
155 O nome sugere a palavra grega para «vinho» (olvoc), talvez por Itália ter um clima
especialmente bom para o cultivo da vinha.
156Este é o primeiro dos trés versos incompletos que se encontram no Canto 1 da Eneida (os
outros são 560 e 636). Os ladnistas ainda hoje discutem se Vergílio deixou os versos incompletos
da Eneida como efeito surpreendente e deliberado, ou se a incompletude é sinal de que o autor
não fizera ainda a última revisão.
157Sobre a quantidade oscilante dos «o» que compõem este nome, ver NGL, p. 59, n. 17.
ls$procáx,procàcis (adjetivo): «insolente», «vicioso» (aqui «feroz»).
Vergílio, Eneida, Canto 1 347

quod genus hõc 159 hom inum ? quaeue hunc tam barbara m õrem
Que raça é esta de homens? Que tão bárbara pátria este costume
540 p e rm ittit patria? h o sp itiõ p ro h ib é m u r harénae;
permite? Somos privados da hospitalidade da praia;
bella cient prim ãque uetant consistere terra.
travam guerra e impedem<-nos> de pisar na primeira terra.
sl genus húm ãnum et mortalia tem nitis arma
Se a raça humana e as armas mortais desprezais,
at spêrãte deõs m em orés fandi atque nefandi.
aguardai os deuses lembrados do bem e do mal.
rêx erat Aenéãs nõbis, quõ iustior alter
O nosso rei era Eneias, mais justo do que o qual outro
545 nec pietãte fuit, n ec b ellõ m aio r e t arm is.
não houve nem pela piedade, nem maior na guerra e nas armas.
q uem si fãta u iru m seru an t, si u escitu r aurã
Se os fados salvaguardam este homem, se se alimenta do ar
aetheria, neque adhüc crüdélibus occubat umbris,
etéreo e não jaz ainda nas sombras cruéis
nõn m etus160, officiõ nec té certasse priõrem
não <temos> medo; que não te arrependas de seres tu primeira <em relação a ele>
paeniteat. sunt et Siculis regionibus urbés
a contribuir com ajuda. Existem também nas regiões sicilianas cidades
550 armaque Trõiãnõque ã sanguine clãrus Acestés.
e armas e <está lá> o preclaro Acestes <príncipe> de sangue troiana
quassatam uentis liceat 161 subdücere ciassem,
Que seja licito aportar a frota estilhaçada pelos ventos
et siluis aptãre trabés et stringere rémõs:
e nos bosques ajeitar traves e desbastar remos
si datur Italiam, sociis et rége recepto,
(se nos é dado demandar Itália, recuperado o rei e os companheiros),
tendere, ut Italiam laeti Latium que petämus;
para que, alegres, procuremos Itália e o Lácio.
555 sin absüm pta salüs, et té, pater optim e Teucrum,
Mas se a salvação for recusada e a ti, pai ótimo dos Teucros,

159Vergílio pressupõe hocc (NGL, p. 222).


160É preciso subentender nõn <est> metus <nõbis>.
161 Conjuntivo jussitivo.
348 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

pontus habet Libyae nec spès iam restat Iüli,


o mar da Líbia detém, nem resta a esperança de Iulo,
at freta Sicaniae saltem 162 sêdêsque parãtas,
então ao menos os mares da Sicânia e as moradas preparadas
unde hüc aduecti, rêgemque petãm us A cestén.»
donde fomos trazidos para aqui e o rei Acestes procuremos.»
tãlibus Ilioneus; cüncti simul õre fremébant
Com tais <palavras falou> Ilioneu. E logo com a boca (remiam todos
560 Dardanidae.
os Dardânidas163.

tum breuiter Didõ uultum dêmissa profatur:


Então brevemente Dido, tendo baixado o rosto, diz:
«soluite corde m etum , Teucri, sêclüdite cürãs.
«Desfazei o medo no coração, ó Teucros, e afastai as preocupações.
rês düra et régni nouitãs mé tãlia cõgunt
Um estado difícil e a novidade deste reino me obrigam a tais <atos>
mõliri et late finis custõde tuêri.
empreender e largamente guardar as fronteiras com guarda<s>.
565 quis genus Aeneadum, quis Trõiae nesciat 164 urbem ,
Quem a raça dos Enéadas, quem a cidade de Troia desconhece,
uirtütésque uirõsque165aut tanti incendia belli?
e as virtudes e os homens, ou os incêndios de uma guerra tamanha?
nõn obtünsa adeô gestamus pectora Poeni,
Não temos, <nós> Púnicos, peitos assim tão insensíveis,
nec tam ãuersus equõs Tyriã Sõl iungit ab urbe.
nem o Sol tão longe da cidade tíria atrela <seus> cavalos166.

162Advérbio («ao menos»).


163Um dado importante que nos é dado pelo discurso de Ilioneu é a estima sincera de que Eneias
é objeto por parte dos seus companheiros. Vergílio encena, pois, uma situação em que
Eneias tem a oportunidade de ver e de ouvir - mas sem ser visto. Quem conhece a Odisséia
homérica sabe que Vergílio efetuou aqui uma alteração propositada em relação ao seu modelo:
na Odisséia, com efeito, assim que Odisseu se afasta dos companheiros (ou adormece), eles
começam logo a dizer mal dele.
164 Como as interrogativas são diretas, a este conjuntivo é dado pelos gramáticos o nome de
«conjuntivo potencial» (equivalente ao «optativo potencial» em grego).
165uirtütésque uirõsque: jogo etimológico.
166Talvez no sentido de «não vivemos no obscurantismo da falta de hospitalidade».
Vergílio, Eneida, Canto 1 349

seu uõs H esperiam magnam Sãtum iaque arua,


Quer a magna Hespéria e os campos satúmios,
570 siue Erycis finis régem que optãtis Acestén,
quer as fronteiras de Érice e o rei Acestes procureis,
auxilio tütõs dim ittam opibusque iuuãbõ.
com auxílio vos enviarei seguros e com riquezas ajudarei.
uultis et his m écum pariter considere régnis;
Quereis igualitariamente comigo estabelecer<-vos> nestes reinos?
urbem quam statuõ uestra est; subdücite nãuis;
A cidade que construo é vossa; aportai as naus.
Trõs Tyriusque m ihi nüllõ discrim ine agétur.
Troiano e Tírio será tratado por mim com nenhuma discriminação.
575 atque utinam rêx ipse N otõ com pulsus eõdem
Quem dera que o rei Eneias, ele próprio, arrastado pelo mesmo Noto,
adforet167Aenéãs! equidem per litora certos
aqui estivesse presente! Decerto pelos litorais confiáveis <homens>
dim ittam et Libyae lüstrãre extrem a iubèbõ,
enviarei e ordenarei que perscrutem os confins da Líbia,
si quibus éiectus siluis aut urbibus errat.»
para o caso de, náufrago, ele nas florestas ou nas cidades errar.»

his anim um arrecti dictis et fortis Achãtês


Por estas palavras estimulados no ânimo, tanto o forte Acates
580 et pater Aenéãs iam düdum êrum pere nübem
como o pai Eneias já para romper a nuvem
ãrdêbant. prior A enêan com pellat A chãtês:
ardiam. Primeiro Acates interpela Eneias:
« n ãte deã, quae nunc anim õ sententia surgit?
«Filho da deusa, que pensamento agora <te> surge no ânimo?
om nia túta uidès, ciassem sociõsque receptõs.
Vés tudo seguro e a frota e os companheiros recuperados.
ünus abest, m ediõ in flüctü quem uidim us ipsi
Um só [Orontes] está ausente, a quem nós próprios na onda vimos
585 submersum; dictis respondent cétera mãtris.»
submerso; as restantes <coisas> correspondem aos ditos da <tua> mãe.»

167Conjuntivo desiderativo (NGL, p. 269); para a forma morfológica, ver NGL, p. 151.
350 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

uix ea fatus erat cum circumfusa repente


Mal estas coisas ele dissera, quando de repente a circundante
scindit sé núbês et in aethera purgat apertum .
nuvem se abriu e se purifica em direção ao éter aberto.
restitit Aenêãs clãrãque in lüce refulsit;
Eneias estava ali de pé e brilhou na luz clara,
õs um erõsque deõ similis; nam que ipsa decoram
semelhante a um deus no que toca ao rosto e aos ombros168; pois a própria
590 caesariem nãtõ genetrix lüm enque iuuentae
mãe <dera> ao filho uma bela cabeleira e a luz purpúrea da juventude169
purpureum et laetõs oculis adflãrat 170 honõrês:
e nos olhos insuflara ledas honras,
quãle m anüs addunt ebon decus, aut ubi flãuõ
tal como mãos acrescentam beleza ao marfim, ou quando com flavo
argentum Pariusue lapis circumdatur aurõ.
ouro a prata ou o mármore de Pário é circundado.
tum sic réginam adloquitur, cünctisque repente
Então assim à rainha ele fiila e, repentinamente, por todos
595 imprõuisus ãit: «cõram , quem quaeritis, adsum,
inesperado, diz: «Diante <de d>, aquele que procurais, estou presente,
Trõiüs Aenéãs, Libycis éreptus ab undis.
o troiano Eneias, arrancado das líbicas ondas.
õ sõla infandõs Trõiae miserata labõrês,
Ó tu que sozinha te apiedaste, compadecida, dos infandos sofrimentos de Troia,

168 Esta passagem imita dois momentos na Odisséia em que Atena faz Odisseu mais belo,
primeiro para fazer com que ele agrade a Nausicaa (6.229-235), depois para fizer o mesmo em
relação a Penélope (23.156-162). Eis a passagem do Canto 6: «Foi então que Atena, filha de
Zeus, o fez / mais alto de aspeto e mais forte. Da cabeça / fez crescer cabelos crespos, semelhantes
à flor hiacintina. / Tal como derrama ouro sobre prata um artífice, / a quem Hefesto e Atena
ensinaram toda a espécie / de técnicas, e assim fàz uma obra graciosa - assim a deusa / derramou
a graciosidade sobre a cabeça e os ombros de Odisseu.» A passagem do Canto 23 tem um
acrescento relevante, que é «igual de corpo aos deuses imortais» (v. 163), o que corresponde
a deõ similis no v. 589.
169A expressão «luz purpúrea da juventude» tem causado alguma estranheza aos latinistas;
provavelmente, Vergílio está a lembrar-se da cor hiacintina evocada por Homero a propósito
dos cabelos de Odisseu (ver nota anterior). Curiosamente, ao referir mais tarde a morte de
Camila, Vergílio falará de novo de uma «cor purpúrea» que abandona, na morte, o rosto da
virgem (11.819).
170adflãrat (indicativo mais-que-perfeito sincopado) = adfláuerat.
Vergílio, Eneida, Canto 1 351

q u ae nõs, réliquiãs D an au m , terraeq u e m arisque


que a nós (relíquias dos Dänaos, por todos os acidentes
om nibus exhaustos iam cãsibus, om nium egénõs,
da terra e do mar já exaustos, destituídos de tudo)
600 urbe, dom õ sociãs171, grãtés persoluere dignas
da cidade, da casa fozes participantes, dar agradecimentos condignos
n õ n opis est n o strae, D idõ, n ec q u icq u id u b iq u e est
não está no nosso poder, ó Dido, nem onde quer que haja <um vestígjo>
gentis D ardaniae, m ag n u m quae sparsa p e r o rb em .
da gente dardânida, que pelo magno mundo foi espalhada.
di tibi, si q ua 172 piõs respectant nüm ina, si quid
Que a ti os deuses - se algumas divindades respeitam os pios173, se algo
usquam iústitiae est et m éns sibi conscia recti,
algures de justiça existe e uma mente consciente da retidão -
605 praem ia digna ferant, quae té tam laeta tulêrunt
tragam prêmios condignos! Que séculos tão felizes te
saecula? qui tanti tãlem genuere parentes?
levaram? Que pais geraram tal <pessoa>?
in freta d u m fluuii cu rren t, d u m m o n tib u s u m b ra e
Enquanto os rios correrem para o mar, enquanto as sombras nos montes
lústrãbunt conuexa, polus dum sidera päscet,
percorrerem as colinas, enquanto o polo apascentar as estrelas,
sem per honõs nõm enque tu um laudésque m anêbunt,
sempre a honra e o teu nome e os teus louvores permanecerão,
610 quae mé cum que uocant terrae.» sic fâtus, am icum
sejam quais forem as terras que me chamam.» Tendo assim falado, o amigo
Ilionéa p e tit dex trã la eu ã q u e S erestu m ,
Ilioneu procura com a dextra; e com a <mão> esquerda, Seresto;
p o st aliõs, fo rtem q u e G yãn fo rte m q u e C lo a n th u m .
depois os outros, e o forte Gias e o forte Cloanto.
o b stip u it prim o a sp e c tü S id õ n ia D idõ,
Ficou pasmada, à primeira vista, a sidónia Dido,
casú d ein d e uiri tan tõ , e t sie õ re lo c ü ta est:
pelo infortúnio e depois por tal homem; e assim da boca folou:

171Trata-se do verbo sociõ, sociàrt («associar», «tomar sócio/pardcipante»).


172Pronome indefinido quis, qua, quid (cf. NGL, p. 229).
173Novamente, «pios» sublinha uma qualidade definidora que Eneias e Dido tém em comum.
352 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

615 «quis tè, nãte deã, per tanta pericula cãsus


«Que fado, ó filho da deusa, por tantos perigos
insequitur? quae uís immanibus applicat ôris?
te persegue? Que violência <te> traz a costas hostis?
tüne ille Aenèãs, quem Dardanio Anchisae 174
És tu aquele Eneias, que para o dardánio Anquises
alma Venus Phrygii genuit Simoentis ad undam?
a alma Vénus gerou junto da onda do frígio Simoente?
atque equidem Teucrum m emini Sidõna uenire
Pois lembro-me de Teucro175176vir a Sidon,
620 finibus expulsum patriis, noua regna petentem
expulso das pátrias fronteiras, procurando novos reinos
auxilio Bèli; genitor tum Belus opimam
com o auxilio de Belo; nessa altura <meu> pai Belo a rica
uãstãbat Cyprum, et uictor dicione tenebat.
Chipre devastava e, vencedor, a possuía com <seu> poder.
tempore iam ex illõ cãsus m ihi cognitus urbis
Já desde aquele tempo me era conhecida a queda da cidade
Trõiãnae nõm enque tuum régêsque Pelasgi.
troiana e o teu nome e os reis Pelasgos175.
625 ipse hostis Teucrõs insigni laude ferêbat,
O próprio inimigo dnha os Troianos <na consideração> de louvor insigne,
séque ortum antiquà Teucrorum ã stirpe uolêbat.
e queria que ele mesmo fosse oriundo da antiga estirpe dos Teucros.
quãré agite õ téctis, iuuenés, succedite nostris.
Por isso vinde, ó jovens, e entrai nas nossas moradas.
mé quoque per multõs similis fortüna labõrês
Também uma fortuna semelhante quis que eu, lançada através de muitos
iactãtam hãc démum uoluit consistere terrã.
labores, me fixasse finalmente nesta terra.

174O terceiro verso dirigido por Dido a Eneias ostenta a técnica catuliana (rarissima em Vergilio)
de pôr palavras gregas no fim do verso de modo a formar um hexámetro em que o quinto pé
é um espondeu.
175Meio-irmão do grego Ájax (o que se suicidou em Troia), e não o lendário rei troiano. O facto
de ter sido posto fora de casa pelo pai após a Guerra de Troia permitiu que, na literatura greco*
-latina, Teucro dialogasse com personagens célebres em locais exóticos: Euripides, na sua
tragédia Helena, coloca-o a conversar com Helena no Egito; Vergilio pressupõe longas conversas
protagonizadas por Teucro em Sídon (= Tiro?; ver nota ao v. 446).
176Pelasgos = Gregos.
Vergílio, Eneida, Canto 1 353

630 nõn ignara mali miseris succurrere discõ.»


Não ignara do mal, aprendo177a socorrer os infelizes.»
sic m em orat; sim ul A enéãn in régia d ú cit
Assim ela fala; logo conduz17*Eneias para dentro das régias
técta, sim ul diu u m tem plis indicit honorem .
moradas; logo declara uma honra <sacrificial > nos templos dos deuses.
nec minus intereã sociis ad litora m ittit
Nem menos <cuidadosa> com os companheiros para o litoral envia
uiginti taurõs, m agnorum horrentia centum
vinte touros179, cem costados eriçados de grandes porcos,
63 S terga suum 180; pinguis centum cum m atribus agnõs,
cem gordos cordeiros com as mães,
m ünera laetitiam que dii.
os dons e a alegria do deus [Baco].
at dom us in terio r rêgãli splendida lüxú
O palácio lá dentro, resplandecente com régio luxo,
instruitur; mediisque parant conuiuia téctis:
é preparado e preparam banquetes no meio das salas.
arte labõrãtae uestés ostrõque superbõ,
Colchas trabalhadas pela arte e de púrpura soberba,
640 ingêns argentum mênsis, caelãtaque in aurõ
prata enorme nas mesas e gravadas em ouro
fortia facta patrum, seriês longissima rêrum
as façanhas fortes dos antepassados, série longufssima de eventos
per tot ducta uirõs antiqua ab origine gentis.
traçada por tantos varões desde a origem antiga da gente.

A enêãs (neque enim patrius consistere m en tem


Eneias (pois o amor de pai não aguentou que ele descansasse
passus am o r) rapidum ad nãuis p raem ittit A chãtên,
a mente) envia para as naus o rápido Acates:

177Mais exatamente, «estou aprendendo».


178 Dido (uma mulher) «conduz» (dúcit) Eneias (um homem). Procuremos imaginar a
expressão boquiaberta dos primeiros leitores romanos da Eneidal
179Sobre o número vinte, ver nota ao v. 381.
180Genitivo do plural de süs («porco»). Ver NGL, p. 118.
354 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

645 Ascaniõ ferat 181 haec ipsumque ad m oenia dücat;


que ele transmita estas coisas a Asc&nio e que o conduza para as muralhas.
omnis in Ascaniõ cãri stat cúra parentis.
Em Ascânio está toda a preocupação do caro progenitor.
münera praetereà Iliacis êrepta ruinis
Além disso, presentes tirados às ruínas iliacas
ferre iubet, pallam signis au rõ q u e rigentem
ele ordena que se traga, uma capa rígida de figuras <trabalhadas> a ouro
et circumtextum croceõ uèlãmen acanthõ,
e um véu entretecido com o açafiroado acanto,
650 õm ãtüs Argiuae Helenae, quõs illa Mycénis,
ornamentos da argiva Helena, que ela de Micenas,
Pergama cum peterêt 182 inconcessõsque hymenaeõs,
quando procurara Pérgamo e himeneus não consentidos,
extulerat, mãtris Lêdae mirabile dõnum :
tirara, dom mirifico de <sua> mãe, Leda.
praetereà scèptrum , Ilionê q u o d gesserat õlim ,
Além disso o cetro, que outrora Ilíone usara,
maxima nãtãrum Priami, collõque m onile
mais velha das filhas de Priamo, e para o pescoço um colar
655 bãcãtum , et duplicem gem m is au rõ q u e corõnam .
de pérolas e um diadema duplo com pedras preciosas e ouro.
haec celerans ita ad nãuis tendébat Achãtés.
Apressando estas <ordens>, Acates dirigiu-se para as naus.

at Cytheréa nouãs artis, noua pectore uersat


Mas Citereia revolve novas artes e novos conselhos no peito,
cõnsilia, ut faciem mütãtus et õra Cupidõ
para que Cupido, transformado quanto ao semblante e ao rosto,10*

1010 conjunüvo justifica-se por se tratar de uma ordem indireta (neste caso sem ut). Ver NGL,
p. 349.
100A quantidade ilícita do «e» longo (ainda que possível na prosódia arcaizante de Énio e de
Lucrécio) parece sublinhar o carácter ilícito dos «himeneus» de Helena (prenunciando o
irrealismo do «casamento» fantasiado por Dido no Canto 4). Note-se, ainda, que a simbologia
de roupas outrora pertencentes às problemáticas Leda e Helena já aponta para a impossibilidade
de o amor entre Dido e Eneias dar certo.
Vergílio, Eneida, Canto 1 355

prõ dulci Ascãniõ ueniat, dõnisque furentem


venha em vez do doce Ascânio e incendeie com presentes a apaixonada181
660 incendat réginam atque ossibus implicet ignem.
rainha e <lhe> entreteça fogo nos ossos.
quippe dom um tim et ambiguam Tyriõsque bilinguis;
Pois eia terne a casa ambigua e os Tirios de duas linguas;
úrit atrõx Iünõ et sub noctem cüra recursat
Juno atroz arde <de ódio>; e de noite a preocupação volta.
ergõ his aligerum dictis adfatur Amorem:
Por conseguinte, interpela com estas palavras o alado Amor:
«nãte, meae uirès, mea magna potentia, sõlus
«Filho, minhas forças, meus grandes poderes <és> só,
665 nãte patris summi qui téla Typhõêã temnis,
filho, que desprezas as armas tifeias do pai supremo1
93194195:
ad té cõnfugiõ et supplex tua nümina poscõ.
junto de ti me refugio e, suplicante, imploro teus poderes divinos.
firãter ut Aenêãs pelagõ tuus omnia circum
Como teu irmão Eneias à volta de todas as costas no pélago
litora iactêtur odiis Iünõnis acerbae,
é arremessado pelos ódios da acerba Juno
nõta tibi, et nostrõ doluisti saepe dolõre.
<são coisas que> te <são> conhecidas; e amiúde te condoeste com a nossa dor.
670 hunc Phoenissa tenet Didõ blandisque m orãtur
A fenícia Dido detém-no e com sedutoras vozes
uõcibus; et uereor quõ sè Iünõnia uertant 185
o demora; e receio no que se possam transformar junónias
hospitia; haud tantõ cessãbit cardine rêrum.
hospitalidades; ela não cessará em tal ponto das circunstâncias.

193 Embora possamos interpretar «apaixonada» (furentem) como apontamento proléptico


relativamente ao estado futuro de Dido (cf. 4.69 furêns), vale a pena colocar a hipótese de
que, mesmo sem a intervenção desastrosa de Vénus, Dido se teria apaixonado por Eneias
de forma orgânica e natural. O que a leva ao suicídio no Canto 4 é a força tóxica da paixão
artificial engendrada pela deusa. As palavras ossibus implicat ignem voltarão a ocorrer no
Canto 7 (v. 355), novamente num contexto em que emoções tóxicas são suscitadas por
interferência divina.
194 Isto é, a força das armas de Cupido supera a dos relâmpagos com que Zeus/Júpiter matou
o gigante Tifeu.
195Conjuntivo depois de um verbo (uereor) a exprimir receio; cf. NGL, p. 353.
356 Latim do Z ero λ V ergílio em 50 Lições

q u õ circã capere a n te d o lis e t cin g ere flam m ã


Por isso penso agarrar com enganos e circundar com chama
reginam m ed ito r, n è q u õ sê n ü m in e m ü te t,
a rainha, para que ela não se mude por ação de nenhuma divindade,
675 sed m ag n õ A en êae m é c u m te n e ã tu r am õ re.
mas seja mantida comigo em grande amor por Eneias.
q u ã facere id possis n o stra m n u n c accipe m e n te m :
Como isto possas fazer, recebe agora o nosso pensamento.
rêgius accltú cãrl gen ito ris ad u rb e m
O régio menino, por indicação do caro progenitor, prepara-se
S idoniam 186 p u e r Ire parat, m ea m ax im a cüra,
para ir até à cidade sidónia (<menino que é> meu máximo cuidado),
d õ n a ferêns pelagõ e t flam m is re sta n tia T rõiae;
levando presentes de Troia que restaram do mar e das chamas.
680 h u n c ego sõ p ltu m so m n õ su p e r alta C y th ê ra 187
Este, adormecido com sono, eu sobre a alta Citera
aut super Idalium sacrãtã sêd e reco n d am ,
ou sobre o Idálio esconderei em sede sagrada,
nê quã scire dolõs m ed iu su e o ccu rrere p ossit,
para que não possa saber os enganos nem surgir no meio.
tü faciem illius n o c te m n o n am plius u n a m
Tu o rosto dele não mais do que por uma noite
falle dolõ et n õ tõ s p u e ri p u e r in d u e uultüs,
finge pelo engano e veste, rapaz, do rapaz os semblantes conhecidos,
685 ut, cum tê grem iõ accipiet laetissim a D id õ
para que, quando a felicíssima Dido te receber no colo
régãlis in ter m énsãs laticem q u e 188 L yaeum ,
entre as régias mesas e o líquido lieu,
cum dabit am plexüs atque õscula dulcia figet,
quando ela der abraços e fixar doces beijos,
occultum Inspires 189 ignem fallàsque u e n é n õ .»
lhe inspires um fogo oculto e a enganes com veneno.»

186Normalmente Sidônius.
187Cythéra, Cytherorum (a ilha de Vénus é morfologicamente um plural neutro).
188latex, laticis: «líquido». O adjetivo «lieu» diz respeito a Baco.
189Com dois versos de permeio, temos agora o conjuntivo dependente de ut, no v. 685.
Vbrgílio, Eneida, Canto 357

p ã re t A m o r d ictis carae g en etricis, e t ãlãs


O Amor obedece às palavras da cara progenitora e as asas
690 exuit e t gressú g a u d é n s in c é d it Iúli.
põe de parte; e, regozijando-se, avança com o passo de Iulo.
at V enus A scaniõ p la c id a m p e r m e m b ra q u ie te m
Porém Vénus pelos membros de Ascanio plácida tranqüilidade
inrigat, e t fõ tu m g re m iõ d e a to llit in alto s
derrama; e a deusa leva o aconchegado no colo para os altos
Idaliae lúcõs, u b i m o llis am a ra c u s illu m
bosques de Idália, onde a suave manjerona o
flõribus e t d ulci ad sp irã n s c o m p le c titu r u m b rã .
envolve, exalando, com flores e com sombra doce.

695 iam q u e Ibat d ictõ p ã ré n s e t d ö n a C u p id õ


Já avançava, à palavra obedecendo, e Cupido os presentes
régia p o rta b a t T yriis, d u c e la e tu s A ch ãtê.
régios levava aos Tírios, feliz com Acates por lider.
cum uenit, aulaeis iam sé regina superbis
Quando chega, já a rainha entre tapeçarias magníficas
aureã co m p o su it s p o n d ã m e d ia m q u e lo c à u it.
se arranjara num leito dourado e se colocara no meio.
iam p a te r A en êãs e t iam T rõ iã n a iu u e n tü s
Já o pai Eneias e já a juventude troiana
700 conueniunt, strãtõque super discum bitur ostrõ.
se reúnem; e reclina-se*90sobre um manto purpureo.
d a n t m an ib u s fam uli ly m p h a s C e re re m q u e c a n istris
Servos dão águas para as mãos e, a partir de cestos, Ceres
ex p ed iu n t, tõ n sisq u e fe ru n t m a n te lia uillis.
eles servem; e trazem guardanapos de pelos tosquiados190191.
q u in q u ag in ta in tu s fam ulae, q u ib u s õ rd in e lo n g a m
Lá dento há cinqüenta servas192, cuja incumbência é ordenadamente

190Vergilio não se importa de contrariar a tradição homérica, em que os comensais se sentam


à mesa. O reclinar é tipicamente romano.
191Homero nunca fala em guardanapos, mas Vergilio (como já antes na Geórgica 4.377) decidiu
introduzir este toque civilizado no seu universo épico («guardadapo» em latim é mantele; -is
[neutro]). A ideia de que são «de pelos tosquiados» sugere macieza e luxo.
192 A alusão às cinqüenta escravas lembra agora a corte de Alcinoo na Odisséia (7.103). No
mesmo episódio do poema homérico, fala-se em «mantas delicadas» e no luxo do banquete.
358 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

cü ra p e n u m 193 stru e re e t flam m is ad o lê re P en ãtis;


abundante provisão ajeitar e com chamas honrar os Penates.
705 centum aliae totidemque pares aetãte ministri,
H i outras cem e igual número de criados da mesma idade,
qui dapibus m ênsãs onerent et põcula põnant.
que carregam as mesas com iguarias e colocam as taças.
n ec n õ n e t T yrii p e r lim in a laeta freq u en tes
Pois também os Tírios nas alegres soleiras, numerosos,
conuènère, toris iussi discumbere pictis.
compareceram, convidados a reclinar em leitos variegados.
m iran tu r d õ n a A enêae, m ira n tu r lú lu m
Admiram os dons de Eneias, admiram Iulo
710 flagrantisque dei uultüs sim ulãtaque uerba,
e os traços resplandecentes do deus e as palavras fingidas
pallam que e t pictu m croceõ u ê lãm en acan th õ .
e a veste e o véu matizado com o açafroado acanto.
praecipue infélix, p esti d é u õ ta futürae,
Sobretudo a infeliz Fenícia, dedicada a uma desgraça futura,
expléri m en tem n eq u it ãrd éscitq u e tu e n d õ
não consegue saciar a mente e inflama-se observando;
Phoenissa, et p ariter p u e rõ d õ n isq u e m o u étu r.
e de igual modo se comove com o menino e com os dons.
715 ille ubi com plexú A enêae co llõ q u e p e p e n d it
Ele, quando do abraço e do pescoço de Eneias se pendurou
et m agnum falsi im p lêu it g enitoris am o rem ,
e saciou o grande amor do falso progenitor,
réginam petit, haec oculis, h aec p e c to re tõ tõ
procura a rainha. Esta com os olhos, esta com todo o peito
haeret e t in terd u m grem iõ fo u et inscia D id õ
<o> agarra e entretanto no colo <o> acarinha Dido, ignorante
insidat q uantus m iserae 194 deus; at m e m o r ille
de quão grande é o deus que se senta na miserável E ele, lembrado

m penus, -iis (feminino): «provisão» (segundo o OLD, palavra cognata depanasáh em sãnscríto,
«fruta-pão»).
194Dativo (construção de insidô, insidere, insidi, insessum).
Vergílio, Eneida, Canto 1 359

720 m ãtris A cidaliae p a u lã tim ab o lé re S y ch aeu m


da mãe Acidália195, pouco a pouco a abolir Siqueu
in cip it e t u iu õ te m p ta t p ra e u e rte re a m õ re
começa e tenta com amor vivo surpreender
iam p rid e m re sid é s 196 a n im õ s d é su é ta q u e c o rd a.
emoções há muito inativas e sentimentos desacostumados.

p o stq u a m p rim a q u ié s ep u lis m é n s a e q u e re m õ ta e ,


Depois que houve uma primeira pausa no banquete, retiradas as mesas,
crãtêrãs m ag n o s s ta tu u n t e t u m a c o rõ n a n t.
põem grandes crateres e coroam197os vinhos.
725 fit strep itu s téctls u o c e m q u e p e r am p la u o lü ta n t
Surge um estrépito no palácio e fazem ecoar uma voz pelos amplos
ãtria; d é p e n d e n t ly ch n i la q u e a rib u s au reis
átrios; pendem candelabros acesos dos tetos dourados
incênsi e t n o c te m flam m is fu n ãlia u in c u n t.
e as tochas vencem com chamas a noite.
hic rêgina g rau em g em m is a u rõ q u e p o p o s c it
Então a rainha pediu e encheu de vinho uma taça pesada de ouro
im p lèu itq u e m e rõ p ate ra m , q u a m B êlus e t o m n è s
e de pedras preciosas, que Belo e todos <os descendentes>
730 ã Bèlõ soliti; tu m facta sile n tia têctis:
de Belo costumavam <usar>; então se fez silêncio no palácio.
« Iu p p ite r, h o sp itib u s n a m tê d a re iü ra lo q u u n tu r,
«Júpiter - pois dizem que tu dás as leis a hóspedes <e anfitriões> -
h u n c laetu m T y riisq u e d ie m T rõ iã q u e p ro fe c tis
queiras tu que este dia seja feliz para os Tírios e para os que saíram de Troia
esse u elis198, n o strõ sq u e h u iu s m e m in isse m in õ rê s.
e que os nossos descendestes se lembrem dele!
adsit laetitiae B acchus d a to r e t b o n a Iü n õ ;
Está presente Baco, dador da alegria, e a bondosa Juno;

w Epíteto de Vénus, tão rebuscado que só temos a explicação de Sérvio (comentador de Vergilio
no século iv), segundo a qual se refere a uma fonte na Beócia onde as Graças se banhavam.
m reses, residis (adjetivo): «inativo».
197 Expressão imitada de Homero (Odisséia 1.148). A metáfora de «coroar» implica encher
as taças até cima.
,w Conjuntivo desiderativo.
360 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

735 e t uõ s õ coetum , Tyrii, celebrate fau en tés.»


e vós, ó Tírios, celebrai favoráveis a reunião!»

d ix it e t in m è n s a m la tic u m lib ã u it h o n õ re m ,
Falou; e na mesa derramou em libação honra de líquidos
p rim a q u e , lib ã tõ 199, s u m m õ te n u s 200a ttig it õ re,
e primeira, feita a libação, tocou <a taça> com o cimo da boca;
tu m B itiae d e d it in c re p ita n s; ille im p ig e r h a u s it
depois deu<-a> a Bítias, incitando<-o>. Ele, rápido, esvaziou
s p ü m a n te m p a te ra m e t p lê n õ sé p rõ lu it a u rõ ;
a taça espumejante e bebeu do ouro pleno;
740 p o s t alii p ro c e re s, c ith a ra c rin itu s Iõ p ã s
depois <beberam> os outros próceres. O cabeludo lopas com a citara
personat aurãtã, d o cu it q u em m axim us Atlãs.
dourada toca, a quem ensinou o enormissimo Atlas.
h ic c a n it e rra n te m lú n a m s õ lisq u e lab õ ré s;
Este canta a Lua errante e os labores do Sol;
unde h om inum genus e t pecudés; u n d e im b er et ignes;
donde a raça dos homens e os animais; donde chuva e fogos;
A rctürum pluuiãsque H yadas g em in õ sq u e T riõnês;
Arcturo e as chuvosas Hiades e os dois Triões201;
745 q u id ta n tu m Õ c e a n õ p ro p e re n t sê tin g e re sõ lé s
por que razão os sóis invemais tanto se apressam para tocar no Oceano,
hiberni, uel quae tardis m o ra n o ctib u s o bstet.
ou que demora obsta às noites lentas.
ingem inant plausú Tyrii, T rõesque seq u u n tu r.
Os Tírios redobram com aplauso e os Troianos seguem<-nos>.
nec n õ n et uariõ n o ctem serm õ n e trah êb at
Também com conversa variada passava a noite
infélix D idõ lo n gum que b ib éb at am õrem ,
a infeliz Dido e bebia um longo amor,
750 m ulta super P riam õ rogitãns, su p e r H ecto re m ulta;
muito perguntando acerca de Priamo, muito acerca de Heitor;

199Uso impessoal do participio perfeito isolado como ablativo absoluto.


200Preposição com ablativo («até»); aqui com o sentido de «com».
201 Ursa Maior e Ursa Menor.
Vbrgílio, Eneida, Canto 361

n u n c quibus A urõrae uén isset 202 filius arm ls,


ora com que armas o filho da Aurora teria chegado <a Troia>,
n u n c quãlés D iom edis equi, n u n c q u an tu s A chilles.
ora como eram os cavalos de Diomedes203, ora como era Aquiles.
«im m õ age 204 et ä prim ã dic, hospes, origine nõbis
«Pois começa, ó hóspede, e conta-nos desde a primeira origem
insidias,» inquit, « D a n a u m , cãsüsque tu õ ru m ,
as insidias», diz, «dos Dánaos, os infortúnios dos teus,
755 errõrésque tuõs; nam té iam septim a portat
as tuas erräncias; pois já o sétimo verão te transporta
om nibus errantem terris e t flüctibus aestäs.»
errante sobre todas as terras e ondas.»

202Conjuntivo por se tratar de uma interrogativa indireta.


203Na verdade, os cavalos de Diomedes eram os que ele tinha tirado a Eneias {lliada 5.297-324).
Para o já referido comentador oitocendsta Page (p. 206), estamos aqui perante uma gafe de
Dido. Eis o seu comentário inimitável: «Virgil makes her ask indiscriminately about everything
at Troy, and when ladies indulge in such enquiries they often make slips.»
204immõ age imita a expressão homérica άλλ *dye, que serve para convidar alguém a falar ( «então
vá lá...»).
Vergilio, E neida, Canto 4

A t règina graui ia m d ü d u m saucia cürä


Mas a rainha, já hi muito tempo205atingida por grave inquietação,
uulnus alit uênls e t caecõ c a rp itu r ignl.
alimenta a ferida com as veias e por um fogo cego206é colhida.
m ulta uiri u irtü s an im õ m u ltu sq u e recu rsat
A muita virtude do homem ocorre de novo ao <seu> espírito e a muita
gentis honõs; h ae re n t infixi p e c to re u u ltü s
honra da linhagem; os semblantes <dele> aderem fixos no peito <dela>
s uerbaque nec placidam m em b ris d a t cüra q u ietem .
assim como as palavras; a inquietação não dá aos membros plácida calma.
postera 207208Phoeb éã lu strab at lam p ad e terras
A Aurora seguinte iluminava as terras com a lâmpada febeia20·
üm entem que A urora p o lõ d im õ u e ra t u m b ram ,
e desviara do polo [céu] a sombra orvalhada,

205VergÜio salienta a perceção subjetiva do tempo pelo prisma de Dido: os Cantos 2 e 3, narrados
por Eneias, tinham constituído oflashback (já que a narrativa foi lançada, como diria Horácio
[Arte Poética 148], in mediás rês) dos acontecimentos ocorridos antes da chegada dos Troianos
a Cartago: o cavalo de pau, o saque de Troia, a fuga do grupo de refugiados e todos os tormentos
porque passaram. Com o advérbio iamdüdum («há muito tempo»), Vergilio mostra-nos como
Dido já não se consegue lembrar de uma existência em que não estava apaixonada por Eneias.
A paixão define agora a sua vida.
206 Camões escreverá que o amor é fogo que arde e não «se vé»; mas Vergilio é mais subtil:
o amor é fogo que não vé.
207Concorda com Aurora, no verso seguinte.
208A «lâmpada febeia» é o Sol (= Apoio = Febo).
Vergílio, Eneida, Canto 4 363

cu m sie u n an im a m a d lo q u itu r m ale sãna so rõ rem :


quando assim a malsã [Dido] interpela a unânime209irmã:
« A n n a soror, quae m ê su sp én sam In so m n ia te rre n t!
«Ana, irmã, que insônias me aterrorizam, suspensa!
io quis n o u u s hic n o stris successit sêd ib u s 210 h o sp es,
Que novo hóspede este que se aproximou das nossas moradas,
q u em sésé õre feréns211, q u a m fo rti p e c to re e t a rm is212!
com que aspeto se apresentando, como de peitoral forte e de ombros!
crédõ equidem , n ec u ã n a fidés, g en u s esse d e o ru m .
Creio mesmo - e não é vã a confiança - que é da raça dos deuses.
dêgenerés anim õ s tim o r arguit, h eu , q u ib u s ille
Animos degenerados o temor demonstra. Oh, por que
iactãtus fatis! quae b ella ex h au sta can ê b a t213!
fados ele foi arremessado! Que guerras extenuantes ele cantava!
is sl m ihi n õ n anim õ fixum im m õ tu m q u e se d ê re t
Se não me assentasse fixo e imutável na mente
nê cui m é uinclõ u ellem sociãre iugãli,
que não quero ligar-me a alguém com vinculo conjugal,
p o stq u am p rim u s a m o r d é c e p ta m m o rte fefellit214;
depois que o primeiro amor me enganou, dececionada, com a morte;

209 Isto é, a «sempre sintonizada» irmã; as duas afinam em tudo pelo mesmo diapasão. Ver
depois a nota ao v. 672. Cf. também o v. 686. Neste sublime Canto 4, Vergilio planeia o seu
vocabulário com extrema minúcia. Note-se também, desde já, a vontade expressa de Vergilio
de conferir ao Canto 4 o ambiente de uma tragédia grega: a conversa inicial das duas irmãs
lembraria ao leitor culto antigo a abertura da A ntigona de Sófodes.
210 nostris... sêdibus: dativo (pedido pela construção de succêdõ).
211Uma expressão muito compacta: temos de imaginar quâlis est et quàli õre (de õs, ôris, «rosto» )
séfert. Para o sentido de ferõ aqui, pense-se em tenue (francês) ou em H altung (alemão). O que
Dido está a comentar em concreto é o aspeto aristocrático de Eneias («que príncipe!»).
212 Uma controvérsia interminável entre os latinistas é se arm is é o ablativo de arma , arm õrum
(«armas») ou de arm us, -i («ombro»; cf., em inglês e alemão, a r m ). Depende do que
imaginamos que Dido está a elogiar: o heroismo de Eneias; ou o facto de ele ser bonito.
(Sublinhe-se que, para o O L D s.u., a palavra aqui é armus, «ombro».) Seja como for, os ablativos
fo r ti pectore e <fortibus> arm is são ablativos de qualidade (NGL, p. 311).
213Vergilio deixa-nos ver o descontrolo emocional de Dido em dois hexâmetros seguidos que
são o extremo um do outro: v. 1 3 ( - U U - U U - U U - U U - U U — ); v. 14 (---------------
--U U --).
2,4 Perfeito de fallô, fallere, fefelli, fa ls u m : «enganar».
364 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

si n õ n p ertaesu m 215 th alam i ta e d a e q u e fuisset,


se não tivesse sido repugnante <is$o> de tálamo e de tocha,
h uic ü n i forsan p o tu i su c cu m b ere culpae.
talvez a esta culpa, só a esta, eu teria podido216sucumbir.
20 A nna (fatebor en im ) m iseri p o st fata Sychaei
Ana (admiti-lo-ei, sim), após os destinos do infeliz Siqueu
coniugis e t sparsos fratern a caede p e n a tis
<meu> marido e dispersos os Penates devido ao assassínio fraterno217,
sõlus hic inflexit sénsüs an im u m q u e la b a n te m
só este infletiu <meus> sentimentos e <meu> espírito deslizante21*
im pulit, agnõscõ u eteris u estigia flam m ae,
impeliu. Reconheço os vestígios da chama antiga.
sed m ihi uel tellüs o p te m 219 p riu s im a d eh iscat
Mas eu desejaria que antes a terra funda se abra para mim
25 uel pater o m n ip o ten s adigat 220 m é fu lm in e ad u m b räs,
ou que o Pai omnipotente me lance com um relâmpago para as sombras,
pallentis umbrãs Erebõ noctemque profundam,
para as pálidas sombras no Érebo e para a noite profunda,
ante, Pudor, quam té uiolõ aut tua iúra resoluõ.
antes que, ó Pudor, te violo ou dissolvo os teus juramentos.
ille m eõs, prim u s qui m ê sibi iunxit, am õ rés
Aquele, que primeiro se juntou a mim, meus amores
abstulit; ille hab eat sécum se ru e tq u e se p u lcro .»
levou <com ele>; que ele <os> tenha consigo e <os> guarde no sepulcro.»

215 De pertaedeô, pertaedere, pertaesum : «repugnar», «aborrecer». O sujeito implícito de


pertaesum fuisset é «isso»; thalam i e taedae estão em genitivo. «Isso de casamento» é aborrecido
para Dido porque, como mulher sozinha em alta posição política num mundo de homens, ela
estaria cansada de ouvir que tinha de se casar.
216 Em português, a prótase da condicional que começou em latim com uma apódose irreal
(mais-que-perfeito do conjuntivo) não se consegue colocar no indicativo, embora Dido
empregue, de facto, o indicativo: p o tu i («pude»). A condição é irreal - mas a realidade é que
ela já sucumbiu à «culpa» de trair a memória do marido morto.
217O marido de Dido fora assassinado pelo irmão dela, Pigmalião (como lemos a partir de Eneida
1.348).
2I* Isto é, «impeliu meu espírito a deslizar» (como se a frase na cabeça de Dido fosse m eum
anim um sic im pulit u t labáret). A expressão alude â fraseologia com que Apolónio de Rodes fala
da paixão de Medeia por Jasão, dizendo que o coração dela «tombou» (Argonáutica 3.962).
219Conjuntivo potencial (â imitação do optativo potencial grego).
220De adigõ, adigere (composto de agó): «levar para», «lançar».
Vergílio, Eneida, Canto 4 365

30 sic effata sin u m lacrim is im p lé u it o b o rtis.


Tendo assim falado, encheu o peito com as lágrimas sobrevindas221.
A n n a refert: « õ lü ce m agis d ilécta so ro ri,
Ana responde: «Ó mais querida para <tua> irmã do que a luz,
sõlane p e rp e tu a m a e ré n s c a rp ê re 222 iu u e n tã
sozinha te gastarás triste em juventude perpétua
n ec dulcís n ãtõ s V eneris n e c p ra e m ia n õ ris223?
e não conhecerás doces filhos nem as recompensas de Vénus?
id cin erem a u t M ãn is créd is c ü rãre sep u lto s?
Acreditas que a cinza ou os Manes sepultos ligam a isso?
35 estõ: aegram núlli q u o n d a m flexere m ariti,
Seja: nenhuns <pretendentes a> maridos antes demoveram a aflita,
n õ n Libyae, n õ n a n te T y rõ ; d é sp e c tu s la rb ã s
não na Líbia, não antes em Tiro; foi desdenhado Iarbas
d u ctõ rê sq u e alil, q u õ s à frica te rra triu m p h is
e outros próceres, os quais a terra áfrica, em triunfos
d iu es 224 alit: p lac itõ n e e tia m p u g n ã b is a m õ ri?
rica, nutre: lutarás então contra um amor <que te é> grato?
nec u e n it in m e n te m q u o ru m c õ n sé d e ris 225 arm s?
Nem <te> vem à ideia em que terras de que <homens> <te> estabeleceste?
40 h in c G aetúlae urb és, g e n u s in su p e ra b ile b ellõ,
Deste lado, as cidades getulas [Numídia], gente insuperável na guerra,
e t N u m id ae in fré n i c in g u n t e t in h o s p ita S yrtis;
e os Númidas desenfreados226 <te> rodeiam e a inóspita Sírtis;
h in c d e se rta siti 227 reg iõ lã tê q u e fu re n té s
daquele lado, uma região deserta por causa da sede e os latamente enfurecidos

221Um toque genial de Vergílio. O facto de Dido romper em lágrimas depois do que disse mostra
quanto a fidelidade (da boca para fora) à memória de Siqueu representa o contrário daquilo
que, no seu íntimo, ela neste momento sente e quer.
222Indicativo futuro passivo (= carpèris).
223Indicativo futuro perfeito sincopado (= nõucris).
224diues, diuitis (adjetivo): «rico».
223Conjuntivo perfeito (por se tratar de uma interrogativa indireta).
226Porque montavam a cavalo sem usarem freios.
227Ablativo de causa.
366 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Barcaei, q u id bella T y rõ su rg en tia d ic a m 228


Barceus229. Porque mencionaria eu as guerras nascentes em Tiro
germ ãnique m in ás230?
e as ameaças do <nosso> irmão?
45 dis eq u id em ausp icib u s re o r e t Iü n õ n e se c u n d a
Penso, de facto, que foi com deuses auspiciosos e com Juno favorável
h u n c cursum Iliacãs u e n tõ te n u isse carinãs.
que as quilhas iliacas seguraram este curso com o vento.
q uam tü u rb em , soror, h a n c cem ê s, q u ae su rg ere ré g n a
Que cidade esta, ó irmã, tu verás! Que reinos <verás> surgir
coniugiõ tãli! T e u c ru m c o m ita n tib u s arm is
com tal conubio! Tendo por companheiras as armas dos Teucros,
P ünica sé q u an tis a tto lle t glo ria rébus!
com quantas vantagens a glória púnica se levantará!
so tü m o d o posce d eõ s u en iam , sacrisq u e litãtis
Tu pede só uma indulgência aos deuses; e com sacros <sacriftcios> cumpridos,
indulgê h o sp itiõ cau sãsq u e in n e c te m o ra n d i,
sé generosa com a hospitalidade e tece motivos de <ele> demorar,
dum pelagõ d êsaeu it h iem s e t a q u õ su s Õ riõ n 231,
enquanto o inverno se enfurece no pélago e o chuvoso Orion -
quassãtaeque ratés, d u m n õ n tractab ile c a e lu m .»
e estilhaçadas estão as naus, enquanto o céu não está tratável.»

his dictis im p én sõ 232 a n im u m flam m ãu it am õ re


Tendo dito estas coisas, inflamou o ânimo <dela> com amor dispendioso

Conjundvo potencial.
229Mau grado os receios de Ana, a cidade famosa de Barça (donde mais tarde seriam oriundos
Amílcar e outros ferozes oponentes de Roma) não ficava propriamente ali à mão de semear
(a distância da cidade de Dido seria à volta de 1000 km).
230Um dos 57 versos incompletos da Eneida.
231 Sobre as quantidades excêntricas de «Orion» em latim, ver N G L , p. 59, n. 17.
232 Alguns latinistas duvidam que Vergílio tenha escrito aqui im pénsõ (pois seria a única
ocorrência na sua obra de impénsus [ «muito caro», «muito dispendioso» ]; cf. o uso da palavra
para referir, em contexto gastronômico, o preço caríssimo dos rouxinóis em Horácio, Sátiras
2.3.245). Há alguma variação manuscrita neste verso; para muitos comentadores de Vergílio,
a forma preferível do verso seria hts dictis incensum an im u m in fla m m à u it am õre («tendo dito
estas coisas, inflamou o espírito aceso de amor»). Pessoalmente, gosto do verso tal como o
lemos na edição de Mynors e de Conte (com im pénsõ): este amor vai sair caro a Dido, pela
simples razão de que ela vai ter de pagar caro por ele.
Vergílio, Eneida, Canto 4 367

55 sp e m q u e d e d it d u b ia e m e n ti so lu itq u e p u d õ re m .
e deu esperança à mente hesitante e desfez o pudor.
principio dêlübra 233 adeunt pãcem que p er ãrãs
Primeiro visitam santuários e paz pelos altares
e x q u iru n t; m a c ta n t léc tã s d é m o re b id e n tis 234
elas pedem; sacrificam, segundo o rito, ovelhas escolhidas
légiferae C ererí P h oebõque patríque Lyaeõ,
à legisladora Ceres, a Febo e ao pai Lieu [Baco],
Iünõnl ante om nls, cui uincla iugãlia cürae235.
a Juno antes de todos, a cujo cuidado <competem> os vínculos conjugais.
60 ipsa tenéns dextrã pateram p ulcherrim a D ldõ
A própria (segurando na dextra uma taça) lindíssima Dido
c a n d e n tis uaccae m e d ia in te r c o m u a fu n d it,
derrama <o líquido entre os cornos de uma vaca branca,
a u t a n te õ ra d e u m p in g u is s p a tia tu r a d ãrãs,
ou diante dos semblantes dos deuses avança para os ricos altares
in sta u ra tq u e d ie m d õ n is, p e c u d u m q u e reclü sls
e renova13134*137o dia com ofertas, nos peitos abertos do gado
pectoribüs inhiãns spirantia cõnsulit exta.
olhando embasbacada e consulta as vísceras expirantes.
65 h eu , u ã tu m ignãrae m e n tê s! q u id u õ ta fu re n te m ,
Ó mentes ignorantes dos vates! O que ajudam votos a uma louca,
q u id d é lú b ra iu u a n t? é st 237 m o llis fla m m a m e d u lla s
o que ajudam santuários? Uma chama devora <seus> maleáveis tutanos13*

133 délübrum , -i: «santuário».


134 bidêns, bidentis refere, na sua aceção primária, algo que tem dois dentes; curiosamente, pode
significar também «ovelha» (animal que, após perder os dentes de leite, passa uma fase em que
só tem dois dos dentes permanentes; pelo menos é essa a explicação dada por Austin iv, p. 41).
133 cürae (tal como cui) faz parte de uma seqüência de dativos ( Iú n õ n L . cui... cürae).
236Isto é, volta várias vezes com o dia ao início desse mesmo dia, repetindo um ato religioso cuja
lógica pressupõe ser celebrado diariamente uma só vez (o cristão compreenderá que se passa
algo de preocupante na cabeça de um crente que sente a compulsão de comungar várias vezes
por dia). Ao vincar a entrega obcecada de Dido à haruspicina (de resto ausente da E n e id a ;
cf. Heinze, p. 316), Vergílio sublinha quanto a paixão provocada por Vénus é uma forma de
doença mental (lembrando a paixão doente de Fedra provocada por Afirodite no H ip ó lito
de Euripides). Algo não bate certo na cabeça de Dido; e no v. 64, como que por contágio, algo
não bate certo na métrica (pectoribüs em vez de pectoribüs).
137De edõ («comer»), e não de su m («ser»): ver N G L , p. 203.
134Já a ama de Fedra tinha avisado que o amor não deve chegar á medula da alma (H ip ó lito 255).
368 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

interea et tacitu m u lu it sub p ecto re uulnus.


por dentro; e uma ferida calada está viva debaixo do peito <dela>.
ü ritu r infélix D id õ tõ tã q u e u ag ãtu r
Abrasa-se a infeliz Dido e por toda a cidade vagueia,
urb e furèns, quãlis co n iectã ceru a sagittã239,
enlouquecida, como uma cerva, tendo sido disparada uma flecha,
70 q uam p rocul in cau tam n e m o ra in te r C résia fixit
a qual de longe, incauta, por entre os bosques cretenses240um pastor
p asto r agêns télis liq u itq u e u olãtile ferru m
atingiu, caçando com armas, e deixou o ferro voador,
nescius: illa fugã siluãs saltü sq u e perag rat
insciente; ela na fuga percorre florestas e os bosques
D ictaeos; h aeret lateri lêtãlis h aru n d õ .
dicteus; adere ao flanco a seta fetal.
n unc m edia A en éãn sécu m p e r m o e n ia d ú c it
Ora por entre as muralhas ela leva Eneias consigo
75 Sidoniãsque o ste n ta t o p ês u rb e m q u e parãtam ,
e as sidónias riquezas <lhe> mostra e a cidade em preparação;
incipit effãri m ed iãq u e in u õ ce resistit;
começa a falar e desiste a meio da frase;
n u n c eadem lãb en te dié conuiuia q uaerit,
ora, ao fim do dia, procura os mesmos banquetes,
Uiacõsque iteru m d ém ên s audire labõrês
e para ouvir novamente, louca, os esforços iliacos
exposcit p en d e tq u e ite ru m n arran tis ab õre.
eia pede e fica suspensa de novo da boca do narrador.
so p o st ubi digressi, lü m en q u e o b scu ra uicissim
Depois que se foram embora, e por sua vez a Lua obscura reprime
lüna p rem it su ãd en tq u e cad en tia sidera so m n o s,
a luz e as estrelas cadentes convidam aos sonos,
sõla d o m õ m aeret u acuã strãtisq u e relictis
sozinha fica enlutada na casa vazia e nos leitos abandonados

239coniectã... sagittã: ablativo absoluto.


240Adjetivos toponímicos como «cretense» e «dicteu» (também referente a Creta) tém função
decorativa, ao mesmo tempo que evocam a perícia tradicional dos Cretenses no combate com
arco e flecha.
Vbrgílio, Eneida, Canto 4 369

incubat, illum abséns ab sen tem auditque uidetque,


ela se deita. A ele ausente ela, ausente, vê e ouve241,
aut grem iõ A scanium genitoris im agine capta
ou, impressionada com a imagem do pai, no colo ela Ascânio
es detin et, in fan d u m 242 si fallere p o ssit am õrem .
segura, como se pudesse enganar um amor infando.
n õ n coeptae ad su rg u n t turres, n o n arm a iu u en tü s
Não surgem as torres começadas; a juventude não treina as armas,
exercet p o rtü su e au t p rõ p u g n ãcu la bellõ
nem <os Tírios> os portos ou defesas seguras para a guerra
tü ta p arant: p e n d e n t o p era in te rru p ta m in aeq u e
preparam; estão suspensas as obras interrompidas e as ameaças
m ü rõ ru m ingentes aeq u ãtaq u e m ãchina caelõ.
enormes de muralhas e uma máquina [grua] equiparada ao céu.

90 quam simul ac tãli persênsit peste tenêri


Assim que com tal doença a cara esposa de Júpiter percebeu que <Dido>
cãra Iouis coniünx nec fãmam obstãre furõri,
estava presa e que nem a reputação seria obstáculo à loucura,
tãlibus adgreditu r V enerem S atu rn ia dictis:
com tais palavras a Satúmia se aproxima de Vénus:
«êgregiam uêrõ lau d em e t spolia am pla refertis
«Egrégio louvor, na verdade, e amplos despojos vós levais,
tü q u e p u erq u e tu u s (m ag n u m e t m em o rab ile n ü m e n ),
tu e teu filho (grande e memorável divindade!),
95 üna dolõ diuum s! fêmina uicta duõm m est.
se pelo dolo de dois deuses uma mulher só é vencida!
nec m ê adeõ fallit u e rita m 243 tè m o en ia n o stra
Aliás não me passa despercebido que tu, receando as nossas muralhas,
suspectas habuisse d o m õ s K arthãginis altae.
tiveste como suspeitas as moradas da alta Cartago.

241A maravilha da ordem das palavras no verso de Vergilio não é transponível para português.
Como comenta Austin iv (p. 47), este verso demonstra «the magic of an inflected language».
242Vergilio vai acumulando, por meio da escolha das palavras, elementos que nos convidam a
avaliar com desaprovação os sentimentos de Dido, embora convidando-nos ao mesmo tempo
a solidarizar-nos com o sofrimento da rainha.
243Participio perfeito de uereor, uerêri, ueritus sum («venerar», «recear»).
370 Latim do Zero λ V ergílio em 50 Lições

sed quis erit m odus, au t q u õ 244 n u n c c e rta m in e ta n tõ ?


Mas que modo será <este> ou aonde <iremos> agora com tanta rivalidade?
quin p o tiu s pãcem aete rn am p a c tõ sq u e 245 h y m e n a e õ s
Porque não, de preferência, uma paz eterna e himeneus estipulados
íoo exercém us? habés tõ tà q u o d m e n te p etisti:
pomos em prática? Tens o que com todo o afinco procuraste:
ãrd et am ãns D id õ trãx itq u e p e r ossa fu rõ rem .
Dido arde apaixonada e arrasta loucura pelos ossos.
com m u n em hu n c ergõ p o p u lu m p a rib u sq u e reg am u s
Rejamos este povo comum <a ambas> com equiparados
auspiciis; liceat P h rygio seru ire m arito
poderes; que seja licito <a Dide» servir um marido frígio
dõtãlisque tuae T yriõs p e rm itte re d e x tra e .»
e permitir à tua dextra os Tirios como dote.»

105 olli (sênsit enim sim ulãtã m e n te lo cu tam ,


A ela (pois percebeu que fadara com espírito dissimulado,
quõ rêgnum Italiae Libycãs ã u e rte re t õ rãs)
para que o reino de Itália afastasse para as líbicas regiões)
sie contrã est ingressa V enus: « q u is tãlia d é m é n s
assim começou Vénus em resposta: «Quem <é> o louco que tais <termos>
abnuat aut têcum m ãlit c o n te n d e re bellõ?
recuse ou prefira contigo rivalizar na guerra?
si m o d o q u o d m em o rãs factum fo rtü n a s e q u ã tu r246.
Se ao menos a fortuna possa seguir o facto que rememoras.
i io sed fãtis incerta feror, si Iu p p ite r ú n a m
Mas sou levada <à deriva> pelos fados, incerta se Júpiter
esse uelit 247 Tyriis u rb e m T rõ iãq u e p rofectis,
quer que haja uma só cidade para Tirios e refugiados de Troia,
m iscériue p ro b e t p o p u lõ s a u t fo ed era iungi.
se ele aprova que <estes> povos sejam misturados e que <tais> ligações se juntem.

344Advérbio de lugar («aonde», «para onde»).


MSNote-se que pactus vem de paciscor, pacisci, pactus sum («estipular»).
346Conjuntivo potencial
347O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta (novamente no v. 116).
Não é frequente, porém, a situação (como a que temos aqui) de uma interrogativa indireta
introduzida por si; ver NGL, p. 345.
Vergílio, Eneida, Canto 4 371

tü coniünx, tib i fãs a n im u m te m p tã re p recan d õ .


Tu <és> cônjuge; é-te licito experimentar pela prece o espirito <dele>.
perge, seq u ar.» tu m sic excép it régia Iú n õ :
Avança; seguirei.» Então assim respondeu a régia Juno:
i is « m é c u m erit iste labor, n u n c q u ã ra tiõ n e q u o d in s ta t
«Comigo ficará esta tarefa. De que maneira o que importa agora
confieri possit, p au cis (a d u e rte ) d o céb õ .
pode ser conseguido, com poucas <palavras> (presta atenção!) explicarei
u ê n ã tu m 248 A enéãs ú n ã q u e m ise rrim a D id õ
Para caçar Eneias e a misérrima Dido juntamente
in nem u s ire p aran t, u b i p rim o s c rastin u s o rtu s
para ir ao bosque se preparam, quando o crástino Titã249 <seus> nasdmentos
ex tu lerit 250 T ita n rad iisq u e retê x e rit o rb e m .
tiver levantado e com <seus> raios tiver coberto o mundo.
120 his ego n ig ran tem c o m m ix ta g ra n d in e n im b u m ,
Para estes eu uma nuvem negra misturada com granizo,
d u m tre p id a n t ãlae 251 sa ltú sq u e in d a g in e 252 cin g u n t,
enquanto os caçadores correm e rodeiam os bosques com uma armadilha,
d ésu p er in fu n d a m e t to n itrü caelu m o m n e ciêbõ.
de cima derramarei e todo o céu com trovoada moverei.
diffugient com itês e t n o c te te g e n tu r opãcã:
Dispersar-se-ão os companheiros e eles serão cobertos por noite opaca.
sp êluncam D id õ d u x e t T rõ iãn u s e a n d e m
À mesma gruta Dido e o líder troiano
125 déuenient. aderõ et, tua si m ihi certa uoluntàs,
chegarão. Estarei presente e, se a tua vontade me <for> confiável,
cõnúbiõ 253 iungam stabili propriam que dicãbõ.
em conúbio estável <os> juntarei e declararei que ela é própria <dele>.

248Supino (com valor final; ver NGL, p. 363) de uênor, uènàri («caçar»).
249Isto é, «o Sol de amanhã».
250 extulerit (de efferõ) e retêxerit (de retegõ): indicativos futuros perfeitos.
251 àla, -ae tem como sentido primário «asa», mas aqui significa «grupo de caçadores».
252 indãgõ, -inis: «rastreio» (em sentido venatório); «armadilha» (por extensão de sentido
«indagação», ou seja, o ato de rastrear). Claro que a ambigüidade é deliciosa, porque a
armadilha das deusas é para Dido e Eneias. Cf. Richard Wagner, Tristão e Isolda, 2.° ato, «a uma
presa mais nobre do que estás a pensar diz respeito sua armadilha venatória» [«einem edlem
Wild, als dein Wähnen meint, gilt ihre Jägerslist»]).
253Aqui um trissilabo. Mas a palavra, na verdade, tem quatro sílabas: já começamos a perceber
que este «conúbio estável» não vai dar certo - logo pelo facto de faltar uma sílaba a «conúbio».
372 Latim do Z ero λ V ergílio em 50 Lições

hic h ym enaeus e rit.» n ô n ad u e rsã ta p e te n ti


Este será o himeneu <deles>.» Não contrária à proponente
ad n u it atq u e dolis risit C y th e ré a rep ertis.
Citereia assentiu; e riu-se com os enganos a descoberto.

Õ cean u m in tereã su rg ên s A u ro ra reliq u it.


Entretanto, surgindo, a Aurora deixou o Oceano.
130 it p o rtis iü b ãre 2S4 e x o rto d êlê c ta iu u e n tü s,
Sai das portas, surgido o raio de luz, a escolhida juventude:
rétia rãra, plãgae255, lãtõ u é n ã b u la ferrõ,
<saem> redes largas, redes <mais finas>, dardos venatórios de amplo ferro;
M assylique ru u n t e q u itês e t o d õ ra c a n u m uis.
massílicos2* cavaleiros precipitam-se e a força olfativa dos cães.
rêginam th alam õ c ú n c ta n te m ad lim in a p rim i
<Aguardando> a rainha demorada no tálamo junto às soleiras os príncipes
P o en o ru m exsp ectan t; o strõ q u e in sig n is e t au rõ
dos Púnicos esperam; e brilhante de púrpura e de ouro
135 stat sonipês 257 ac frén a ferõx sp ü m a n tia m a n d it.
está <seu> corcel e morde, feroz, os freios cobertos de espuma.
ta n d em p ro g re d itu r 258 m ag n ã s tip a n te c a te ru à
Por fim avança, tendo-se apinhado uma grande multidão,
S idoniam pictõ ch lam y d em c irc u m d a ta lim b ö 259;
vestida de dâmide sidónia com bainha bordada;
cui p h a retra ex aurõ, crin ês n o d a n tu r in a u ru m /
de quem a aljava é de ouro os cabelos se prendem com ouro;
aurea p u rp u re a m su b n e c tit fib u la u e ste m .
uma fibula dourada prende a veste purpurea.
140 nec nõn260et Phrygii comitês et laetus lülus
De igual modo também os companheiros frígios e o alegre Iulo

254 iubar, iubaris (neutro): «raio de luz». A expressão iü b à r ie x o r to é um abladvo absoluto.


m plàga, -ac: «rede» (não confundir com plága [«golpe», «ferida»]).
256 Os M assyli eram um povo norte-africano. A expressão «força olfativa dos cães» é um
homerismo (ver nota a Odisséia 2.409 na p. 106 da minha tradução comentada do poema
homérico) filtrado por Lucrécio (6.1222; fid a canum uis, «força fiel dos cães»).
U7 Esta palavra para «cavalo» (sonipes, sonipedis, «de casco sonoro») é altamente descritiva
(formada a partir de sonus [«som»] + pés [«pé», «pata»]).
269O sujeito implícito é «Dido».
269 limbus, -ϊ: «bainha». A «dâmide» é uma espécie de capa.
260O sentido aqui da litotes nec nôn é «de igual modo».
Vbrgílio, Eneida, Canto 4 373

in c é d u n t. ip se a n te aliõ s p u lc h e rrim u s o m n is
avançam. Ele próprio, o mais belo diante de todos,
ín fe rt sê s o c iu m A e n é ã s a tq u e a g m in a iu n g it.
Eneias, apresenta-se como sócio e junta os grupos.
q u ãlis u b i h ib e rn a m L y ciam X a n th iq u e flu e n ta
Tal como quando a invernosa Licia e as correntes do Xanto
d é se rit ac D ê lu m m ã te m a m in u ls it A p o llõ
Apoio abandona e visita a materna Delos
145 In sta u ra tq u e ch o ro s, m ix tlq u e a ltã ria c irc u m
c <lá> instaura coros - e misturados à volta dos altares
C rê té s q u e D ry o p é s q u e fre m u n t p ic tiq u e A g a th y rs i261;
gritam os Cretenses e os Dríopes e os pintados Agatirsos;
ipse iugis 262 C y n th i g ra d itu r m o lliq u e flu e n te m
o próprio pisa as encostas do Cinto e com delicada folhagem o esvoaçante
fro n d e p re m it c rin e m fin g é n s a tq u e im p lic a t au rõ ,
cabelo prende moldando<-o> e entretece-o com ouro;
têla s o n a n t u m e ris: h a u d illõ s é g n io r ib a t
as setas chocalham nos ombros263: não mais lerdo do que aquele ia
150 A enéãs, ta n tu m ê g reg iõ d e c u s é n ite t õ re.
Eneias; tanta beleza <quanta a de Apoio > brilha no seu rosto distinta
p o stq u a m altõ s u e n tu m 264 in m o n tis a tq u e in u ia lü s tra ,
Depois que chegaram aos altos montes e às tocas inacessíveis,
ecce ferae saxi d é ie c ta e u e rtic e c a p ra e
eis que cabras selvagens deslocadas <pelos caçadores> do cume de um penedo
d ê c u rrê re iugis; aliã d ê p a rte p a te n tis
desceram nas encostas; de outra parte através dos abertos
tr ã n s m ittu n t c u rsü c a m p o s a tq u e a g m in a c e ru i
campos cervos se deslocam em corrida e reúnem bandos
155 p u lu e ru le n ta fugã g lo m e ra n t m o n tis q u e re lin q u u n t,
poeirentos na fuga e deixam os montes.
a t p u e r A sc a n iu s m e d iis in u a llib u s ã c ri
Mas o rapaz Ascânio no meio dos vales com o impetuoso

261 Este verso fascinante (e que caleidoscópio de sons!) ostenta trés tratamentos métricos
diferentes da enclitica -que: Crctèsquc Dryopcsquifremunt pictique Agathyrsi.
262 iugum, -í: «jugo» (mas aqui «encosta»).
263Imitação claríssima de Iliada 1.46-47, onde Apoio, assim descrito, tiaz a morte. Vergilio conta
com a cultura homérica do leitor para perceber as implicações.
264 Subentender est illis. O verbo ueniô é aqui utilizado no perfeito passivo de modo impessoal.
374 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

gaudet equô iamque hõs cursü, iam praeterit illõs,


cavalo se regozija e já estes na corrida, já aqueles ultrapassa;
spümantemque dari pecora inter inertia uötis
e deseja que no meio dos rebanhos passivos seja dado aos seus votos
optat aprum, aut fuluum descendere monte leõnem.
um javali espumejante ou que do monte desça um fulvo leão.

160 intereã m agnõ m iscêri m u rm u re caelu m


Entretanto o céu a misturar-se com grande ruído
incipit, in se q u itu r c o m m ix ta g ra n d in e n im b u s265,
começa; segue-se uma carga de água misturada com granizo
et Tyrii comitês passim et Trõiãna iuuentüs
e os companheiros tírios e a juventude troiana
Dardaniusque nepõs Veneris diuersa per agrõs
e o dardânio neto de Vénus [Ascánio], por entre os campos, diversos
técta metü petiere266; ruunt de montibus amnês.
abrigos, com medo, procuraram; ruem dos montes os rios.
165 spéluncam Didõ dux et Trõiãnus eandem
À mesma gruta Dido e o líder troiano
déueniunt. prima et Tellús et prõnuba Iünõ
chegam. Tanto a primordial Terra como a nupcial Juno
dant signum; fulsére ignés et cõnscius aethêr
dão o sinal; brilharam fogos e o éter testemunha
cõnubiis summõque ulularunt uertice Nymphae.
dos esponsais; e do cume mais alto ulularam as Ninfas.
ille diés p rim u s létí p rim u sq u e m a lõ ru m
Aquele dia primeiro da morte e primeiro dos males
170 causa fuit; n eq u e en im speciê fãm áue m o u é tu r
a causa foi; pois nem pela aparência <conveniente> nem pela fama é movida
nec iam furtiuum Didõ meditatur amõrem:
nem já Dido pensa em furtivo amor:
coniugium uocat, hõc praetexit nõmine culpam.
casamento <lhe> chama; com este nome cobre a culpa.

Ui Para dar um perfume da poesia homérica (pródiga em repetições), Vergílio retoma a


fraseologia já usada por Juno no diálogo com Vénus.
266petiére (perfeito sincopado) = petiuêrunt.
Vergílio, Eneida, Canto 4 375

extemplo Libyae magnas it Fãma per urbés,


De imediato, a Fama vai pelas grandes cidades da Líbia -
Fãm a, m alu m q u ã n õ n aliu d u é lõ c iu s u llu m :
a Fama, mais veloz do que a qual outro mal não <há>.
175 m õ b ilitã te u ig et u lrísq u e a d q u irit e u n d õ ,
pela deslocação se fortalece e ganha forças caminhando,
p a ru a m e tü p rim õ , m o x sésé a tto llit in a u rã s
pequena por receio inicial; logo se eleva até aos ares
in g re d itu rq u e so lõ e t c a p u t in te r n ü b ila c o n d i t
e pisa no solo e esconde a cabeça entre as nuvens.
illam T erra p a rê n s írã ín ritã ta d e o ru m
A Terra mãe, com raiva dos deuses provocada,
extrémam, ut perhibent, Coeõ Enceladõque sorõrem
como última irmã, segundo dizem, para Coeu e Encélado
180 p ro g e n u it p e d ib u s ce le re m e t p e rn ic ib u s ãlis,
a gerou, célere de pés e de rápidas asas,
m o n s tru m h o rre n d u m , in g ên s, cu i q u o t s u n t c o rp o re p lú m a e ,
monstro horrendo, enorme, que quantas plumas tem no corpo
to t uigilés o cu li s u b te r (m ira b ile d ic tü ),
tantos olhos vigilantes por baixo tem (incrível de dizer!)
to t linguae, to tid e m õ ra s o n a n t, to t s u b rig it a u ris.
<e> tantas linguas; quantas bocas falam, tantas orelhas eia arrebita.
n o c te u o la t caeli m e d iõ te rra e q u e p e r u m b r a m
De noite voa no meio do céu e da terra através da sombra
185 strid en s, n e c d u lc i d e c lin a t lú m in a s o m n õ ;
guinchando; e não baixa os olhos em sono doce.
lüce s e d e t cu sto s a u t s u m m i c u lm in e te c ti
De dia senta-se como guardião ou no mais alto cume do teto
tu rrib u s a u t altis, e t m a g n ã s te r rita t u rb e s,
ou nas torres altas; e aterroriza as grandes cidades,
ta m ficti p ra u iq u e te n a x q u a m n ü n tia u ê ri.
tão tenaz com o que é falso e depravado quanto anunciadora do que é verdadeiro.
h aec tu m m u ltip lic i p o p u lô s s e rm õ n e re p lê b a t
Esta agora enchia os povos com um discurso redobrado,
190 gau d ên s, e t p a rite r facta a tq u e in fe c ta c a n ê b a t:
regozijando-se; e cantava em paridade factos e não-factos2*7:267*

267EmJacta atquc infecta, Vergílio já inventara as expressões do século xxi fake news e alternative
facts.
376 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçõbs

uénisse 268 Aenéãn Trõiànõ sanguine crétum,


que Eneias viera, nascido de sangue troiano,
cui sê pulchra uirõ dignêtur iungere Didõ;
a quem como marido a bela Dido se digna unir;
nunc hiemem inter sè lüxü, quam longa269, fouére
agora <eles> acalentam entre si em luxo o inverno, quão longo ele <seja>,
régnõrum immemorês turpique cupidine captõs.
esquecidos dos reinos e apanhados por torpe concupiscéncia.
195 haec passim dea foeda uirum diffundit in õra.
Estas coisas desagradáveis a deusa espalha pelas bocas dos homens.
prõtinus ad rêgem cursús detorquet Iarban
De imediato até o rei larbas ela inflete os percursos
incenditque animum dictis atque aggerat irãs.
e incendeia o espírito <dele> com palavras e amontoa as raivas.

hic 270 Ham m õne satus 271 rapta Garamantide nym pha
Este [Iarbas], gerado por Hámon e pela violada ninfa garamántide272,
templa loui centum lãtis immãnia rêgnis,
cem enormes templos para Júpiter nos seus amplos reinos
200 centum ãrãs posuit uigilemque sacrãuerat ignem,
e cem altares estabeleceu e santificara o fogo vigilante -
excubias273 diuum aeternas, pecudum que cruõre
sentinelas eternas dos deuses; e com o sangue de gado
pingue solum et uariís florentia limina sertis,
o solo <era> rico e as soleiras <estavam> floridas com grinaldas diversas.
isque ãmens animi et rum õre accensus amãrõ
Ora este, demente de espírito e incensado com o rumor amargo,
dicitur 274 ante ãrãs m edia inter nüm ina 275 diuum
diz-se que diante dos altares no meio das presenças dos deuses

201A oração infinitiva materializa os rumores em discurso indireto (situação que justifica
também o conjuntivo dignêtur).
m O antecedente de longa é hiemem; subentender sit (conjuntivo de discurso indireto).
270Vergílio estaria aqui a pensar na grafia antiga hicc (já que a sílaba é escandida como longs).
Ver NGL, p. 222.
271Participio perfeito de serõ, serere, sêui, satum: «semear».
272Os Garamantes eram um povo do norte de Afirica.
272excubiae, excubiarum: «sentinelas».
274Construção pessoal + oração infinitiva; ver NGL, p. 323.
275númina aqui como termo para «imagens divinas».
Vergílio, Eneida, Canto 4 377

20$ m ulta Iouem m a n ib u s su p p lex õrãsse 276 su p in is:


muito orou, suplicante, a Júpiter com as mãos levantadas:
« Iu p p ite r o m n ip o té n s, cui n u n c M a u rú sia 277 p ic tis
«Júpiter omnipotente, a quem agora a gente moura, depois de em decorados
géns epulãta to ris L ên a e u m 278 lib a t h o n o re m ,
leitos se ter banqueteado, oferece a honra leneia,
aspicis haec? an té, genitor, c u m fu lm in a to rq u é s
vês estas coisas? Será que em relação a ti, ó Pai, quando torces relâmpagos
n équiquam h o rrém u s, caeciq u e in n ü b ib u s ignés
em vão trememos - e <em vão> os cegos fogos nas nuvens
210 terrificant anim õ s e t in ãn ia m u rm u ra m iscen t?
atemorizam os ânimos e os ruídos vazios se misturam279?
fêm ina, quae n o stris erran s 280 in fin ib u s u rb e m
A mulher, que errante nas nossas fronteiras uma cidade
exiguam p retiõ p o su it, cui litu s a ra n d u m 281
exígua por um preço estabeleceu, a quem um litoral para arar
cuique loci lêgês dedim us, cõ n ü b ia n o stra
e a quem as leis do lugar nós demos, nossos esponsais <propostos>
reppulit ac d o m in u m A en éãn in régna recépit.
repeliu e acolheu como amo Eneias para os seus reinos.
215 e t n u n c ille Paris 282 cu m sém iu irõ co m itãtú ,
E agora aquele Páris com comitiva semiviril2*3,
M aeoniã m e n tu m 284 m itrã crin e m q u e m a d e n te m
no queixo e no cabelo perfumado com mitra meónia*2034

276 õrãsse (infinitivo perfeito sincopado) = õràuisse.


277M aurúsius: «mouro».
27* Lêneaus (adjetivo) refere-se a Baco. O sentido de «honra leneia» é simplesmente «vinho».
279Vergílio apresenta Iarbas como suficientemente civilizado para beber vinho - mas ainda
preso, mais de mil anos antes de Lucrécio, ao obscurantismo pré-lucreciano (as palavras de
Iarbas evocam, em sentido contrário, D è rêrum nátúrã 1.68-71).
290fêm ina... errãns : jogo de palavras com o suposto significado púnico do nome D id ô : «mulher
errante».
2,1 Gerundivo.
202Chamar «Páris» a Eneias é uma maneira literária de dizer que ele rouba as mulheres dos outros.
203Vergílio incorre aqui num anacronismo, uma vez que o estereótipo do «frígio efeminado»
(ou eunuco) não é homérico; pertence à época dos conflitos entre Gregos e Persas e tem
expressão célebre numa tragédia euripidiana (uma das mais lidas da Antiguidade) a que Vergílio
fará referência explícita no v. 471: Orestes.
204 m entum , -í: «queixo» (tanto m entum como crinem são acusativos de relação; ver N G L ,
pp. 293-294). «Meónio» eqüivale a «frígio», que por sua vez eqüivale a «troiano». Iarbas faz
eco do posterior preconceito antioriental grego (e romano), embora na Iliada e na Odisséia os
Troianos sejam caracterizados, sem qualquer preconceito, como Gregos.
378 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

subnexus, rap tõ p o titu r285: n õ s m ü n e ra te m p lis


atado, apodera-se <dela> pelo rapto; nós ofertas aos teus templos
q u ip p e tu is ferim u s fam a m q u e fo u ê m u s in ã n e m .»
trazemos, de facto - e acalentamos <tua> fama vazia2*5.»

tãlibus õ ra n te m d ictis ãrãsq u e te n e n te m


Ao que com tais palavras orava e os altares agarrava
220 audiit O m n ip o te n s, o c u lõ sq u e a d m o e n ia to rs it
o Omnipotente ouviu e virou os olhos para as muralhas
régia e t o b litõ s fãm ae m elio ris am an tis.
régias e para os amantes olvidados de uma fama mais digna.
tu m sic M ercu riu m a d lo q u itú r 287 ac tãlia m a n d a t:
Então assim interpela Mercúrio e ordena estas coisas:
« u ã d e age, nãte, u o c ã Z e p h y rõ s e t là b e re 288 p e n n is
«Vai lá, filho: chama os Zéfiros e desliza com as asas
D ard an iu m q u e d u cem , T y riã K a rth ã g in e q u i n u n c
e ao líder dardànio (que na tíria Cartago agora
225 exspectat fatisque d atãs n õ n re sp ic it u rb ês,
se demora e não olha a cidades dadas pelos fados)
ad lo q u ere e t celeris d é fe r m ea d ic ta p e r aurãs.
fala e transmite as minhas palavras através das brisas céleres.
n õ n illum n õ b is g e n e trix p u lc h e rrim a tã le m
A mãe lindíssima um <Eneias> assim não nos
p rõ m isit G raiu m q u e id e õ b is u in d ic a t arm is;
prometeu e <não> para isto duas vezes <o> subtraiu às armas dos Gregos2**;
sed fore 290 q u i 291 g rau id am im p e riis b e llõ q u e fre m e n te m
mas seria aquele que a Itália grávida de impérios <futuros> e fremente de guerra*23679

Ui Iarbas está tão descontrolado de raiva que se esqueceu de que o «i» de p o titu r é longo.
236De modo passivo-agressivo, Iarbas termina a sua tirada de grande devoto de Júpiter com uma
farpa contra... Júpiter.
237 Surpreende a quantidade longa atribuída ao «u» final de a d lo q u itú r (em rigor seria
adloquitur).
233 Imperativo (2.* pessoa do singular) de labor, làbi, lapsus su m («deslizar»). Cf. também
adloquere (v. 226).
239Uma vez na Ülada (5.311-318) e outra na própria E neida (2.620,665).
290Infinitivo futuro de sum (N G L , p. 148). É preciso subentender novamente p r õ m isit e o sujeito
(«Eneias») em acusativo.
291 Introduz uma seqüência de relativas finais com os verbos no conjuntivo: regeret... prõderet...
mitteret.
Vbrgílio, Enbida, Canto 4 379

230 Italiam regeret, genus altõ ã sanguine Teucri


regeria, <que> uma raça do altivo sangue de Teucro
prõderet, ac tõtum sub légés mitteret orbem,
continuaria e o mundo todo sob leis poria.
si nülla accendit tantarum gloria rérum
Se nenhuma glória de tais façanhas <o> entusiasma
nec super ipse suã mõlitur laude laborem,
nem ele próprio assume o esforço pelo louvor <que seria> seu,
Ascaniõne pater Rõmãnãs inuidet arcês?
<como> pai inveja a Ascânio as cidadelas romanas?
235 q u id stru it? a u t q u ã s p é 292293in im ic a in g e n te m o r ã tu r
Que planeia? Ou com que esperança se demora com gente inimiga291
nec prolem Ausoniam et Lãuinia respicit arua?
nem olha à <futura> prole ausónia nem aos campos lavinios?
nãuiget! haec summa est, hic nostri nüntíus estõ.»
Que navegue! A súmula é esta - seja esta a nossa mensagem.»

dixerat, ille patris magni pãrêre parãbat294


Dissera. Ele [Mercúrio] preparava-se para obedecer á ordem do magno Pai;
imperiõ; et primum pedibus talaria nectit
e primeiro nos pés atou as sandálias
240 aurea, q u a e s u b lim e m ãlis slu e a e q u o ra s u p ra
douradas, as quais com asas - quer sobre os mares,
seu terram rapidõ pariter cum flãmine portant.
quer sobre a terra - transportam o <deus> sublime295 a par com a rápida rajada.
tum uirgam capit: hãc animas ille êuocat Orcõ
Então segura a vara: com esta ele chama ao Orco as almas
pallentis, alias sub Tartara tristia mittit,
pálidas; outras envia para debaixo das tristes <zonas> Tártaras,

292 Surpreendente o hiato entre spé e inimicã.


293A ironia trágica é que a gente cartaginesa só é «inimiga» por vontade de Júpiter: no momento
da narrativa em que estas palavras são proferidas, cartagineses e refugiados troianos estão unidos
em solidariedade fraterna.
294 Interessante efeito de aliteração em patris... pãrêre parãbat.. / primum pedibus. Estes versos a
descrever o voo de Mercúrio imitam Uiada 24.340-345 e Odisséia 5.44-48, «yet are pure Virgil
in sound and “feel”» (Austin iv, p. 84).
295 Neste contexto, sublimis eqüivale a «aerotransportado».
380 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

dat so m n õ s adim itque, e t lú m in a m o rte resignat.


dá e tira sonos e reabre os olhos na morte296.
245 illa fretus 297 agit uentõs et turbida tranat
Nela confiante leva os ventos e nada através de turbidas
núbila. iam que u o län s ap icem e t latera a rd u a c e rn it
nuvens. E, voando, já vê o cume e as árduas encostas
Atlantis düri caelum qui uertice fulcit,
do duro Atlas298, que com <seu> píncaro sustenta o céu -
Atlantis, cinctum adsiduê cui nübibus ãtris
do Atlas, de quem amiúde com negras nuvens rodeada
piniferum caput et uentõ pulsatur et imbri,
<está> a pinifera cabeça e pelo vento e pela chuva é fustigado;
250 nix umerõs infusa tegit, tum flümina m entõ
a neve derramada cobre os ombros, enquanto rios do queixo
praecipitant senis, et glaciê riget horrida barba.
do ancião se precipitam; e com gelo se enrijece a barba desgrenhada.
hic primum paribus nitêns Cyllenius ãlis
Aqui primeiramente o Cilénio299, apoiando-se nas asas pares,
constitit; h in c tõ tõ p raecep s sê c o rp o re ad u n d ã s
estacou; daqui, lançado, com todo o corpo às ondas se
m isit aui similis, q u ae circu m litora, circu m
atirou semelhante à ave que, à volta dos litorais, à volta
25S piscõsõs scopulõs h um ilis u o la t a e q u o ra iüxtã.
dos rochedos piscosos voa, rasante, rente às águas.
h au d aliter terras in te r caelu m q u e u o lã b a t
Não diferentemente entre as terras e o céu ele voava
litus harénõsum ad Libyae, uentõsque secãbat
até ao litoral arenoso da Líbia e cortava os ventos,
mãternõ ueniéns ab auõ Cyllénia prõlés.
vindo ele, prole cilénia, de junto do avô materno.

296Esta «frase bela e misteriosa» (Austin iv, p. 86) nunca foi satisfatoriamente explicada; talvez
aluda ao costume romano de reabrir os olhos dos mortos antes da cremação. Note-se que o
sentido primário de resigno> , resignãre é «rasgar o selo» (ou «deslacrar»).
i97frétus (adjetivo) + ablativo: «confiante em». Ver NCL, p. 315.
298Atlas, pai de Maia (mãe de Mercúrio), é avó materno do deus (como será referido no v. 258).
299Mercúrio é chamado «Cilénio» por ter nascido no monte Cilene (na Arcádia).
Vergílio, Eneida, Canto 4 381

u t p rim u m ãlãtls tetig it m ágãlia 300 plantis,


Quando primeiro tocou os casebres com as plantas <dos pés> aladas,
260 A enêãn fu n d an te m arcés ac têcta n o u an tem
vé Eneias fundando torreões e construindo habitações.
conspicit, atq u e illi stéllãtus iaspide fiiluã
E ele tinha uma espada cravejada de fulva jaspe
énsis erat T y riõ q u e ãrd éb at m ú rice laena
e uma capa ardia de púrpura tíria
dém issa ex um eris, diues quae m ü n e ra D id õ
caindo dos ombros, presentes que a opulenta Dido
fêcerat, e t ten u i têlás discrêu erat 301 aurõ.
fizera e entremeara os tecidos com ouro subtil.
26s c o n tin u o inuãd it: « tü n u n c K arthãginis altae
De imediato ataca: «Tu agora da alta Cartago
fu n d am en ta locas p u lch ra m q u e uxõrius u rb e m
os alicerces colocas e, uxório302, uma bela cidade
exstruis? heu, rêgni ré ru m q u e o blite tu ãru m !
constróis? Ai, desmemoriado do teu reino e das tuas coisas!
ipse d eu m tibi m é clãrõ d é m ittit O ly m p õ
O próprio soberano dos deuses me envia do claro Olimpo
régnãtor, caelum e t terras qui n ü m in e to rq u et,
ao teu encontro, ele que com <sua> divindade controla o céu e as terras;
270 ipse haec ferre 303 iu b e t celeris m a n d ãta p e r auras:
ele mesmo comanda que <eu> traga estas ordens através das célebres brisas:
qu id struis? a u t q u ã spê Libycis teris õ tia terris?
Que fazes? Ou com que esperança gastas lazeres em terras libicas?
si te nulla m o u e t ta n ta ru m gloria rê ru m
Se te não move a glória de tantas realizações <futuras>,

300 mágãlia\, -tum (neutro plural): «casebres» (a palavra é apropriada no contexto por não ser
latina, mas sim de origem cartaginesa: cf. OLD s.u.).
301 discernõ, discernere, discréui, discretum: «separar» (aqui no sentido de «entretecer»,
«entremear»).
302 No sentido de «excessivamente empenhado no papel de marido» (ou, talvez em aceção
ainda mais negativa, «boneco nas mãos da mulher» ). De qualquer forma, a palavra seria sempre
sarcástica, uma vez que «marido» e «mulher» não passam de papéis fantasiados por Dido e
Eneias: vivem a ficção de serem casados, mas, na realidade, não o são.
303O sujeito da oração infinitiva (mé) tem de ser subentendido a partir do v. 268.
382 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

[nec super ipse tuã mõliris laude laborem , ] 304


[nem tu próprio assumes o esforço pelo louvor <que seria> teu,]
Ascanium surgentem et spés hêrédis Iüli
contempla Ascânio crescente e as esperanças do Iulo herdeiro
275 respice, cui régnum Italiae R õm ãnaque tellüs
a quem o reino de Itália e a terra romana
dêbétur.» tãli Cyllenius õre locütus
é devida.» Tendo o Cilénio com tal discurso falado,
m õrtãlis uisüs m ediõ serm õne reliquit
deixou os semblantes mortais a meio da fala
et procul in tenuem ex oculis êuãnuit auram ,
e para longe dos olhos se desvaneceu para a aura tênue.

at uérõ Aenéãs aspectü o bm ütuit ãm êns,


Ora na verdade £neias, chocado com a visão, emudeceu;
280 arréctaeque horrõre com ae et uõx faucibus haesit.
eriçaram-se de horror os cabeços e a voz prendeu-se nas goelas.
ãrdet abire fugã dulcisque relinquere terras,
Arde por partir em fuga e deixar as terras aprazíveis30*,
attonitus tantõ m onitü im periõque deõrum .
atônito com tal aviso e ordem dos deuses.
heu quid agat306? quõ nunc rêginam am bire furentem
Ai, que há de fazer? Agora com que interpelação contornar rainha furiosa
audeat adfãtú? quae prim a exordia súm at?
há de ousar? Que discursos iniciais há de escolher?
285 atque anim um nunc hüc celerem nunc diuidit illüc
E cinde o espírito veloz ora para aqui, ora para ali,
in partisque rapit uariäs perque om nia uersat.
e para partes várias leva <o espírito> e dá a volta a todas as coisas.
haec alternanti p o tio r sententia uisa est:
Àquele que alternava esta decisão pareceu preferível:

304Este verso (praticamente igual ao v. 233) é considerado um acrescento pós-vergiliano tanto


por Mynors como por Conte.
305 O pormenor subjetivo - no meio da narração objetiva - de as terras cartaginesas serem
«doces» ajuda-nos a compreender o dilema e os sentimentos de Eneias.
306Os conjuntivos agat... audeat... súmat são deliberativos em discurso indireto.
Vergílio, Eneida, Canto 4 383

M nesthea Sergestumque uocat fortem que Serestum,


chama Mnesteu e Sergesto e o forte Seresto <e diz-lhes que>
classem aptent 307 taciti sociösque ad litora cogant,
preparem, calados, a frota e que reúnam os companheiros na praia,
290 arm a p aren t et quae rébus sit causa n o u an d is
e que preparem as armas e qual seja a razão das situações a alterar
dissimulent; sésé 308 intereã, quando optim a D ldõ
dissimulem; entretanto, numa altura em que a excelente Dido
nesciat 309 et tan to s ru m p i n õ n sp êret am õrés,
desconhece <a situação> e não antecipa que sejam rompidos tais amores,
tem p tãtü ru m aditüs 310 et quae m ollissim a fandi
<Eneias entendo que terá de tentar abordagens <gentis> e <perceber> quais os mais temos
tem pora311, quis rêbus dexter m odus, õcius o m n és
momentos de falar, qual o modo adequado aos assuntos. Depressa todos
295 im perio laetl paren t et iussa facessunt312,
obedecem alegres ao mandamento e cumprem as ordens.

at rêgina dolõs (quis fallere possit 313 am antem ?)


Porém a rainha os dolos (quem conseguiria enganar uma apaixonada?)
praesensit, m õtüsque excépit prim a futürõs
presentiu e apanhou, antecipada, os movimentos futuros,
omnia tüta timèns. eadem impia Fãma furenti
temendo <até> todas as coisas seguras. A mesma ímpia Fama à furiosa
dêtulit armari classem cursum que parãri314.
transmitiu que a frota se armava e que a viagem estava a ser preparada.

307 Conjuntivos de discurso indireto: ap ten t... cõgant... p a ren t... d is sim u le n t (no caso de sit,
o conjuntivo justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta).
303Sujeito em acusativo da oração infinitiva cujo predicado virá dois versos depois: te m p tã tü ru m
<esse>.
309 O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma oração subordinada numa seqüência em
discurso indireto. O mesmo vale para spêret.
3,0 a ditus, aditüs: «aproximação», «acesso», «abordagem».
311 Subentender s in t (conjuntivo de interrogativa indireta); e depois, com q u is m o d u s,
subentender sit.
yilfacessõ, facessere, facessiui, fac e ssitu m : «fazer», «cumprir».
313 Conjuntivo potencial.
3,4As orações infinitivas (predicados: arm árí... p a rã ri ; sujeitos: classem... cu rsu m ) dependem de
d ê tu lit (perfeito de dêferô).
384 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

300 saeuit inops animi totam que incensa per urbem


Enraivece-se, desprovida de siso, e descontrolada pela cidade inteira
bacchatur, quãlis commotis excita sacris
delira qual bacante, como uma Tíade3,s excitada pelos <objetos> sacros brandidos,
Thyias, ubi audito stimulant trieterica Baccho
quando <a> estimulam as orgias trienais, ouvido o báquico <grito>,
orgia nocturnusque uocat clamore Cithaeron,
e <a> chama com clamor o noturno Citéron.
tandem his Aenean compellat uõcibus ultro:
Por fim ela interpela Eneias com estas palavras, espontaneamente:
30 s «dissim ulare etiam spérãsti*316, perfide, tantum
«Ainda esperaste, ó pérfido, que tu conseguias dissimular
posse nefas tacitusque meã dêcédere terra?
um tal crime e, calado, sair da minha terra?
nec tê noster amor nec té data dextera quondam
O nosso amor não te retém nem te <retém> a dextra outrora dada
nec moritüra tenet crúdéli funere Didõ?
nem Dido que irá morrer de óbito cruel?
quin etiam hiberno mõliri sidere ciassem
Será pois que te apressas, em estação invemal, a preparar a frota
310 et mediis properãs Aquilonibus ire per altum,
e a ir pelo <mar> alto no meio dos Aquilões,
crúdélis? quid, si nõn arua aliena domõsque
ó cruel? O qué - se terras alheias e moradas
ignotas peterés, et Trõia antiqua manéret,
desconhecidas não demandasses, e <se> a antiga Troia permanecesse,
Trõia per undõsum peterêtur classibus aequor?
Troia seria demandada com frotas através do mar cheio de ondas?

3.5 Celebrante do culto de Baco (note-se que as letras a negrito em T h y ia s formam um ditongo
em latim). Vergílio está a reforçar o parentesco (por ele mais que desejado) entre o Canto 4 e a
tragédia grega, remetendo para a loucura representada por Euripides nas B acantes. No v. 471
virá a referência explícita a outra tragédia euripidiana em que figura um louco: Orestes.
3.6Perfeito sincopado (= spérãuisti). Note-se que dissim ulare depende de posse, que, por sua vez,
depende de spérãsti. Temos de subentender té como sujeito da oração infinitiva cujo predicado
é posse. Fiel ao seu propósito de tomar a tragédia grega como modelo no Canto 4, Vergílio faz
aqui eco dos discursos dirigidos a Jasão por Medeia na tragédia M edeia de Euripides.
Vergílio, Eneida, Canto 4 385

mêne fugis? per ego 317 hãs lacrimas dextram que tuam té
Será que foges de mim? Eu por estas lágrimas e pela tua dextra
3 is (quando aliud mihi iam miserae nihil ipsa reliqui),
(uma vez que já nenhuma outra coisa eu própria deixei à miserável que sou),
per cõnübia nostra, per inceptos hymenaeos,
pelos nossos conúbios, pelos himeneus começados,
si bene quid dé té merui, fuit aut tibi quicquam
se algo de bom de ti mereci, ou se a ti foi doce algo
dulce meum, miserére 318 dom üs lãbentis et istam,
meu, apieda-te da casa a ruir e esta,
õrõ, si quis adhüc precibus locus, exue m entem .
peço-te, se algum lugar aqui <há> para preces, intenção afasta!
320 té propter Libycae gentês N om adum que tyranni
Por tua causa as gentes líbicas e os tiranos dos Númidas
õdére, infénsi Tyrii; té propter eundem
<me> odeiam; os Tírios <me são> hostis; por tua causa também
exstinctus pudor et, quã sõlã sidera adibam,
o pudor acabou e, com a qual sozinha eu às estrelas rumava,
fãma prior, cui mé m oribundam déseris hospes
<minha > fama anterior <acabou >. A quem me deixas moribunda, ó hóspede
(hoc sõlum nõm en quoniam dé coniuge restat)?
(porque só este nome resta do cônjuge <que foste>)?
325 quid moror? an mea Pygmalion dum m oenia frãter
Porque me demoro? Até que <meu> irmão Pigmalião as minhas muralhas
dêstruat aut captam dücat Gaetülus Iarbas?
destrua ou o getulo larbas me leve como cativa?
saltem si qua mihi dê té suscepta fuisset
Se ao menos de ti tivesse sido recebida por mim alguma
ante fugam subolés319, si quis mihi paruulus aulá
prole antes da <tua> fuga, se comigo um pequenino Eneias
lüderet Aenêãs, qul té tam en õre referret,
brincasse no palácio, o qual embora <só> pelo rosto te traria de volta.

3.7 Note-se que ego e ti (v. 314) são, respetivamente, o sujeito e o complemento direto de õrõ
no V. 319.
3.8 Imperativo (2.® pessoa do singular) de misereor, miserêri (+ genitivo: domüs lãbentis).
319subolis, -is: «prole», «descendência» (ver Bucólica 4.49, p. 271).
386 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

330 nõn equidem om ninõ capta ac déserta uidérer.»


eu não pareceria totalmente vencida e abandonada.»

dixerat, ille Iouis monitis immõta tenébat


Dissera. Ele, por causa dos avisos de Júpiter, imóveis mantinha
lümina et obnixus cüram sub corde premèbat.
os olhos e, esforçado, a angústia sob o coração reprimia.
tandem pauca refert: «ego tê, quae plúrima fandõ
Por fim diz poucas coisas320: «Eu, em relação às muitas <coisas>
enumerare ualés321, numquam, régina, negãbõ
que consegues enumar, nunca negarei, ó rainha, que tu
335 promeritam322, nec mé meminisse pigébit Elissae323
foste merecedora, nem me desagradará lembrar-me de Elissa,
dum memor ipse mei, dum spiritus hõs regit artüs.
enquanto eu próprio me lembrar de mim, enquanto o espírito reger estes membros.
prõ ré pauca loquar, neque ego hanc abscondere furtõ
Em relação ao assunto pouco direi. Nem eu esconder furtivamente esta
spérãui (né finge324) fugam, nec coniugis um quam
fuga esperei (não finjas), nem alguma vez <contigo> de um noivo
praetendi taedãs aut haec in foedera uêni.
levantei as tochas ou entrei nesses compromissos.
340 m é si fãta meis paterentur dücere uitam
Se os fidos <me> abrissem que eu pudesse conduzir a vida
auspiciis et sponte meã compõnere cúrãs,
segundo os meus auspícios e ao meu modo ordenar as preocupações,
urbem Trõiãnam primum dulcisque m eõrum
primeiro a cidade troiana e as doces relíquias dos meus

320A verdade é que o discurso de Eneias é maior do que o de Dido. Mais uma vez, a ordem das
palavras é complexa. Na ordem direta, a frase seria ego n u m q u a m negãbõ tê p rõ m e rita m <esse>
plú rim a quae ualês ênum erãrefandõ («Eu nunca negarei que tu agiste com mérito em relação às
muitas <coisas positivas> que consegues enumerar falando»).
321Eqüivale aqui a potes («consegues»).
322 Subentender esse. Eneias está a reconhecer o mérito com que Dido agiu em relação a ele
(e a responder a m erui, perfeito de m ereõ [v. 317], com prõm ereor).
323 «Elissa» é o nome cartaginês de Dido. Está no genitivo por causa da construção de m e m in i
(cf. NGL, pp. 305-306).
324O imperativo em néfinge é um recurso próprio da poesia (a expressão normal seria nõlifingere:
cf. NGL, pp. 347-348).
Vergílio, Eneida, Canto 4 387

réliquiãs colerem, Priami técta alta m anerent,


eu cultivaria: permaneceriam as altas moradas de Priamo,
et recidiua m anü posuissem Pergama uictis.
e com <minha> mão eu teria feito uma nova Pérgamo para os vencidos.
345 sed nunc Italiam magnam G rynéüs Apollõ,
Mas agora o grineu Apoio a grande Itália -
Italiam Lyciae iussére capessere sortés;
as sortes licias ordenaram que Itália <eu> abrace;
hic amor, haec patria est. si té Karthãginis arcés
este amor <é meu>, esta pátria é <minha>. Se as cidadelas de Cartago
Phoenissam Libycaeque aspectus détinet urbis,
- a ti, fcnícia - retém e a vista da cidade líbia,
quae tandem Ausoniã Teucrõs considere terrã
que má vontade, afinal, é essa que os Teucros se estabeleçam em terra
350 inuidia est? et nõs fãs extera quaerere régna.
ausónia? Também é licito que nós procuremos reinos estrangeiros.
mê patris Anchisae, quotiéns üm entibus um bris
A mim do meu pai Anquises - quando muitas vezes com húmidas sombras
nox operit terrãs, quotiéns astra ignea surgunt,
a noite cobre as terras, e muitas vezes os astros fogosos se levantam -
adm onet in somnis et turbida terret imãgõ;
a imagem inquieta avisa e atemoriza em sonhos;
mé puer Ascanius 325 capitisque iniüria cãri,
a mim Ascânio, menino, <avisa>, assim como os prejuízos de uma cara cabeça,
355 quem régnõ Hesperiae fraudo et fatãlibus aruis.
a quem defraudo do reino da Hespéria e dos campos fadados.
nunc etiam interpres diuum Ioue missus ab ipsõ
Agora até um mensageiro dos deuses, enviado pelo próprio Júpiter,
(testor utrum que caput) celeris m andãta per aurãs
(garanto pela cabeça de ambos), ordens através das céleres brisas
dêtulit: ipse deum manifesto in lüm ine uidi
trouxe. Eu próprio vi o deus à luz do dia
intrantem mürõs uõcem que his auribus hausi,
entrando <nestes> muros e apreendi a voz com estes ouvidos.

325 Dado que temos aqui um nominativo desgarrado, temos de subentender um verbo (talvez
de novo admonet, para equilibrar a frase sobre Ascânio com a frase sobre Anquises).
388 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

360 désine m êque tuis incendere têque querêlls;


Desiste de me agitar - e a ti - com as tuas queixas:
Italiam nõn sponte sequor.»
Para Itália eu não sigo por minha vontade.»

tãlia dicentem iamdüdum ãuersa tuètur


Ao que tais coisas diz ela, já há tempo, observa de soslaio,
hüc illüc uoluêns oculõs tõtumque pererrat
para cá e para lá revolvendo os olhos; e percorre todo ele
lüminibus tacitis et sic accênsa profatur:
com olhos silenciosos; e assim, exaltada, exclama:
365 «nec tibi diua parêns generis nec Dardanus auctor,
«Nem uma deusa tiveste como progenitora de nascimento nem Dárdano como antepassado,
perfide, sed düris genuit te cautibus326 horrens
ó pérfido, mas em duras rochas te gerou, horrendo,
Caucasus Hyrcãnaeque admõrunt 327 úbera tigres.
o Cáucaso e as tigresas hircanas moveram as tetas <para te amamentar>.
nam quid dissimulo aut quae mé ad maiõra reseruõ?
Pois porque dissimulo ou a que <males> maiores me reservo?
num flètü ingemuit nostrõ? num lúmina flexit?
Será que ele gemeu com o nosso choro? Será que movimentou os olhos?
370 num lacrimas uictus dedit aut miseratus amantem est?
Será que, vencido, ofereceu lágrimas ou se apiedou da amante?
quae quibus anteferam? iam iam nec m axima Iünõ
Que coisas anteporei a outras? Agora, agora nem a máxima Juno
nec Saturnius haec oculis pater aspicit aequis.
nem o Pai satúmio veem estas coisas com olhos justos.
nüsquam tüta fidès. êiectum lltore, egentem
Em parte alguma está a fé segura. Um ejetado na praia, um necessitado
excépí et rêgnl dêméns in parte locãul.
acolhi e, louca, distribuí parte do reino.
375 ãmissam ciassem, sociõs a m orte redüxi
A brota perdida, os companheiros da morte eu trouxe de novo <à vida>,
(heu furiis incensa feror!): nunc augur Apollo,
(ai, sou conduzida, abrasada, por furias!): agora o áugure Apoio,

i2Acautés, -is: «rocha».


327Perfeito sincopado (= admòucrunt).
Vergílio, Eneida, Canto 4 389

nunc Lyciae sortés, nunc et Ioue m issus ab ipso


agora as sortes da Lfcia, agora também, enviado pelo próprio Júpiter,
interpres diuum fert horrida iussa per aurãs.
um mensageiro dos deuses traz ordens horríveis através das brisas.
scilicet is superis labor est, ea cüra quiêtõs
Decerto este é trabalho para os supemos; este cuidado solicita
380 sollicitat, neque tê teneõ neque dicta refellõ:
os tranqüilos! Nem te retenho nem refuto as tuas palavras:
i, seq u ere Italiam u e n tis, p e te ré g n a p e r u n d ã s.
vai, vai atrás de Itália com os ventos, procura reinos pelas ondas.
spêro equidem mediis, si quid pia númina possunt,
Espero mesmo que no meio das rochas, se algo podem as pias divindades,
supplicia hausürum 328 scopulis et nõm ine Didõ3293
0
bebas os suplícios <até ao fim> e que M
Dido” enquanto nome
saepe u o c ãtü ru m . se q u a r ãtris ig n ib u s ab sé n s
seja muitas vezes chamado. Seguirei, embora ausente, com escuros fogos
385 et, cum frigida mors animã sêdüxerit artüs,
e, quando a frígida morte tiver separado os membros da alma,
omnibus umbra locis aderõ. dabis, improbe, poenãs.
como sombra estarei em todos os lugares*30. Pagarás, improbo, as penalidades!
audiam et haec M anis ueniet m ihi fãma sub im õs.»
Ouvirei e esta fama chegar-me-á sob os Manes mais fundos.»
his medium dictis sermonem abrum pit et aurãs
Com estas palavras interrompeu o discurso; e das brisas [da luz]
aegra fugit seque ex oculis auertit et aufert,
foge, doente, e desvia-se dos olhos <dele> e retira-se,
390 linquêns multa metü cünctantem et multa parantem
deixando<-o> debatendo com medo muitas coisas e preparando-se para
dicere, suscipiunt famulae conlãpsaque m em bra
muitas coisas dizer. As escravas seguram os membros decaídos

3MTrata-se aqui do infinitivo futuro de hauriõ, haurire: subentenda-se <tc> hausürum <esse>
(a oração infinitiva depende de spirõ).
339Acusativo grego, pressupondo que Didõ em grego se declinaria, por exemplo, como Λητώ,
«Latona», cujo acusativo (pelo menos em ático) é igual ao nominativo.
330 Cf. as palavras de Norma na ópera homônima de Vincenzo Bellini: «Te sullónde e te sui
venti / Seguiranno mie furie ardenti! / Mia vendetta e notte e giomo / Ruggirà intomo a te!»
390 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

marmoreo referunt thalamõ strãtisque reponunt.


e para o marmóreo131 tálamo <a> levam e nos lençóis <a> deitam.

at pius Aenéãs, quamquam lênire dolentem


Porém o pio Eneias, embora acalmar a sofredora
sõlandõ cupit et dictis ãuertere cüräs,
consolando<-a> deseje e afastar com palavras as preocupações,
395 multa geméns magnõque animum332 labefactus amõre
muito gemendo e transtornado no espírito pelo grande amor,
iussa tamen diuum exsequitur classemque reuisit.
segue contudo as ordens dos deuses e volta para a frota.
turn uêrõ Teucri incumbunt et litore celsas
Então, de facto, os Teucros se esforçam e no litoral todo
dêdücunt tõtõ nãuis. natat üncta carina,
lançam as altas naus. A quilha untada11112*está a nadar
frondenrisque ferunt rémõs et rõbora siluis
e trazem remos frondosos114e carvalhos das florestas
400 infabricata fugae studiõ.
<ainda> infabricados por causa da ânsia da fuga.
migrantis cernãs335 tõtãque ex urbe ruentis:
Verias os que partem irromper da cidade toda:

111 Normalmente um comentador sensível, Austin (iv, p. 121) surpreende ao criticar aqui o
adjetivo «marmóreo» como supérfluo. Trata-se de um adjetivo raro em Vergílio, aplicado
a uma estátua nas Bucólicas (7.35) e a Orfeu morto nas Geórgicas (4.523). Na Eneida só ocorre
aqui e uma vez no Canto 6 aplicado ao mar (6.729). Na minha leitura, parece clara a intenção
de Vergílio: o tálamo de Dido é «marmóreo» porque, terminada a relação com Eneias,
doravante o quarto será para ela uma sepultura. Cf., no v. 457, o «templo de mármore» dedicado
à memória do marido de Dido.
112Acusativo de relação (NGL, pp. 293-294).
111 «Untada» no sentido de «impermeabilizada com pez».
114A explicação lógica para os «remos frondosos» é que são remos sobresselentes, cuja madeira
ainda está em bruto. Com este pormenor, Vergílio sublinha o inesperado da partida.
111Conjuntivo potencial. Vergílio envolve o leitor na narrativa, interpelando-o na 2.a pessoa do
singular.
Vergíuo , Eneida, Canto 4 391

ac uelut ingentem formicae farris336 acernum


tal como quando as formigas337 um grande acervo de espelta
cum populant 338 hiemis memores téctõque repõnunt,
pilham, lembradas do inverno, e <o> repõem na <sua> morada -
it nigrum campis agmen praedam que per herbas
vai um negro esquadrão nos campos e pelas ervas a presa
405 conuectant 339 calle340 angusto; pars grandia trúdunt
transportam em carreira apertada; uma parte <das formigas> empurram os grandes
obnixae frümenta umeris, pars agmina cõgunt
cereais, esforçadas, com os ombros; outra parte coagem os esquadrões
castigantque morãs, opere omnis sémita feruet.
e castigam as demoras: todo o caminho ferve com trabalho.
quis tibi tum, Didõ, cernenti tãlia sénsus,
Que sensação para ti, Dido, ao veres tais coisas,
quõsue dabãs gemitüs, cum litora fernere 341 lãtê
que gemidos davas, quando os litorais a ferver latamente
410 prõspicerês arce ex summà, tõtum que uidérês
observavas da alta cidadela e vias todo o mar
miscêri ante oculõs tantis clamoribus aequor!
a misturar-se diante de <teus> olhos com tantos clamores!
improbe Amor, quid nõn mortalia pectora cõgis!
Desavergonhado amor, a que não obrigas os peitos mortais!

***fa r, fa rris(neutro): «espelta», «cereal».


337O símile das formigas está longe de ser inocente: como viram Lyne ( F u rth er Voices in Vergil's
Aeneid, Oxford, 1987, p. 19) e Nisbet ( Collected Papers on L a tin Literature , Oxford, 1995, p. 136),
Vergilio está aqui a propor uma antevisão simbólica das ações futuras do exército romano (nas
palavras de Nisbet: «There could be no better description of the legalised destructiveness of
the Roman army with its requisitioning of com... organised supply-columns... and discipline on
the march» ). Tomada a decisão de deixar Cartago, acaba também o sonho acalentado por Dido
da fraternidade entre os dois povos: a partida de Cartago faz simbolicamente dos refugiados
troianos, pela primeira vez, «romanos».
iy*populõ, populäre: «devastar», «destruir», «pilhar». O verbo deriva, curiosamente, de pop u lu s
(«povo»), mas os linguistas não sabem explicar tão desconcertante derivação de sentido: como
se o significado de «povoar» fosse equivalente a «dar cabo de um povo» (justamente o que os
Romanos faziam nas suas conquistas).
339 Como sujeito, agm en, agm inis («esquadrão») admite o verbo quer no singular, quer no
plural. O mesmo vale para pars, p a rtis (nos w. 405*406).
340 callis, callis (masculino): «caminho» (cf., em espanhol, calle).
341 Em rigor, deveria ser feru ère (de fe ru e õ ), mas Vergilio socorre-se desta pequena batota
aprendida com Lucrécio.
392 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçôbs

ire iterum in lacrimas, iterum temptare precando


Novamente a enveredar pelas lágrimas, novamente a tentar suplicando
cogitur et supplex animõs summittere amõri,
é obrigada e, rebaixada, a submeter os ânimos342ao amor,
415 nè quid inexpertum früstrã moritüra relinquat.
não fosse algo deixar de inexperimentado a que estava para morrer em vão343.

«Anna, uidés tõtõ properari litore circum:


«Ana, vés <gente> a apressar-se à volta do litoral todo:
undique conuênêre; uocat iam carbasus344 aurãs,
de todo o lado se reuniram; já a lona chama os ventos
puppibus et laeti nautae imposuere corõnãs.
e nas popas os marinheiros alegres puseram grinaldas.
hunc ego si potui tantum spêrãre dolõrem,
Se eu pude prever este sofrimento tão grande,
420 et perferre, soror, poterõ. miserae hoc tamen ünum
também aguentá<-lo>, irmã, poderei. Porém para mim, infeliz, um só <favor>
exsequere, A nna, m ihi; sõlam n am perfid u s ille
cumpre, Ana: pois aquele pérfido só
té colere345, arcanõs etiam tibi crédere sênsus;
a ti se afeiçoou e também a d confiou sentimentos secretos;
sõla uiri mollis aditüs et têmpora nõrãs346.
só tu as abordagens delicadas e os tempos <certos> conheceras.
i, soror, atque h o stem supplex adfare su p erb u m :
Vai, irmã, e suplicante interpela o hóspede soberbo;
425 n õ n ego cum D anais T rõiãnam exscindere gen tem
eu com os Dânaos a gente troiana destruir
A ulide iürãui classem ue ad Pergam a misi,
em Áulide não jurei, nem enviei uma frota para Pérgamo,

342A «autoestima», diríamos nós hoje.


343Os comentadores de Vergílio (já desde Sérvio, no final do século iv) tém-se interrogado sobre
a nuance de focalizaçáo implícita emJrustrã ( «em vão» ): o advérbio surge como que em monólogo
interior de Dido - ou é o narrador em voz própria a comentar o comportamento da rainha?
344 carbasus, -i: «lona», «toldo», «cortina» (aqui no sentido de «vela de navio»).
343 colere e crédere são exemplos do infinitivo de ação repetida (também chamado in/initíuus
adumbratiuus, «infinitivo descritivo» e «infinitivo histórico»: ver Kühner & Stegmann, Vol. I,
p. 135).
346 nõrãs = nôuerãs (mais-que-perfeito).
Vergílio, Eneida, Canto 4 393

nec patris A nchisae cinerem M ãnisue reuelli:


nem do pai Anquises a cinza e os Manes revolvi347*.
cúr mea dicta negat dúrãs demittere in auris?
Porque se nega ele a admitir as minhas palavras nos teimosos ouvidos?
quõ ruit? extremum hoc miserae det münus amanti:
Para onde vai? Que dé este último presente à infeliz amante:
430 exspectet facilemque fugam uentõsque ferentis.
que espere uma fuga fácil e ventos transportantes.
nõn iam coniugium antiquum, quod prõdidit, õrõ,
Já não o casamento antigo, que ele traiu, eu peço,
nec pulchrõ u t Latiõ careat rég n u m q u e relinquat:
nem que se prive do belo Lácio e que do reino desista:
tempus inãne petõ, requiem spatiumque furori,
peço um tempo vazio, um descanso e um espaço para a <minha> loucura,
dum m ea m ê uictam d oceat fo rtü n a dolére.
enquanto a fortuna me ensinar - a mim, a vencida - a sofrer.
43S extremam hanc õrõ ueniam (miserêre sorõris),
Peço esta derradeira vénia (apieda-te da irmã!),
quam mihi cum dederit cumulatam morte remittam.»
a qual, quando ele <ma> der, pagarei, acumulada <de juros>, com a morte341.»

tãlibus õrãbat, tãlisque miserrima flétüs


Com tais <palavras> implorava - e tais prantos a infelicíssima
fertque refertque soror, sed núllis ille mouétur
irmã leva e leva de novo <a Eneias>. Mas ele com nenhuns prantos
fletibus aut uõcês üllãs tractabilis audit;
se comove nem palavras algumas ele, tratável, escuta.
440 fãta obstant placidãsque uiri deus obstruit auris.
Os fados obstam e um deus obstruiu os plácidos349ouvidos do homem.

347Dido está a referir-se à tradição segundo a qual Diomedes profanou o túmulo de Anquises.
349 Ou «no momento da minha morte». O verso já foi considerado «the most difficult in
Virgil» (cf. Austin iv, p. 131). Todo este discurso de Dido (em que ela nega aceitar o luto pelo
relacionamento que acabou e, em modo passivo-agressivo, chafurda, abjeta, na fantasia de uma
negociação) é dificílimo de ler: não porque o latim seja difícil, mas porque as emoções expressas
são difíceis - e arrepiantemente consentàneas com a experiência rebaixante do «amor tóxico»
que já calhou a muitos de nós.
349No sentido de «imperturbáveis».
394 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

ac uelut annõsõ ualidam cum rõbore quercum


Pois tal como um válido carvalho dotado de vetusta robustez
A lpini Boreae n u n c h in c n u n c flatib u s illinc
os alpinos Bóreas ora daqui, ora dali com rajadas
êruere inter sê certant; it stridor, et altae
competem entre si para derrubar: avança o estrondo e as altas
consternunt terram concusso stipite frondês;
ramagens, abalado o tronco, se espalham na terra,
445 ipsa haeret scopulis et quantum uertice ad aurãs
<mas> o próprio <carvalho> adere ás rochas e quanto com o topo
aetherias, ta n tu m rãdice in T arta ra te n d it:
<chega> ás brisas etéreas, tanto com a raiz ao Tártaro chega:
haud secus adsiduis hinc atque hinc uõcibus hêrõs
não diferentemente com palavras incessantes daqui e dali o herói
tunditur, et magnõ persentit pectore cürãs;
é assaltado - e sente as preocupações no coração grande;
méns im m õta m anet, lacrimae uoluuntur inãnés.
a mente permanece inamovível; as lágrimas rolam inúteis**0.

450 turn uêrõ Infelix fatis e x territa D id õ


Então, de verdade, Dido infeliz, aterrorizada com os fados,
m o rtem õrat; ta e d e t caeli co n u ex a tu eri.
suplica a morte; aborrece contemplar o arco do céu.
q u õ 351 m agis in c e p tu m p erag at lü c e m q u e relin q u a t,
E para que mais ainda dé andamento ao plano e abandone a luz
uidit, turicrem is 352 cu m d õ n a im p o n e re t ãris,
ela vé, quando punha ofertas nos altares abrasados de incenso,
(h o rre n d u m d ictü ) laticés n igrêscere sacros
(coisa horrível de dizer!) as águas sagradas a enegrecer3012

330Estas lágrimas inãnés («que não servem para nada») são um dos maiores enigmas da poesia
veigiliana: são lágrimas de Ana ou de Eneias? Muitas pessoas pensam que as lágrimas são de
Ana. Santo Agostinho, porém, pensava que eram de Eneias ( Cidade de Deus 9.4). Como leitores
presos neste portentoso megadrama passional, sabe-nos bem pensar que Eneias tem suficiente
sensibilidade humana para chorar com a situação excruciante de Dido (mesmo sendo lágrimas
que não servem de nada - nem a ela, nem a ele).
331 quõ funciona aqui como conjunção final com um comparativo (ver NGL, p. 327).
332 turicremus (adjetivo): «abrasado de incenso». Este adjetivo, inventado (tanto quanto
sabemos) por Lucrécio, é formado a partir de tús, túris ( « incenso» ) e cremo, cremâre ( «cremar»).
Vergílio, Eneida, Canto 4 395

455 fusaque in obscènum sé uertere ulna cruõrem ;


e os vinhos derramados a converterem-se em sangue obsceno353.
hoc ulsum nülli, nõn ipsl effãta sorõri.
Esta visão a ninguém, nem mesmo à própria irmã, contou.
praeterea fuit in téctis dé m arm ore tem plum
Além disso, houve no palácio um templo de mármore
coniugis antiqui, mirõ quod honõre colébat,
do antigo marido, o qual ela venerava com honra admirável,
uelleribus niuels et féstã fronde reum ctum :
enfeitado com niveos velos e com folhagem festiva;
4óo hinc exaudiri uõcés et uerba uocantis
daqui parece-lhe ouvir sons e palavras do marido
ulsa uiri, nox cum terras obscúra tenèret,
a chamar, quando a noite obscura detinha as terras,
sõlaque culminibus férãli carmine bübõ
e uma coruja solitária nos telhados com canto agoirento
saepe queri 354 et longas in flétum dücere uõcés;
amiúde lamentava e levava as notas longas até ao pranto;
multaque praetereâ uãtum praedicta priõrum
e além disso muitas coisas preditas por vates anteriores
465 terribili m onitü horrificant, agit ipse fu ren tem
horrorizam com aviso terrível. O próprio feroz Eneias a leva, enlouquecida,
in som nis ferus Aenêãs, sem perque relinqui
em sonhos - e sempre é deixada
sõla sibi, semper longam incom itata uidétur
sozinha consigo mesma, sempre parece seguir desacompanhada
ire uiam et Tyriõs dêsertã quaerere terra,
um longo caminho e buscar os Tírios em terra deserta,
E um enidum ueluti dêm êns u id et agm ina P entheu s
tal como o demente Penteu vè o esquadrão das Euménides

353O uso aqui de «obsceno» (que mistura as aceções de «pavoroso» e de «macabro») lembra
o presságio que anunciou a morte de Júlio César em Geórgicas 1.470: o ladrar (subentende-se
no passo em causa) de cadelas «obscenas».
354queri e dücere são infinitivos de ação repetida (ver nota ao v. 422).
396 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

470 et sõlem geminum et duplicês sé ostendere Thébãs,


e <vê> que o Sol <se mostra> a dobrar e que Tebas se mostram duplicadas*55,
aut Agamemnonius scaenis agitãtus Orestés,
ou o agamemnónio Orestes agitado em cena,
armatam facibus matrem et serpentibus atris
quando da mãe armada com tochas e negras3
5356serpentes
cum fugit ultricésque sedent in limine Dirae,
ele foge - e na soleira estão sentadas as Fúrias vingadoras.

ergõ u b i co n cép it furiãs êu icta d o lõ re


Quando, pois, planeou loucuras, vencida pela dor,
475 décréu itq u e m o ri, te m p u s sécu m ipsa m o d u m q u e
e decidiu morrer357358,consigo mesma o tempo e o modo
exigit, e t m aestam dictis adgressa so ro re m
eia determina; e abordando a irmã entristecida com palavras,
cõnsilium u u ltü te g it ac sp e m fro n te serê n a t:
esconde com o rosto a decisão e serena a esperança com a semblante356:
« in u é n i, germ ana, u iam (g rã tã re 359 so rõ ri)
«Descobri360, mana, uma via (felicita a tua irmã!)
quae m ihi re d d a t 361 e u m u e l eõ m ê so lu a t a m a n te m ,
que mo trará de volta ou me libertará, apaixonada, dele362.

355Vergílio remete aqui para uma cena famosa das Bacantes de Euripides (w. 918-919), em que
Penteu, alucinado, diz que vé o Sol e Tebas a dobrar. A referência a Orestes (o filho de
Agamémnon que enlouquece depois de ter assassinado a mãe) alude também à tragédia
homônima de Euripides.
356 Temos de imaginar aqui as várias aceções de âter: «negro», mas também «sinistro»,
«malévolo».
357 Esta linguagem de «decisões» quanto ao suicídio ecoa outra personagem euripidiana
(também ferida de paixão tóxica por vontade de Afrodite): Fedraem H ipótíto (w. 401-402; 723).
358Uma expressão arrojadíssima de Vergílio: a ideia subjacente é que Dido serena o semblante
com a simulação da esperança.
359Imperativo de grá to r,g rà tá rig rá tu s sum («felicitar»).
360Outra remissão para a linguagem usada por Fedia ( H ip ó lito 7 \6 ). Dido fala para enganar a irmã,
mas o leitor culto, ao ler inuéni, sabe que Dido está a referir-se ao εύρημα de Fedra: o suicídio.
361Os conjuntivos reddat e soluat justificam-se por se tratar de orações relativas de caracterização
(cf. NGL, p. 342).
362As formas de pronome demonstrativo eum e eõ chamam a atenção, porque, curiosamente,
Vergílio mostra relutância em usar o pronome is, ea, id. Mas neste verso ocorre duas vezes, talvez
porque a relutância de Dido em pronunciar o nome de Eneias é ainda maior (note-se que, em
todo o Canto 4, ela só pronuncia a palavra «Eneias» uma vez: é no v. 329 - e o Eneias a quem
ela aí se refere é o fantasiado «pequeno Eneias», o filho que nunca nasceu).
Vergílio, Eneida, Canto 4 397

480 Õ ceanI finem iüxtã sõlem que cadentem


Perto do limite do Oceano343345*e do sol poente
ultim us A eth io p u m locus est, ubi m axim us A dãs
está o lugar derradeiro dos Etíopes, onde o máximo Atlas
axem u m erõ to rq u e t stéllis ard en tib u s ap tu m :
vira com o ombro o eixo <celeste> cravado de estrelas ardentes;
hinc m ihi M assylae gentis m õ n strã ta sacerdõs,
daqui me foi indicada uma sacerdotisa do povo massilo,
H esperidum tem pli custõs, epulásque dracõni,
guardiã do templo das Hespérides, que ao dragão dava iguarias
48 s quae dabat et sacrõs seru ãb at in arb o re rãm õs,
e guardava os ramos sagrados na árvore,
spargéns úm ida m ella so p õ riferu m q u e papãuer.
espargindo húmido mel e papoila soporifera.
haec sé carm inibus p ro m ittit soluere m en tes
Esta alega que com cantos liberta as mentes
quãs uelit364, ast aliis dürãs im m ittere cúrãs,
que ela quer, e que a outras introduz duros cuidados;
sistere aquam fluuils et u ertere sidera retro,
que faz parar a água nos rios e faz voltar as estrelas atrás
490 n octurnõsque m o u e t M ãnls: m úgire uidêbis
e que movimenta os Manes noturnos; verás a mugir365
sub pedibus terram et descendere m o n tib u s o m õ s.
sob os pés a terra e os freixos a descer dos montes.
testor, cãra, deõs et té, germ ana, tu u m q u e
Testemunho pelos deuses e por ti, cara irmã, e pela tua
dulce caput, m agicãs inultam accingier 366 artis.
doce cabeça que contrariada eu recorro às artes mágicas.
tü sécrèta pyram téctõ interiore sub auras
Tu erige uma pira secreta no pátio interior ao ar livre.

343Vendo o Oceano, à boa maneira homérica, como rio que circunda a terra.
344 Conjuntivo oblíquo de discurso reportado (ver NGL, p. 270).
345Talvez no sentido de «ribombar». A ideia de ver (em vez de escutar) um som parece arrojada,
mas é mais uma remissão para a tragédia grega (uma personagem de Ésquilo diz «vi um
barulho» em Sete contra Tebas 103).
344 Forma de infinitivo passivo arcaico (há vários exemplos em Plauto e Énio, assim como em
Lucrécio).
398 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

495 érige, et arm a uiri thalam õ quae fixa reliquit


e as armas do homem347*349,que o ímpio deixou pregadas no tálamo,
impius exuuiãsque omnis lectumque iugãlem,
e todos os despojos e o leito conjugal,
quõ peril, super impõnãs: abolére nefandi
por meio do qual pereci, põe por cima; cumpre abolir
cüncta uiri m onim enta iuuat m õnstratque sacerdõs.»
todas as lembranças do homem nefando - e <assim> a sacerdotisa indica.»
haec effãta silet, pallor simul occupat õra.
Tendo dito estas coisas, fica calada; e logo a palidez lhe domina o rosto.
500 nõn tamen Anna nouls praetexere funera sacris
Ana, porém, não pensa que com ritos inventados a irmã
germanam crêdit, nec tantos mente furõrés
encobre as suas mortes34*; na <sua> mente furores tantos
concipit aut grauiõra tim et quam m orte Sychaei.
não concebe nem teme mais graves do que na altura da morte de Siqueu.
ergõ iussa parat.
Por conseguinte, prepara as coisas ordenadas.

at rêgina, pyrã penetrali in séde sub aurãs


Porém a rainha, tendo sido no pátio mais interior ao ar livre a pira
505 êrêctã ingenti taedis atque Ilice sectã,
montada, enorme, com achas de pinho e com flex cortado,
intenditque locum sertis et fronde corõnat
cobre o lugar com grinaldas e coroa<-o> com folhagem
funereã; super exuuiãs énsemque relictum
funérea; em cima, os despojos e a espada deixada
effigiemque torõ locat haud ignara futürl.
e a efígie <de Eneias> coloca no leito, não ignara do futuro.
stant árae circum et crinis369 effusa sacerdõs
Estão altares à volta e a sacerdotisa de cabelos soltos

347 Não é por acaso que Vergílio volta aqui à premissa do poema (Arma uirumque), ao mesmo
tempo que Dido rebatiza o «pio Eneias» de impius. Como se neste momento, pelos olhos de Dido,
a razão de ser do poema (o valor das armas, da masculinidade e da pietás) não passasse de um logro.
344 O plural fúnera («mortes») em vez do singular remete novamente para a linguagem da
tragédia grega, onde «mortes» (θάνατοι) surge como «plural enobrecedor». Ver J. Diggle,
Euripidea: Collected Essays, Oxford, 1994, pp. 155-157.
349Acusativo de relação («a sacerdotisa solta no que diz respeito aos cabelos»).
Vergílio , Eneida, Canto 4 399

sio te r c e n tu m to n a t õ re d e õ s, E re b u m q u e C h a o sq u e
troveja com a boca370trezentos371 deuses: Érebo e Caos
te r g e m in a m q u e H e c a té n , tria u irg in is õ ra D iãn ae.
c a tríplice Hécate, os trés rostos da virgem Diana372.
s p a rs e ra t e t la tic é s s im u lã tõ s fo n tis A u e m i,
Espargira também águas fingidas373da fonte de Avemo,
falcib u s e t m e ssa e a d lü n a m q u a e ru n tu r ã én is
e são procuradas ervas cortadas à luz da Lua com brònzeas foices,
p ú b e n tê s h e rb a e n ig ri c u m la c te u e n é n i;
ervas vigorosas com o leite de negro veneno;
515 quaeritur et nãscentis equi dé fronte reuulsus
é procurado também - da testa de um cavalo nascente arrancado
e t m ã tri p ra e r e p tu s am o r.
e à mãe tirado - um amor374.
ipsa m o lã 375 m a n ib u s q u e p ils a ltã ria iü x tã
Ela própria, com cereal moído e com mãos pias junto dos altares,
ü n u m ex ú ta p e d e m u in clís, in u e ste re c in c ta ,
tendo descalçado um pé das correias376, com o vestido desapertado,
te s tã tu r m o r itü ra d e õ s e t c õ n sc ia fãti
toma como testemunhas - ela que vai morrer - os deuses e as estrelas

370Por outras palavras, «chama com voz tonitruante».


3710 número «trezentos» é, neste contexto, uma convenção que significa somente «numerosos
deuses».
372 Hécate, deusa da magia, era representada com trés rostos; a sua identidade tripla advém do
facto de à identidade própria (Hécate) se juntarem as da Lua e de Diana.
373 Ficamos a pensar se, ao chamar «simuladas» a estas águas supostamente provenientes de
uma fonte infernal, Vergílio não está a criticar o nível de credulidade na banha da cobra a que
Dido desceu.
374 Por «amor» entenda-se aqui, em aceção mágica, «filtro de amor». Nestes dois versos (que
o poeta deixou incompletos - isto é, o v. 516 está incompleto, mas o conjunto formado pelos
dois também não foi aperfeiçoado), Vergílio parece estar a aludir ao «hipómanes» (referido
em Geórgicas 3.280), termo que tem várias aceções e usos na magia antiga. Na passagem das
Geórgicas, parece claro tratar-se de uma planta; mas aqui ficamos com a impressão de que
Vergílio quis remeter, de modo horripilante, para o corpo real de um poldro recém-nascido,
seguindo a superstição de que uma excrescéncia de nascença na testa do poldro, se fosse retirada
antes de a égua a morder, funcionaria como poderoso filtro de amor.
373 mola, -ae: «moinho», mas também «cereal moído».
376 «Correias» (uincla) aqui entendidas como sinônimo de «sandálias» (o mesmo vale para
Eneida 8.458). A razão de estar só semidescalça prende-se com os ritos de magia: um pé tem de
estar rente ao chão, para com mais eficácia estar em contacto com as divindades ctónicas.
Supostamente, o pé descalço opera o feitiço contra Eneias, ao passo que o pé calçado protege
Dido de o feitiço se virar contra a feiticeira (cf. Austin iv, p. 156).
400 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçôbs

520 sidera; tu m , si q u o d n õ n a e q u õ fo ed ere a m an tis


dentes do fado; depois, se <há> um deus que os amantes em aliança desigual
cürae 377 n ü m e n h a b e t iü stu m q u e m e m o rq u e , p recãtu r.
tem para <seu> cuidado, <esse deus> justo e lembrado ela invoca.

n o x erat e t p lacid u m c a rp ê b a n t fessa so p õ re m


Era noite378e saboreavam o plácido sono os cansados
c o rp o ra p e r terras, silu aeq u e e t saeu a q u iê ra n t 379
corpos pelas terras; e as florestas e os perigosos mares
aequora, cum m e d iõ u o lu u n tu r sid era lapsú,
tinham-se acalmado, quando as estrelas volvem a meio do curso,
525 cum tacet o m n is ager, p e c u d ê s p ic ta e q u e u o lu crés,
quando todo o campo está calado, os animais e coloridas aves,
qu aeq u e lacüs lãté liq u id o s q u a e q u e asp era d ü m is
as que amplamente os lagos transparentes e as que os ásperos campos
rü ra ten en t, so m n õ p o sita e su b n o c te silenti.
nos matagais habitam, postas em sono debaixo da noite silenciosa,
[lén ib an t cürãs e t co rd a o b lita la b o ru m . ] 380
[Apaziguavam os cuidados e os corações esquecidos dos esforços.]
at nõn infélix animi Phoenissa, neque umquam
Porém não a Fenícia infeliz de espírito: nem alguma vez
530 so lu itu r in so m n õ s oculisue a u t p e c to re n o c te m
liberta os olhos nos sonos ou no peito a noite
accipit: in g em in an t cü rae rü rsu sq u e resu rg én s
<Dido> acolhe; as preocupações redobram e de novo ressurgindo
saeuit am o r m ag n õ q u e irà ru m flú c tu a t aestü.
o amor se embravece e flutua num grande mar de raivas.
sic adeõ insistit sé c u m q u e ita co rd e u o lü ta t:
Assim, pois, persiste e consigo mesma no coração revolve <esta$ coisas>381*:

377cürae é dativo de fim (NGL, p. 299).


378 Esta magnífica passagem inspira-se em passagens de Álcman (cf. PGHT, pp. 52-53) e
Apolónio de Rodes (3.744-750), mas supera ambas.
379Mais-que-perfeito sincopado (= quièuerant).
380Este verso é considerado um acrescento posterior (já que falta nos manuscritos mais antigos
e Sérvio não lhe faz referência). Está ausente do texto nas edições de Mynors e de Conte. Seja
como for, lénibant eqüivale a Uniebant, forma verbal impossível de encaixar no hexâmetro devido
ao crético ( - U - ) inicial.
381Este verso é curioso por conter três advérbios que significam «assim»: sie, adeõ e ita. A sua
«mesmice» sublinha a «mesmice» enlouquecedora do ciclo vicioso que são os pensamentos
circulares de Dido.
Vergílio, Eneida, Canto 4 401

«én, quid agõ? rürsusne procos 382 inrisa priõrés


«Então, que faço <agora>? Retrocessivamente383, ridícula, os anteriores pretendentes
S3S experiar384, N om adum que petam cõnübia supplex,
tentarei e procurarei esponsais dos Númidas como suplicante,
quõs ego sim 385 totiéns iam dédignãta maritõs?
os quais eu já tantas vezes desdenhei como maridos?
Iliacãs igitur classis atque ultima Teucrum
Então as iliacas frotas e as últimas ordens dos Teucros
iussa sequar? quiane auxilio iuuat ante leuãtõs386
seguirei? Porque <lhes> apraz terem sido antes aliviados pelo <meu> auxílio
et bene apud memorés ueteris stat grãtia facti?
e a gratidão está bem <presente> naqueles lembrados do <meu> antigo ato?
540 quis mè autem, fac387 uelle, sinet ratibusue superbis
Contudo quem - supõe tu que eu quero - me permitirá ou nas naus soberbas
inuisam accipiet? nescis heu, perdita, necdum
uma malvista acolherá? Desconheces, ó perdida, nem ainda
Lãomedontéae sentis periüria gentis?
percebes os perjúrios da gente laomedonteia388389?
quid tum? sõla fugã nautãs com itabor ouantis?
Então? Sozinha acompanharei na fuga os marinheiros exultantes3*9?

383procus, -ϊ: «pretendente».


383 «Retrocessivamente» no sentido de «voltar atrás», de «dar o braço a torcer». É curioso
observarmos como Dido (que, antes de conhecer Eneias, vivia feliz com a sua identidade de
viúva independente e com a sua opção de vida celibatária) agora equaciona casar-se com um
dos pretendentes por ela rejeitados. Na perícia com que documenta todas as hues da deceção
amorosa, Vergílio não se esqueceu desta (a mais nociva e velhaca), na qual o amante abandonado^
em ressaca sentimental, procura de imediato um sucedâneo da pessoa que perdeu.
384Conjuntivo deliberativo (tal como p e ta m e depois seq u a r).
385 O conjuntivo perfeito d éd ig n ã ta sim justifica-se por se tratar de uma oração relativa de
caracterização.
386 Subentender leuãtõs <esse> (infinitivo perfeito passivo de leuõ, leu á re). E subentender
também o sujeito da oração infinitiva dependente de iu u a t: <eõs>.
387 Nesta expressão estranhamente coloquial, subentenda-se o sujeito da oração infinitiva /a c
<mé> uelle. Qiiem é este « tu» a quem Dido se dirige? Certamente ela própria.
388 Laomedonte foi o fundador de Troia e um célebre mentiroso (prometeu a Neptuno pagar a
construção das muralhas da cidade, mas depois não manteve a palavra - constituindo esse ato
o «pecado original» de Troia, que a ideologia no tempo de Vergílio podia ver como finalmente
expiado graças à vitória de Augusto sobre os seus oponentes e rivais).
389 Vá lá que, nesta fantasia de ir de barco com Eneias para Itália, Vergílio poupou a Dido a
humilhação que Catulo (64.161) não poupou à princesa Ariadne, a quem, ao ser abandonada pelo
ateniense Teseu numa ilha deserta, ainda ocorreu a ideia de ser empregada de Teseu em Atenas!
402 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçõbs

an Tyriis o m n íq u e m a n ü stip ãta m e õ ru m


Ou rodeada dos Tíríos e de toda a mão <guerreira> dos meus
545 inferar et, q uõs S id o n ia u ix u rb e reuellí,
serei levada e, àqueles a quem a custo da cidade sidónia arranquei,
rúrsus agam pelagõ et uentis dare uêla iubêbõ?
de novo conduzirei no mar e ordenarei que deem velas aos ventos190?
quin m orere ut m erita es, ferrõque ãuerte dolõrem .
Não, morre como tu mereceste e com a espada afasta a dor.
tü lacrimis êuicta meis, tü prim a furentem
Tu, vencida pelas minhas lágrimas, tu primeira <esta> tresloucada
his, germana, malis oneras atque obicis hosti,
com estes males, irmã, carregas e atiras ao inimigo191192.
550 nõn licuit thalam i expertem 392 sine crim ine uitam
Não me foi licito livre do tálamo uma vida sem crime
dêgere m ore ferae191, tãlis nec tangere cüräs;
passar à maneira de uma fera e não tocar tais preocupações;
n õ n seru ãta fidés c in eri p rõ m issa Sychaeõ.»
não foi salvaguardada a fidelidade prometida à cinza de Siqueu.»

tan to s illa su õ ru m p e b a t p e c to re q u e stü s:


Tantos queizumes ela fazia romper do seu coração.
A enéãs celsã in p u p p i iam c e rtu s e u n d i
£neias, na alta popa, já certo de partir

190Dido deu a volta completa às hipóteses que a podiam impedir de se suicidar; e dá-se conta
de que tudo é impossível: (1) humilhar-se ao ponto de procurar um sucedâneo de Eneias não
dá; (2) ir sozinha para Itália com os Troianos não dá; (3) levar os Cartagineses atrás, que a custo
ela convencera a sair de Sídon, também não dá. Não resta mais nada: só morrer.
191Os verbos em latim estão no presente porque, para Dido (agora em modo autoexculpatório
e passivo-agressivo), Ana foi a culpada da situação e continua a sé-lo.
192expers, expertis: «livre de», «desprovido de» (+ genitivo; ver NGL, p. 307).
191A expressão more ferae tem feito correr rios de tinta (o comentário oitocendsta de James
Henry dedica doze páginas a este verso!). Mesmo que lhe atribuamos (com Austin iv, p. 164)
o sentido de «à maneira <inocente> de um animal silvestre» (em inglês, «innocently, like a
woodland creature»), a expressão não deixa de ser estranha. Talvez Vergílio queira sublinhar
que Dido já não diz coisa com coisa.
Vergílio, Eneida, Canto 4 403

555 carpébat som nõs rébus iam rite paratis.


saboreava os sonos3*4, estando já as coisas preparadas segundo o rito.
huic sé fôrma dei uultü redeuntis eõdem
A ele a forma do deus a regressar com o mesmo semblante
o b tu lit in s o m n is rü rs u s q u e ita u isa m o n é re est,
se apresentou nos sonos e de novo assim pareceu avisar,
o m n ia M e rc u rio sim ilis, u õ c e m q u e c o lõ re m q u e
em todas as coisas a Mercúrio semelhante, em relação à voz e à cor
et crinis flãuõs et m em bra decora iuuentã:
e aos flavos cabelos e aos membros belos de juventude:
560 «nãte deã, potes hõc sub cãsú dücere somnõs,
«Nascido da deusa, consegues debaixo desta situação levar sonos,
nec quae té circum stent 394395 deinde pericula cernis,
nem v£s os perigos que doravante estão à tua volta,
d ê m é n s , n e c Z e p h y ro s a u d is sp ira re se c u n d o s?
ó demente, nem ouves os Zéfiros a soprar favoráveis?
illa dolõs dirum que nefãs in pectore uersat
Ela enganos e tremendo crime no peito revolve,
certa mori, uariõsque irãrum concitat aestüs.
resolvida a morrer, e desperta das iras os turbilhões instáveis.
565 nõn fugis hinc praeceps, dum praecipitare potestãs?
Não foges daqui apressado, enquanto <há> possibilidade de <te> apressares?
iam mare turbãri trabibus saeuãsque uidêbis
Já o mar a turvar-se com barcos verás e ferozes
c o n lü c é re facês, ia m fe ru è re 396 lito ra flam m is,
fachos a luzir; já <verás> os litorais a ferver de chamas,
si té h is a ttig e rit 397 te rris A u ro ra m o ra n te m .
se nestas terras a Aurora te atingir a demorares-te.

394 O contraste com Dido (incapaz de dormir) não podia ser maior; e, mais uma vez, Vergílio
acerta em cheio no retrato psicológico. Eneias não está a dormir porque é um grunho insensível;
o sono cm que ele cai é o da exaustão após o conflito interior que levou á decisão, para resolver
de vez as coisas, de terminar com Dido e abandonar para sempre Cartago. Atendendo a que a
estadia em Cartago é o único momento da Eneida em que vislumbramos um Eneias feliz, está
descrita a magnitude do conflito interior cuja ressaca o deixa agora exausta
393 O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma oração relativa de caracterização.
396 Cf. nota ao v. 409.
397 Indicativo futuro perfeita
404 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

heia age, rum pe morás. uarium et m ütãbile sem per


Eia, vai, rasga as demoras! <Coisa> inconstante e mutável <é> sempre
570 fêmina.» sic fatus nocti sê immiscuit àtrae.
a mulher198.» Tendo assim falado, imiscuiu-se na tétrica noite.

turn uérõ Aenêãs subitis exterritus um bris


Então Eneias, verdadeiramente assustado com as sombras súbitas,
corripit ê som nõ corpus sociõsque fatigat
arranca do sono o corpo e afadiga os companheiros
praecipitis: «uigilãte, uiri, et considite transtris;
apressados: «Prestai atenção, homens, e sentai-vos nos bancos <de remos>;
soluite uêla citi, deus aethere missus ab altõ
desdobrai, rápidos, as velas. Um deus enviado do éter sublime
575 festinare fugam tortõsque incidere funis
a apressar a fuga e a cortar os caos torcidos
ecce iterum instimulat, sequim ur té, sâncte deõrum ,
de novo incita! Seguimos-te, santo dentre os deuses,
quisquis es, imperiõque iterum pãrêmus ouantês.
sejas quem fores, e de novo obedecemos à ordem, esfúsiantes.
adsis õ placidusque iuuês et sidera caelõ
Que estejas presente, ó <deus> plácido, e ajudes e estrelas propícias
dextra398399 ferãs.» dixit uãginãque êripit ênsem
no céu tragas!» Falou e da bainha tirou a espada
580 fulmineum strictõque ferit retinãcula ferrõ.
fulgente e golpeia as amarras com o ferro desembainhado.
idem omnis simul ardor habet, rapiuntque ruuntque;
O mesmo ardor possui todos em simultâneo: apressam-se e precipitam-se.
litora dêseruére, latet sub classibus aequor,
Os litorais eles deixaram, o mar fica oculto debaixo das frotas;
adnixi torquent spümãs et caerula uerrunt.
esforçados revolvem as espumas e varrem as <ondas> azuis.

398A frase é absurda no geral e mais absurda ainda no particular, já que (como notam todos os
comentadores) Dido é tudo menos inconstante no seu amor por Eneias. Talvez devamos
categorizar a frase segundo um dos motivos mais desconcertantes da Eneida, que consiste,
sempre que possível, em deixar os deuses ficar mal. Como observa Lyne a propósito deste verso,
na Eneida Mercúrio «is not an honourable or pleasant character» ( W ords a n d the Poet:
Characteristic Techniques o f Style in Vergil's Aeneid, Oxford, 1989, p. 49).
m Trata-se do adjetivo dexter no sentido de «propício»; concorda com sidera (acusativo do plural).
Vergílio, Eneida, Canto 4 40S

et iam prima 400 nouõ spargébat lümine terras


E já a primeira Aurora espargia as terras com nova luz
585 T ith õ n i cro ceu m lin q u én s A u ro ra cubile,
deixando o açafroado leito de Titono401.
rêgina é speculis ut primam albêscere lücem
Assim que a rainha, dos mirantes, viu dealbar a luz primeira
uidit et aequatis ciassem prõcédere uêlis,
e a frota a avançar com velas equilibradas,
litoraque et uacuõs sénsit sine rémige portüs,
e percebeu que os litorais estavam vazios e os portos sem remigio,
terque quaterque manü pectus percussa decõrum
tendo batido trés e quatro vezes com a mão no lindo peito
590 flãuentisque abscissa comãs «prõ Iuppiter! ibit
e tendo arrancado os flavos cabelos402, «Por Júpiter! Irá
hic403,» ait « et nostris inlüserít aduena régnis?
este intruso», disse, «e terá zombado dos nossos reinos?
nõn arma expedient tõtãque ex urbe sequentur,
Não buscarão404 <os cidadãos> armas e de toda a cidade perseguirão -
diripientque rates alii nãuãlibus? ite,
e outros não apressarão naus a partir das docas? Ide,
ferte citi flammãs, date têla, impellite rêmõs!
trazei, rápidos, chamas, manejai as armas, impeli os remos!
595 quid loquor? aut ubi sum? quae mentem insania mütat?
Qiie digo? Onde estou? Que insãnia altera a minha mente?
infêlix D idõ, n u n c té facta im p ia tan g u n t?
Infeliz Dido, agora é que os factos ímpios te atingem?
tum decuit, cum scéptra dabãs. én dextra fidésque,
Nessa altura devia <ter acontecido >, quando oferecias os cetros. Eis a dextra e a fé,

Oprima aqui no sentido do adjetivo homérico ήριγένεια («a que cedo desponta»).
401Estes versos a descrever o nascer do dia não são arbitrários: Vergílio imitou o início do Canto
5 da Odisséia, justamente o canto em que Odisseu abandona Calipso. Note-se, no entanto, que
Vergílio opta por um potpourri homérico ao introduzir «a que cedo desponta» a partir da
fórmula onde se fala dos «róseos dedos» da Aurora; e transfere, de outra fórmula homérica,
o «açafroado» do manto da Aurora para a cama que ela partilha com Titono.
402 Os cabelos loiros da fenícia Dido fazem-nos pensar novamente em Fedra (Hipólito 220).
402Pressupondo novamente hicc (ver nota ao v. 198).
404 Vergílio está aqui a imitar uma construção tipicamente grega: não + futuro = imperativo
positivo. Ou seja, «não buscarão?» = «buscai!». Austin (iv, p. 173) comenta que este discurso
de Dido «must surely rank with the most magnificent of any poet in any language».
406 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçõbs

q u e m sécu m p a triõ s a iu n t 405 p o rtã re penãtis,


<aquele de> quem dizem ter transportado os pátrios Penates,
q u e m subiisse u m e ris c o n fectu m aeta te paren tem !
quem <dizem> ter carregado aos ombros o pai agastado pela idade!
600 n õ n p o tu i a b re p tu m diu ellere c o rp u s e t u n d ls
Não fui capaz de arrancar o corpo rasgado e nas ondas
spargere? n õ n sociõs, n o n ip su m ab sú m ere ferro
<o> espalhar? Não <fui capaz de> os amigos, de o próprio Ascânio matar
A scan iu m p atriisq u e e p u la n d u m p õ n e re m énsis?
com uma espada e servi-lo para ser comido nas mesas paternas406?
u ê ru m an cep s pu g n a e fu erat fo rtú n a . fuisset:
Na verdade, ambígua fora a sorte de <tal> luta. Se tivesse sido:
q u e m m e tu i m o ritü ra? faces in castra tu lissem
quem receei, eu que ia morrer? Tochas nos acampamentos tivesse eu levado,
605 im pléssem que 407*forõs flam m is n ã tu m q u e p a tre m q u e
tivesse eu enchido os convés com chamas e o filho e o pai
cum g enere exstinxem , m é m e t su p e r ipsa dedissem .
com a raça tivesse eu exterminado - e por cima eu própria me tivesse dado400!
Sõl, qui terraru m flam m is o p era o m n ia lústrãs,
Sol, que observas com <tuas> chamas todos os atos das terras,
tü q u e h ãru m in terp re s c ú rã ru m e t cõ n scia Iünõ,
e tu destas preocupações intermediária e conivente - Juno! -
n o ctu rn isq u e H ecaté triu iis ulu lãta p e r u rb é s
e Hécate ululada pelas cidades nas noturnas encruzilhadas,
610 et D irae ultricés e t d i m o rie n tis E lissae409,
e Fúrias vingadoras e deuses de £lissa que está a morrer,
accipite haec, m e ritu m q u e m alis 410 a d u e rtite n u m e n
recebei estas <palavras> e desviai para <meus> males <vosso> poder merecido

405Note-se que aiunt = àju n t (ver NGL, pp. 206-207).


406Prosseguindo com a sua galeria de heroínas trágicas cujos traços vai projetando em Dido,
Vergílio evoca agora uma tragédia (hoje perdida) de Sófodes, Tereu, em que Procne (para vingar
a irmã, violada e mutilada por Tereu, marido de Procne) matava o filho e o dava a comer,
cozinhado, ao próprio pai.
407 Conjuntivo mais-que-perfeito sincopado (implessem = impleuissem); também exstinxem =
exstinxissem.
406Subentende-se «à morte».
409Ver a segunda nota ao v. 335.
410Dativo.
Vbrgílio, Eneida, Canto 4 407

e t n o strã s au d ite p reces, si tan g ere p o rtü s


e escutai as nossas preces! Se é forçoso que portos
in fa n d u m c a p u t ac te rris a d n ãre necesse est,
a cabeça infanda atinja e chegue411 às terras <procuradas>,
e t sic fãta Iouis p o sc u n t, h ic te rm in u s h aeret,
e se assim os fados de Júpiter exigem <e> este desfecho412está fixo,
615 at b ellõ au d acis p o p u li u ex ãtu s e t arm is,
que abalado pela guerra de um povo audaz e pelas armas,
finibus extorris413, complexú ãuulsus Iuli
das fronteiras deslocado, arrancado ao abraço de Iulo,
au x iliu m im p lõ re t u id e a tq u e in d ig n a su õ ru m
implore auxílio e veja dos seus as indignas
fu n era; nec, c u m sé su b lêgés p acis in iq u a e
mortes; nem, quando sob as leis de urna paz iniqua414se
trã d id e rit, rég n õ a u t o p tã tã lü ce fru ãtu r,
terá submetido, frua do reino nem da luz desejada,
620 sed c ad at a n te d ie m m e d iã q u e in h u m ã tu s h aré n ã .
mas que morra antes do dia <fadado> e insepulto no meio da areia.
haec precor, h a n c u õ c e m e x tré m a m c u m sa n g u in e íu n d õ .
Estas coisas peço, esta palavra derradeira derramo com sangue.
turn uõs, õ Tyrii, stirpem et genus omne futürum
Doravante vós, ó Tírios, a estirpe e toda a raça futura
exercéte odiis, c in e riq u e h a e c m ittite n o strõ
afligi com ódios e entregai à nossa cinza estas
m ü n era. n ü llu s a m o r p o p u lis n e c fo e d e ra su n tõ .
oferendas. Que nenhum amor entre os povos nem alianças haja.

411À letra, adnõ, adnãre significa «nadar».


412Isto é, «desfecho» no sentido do término alcançado: neste caso concreto, Itália.
413extorris, -e (adjetivo): «deslocado», «exilado» (formado a partir deex + terra). Esta profecia
de Dido refere-se ao que irá acontecer, já em Itália, no Canto 9: na ausência de Eneias, que no
Canto 8 se deslocara do acampamento para visitar o rei Evandro (deixando para trás Ascânio),
os Troianos são atacados; entre outros, morrem Niso e Euríalo.
414A ideia da «paz iníqua» refere-se profeticamente à perda de identidade dos Troianos, que,
não tendo querido (pelo menos na lógica da narrativa) assimilar-se aos Cartagineses, não
conseguirão escapar à necessidade de se assimilarem a outro povo: aos ítalos. Daí a necessidade
sentida por Vergilio, em vários passos da Eneida, de sublinhar que os Troianos eram,
originalmente, ítalos.
408 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições

625 exoriãre 415 aliquis n o stris ex o ssibus u lto r


Que te levantes, um certo vingador dos nossos ossos,
qui face Dardanios ferrõque sequãre colõnõs,
que com tocha e ferro persigas os dardànios colonos,
nunc, õlim , q u o c u m q u e d a b u n t sé te m p o re uires.
agora, doravante, em qualquer tempo em que as forças se apresentarão.
litora lito rib u s co n traria, flúctibus u n d ãs
<Sejam> litorais a litorais contrários, ondas a vagas
im precor, arm a arm is: p u g n e n t ip siq u e n e p õ té sq u e 416.»
(peço!), armas a armas: que lutem eles e também os netos!»

630 haec ãit, e t p artis an im u m u ersãb at in om nis,


Estas <palavras> diz; e volvia o espírito em todas as direções,
inuisam quaerén s q u am p rim u m a b ru m p e re lücem .
procurando romper o mais cedo possível a luz malquista.
turn breuiter Barcén nütricem adfata Sychaei,
Então interpelou brevemente Barce, ama de Siqueu,
namque suam patriã antiquã cinis ãter habébat:
pois a negra cinza detinha a sua <própría ama> na pátria antiga417.
«Annam, câra mihi nütrix, hüc siste sororem418:
«Querida ama, traz para aqui Ana, minha419irmã;
635 dic corpus p ro p e re t fluuiãli spargere lym phã,
diz para ela se apressar a espargir o corpo com água fluvial
e t p ecudês sêcum e t m o n stra ta p iacula dücat.
e que consigo traga os animais e os desagravos estabelecidos.

4iS Conjuntivo jussitivo (de exorior, exoriri). A 2.a pessoa do singular cria um efeito chamativo
com aliquis... ultor (referência prolépdca a Aníbal, o general cartaginês que constituiria, no final
do século ui a.C., a grande ameaça à hegemonia romana no Ocidente).
4,6 O efeito da sílaba hipermétrica (pois o verso tem uma sílaba a mais) sugere a emoção
incontida de Dido.
417 É espantoso como, quase no fim da história de Dido, Vergílio introduz de repente uma
nova personagem, extraindo dela o máximo significado em dois versos que nos completam
o retrato de Dido, no momento em que nos despedimos dela. É-nos dado a ver o carinho pela
velha ama de Siqueu, que Dido não quis deixar no desamparo em Tiro; e também a perda da
própria ama, soando aqui um toque patético e, avant la lettre, quase operático («La mamma
morta»).
4,8 Começamos a fechar (dir-se-ia musicalmente) o círculo deste canto (e da vida de Dido):
cf. V. 9, Anna soror, agora, Annam... sorõrem.
419A frase também permitiria, em alternativa, juntar mihi a cãra: «minha querida ama».
Vergílio, Eneida, Canto 4 409

sie u en iat, tú q u e ipsa p iã tege tem p o ra uittã.


Que assim venha e tu própria cobre as têmporas com uma faixa pia.
sacra Ioui Stygiõ, quae rite incepta parãul,
Os ritos a Júpiter Estígio, que ordenadamente iniciadas preparei,
perficere est animus flnemque impõnere cüris
é minha intenção cumprir e pôr um fim aos sofrimentos
640 Dardanifque rogum capitis permittere flammae.»
e à chama dar a pira da cabeça dardânia.»
sic ait. illa gradum studiõ celebrabat420 anili.
Assim fala. Ela [a ama] apressava o passo com esforço idoso.
at trepida et coeptis immanibus effera Dido
Porém Dido, trepidante e em polvorosa com as enormidades iniciadas,
sanguineam uoluéns aciem, maculisque trementis
virando a vista raiada de sangue, nas faces trementes com manchas
in terfu sa genãs421 e t p allid a m o rte fu tü rã,
marcada e pálida devido à morte próxima,
645 in teriõ ra d o m ú s in ru m p it lim in a e t altõs
irrompe nos pátios interiores da casa e sobe as altas
co n scen d it fu rib u n d a ro g õ s é n se m q u e reclü d it
piras, furibunda, e desembainha a espada
Dardanium, nõn hõs quaesitum münus in üsüs.
dardânia, oferta não solicitada422*para estes usos.
hic, p o stq u a m Iliacãs u e stis n õ tu m q u e cu b ile
Aqui, depois que as iliacas vestes e a cama conhecida
conspexit, paulum lacrimis et mente morãta
contemplou, demorando-se um pouco com lágrimas e pensamento,
650 in cu b u itq u e to rõ d ix itq u e n o u issim a u erb a:
atirou-se na cama e disse as derradeiras palavras421:
«dulcés exuuiae, dum fata deusque sinébat,
«Doces despojos, enquanto os fados e o deus permitia,

420Há manuscritos que nos dão a ler aqui celerãbat (lição preferida por Conte; na edição de Mynors,
lemos a lectio difficilior, que é celebrabat). Que, no latim mais antigo, celeber («célebre») também
podia significar «célere» é-nos provado por um fragmento do tragediógrafo romano Ácio.
421 trementis... genas é acusativo de relação.
422Mais um pequeno pormenor que completa a história de Dido: a espada de Eneias constituíra
uma oferta solicitada por Dido - não um presente espontaneamente oferecido por Eneias.
421Vergílio inspirou-se aqui no discurso de Alceste, antes de dar a vida pelo marido (Euripides,
Alceste 175-179).
410 Latim do Zero a VergIlio em 50 Lições

accipite hanc animam mêque his exsoluite cüris.


recebei esta alma e libertai-me destes sofrimentos.
ulxi et quem dederat cursum Fortüna perêgi,
Vivi; e segui o percurso que dera a Fortuna;
et nunc magna mel sub terras ibit imãgõ.
e agora a grandiosa imagem de mim irá para debaixo das terras424425*.
655 urbem praeclaram statui, mea moenia uidi,
Fundei uma cidade prestigiada; vi <construídas> as minhas muralhas;
ulta uirum poenãs inimlcõ a frãtre recêpi,
tendo vingado o marido, recebi indemnizações de um irmão inimigo.
félix, heu nimium félix, sl litora tantum
Feliz, ah demasiado feliz, se somente nossos litorais
numquam Dardaniae tetigissent nostra carinae.»
nunca tivessem as quilhas dardânias tocado.»
dixit, et õs impressa torõ «moriemur inultae,
Disse; e tendo premido o rosto na cama, «Morreremos inultas42*,
660 sed moriamur» ait. «sie, sic iuuat ire sub umbrãs.
mas morramos», disse. «Assim, assim42*apraz ir para debaixo das sombras!
hauriat hunc oculis ignem crudélis ab altõ
Que do <mar> alto o cruel Dárdano veja este fogo
Dardanus, et nostrae sêcum ferat õmina mortis.»
e consigo leve os presságios da nossa morte!»
dixerat, atque illam media inter tãlia ferrõ
Dissera; e no meio de tais <palavras> as aias veem-na
conlãpsam aspiciunt comitês, ênsemque cruõre
caída por ação da lâmina e a espada de sangue
665 spumantem sparsãsque manüs. it clãmor ad alta
espumada e as mãos salpicadas <de sangue>. O clamor chega aos altos
ãtria: concussam bacchatur Fäma per urbem,
átrios; a Fama sai como bacante pela cidade chocada.
lãmentis gemitüque et fémineõ ululãtü
Com lamentos e gemido e feminina gritaria

424A voz de Alceste dá lugar à de um nobre general romano a compor o seu próprio epitáfio.
Voltamos depois a Euripides com si litora tantum / nunquam Dardaniae tetigissent nostra carinae (c£
os versos iniciais da Medcia), mas também à Ariadne de Catulo (64.171-172), donde vêm as palavras
tetigissent e litora. E m vez das «popas» (puppis ) de Catulo, Vergilio dá-nos «quilhas» (carinae).
425 «Não vingadas», já que o ultor («vingador») será Aníbal.
424Para muitos leitores, as palavras sic, sic marcam o momento em que Dido se fere com a espada.
Vergílio, Eneida, Canto 4 411

técta fremunt, resonat magnis plangoribus aether,


os tetos tremem; o ar ressoa com prantos enormes,
nõn aliter quam si immissis ruat hostibus omnis
não diferentemente se, tendo inimigos atacado, caísse toda
670 Karthãgõ aut antiqua Tyros, flammaeque furentés
Cartago ou a antiga Uro427e as chamas enfurecidas
culmina perque hominum uoluantur perque deorum,
rolassem pelas habitações dos homens e dos deuses.
audiit exanimis428 trepidõque exterrita cursú
Fora de si e aterrorizada em corrida trepidante a irmã ouviu
unguibus õra soror foedãns et pectora pugnis
e lacerando as faces com as unhas e os peitos com os punhos
per mediõs ruit, ac monentem nõmine clamat:
precipita-se no meio <de todos> e chama pelo nome a moribunda:
675 «hoc 429 illud, germana, fuit? mé fraude petebas?
«Isto foi, ó irmã, aquilo <que planeavas>? Pelo engano me solicitavas?
hoc rogus iste mihi, hoc ignés äraeque parabant?
Para isto era esta pira, isto os fogos e os altares preparavam?
quid primum déserta querar? comitemne sororem
O que lamentarei primeiro, abandonada? A companheira e irmã
spréuisti moriêns? eadem mé ad fãta uocãssés430,
desprezaste ao morrer? Tivesses-me chamado para os mesmos fados!
idem ambãs ferrõ dolor atque eadem hõra tulisset.
Tivesse a mesma dor com a espada e a mesma hora levado ambas!
680 his etiam strüxi manibus patriõsque uocãui
Com estas mãos montei <a pira> e invoquei os pátrios deuses
uõce deõs, sie tê ut positã, crüdêlis, abessem?
com a voz para que eu estivesse ausente, ó cruel, quando assim te puseste?
exstinxti431432té mêque, soror, populumque patrêsque
Destruiste-te a ti e a mim, irmã, e o "povo e os senadores422

427 Vergílio adapta à morte de Dido o que Homero dissera sobre a morte de Heitor (lUada
22.410-411).
424exanimis («fora de si», «em estado de choque») descreve aqui a situação contrária ä que
fora sugerida por unanimam no v. 8. As irmãs, que eram unha com carne, foram perdendo, ao
longo do Canto 4, a ligação umbilical.
429Novamente pressupondo hocc.
430Conjuntivo mais-que-perfeito sincopado (= uocàuissés).
431 Perfeito sincopado, 2.a pessoa do singular (= exstinxisti).
432Os «senadores» (patres) fazem lembrar 1.426.
412 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Sidoniõs urbemque tuam, date, uulnera lymphis


sidónios e a tua cidade. Dai! As fendas com águas
abluam et, extrém u s si q u is s u p e r h a litu s e rrat,
lavarei e, se algum sopro derradeiro flutua sobre <a sua boca>,
685 õ re leg am .» sic fãta g rad ü s éu ã se ra t altos,
com a boca recolherei.» Tendo assim falado, subiu os altos degraus
sèm ian im em q u e 433 sin ü g e rm a n a m am p lex a fo u ê b a t
e a irmã semiviva ela acarinhava no colo, abraçada,
cu m g em itü atq u e ã trõ s siccãb at u e ste cru õ rés.
e com choro secava os sangues negros com a veste.
illa grauis o culõ s c õ n ã ta a tto llere rú rsu s
Ela, tendo tentado de novo levantar os olhos pesados,
déficit; infixum stridit sub pectore uulnus434*.
desfalece; a ferida implantada sob o peito sibila415.
690 te r sêsê atto llên s c u b itõ q u e ad n ix a leu ãu it,
Três vezes se levantando, esforçada no cotovelo se apoiou;
te r re u o lü ta to rõ est o cu lisq u e e rra n tib u s altõ
três vezes rolou para trás na cama e com olhos errantes no alto
q uaesiuit caelõ lü cem in g e m u itq u e re p e rtã 436.
céu procurou a luz e, tendo-a encontrado, gemeu.

tu m Iü n õ o m n ip o té n s 437 lo n g u m m ise râ ta d o lõ re m
Então Juno omnipotente, apiedada da dor prolongada
difficilisque obitus Irim dèmisit Olympõ
e de óbitos <tão> difíceis enviou íris do Olimpo,
695 quae lu ctan tem a n im am n e x õ sq u e re so lu e re t 438 a rtü s.
para que a alma em luta e os membros cerrados ela soltasse.

413Ver nota ao v. 672.


434No v. 4, léramos haerent in fix i pectore uultús. Como tudo mudou!
415Com o verbo strideõ («sibiiar», «assobiar»), Vergílio pretende descrever o som do ar a sair
de um pulmão perfurado (cf. Austin iv, p. 198).
436Ablativo absoluto (subentender lüce). A ideia é que Dido procura a luz para perceber se ainda
está viva: ao ver a luz, compreende que ainda não morreu e, por isso, geme.
417 Fechando outro círculo: no v. 25, a divindade om nipoténs era Júpiter. Aplicado a Juno (cuja
impotência na concretização da sua vontade é o tema com que abre a E n e id a ), o adjetivo
omnipoténs é desconcertante. «Is the epithet Virgil’s own comment on the inscrutability of the
will of God?» (Austin iv, p. 199)
433O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma oração relativa com valor final (NGL, p. 341).
Vergílio, Eneida, Canto 4 413

nam quia nec fãtõ meritã nec morte peribat,


Pois porque nem por ação do fado nem por morte merecida ela perecia,
sed misera ante diem subitõque accénsa furõre,
mas miserável antes do dia <fadado morria> acometida por súbito furor,
nõndum illl flãuum Proserpina uertice crinem
não tinha ainda Prosérpina da cabeça tirado a loira madeixa
abstulerat Stygiõque caput damnãuerat Orcõ.
nem tinha destinado a <sua> cabeça ao estígio Orco.
700 ergõ Iris croceis per caelum rõscida pennis
Portanto a orvalhada íris, com asas de açafrão pelo céu
mille trahéns uariõs aduersõ sõle colõrês
mil variegadas cores trazendo contra o Sol,
déuolat et suprã caput astitit, «hunc ego Diti439
chega no voo e sobre a cabeça estacou. «Este <dom> sagrado
sacrum iussa ferõ tèque istõ corpore soluõ»:
a Plutão eu levo, mandatada440, e deste corpo te liberto.»
sic ait et dextrã crinem secat, om nis et únã
Assim fala; e com a dextra corta a madeixa; e ao mesmo tempo
70s dilapsus calor atque in uentõs uita recessit,
todo o calor se desvaneceu e a vida desapareceu nos ventos.

4J9 Dis, Ditis: «o Rico», ou seja, Plutão, rico em almas (do grego πλούτος, «rico»).
440 Por Juno.
III.
H orácio
Introdução à leitura do Livro 1
das O d e s de Horácio

Na terceira parte de Latim do Zero a Vergilio em 50 Lições, damos


mais um passo em frente: focamo-nos agora num poeta que, embora
cinco anos mais novo, foi grande amigo de Vergilio e que, com ele, cons­
titui o pináculo da poesia latina. Da sua obra variada (por ordem crono­
lógica: Sátiras, Epodos, Odes, Epistolas [estas últimas em verso]), vamos
abordar um conjunto de textos onde encontraremos do mais belo que
alguma vez se escreveu em qualquer língua: o Livro 1 das Odes. São 38
poemas - uns mais longos, outros mais breves - que abrangem uma
extraordinária gama temática. São poemas de expressão sintética: como
em Vergilio, cada palavra vale por dez ou vinte. Horácio nunca nos pro­
porciona uma leitura fácil; mas oferece-nos sempre uma experiência
imensamente compensadora em cada um dos seus poemas. Trata-se de
uma dificuldade, como verão, que dá gosto conquistar. £ estou confiante
de que as abundantes notas que escrevi, assim como a tradução portu­
guesa talhada ao milímetro para ajudar na compreensão do latim, vos
ajudarão a saborear o prazer inigualável desta poesia sublime1.
Antes de entrarmos na leitura, demo-nos conta do enquadramento
histórico.
Não sabemos ao certo onde Vergilio se encontrava a 15 de março de
44 a.C., dia em que Júlio César foi assassinado em Roma (o mais prová­
vel é que estivesse em Nápoles); mas sabemos que Horácio estava em
Atenas a estudar filosofia. Pouco tempo depois do assassinato de César,
o jovem Quinto Horácio Flaco, na altura com 21 anos (nascera em 65
a.C., no sul de Itália), travou conhecimento em Atenas com um colega
418 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

novo, que tinha chegado de Roma: Bruto, o mais famoso dos assassinos
de César.
Ora Bruto viera para Atenas para fugir de Roma, mas também com
o intuito de assistir a aulas de filosofia (talvez lhe estivesse a fazer falta
enquadrar «filosoficamente» o evento chocante que protagonizara nos
idos de março). £ havia uma terceira razão: angariar, em Atenas, jovens
romanos para a sua causa. Pois Atenas era para Roma o que, mais tarde,
Oxford seria para Londres (ou Coimbra para Lisboa, pelo menos até
inícios do século xx), ou seja, uma cidade universitária (diríamos hoje),
onde os filhos de romanos ricos completavam os seus estudos. O próprio
facto de Horácio (que nunca esconderia a sua origem como filho de um
ex-escravo) se encontrar naquele meio diz-nos muito sobre a qualidade
superlativa da educação que recebeu; muito provavelmente o pai era um
homem de posses que tinha sido apanhado nas convulsões políticas
daquela época, em que, de repente, proprietários passavam ao estatuto
de sem-abrigo e homens livres eram vendidos como escravos - mas, com
reviravolta igualmente repentina, os expropriados recuperavam por vezes
algum patrimônio perdido, e alguns dos que tinham experimentado a
escravidão voltavam a ser homens livres.
Horácio deixou-se encantar pelos ideais antiautocráticos de Bruto e
combateu, em 42 a.C., na Batalha de Filipos, na seqüência da qual Bruto,
derrotado, se suicidou. De volta a Roma, o que esperou Horácio foi uma
desanimadora travessia do deserto, como ex-combatente daquela que
era, para o poder instituído, a fação errada. No entanto, a sua educação
esmerada e o talento que já começava a demonstrar levaram à amizade
com Vergílio e, por intermédio deste, foi apresentado a Mecenas (talvez
em 38 a.C.). Nas primeiras obras poéticas que nos chegaram de Horácio,
já o vemos sob o patrocínio de Mecenas: no primeiro poema das Sátiras
e no primeiro dos Epodos, o nome de Mecenas está logo escancarado.
£ não menos escancarado fica o facto de o antigo amigo de Bruto,
o antigo opositor da autocracia, ter virado a casaca: em toda a sua poesia,
Horácio mostra-se partidário do autocrata Octaviano (chamado Augusto
a partir de 27 a.C.).
I ntrodução λ leitura do Livro 1 das O drs de H orAcio 419

Não ao ponto, é certo, de ser incapaz de dizer «não» ao Príncipe.


A tradição biográfica antiga conta-nos que Augusto convidou Horácio
para ser seu secretário - e Horácio recusou. Mas algum grau de depen­
dência existiria, mesmo que sigamos aqueles estudiosos que argumentam
não haver dados concretos a confirmar um dos mais repetidos lugares-
-comuns sobre Horácio: a oferta, por parte de Mecenas, de uma proprie­
dade na zona sabina do Lácio (note-se que nenhum verso de Horácio
nos diz que Mecenas lhe ofereceu o latifundio). Mesmo que tenham
razão os que defendem a teoria de que Horácio comprou a propriedade
com o seu próprio dinheiro, podemos interrogar-nos sobre a origem
desse dinheiro. No entanto, é importante focarmos o facto de ser dificil
- relativamente a Vergilio, Horácio e Propércio - averiguar o grau de
«colaboracionismo». Qualquer um dos três tinha razões de sobra para
se sentir saturado com a instabilidade que antecedera a tomada do poder
por Octaviano; qualquer um dos três sentiu na pele os efeitos das con­
vulsões anteriores e, de qualquer forma, muito antes de Mecenas (que
nasceu no mesmo ano de Vergilio, em 70 a.C.), o «mecenato» já era o
modo estabelecido de um poeta poder dedicar-se à sua poesia: foi o caso
de Énio, de Catulo, de Lucrécio. Quando olhamos para a lista dos gran­
des poetas latinos anteriores à geração de Horácio, na verdade só encon­
tramos o nome de um aristocrata dotado de patrimônio e de meios
próprios: Lucilio (século ii a.C.). Catulo seria decerto um «m enino
bem» em Verona (e a familia de Vergilio pertenceria à categoria algo
oximorónica de «pequenos latifundiários» na zona de M ântua), mas,
para sobreviver em Roma, o poeta veronés precisou de se «pôr a jeito»
perante o mesmo Gaio Mémio a quem Lucrécio dedicou Dê rêrum
nãtürã. Por conseguinte, não há nada de estranho no facto de a Ode 1 de
Horácio ser dedicada a Mecenas; e a única coisa estranha no facto
de a Ode 2 ser dedicada a Augusto é a circunstância curiosa de ser, pois,
a Ode 2 - e não a Ode 1.
Um aspeto importante a ter em conta relativamente às Odes de
Horácio é que os primeiros três livros foram «publicados» (isto é, pos­
tos a circular), por volta de 23 a.C., como um conjunto. O quarto livro
420 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

de Odes virá só dez anos depois (13 a.C., provavelmente). A feição de


conjunto está visível na organização da coletânea: por exemplo, a pri­
meira ode do Livro 1 faz par com a última do Livro 3; e muitas outras
correlações são suscetíveis de ser surpreendidas2. Como dizia o saudoso
Professor Raul Miguel Rosado Fernandes, «as Odes de Horácio não são
um baldio; são um jardim formal, organizado com regra e esquadro».
Esta vontade de impor uma organização à coletânea está visível na justa­
posição expressiva dos poemas: no contraste temático, por um lado;
e no contraste métrico - ou na insistência, em poemas contíguos, no
mesmo metro (isto vê-se mais nos Livros 2 e 3). No caso do Livro 1,
o contraste é a aposta mais óbvia de Horácio: não só as Odes 1-9 são
todas em metros diferentes, mas a leitura contínua do livro até à última
ode (n.° 38) colocar-nos-á perante muitas surpresas e fogos de artificio
ao nível da métrica.
A temática também nos mantém sempre interessados. Os temas
próprios da multifacetada poesia lírica grega, que serviu (pelo menos
nominalmente) de modelo a Horácio, estão presentes: encontramos
odes eróticas, políticas, fúnebres e odes que têm por tema o vinho. Mas
encontramos também um modo muito horaciano de fazer com que estes
motivos - e outros referentes ao «real» - deem o mote a poemas cujo
verdadeiro motivo, no fundo, é a própria poesia.
Se Horácio não precisava de se sentir em competição com outros
autores latinos (pois o representante mais ilustre de poesia lírica até à data
- Catulo - não se propusera um projeto com a ambição do de Horácio),
tinha a pressão de não ficar mal diante dos modelos gregos - desde logo
Alceu e Safo, os grande poetas líricos do início do século vi a.C. Contudo,
uma análise minuciosa dos procedimentos poéticos de Horácio mostra-
-nos que, se é verdade que ele se dedicara ao estudo de Alceu, de Safo,
de Pindaro e outros, não menos verdadeiro é o facto de, em muitas odes,
os modelos serem mais tardios. Calímaco, como não poderia deixar de
ser, é uma presença tutelar3. Mas também a poesia epigramática helenís-
tica foi o jardim do qual Horácio colheu muitas das flores que, sujeitas
a cruzamentos vários, ele viria a plantar no seu próprio jardim.
Introdução à leitura do Livro 1 das O des de H orAcio 421

No entanto, quanto mais estudamos a lírica de Horácio mais nos


apercebemos de que, ao querer sublinhar a sua dependência dos mode­
los gregos, corremos o risco de extrair ilações erradas. Dois casos eviden­
tes são duas odes superficialmente inspiradas em Alceu (a Ode 14, sobre
a «Nau de Estado»; e a Ode 37, Nunc est bibendum): basta começarmos
a descascar as sofisticadíssimas camadas poéticas destes (ou de quaisquer
outros) poemas de Horácio para percebermos como a suposta imitação
serve ao poeta como enganador jogo de luzes, cujo objetivo,
a bem dizer, é deixar ainda mais visível a sua assombrosa originalidade.
Q.HORÃTI FLACCI CARMINVM
LIBER PRÍMVS

1. 14

Maecénãs atauls édite5régibus,


õ et praesidium6et dulce decus7meum:
sunt quõs8curriculo puluerem Olympicum
collégisse9iuuat, mètaque10feruidls
s éuitãta rotis palmaque nobilis11
terrarum dominõs éuehit ad deõs;
hunc12, si mobilium turba Qpiritium13
certat tergeminis tollere14honoribus15;
illum16, si proprio condidit horreo17
10 quidquid18dé Libycis uerritur19areis20;
gaudentem patrios findere21sarculo
agros Attalicis22condicionibus
numquam démoueãs, ut trabe Cypria23
Myrtõum pauidus nauta secet mare24;
is luctantem Icariis fluctibus25Africum26
mercátor metuéns õtium27et oppidi28
laudat rüra29sui, mox reficit30ratés
quassas31, indocilis32pauperiem pati;
est qui nec ueteris33pocula34Massici
20 nec partem solido35démere dé dié
spernit, nunc uiridi membra36sub arbuto
strátus37, nunc ad aquae léne caput38sacrae;
HORÁCIO
O D E S , LIVRO PRIMEIRO

1.1

Mecenas, nascido de antepassados reis,


ó <minha> segurança e também meu doce adorno:
existem aqueles a quem apraz, com o carro, o pó olímpico
ter colhido; e a meta por ferventes
s rodas evitada e a palma nobilitante
exalta os senhores das terras até aos deuses.
A este <apraz> se a turba de quirites volúveis
entra em disputa para <o> elevar com tríplices honrarias;
àquele <apraz> se armazenou no próprio celeiro
10 tudo o que é varrido das líbicas eiras;

àquele, que se alegra a sachar com enxada os pátrios


campos, com condições dignas dos Atálidas
nunca desalojarias, para que numa nau cípria
ele cortasse o mar de Mirto como pávido nauta;
is receoso perante o Africo lutando com as ondas icárias,
o mercador louva o lazer e os campos
da sua cidade, <mas> depois refaz as madeiras
sacudidas, incapaz de aguentar a pobreza.
Existe aquele que nem taças de velho Mássico,
20 nem tirar uma parte do dia inteiro,
rejeita, ora com os membros sob verdejante medronheiro
esticado, ora junto de suave nascente de água sagrada.
424 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

multõs castra iuuant et lituõ39tubae


permixtus sonitus bellaque matribus40
25 detestata41; manet sub Ioue frigido42

uénãtor43tenerae coniugis44immemof45,
seu uisa est catulis cerua fidelibus46
seu rúpit teretes47Marsus aper48plagas.
Mé doctarum hederae praemia frontium49
30 dis miscent superis, mê gelidum nemus
Nymphãrumque leués cum Satyris chori50
sécernunt populõ, si neque tibiãssl
Euterpé52cohibet nec Polyhymnia53
Lesboum refugit tendere barbiton54.
35 quod si mê lyricis uãtibus 55 inserês56,
sublimi feriam sidera uertice57.

1.258

Iam satis59terris60niuis atque dirae


grandinis61misit Pater et rubente
dexterã sacras iaculãtus arces62
terruit urbem,

5 terruit gentis63, graue né rediret64


saeculum Pyrrhae65noua monstra66questae67,
omne cum Proteus pecus68égit altõs
uisere69montis,

piscium et summa genus haesit70ulmõ,


io nõta quae sédés fuerat columbis,
et superiectõ71pauidae natarunt
aequore dammae72.
Livro 1 das Odes de HorAcio 425

Acampamentos militares deleitam muitos, assim como o som da tuba


misturado com <o da> trombeta e as guerras pelas mães
25 detestadas. Permanece debaixo de Júpiter frio
o caçador, da jovem cônjuge desmemoriado:
quer <porque> foi vista uma cerva pelos cães fiéis,
quer <porque> um marso javali rompeu as redes finas.
A mim, as heras, prêmios das sábias frontes,
30 <me> misturam com os deuses supernos; a mim, o refrescante bosque
e as leves danças das ninfas com os sátiros
<me> separam do povo, desde que nem as tíbias
£uterpe suprima, nem Polímnia
recuse afinar a lésbia lira.
35 Pois se me vais pôr entre os líricos vates,
com a cabeça elevada baterei nas estrelas.

1.2

Às terras já o bastante de neve e de ominoso


granizo o Pai atirou e, com avermelhada
dextra alvejando as sacras cidadelas,
aterrorizou a cidade,

5 aterrorizou as gentes, não fosse regressar o grave


século de Pirra descontente com inauditos portentos,
quando Proteu levou todo o rebanho
para ver os altos montes

e a raça dos peixes ficou presa no alto olmeiro,


ío que fora poiso conhecido pelas pombas;
e apavoradas cervas nadaram
na água transbordada.
426 Latim do Zbro a V ergílio em SO Lições

uldimus flãuum Tiberim retortis


litore Etrusco73 uiolenter undis
is ire dèiectum 74 monumenta régis
templaque Vestae,

Iliae75 dum sè nimium querenti


iactat ultorem, uagus76 et sinistra
lãbitur ripã Ioue nõn probante 77 u-
20 xõrius amnis78.

audiet ciuis acuisse79 ferrum


quõ 80 graués Persae81 melius perirent,
audiet pugnas uitiõ parentum
rãra82 iuuentüs.

25 quem uocet83 diuum populus ruentis


imperi rébus84? prece8Squã fatigent
uirginés sanctae86 minus audientem
carmina Vestam?

cui dabit partis87 scelus expiandi


30 Iuppiter? tandem ueniãs88 precamur
nübe89 candentis umeros90 amictus,
augur Apollo;

siue tü mäuis, Erycina ridens91,


quam locus circum uolat et Cupido;
35 siue neglectum genus et nepõtês
respicis92 auctor93,

heu nimis longõ satiãte lüdõ,


quem iuuat clamor galeaeque léués94
acer et Marsi95 peditis cruentum
40 uultus in hostem;
Livro 1 das Odes de HorAcio 427

Vimos o flavo Tibre, com ondas violentamente


retroprojetadas pela margem etrusca,
is avançar para derrubar os monumentos do rei
e os santuários de Vesta,

enquanto à demasiado queixosa llia o rio uxório


declara com jactância que <é> vingador <dela>; e errante
desliza por cima da margem esquerda,
20 Júpiter não aprovando.

<A juventude> ouvirá dizer que os cidadãos afiaram a espada


com a qual os perigosos Persas melhor haviam de perecer;
a juventude, escassa devido ao vício dos progenitores,
ouvirá falar de lutas.

25 Por qual dos deuses chamará o povo em prol dos assuntos


de um poder que está a ruir? Com que prece importunarão
Vesta, que pouco ouve os cantos <delas>,
as virgens santas?

A quem dará Júpiter a função de expiar


30 o crime? Então pedimos que venhas
de nuvem vestido nos ombros candentes,
ó áugure Apoio!

Ou <vem então> tu, se preferires, sorridente Ericina,


à roda de quem voa<m> o Folguedo e Cupido;
35 ou se para a raça negligenciada e para os netos
tu olhas <como> autor,

ah!, saciado de um jogo demasiado longo,


<ó Marte> a quem agrada<m> o clamor e os capacetes lisos
e a expressão áspera do marso pedestre
40 contra o inimigo ensangüentado;
428 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

slue mütãtã iuuenem fígúrã


ãles96in terris imitaris almae
filius Maiae, patiéns97uocäri
Caesaris ultor:

45 serus in caelum redeas98diüque


laetus intersis populo Quirini;
nèue té nostris uitüs iniquum99
õcior aura

tollat; hic magnos potius triumphos,


so hic amés dici pater atque princeps;
neu sinãs Médõs100equitare inultos
té duce, Caesar101.

1.3 102

Sic té diua poténs Cypri103


sic frãtrés Helenae, lúcida sidera104,
uentõrumque regat10Spater
obstrictis aliis106praeter Iãpyga107,
5 nãuis, quae tibi créditum
débés Vergilium, finibus Atticis
reddãs incolumem precor
et serués animae dimidium meae,
illi rõbur108et aes109triplex
io circà pectus erat, qui fragilem truci110
commisit pelago ratem
primus, nec timuit praecipitem Africum
décertantem Aquilonibus
nec tristis Hyadás111 nec rabiem Noti
is quõ nõn arbiter Hadriae
maior, tollere seu ponere uult freta112.
Livro 1 das O des de H orAcio 429

ou então se, de transformada figura,


imitares nas terras um jovem,
alado filho da alma Maia, aguentando seres chamado
vingador de César;

45 que tardio regresses para o céu e que longamente


estejas presente, ledo, entre o povo de Qiiirino;
e que te não arrebate, desagradado com os nossos vícios,
uma brisa veloz;

que <gostes> antes de aqui <çelebrar> grandes triunfos;


so que gostes de aqui ser chamado pai e príncipe;
e não deixes os Persas cavalgar impunes,
sendo tu líder, César.

1.3

Assim a deusa poderosa de Chipre,


assim os irmãos de Helena, estrelas luzentes,
e o pai dos ventos te dirija,
atados os outros <ventos>, à exceção do Iápix,
5 ó nau! <Tu> que <me> deves Vergilio
a ti confiado: que às praias áticas <o>
devolvas incólume - peço -
e guardes a <outra> metade da minha alma.
Aquele tinha carvalho e triplo bronze
ío à volta do peito, ele que primeiro uma frágil
embarcação entregou ao pélago feroz,
nem temeu o impetuoso Áfrico
lutando com os Aquilões,
nem as tristes Híades nem a raiva do Noto,
15 do que o qual não existe árbitro do Adriático
maior, queira ele levantar ou acalmar as ondas.
430 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

quem mortis timuit gradum


qui siccis oculis monstra natantia,
qui uidit mare turbidum et
20 infamis scopulos, Acroceraunia113?
nêquiquam deus abscidit
prüdêns Õceanõ dissociabili
terras, si tamen impiae
nõn tangenda ratés transiliunt114uadalls.
25 audax omnia perpeti116
gèns humana ruit per uetitum nefas,
audax Iapeti genus117
ignem fraude malã gentibus intulit,
post ignem aetheria domõ
30 subductum macies et noua febrium
terris incubuit118cohors,
sémõtíque119prius tarda necessitas
lêti corripuit120gradum.
expertus121uacuum Daedalus ãéra
35 pennis nõn homini datis;
perrúpit122Acheronta Herculeus labor,
nil mortalibus ardui123est:
caelum ipsum petimus stultitia neque
per nostrum patimur scelus
40 iracunda Iouem ponere124fulmina.

1.4 125

Soluitur ácris12*hiems grãtã uice127uéris128et Fauõni129,

trahuntque siccas machinae carinas130


ac neque iam stabulis gaudet pecus aut arator igni,
nec prãta cànis131albicant pruinis132.
Livro 1 das O des de H orAcio 431

Que grau de morte temeu <aquele >


que com secos olhos <viu> os monstros nadadores,
que viu o mar inchado e
20 os infames rochedos, <os montes> Acroceráunios?
Em vão o deus prudente dividiu
as terras por meio do Oceano separador,
se contudo ímpias embarcações
pulam águas que não devem ser tocadas.
2s Audaz em aguentar todas as coisas,
a raça humana precipita-se através de proibido sacrilégio.
O audaz filho de Iápeto,
com fraude danosa, trouxe o fogo para as gentes <humanas>.
Depois que o fogo à etérea mansão
30 foi subtraído, o definhamento e uma nova
coorte de febres se abateu;
e da morte antes distante a necessidade vagarosa
apressou o passo.
Dédalo experimentou o ar vazio
35 com asas não dadas ao ser humano;
o hercúleo trabalho arrombou o Aqueronte.
Para os mortais nada há de <demasiado> íngreme:
o próprio céu assaltamos pela estupidez; nem
deixamos que, por causa do nosso crime,
40 Júpiter ponha de parte <seus> relâmpagos iracundos.

1.4

O acre inverno é dissolvido pela mudança bem-vinda da primavera


e do Favónio;
e as máquinas arrastam as quilhas secas;
e já nem o gado se agrada com os estábulos nem o agricultor com o fogo;
nem os prados com alvas geadas se branqueiam.
432 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçôbs

5 iam Cytherêa choros dücit Venus imminente lünã,


iunctaeque Nymphis Grãtiae decentès133
altemõ terram quatiunt pede, dum grauls Cyclõpum
Vulcãnus ãrdêns uisit134officinas,
nunc decet aut uiridi nitidum caput impedire myrto
io aut flore terrae quem ferunt solütae;
nunc et in umbrosis Faunõ decet immolare lücls,
seu poscat agnã slue mãlit haedõ.
pallida Mors aequõ pulsat pede pauperum tabernas
régumque turris, õ beäte Sesti,
is uitae summa breuis spem nõs uetat inchoare longam;
iam té premet nox fãbulaeque Mãnés135
et domus exilis Plútõnia; quõ simul meâris,
nec régna uini sortiere tãlis136
nec tenerum Lycidãn mirãbere, quõ calet iuuentüs
20 nunc omnis et mox uirginés tepêbunt137.

1.5 138

Quis multa gracilis té puer in rosã


perfusus liquidis urget139odoribus
grãtõ140, Pyrrha, sub antrõ?
cui flãuam religas comam,

5 simplex munditiis? heu, quotiéns fidem


mútãtõsque deõs flebit! ut aspera
nigris aequora uentis
emirabitur insoléns,

qui nunc té firuitur crédulus aureä141,


io qui semper uacuam142, semper amabilem
spérat nescius aurae
fallacis! miseri, quibus
Livro 1 das Odes de HorAcio 433

s Já Venus Citereia conduz as danças sob lua sobranceira;


e juntas com as Ninfas as Graças decorosas
percutem a terra com pé alternado, enquanto Vulcano
ardente visita as possantes oficinas dos Ciclopes.
Agora fica bem ou a lustrosa cabeça atar com verde mirto
ío ou <atá-la> com uma flor que as terras soltas oferecem,
fica bem sacrificar a Fauno em bosques sombrios,
quer ele exija uma cordeira, quer prefira um cabrito.
A pálida Morte atinge, com pé imparcial, casebres de pobres
e torres de reis. Ó bem-aventurado Séstio,
is o píncaro breve da vida impede-nos de dar início a uma esperança longa;
já a noite te oprime, assim como os Manes da fábula
e a casa insípida de Plutão. Assim que lá chegas,
nem as soberanias do vinho sortearás com dados,
nem mirarás o jovem Lícidas, com quem se escalda a rapaziada
20 toda agora e <com quem> em breve as virgens se vão encalorar.

1.5

Que grácil rapaz encharcado em líquidos odores


te aperta <numa cama de pétalas> com rosa abundante
sob o antro, ó Pirra, grato?
Para quem atas a fiava cabeleira,

5 simples em <teus> asseios? Ai, muitas vezes ele chorará


a <tua> fidelidade e os deuses mudados! Como
ele admirará, desacostumado, as ondas <tornadas>
ásperas pelos escuros ventos,

ele que agora de ti, áurea, crédulo frui,


ío ele que te espera sempre disponível,
sempre carinhosa - néscio da brisa
enganadora! Desgraçados daqueles a quem
434 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições

intemptata nités! mê tabula sacer


uõtiuã pariés indicat üuida
is suspendisse potenti
uestimenta maris deõ143.

1.6 144

Scriberis145Vario146fortis et hostium
uictor Maeonii147carminis ãlite148,
quam rem cumque ferõx nãuibus aut equis
miles té duce gesserit149:

s nõs, Agrippa1S0, neque haec dicere nec grauem


Pêlidae stomachum151 cêdere nescii
nec cursüs duplicis per mare Ulixéi
nec saeuam Pelopis domum152

cõnãmur, tenués153grandia, dum pudor


io imbellisque lyrae Müsa potêns uetat
laudes egregii Caesaris et tuãs
culpâ déterere ingeni.

quis Martem tunicã téctum adamantina


digne scripserit154aut puluere Trõicõ
is nigrum Mérionén aut ope Palladis
Tydidén superis parem?155

nõs conuiuia, nõs proelia uirginum


sectis156in iuuenés unguibus acrium
cantamus uacui slue quid úrimur
20 nõn praeter solitum leués157.
Livro 1 das O des de H orAcio 435

brilhas inexperimentada! A parede sagrada


indica com uma tábua votiva
is que eu pendurei as minhas roupas molhadas
<como oferta> para o poderoso deus do mar.

1.6

Serás celebrado por Vário, ave de meónio canto,


<como> forte vencedor de inimigos;
<escreverá> tudo o que o feroz militar, com navios ou com cavalos,
terá feito, sendo tu líder.

5 Pela nossa parte, Agripa, nem dizer estas coisas, nem o grave
aborrecimento do Pelida desconhecedor de ceder,
nem os itinerários pelo mar do dúplice Ulisses,
nem a cruel casa de Pélops

tentamos - tênues <diante de temas> grandes - enquanto o pudor


to e a Musa potente da lira imbele <nos> proíbe
de gastar os louvores do egrégio César e os teus
por culpa do <nosso fraco> engenho.

Quem <sobre> Marte vestido de túnica adamantina


dignamente terá escrito, ou <sobre> Meriones, negro
is de pó troiano, ou <sobre> Tidida, par, por poder de Palas,
dos <deuses> supernos?

Nós <cantamos> as festas, nós as lutas de unhas cortadas


das acres donzelas contra <seus> mancebos
cantamos, descomprometidos (se ardemos um pouco,
20 não <é> mais do que o costume), leves.
436 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

1.7 158

Laudabunt alii clãram Rhodon aut Mytilênén


aut Epheson bimarisue Corinthi
moenia uel Bacchõ Thébãs uel Apolline Delphos
insignis aut Thessala Tempé159;
s sunt quibus ünum opus est intactae Palladis urbem
carmine perpetuo160celebrare
undique decerptam fronti praeponere oliuam161;
plürimus in lunönis honorem
aptum dicet equis Argos162ditisque Mycênãs:
io mé nec tam patiêns163Lacedaemon
nec tam Larisae percussit campus opimae
quam domus Albuneae164resonantis
et praeceps Aniõ16Sac Tiburni lücus et üda
mobilibus166põmãria riuis.
is albus ut obscürõ dêterget167nübila caelõ
saepe Notus neque parturit168imbris
perpetuo, sic tü sapiens finire memento
tristitiam uitaeque labõrès
molli, Plance169, merõ, seu tê fulgentia signis
20 castra tenent seu densa tenêbit
Tiburis umbra tui. Teucer170Salamina171patremque
cum fugeret, tamen üda Lyaeõ172
tempora põpuleã fertur uinxisse corõnã,
sic tristis affatus173amicos:
25 «quõ nõs cumque feret melior Fortüna parente,
ibimus, õ socii comitésque.
nil desperandum Teucro duce et auspice Teucro.
certus enim promisit Apollo
ambiguam tellure nouä Salamina futüram.
30 õ fortés peiõraque passi
mécum saepe uiri, nunc uinõ pellite cürãs:
eras ingéns iterabimus174aequor».
Livro 1 das Odes de HorAcio 437

1.7

Outros louvarão a preclara Rodes ou Mitilene


ou Éfeso ou as muralhas de Corinto duplamente marítima
ou Tebas por Baco ilustre ou Delfos <ilustre> por Apoio
ou a tessálica Tempe;
s existem aqueles cujo único encargo é celebrar a cidade
da intacta Palas com um poema contínuo
e ostentar na fronte uma oliveira colhida de toda a parte;
numeroso <poeta> em honra de Juno
dirá que Argos é <lugar> apto para cavalos e que Micenas é rica;
ío a mim nem a paciente Lacedemónia
nem o campo da fértil Larissa me tocou tanto
quanto a casa da ressoante Albúnea
e o cascateante Anião e o bosque de Tíbur
e os pomares humedecidos por cursos de água móveis,
is Tal como amiúde o alvo Noto limpa as nuvens do céu escuro
e não produz chuvas permanentemente,
assim tu, sábio, lembra-te de limitar
a tristeza e os esforços da vida,
ó Planco, por meio do suave vinho, quer te retenham
20 acampamentos fulgentes de estandartes, quer <te> reterá
a sombra densa do teu Tíbur. Quando Teucro fugia
de Salamina e de seu pai, diz-se contudo que atou
as têmporas por Lieu humedecidas com uma coroa de choupo;
<e> assim, triste, interpelou os amigos:
2s «Para onde e quando nos levar a Fortuna, melhor do que <meu> pai,
iremos, ó amigos e companheiros!
Não há que desesperar, sendo Teucro líder e sendo protetor Teucro.
Pois certeiro prometeu Apoio
que numa terra nova haverá uma segunda Salamina.
30 Ó homens fortes e amiúde sofredores de coisas piores
comigo: agora afastai os cuidados com vinho!
Amanhã araremos de novo o mar enorme.»
438 Latim do Zero a Vbrgílio em 50 Liçõbs

1.8 175

Lydia; dic, per omnis


tê deõs õrõ176, Sybarin cür properes177amando178
perdere, cür apricum179
õderit Campum impatiens180pulueris atque sõbs,
5 cür neque mibtãris
inter aequãbs equitet, Galbea181nec lupatis182
temperet ora frenis?
cür timet flãuum Tiberim tangere183? cür oliuum184
sanguine uiperinõ
io cautius185uitat neque iam buida186gestat armis
bracchia, saepe discõ,
saepe trãns finem iaculõ nõbibs187expedito?
quid latet, ut marinae
fibum dicunt Thetidis188sub189lacrimosa Troiae
is funera, nê uiribs
cultus190in caedem et Lycias proriperet cateruás191?

1.9 192

Vides ut altã stet193niue candidum


Soracte194, nec iam sustineant onus
siluae labõrantés, gelüque
flümina constiterint acütõ?

5 dissolue frigus bgna super focõ


large repõnéns atque benignius
déprõme19Squadrimum196Sabinã,
õ Thabarche197, merum198diõtá199.
Livro 1 das O des de H orAcio 439

1.8

Lídia, diz, por todos


os deuses te peço, porque te apressas a perder
Síbaris amando; porque odeia ele
o soalheiro Campo <Márcio>, farto de pó e de sol;
s porque entre os militares
coetâneos ele não cavalga, nem as gálicas
bocas ele treina com freios lupinos?
Porque teme ele tocar o flavo Tibre? Porque evita ele
o azeite mais cautelosamente do que sangue de víbora,
ío nem exercita já com armas os pálidos
braços, ele que amiúde pelo disco,
amiúde pelo dardo lançado para lá da marca <era> notado?
Porque se esconde, como dizem <ter-se encondido>
o filho da marinha Tétis antes dos óbitos lacrimejantes
is de Tróia, não fosse o traje viril
atirá-lo para a matança e para as lícias catervas?

1.9

Vés como de alta neve está branco


o Soracte, nem já os bosques sobrecarregados
sustêm o peso <da neve> e por causa do gelo
afiado os rios pararam?

5 Derrete tu o frio, pondo achas sobre o fogo


generosamente; e mais benignamente ainda
tira do sabino vaso de duas asas o vinho,
ó Taliarco, de quatro anos.
440 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

permitte diuis cetera, qui simul


10 strauère200uentõs aequore feruidõ
dêproeliantis201, nec cupressi
nec ueterés agitantur orni202.

quid sit futürum eras fuge quaerere et


quem203Fors diérum cumque dabit lucro
is appone, nec dulcis amõrés
sperne puer neque tü choréãs204,

dõnec uirenti cãnitiès abest


mõrõsa205. nunc et Campus et ãreae206
lénésque sub noctem susurri
20 composita repetantur hõrà,

nunc et latentis proditor207intimo


grãtus puellae risus ab angulo
pignusque208dêreptum lacertis209
aut digito male pertinaci.

1.10210

Mercúri, fãcunde nepõs211Atlantis,


qui212feros cultus hominum recentum
uõce formasti catus213et decorae
more palaestrae214,

5 té canam, magni Iouis et deorum


nuntium curuaeque lyrae parentem215,
callidum216quidquid placuit iocõsõ
condere furto.
Livro 1 das O des de H orAcio 441

Entrega os demais assuntos aos deuses que, logo que


10 eles serenaram os ventos opugnadores
do mar fervente, nem os ciprestes
nem os freixos antigos se agitam.

O que será amanhã, evita perguntar; e


seja qual for, dos dias <possíveis>, aquele que a Sorte dará,
is regista-o como lucro; nem desdenhes doces amores,
rapaz <que> tu <ainda és>, nem danças,

enquanto para ti, verdejante, estiver ausente a canície


rabugenta. Agora, que o Campo <Márcio>
e espaços ao ar livre e suaves sussurros ao cair da noite
20 se repitam à hora combinada;

agora <que se repitam> o traidor riso grato da escondida


donzela a partir do íntimo recanto,
assim como o penhor arrancado aos braços,
ou a um dedo pouco teimoso.

1.10

Mercúrio, eloquente neto de Atlas,


que os modos selvagens dos homens recém-criados
formaste, arguto, na fala e no costume
da embelezante palestra,

s de ti cantarei, do grande Júpiter e dos deuses


mensageiro e pai da lira recurva,
esperto a esconder tudo o que <te> aprouve
com furto jocoso.
442 Latim do Zbro a Vergílio em 50 Lições

tê, boués õlim nisi reddidissés


10 per dolum ãmõtãs puerum minãcl
uõce dum terret, uiduus pharetrã
risit Apollõ.

quin217et Atridãs duce tè superbös


Ilio dlues Priamus relictö
is Thessalõsque ignis218et iniqua Trõiae
castra fefellit219.

tü piãs laetis animãs reponis220


sédibus uirgãque leuem coerces
aureã turbam221, superis deorum
20 gratus et imis222.

1. 11223

Tü nê quaesieris, scire nefãs, quem mihi, quem tibi


finem di dederint224, Leuconoé225, nec Babylonios
temptaris226numeros227, ut melius, quidquid erit, pati,
seu plúris hiemês seu tribuit Iuppiter ultimam,
5 quae nunc oppositis débilitat pümicibus mare
Tyrrhénum! sapiãs, uina liqués228et spatio breui
spem longam reseces, dum loquimur, fugerit229inuida
aetãs. carpe diem, quam minimum crédula posterõ.

1. 12230

Quem uirum aut hérõa lyra uel acri


tibiá sumis celebrare, Clio231?
quem deum? cuius recinet232iocõsa
nõmen imãgõ233
Livro 1 das O des db H orácio 443

De ti - se outrora não restituisses


10 as vacas deslocadas pelo engano quando <Apolo> te assustava,
<sendo tu> rapaz, com voz ameaçadora - se riu Apoio,
desprovido de aljava.

Decerto o rico Priamo, sob tua liderança,


enganou, deixando ílion para trás, os soberbos Atridas
is e os fogos tessálios e o acampamento militar
hostil a Tróia.

Tu repões as almas pias nas sedes felizes


e com o teu bastão dourado controlas
a turba leve, grato aos mais elevados dos deuses
20 e aos mais lá de baixo também.

1.11

Tu não indagues, pois não é permitido saber, que fim a mim, que fim a ti
os deuses terão dado, ó Leucónoe, nem babilónicos
cálculos experimentes. É melhor aguentar o que tiver de ser,
quer Júpiter conceda muitos invernos, quer seja este o último,
s que agora desgasta o mar tirreno nos rochedos opostos.
Compenetra-te, decanta os vinhos e poda com breve espaço <de tempo>
uma esperança longa. Enquanto falamos, terá fugido a invejosa
idade. Colhe o dia, confiada o menos possível no de amanhã.

1.12

Que homem ou que herói com a Ura ou com a acre


tíbia escolhes celebrar, CUo?
Que deus? De que <figura> o jocoso
eco ressoará o nome,
Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

s aut in umbrosis Heliconis õris234


aut super Pindõ gelidõue in Haemõ,
unde uõcãlem temere235Insecütae
Orphéa siluae

arte mãternã236rapidos morantem237


10 flüminum lapsüs celerisque uentõs,
blandum238et auritas fidibus canõris
dücere quercüs239?

quid prius dicam solitis Parentis


laudibus, qui rés hominum ac deorum,
is qui mare et terras uariisque mundum240
temperat horis?

unde nil maius generatur ipsõ


nec uiget241 quidquam simile aut secundum,
proximos illi tamen occupãbit
20 Pallas honõrês,

proeliis audax; neque té silébõ,


Liber, et saeuis inimica uirgõ242
béluis, nec té, metuende certã,
Phoebe, sagitta.

25 dicam et Alcidén puerõsque Lédae243,


hunc equis, illum superare pugnis244
nõbilem; quorum simul alba nautis
stélla refulsit,

défluit saxis agitatus umor,


30 concidunt245uenti fiigiuntque nübés,
et minax, quod240sic uolüère, pontõ
unda recumbit.
Livro 1 das Odes de H orAcio 445

5 quer nas regiões sombrias do Hélicon,


quer sobre o Pindo e no gélido Hemo,
donde às cegas os bosques seguiram
o mavioso Orfeu,

pela arte materna demorando os rápidos


ío cursos dos rios e os céleres ventos,
sedutor a ponto de dirigir os atentos
carvalhos com cordas canoras?

O que direi antes dos costumeiros louvores


do Pai, que os assuntos dos homens e dos deuses,
is que o mar e a terra e o céu regula
com as variáveis estações?

Donde nada maior do que ele mesmo foi gerado,


nem vigora outra coisa semelhante ou seguinte <a ele>.
Porém, honras próximas das dele
20 Palas ocupará,

nos combates audaz; nem te silenciarei,


Líber, nem <a ti> virgem inimiga
das bestas selvagens, nem a ti, Febo
temível pela seta certeira.

25 Falarei também de Alcides e dos mancebos de Leda,


este com cavalos, aquele com os punhos em vencer
notável; assim que aos nautas a sua alva
estrela rebrilhou,

escorre dos rochedos a água agitada,


30 desfalecem os ventos e fogem as nuvens;
e a ameaçadora - porque assim eles quiseram - onda
descansa no mar.
446 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

Rõmulum post hõs prius an quiétum


Pompili régnum memorem247an superbös
35 Tarquini fascis248, dubitõ, an Catonis249
nobile lêtum.

Regulum et Scauros animaeque magnae


prodigum Paulum superante Poenõ
gratus insigni referam Camena250
40 Fabriciumque251.

hunc et incomptis Curium capillis252


ütilem bellõ253tulit et Camillum254
saeua paupertas et auitus aptõ
cum lare fundus.

45 crêscit occulto uelut arbor aeuõ


fama Marcelli255; micat inter omnis
Iülium sidus uelut inter ignis
lúna minõrès256.

gentis humanae pater atque custos,


50 orte Sätumö, tibi cüra magni
Caesaris fãtis data; tü secundo257
Caesare régnês.

ille, seu Parthõs Latiõ imminentis


égerit iustõ domitõs triumpho
55 siue subiectõs Orientis õrae
Séras258et Indõs,

té minor laetum reget aequus orbem;


tü graul currü quaties Olympum,
tü parum castis inimica mittes
60 fulmina lücis259.
Livro 1 das Odes de HorAcio 447

D epois destes esto u na d úvida se R óm ulo p rim eiro


eu rem em o re o u o tran q ü ilo reinado de P om pilio o u os so b e rb o s
35 feixes de T arquinio ou se de C atão
a m o rte nobilitan te.

R égulo e os Escauros e P aulo p ró d ig o


<na dádiva> da g ran d e alm a, se n d o v e n ced o r o C artaginês,
eu - grato pela C am en a insigne - referirei,
40 assim com o Fabricio.

A este e a C úrio de cabelos não co rtad o s


levou, cco m o h o m em > útil p ara a gu erra (e a C am ilo),
a severa pobreza e a ancestral p ro p rie d a d e
com casa adequada.

45 C resce com o um a árvore, p o r ação d o te m p o invisível,


a fam a de M arcelo; b rilh a e n tre to d as
a estrela júlia tal co m o en tre astros
m enores a Lua.

Pai e p ro te to r da raça h u m an a,
50 nascido de Saturno, a ti foi d a d o p elo s fados
o cuidado d o grande C ésar; q u e tu reines,
estan d o C ésar em seg u n d o <lugar>.

Q u e r os parto s am eaçadores d o L ácio


ele ten h a conduzido, d o m ad o s, n u m ju sto triu n fo ;
55 q u er os subjugados da região d o O rien te,
chineses e indianos,

reinará im parcial, m e n o r em relação a ti, so b re o led o m u n d o .


T u com o p esad o carro sacudirás o O lim po;
tu lançarás relâm pagos inim igos
60 co n tra b o sq u e s p o u c o castos.
448 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçôbs

1.I3260

C um tü, Lydia, T êlephi


ceruicem roseam , cérea 261 T êlephi
laudas bracchia, uae, m eu m
feruéns difficili bile tu m e t iecur.
s tu m nec m êns m ihi n ec c olor
certã séde m a n e t262, ü m o r 263 e t in genãs
furtim labitur, arguens 264
quam lentis p en itu s m acerer 265 ignibus,
üror, seu tibi candidos
io tu rp a ru n t u m ero s im m o d icae m erõ
rixae siue p u e r furens
im pressit m e m o re m d e n te labris n o tam ,
nõn, si m é satis audias,
spérés p e rp e tu u m dulcia barb are
is laedentem oscula, quae V enus
quinta p arte 266 sui n ecta ris im buit,
fêlicês te r et am plius
quõs irru p ta te n e t cop u la n ec m alis
diuulsus querim o n iis
20 suprem a citius so lu et a m o r dié267.

1.14268

Õ nãuis269, referen t in m are té n o u i


fluctüs. õ q u id agis? fo rtite r occu p a
p o rtu m , n õ n n e u idés u t
n ü d u m rém igiõ latus
Livro 1 das O dbs de HorAcio

1.13

Q u an d o tu, Lídia, de Télefo


o róseo pescoço, de Télefo os ceráceos
braços louvas, ai, o m eu
fígado fervente incha de bílis difícil.
5 N esse m om en to , n em a m in h a m e n te n e m a c o r
fica em sede estável; e h u m id a d e desliza
furtivam ente nas <m inhas> faces, d e m o n stra n d o
q uanto esto u a ser m o lh ad o in te rio rm e n te p o r fogos lentos.
Ardo, q u er rixas im ódicas dev id o ao v in h o
ío te tenham ferido os b ran co s om b ro s,
quer o rapaz furioso te n h a im p resso
com o d en te nos teu s lábios u m a m arca rem e m o ra n te .
N ão - se m e deres su ficien tem en te o u v id o s -
esperes < que seja> co n sta n te q u e m b a rb a ram e n te
is fere os doces beijos, q u e V énus
com u m a q u in ta p a rte d o seu n é c ta r im b u iu.
Três vezes felizes e m ais ain d a
aqueles a q u em u m a ligação irro m p ív el segura,
e cujo am o r não foi sep arad o p o r b rig as m alsãs
20 n em se dissolve assim tã o d ep ressa até ao d ia final.

1.14

Ó nau, novas o n d as levam -te p ara o m ar.


O h, que fazes? E sfo rçad am en te chega
a < bom > p o rto ! N ão vês qu e
< tens> u m lad o d esp ro v id o de rem o s
450 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

s e t m älus 270 celeri saucius A frico


an tem n aeq u e 271 g em an t ac sine fu n ib u s 272
uix durare carinae
p o ssin t im p erio siu s

aequor? n õ n tib i su n t integra lintea,


10 n õ n di273, quõs ite ru m pressa u o cés m alõ.
quam uis P on tica pinus,
siluae filia nobilis,

iactês e t genus e t n õ m e n inútile,


nil pictis tim id u s n ãu ita p u p p ib u s
is fidit, tü, nisi u en tls
dêbès lü d ib riu m , caué.

n ü p e r sollicitum q u ae m ih i taed iu m ,
n u n c d ésld eriu m c u raq u e n õ n leuis,
interfusa n iten tis
20 uités aeq u o ra C ycladas274.

1.15275

Pãstor 276 cum tra h e re t p e r freta n ãu ib u s


Idaeis H elen én p erfid u s h o sp ita m ,
ingrato celeris o b ru it 277 õ tiõ
uentõs, u t ca n e re t fera

5 N éreu s fata: « m a lã d ü cis aui d o m u m


q u am m u ltõ re p e te t G raecia m ilite
co n iü räta tuäs ru m p e re n u p tia s
e t reg n u m P riam i u etu s.
Livro 1 das Odes de H orAcio 451

$ e o m astro d anificad o p elo célere Áfirico;


e q u e as vergas gem em ; e que, sem cabos,
a cu sto p o d e ria m as quilh as
a g u en ta r u m m a r

m ais im p etu o so ? N ão te n s velas inteiras,


10 n e m d euses p elo s quais, d e n o v o o p rim id a p ela desgraça, cham es.
E m b o ra < d e ser> p in h e iro p ô n tíco ,
filha d e n o b re flo resta

te vanglories, ta n to a lin h ag em co m o o n o m e é in ú til;


nas p o p as p in ta d a s o tím id o m a rin h e iro e m n ad a
is se fia. T u - a m e n o s q u e aos v e n to s
estejas a dev er c h aco ta - te m cuidado.

T u q ue <foste> h á p o u c o p ara m im p reo c u p a ç ã o e a b o rrecim en to ,


agora és desejo e cu id ad o n ão leve:
evita as águas espalhadas
20 en tre as C íclades fulgentes.

1.15

Q u a n d o o p a sto r arre b a to u p elas águas co m naus


d o Ida - pérfido! - <sua> an fitriã H elena,
co m ingrata acalm ia N e re u d o m in o u o s céleres
ventos, p ara q u e can tasse ferozes

s fados: « S o b ave d e m a u agoiro levas p ara casa


aquela que, co m n u m e ro sa m ilícia, a G récia reclam ará,
co n ju rad a para estilh açar as tu as n ú p cias
e o rein o antig o d e P ríam o.
452 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

heu heu, q u an tu s equis, q u a n tu s ad e st u iris


10 südor! q u an ta m o u ès fu n era D a rd a n a e 278
genti! iam galeam Pallas e t aegida
c u m isq u e e t rabiem parat.

neq u iq u am V eneris p raesid io ferox 279


pectes caesariem g rätaq u e fem inis
is im belli cithara carm in a d iu id és280,
n êq u iq u am th alam o grauis

hastäs e t calam i spicula C n õ sii


uitãbis stre p itu m q u e e t cele rem seq u i
A iãcem ; tam en , heu , séru s a d u ltero s
20 crinis 281 p u lu e re collines.

n õ n L ãertiadén , ex itiu m tu a e
genti, n õ n Pyliu m N e sto ra respicis?
u rg en t 282 im pau id i té S alam inius
Teucer, té S th en elu s sciéns

25 pugnae, siue o p u s est im p e rita re e q u is283,


n õ n auriga piger. M é rio n é n q u o q u e
nõscês. ecce fu rit te re p e rire atro x
T ydídês, m elio r patre,

q u em tü, ceru u s u ti uallis in altera


30 uisum p a rte lu p u m g ram in is im m e m o r,
sublim i fugiés m o llis a n h éli tü 284,
n õ n h o c po llic itu s tuae.

irãcu n d a d iem p ro fe re t Ilio


m a trõ n isq u e P h ry g u m classis A chillei;
35 p o s t certãs h iem é s Oret A ch aicu s
ignis Iliacas d o m õ s » 285.
Livro 1 das O des de H orAcio 453

Ai, ai! Q u a n to s u o r p a ra cavalos, q u a n to < suor> p ara v arõ es


10 está p e rto ! Q u a n to s ó b ito s p õ e s e m m a rc h a p ara a d á rd a n a
g ente! Palas já o c a p acete e a égide
e os carro s e a raiva p rep a ra .

E m vão < te j u l g a n d o fero z p e lo a m p a ro d e V énus


p e n te a rá s a cab eleira; e can ç õ e s g ratas às m u lh e re s
is co m a citara im b e le d ividirás;
em vão n o tá la m o as p erig o sas

lanças e as p o n ta s d e flech a c re te n se
evitarás e o e stré p ito ; e < ev itarás> p e rs e g u ir o célere
Á jax; ai, e m b o ra ta rd io < n o c o m b a t o o s a d ú lte ro s
20 cabelos co m p ó d esfigurarás.

N ão vês o filho d e L aertes, d e stru iç ã o p a ra o te u


povo, n ão vês N e sto r d e P ilos?
O p rim e m -te os d e ste m id o s T e u c ro
S alam ino e E sté n e lo c o n h e c e d o r

25 d a b a ta lh a - ou , se fo r p re c iso c o m a n d a r cavalos,
n ão <é> in d o le n te auriga. T a m b é m M e rio n e s
c o n h ecerás. E is q u e e stá lo u c o p a ra te e n c o n tra r
o atro z T id id a , m e lh o r q u e o pai,

d e q u e m tu - c o m o u m v e ad o <foge> d e u m lo b o
30 v isto n a o u tra p a rte d o vale, e sq u e c id o d a g ram a -
fugirás, efem in ad o , c o m re sp iração ofeg an te,
coisa q u e n ã o p ro m e te ste à tu a < a m a n te > !

A tro p a irad a d e A q u iles ad iará o d ia < d a d e stru iç ã o >


p ara ílio n e p a ra as m a tro n a s d o s frígios;
35 a p ó s u m n ú m e ro c e rto d e in v e rn o s o fogo
a q u e u q u e im a rá as casas iliacas.»
454 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

1.16286

Õ m ãtre p u lchra filia p ulch rio r,


q u em crim inosis c u m q u e 287 u o lês m o d u m 288
p õ n ês lam bis, slue flam m ã
slue m ari lib e t H ad riãn õ .

s n õ n D in d y m ên ê 289, n õ n ad y tis 290 q u atit,


m en tem sacerd o tu m incola P ythiis,
n o n L iber aeque, n õ n acü ta
sic g em in an t C o ry b a n té s aera,

tristês u t irae; quãs n e q u e N o ric u s 291


io d é terret ensis n ec m are nau frag u m
nec saeuus ignis n ec tre m e n d o
Iu p p iter ipse ru é n s tu m u ltü .

fertu r P ro m éth e u s a d d ere p rin c ip i


lim õ coactus 292 p artic u la m u n d iq u e ,
is dêsectam et in san i leonis
uim sto m ach o ap p o su isse n o stro .

irae T h y estén exitiõ graul


strãuére e t altis u rb ib u s u ltim ae
stétére causae c ü r p e rire n t
20 fu n d itu s im p rim e re tq u e m ü ris

h o stile a ratru m exercitus in so le n s293,


com pesce m e n te m ; m é q u o q u e p e c to ris
te m p tä u it in d u lci iu u e n tã
fe ru o r e t in celeris Iam b o s
Livro 1 das O drs de HorAcio 455

1.16

Ó filha ainda m ais b ela q u e < tua> m ãe bela,


p õ e o fim q ue quererás < pô r> aos caluniosos
iam bos, q u e r <te> apraza <fazê-lo> p ela cham a,
q u e r p elo m a r A driático.

5 N em D indim en e, n e m o h ab ita n te d o s p ítico s san tu ário s


sacode <assim > a m e n te d o s sacerd o tes -
igualm ente, n em L íber; n em os acutilantes
b ronzes os C o rib an tes assim g em in am -

com o as iras tristes; as quais n e m a n ó rica


ío espada detém , n em o m ar naufragante,
nem o fogo feroz, n em o p ró p rio Jú p ite r
ru in d o com tre m e n d o tum ulto.

D iz-se que P ro m eteu foi coagido a ad icio n ar à lam a


prim ordial um a partícula co rtad a de to d a a p arte
is e a p ô r no no sso feitio a força
do d em en te leão.

Iras com destru ição grave estatelaram


T iestes e para altivas cidades foram as causas
últim as p o rq u e p ereceram
20 co m p letam en te e u m exército inso len te

im p rim iu n o s m u ro s u m arad o hostil.


C o n tro la a m en te. T am b ém a m im o fervor d o p eito
m e te n to u na d o ce ju v en tu d e
e para p recip itad o s iam bos
456 L a tim d o Zero a V ergílio em 50 Liçõbs

25 misit fiirentem. nunc ego mitibus


mútãre quaero tristia, dum mihi
fiãs recantatis294amica
opprobriis animumque reddãs.

1.17295

Vélõx amoenum saepe Lucrétilem296


mütat Lycaeõ297Faunus et igneam
defendit aestatem capellis
usque meis pluuiõsque uentõs.

5 impüne tütum per nemus arbutõs


quaerunt latentis et thyma déuiae
õlentis uxõrés mariti298,
nec uiridis metuunt colübräs

nec Martiälis haediliae lupõs


io utcumque dulci, Tyndari299, fistulá
uallés et Vsticae300cubantis
léuia personuére saxa.

di mé tuentur, dis pietas mea


et Músa cordi est. hic tibi cõpia
is mãnàbit ad plénum benigno
rúris honorum opulenta cornü301;

hic in reductã ualle Caniculae


uitábis aestus et fide Téiã302
dicés laborantis in únõ
20 Pénelopén uitreamque Circén303;
Livro 1 das O dbs de HorAcio 457

25 m e lan ço u , en fu recid o . A gora eu p ro c u ro co m coisas suaves


m u d a r as tristes, d esd e q u e p ara m im
te to rn e s am iga - re tra ta d o s os < m eu s> in su lto s -
e m e devolvas < teu > afeto.

1.17

O veloz F auno a m iú d e p a ra o a m e n o L u crétilo


se m u d a d o L iceu e afasta
das m in h as cabras o v erão fogoso
e os v en to s chuvosos.

s T ran q u ilam en te p elo b o sq u e seg u ro as e rra n te s esp o sas


d o fe d o re n to m a rid o p ro c u ra m m e d ro n h o s
e sco n d id o s e to m ilh o s;
n e m as cab ritas te m e m co b ra s verd e s

n e m os lo b o s d e M arte,
ío e n q u a n to co m flauta doce, ó T ín d a ris,
eco aram os vales e os lisos ro c h e d o s
d a reclin an te U stica.

O s deu ses o lh a m p o r m im . A os d e u se s m in h a p ie d a d e
e < m in h a> M u sa é g rata. A q u i a a b u n d â n c ia d as h o n ra s
is d o c am p o fluirá p a ra ti em p len o , o p u le n ta ,
d e c o m o b e n ig n o ;

aqui n u m vale iso lad o ev itarás o calo r


d a can icu la e c o m lira a n a c re ô n tic a
can ta rás as q u e so fre ra m p e lo m e sm o < h o m e m > :
20 P e n é lo p e e a v ítre a C irce;
458 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

hic innocentis põcula Lesbii


dücês sub um bra, nec Sem eleius
cum M arte c o n fu n d et T h y õ n e u s 304
proelia, nec m etu és p ro te ru u m 305

25 suspecta C yrum , nê m ale dispari 306


incontinentis iniciat 307 m anüs
et scindat h aeren tem co ro n am
crinibus im m eritam q u e uestem .

1.I8308

N úllam , Vare, sacrã uite p riu s sêu eris 309 a rb o rem


circa m ite solum T ib u ris e t m o en ia C ãtili310.
siccis o m nia n am d ú ra deu s p ro p o su it, n eq u e
m ordãcês aliter d iffu g iu n t so llicitüdinés.
5 quis post uina grauem militiam aut pauperiem crepat311?

quis n õ n té p o tiu s, B acche pater, téq u e, d ecèn s Venus?


ac nê quis m od ici tran siliat m u n e ra L ib eri
C entaurea m o n e t c u m L ap ith is rixa su p e r m e rõ 312
débellãta, m o n e t S ithoniis n õ n leuis E u h iu s313,
io cum fãs atq u e nefãs exiguo fin e lib id in u m
d iscern u n t auidi. n õ n ego tê, can d id e B assareu,
in u itu m quatiam , n ec u ariis o b sita 314 fro n d ib u s
sub d iu u m rapiam , saeua te n ê cu m B e re c y n th iõ 315
c o m ü ty m p an a, q u ae su b se q u itu r caecus A m o r sui
is e t tolléns u acu u m p lü s n im iõ G lo ria 316 u e rtic e m
arcãnique Fidés p ro d ig a 317, p e rlü c id io r u itrõ 318.
Livro 1 das O des de H orAcio 459

aqui, taças de in ofensivo < vinho> lésbio


levarás para debaixo da som bra; n em o filho de Sémele,
T io n eu , <suas> brigas com <as> de M arte
m isturará; n e m recearás, c c o m o se fosses> suspeita,

25 o v io len to C iro: q u e c o n tra <ti>, aflitivam ente díspar <na força>,


ele atire as m ão s d esco n tro lad as;
e q ue arran q u e a co ro a agarrada
aos <teus> cabelos e a veste im erecedora <de tal destratam entt».

1.18

N ão plantes n e n h u m a árvore, Varo, de preferência à vinha sagrada


à volta d o solo fértil d e T ib u r e das m uralhas de Cátilo.
A os abstêm ios, pois, d eu s p ro p ô s to d as as coisas duras;
n em as incisivas p reo cu p açõ es fogem de o u tro m odo.
s Q u em é que, dep o is d o vinho, se p õ e a grazinar sobre pesada vida
m ilitar ou sobre a pobreza?
Q uem não prefere <grazinar> sobre ti, pai Baco, e sobre ti, linda Vénus?
£ que n inguém tran sg rid a os d o n s d o m o d erad o L íber -
<é isso que> avisa a cen tá u rea rixa com os Lápitas sobre vinho puro,
<rixa> guerreada; <é o que> avisa Évio não leve para com os Sitónios,
ío q u an d o com fro n teira fina separam o certo e o errado dos desejos,
ávidos. £ u não te agitarei, cân d id o Bassareu,
co n tra a tu a v o n tad e; n e m coisas cobertas com folhagens várias
à luz d o dia trarei. R etém os ferozes tím panos com o berecíntio
corno, os quais o cego A m o r de si m esm o segue,
is e a G lória, lev an tan d o de m ais o pescoço vazio;
e a C onfiança pró d ig a d o que é secreto, m ais transparente que vidro.
460 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

1.19319

M ãter saeua C u p id in u m
T h ébãnaequ e iu b e t m ê Sem elae p u e r
et lasciua L icentia
finitis anim u m red d ere am o rib u s320,
s ü rit m é G lycerae 321 n ito r
splendentis Pariõ m a rm o re pü riu s;
ü rit grata p ro te ru itä s
et uultus nim iu m lü b ricu s aspici,
in m é tõ ta ru èn s V enus
io C y p ru m deseru it, n ec p a titu r S cythãs
e t uersis anim o su m equis
P arth u m dicere n ec q u ae n ih il a ttin e n t322,
hic uiu u m m ih i caesp item 323, h ic
uerbênãs, pu eri, p õ n ite tü ra q u e
is bim i 324 cum patera 325 m eri:
m actãtã u e n ie t le n io r h o stia.

1.20326

V ile p õ tãb is m o d icis S ab in u m


cantharis, G raeca q u o d ego ipse testã
co n d itu m léui327, d atu s in th e a tro 320
cum tibi plausus

5 clare329, M aecénàs, eq u es u t p a te rn i 330


flüm inis ripae sim ul e t iocõsa
re d d e re t laudes tib i V aticàni
m o n tis im ãgõ.
Livro 1 das O des de HorAcio 461

1.19

A cruel M ãe dos C u p id o s
e o filho da tebana Sém ele
e a lasciva L icenciosidade obrigam -m e
a v o ltar o coração p ara am ores term inados.
5 Q ueim a-m e o fulgor de G licera
b rilh an d o de form a m ais p u ra do que o m árm ore de Paros.
O grato atrevim en to queim a,
assim com o o rosto dem asiado lustroso de se ver.
V énus, ru in d o inteira c o n tra m im ,
io deixou C hipre; e não p erm ite que <eu>
cante os C itas nem o P arto corajoso, voltados os cavalos,
n em as coisas qu e não <lhe> dizem respeito.
P o n d e aqui para m im u m tufo de relva fresca,
rapazes; < po n d e> aqui verbenas e incensos
is co m um a taça de v in h o de dois anos:
<Vénus> chegará m ais am ena, sacrificada a vitim a.

1.20

B eberás um Sabino co m u m com m o d estas


taças, que eu próprio, n u m jarro grego
arm azenado, selei, q u an d o n o teatro
te foi d ado < u m tal> aplauso,

s ó ilustre, M ecenas, cavaleiro, que


ao m esm o tem p o as m argens d o rio p ate rn o
e o eco jocoso d o m o n te V aticano
te devolveu os louvores.
462 Latim do Zbro a Vergílio em SO Liçõbs

C aecubum e t p ré lõ d o m ita m C a lê n õ
ίο tü b ibês üu am : m ea n e c F alern ae
te m p e ra n t uités n e q u e F o rm ia n i
põcu la collés331.

1.21332

D ian am ten erae d icite u irginès,


in to n su m ; p u eri, d icite C y n th iu m 333
L ãtõ n am q u e su p ré m õ
d ilectam p e n itu s lo u i.

s uõs laetam fluuiis e t n e m o ru m co rn a

q u aecu m q u e a u t g elido p ro m in e t A lg id o 334


nigris a u t E ry m a n th i
siluis a u t u irid is G ragi33S,

uõs T em p e 336 to tid e m to llite la u d ib u s


io nãtãlem que, m arés337, D é lo n A p o llin is
insignem que p h a re trä
frãtern ãq u e u m e ru m ly rã338.

hic 339 bellu m lacrim o su m , h ic m ise ra m fa m e m


p e stem q u e ã p o p u lõ e t p rin c ip e C a e sa re in
is Persas atq u e B rita n n o s
u estrã m õ tu s ag et p rece.
Livro 1 das O des de H oràcio 463

< £ m casa> b e b e rá s C é c u b o e u v a e sp re m id a
10 e m p re n s a d e C ales; n e m as v in h a s falern as
n e m o s m o n te s fo rm ia n o s te m p e ra m
as m in h a s taças.

1.21

C a n ta i D ia n a , ó d e lic a d a s v irg e n s!
R ap azes, c a n ta i o in to n s o C ín tio
e L a to n a p r o f u n d a m e n te a m a d a
p o r J ú p ite r su p re m o .

s V ós < v irg en s c a n ta i> a q u e se a le g ra c o m rio s e c o m a fo lh a g e m d o s


b o sq u e s ,
com ctoda a folhagem> que se destaca no gélido Algido,
ou nos bosques negros do Erimanto
ou do verdejante Grago;

vós, m a c h o s, elevai c o m o m e s m o n ú m e r o d e lo u v o re s
io T e m p e e D e lo s < lu g a r> n a ta l d e A p o io
e o o m b r o ilu stre p e la aljava
e p e la lira fra te rn a .

E ste a g u e rra la c rim e ja n te , e ste a fo m e m ise rá v e l


e a p e ste , d e ju n to d o p o v o e d e C é s a r p rín c ip e ,
is p a ra o s P ersas e o s B re tõ e s
levará, m o v id o p e la v o ssa p re c e .
464 Latim do Zero a VergIlio em SO Lições

1.22340

In teg er341 u ltae scelerisq u e p ü ru s


n o n eget M au ris iaculis n e q u e arcü
nec u en èn ãtis g rau id ã sagittis,
F usce342, p h aretra,

s siue p e r S yrtis343 ite r aestu õ sãs


siue facturus p e r in h o sp itã le m
C aucasum u el q u ae lo ca fab u lo su s
lam b it H yd asp ês344.

n am q u e m é siluã lu p u s in Sabinã,
10 d u m m eam c an to 345 L alagen346 e t u ltra
term in u m cüris u ag o r exp ed itis,
fugit inerm em ,

quäle p o rte n tu m n e q u e m ilitaris


D aunias347 latis alit aescu létis348
is nec Iubae349 tellus g en erat, le o n u m
ãrida nütrix.

p õ n e m é pigris u b i n ü lla cam p is


a rb o r aestiuã re c re a tu r aurã,
q u o d latus m u n d i n e b u la e m a lu sq u e
20 Iu p p ite r350 u rg et;

p õ n e sub c u rrú n im iu m p ro p in q u i
sõlis in terra d o m ib u s n eg ãtã:
d ulce rid e n te m L alagen am ãb õ ,
dulce lo q u e n te m 351.
Livro 1 das O des de H orAcio 465

1.22

<Homem> íntegro de vida, e puro de crime,


não precisa de dardos mauros, nem de um arco,
nem de uma aljava grávida,
ó Fusco, de envenenadas flechas,

s quer esteja para fazer viagem pelas tórridas


Sirtes, quer pelo inóspito Cáucaso,
quer pelos lugares que lambe
o fabuloso Hidaspes.

Pois de mim, numa floresta sabina, um lobo


to fugiu enquanto eu cantava a minha Lálage e além
das fronteiras vagueava, expulsas as preocupações -
<de mim que estava> desarmado,

um monstro que nem a militarista Dáunia


alimenta nos seus amplos carvalhais,
is nem a terra de Juba produz, árida
ama de leões.

Põe-me nos campos estéreis onde nenhuma árvore


é refrescada pela brisa estivai,
uma parte do mundo que névoas e um desfavorável
20 Júpiter oprime<m>;

põe-me debaixo do carro demasiado próximo


do Sol em terra negada a casas:
amarei Lálage, que sorri docemente,
que fala docemente.
466 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

1.23352

Vitãs inuleõ353mê similis, Chloé354,


quaerenti pauidam montibus ãuiis
mãtrem nõn sine uãnõ
aurãrum et silüae metü.

5 nam seu mõbilibus uêris355inhorruit


aduentus foliis seu uiridês rubum
dimõuère lacertae,
et corde et genibus tremit.

atqui nõn ego té tigris ut aspera


io Gaetúlusue356leõ frangere persequor:
tandem désine mãtrem
tempestiua sequi uirõ357.

1·24358

Quis désideriõ sit pudor aut modus


tam cari capitis359? praecipe360lügubris
cantüs, Melpomene, cui liquidam pater361
uõcem cum cithara dedit.

s ergo Quintilium362perpetuus sopor


urget! cui Pudor et Iustitiae soror,
incorrupta Fidés, nudaque Veritas
quando ullum inueniet363parem?

multis ille bonis flébilis occidit,


io núlli flébior quam tibi, Vergili.
tü fhistrã pius, heu, nõn ita créditum364
poscis Quintilium deõs.
Livro 1 das Odes de Horácio 467

1.23

Evitas-me com um gamo parecida, ó Cloe,


<um gamo> que procura nos montes intransitáveis
a mãe receosa, não sem medo escusado
das brisas e da floresta.

s Pois quer se a chegada da primavera estremece


nas folhas movediças, quer se as verdes lagartas
moveram a amora silvestre -
<o gamo> treme tanto no coração como nos joelhos.

Porém nem como áspera tigresa nem como


ío getúlico leão eu te persigo para te esmagar.
Finalmente deixa a <tua> mãe;
<estás> madura para seguires um homem.

1.24

Para a saudade de tão querida cabeça que pudor


ou que medida poderá haver? Ensina lúgubres
cantos, Melpómene, a quem <teu> pai deu,
com a citara, uma límpida voz.

5 E assim o sono perpétuo oprime Qpintílio!


Quando é que o Pudor e a irmã da Justiça,
a Fé incorrupta, e a nua Verdade
encontrará alguém comparável a ele?

Ele morreu chorado por muitos <homens> bons,


ío por nenhum mais chorado do que por ti, Vergilio.
Em vão pedes, pio, aos deuses por Quintilio,
que não assim <lhes deveria ter sido> confiado.
468 Latim do Zero a V ergílio em 50 Liçõbs

quid si Thrêiciõ blandius Orpheõ


auditam moderére365arboribus fidem?
is num uänae redeat sanguis imägini
quam366uirgâ semel horrida,

nõn lènis precibus fäta reclüdere,


nigro compulerit Mercurius367gregi?
durum, sed leuius fit patientia368
20 quidquid corrigere est nefãs.

1.25369

Parcius iunctäs quatiunt fenestras370


iactibus crébris371 iuuenés proterui,
nec tibi somnos adimunt, amatque
iinua limen372,

5 quae prius multum facilis373mouébat


cardines; audis minus et minus iam
«mé tuõ longãs pereunte noctés,
Lydia, dormis?».

inuicem moechos anus374arrogantis


ίο flébis in sõlõ leuis angiportü,
Thrãciõ bacchante375magis sub inter-
lünia uentõ,

cum tibi flágrãns amor et libidõ,


quae solet mãtrés furiãre equõrum376,
15 saeuiet circã iecur ulcerõsum,
nõn sine questü
Livro 1 das Odes de HorAcio 469

£ se, mais encantador do que o trácio Orfeu,


manejasses a lira escutada pelas árvores?
is Será que o sangue regressaria à vã imagem
uma vez que, com hórrida verga,

Mercúrio, pouco brando para abrir os fados por causa de preces,


a compelisse <a juntar-se> ao negro rebanho?
Duro. Mas a paciência toma mais leve
20 tudo aquilo que é proibido alterar.

1.25

Mais parcamente agitam as janelas fechadas


com arremessos seguidos os jovens atrevidos,
nem te tiram os sonos; e a porta
ama a soleira,

s <porta essa> que antes muito movimentava os fáceis


eixos; já ouves cada vez menos
«Percorrendo eu, <que sou> teu, longas noites,
dormes, ó Lídia?».

Por tua vez chorarás, velhota, os libertinos altivos


ío num beco solitário, destituída,
com o vento trácio a delirar de mais
em <noites> sem luar,

quando para ti o amor flamejante e o desejo


que costuma enlouquecer mães de cavalos
is se assanhar no teu fígado ulceroso
<e> não sem queixa <tua>,
470 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

laeta quod púbês hedera uirenti


gaudeat pullã377magis atque myrtõ,
âridãs frondis hiemis sodali
20 dedicet Hebro378.

1.26379

Müsls amicus tristitiam et metus


tradam proteniis in mare Creticum
portãre uentís, quis sub Arcto
rèx gelidae metuatur õrae,

s quid Tiridaten380terreat, ünicé


sécürus381. õ quae fontibus integris382
gaudés, apricos383necte flõrês
necte meõ Lamiae384coronam,

Pipléa385dulcis! nil sine té mei


io prõsunt honõrès. hunc fidibus nouls,
hunc Lesbio sacrare plectro386
téque tuãsque decet sorõrés.

1.27387

Nãtls in üsum laetitiae scyphis388


pugnare Thracum est. tollite barbarum
mõrem uerécundumque Bacchum
sanguineis prohibéte rixis.
Livro 1 das O des de H orácio 471

porque a exultante rapaziada com hera viçosa


se alegra mais do que com mirto cinzento
<e> dedica ramagens secas ao Hebro,
20 amigo do inverno.

1.26

Amigo das Musas, lançarei tristeza e medos


aos ventos violentos para levarem
para o mar de Creta; que rei de região gelada
no extremo norte possa ser receado,

s que coisa possa amedrontar Tiridates: <sobre isso me sinto>


absolutamente indiferente. Ó tu que com fontes puras
te regozijas, tece flores solares,
tece uma coroa para o meu Lâmia,

Píplea doce! De nada valem sem ti


io as minhas homenagens. Santificar este <Lâmia> com liras novas,
<santificar> este <Lâmia> com lésbio plectro
<é o que> fica bem a ti e às tuas irmãs.

1.27

Nascidas as taças para o uso da alegria,


lutar <com elas> é próprio dos Trácios. Afastai
<esse> costume bárbaro e protegei Baco respeitável
de rixas sangrentas.
472 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

5 uínõ et lucernis Mêdus acinacés389


immãne quantum discrepat, impium
lênite clãmõrem, sodãlés,
et cubitõ remanête pressõ.

uuJtis seuèri mé quoque súmere


ío partem Falerni? dicat Opuntiae
fräter Megillae390, quõ beãtus
uulnere, quã pereat sagittã.

cessat uoluntás? nõn aliã bibam


mercéde. quae té cumque domat Venus,
15 nõn érubescendis adürit
ignibus, ingenuõque391 semper

ámõre peccás. quidquid habés, age,


dépõne tütis auribus, ã miser!
quanta labõrãbãs Charybdi392,
20 digne puer meliõre flammä!

quae sãga, quis té soluere Thessalis


mãgus uenénis, quis poterit deus?
uix illigátum té triformi
Pégasus expediet Chimaerâ393.

1.28394

Té maris et terrae numerõque carentis harénae


mensorem cohibent, Archyta395,
pulueris exigui prope litus parua Matinum 396
munera, nec quicquam tibi prodest
ãérfãs temptasse dom õs animõque rotundum
Livro 1 das O des de H orAcio 473

5 Com vinho e candeias, como a adaga persa


destoa completamente! O ímpio
clamor suavizai, amigos,
e permanecei de cotovelo encostado <no leito>.

Quereis que também eu beba a minha parte


io de seco Falerno? Que diga o irmão
de Megila de Opunte com que ferida,
com que flecha ele morre feliz.

Acaba a vontade? Não beberei de outra


forma. Seja quem for a Vénus que te doma,
is não <te> queima com fogos que te façam
corar, pois sempre com ingênuo

amor tropeças. O que tens, vá lá,


deposita-o <nestes> ouvidos seguros! Ah, desgraçado!
Com que Caríbdis tens sofrido trabalhos,
20 rapaz digno de chama melhor!

Que feiticeira, que mago poderá soltar-te


com tessálicos venenos, que deus?
A custo, ligado <como estás>, da Qiiimera
triforme Pégaso te destrinçará.

1.28

A ti, <que> do mar e da terra e da areia carente de número


<foste> mensor, retêm, ó Arquitas,
pequenos dons de exíguo pó perto do litoral matino;
nem de nada te aproveita <o facto de>
s teres experimentado as mansões aéreas nem com o espírito
474 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

percurrisse polum moritürõ.


occidit et Pelopis genitor397, conuiua deorum,
Tithõnusque remotus in aurás398,
et Iouis arcanis Minõs admissus, habentque
10 Tartara Panthoiden399iterum Orco
demissum, quamuls clipeõ Troiana refixõ
tempora testatus nihil ultra
nemos atque cutem morti concesserat atrae,
iüdice tê nõn sordidus auctor
is nãtúrae uêrique. sed omnis üna manet nox
et calcanda semel uia leti,
dant aliõs Furiae toruõ spectacula Marti;
exitio est auidum mare nautis;
mixta senum ac iuuenum densentur funera; nüllum
20 saeua caput Proserpina fugit400.
mê quoque dêuexi rabidus401 comes Õriõnis
Illyricis Notus obruit undis,
at tü, nauta, uagae né parce malignus402harênae
ossibus et capiti inhumãtõ403
25 particulam dare: sic, quodcumque minäbitur Eurus
fluctibus Hesperiis, Venusinae404
plectantur405siluae té sospite, multaque mercês
unde potest tibi défluat aequõ
ab Ioue Neptünõque sacri custode Tarenti.
30 neglegis immeritis nocitüram
postmodo té406nãtis fraudem committere? fors et
débita iüra407uicésque408superbae
té maneant ipsum: precibus nõn linquar inultis,

téque piacula nulla resoluent.


35 quamquam festinas, nõn est mora longa; licébit
iniectõ ter puluere currãs409.
Livro 1 das O dbs de H orAcio 475

morituro teres percorrido o polo arredondado.


Até o pai de Pélops morreu, conviva dos deuses,
e também Titono, removido para as brisas,
e Minos, admitido aos segredos de Júpiter. Os lugares
10 do Tártaro retêm o filho de Pântoo, de novo para o Orco
enviado, embora, por meio do escudo retirado os troianos
tempos testemunhando, mais nada além
de nervos e de pele ele concedesse à negra morte,
<ele que> no teu juízo não é despicienda autoridade
is da natureza e da verdade. Porém, uma noite aguarda todos
e a via da morte é calcada só uma vez.
As Fúrias dão uns como entretenimento para Marte ameaçador;
o mar ávido é morte para os marinheiros.
Os óbitos de velhos e de novos adensam-se juntos.
20 A cruel Prosérpina não evitou nenhuma cabeça.
A mim também o Noto, rábido companheiro do inclinado Orion,
aniquilou nas ondas da llíria.
Mas tu, nauta, não negues, mesquinho, dar uma partícula
de errante areia aos meus ossos e cabeça insepulta;
2s Assim, seja o que for que o Euro ameaçar
com as ondas ocidentais, que as florestas venusinas
<o> apanhem, estando tu a salvo; e que muita vantagem
flua para ti donde pode <originar>: do equânime
Júpiter e de Neptuno, protetor de Tarento sagrado.
30 Desdenhas <o risco de> cometer uma fraude que será nociva
aos posteriormente de ti nascidos que o não merecem?
Qpe sorte, juros devidos e retribuições soberbas
te esperem! <Se> eu for abandonado, <não o serei> com imprecações
sem vingança;
e nenhuns desagravos te absolverão.
35 Embora estejas com pressa, a demora não é longa: será lícito
que sigas viagem, atirado três vezes o pó.
476 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

1.29410

Icci411, beatis nunc Arabum inuidês


gãzls412et acrem militiam parâs?
nõn ante dèuictis Sabaeae
regibus horribilique Mêdõ

5 nectis catênãs? quae tibi uirginum


spõnsõ necãtõ barbara seruiet?
puer quis ex aulã capillis
ad cyathum413statuêtur unctis,

doctus sagittas tendere Séricas


io arcü paterno? quis neget arduis
prõnõs relabi posse riuõs
montibus et Tiberim reuerti

cum tü coemptos undique nobilis


libros Panaeti414Socraticam et domum
is mütãre loricis Hibêris,
pollicitus meliora, tendis?

1.30415

Õ Venus, régina Cnidi Paphique,


sperne dilectam Cypron et uocantis
túre té multõ Glycerae decoram
trãnsfer in aedem416.

5 feruidus técum puer et solútis


Gratiae zonis properentque Nymphae
et parum comis417sine té Iuuentás
Mercuriusque418.
Livro 1 das Odes de H oràcio 477

1.29

ício, agora invejas os tesouros felizes dos Árabes


e preparas uma expedição militar feroz?
Para os até agora invictos reis de Sabá
e para o temível Medo

s fabricas correntes? Que bárbara dentre as virgens


te servirá, depois de morto o noivo <dela>?
Que rapaz da <régia> corte com cabelos perfumados
estará junto da <tua> taça,

<ele que fora> ensinado a disparar flechas chinesas


ío com o arco paterno? Quem negará que rios em declive
possam subir íngremes montanhas
e que o Tibre seja revertido,

quando os livros reunidos de toda a parte


do nobre Panécio e a casa socrática
is avanças para trocar por couraças ibéricas -
<tu que> prometeras coisas melhores?

1.30

Ó Vénus, rainha de Cnido e de Pafo,


desdenha a amada Chipre e transfere-te
para a elegante casa de Glícera que te chama
com muito incenso.

5 Que contigo se apressem o caloroso rapaz


e as Graças de cintas soltas e as Ninfas
e a (sem ti pouco afável) Juventude -
e Mercúrio.
478 Latim do Z ero a Vergíuo em 50 Lições

1.31419

Qiiid dêdicàtum poscit Apollinem420


uãtês? Quid orat dê patera421 nouum
fundens liquorem? nõn opimae
Sardiniae segetès ferãcês,

s nõn aestuosae grata Calabriae


armenta, nõn aurum aut ebur Indicum,
nõn rura quae Liris quiêtã
mordet aquã, taciturnus amnis.

premant Calênã falce422, quibus dedit


io Fortüna uitem, diues et aureis
mercator exsiccet culullis423
uina Syra reparata merce,

dis carus ipsis, quippe ter et quater


annõ reuisêns aequor Atlanticum
is impüne. mê pascunt oliuae
mè cichorea leuêsque maluae424.

firüi paratis et ualidõ mihi,


Lãtõe, dõnés, at, precor, integra
cum mente, nec turpem senectam
20 dégere nec cithara425 carentem.

1.32426

Poscimur427, si quid uacui428sub umbrã


lüsimus técum, quod et hunc in annum
uiuat et plüris, age, dic Latinum,
barbite, carmen429,
Livro 1 das O des de H orácio
479

131

Que pede o vate a Apoio acabado de ser dedicado?


Qpe reza ele derramando vinho novo da taça?
Não as searas férteis
da rica Sardenha;

s não os gratos rebanhos da escaldante Calábria;


não ouro nem indico marfim;
não propriedades rústicas que o Liris
morde com água tranqüila, rio taciturno.

Que possam podar com foice calena aqueles a quem


ío a Fortuna deu uma vinha; que o rico mercador
esvazie de dourados copos
vinhos comprados com mercadoria síria,

caro ccomo ele é> aos próprios deuses, já que três e quatro vezes
por ano revê o mar Atlântico
is impunemente. A mim alimentam-me azeitonas,
a mim chicória e leves malvas.

Que me concedas fruir, com saúde, das coisas que tenho,


ó filho de Latona, te peço, <e> estando eu bem
de cabeça <me concedas> não passar uma velhice
20 diminuída nem da citara carente.

132

Pedem-nos <um poema>. Se, disponíveis, algo à sombra


tocámos contigo que não só este ano
viva mas muitos outros, vá, diz, ó lira,
um canto latino,
480 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

s Lesbiõ primum modulate dm430,


qui ferõx bellõ, tamen inter arma
siue iactätam religärat üdö
lítore nãuim,

Liberum et Müsãs Veneremque et illi


io semper haerentem Puerum431 canêbat
et Lycum nigris oculis nigrõque432
crine decõrum.

õ decus Phoebi et dapibus suprémi


grata testüdõ433Iouis, õ laborum
is dulce lenimen mihi cumque434salue
rite uocanti.

I.33435

Albi436, né doleãs plüs nimiõ memor


immitis Glycerae437, neu miserabilis
décantés elegõs, cür tibi iünior
laesã praeniteat fide.

5 insignem tenui fronte Lycõrida438


Cyri torret amor, Cyrus in asperam
déclinat Pholoên439; sed prius Apulis
iungentur capreae lupis,

quam turpi Pholoé peccet adultero440,


io sic uisum Veneri, cui placet imparis
formäs atque animõs sub iuga ãénéa
saeuõ mittere cum iocõ.
Livro 1 das O des de Horàcio 481

5 <lira> primeiro modulada pelo cidadão de Lesbos,


que, valente na guerra, contudo no meio das armas -
ou se atracara a nau abalada
na húmida praia -

Liber e as Musas e Vénus e o a ela


ío sempre agarrado Menino cantava,
assim como Lico dos olhos negros e belo
devido ao negro cabelo.

Ó adorno de Febo, tartaruga grata aos festins


de Júpiter supremo; ó dos trabalhos
is doce lenitivo, sê por mim, que te invoco, de qualquer modo
saudada, desde que religiosamente.

1.33

Álbio, não sofras de mais lembrado


da dura Glícera, nem te ponhas a cantar patéticos
versos elegíacos <perguntando> porque um mais novo do que tu
brilha em primeiro plano, ferida a fidelidade <prometida>.

5 A Licóris, conhecida pela testa pequena,


abrasa o amor de Ciro; Ciro desdenha<-a>
em prol da áspera Fóloe; mas mais cedo cabras
se juntarão a lobos apúlios

do que Fóloe tropece com tão feio amante,


ío Assim pareceu <bem> a Vénus, a quem apraz
incompatíveis formas e espíritos sob jugos brônzeos
atirar, com cruel folguedo.
482 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

ipsum mè melior cum peteret Venus,


grata dêtinuit compede441Myrtalé442,
is libertina fretis acrior Hadriae
curuantis Calabros sinus.

1.34443

Parcus444deorum cultor et infrequéns


insanientis dum sapientiae
consultus erro445, nunc retrorsum
uéla dare atque iterare cursüs

5 cõgor relictos, namque Diespiter


igni corusco nübila diuidèns
plérumque, per pürum tonantis
égit equõs uolucremque currum,

quõ brúta tellus et uaga flümina,


io quõ Styx et inuisi horrida Taenari446
sédés Atlanteusque finis447
concutitur, ualet ima summis

mütãre et insignem attenuat deus,


obscüra prõméns44*. hinc apicem449rapax
is Fortüna cum stridõre acütõ
sustulit, hic posuisse gaudet.
Livro 1 das Odes de Horàcio 483

Quando a mim mesmo uma Vénus melhor procurou,


com grata corrente me deteve Mírtale,
is uma <escrava> liberta mais acre do que as ondas do Adriático,
ele que arredonda as enseadas da Calábria.

1.34

Parco e infrequente cultor dos deuses <eu era>,


no tempo em que me enganava como perito
de louca sapiência. Agora, para trás
a dar as velas e a repisar percursos

5 abandonados sou obrigado: pois Júpiter,


dividindo as nuvens com fogo coruscante
a maior parte das vezes, pelo <céu> limpo
conduziu os trovejantes cavalos e o carro alado,

devido ao qual a terra pesada e os rios errantes,


ío devido ao qual a Estige e a horrenda morada
do detestado Ténaro e o limite Adântico
é sacudido. Para transformar coisas baixas em altas

deus tem poder; e ele reduz o insigne,


promovendo <pessoas> obscuras. Daqui
is a Fortuna rapace levantou uma coroa
com grito agudo; aqui se alegra de <a> ter posto.
484 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

1.354S0

Õ dlua, grãtum quae regis Antium451,


praesèns uel imõ tollere dê gradü
mortale corpus uel superbõs
uertere funeribus triumphos452,

s té pauper ambit sollicita prece


rüris colõnus, té dominam453 aequoris
quicumque Bithyna lacessit
Carpathium pelagus carina454.

té Dãcus asper, té profiigi Scythae455


io urbêsque gentêsque et Latium ferõx
régumque mãtrês barbarorum et
purpurei metuunt tyranni,

iniüriõsõ né pede prõruãs


stantem columnam, neu populus frequêns
is «ãd arma!» cessantis, «ad arma!»456
concitet imperiumque frangat.

té semper anteit saeua Necessitàs457,


clãuõs trabalis et cuneõs manü
gestâns aénã, nec seuérus
20 uncus abest liquidumque plumbum458.

té Spés et albõ rãra Fidés colit


uélâta pannõ, nec comitem abnegat
utcumque mutãtã potentis
ueste domõs inimica linquis.
Livro 1 das O des de H orAcio 485

1.35

Ó deusa, que reges o grato Âncio,


presente ou para elevar do grau mais baixo
um corpo mortal ou para atirar ao chão soberbos
triunfos por meio de funerais!

5 A ti implora com solícita prece o pobre colono


<como senhora> da propriedade rural; a ti, como senhora do mar,
<implora> qualquer um que tenha provocado o pélago
carpátio com quilha bitínia.

De ti o áspero Dácio, de ti os Citas fugitivos


io e as cidades e as gentes e o Lácio feroz
e as mães de reis bárbaros
e purpureos tiranos têm medo,

não vás tu, com pé insolente, atirar abaixo


uma coluna que está de pé, nem vá o povo reunido
is incitar «Às armas! Às armas!» os relutantes
e quebrar o império <dos tiranos>.

À tua frente vai sempre a cruel Necessidade,


pregos de traves e cunhas trazendo
na brônzea mão, nem o severo
20 gancho está ausente e líquido chumbo.

De ti a Esperança e a rara Fé cuida,


velada com pano branco, nem renega o amigo
quando, de veste mudada,
abandonas, <agora> inimiga, casas poderosas.
486 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

25 at uulgus infidum ut459meretrix retro


periüra cédit460, diffugiunt cadis
cum faece401 siccatis amici
ferre iugum pariter dolosi.

serués462itürum Caesarem in ultimos


30 orbis Britànnõs et iuuenum recéns
exãmen463Éõis timendum
partibus Õceanõque mbrõ464.

heu heu, cicatricum et sceleris pudet


frãtrumque. quid nõs düra refugimus
35 aetas? quid intactum nefasti
liquimus? unde manum iuuentus

mètü deorum continuit? quibus


pêpercit465ãris? õ utinam nouã
incüde466diffingãs retüsum in
40 Massagetãs Arabãsque femim l467

1.36468

Et türe et fidibus iuuat


plãcãre et uituli sanguine débito
custõdés Numidae469deõs;
qui nunc Hesperia sospes ab ultima470
5 cãris multa sodalibus,
nüllís plúra tamen diuidit õscula
quam dulci Lamiae471, memor
actae nõn aliõ rége472puertiae
mútãtaeque simul togae473,
io Cressá né careat pulchra diés notà474,
Livro 1 das O des de H orAcio 487

25 Porém o povo infiel qual meretriz perjura


afasta-se; dispersam-se, secas as taças
com a borra, os amigos <demasiado> dolosos
para aguentar o jugo equitativamente.

Que salves César que irá para os últimos <habitantes>


30 do mundo, os Bretões, e o enxame recente
de jovens temido pelas regiões aurorais
e pelo oceano Vermelho.

Ai, ai! Envergonha<-nos a lembrança> das cicatrizes


e do crime de irmãos. O que nós, dura idade, evitámos?
35 O que, nefastos, intacto
deixámos? Donde a juventude

reteve a mão por temor dos deuses? Quais


altares poupou? Oh, quem dera que com nova
bigorna refaças a espada embotada
40 contra Masságetas e Arabes!

1.36

Com incenso e com liras apraz


aplacar - e com o sangue devido de um vitelo -
os deuses protetores de Númida,
que <chegado> são e salvo da Hespéria última agora
5 aos queridos amigos muitos <beijos>
oferece, porém a nenhuns <deles> beijos em maior número
do que ao doce Lâmia, lembrado
da pretérita meninice, quando outro rei não havia,
e da toga mudada ao mesmo tempo.
io Que o belo dia não careça de nota cretense,
488 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

neu promptae475modus amphorae,


neu morem in Salium476sit requies pedum,
neu multi Damalis477meri
Bassum Thrèiciã uincat amystide478,
15 neu desint epulis rosae
neu uiuãx apium neu breue lilium,
omnés in Damalin putris479
dêpõnent oculõs, nec Damalis nouõ
diuellêtur adultero480
20 lasciliis hederis ambitiosior481.

1.37482

Nunc est bibendum, nunc pede libero


pulsanda483tellus, nunc Saliaribus484
omãre puluinar deorum
tempus erat dapibus, sodãlês.

s antehac485nefas dèprõmere Caecubum486


cellis auitis, dum Capitolio
regina487dementis ruinas
funus et imperio parabat

contãminãtõ cum grege turpium


io morbõ uirõrum488, quidlibet impotens
spérãre fortünãque dulci
ébria489. sed minuit furorem

uix üna sospes nãuis ab ignibus490


mentemque lymphatam Mareotico491
is rêdégit in uèrõs timõrés
Caesar ab Italia uolantem
Livro 1 das O des de H orácio

nem <haja> limite para a ânfora tirada,


nem haja descanso dos pés segundo o modo sálio,
nem Dâmalis <bebedora> de muito vinho
vença Basso bebendo de um trago à maneira trácia,
is nem faltem no banquete rosas,
nem aipo longevo, nem o breve lírio.
Todos porão em Dâmalis
os olhos lânguidos; nem Dâmalis ao
novo amante será arrancada,
20 mais pegajosa do que heras lascivas.

1.37

Agora <sim> deve-se beber; agora com pé livre


se deve calcar a terra; agora com sálios banquetes
de ornar o leito dos deuses
<já> era tempo, ó amigos.

s Antes não era permitido tirar <vinho> cécubo


dos armazéns familiares, enquanto para o Capitólio
a rainha preparava ruínas dementes
e morte para o império,

com <sua> manada imunda de homens torpes


ίο pela perversidade, <mulher> descontrolada <a ponto de>
esperar qualquer coisa que fosse, ébria
pela doce fortuna. Mas diminuiu<-lhe> o furor

uma nau salva a custo dos fogos;


e a mente marada por <vinho> mareótico
is César reorientou para temores verdadeiros,
pressionando com remos
490 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

rèmis adurgens, accipiter uelut


mollis columbas aut leporem citus
uênãtor in campis niuälis
20 Haemoniae492, daret ut catenis

fatale monstrum493; quae generosius


perire quaerens nec muliebriter
expãuit ensem nec latentis
classe citã reparãuit õrãs,

25 ausa et iacentem uisere regiam


uultü serênõ, fortis et asperãs
tractare serpentis, ut atrum
corpore combiberet uenénum,

dêliberãtã morte ferocior


30 saeuis Liburnis494scilicet inuidêns
priuãta495 dédücí superbõ
nõn humilis mulier triumpho496.

1.38497

Persicos odi, puer498, apparãtüs499.


displicent nexae philyrã corõnae;
mitte sectari, rosa quõ locorum
séra morétur.

5 simplici myrtõ nihil allabõrés


sédulus cürõ500. neque té ministrum
dédecet myrtus neque mé sub artã
ulte bibentem501.
Livro 1 das O des de H orAcio 491

a que fugia de Itália - como um falcão


<perseguindo> delicadas pombas ou um rápido
caçador <perseguindo> uma lebre nos campos da nevada
20 Hemónia - para dar aos grilhões

o monstro fatal; ela que, mais dignamente


procurando perecer, nem femininamente
temeu a espada nem com armada rápida
procurou praias escondidas,

25 e ousou mirar o palácio prostrado


com semblante sereno, corajosa <a ponto de>
manejar ásperas serpentes, para beber
com o corpo o negro veneno;

decidida a morte, mais feroz <se tornou>,


30 por cruéis <naus> liburnas decerto desdenhando,
destituída, ser levada para o soberbo
(mulher não humilde!) triunfo.

1.38

Pérsicos aparatos, ó rapaz, detesto.


Desagradam<-me> coroas entretecidas com tília.
Desiste de procurar em que lugar se demora
uma rosa tardia.

5 Qpe ao simples mirto nada acrescentes,


zeloso, eu cuido; nem, como criado, te
fica mal o mirto - nem a mim, sob ajustada
vinha bebendo.
Notas às O des

1 O estabelecimento do texto latino é da minha responsabilidade. Baseei-me nas informações


contidas no aparato critico (muito completo) da edição de Keller/Holder, assim como na con­
sulta das edições de Wickham/Garrod, de Klingner e de Shackleton Bailey. Tal como todos os
amantes de poesia latina, aguardo com a máxima curiosidade a nova edição critica do texto de
Horácio, que está a ser preparada por R.J. Tarrant e que sairá na Oxford University Press.
2 Sobre este tema, o estudo mais relevante é o de H. Dettmer, Horace: A Study in Structure,
Hildesheim, 1983.
3 C£ J.V. Cody, Horace and Callimachean Aesthetics, Bruxelles, 1976.
4 Metro: asclepiadeus menores (------U U — U U - U - ) . Horácio compôs somente mais
duas odes neste verso assim usado de forma repetitiva, como se de hexâmetros se tratasse: a ode
que, significativamente, fecha o Livro 3 (3.30); e a ode central do Livro 4 (4.8).
5 De édó, édere («dar à luz»); não confundir com edó («comer»).
6 A palavra praesidium é expressiva por ser rara na poesia do século i a.C. (Vergilio só a usa uma
vez [Eneida 11.58] e nunca ocorTe em Catulo, Propércio, Tibulo ou nas Metamorfoses de Ovi­
dio). O núcleo da palavra é sedeõ («sentar-se» [verNGL, p. 375], com o prefixo prae-) e tem o
sentido de «segurança», «defesa», «proteção».
7 decus, decoris (neutro): «honra», «glória», «adorno» (cf., em português, «decoração»,
embora o sentido aqui seja mais próximo de «penacho»). O adjetivo dulcis significa «doce»
(mas também «querido»). À ideia de «doce/querido adorno» subjaz a convicção muito
romana de ser altamente presdgiante para uma pessoa de condição social inferior (o pai de
Horácio obtivera a libertação do estatuto de escravo e, como se lê na biografia de Horácio escrita
por Suetónio, limpava o nariz com o braço) receber a amizade de um grande aristocrata.
8 A expressão na sua forma regular seria sunt qut («existem aqueles que»; cf. est qut no v. 19).
A razão do acusativo quõs é a construção impessoal de iuuat («apraz» ): «existem aqueles a quem
apraz» (note-se a diferença relativamente à construção pessoal no v. 23: multõs castra iuuant,
«os acampamentos militares deleitam muitos»). Este tipo de compressão de dois pronomes
num só é um fenômeno freqüente em grego e latim (ver, por exemplo, sunt quibus na Ode 1.7.5).
9 Infinitivo perfeito de colligõ, colligere, collegi, collectum («colher», «recolher», «reunir»).
Dado que o verbo se usa para designar a atividade agrícola de colher frutos e cereais que servem
para a alimentação humana, é significativa a sua utilização num contexto em que aquilo que é
colhido (pó) serve apenas para promover quem colhe, já que o pó em si mesmo não é algo que
tenha utilidade ou valor. Daí a especificação «pó olímpico» (isto é, o pó de Olímpia, onde eram
celebrados os Jogos Olímpicos), ainda que, de acordo com alguns especialistas, Horácio talvez
não tenha escrito Olympicum mas sim Olympicõ (a concordar com curriculõ).
Notas As Odes 493

10 mêta... êuitàta (feminino do singular, nominativo; meta remete aqui para o sentido do
«poste» que marca uma das partes da corrida): o predicado será provavelmente éuehit, no v. 6
(também predicado de palma). Nisbet 8c Hubbard (Vol. 1, pp. 5-6) propõem que se deve suben­
tender de novo iuuat (só que, desta feita, na construção pessoal) como predicado de mêta, pelo
que a tradução seria «existem aqueles a quem apraz com <seu> carro o pó olímpico ter colhido;
e a meta por ferventes rodas evitada <agrada>; e a palma nobilitante exalta os senhores das
terras até aos deuses».
11 palma... nõbilis: a palma da vitória é, por ineréncia, nobilitante. Sublinhe-se a relação etimo-
lógica entre nõbilis («conhecido», «notável», «nobre») e o verbo nõscõ, nõscere, nõui, nõtum
(«conhecer»).
12 O acusativo justifica-se porque se subentende iuuat (v. 4).
12 móbilium... Quiritium (genitivo do plural): os Quirítés são os cidadãos de Roma (Quirinus era
o nome de um deus romano, visto como Rómulo divinizado, cujo culto tinha lugar no Quirinal
[uma das colinas de Roma]). O adjetivo biforme mõbilis («móvel», «rápido», mas também
«volúvel»), aplicado a uma turba de cidadãos, faz pleno sentido literário, desde a multidão de
soldados cuja mobilidade o poeta da llíada (2.144) compara ás ondas do mar, à volubilidade
dos habitantes de Jerusalém no Novo Testamento, que, tendo recebido Jesus com ramos (espe­
cificamente ramos de palmeira em João 12:13), clamam depois para que ele seja crucificada
14 Para o sentido final do infinitivo (um tique próprio da linguagem poética latina, pois na prosa
a ideia de fim é expressa com as variantes que estão elencadas em NGL, p. 328), ver Kühner &
Stegmann, Vol. 1, pp. 680-681.
15 O adjetivo tergeminus significa «tríplice»; honor, honõris significa «honra». A interpretação
mais aceite destas «honras tríplices» assenta na ideia de que Horádo se está a referir aos trés
grandes cargos políticos romanos: edil, pretor e cônsul Existe, no entanto, uma interpretação
mais antiga, segundo a qual o que está aqui em causa é a ideia de «tríplices aplausos» (ou seja,
reiterados aplausos; ver Nisbet 8c Hubbard, Vol I, p. 7).
16 Subentender de novo iuuat («apraz»).
17 horreum, -t: «celeiro» (palavra de etimologia desconhecida).
18 Neutro do pronome quisquis (ver NGL, p. 229), aqui com o sentido de «tudo aquilo que».
19 uerritur: do verbo uerrõ, uerrere, uerrí, uersum («varrer»), cujo supino é igual ao do verbo
uertõ, uertere, uerti, uersum («voltar», «virar», «lavrar»: note-se que a palavra portuguesa
«verso» vem de uersus, uersús, literalmente a linha desenhada pelo arado; depois, em sentido
metafórico, uma linha de palavras escritas).
20 O substantivo feminino area (l.a dedinação) significa «espaço aberto» (como «área» em
português), mas também «eira». Nas eiras da Líbia, o cereal seria espedalraente abundante.
21 Infinitivo defindõ,findere,fidi, fissum (à letra «cortar»; cf., em português, «fissura»). A ideia
de que instrumentos agrícolas «cortam» a terra já vem da poesia grega arcaica (Sólon). Também
a ideia de que uma nau «corta» o mar (v. 14) é tão antiga quanto a Odisséia (3.175). sarculum, -í:
«enxada», «sacho».
22 Os Atáüdas, dinastia grega de Pérgamo, eram vistos pelos Romanos como símbolo de riqueza
e ostentação.
22 trabe Cypriã (ablativo): trabs, trabis (ver NGL, p. 107, n. 29) significa «tábua»; aqui o sentido
metafórico é «nau». A ilha de Chipre era famosa pelas suas excelentes madeiras.
24 Myrtõum... mare (acusativo neutro; o substantivo mare é da 3.a dedinação: ver NGL,
pp. 116-117): o mar de Mirto (onde sopram ventos fortes) fica entre as Cidades e o Peloponesa
25 Icariisfluctibus (dativo; ver OLD s.u. luctor; a construção normal em prosa seria com cum +
ablativo): estas «ondas icárias» aludem à zona do mar Egeu onde ícaro caiu e se afogou
494 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Liçôbs

(supostamente entre as ilhas de Miconos e de Samos). A ondulação forte nesta zona já é


referida na Ilíada (2.144-145). A palavra latina aqui usada para «onda» é fluctus, fluctus.
26 Africus, -i (masculino): vento de sudoeste.
27 õtium (neutro): «lazer» mais do que «ócio» (o seu contrário é negotium, «ocupação»,
«negócio»). O mercador louva o õtium associado ao campo enquanto está perigosamente
embrenhado, no mar alto, em negõtium.
24 oppidi.. / sui (genitivo): oppidum (neutro) significa «vila», «pequena cidade» (urbs, no
geral, refere-se a Roma).
29 rúra: acusativo do plural de rús, rüris (neutro), palavra que designa o campo por oposição à
cidade (e que é curiosamente cognata, segundo o OLD, tanto da palavra inglesa room como da
alemã Raum).
30 reficit: presente de reficiõ, reficere, refêci, refectum («refazer», «restituir», «alentar»; cf., em
português, «refeição»).
31 ratis / quassas (acusativo do plural): ratis, ratis (feminino) significa «jangada» (ou um con­
junto de traves de madeira). Também pode significar a madeira a partir da qual um barco é feito;
ou então, por sinédoque, o próprio barco. O adjetivo quassus é formado a partir do verbo
depoente quatior, quatiri, quãssussum («sacudir»).
32 indoàlis: adjetivo biforme; à letra, na definição do OLD, unteachable ( «ininstruível»). O seu
antônimo, «dócil», provém igualmente do latim doceõ, docére, docui, doctum («informar»,
«ensinar», donde vèm as palavras portuguesas «docente» e «doutor»).
33 ueteris: genitivo do adjetivo uetus (ver NGL, p. 235), «velho». Concorda com Massici
(o monte Mássico na Campânia era famoso pela qualidade dos seus vinhos; Massicum, como subs­
tantivo neutro, designava um vinho dessa região, tal como nós falamos de «um bom Alentejo»).
34 põcula: acusativo do plural de põculum, -t («taça», «cálice»). A raizpõ- é a mesma do verbo
regular da primeira conjugaçãopõtõ («beber»; cf., em português, «potável»).
35 solidõ.~ dê dié: este conceito de «dia sólido» refere-se ao dia de trabalho ininterrupto, que
duraria normalmente até ás três da tarde. O que se diz deste amigo do lazer é que não recusa
tirar uma parte do dia de trabalho para estar no momento, sem fazer nada, ora debaixo de um
medronheiro, ora junto a uma fonte.
34 membra: acusativo do plural de membrum, -i. Sintaticamente, trata-se aqui de um acusativo
de relação (ver NGL, pp. 293-294): «esticado no que toca aos membros sob um verdejante
medronheiro».
37 strátus: participio perfeito do verbo stemo, stemere, stráut, strátum («estender» [especial­
mente roupa sobre uma cama], «esticar»). Cf., em português, «estrado».
33 adL· line caput (acusativo regido por ad): o substantivo neutro da 3.* declinação caput, capitis
significa «cabeça», mas pode também, por extensão de sentido, designar a nascente de um rio
(ou de outro curso de água). A ideia de suavidade contida no adjetivo biforme tênis (aqui na sua
forma neutra, line) contrasta com o alarido estridente que se nos deparará no verso seguinte.
39 lituus, -i significa «trombeta». O caso de lituô é provavelmente ablativo, uma vez que o verbo
permisceo, permiscere, permiscui, permixtum («misturar») se constrói com cum + ablativo ou
então com ablativo simples (ainda que também com dativo: ver a entrada no OLD).
40 mátribus: dativo de agente (ver NGL, p. 298) de máter, matris («m ãe»). Facilmente se
entende que as guerras sejam detestadas pelas mães, que nelas perdem marido e filhos e, em
caso de derrota do povo a que pertencem, ficam sujeitas à violência sexual e à escravização.
41 dêtestáta (nominativo do plural neutro; concorda com bella): participio do verbo depoente
detestor, dêtestãri, detestatus sum («amaldiçoar», «detestar»), cujo participio perfeito é muitas
vezes usado com sentido passivo (como no presente verso). O verbo é formado a partir do
N otas às O des 495

prefixo dê- (que lhe confere um sentido negativo: cf. debilis como contrário de habilis; ou, em
português, «deformar» como contrário de «formar») e testor, testári, testátus sum («invocar
como testemunha», «apelar»).
42 sub Ioue frigido: o nome Iuppiter tem uma declinação curiosa em latim (ver NGL, pp. 117-
-118), a qual deixa ver a proximidade edmológica com o teónimo grego «Zeus». A identifica­
ção de Zeus/Júpiter, enquanto deus celeste e meteorológico, com o céu já está patente na expres­
são de Homero «chuva de Zeus» (ílíada 5.91).
43 uénàtor, uênátõris («caçador»). A palavra deriva do verbo depoente uênor, uenári, uénãtus
sum («caçar»), da mesma raiz indo-europeia que vemos no verbo inglês win.
44 tenerae coniugis (genitivo, dependente de immemor, ver NGL, p. 307). O substantivo coniunx,
coniugis pode significar «marido» ou «mulher» (sendo mais frequente nesta segunda aceção).
Tem por base a palavra iugum («jugo»). O adjetivo tener implica delicadeza e fragilidade, mas
também juventude. Derivam dele dois adjetivos muito parecidos em português: «temo» e
«tenro» (aliás, tener em latim também se pode aplicar a uma came «tenra»).
43 immemor (genitivo immemoris): o sufixo in- confere um sentido negativo (memor significa
«recordado», «lembrado»). Cf., em português, «inconsciente» por oposição a «consciente».
44 catulis...fidêlibus (ablativo de agente; embora a regra geral seja que, no caso de seres animados
[incluindo, portanto, animais: cf. Kühner & Stegmann, Vol. I, p. 377], o agente da passiva seja
expresso por meio de a/ab + ablativo [cf. NGL, p. 310], na poesia pode-nos surgir o ablativo
sem preposição mesmo que se trate de um ser animado [cf. Kühner 8c Stegmann, VoL I, p. 388]).
O substantivo masculino da 2.a declinação catulis, -í significa, à letra, «cachorro» (pois é um
diminutivo de canis, «cão»), mas muitas vezes tem simplesmente o sentido de «cão». Aideia
de fidelidade associada a cães (dai o adjetivofidêlis) é tão antiga quanto a Odisséia homérica (ver
17.291-327).
47 teretês... plagas (acusativo do plural): «redes finas». O adjetivo teres, teretis significa, à letra,
«arredondado», «torneado»; aqui é usado numa aceção rara: «fino». Não confundir o subs­
tantivo feminino da l.a declinaçãoplàga, -ae («rede») complàga, -ae («ferida»).
48 Marsus aper (nominativo): o adjetivo «marso» refere-se à região dos Marsi, que habitavam
a zona da Itália Central onde fica a cidade de Áquila. O substantivo masculino da 2.a declinação
aper, apri significa «javali» (e tem a mesma etimologia da palavra alemã para javali, Eber,
o vocábulo português «javali» é de origem árabe).
49 doctàrum... frontium (genitivo determinativo, a depender do plural neutro praemia, «prê­
mios»): os poetas augustanos (e antes deles já os neotéricos) assumem a identidade de poetae
docti («poetas doutos»). Em doctus confluem várias correntes vindas do passado: a aceção de
sophós (coçóc, «sábio») aplicado ao poeta por Sólon na Grécia Arcaica; a aceção de sophós
como «genial» imaginada por Pindaro no século v a.G; e a preocupação dos scholar poets de
Alexandria, de mostrarem na sua poesia as suas muitas leituras (a referência máxima aqui é
Calímaco). O substantivo frõns, frontis significa «fronte», «testa» (também «rosto»).
A «hera» (planta sagrada de Dioniso/Baco) contrasta aqui de forma interessante com o louro
(planta sagrada de Apoio) no verso final do Livro 3 (cf. 3.30.16).
30 Nymphárumque leuês.~ chori: a ideia de «coro» (de acordo com a etimologia da palavra grega
khorós [χορός]) pressupõe a de dança; as «danças leves» das ninfas com sátiros evocam uma
imagem de agilidade, mas não devemos passar por cima da componente sexual. Os sátiros (seres
híbridos, misto de homens e de bodes) são, por natureza, lubricos e representam a pulsão sexual
desenfreada, ao passo que as ninfas, por eles assediadas e que tipicamente lhes fogem, introdu-
zem o tema do desejo sexual frustrado. Qual será a razão pela qual estas coreografias de sexo
evitado contribuem para a separação entre o poeta e o povo? Talvez porque, para escrever boa
496 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

poesia, não basta apenas a frieza sagrada do gelidum nemus; o calor evocado por estas danças
(de que o sexo é motor) é também indispensável, do mesmo modo que a hera de Dioniso/Baco
é contrabalançada pelo louro de Apoia
51 tíbiàs (acusadvo do plural): o substantivo feminino da l.a dedinação tibia, -ae designa um
instrumento de sopro que pode ter tubo simples ou, como no presente caso (tratando-se do
plural), dupla
52 Euterpe (nominativo do singular; substantivo grego da l.a dedinação; ver NGL, p. 79): uma
das nove Musas («Abem deleitosa»).
53 Polyhymnia (nominativo): outro nome de musa («A de muitos cantos»).
54 Lesbõum_ barbiton (acusativo): o substantivo grego da 2.a dedinação (ver NGL, pp. 87-88)
barbitos, -i designa uma forma de lira; aqui é-lhe aplicado o adjetivo «lésbio», remetendo para
os dois grandes poetas de Lesbos, Alceu e Safo.
u lyricis uàtibus (ablativo): este sintagma ostenta uma combinação expressiva de grego (lyricis)
e de latim (uàtibus). O substantivo uãtês, uátis («profeta», «vidente») é retintamente latino,
ao passo que o adjetivo lyricus é grego. Este novo conceito de «vate lírico» (não havia «líricos»
latinos antes de Horido, como apontam Nisbet & Hubbard, Vol. 1, p. 15) arrasta consigo a ideia
de inspiração divina ou, mais propriamente, de talento «divino».
56 inseres: futuro do indicativo do verbo inserô, inserere, inserui, insertum («inserir», «introdu­
zir», «juntar a»). Há manuscritos que nos dão aqui a ler o presente em vez do futura
57 sublimL. uertice (ablativo instrumental): o substantivo uertex, uerticis tem o sentido de «vór­
tice», mas também designa o topo da cabeça.
M Metro: estrofe sáfica (NGL, p. 391).
59 satis: «o suficiente» (substantivo indeclinável, muitas vezes construído com genitivo parti­
tive [NGL, p. 303], como no presente caso). Da raiz latina sat- temos em português «satisfazer»
e também «saciar».
60 Dativo do pluraL
61 dirae/grandinis (genitivo): o sentido próprio do adjetivo dirus é «ominoso». O substantivo
feminino grando, grandinis significa «granizo».
62 sacras- arcis (acusativo do plural): o substantivo feminino da 3.a dedinação arx, arcis signi­
fica o ponto mais alto (ou politicamente mais importante) de uma cidade, a «cidadela» (espe-
dficamente, no caso de Roma, o Capitólio: ou, no de Atenas, a Acrópole); no entanto, aludindo
a Roma, a palavra no plural pode também assumir como referente as famosas sete colinas. Para
Nisbet & Hubbard (VoL I, p. 22), é na primeira aceção que Horácio emprega aqui a palavra.
43 gentis (acusativo do plural): o substantivo feminino da 3.a dedinação gens, gentis é de tema
em -i- e, por isso, os poetas preferem muitas vezes -is (em vez de -és) como desinéncia do acu­
sativo do plural (ver NGL, p. 92).
64 ni rediret: a conjunção nè seguida de conjuntivo traduz-se facilmente em inglês por meio de
lest, mas é difidl encontrar um paraldo exato noutras línguas. A ideia aqui subjacente é análoga à
da construção a seguir a um verbo que exprime receio (NGL, p. 353). Quanto a rediret, é o imper­
feito do conjuntivo de redeõ («regressar»), um composto de eõ («ir»; ver NGL, pp. 197-199).
63 saeculum (nominativo) Pyrrhae (genitivo): este conceito do «século de Pirra» (ou «idade
de Pirra») refere-se ao grande dilúvio (magnificamente descrito nas Metamorfoses de Ovídio
[1.260-415]), de que Deucalião e Pirra foram os únicos sobreviventes. O receio de que essa
idade regresse tem por base a convicção estoica de que o mundo está sujeito a um ritmo cíclico:
quando todos os astros voltarem à sua posição inicial, tudo começará de novo. A ideia de que
o reset de cada ciclo ocorre por meio de «deflagração» ou de «dilúvio» também é típica do
pensamento antigo.
N otas As O des 497

66 noua monstra (acusativo do plural neutro): o substantivo mõnstrum, -i tem como sentido
primário «prodígio», «portento» (cf. a sua ligação etimológica com o verbo moneô, monere,
monui, monitum, «advertir»); pode significar também «monstruosidade», «monstro». Estes
prodígios/portentos são «novos» no sentido de «inauditos».
67 questae (genitivo do singular): concorda com Pyrrhae. Trata-se do participio do verbo queror,
queri, questus sum («queixar-se», «exprimir descontentamento»).
69 omne... pecus (acusativo do singular neutro): o «rebanho» (pecus, pecoris) do deus marítimo
Proteu é constituído por focas (cf. Odisséia 4.411-413).
69 uisere: infinitivo presente de uisõ («ver», «visitar»; o verbo é formado a partir de uideô).
O exemplo deste verso é citado por Kühner & Stegmann (Vol I, p. 681; cf. também Woodcock,
p. 19) como ilustração do uso final do infinitivo em latim.
70 haesit: perfeito de haereõ, haerere, haesi, haesum («aderir», «agarrar-se a», «pegar-se a»).
71 superiectõ /... aequore (ablativo): o presente verso é a primeira citação no verbete do OLD
referente ao verbo da conjugação mista superiaciõ, superiacere, superiéci, superiectum («to throw
or scatter on top or over the surface»). O substantivo neutro da 3.* declinação aequor, aequoris
significa «superfície», «extensão»; também, por associação evidente, «superfície do mar» ou
até, no geral, «água».
72 pauidae /...dammae (nominativo do plural): já encontráramos o adjetivo pauidus («apavo­
rado») em 1.1.14. O substantivo damma, -ae refere qualquer dpo de fêmea de veado, gazela
ou antílope.
73 litore Etruscõ (ablativo instrumental: cf. Nisbet & Hubbard, Vol. 1, p. 25). A «margem
etrusca» do Tibre é, para alguns comentadores, a sua margem ocidental; outros interpretam
o termo como referindo a costa de Itália a norte da foz do Tibre.
74 déiectum: supino com valor final (NGL, p. 363). Trata-se do verbo déiciõ, dêicere, déiêci, detec­
tum (composto de iaciõ), «derrubar». Este é o único exemplo de um supino com valor final na
produção lírica de Horácio (ver Brink, Vol. Ill, p. 303).
75 Iliae... querenti (dativo): ília (Reia Sílvia) engravidou dos gêmeos Rómulo e Remo e, por ser
virgem vestal, foi atirada ao Tibre como castigo após o nascimento dos bebês (que foram ama­
mentados por uma loba). Segundo uma das tradições, deu-se uma espécie de casamento místico
entre ília e o Tibre (daí que ele seja referido como uxõrius, «atencioso/carinhoso em relação à
esposa»; note-se que uxor, uxõris [«esposa»], por estranho que pareça, tem a mesma raiz de
ox [«boi»] em inglês ou Ochs em alemão; cf. OLD. Talvez a ideia original fosse a associação de
bois à compra de mulheres, tal como se diz na IUada [23.705] que certa mulher vale quatro bois;
ou, na Odisséia [ 1.431 ], que outra vale vinte bois). Querenti é o participio presente (em dativo)
do verbo queror, «queixar-se», «indignar-se» (cf. v. 6). ília está a queixar-se de quê? Uma
interpretação antiga sugere que é do assassínio de Júlio César que ela se queixa; mas, assim
sendo, não faz sentido o advérbio nimium («excessivamente»). O mais provável é que Horácio
a imagine ainda, tantos séculos depois, queixando-se da crueldade de ter sido atirada ao rio.
76 uagus (nominativo; concorda com uxõrius amnis): «errante» (cf. «vaguear», «vagabundo»,
etc.).
77 Ioue nõn probante: ablativo absoluto (NGL, pp. 312-313).
n amnis (nominativo): «rio» (substantivo masculino da 3.a declinação). A raiz indo-europeia
aponta para a ideia de água (sânscrito, àpah, «água»; ver OLD).
79 acuisse: infinitivo perfeito do verbo acuo, acuere, acui, acútum («afiar»; cf. «agudo», «agu­
çado»).
w quõ: pronome relativo (NGL, p. 226) em ablativo (instrumental, NGL, p. 310), construído
com conjuntivo (perirent) por ser uma oração relativa de caracterização (NGL, p. 342).
498 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

91 grauês Persae (nominativo): os Persas (que, na verdade, já não eram os mesmos Persas que
tinham combatido os Gregos na época clássica, mas sim povos a que os Romanos chamavam
Parthi) são «graves» por serem «perigosos».
92 rara: a juventude (iuuentús, iuuentútis) é vista como tendo rareado, tomando-se «rara»,
devido à hecatombe causada pelo estado contínuo de guerra civil em que Roma esteve desde
o inicio do século i a.C. O adjetivo rárus (cognato de έρημος em grego; cf., em português,
«ermo») significa primariamente «frouxo», «poroso», «espaçado», «pouco freqüente».
93 uocet..fafígenh conjuntivos deliberativos (NGL, p. 269).
94 rebus: dativo do plural de ris, rã, «coisa», «assunto». Dativo de vantagem (NGL, pp. 296-298).
99 prece: ablativo do singular de prex, precis (a palavra é mais freqüente no plural e, curiosamente,
não existe nenhum exemplo literário do nominativo do singular), «prece». A raiz indo-europeia
é a mesma da palavra alemã Präge («pergunta»).
96 uirginés sanctae: as virgens vestais.
97 partis (acusativo do plural): no singular, pars, partis significa «parte»; no plural, pode ter
(como no presente caso) o sentido de «papel» (no sentido da «parte» desempenhada por um
ator numa peça de teatro; ou no sentido de «incumbência», «função»).
99 ueniãs: conjuntivo presente de ueniõ, uenire, uéni, uentum («vir»; a sua forma em latim não
dá visualmente a medida da sua relação etimológica com βαίνω em grego e com come em inglês
ou kommen em alemão; todos estes termos provêm de um antigo verbo indo-europeu, *gumiõ).
Pedir a um deus que «venha» já ocorre na poetisa arcaica Safo (fr. 1). Cf. «Vem SenhorJesus»
em Apocalipse 22:20.
99 nübe: ablativo singular do substantivo feminino da 3.* declinação nübis, núbis («nuvem»).
A ideia de um ser divino vestido de nuvem é tão antigo quanto a Jlíada (S. 186; no caso, Apoio).
C£ também o anjo vestido de nuvem em Apocalipse 10:1.
90 candentis umerõs: acusativo do plural; trata-se de um acusativo de relação (NGL, pp. 293-
-294). O substantivo umerus, -í significa «ombro» (cf., em grego, õpoc). O adjetivo candens,
candentis significa «brilhante», «candente». Note-se o oximoro implícito na ideia de os ombros
brilhantes do deus estarem vestidos de nuvem.
91 Erycina ridêns: a deusa «sorridente» é Vénus (tal como Afrodite em Homero é «amiga de
sorrir»), referida como «Ericina» (cf. «linda Ericina», Lusíadas 2.18). Montanha da Sicilia,
Érix era o local de um templo antigo de Afrodite/Vénus, talvez de fundação fenícia. Uma tradi­
ção posterior relata que o templo ruiu na noite em que, lá longe da Sicilia, em Belém, nasceu
Jesus, tendo sido depois reconstruído por Tibério, que, como alegado descendente de Eneias
(tal como Júlio César e Augusto), se considerava familiar da deusa (ver Nisbet & Hubbard,
VoL I, p. 30).
92 Nisbet & Hubbard (Vol. I, pp. 31-32) comentam que o verbo respiciõ constitui o termo
próprio para o olhar de um deus sobre a humanidade, dando um exemplo tirado de Plauto
(Bacchides, 638): deus repiciet nõs aliquis. Poderíamos citar também a Vulgata: quis ut Dominus
Deus noster qui in excelsis habitans humilia respicit in caelò et in terrai (Salmo 112 [= 113 Bíblia
Hebraica]: 5-6).
93 A referência agora é ao deus Marte, pai de Rómulo e, assim, «antepassado» e progenitor
(auctor) dos Romanos.
94 lêuis significa «liso»; não confundir com liuis, «leve».
95 Ver 1.1.28.
96 ãles, alitis: «alado» (como substantivo, «ave»; cf. ãla, -ae, «asa»). O ãles...filius da «alma»
(isto é, «alimentadora») Maia é Mercúrio (deus da eloqüência, mas também do engano e da
mentira), visto como tendo encarnado no «jovem» que é Augusto.
Notas às O des 499

97 O uso de patiêns é curioso neste contexto quase teológico em que um salvador divino
encarna na terra sob forma humana e «aguenta», para salvação da humanidade, a condição
de homem. Nisbet & Hubbard (Vol. I, p. 36) citam não só o caso de Apoio, que «aguentou»
servir na terra (Euripides, Alceste, 1-2), como as famosas palavras da Carta aos Filipenses 2:6-8
a propósito de Jesus Cristo, «que existindo em forma de Deus [...] esvaziou-se a si mesmo
tomando a forma de um escravo, tendo nascido numa semelhança de seres humanos e [...]
rebaixou-se, tendo-se tomado obediente até à morte». Pense-se, neste contexto, na expressão
Christus patiêns.
98 A ideia de que as almas pertencem ao céu e para lá «regressam» depois da morte é uma
novidade filosófica da Grécia Clássica, que contradiz a cultura grega anterior (com a sua imagem
de um Hades subterrâneo - imagem de resto consentânea com a visão de Sheol, lugar dos mor­
tos no Antigo Testamento).
99 O sentido próprio de iniquus é «desigual» (pois é formado a partir do prefixo negativo in +
aequus). Por extensão de sentido, pode significar «descontente», «mal impressionado» com
qualquer coisa (com complemento em dativo).
100 Outro etnónimo clássico para os mesmos Parthi já antes referidos como «Persas».
101 O poema acaba, em apoteose, com o nome da figura a quem é dedicado (Caesar=Augusto)
e com um aparente erro de latim, dado que o sujeito do ablativo absoluto te duce é o mesmo do
verbo sinás. Para mais exemplos desta curiosidade gramatical, ver Kühner & Stegmann, VoL I,
pp. 786-788.
102 Metro: dísticos.
1. glicónico (------ U U - U - )
2. asdcpiadeu menor (------ U U — U U - U - ) .
103 Vénus.
104 Castor e Pólux, os Dioscuros (e a constelação dos Gêmeos).
105 Conjuntivo presente de regõ, regere, rêxi, rectum («dirigir», «guiar»).
106 Ablativo absoluto. O verbo obstringo, obstringere, obstrinxi, obstrictum significa «atar»,
«prender», «constranger».
107 O lápyx é o vento de noroeste, portanto o vento certo e desejável para impelir uma nau de
Itália para a Grécia.
108 rõbur, rõboris (neutro): «carvalho».
109 aes, aeris (neutro): «bronze» (c£ NGL, p. 56, n. 13).
110 trux, trucis (adjetivo): «áspero», «impiedoso». Curiosamente não está etimologicamente
relacionado com «trucidar» (que é formado em latim [trucido, trucidáre] por caedõ precedido
de um prefixo de origem desconhecida), mas sim com «truculento».
111 As Híades (pequeno grupo de estrelas na constelação Touro) são «tristes» pela sua asso­
ciação etimológica à palavra grega para «chuva» (Orróc); em Portugal também dizemos de um
dia de chuva: «Q ue tempo tão triste!» Outra teoria é que o nome se relaciona com sús
(«suíno»; cf. em inglês swine e em alemão Schwein, mas em grego óc).
112 Embora o sentido próprio de fretum, -i seja «canal», «estreito» (onde a água «ferve»; c£
a ligação etimológica com ferueõ e fermentum), na poesia o plural é muitas vezes usado como
sinônimo de «m ar».
113 Trata-se de uma cordilheira de montes no que é hoje a Albânia. O nome, de origem grega,
cujo desenho métrico ( - U U - U - ) lhe permite entrar sem dificuldade neste esquema rítmico,
sugere «altura» (άκρον) e «trovoadas» (κεραυνός, «trovão»). Talvez Horácio lhes aplique o
adjetivo «infames» (de má fama, de má memória) porque lá se perderam alguns navios de
Octaviano após a Batalha de Áccia
soo Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

114 tránsiliô é formado a partir de saliõ, salire («saltar»; cf., em grego, ύλλομαι). A partir da
aceção de «irromper» (OLD s.u. 3) temos o nosso verbo «sair».
115 Embora o sentido próprio de uadum, -i implique uma água onde se tem pé (cf. os verbos
cognatos em inglês to wade ou em alemão waten, «passar a vau», «vadear»), na linguagem
poética pode significar «águas do mar».
116 Infinitivo de perpetior, perpeti, perpessus sum (composto de patior): «sofrer até ao fim»,
«aguentar».
117 Aqui genus, generis (neutro) é usado no sentido de «filho» (OLD s.u. 2). O filho dejápeto
era Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para o dar aos seres humanos.
118 A imagem evocada por este verbo (incumbõ, incumbere, «ficar sobre», «abater-se sobre» ) tor-
na-se mais expressiva pelo facto de o perfeito (incubui) ser igual ao de incubo, incubãre ( « incubar» ).
119 O adjetivo sémõtus significa «distante». No verso, sêmõti concorda com léti (létum significa
«morte»).
lJ0 Composto de rapiõ, o verbo corripio, corripere significa «agarrar», «arrebatar», mas também
«apressar».
121 Isto é, expertus est (perfeito de experior, experiri, «experimentar»).
122 O perfeito deperrumpô («despedaçar», «arrombar») ostenta aparentemente uma quan­
tidade transgressora na última sílaba (cf. NGL, p. 381 [b]), como se explicitasse a transgressão
implícita no «hercúleo trabalho»; por outro lado, pode tratar-se somente de um arcaísmo, visto
que está documentada a desinéncia -eit (3.a pessoa do singular do perfeito) em inscrições arcai­
cas (e há casos análogos em Plauto e Terêncio). No Livro 1 há outro exemplo em 1.13.6. Ver
Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 57 (e exemplos parecidos nas Sátiras: 1.4.82; 1.5.90; 2.1.82; 2.2.47).
122 O sentido próprio de arduus é «alto», «íngreme».
124 põnõ aqui no sentido de «pôr de parte».
125 Metro: dísticos, cujo desenho rítmico ocorre somente nesta ode.
1. tetrámetro dactílico + itifálico ( - U - U — )
2. X - U — + itifálico.
126 O sentido primário de ãcris é «afiado», «pontiagudo» (cf., em grego, átcpoc, «cimeiro»).
Aplicado ao inverno, sugere uma mistura de «cortante» e de «áspero».
127 uicis, uicis (feminino): «mudança», «recorrência», «alternância» (palavra cognata de
Wechsel [«mudança»] em alemão).
128 uér, uêris (neutro): «primavera» (cf. ρήρ em grego dórico; em ático, £ap).
129 O «Favónio» é o Zéfiro (vente de oeste).
130 carina, -at (feminino): «quilha» (por extensão de sentido, «navio»). O seu sentido origi­
nal é «casca de noz» (cf. a palavra genérica, em grego, para qualquer tipo de noz ou castanha,
κάρυον; c£ também sânscrito karakah, «coco»).
111 cãnus (adjetivo, originalmente *càsnus) descreve o branqueamento dos cabelos causado pela
idade (em osco, casnar significa «ancião»), donde «cãs» para cabelos brancos em português;
também se aplica a outros objetos com o sentido de «branqueado».
122 pruina, -ac: «geada». Palavra cognata de freeze (inglês) efrieren (alemão).
122 A expressão Grátiae decentes é inerentemente tautológica, atendendo ao sentido de «gra­
cioso» que aqui devemos adscrever a decéns (cf. OLD s.u. 2b).
124 O sentido do verbo uisõ aqui é «visitar». Há manuscritos que, em vez de uisit, nos dão a ler
úrit («queima»). Embora Nisbet & Hubbard (Vol. I , p. 66) digam de ürit que «it does not
deserve the slightest consideration», era esta a forma que estava presente no texto lido por
Camões, como se vê no v. 17 da ode «Fogem as neves frias», em que o poeta português imitou
o latino: «Enquanto as oficinas / dos Cidopas Vulcano está queimando.»
Notas As O des 501

135 A expressão fãbulaequc Mãttés é enigmática. A interpretação que lhe dou é que fàbulae se
encontra no genitivo do singular (ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, pp. 69-70; e A.S. Hollis, Frag­
ments of Roman Poetry, Oxford, 2007, p. vii).
136 tális, -i (masculino): «dado». Imagina-se aqui a nomeação do «simposiarca» (isto é, «sobe­
rano do banquete») tirada à sorte por meio do lançamento de dados.
137 Horácio atém-se ao estereótipo greco-latino de que a beleza masculina é mais atraente para
pessoas do mesmo sexo quando é imatura; e mais desejada por pessoas do sexo oposto depois
de atingida a maturidade. A ideia está explícita num poema de Fánias (Antologia Grega 12.13)
e implícita no Idílio 13 de Teócrito («Hilas»). Ver M.S. Celentano, «Licida: la passione degli
uomini, 1amore delle donne», Quademi Urbinati di Cultura Classica 18 (1984), pp. 127-135.
,M Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U —U - )
3. ferecrácio ( ------ U U — )
4. glicónico (------ U U - U - ) .
139 O verbo urgeõ, urgére, urgut significa «apertar» e é cognato de würgen («estrangular») em
alemão e de worry em inglês. Os amantes «are not merely talking», como eufemisticamente
comentam Nisbet & Hubbard (Vol. I, p. 74), mas estão embrenhados no próprio ato.
140 O antro (talvez uma cavema artificial, algures num jardim aristocrático) é «grato» porque
o que lá se está a passar (não obstante as conotações de urget) é bem-vindo aos dois interve­
nientes.
141 O adjetivo encontra-se em ablativo, a concordar com té (o verbo fruor constrói-se com
ablativo). A Pirra é aplicado o adjetivo de Afrodite em Homero («dourada Afrodite»; por
exemplo Iliada 3.64).
142 uacuus significa «vazio», mas também «desocupado», «disponível», «descomprome­
tido».
143 Para alguns especialistas, Horácio não escreveu aqui «deus» (deõ), mas sim «deusa» (deae,
isto é, Afrodite, deusa que nasceu do mar). Ver a discussão de Nisbet & Hubbard, VoL I,
pp. 79-80.
144 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U ----- U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U ----- U U - U - )
3. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
4. glicónico (------ U U - U - ).
145 «Serás escrito» no sentido de «serás celebrado». Cf. o Soneto 3 de Milton, «thou shalt be
writ». A ode insere-se num gênero típico da poesia augustana não-épica, a que a crítica moderna
dá o nome de recusãtiõ da epopeia (de que exemplos célebres são a Bucólica 6 de Vergilio [ver
neste livro pp. 275-277], várias elegias de Propércio e a Sátira 2.1 de Horácio. Ver RXXA.M.
Lyne, Horace: Behind the Public Poetry, Yale, 1995, pp. 31-39).
146 Poeta imensamente admirado pelos seus contemporâneos e amigo de Vergilio e de Horácio.
Juntamente com Tuca, preparou (a pedido de Augusto) a Eneida de Vergilio para publicação,
depois da morte do poeta. Ver A.S. Hollis, Fragments of Roman Poetry, Oxford, 2007, pp. 260-262.
147 O adjetivo Maeõnius refere-se a Homero (cf. 4.9.5-6 Maeõnius... / Homêrus). «Meónia»
designava a região onde fica a cidade de Esmirna, uma das várias que se arrogavam ter sido
o berço de Homero.
143 O substantivo ãles, àlitis significa «ave», aqui talvez, em concreto, o cisne. A forma àlite
concorda com Vario (ablativo de agente, sem preposição).
502 Latim do Zero λ V ergílio em 50 Lições

149 Futuro perfeito (e não o homógrafo conjuntivo perfeito: cf. Nisbet & Hubbard, Vol. I,
p. 85). Ver p. 205.
150 Marco Vipsânio Agrípa, o gênio militar que, graças às suas vitórias, consolidou o regime
augustano, e cujo nome vemos ainda hoje na fachada do Panteão em Roma.
151 stomachus, -f significa, tal como em grego (οτόμαχοο), «estômago»; mas em sentido meta­
fórico significa «má disposição», «aborrecimento». O uso do termo por parte de Horácio
sugere alguma distância irônica em relação à «gravidade» da má disposição de Aquiles.
152 O tema da casa cruel dos Atridas tinha servido justamente de inspiração para uma tragédia
chamada Tiestes (perdida, mas elogiada por Quintiliano 10.1.98), escrita pelo próprio Vária
,S3 O adjetivo tenuis surge, na poesia augustana, carregado de segundos sentidos de cariz esté-
dco-literário, servindo como equivalente latino de λεπτός (οϋλεπταλέος), tal como este termo
foi usado por Calfmaco no sentido de «fino», «magro», «subtil» (por oposição a «gran­
dioso»).
154 Embora haja quem interprete a forma como conjuntivo perfeito, também é possível enten-
dè-la como indicativo futuro perfeito. Ver p. 205.
155 A resposta a esta pergunta parece ser «Homero», pois a estrofe alude basicamente ao Canto
5 da Ilíaâa. Mas não estará Horácio a dizer que Vário seria capaz do mesmo - isto é, que não
ficaria atrás de Homero, tal como não ficou atrás dos trágicos gregos no campo da tragédia? Ver
a discussão em Nisbet & Hubbard.
116 Os comentadores discutem o sentido exato de «unhas cortadas». Estarão elas cortadas de
modo a ficar mais afiadas e, por isso, mais cortantes? Ou terá sido intenção de Horácio defla-
donar estas lutas de donzelas e mancebos por meio do pormenor de que elas não recorrem a
armas mais perigosas do que simples unhas - ainda para mais cortadas?
157 Os dois versos finais deste poema permitem diversas interpretações e são retintamente
intraduzfveis. Vacui remete para a ideia de descomprometimento amoroso, ao passo que ürimur
sugere a ideia contrária. Quanto a leués, retoma o sentido estético-literário de tenués (v. 9).
154 Metro: dísticos.
1. hexâmetro dactflico
2. tetrâmetro dactflico.
1S9 Tempi designa um vale na Tessália, famoso pela sua beleza, na zona onde fica o Olimpo.
Note-se que a sua forma em latim é um neutro do plural; também «Tebas» e «Delfos» são
plurais, tanto em latim como em grego (daí que o adjetivo insignis esteja no acusativo do plural).
Esta longa lista de topónimos constitui um priamel (estratégia retórica presente na Ode l.l).
140 A expressão não é inocente, sobretudo depois de termos ouvido únum no verso anterior.
Trata-se de uma alusão ao prólogo dos Aitia de Calímaco, em que o poeta alexandrino se defen­
dia da crítica de não ter escrito «um poema contínuo», dando a entender que seria empresa de
pouco valor. O termo carmen perpetuum ganhará depois um sentido bem mais positivo na aber­
tura das Metamorfoses de Ovídio.
141 A coroa imaginada é de folhas de oliveira, em homenagem à deusa padroeira de Atenas.
A imagem de ela ser colhida «de toda a parte» poderá referir-se ao uso abundante, mas sem
discernimento, dos poetas gregos.
142 Em grego, Argos (Άργοο) é um substantivo neutro (daí aptum). A ideia de que Argos é sítio
apto para cavalos (ou de que Micenas é rica) é um lugar-comum homérico.
143 «Paciente» no sentido em que a virtude mais admirada pelos Espartanos (Lacedemónios)
era a capacidade de aguentar tudo sem queixas: fome, sede, frio, dor, morte.
144 Albúnea é o nome da sibila associada a Tibur. A sua «casa» seria talvez uma gruta ou lapa,
local de culto e veneração.
Notas As O des 503

,6S Anio, -ónis (masculino): afluente do Tibre.


166 Os cursos de água são «móveis» por serem canais de irrigação.
167 dêtergeõ, détergére, détersi, dêtersum: «limpar» (cf., em português, «detergente»).
149 A imagem de «parir» chuvas é associada às próprias nuvens num Hino Órflco (21.1), onde
se lé «nuvens parturientes de chuvas» (νεφέλαι... όμβροτόκοι).
149 Munácio Planco, cônsul em 42 a.C. e fundador da cidade de Lugdunum (hoje Lyon). Pri­
meiramente apoiante de Marco Antônio, passou para o lado de Octaviano em 32 a.C. (alguém
comentou na Antiguidade que ele sofria de uma doença chamada «traição»: c£ Veleio Patérculo
2.83.1). Foi ele quem propôs o titulo de «Augusto» para Octaviano.
170 Horácio ornamenta agora a sua ode, à boa maneira de Pindaro, com um mito, no interior do
qual coloca uma seqüência em discurso direto. O episódio da vida de Teucro a que esta pequena
narração alude está implícito no Ájax de Sófodes (w. 1006-1021) e explícito na Helena de
Euripides (w. 68-163), onde o próprio Teucro explica a Helena a situação que será mais tarde
problematizada por Horácio.
171 Acusativo do singular (o nominativo é Salamis). Também no v. 29.
172 «Lieu» é Baco (Camões fala do «licor que Lieu prantado havia» em Lusíadas 1.49) e, por
extensão de sentido, o próprio vinho. Como «Lieu», a partir do seu étimo grego, significa
«desatador», surge um contraste expressivo na estrofe com a noção de «atar» (uinxisse).
173 Isto é, affàtus est (perfeito de affor, «interpelar»; existe também a grafia adfor).
174 O verbo iterõ significa «repetir», mas também «arar de novo», «arar uma segunda vez».
175 Metro: dísticos (exemplo único deste ritmo). O primeiro verso é conhecido como «aristo-
fânico» na métrica grega, mas foi utilizado por muitos outros poetas (e nem é assim tão carac­
terístico das peças que nos chegaram de Aristófanes: remeto para o meu livro The Lyric Metres
of Euripidean Drama, Coimbra, 2011, pp. 105-107). O segundo verso é, no fundo, o hendecas-
sílabo sáfico (que surge três vezes na estrofe sáfica) aumentado por mais um coriambo.
1. aristofânico ( - U U - U — )
2. verso sáfico aumentado ( - U -------U U — U U - U — ).
176 Os manuscritos divergem relativamente ao início deste verso; por isso, nalgumas edições
(nomeadamente Wickham/Garrod) lê-se hoc deôs uêre em vez de té deõs õrô. Sobre té deõs õrõ
como correspondendo provavelmente à redação original de Horácio, ver Brink, VoL II, p. 32;
R.J. Tarrant in L.D. Reynolds (et alii), Texts and Transmission, Oxford, 1983, p. 184.
177 Conjuntivo presente (por se tratar de uma interrogativa indireta: cf. NGL, pp. 345-346) de
properõ, properàre («apressar», «precipitar»). Pelo mesmo motivo, õderit está no conjuntivo
perfeito (o perfeito deste verbo [õdi) tem sentido presente; cf. NGL, p. 206); e os verbos equitet
e temperet também se encontram no conjuntivo (embora, no caso destes dois, haja manuscritos
que nos transmitem o indicativo).
I7e O gerundio amando não deixa claro se Síbaris se vai perder pelo amor que ele tem por Lídia,
ou se pelo amor que ela tem por ele. Seja como for, Horácio assume a atitude - ilibadora do
homem e culpabilizadora da mulher - de que Síbaris desiste dos exercícios militares por culpa
de Lídia e não por opção dele, Síbaris; como se ele fosse vítima passiva do amor dela. Trata-se
de uma segunda vinheta misógina, após 1.5.
179 apricus tem o sentido de «soalheiro», talvez pela sua ligação a aperiõ ( «abrir» ), sugerindo
a ideia de uma luz «aberta».
190 Os manuscritos que nos chegaram de Horácio dão-nos a ler aqui patiêns (obrigando a uma
interpretação concessiva da frase: «<embora> paciente com o pó e o Sol»), mas a conjetura
impatiéns (Bentley) faz muito mais sentido: «impaciente com o pó e o Sol», isto é, «farto do
pó e do Sol» (a construção regular de impatiéns é com genitivo).
504 Latim do Zbro a Vbrgílio em 50 Lições

181 Os cavalos da Gália eram tidos como de excelente raça equina.


182 Este fireio (frénum) com o nome de lupãtum era assim chamado pela crueldade «de lobo»
(lupus) com que lacerava as bocas dos cavalos.
183 Isto é, além de ter perdido o gosto pela equitação, perdeu também o da natação.
184 Os atletas antigos esfregavam azeite na pele, como também faziam os aristocratas na poesia
de Homero.
183 Comparativo de cautus, com sentido adverbial.
186 Para os antigos, a cor pálida da pele era efeminada, ao passo que o bronzeado era visto como viriL
187 Sobre o sentido de nõbilis, ver nota a 1.1.5.
188 O filho da marinha Tétis é Aquiles; o episódio referido remete para tragédias perdidas de
Sófodes e Euripides, em que Aquiles se veste de mulher para evitar a morte prematura em Troia.
O «ferrão» do poema de Horácio é que Síbaris, emasculado e feminilizado pelo amor de Lidia,
deixou de ser homem.
189 sub + acusativo no sentido de «antes».
190 cultus, -ús tem como significado primacial «cultivo», mas por extensão de sentido pode
significar «roupa», «adorno».
191 As catervas ou «chusmas» vindas da Lícia são aliadas dos Troianos na Ilíada.
192 Metro: estrofe alcaica (verNGL, pp. 391,406).
193 stet., sustineant., constiterint: os conjuntivos dependem de ut. Ver p. 206.
194 Monte a 40 km de Roma, visfvel do Gianicolo. Horácio usa esta coordenada romana para
latimzar o tema, que parte do poema que conhecemos hoje como o fr. 338 de Alceu («Zeus
está a chover e do grande céu / <vem> invemia; e as correntes de água ficaram congeladas [...]. /
/ Atira abaixo a tempestade! Ateia o fogo, mistura generosamente o vinho / doce como mel...»).
195 dcprõmõ, dêprõmere, deprompsidepromptum: «buscar», «tirar».
196 quadrimus: «com quatro anos de idade».
197 Trata-se de um nome grego, ao qual não é possivel relacionar alguém de concreto. O nome
é, à sua maneira, «falante», já que thalía (θαλία) em grego significa «festim», «banquete».
Assim, Taliarco seria o «soberano do banquete».
198 merum, >i: especificamente vinho não misturado (a palavra relaciona-se com o verbo grego
μαρμαίρω, «purificar»).
199 diõta, -ae: «vaso de duas asas» (concorda com Sabinà [ablativo]).
200 Perfeito do verbo stemõ (ver a primeira nota a 1.1.22), aqui com o sentido de «alisar», «serenar».
201 A ventania a lutar com o mar revolto sugere condições meteorológicas diferentes das iniciais,
em que as árvores estavam carregadas de neve. No entanto, o fragmento de Alceu combina
- ilogicamente - chuva com rios congelados; e Horácio, no primeiro poema alcaico que se nos
depara na coletânea, segue uma despreocupação alcaica relativamente a dados realistas.
202 omus, -i: «fieixo».
203 Ligar quem a cumque (quemcumque).
204 A palavra grega para «dança» (choréa) combina com o facto de Taliarco ser, ele próprio, grego.
203 O sentido de mõrõsus é «rabugento», «picuinhas», características que os cabelos brancos
aumentam (note-se o contraste cromático-metafórico verdura/brancura em uirenti... cãnitiês).
206 Ver a terceira nota a 1.1.10. Este quadro agora pintado por Horácio, de engates no Campo
Márcio e de namoro ao ar livre, não podia contrastar mais com a cena de neve e de tempestade
com que o poema abriu.
207 O substantivo proditor, proditoris («traidor») é aqui usado como adjetivo.
288 O «penhor» (pignus, pignoris/pigneris [neutro]) arrancado será, no caso dos braços, uma
pulseira; e no do dedo, um anel.
N otas às O des 505

209 lacertus, -ϊ: «braço» (palavra cognata de leg em inglês).


2,0 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
211 As primeiras três palavras da ode estão em vocativo, mas cada uma apresenta uma desinéncia
diferente, o que contribui para o almejado efeito de «variedade» (em grego, ποικιλία) próprio
da poesia helenística. Na sua associação ao deus grego Hermes, Mercúrio assume características
«herméticas» e «hermenêuticas»: por isso, é apelidado de «eloquente» (não é por acaso que,
no Novo Testamento, os ouvintes pagãos de São Paulo se convencem de que ele é o deus Her­
mes; cf. Atos dos Apóstolos 14:12). Não obstante a sua desconfiança em relação à astrologia
(ver Odes 1.11, já de seguida), Horário sentia-se astrologicamente ligado a Mercúrio (c£ Odes
2.17.29), a quem ele atribuiu o facto de ter escapado ileso à Batalha de Filipos (Odes 2.7.13).
212 A invocação seguida de oração relativa é convencional nas preces gregas e latinas (mesmo
nas cristãs: cf. «Pai nosso, que estás nos céus»).
213 O adjetivo catus (cognato do irlandês cath, «sábio», «hábil») significa «perspicaz»,
«arguto».
214 Palaestra no sentido de «escola de pugilato», «ginásio». Hermes/Mercúrio é também o
deus do corpo masculino (de forma muito óbvia nos «Hermes» gregos, estátuas em que pouco
mais representava o deus do que um pênis ereto).
215 O mito de Hermes inventor da lira (e ladrão da aljava assim como do gado de Apoio, que
ele pôs a mexer em marcha-atrás para os rastros não denunciarem o seu paradeiro) é contado
no Hino Homérico a Hermes.
216 O adjetivo callidus vem de callum, -i («calo», «substância endurecida») e por isso o seu
sentido primário é «experiente», «sábio com base na experiência», «calejado». Além de
«experto», pode significar também «esperto» (ou «astuto»).
217 Em sentido adverbial: «de facto», «decerto». O episódio aludido nesta estrofe é contado
no Canto 24 da Ilíada.
2,4 Os fogos tessálios dizem respeito à entrada na tenda de Aquiles (herói nascido na Tessália).
219 Perfeito de fallõ,fallere,fefelli, falsum: «enganar», mas também «passar despercebido».
220 Se a estrofe anterior remetia para o Canto 24 da Ilíada, esta remete para o Canto 24 da
Odisséia, onde Hermes surge como deus psicopompo («condutor de almas»), que leva os
mortos para o seu lugar final, atuando como elo entre o céu e o inferna
221 A turba dos mortos é «leve» no sentido de «insubstancial», «incorpórea».
222 A função de tmus parece ser muitas vezes a de superlativo de inferus.
223 Metro: asdepiadeus maiores (ver a análise métrica desta ode em NGL, pp. 404-405).
224 Conjuntivo perfeito, por ser o predicado de uma interrogativa indireta (ver NGL, pp. 345-
-346).
225 O nome de Leucónoe é surpreendente, sobretudo por ser um nome feminino: as convenções
poéticas ditavam que poemas onde se dizem coisas de teor simpótico (c£ uma liqucs [v. 6]) tinham
como destinatários pessoas do sexo masculino. No nome «Leucónoe» juntam-se o adjetivo
grego que significa «branco» e a substantivo grego que significa «mente». Talvez por «mente
branca» se entenda uma mente clara, aberta à razãa Outra interpretação do nome é a que remete
para a freguesia ática donde era natural o mais famoso astrônomo ateniense: Méton. Certo é que
o nome tem um desenho métrico gratíssimo, pois forma um coriambo ( - U U -), o que o voca­
ciona (para lá do seu significado) para este poema cujos versos exigem três coriambos seguidos.
236 Forma compacta de temptãueris (conjuntivo perfeito, tal como quaesieris, sendo a justificação
para ambos os conjuntivos o facto de a frase constituir uma ordem direta negativa (ver NGL,
p. 348). Ver p. 204.
227 Os «números babilónicos» são horóscopos.
506 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

224 O verbo liquô (1.* conjugação) significa «liquidificar», mas também «decantar», «filtrar»,
«purificar».
229 Futuro perfeita
230 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
231 O nome grego da musa relaciona-se com o verbo κλείω («celebrar»), como quando
Hesfodo diz das musas que «cantam» (μέλπονται, cf. «melodia») e «celebram» (κλείουαν)
as leis dos imortais (Teogonia 66-67). A etimologia justifica também o «i» longo de Cliõ em
latim. A escolha de instrumento musical que Horácio oferece à musa é pura ornamentação, já
que este mundo poético se situa no plano das palavras - e não no das notas musicais.
232 Futuro de reánõ, rtántrt (composto de canõ, «cantar»): «ecoar», «ressoar».
233 Na aceção de «eco» (OLD s.u. 3b). A ideia de «ecoar» vem especialmente a propósito,
atendendo a que a primeira estrofe é ela própria um eco da abertura de Odes Olímpicas 2.1 -2 de
Pindaro: «Hinos soberanos da lira! / Que deus, que herói, que homem celebraremos?»
234 Trata-se do ablativo de õra, -at («região»), e não do quase homógrafo (a quantidade do
«i» é diferente) genitivo do singular de bs («boca»).
233 Advérbio: «às cegas», «ao acaso», «desordenadamente».
236 A mãe de Orfeu era Calíope, outra das nove Musas.
237 As palavras em acusativo uôcàlem... morantem... blandum concordam com Orphea (acusativo
grego; ver NGL, p. 121).
233 Sérvio, comentador de Vergílio, parece ter conhecido um texto em que aqui se lia doctum.
239 Terá Horácio escrito mesmo quercüs, uma vez que já antes referira siluae? Parece faltar a
menção da outra categoria de ente hipersensível ao canto de Orfeu: os animais. Nos aparatos
das edições de Shackleton Bailey e de Wickham-Garrod, lemos duas interessantes conjeturas
(de Wolff e de Campbell, respetivamente): beluae («bestas», forma escandida como dissflabo;
mas não será totalmente convincente, dada a ocorrência de bêluis [ainda para mais como trissí-
labo] no v. 23); e ceruae («corças»).
240 mundus, -í pode significar, além de «mundo», «céu». A ideia de um universo «bem tem­
perado» é estoica, mas a noção de que as estações (hõrae) são de Júpiter/Zeus já é homérica
(Odisséia 24.344: «estações de Zeus», Aiòc ώραι).
241 uigeõ significa «vigorar», mas também «florescer». À frase subjaz o pressuposto de que
nenhuma coisa é «secundária» relativamente a Júpiter, porque não existe esse segundo lugar
(como num concurso em que não há segundo prêmio; há só prêmio único).
242 A uirgõ é Diana; «Líber» designa Baco (o adjetivo liber significa «livre»; não confundir
com líber, «livro»).
243 Hércules («Alcides») e os filhos de Leda, os gêmeos Castor e Pólux. No tocante a estes,
destacar que um era bom na equitação e outro no pugilato é uma convenção que já vem da Uíada
(3.237).
244 Ablativo do plural de pugnus, -í («punho», aqui em sentido pugilista) e não de pugna, -ae
(«combate»).
243 concidõ («cair»; não confundir com conctdõ, «cortar»).
246 Os manuscritos divergem entre quia, qui e quod (sendo quod a lição que oferece menos
dúvidas: ver Nisbet 8c Hubbard, Vol. 1, p. 154). Os Dioscuros fazem parte do elenco antigo de
seres divinos capazes, quando querem (uoluére), de acalmar ventos e tempestades marítimas,
desde Éolo na Odisséia 10.21-22 a Jesus nos Evangelhos (Mateus 8:23-27; Marcos 4:35-41;
Lucas 8:22-25), passando pela romana Vénus (Lucrécio 1.6-8) e pela egípcia ísis (a quem são
atribuídas as palavras «Eu acalmo e encrespo o mar», numa inscrição grega citada por Nisbet
8c Hubbard, Vol. I, p. 155).
Notas às O des 507

247 Conjuntivo presente de memoro (1.» conjugação), dependente de dubitõ an.


248 Os /ascis eram os feixes usados pelos lictores, representando a autoridade inerente à sua
magistratura. É desta palavra latina que vem o termo «fascismo». Horácio aplica aos feixes a
soberba de Tarquinio, o Soberbo (último rei de Roma). Por ser estranha a presença deste homem
condenável num elenco de heróis, poderia pensar-se que Horácio se está a referir a Tarquinio
Prisco, primeiro rei etrusco, que terá introduzido o costume dos/ascis; mas o adjetivo superbõs
leva-nos inevitavelmente a recordar o desagradável Superbus.
249 A presença neste contexto romano arcaico de Catão de Útica (bisneto do Catão que escre­
veu as Origines e Di agrí cultúrã) tem causado perplexidade aos estudiosos. A sua oposição a
Júlio César e a dignidade do seu suicídio em 46 a.C. deslumbraram a imaginação de muitos
romanos, a ponto de Vergilio o colocar como juiz dos mortos no escudo de Eneias (Eneida
8.670). Que Horácio sentisse por ele a mesma admiração não é difícil de aceitar, embora fosse
mais lógico que aqui surgisse mais um nome da época arcaica.
250 Antiga divindade aquática romana, depois vista como equivalente ás Musas. Aqui o nome
refere simplesmente «poesia»: o eu lírico confessa-se grato por estes nomes ilustres possibili­
tarem tão insigne poesia.
251 Nesta estrofe, Horácio alude a Régulo (torturado até á morte pelos Cartagineses), aos
Escauros (provavelmente Emílio Escauro, nobre de tão romana virtude que obrigou o filho
cobarde a suicidar-se), a Lúcio Emílio Paulo (que deu a vida por Roma contra os Cartagi­
neses na Batalha de Canas) e ao Fabricio que derrotou Pirro e era tido como modelo de
frugalidade.
252 Os romanos do tempo de Horácio associavam a inexistência de barbeiros com as priscas
virtudes dos antigos.
253 Para a expressão ütilem bellõ, ainda que aparentemente desengraçada, existem paralelos tanto
na poesia grega como na latina (ver Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 159); acaba por funcionar um
pouco como um epíteto de sabor homérico (como, por exemplo, «excelente em auxílio»).
254 Quanto ás figuras referidas nesta estrofe, Cúrio destacou-se nas guerras contra Pirro; e
Camilo foi tido como refúndador de Roma após o saque pelos Gauleses no século iv a.C.
235 Os especialistas debatem se o Marcelo aqui referido é Marco Cláudio Marcelo, militar do
século ui, oponente de Aníbal e brutal saqueador de Siracusa (donde levou inúmeros artefactos
gregos para Roma); ou Marco Cláudio Marcelo, sobrinho e genro de Augusto, que morreu em
23 a.C., lamentado por Vergilio (Eneida 6.860-886) e por Propércio (3.18).
254 Sobre a «estrela júlia», é possível interpretá-la como alusão a Júlio César; ou então como
referência a Augusto. A imagem de um astro cujo brilho ofusca os outros é conhecida desde
Safo (fr. 34). Ver PGHT, pp. 84-85.
247 Horácio desdiz aqui o que dissera no v. 18, onde fora afirmado que não existe «número
dois» relativamente a Júpiter. Afinal esse «número dois» existe: é (sem surpresa) Augusta
258 Provavelmente a primeira menção na literatura latina do povo chinês (Seres, -um; o acusativo
em -às é um helenismo; ver NGL, p. 120).
259 Os bosques aqui em causa (lúci) são recintos sagrados; a castidade faltosa que lhes é impu­
tada tem que ver com os pruridos típicos da religião romana relativamente a questões de pro-
fanação/poluição.
200 Metro: dísticos.
1. glicónico (------ U U - U - )
2. asclepiadeu menor (------ U U — U U - U - ) .
241 Curiosamente, neste poema em que Horácio fala, em parte, com a voz poética de uma autora
(Safo, fir. 31), são características femininas que Lídia admira na aparência física de Téleíb (nome
508 Latim do Z ero a Vergílio em SO Lições

convencional na poesia erótica greco-latina, remetendo para o herói grego cuja ferida só pôde
ser curada pela mesma arma que a infligiu, à semelhança da ferida do amor que só o amor pode
curar).
242 A quantidade «errada» do «e» configura uma situação análoga à que encontrámos em
1.336. Muitos manuscritos, no entanto, dão-nos a ler manent (que seria a lição preferível, caso
se tratasse de prosa; mas, na linguagem poética latina, o singular é estilisticamente mais apro­
priado neste contexto).
243 Ficaríamos na dúvida se esta humidade que desliza pelas faces seria lágrimas ou suor se
não tivéssemos os versos de Safo que Horácio está a imitar (Safo, fr. 31: «um subtil / fogo
de imediato se pós a correr debaixo da pele; / não vejo nada com os olhos, zunem-me / os
ouvidos; / o suor escorre-me do corpo e o tremor / me toma toda» [PGHT, pp. 82-85]).
Na sua imitação do mesmo poema de Safo, Catulo (carme 51) optou por deixar de fora a
sudorese.
264 arguõ arguere, argui, argütum significa «m ostrar», «revelar», «demonstrar»; liga-se
etimologicamente a άργής («brilhante»; cf., em sánscrito, arjuna, «branco»; a noção de
brancura brilhante está também presente nas palavras clássicas para «prata»: argentum e
ápyvpoc).
245 Note-se o oximoro aqui usado por Horácio: mácerõ (l.* conjugação) significa «molhar»,
«macerar», «demolhar» (e só por extensão de sentido «aborrecer»).
246 Embora haja quem interprete quinta parte como «quintessência», a noção (própria da época
medieval) é anacrônica. A expressão de Horácio aponta para a necessidade de diluir o «néctar
de Vénus» (ou seja, o amor): uma parte de amor para quatro partes de indiferença será a medida
certa.
247 Os versos finais do poema fazem soar uma nota séria, como se, de repente - e depois de um
quadro deprimente de amor tóxico, marcado por marcas de violência física - Horácio quisesse
lembrar-nos que existe também amor «a sério».
244 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. ferecrácio (------U U — )
4. gücónico (------U U - U -).
249 O mote desta ode parte de dois poemas de Alceu (que só nos chegaram em fragmentos) e
de uma passagem de Teógnis.
270 málus, -í: «mastro» (não confundir com màlum, «mal», «desgraça», que surge no v. 10).
271 antemnae (também antennae) designa as vergas ou «antenas» de um navio. A palavra é de
etimologia desconhedda.
272 funis,funis (masculino): «cabo», «corda», «amarra».
273 Entende-se a imagem esculpida ou cinzelada de divinidades na proa do navio.
274 Embora não seja dara a razão pela qual Horácio foca aqui as Cidades, é possível que esteja
em causa uma alusão a Teógnis 672, onde se refere a ilha de Meios, última das Cidades, a partir
da qual as naus estavam em mar aberto. O poema no seu todo tem sido lido como alegoria
política: a náuis é o Estado (alegoria já presente na poesia grega, desde logo em Ésquilo, Sete
contra Tebas 2; Sófodes, Rei Édipo 22-23). Dar concretude à alegoria - seja do ponto de vista
temporal (antes ou depois de Áccio?), seja na identificação de temas específicos (o porto será
Augusto? O mastro danificado, o Egito?) - tem-se revelado notoriamente difícil. A noção
de que o Estado é um barco continua implídta hoje nas palavras «governo» e «governante»
(cf.gubernator, «timoneiro»).
N otas As O des 509

275 Metro: estrofe.


1. asclepiadeu menor ( ------ U U — U U - U - )
2. asclepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. asclepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
4. glicónico (------ U U - U - ) .
276 Aplicando-se a Páris, faz mais sentido entendermos «pastor» no sentido de «boieiro»
(já que ele apascentava gado bovino no monte Ida quando lhe apareceram as três deusas para
o concurso de beleza que deu origem ä Guerra de Troia).
277 O sentido primário do verbo obruõ é «cobrir», «inundar»; contudo, a aceção aqui em causa
é «dominar» no sentido do verbo inglês overwhelm (cf. OLD s.u. 4c, onde este verso é citado
como exemplo).
278 Um dos vários toques homéricos no poema: os Troianos, na IUada, são muitas vezes referi­
dos como «dárdanos» (por descenderem de Dárdano, rei antigo de Troia).
279 O sentido aqui deferox será talvez mais «arrogante» do que «feroz» (c£ OLD s.u. 4a, onde
este verso é citado sob a aceção de «self-assertive, arrogant»).
280 Não é claro o sentido que Horácio quer dar ao verbo diuidô ( «dividir» ). Pode estar em causa
um aceção musical (talvez a divisão de pés, de metros, de estrofes; ou a divisão interna da canção
por meio de um interlúdio instrumental na «citara»). Nisbet & Hubbard (VoL I, p. 195) citam
as belas palavras de Shakespeare sobre a rainha que canta «with ravishing division to her lute».
281 Os manuscritos dividem-se aqui entre os que nos dão a ler crinis e os que transmitem cultus
(no sentido de «roupas» ). Para a defesa de crinis (acusativo do plural), ver Nisbet & Hubbard,
Vol. I, p. 197.
282 Ver nota a 1.5.2.
283 Dativo, pedido por imperitõ (OLD s.u. 2a).
284 Neste verso temos alguma terminologia importada do grego para o latim: sublimL. anhelitu
remete para um termo técnico grego para respiração «alta» (isto é, curta e nervosa - contraria­
mente à respiração «baixa», apoiada pelo diafragma): ver Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 200.
Quanto a mollis, corresponde ao adjetivo grego malakós (μαλακός, termo pejorativo e bem
conhecido dos tradutores de São Paulo: ver 1 Coríntios 6:9 e a nota a esse versículo no VoL Π
da minha tradução da Bíblia).
285 O sentido da estrofe final não é compreensível no tempo da narração, já que só o desenrolar
da Guerra de Troia explicará os efeitos da «ira de Aquiles» (tema da Ufada). Do ponto de vista
lingüístico, estes versos de Horácio apresentam duas curiosidades: o genitivo do nome Achilles
(aqui Achilla, quando o genitivo normal em latim seria Achillis)’, e a intuição de que o « /» de
Hiacás tem o poder de alongar a sílaba anterior (como acontece na poesia homérica, por causa
da presença não grafada da letra chamada «digama» ). É certo que um glicónico com uma sílaba
breve na segunda posição seria algo de normal na poesia grega, mas o glicónico horaciano
começa com uma seqüência de três sílabas longas.
286 Metro: estrofe alcaica (ver NGL, pp. 391,406).
287 quem... cumque... modum = quemcumque modum.
288 modus, -i: aqui no sentido de «fim», «limite» (OLD s.u. 5a-b).
289 Cibele, deusa orgiástica cujo culto teve origem na Ásia Menor.
290 adytus, -i: parte interior de um templo.
291 Noricum corresponde hoje à região da Áustria abrangida pelo Tirol, pela Estíria e pela Carín-
tia. Era uma zona associada à produção de ferro.
292 Os aparatos de Keller/Holder e de Shackleton Bailey registam a conjetura de Bentley: coac­
tam aplicada á partícula, no lugar de coactus aplicado a Prometeu («diz-se que Prometeu foi
510 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

coagido...»). De facto, a ideia de Prometeu ter sido «coagido» avulta estranha, já que, noutros
exemplos literários da sua intervenção na feitura do ser humano, ele age por si próprio quando
se trata de incluir, na textura humana, alguma singularidade original (como no caso da Fábula
4.16 de Fedro, que atribui a existência da homossexualidade no ser humano ao facto de Prome­
teu ter criado o homem sob o efeito do vinho).
293 Sobre a estranheza de, neste verso, a segunda parte (o «dodrante»: - U U - U - ) não estar
separada da primeira por meio de fim de palavra (como sucede habitualmente nos hendecassí-
labos alcaicos de Horácio), ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 213.
294 Trata-se da primeira ocorrência conhecida de «recantar» no sentido de «retratar-se».
Horácio está a pensar no verbo grego παλινωιδέω, à letra «cantar de novo» (no sentido de
«retratar-se»). A mais famosa palinódia no mundo antigo era a que Estesícoro compôs depois
de ter escrito um poema demolidor sobre Helena.
295 Metro: estrofe alcaica (ver NGL, pp. 391,406).
296 Lucretilis: monte na região sabina, perto de Roma.
297 Lycaeus: monte na Arcádia (Grécia).
299 O «fedorento marido» é o bode; as «errantes esposas», cabras.
299 Nome feminino de origem grega, que evoca vagamente Helena (suposta filha de Tindáreo).
Talvez tenha servido a Horácio para estabelecer um fio condutor (a própria Helena) entre este
grupo de odes (15,16,17).
300 Não é possível identificar ao certo Vstica, além de que se terá situado na região sabina. Alguns
antigos desaeveram-na como monte; e outros, como vale. Ver Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 221.
301 A expressão copia... benigno... comü evoca a imagem da comucópia.
302 O adjetivo refere-se ao facto de o poeta Anacreonte ter sido originário da ilha de Teos.
303 Não é clara a razão pela qual Circe é descrita como «vítrea». As duas interpretações possí­
veis são que ela é «vítrea» no sentido de «translúcida» (ou seja, não é «transparente», tal
como o vidro do tempo de Horácio não era transparente); ou então o adjetivo poderá referir-se
ao mar (talvez porque a mãe de Circe era uma Oceânide, como se lê na Odisséia 10.139).
304 Baco é referido como Semeleius por ser filho da princesa tebana Sémele; quanto a Thyõneus,
trata-se de um nome grego (embora não ocorra na literatura grega). O seu sentido não é claro,
pois dá a entender que a mãe de Baco seria Thyõnè, uma das Híades.
305 O adjetivo protentus («violento») está etimologicamente ligado a πτέρυξ («asa»), o que
sugere a ideia de uma violência rápida, precipitada.
306 dispari é dativo e feminino (o referente subentendido é Tíndaris).
307 iniaô, inicere (composto de iaciô, «arremessar»): «lançar», «atirar». Na grafia de outros
tempos, iniciat escrevia-se injiciat
309 Metro: asdepiadeus maiores (como 1.11). A escolha do metro tem causalidade dupla: por
um lado, o poema de Horácio começa com uma alusão ao fir. 342 de Alceu («não plantes outra
árvore de preferência à vinha» [μηδ’έν Αλλο çuxeúcqic πρότερον δένδριον άμπέλω]), que per­
tence a um poema em asdepiadeus maiores; por outro lado, aceitando a identificação de «Varo»
com Públio Alfeno Varo, amigo de Catulo, temos a coincidência inescapável de também Catulo
ter dedicado um poema (enigmaticamente cheio de queixumes) a Varo em asdepiadeus maio­
res (cf. Catulo 30, onde ocorre também, no v. 11, a palavra Fidês). Ao mesmo Varo é dedicada
a deslumbrante Bucólica 6 de Vergílio. Ver pp. 276-277.
309 Conjuntivo perfeito de serõ, serere, séui, satum, «plantar».
310 Cátilo era tido como fundador de Tíbur.
311 Por que razão terá Horácio usado aqui o verbo crepõ, cujas conotações são todas desagra­
dáveis (a aceção Id no OLD é nada menos que «peidar-se»)? Talvez o sentido, no presente
N o ta s ks O d es 511

contexto, seja próximo da expressão portuguesa «estar sempre a bater na mesma tecla»
(cf. OLD s.tL 4).
3.2 Na mitologia grega, os Centauros embebedaram-se no casamento de Hipodamia com Pirí-
too (soberano dos Lápitas), com conseqüências funestas (cf. Odisséia 21.295-296).
3.3 Évio (tal como Liber e Bassareu) é Baco. Não se sabe ao certo qual será a alusão mítica
implícita na menção dos Sitónios (povo do norte da Grécia).
314 obsita são «coisas cobertas» (cf. OLD s.u., que explicita o elo comobserõ [composto de serõ],
«plantar»; cf. a primeira forma verbal do poema séucris).
315 «Berecíntio» eqüivale a «frígio» (referindo-se, portanto, à Asia Menor).
316 Gloria no sentido de «vanglória».
317 Não é claro o sentido aqui de pródiga ( «pródiga» ?, «desperdiçada» ?; ver OLD sju. lb, onde
este verso é citado). Talvez se trate de um oximoro. De qualquer forma, contrariamente a Ana­
creonte (que descreve o séquito de Dioniso como constituído por Bros, por ninfas e pela própria
Afrodite [fr. 357; PGHT, pp. 116-117]), Horácio prefere imaginar o séquito de Baco como
formado por personificações dos efeitos da bebedeira, que são, por sua vez, uma exposição
impiedosa e transparente (perlucidior) dos defeitos do bébedo: narcisismo; convencimento
absurdo; incontinéncia verbal.
318 As palavras corttü (v. 14) e uitrâ proporcionam um nexo verbal com o poema anterior, bem
à maneira de Horácio.
3,9 Metro: dísticos.
1. glicónico (------- U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - ) .
320 O tema do ataque renovado do amor é um lugar-comum da poesia grega arcaica: ver Safo,
fr. 130; Anacreonte, fir. 358,413 (fragmentos presentes em PGHT),
321 Glícera («doce»; cf. Dulce) seria, para ouvidos romanos, um nome típico de prostituta:
uma Glícera trabalhava num dos bordéis de Pompeios (cf. Nisbet 8c Hubbard, VoL 1, p. 240).
322 Afinal um poema que começou com as marcas de um erôtikón (έρωτικόν) mostra-se como
sendo, na verdade, uma recusãtiõ da poesia épica. «T he poem is in fact much too detached to
be a love poem; it is not about a girl, but about literature and Horace» (Nisbet & Hubbard,
Vol. I, p. 238).
323 caespes, caespitis (masculino): «tufo» ou «torrão».
324 Em bimus («de dois anos») está implícita a ideia de bis hiems («dois invernos»).
325 patera, -ac: a palavra designa uma taça ou recipiente achatado, para uso nas libações.
326 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
327 léui: perfeito de linõ, «untar», «selar». A rolha era untada com pez, para evitar que o vinho
ficasse exposto ao ar.
328 A ovação a Mecenas no teatro terá ocorrido na seqüência de um período de doença (ver
Nisbet 8c Hubbard, Vol. I, p. 248).
329 Embora dáre não tenha aqui um apoio manuscrito comparável ao de cãre, avulta como
expressivo na ligação com eques pelo facto de clãrus, em rigor, ser um epíteto próprio de sena­
dores, estatuto que Mecenas não procurou (preferindo manter-se eques), mas que Horácio lhe
confere poeticamente com clãre (dir-se-ia honoris causâ).
330 O Tibre é referido como «paterno» relativamente a Mecenas porque o rio, tal como o
ilustre amigo de Horácio, é originário da Etrúria (hoje Toscánia).
331 Horácio enumera os quatro vinhos mais ilustres bebidos em Roma (Cécubo, Caleno, Falemo,
Formiano) para dizer que não os tem para oferecer a Mecenas. Os vinhos são provavelmente
simbólicos de outra realidade (talvez de índole estético-literária, mesmo que a esta interpretação
512 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

falte a bênção de Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 248): não está a ser dito que o poeta não tem
recursos para comprar bons vinhos, já que, na Ode 4.11, Horácio promete, a uma (presumível)
prostituta chamada Fílis, um Albano (um dos melhores vinhos de Itália), significativamente
para celebrar o aniversário de Mecenas.
332 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. ferecrádo (------ U U — )
4. glicónico (-------U U - U - ) .
333 O adjetivo Cynthius («Cíntio») relaciona-se com o monte Cinto na ilha de Delos, onde,
segundo a tradição mitológica, Apoio e Ártemis/Diana nasceram. O facto de Apoio ser descrito
como «intonso» remete para o seu aspeto jovem (lembremos as estátuas gregas de κούροι
[kouroi], com os seus cabelos compridos).
334 Monte perto de Tusculo.
333 O Erimanto ficava na Arcádia (no Peloponeso central); o Grago, na Lícia (atual Turquia).
Tipicamente, Horádo combina um orónimo latino (Algido) com dois gregos, imbuindo assim
o monte itálico da mística própria das montanhas gregas.
336 Ver nota a 1.73.
337 más, maris: «macho».
333 A lira de Apoio é «fraterna» pelo facto de ter sido inventada pelo seu irmão, Mercúrio
(Hermes, na tradição grega). Ver Ode 1.10.
339 O pronome hic («este» ) refere-se a Apoio. A mundividéncia patente nesta estrofe - de que
a sodedade romana é formada por César e povo, sem aristocracia nem instituições republicanas
(e.g. Senado) no meio - é «frankly shocking», como notam Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 254.
340 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
341 O adjetivo integer (formado a partir de tango, «tocar») tem como sentido primário «into­
cável». No uso que dele faz Horádo no presente verso sobrelevam aceções como «irrepreen­
sível», «virtuoso».
342 Aristio Fusco, gramático e amigo de Horádo, mencionado noutros poemas (Sátiras 1.9,
Epístolas 1.10).
343 A designação «Sirtes» alude a dois golfos no norte de Africa, um deles na zona da Líbia;
outro, na da Tunísia. Horádo não está a referir apenas os perigos marítimos, mas também os
terrestres (o território era conhecido pelos seus muitos animais selvagens); paralelamente,
poderá estar a lembrar também uma viagem árdua empreendida por Catão de Útica à frente de
10 000 homens em 47 a.C., tema que, no século i d.C., interessou também a Lucano, no Livro
9 da sua epopeia.
344 Hydaspês é um rio indiano, perto do qual Alexandre Magno obteve uma grande vitória em
326 a.C. O adjetivofãbulõsus ocorre pela primeira vez em Horácio; pode, até, ter sido um neo-
logismo de sua invenção.
345 Em rigor, as formas verbais cantô e uagor são presentes do indicativo, mais maleáveis metri-
camente do que formas de imperfeito ou de perfeito, o que resulta na mistura de tempos que
aqui vemos na estrofe (fügit é perfeito). Sobre este fenômeno na poesia latina, ver Kühner &
Stegmann, VoL I, pp. 116-117.
346 Este antropónimo feminino de sabor grego é formado a partir do verbo grego lalagéõ
(λαλαγέω), «tagarelar».
347 Horácio heleniza, pela morfologia, o topónimo que significa «Dáunia» (nome para a
Apúlia).
N otas As O des 513

349 aesculetum (neutro) é um «carvalhal». O substantivo aesculus ( «roble», uma variedade de


carvalho) é cognato de αΙγίλωγ em grego, Eiche em alemão e oak em inglês.
349 Este Juba mencionado por Horácio era filho do rei homônimo da Numidia e casou com
a filha de Antônio e Cleôpatra. Escreveu numerosos e prolixos tratados, entre os quais um
chamado Coisas da Líbia (Λιβυκά), onde falava, ao que parece, de leões (c£ Nisbet & Hubbard,
VoL I, p. 270).
350 «Júpiter» na aceçáo de «céu» e também de «condições meteorológicas».
351 Nos versos finais, Horácio imita a expressão de Catulo (51) dulce ridentem, assim como (em
dulce loquentem) a expressão que se encontra no poema de Safo (fr. 31: PGHT, pp. 82-83) e que
Catulo imitou: &8υ çuveícoc («falando docemente»).
352 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. ferecrácio (------- U U — )
4. glicónico (------ U U - U - ) .
333 tnuleus, -í (masculino): «gamo». Note-se que a grafia preconizada pelo OLD é hinnuleus.
354 O nome grego (Χλόη) sugere a ideia de «verdura», na aceção de «imaturidade». Ocorrerá
depois em odes do Livro 3 (3.7; 3.9; 3.26).
333 Horácio terá escrito uéris («da primavera»), como se lé nos manuscritos, ou uepris (genitivo
de ueprés, «espinheiro»)? Também podemos perguntar se, no verso seguinte, a intenção do
poeta terá sido escrever aduentus (manuscritos) ou ad uentõs. Para uma excelente discussão desta
controvérsia, ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, pp. 276-277.
336 Este leão «getúlico» (isto é, da zona do norte de África que correspondia ao reino de Juba
- hoje Marrocos) proporciona um elo com a ode anterior (ver 1.22.15).
337 A ideia de que cabe a alguém do sexo masculino decidir se uma menina está ou não
tempestiva ( «na altura própria») para se entregar a um homem faz soar, aos nossos ouvidos
contemporâneos, uma nota extremamente desagradável. E mais desagradável ainda na tra­
dução que desta ode fez Eugênio de Castro, terminando com as palavras «és uma mulherzi-
nha: já tens idade para casar» (citada por M.T. Schiappa de Azevedo no seu interessante
artigo «Cloe em Ricardo Reis/Fem ando Pessoa», Humanitas 46 [1994], p. 424). Como
notam Nisbet & Hubbard (Vol. I, p. 274), também em Anacreonte encontramos um adoles­
cente timido e uma mãe receosa (fr. 346: PGHT, pp. 110-111), além de que toda a ode de
Horácio pode ser vista como recriação da problemática «Poldra da Trácia» anacreôntica
(PGHT, pp. 124-125).
333 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. asdepiadeu menor ( ------ U U — U U - U - )
4. glicónico (------ U U - U - ) .
339 O tema de ter saudades de uma «cabeça» (no sentido de «pessoa») é tão antigo quanto
Odisséia 1.343.
360 Para praecipiõ («antecipar») na aceção de «ensinar», ver OLD s.u. 5b, onde o presente
verso é citado.
361 Como musa, Melpómene era tida como filha de Zeus (Júpiter) e Mnemósine («M em ó­
ria»). Embora mais tarde Melpómene fosse vista como musa da tragédia, talvez para Horácio
o importante no nome desta musa fosse, justamente, o nome formado a partir de μολπή
(«canto»); talvez ele pensasse nela como musa da poesia lírica.
514 Latim do Z ero λ Vergílio em 50 Lições

342 Certamente o mesmo Quintilio elogiado por Horácio como crítico eximio na Arte Poética
(338-444).
345 Como habitualmente em poesia, o verbo está conjugado no singular, não obstante os seus
vários sujeitos.
364 Chama a atenção créditum, vocábulo usado a propósito de Vergilio em 1.3.5, nesta frase
dirigida a... Vergílio. Terá Quintilio morrido num naufrágio?
345 Equivalente a moderéris (2.* pessoa do singular do conjuntivo presente de moderor). Para
a aceção em que Horácio usa aqui o verbo («manejar»), ver OLD s.u. lb (onde este verso
é citado).
346 A ordem das palavras nas duas estrofes finais é muito intrincada: quam corresponde, na
tradução portuguesa, à forma «a» em «a compelisse».
347 A imagem aqui apresentada de Mercúrio é bem mais tétrica relativamente ao que léramos
na Ode 1.10; lembra, de certa forma, o próprio Hades em Pindaro (Olímpicas 9.33-35: PGHT,
pp. 230-231).
344 patientia na aceção de «capacidade de aguentar».
349 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
370 «Janelas» decerto no sentido de «portadas de madeira».
371 O adjetivo creber (que vem de créscô) significa primariamente «cerrado», «denso», mas
descreve igualmente aquilo que se repete de forma frequente ou incessante.
372 Dizer que a porta «ama a soleira» implica a ideia de que, agora, ela abre muito menos do
que antes (uma forma de dizer que Lídia é cada vez menos solicitada). A imagem dos jovens
a atirar pedras às janelas fechadas remete para o gênero poético grego conhecido como para-
klausíthuron, um poema «cantado» pelo amante excluído (lacrimãns exclusus amàtor é a bela
expressão de Lucrécio 4.1177) junto da porta fechada, em que o amante interpela também
a porta. Um bom exemplo em latim é Propércio 1.16 (onde a porta também tem direito a
falar!). No entanto, Horácio mistura aqui o tópico da porta fechada com o tópico helenístico
do castigo que acontecerá inexoravelmente à mulher (ou, em contexto homossexual, ao
jovem: ver Teócrito 7.120-124; PGHT, pp. 318-319) que recusa o assédio do poeta: a velhice.
373 Também se poderia interpretar facilis como nominativo («porta fácil»); mas ver a argu­
mentação de Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 294 a favor da interpretação como facilis (acusativo
do plural, a concordar com cardinés).
374 anus, -ús (feminino): «velhota». Não confundir com ânus, -í ( «ânus» ). A imagem de Lídia
como prostituta velha - desdenhada por potenciais clientes, sozinha de noite num beco ventoso
e sem luar, destituída (à letra, «leve», leuis: isto é, sem peso de importância e sem meios de
subsistência) - é confrangedora.
373 Para a noção tipicamente grega de que a ventania vem da Trácia, ver Itíada 9.5. A ideia do
vento como bacante furiosa será depois ecoada por Ovidio (Tristia 1.2.29).
374 Estas «mães de cavalos» são simplesmente éguas.
377 O adjetivo pullus está relacionado não só com palleõ («empalidecer») como com iróXióc
(«cinzento»). A frase permite também a interpretação de que a rapaziada laeta de testosterona
se compraz com «hera viçosa» e com «mirto cinzento» (segundo esta interpretação, o signi­
ficado conceptual da estrofe seria que os homens gostam de raparigas e de mulheres maduras,
mas as velhas são para atirar ao rio).
379 O Hebro é um rio na Trácia e pode estar aqui como projeção fantasiosa da própria ideia de
um rio invemal Há, no entanto, editores que defendem aqui Eurõ (embora sem sustentação
manuscrita), o que implica outra ideia: em vez de as ramagens secas serem atiradas ao rio gelado,
seriam atiradas ao vento de leste.
N otas As O des SIS

379 Metro: estrofe alcaica (ver NGL, pp. 391,406).


380 Tiridates, pretendente ao trono dos Partos, numa primeira fase apoiado por Augusto e,
depois, ignorado pelo Princeps. Nos anos 26-25 a.G, Tiridates entreteve-se a causar confusão
política e militar no Próximo Oriente.
381 Para sécúrus («seguro» ) no sentido de «indiferente», ver OLD s.u. 2a. «Supremely indiffe­
rent» é a tradução que Nisbet & Hubbard (VoL 1, p. 304) sugerem para ünicc sécúrus.
382 A fonte «pura» não é inocente, pois remete subtilmente para o Epigrama 283-4 e para o
Hino a Apoio 111 -112 de Calímaco (ver PGHT, pp. 288-289,290-291).
383 O adjetivo apricus significa «soalheiro»; a aceção em que é aqui usado sugere talvez flores
que se dão bem ao sol.
384 Talvez filho ou neto do contemporâneo de Cícero, Lúcio Élio Lâmia; Lãmia (filho) foi
legado na Hispânia, onde chacinou tribos hispânicas na Astúria e na Cantábria; Lâmia (neto)
foi cônsul em 3 d.C. e governador de África em 15-16 d.G
385 Uma vez que Pimpla é um lugar na Piéria, perto do Olimpo, Piplca deve designar uma das
Musas.
386 A ideia de que Lâmia deve ser honrado com cantos originais («novos») pareceria entrar
em contradição com o «lésbio plectro» (isto é, poesia à maneira de Alceu e de Safo) se não
fosse a certeza já estabelecida, ao fim de mais de uma vintena de odes, de que a fonte, â qual a
poética horaciana vai haurir a sua originalidade, é a fonte da tradição. O anseio pela novidade
na poesia é tão antigo quanto Álcman (fr. 3; ver PGHT, pp. 46-47).
387 Metro: estrofe alcaica (NGL, pp. 391,406).
388 A palavra scyphus, -í para «taça» introduz logo uma nota helénica (c£ cicúpoc) num poema
que parte (como já na Antiguidade foi visto) de Anacreonte, fr. 356 (ver PGHT, pp. 114-115).
389 O substantivo acinacis, -is («adaga») é outro helenismo (άκινάκης) importado da poesia
anacreôndca (ocorre num fragmento curtíssimo constituído somente por esta palavra: c£ Ana­
creonte, fr. 465).
390 Esta Megila de Opunte (cidade na Grécia continental, entre a Ática e a Beóda) será presu­
mivelmente uma prostituta. A afirmação da voz falante no poema de que o irmão de Megila,
presente no beberete, deve revelar agora por quem está apaixonado corresponde ao «jogo da
verdade» próprio dos simpósios gregos.
391 Aqui «ingênuo» no sentido de «honroso» (Nisbet 8c Hubbard, VoL I, p. 315).
392 Referência homérica: as mortíferas Cila e Caríbdis são descritas no Canto 12 da Odisséia.
393 Outra referência homérica, desta feita ao Canto 6 da ílíada, onde é referido que Belerofbnte,
montado no cavalo alado Pégaso, matou a Quimera («triforme» porque era um misto de leão,
de serpente e de cabra [cf. Iliada 6.181]).
394 Metro: dísticos.
1. hexâmetro dactllico
2. tetrâmetro dactílico.
393 Este poema ao mesmo tempo estranho e maravilhoso («anybody who likes this poem has
discovered something about poetry» [Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 320]) começa por invocar ο
pitagórico Arquitas de Tarento, filósofo do século iv a.C. (e amigo - ou pelo menos conhecido
- de Platão), que se dedicou a indagações científicas sobre temas geográficos e geométricos
(«geometria» implica, à letra, a medição da terra) e inventou um pequeno «avião» em forma
de pomba
396 Não é possível estabelecer ao certo a localização deste «litoral matino» (litus Matinum),
mas é provável que se situe na zona de Tarento (sul de Itália).
397 Tàntalo.
516 Latim do Z ero λ V erg ílio em 50 Lições

398 É curioso ler aqui que Titono, amante mortal da Aurora, morreu, já que a mitologia grega
diz dele que recebeu dos deuses a imortalidade (ainda que não a juventude eterna, razão pela
qual acabou por ser repudiado pela amante divina).
399 Com o nome «filho de Pântoo» (Pantoidés) Horácio está (talvez ironicamente) a referir
Pitágoras, que dizia ter sido, numa encarnação anterior, o troiano £uforbo, filho de Pântoo, cuja
morte Homero descreve no Canto 17 da Ilíada. Perante vários escudos supostamente troianos
pendurados na parede do templo de Hera emArgos, Pitágoras foi capaz de identificar aquele que
fora «seu»; tirado o escudo da parede, «comprovou-se» a veracidade da afirmação de Pitágoras,
pois viu-se que o escudo tinha gravado, no verso, o nome de Euforbo (sem que ninguém questio­
nasseo problema de, no tempo da Guerra de Tróia, o alfabetogrego não ter sido ainda inventada..).
400 Na crença antiga, Prosérpina (na Grécia, Perséfone) cortava uma madeixa de cabelo a cada
morto, tomando assima sua morte irreversível. Ver p. 413.
401 Embora os manuscritos mais antigos nos deem a ler rapidus, é possível que Horácio tenha
escrito rabidus (ver Nisbet & Hubbard, Vol. 1, p. 331).
402 O sentido primário de malignus é «m esquinho» (cf. OLD s.u. l); Horácio usa também,
noutros textos (e.g. Odes 2.16.39), a palavra no seu sentido secundário de «m aldoso».
403 O sintagma càplti mhümãtõ suscita muitas dúvidas devido ao hiato, para o qual não existe
um paralelo verdadeiramente convincente em Horácio. Por isso, na edição da Teubner, Shackle-
ton Bailey coloca o adjetivo entre cruzes.
404 Venúsia era, obviamente, a cidade onde Horácio nasceu.
405 Trata-se aqui de plectõ, plectere no sentido de «bater» (ou, na voz passiva, de «apanhar»
pancada); e não plectõ no sentido do verbo grego πλέκω («entrançar»).
406 Interpretando té como ablativo.
407 O sentido de debita iüra é difícil de descortinar, como comentam Nisbet & Hubbard,
VoL I, p. 335.
404 O substantivo uicis, uicis está aqui a ser usado na aceção de «retribuição» (cf. OLD s.u. 5, onde
este verso é citado), e não como o encontrámos na Ode 1.4.1.
409 Para currere ligado à ideia da viagem marítima, cf. Sátiras 1.1.30.
410 Metro: estrofe alcaica (NGL, pp. 391,406).
411 Amigo de Horácio, também referido em Epístolas 1.12. Os dois poemas mostram-no perante
o dilema de escolher entre uma vida dedicada aos livros e uma vida dedicada ao dinheiro (sem
o qual, como se sabe, a vida dos livros carece de sustentação). A expedição militar a que Horácio
se refere nesta ode teve lugar em 26-25 a.C. e, apesar da propaganda romana sobre o seu êxito
(Estrabão fala numa batalha onde morreram 10 000 árabes e só dois romanos!), foi um desastre
em que a maior parte do exército romano pereceu (ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 338, para
um elenco das fontes antigas).
412 gaza, -ae (feminino): «tesouro» (palavra de origem persa, expressivamente usada em
Eneida 1.119).
413 cyathus, -t (em grego, icúaOoc) designa, em rigor, uma espécie de «concha» usada para tirar
vinho de um recipiente maior para uma taça (a palavra é usada por Anacreonte no fir. 356 [PGHT,
pp. 114-115]). A projeção fantasiosa que Horácio pinta deste rapaz árabe, educado pelo pai para
a vida militar mas agora reduzido a escravo e sujeito a ser abusado sexualmente (a conotação
sexual é óbvia nos cabelos «ganimedeus», como diria Marcial 9.16.6), constitui uma vinheta
quase tão triste como a da donzela árabe (agora escrava) a quem os Romanos mataram o noivo.
414 O filósofo estoico Panécio veio para Roma em meados do século li a.G, onde gravitou â
volta de Cipião Emiliano. A expressão «casa socrática» remete para «escola socrática» (sem
que vislumbremos o que Horácio entende por tal termo).
Notas As O des 517

4,5 Metro: estrofe sáfica (NGL, p. 391).


416 O nome grego «Glicera» (= «doce»; ver o v. 5 de 1.19) sugere uma prostituta, e a «casa»
poderá ser o quarto onde exerce a sua profissão. No entanto, o chamamento de Vénus com muito
incenso leva-nos a pensar irresistivelmente no quadro deslumbrante pintado por Safo (fr. 2;
PGHT, pp. 78-79).
417 O adjetivo cõmis (talvez derivado de *cõsmis e cognato de κοομέω em grego, «adornar» -
donde vem «cosmética» em português) significa «afável», mas também «cultivado» e «ele­
gante».
418 Talvez a chave do poema esteja neste último verso e na menção de Mercúrio, deus (entre
outras coisas) do lucro e, por isso, indispensável à profissão de Glícera.
4,9 Metro: estrofe alcaica (NGL, pp. 391,406).
420 O novo templo de Apoio no Palatino foi dedicado em 28 a.C.
421 Encontrámos esta palavra em 1.19.15.
422 A excelência do vinho caleno já tinha sido mencionada em 1.20.9.
423 Palavra rara para «taça» (também usada por Horácio em Arte Poética 434), relativamente
à qual os gramáticos duvidam se será masculina ou feminina. Ver OLD s.u. culullus.
424 Outros poemas horacianos em que a alimentação à base de vegetais é elogiada: Sátiras 1.6;
Epístolas 1.5; Epodos 2. Embora o intuito seja filosófico (Epicuro contentava-se «com tão
pouco», como famosamente escreveu Cícero [Tusculanas 5.89]) e calimaquiano (o adjetivo leués
não está aqui por acaso), o elogio dos vegetais já vem de Álcman, fr. 17 (ver PGHT, pp. 50-51).
425 Por «citara» entenda-se «poesia» - e concretamente a faculdade de ainda compor poesia,
não obstante uma idade avançada. Horácio pede a Apoio, pois, que lhe conceda a permanência,
enquanto for vivo, daquilo que dá sentido à sua vida.
42í Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
427 A palavra inicial do poema é controversa: terá Horácio escrito poscimur (como se lê no
manuscrito mais antigo que nos chegou da obra horaciana, um códice do século ix conhecido
pela sigla R, pertencente à Biblioteca Vaticana) ou poscimus, como se lê noutros manuscritos
igualmente importantes e quase contemporâneos (não que a antiguidade, só por si, seja fator
decisivo: recentiôrês non deteriores)? Nisbet 8c Hubbard (VoL I, p. 360) argumentam a favor
de poscimus como equivalente aÀíccopcu («peço», «suplico») em passagens análogas da
poesia grega, também com base no carácter abrupto de poscimur, que simultaneamente abre
e fecha a primeira frase do poema só com uma palavra. Devo confessar que me é impossível
olhar de forma isenta para o problema, já que, nas edições de Horácio que sempre me acom­
panharam desde estudante (Shackleton Bailey e Wickham/Garrod), se lê poscimur e a forma
está de tal forma gravada na minha cabeça que não consigo imaginar este poema com o incipit
alternativo de poscimus. O problema não se me poria, é certo, se o meu primeiro Horácio
tivesse sido Klingner, onde se lê poscimus (mas saliente-se, já agora, poscimur na edição de
Keller/Holder).
428 Ver o v. 19 de 1.6: cantámus uacui.
429 A frase dic Latinum, / barbite, carmen é das mais autoexplicativas da lírica horaciana, já que
barbitos (βάρβιτοο) é um instrumento grego de corda dedilhada (ver 1.1.34), ao qual o poeta
está a pedir um canto em... latim.
4)0 O «cidadão de Lesbos» é Alceu, aqui homenageado em estrofe sáfica (mas não esqueçamos
que Alceu também usou a estrofe a que ficou associado o nome de Safo).
431 O acusativo do nome «Cupido» (Cupidinem) não se ajustaria ao verso.
432 Note-se, no mesmo verso, nigris (alongamento do « i» por posição) e riígrõ (manutenção da
quantidade etimológica do «i», graças à licença explicada em NGL, p. 392).
518 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições

433 Esta «tartaruga» é, na realidade, a carapaça da tartaruga, a partir da qual Mercúrio inventou
alira.
434 A forma cumque (transmitida pelos manuscritos) levanta muitas dúvidas quanto à sua inter­
pretação e têm sido várias as conjeturas propostas por diferentes estudiosos (ver a longa discussão
em Nisbet & Hubbard, Vol. 1, pp. 365-367). Sigo a interpretação dada à lição dos manuscritos
por Fraenkel (p. 170), «in whatever manner, provided it is done rite». Para «sé por mim sau­
dada» (millL· salue) como equivalente a χαΐρέ μοι na poesia grega, ver Fraenkel, p. 169.
435 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (-----U U — U U -U -)
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
4. gbcónico (-----U U - U -).
436 Certamente o requintado poeta elegiaco AlbioTibulo, também destinatário da Epístola 1.4
(onde ocorre a famosa frase Epicúri dê grege porcum). O tema da ode - só gosto de ti se não
gostares de mim- é sintetizado por Ovidio no verso quod sequiturJugiõ; quodfiigit, ipse sequor,
«fujo do que me segue; sigo o que me foge» (Amores 2.19.36).
437 A expressão immitis Glycerae configura um oximoro, já que esta «D oce» (ver nota a 1.19.5)
é bem amarga.
438 Licóris foi um nome tomado célebre, para os contemporâneos de Horácio, por Comélio
Galo; embora a obra poética de Galo se tenha perdido (à exceção de brevíssimos fragmentos:
ver A.S. Hollis, Fragments of Roman Poetry, Oxford, 2007, pp. 219-252), sabemos da importân­
cia que nda desempenhou Licóris graças à Bucólica 10 de Vergílio.
4)9 Existe uma Fóloe na poesia de Tibulo, concretamente na elegia 1.8.0 nome ocorre de novo
na Ode 2.5 de Horácio.
440 adulter, -ι (masculino) significa não só «adúltero» como «amante» (ver OLD s.u.).
441 compés, -edis: «grilhão» (usado por escravos).
443 Mírtale é um nome real, epigraficamente documentado. O paradoxo de Horácio se apresen­
tar como acorrentado por uma ex-escrava salta à vista.
443 Metro: estrofe alcaica (ver NGL, pp. 391,406).
444 Aqui parcus no sentido de «avarento» (stingy, OLD s.u. lb). Um cultor «parco» dos deuses
é alguém que não quer gastar dinheiro (oferecer sacrifícios, etc.) com religião.
443 A expressividade dos oximoros vinca a retratação do passado epicurista e a reconversão da voz
falante neste poema a uma mundividência remistificada. Que esta ode representa (teatraliza,
quase) um afastamento da desmistificação lucredana da crença religiosa parece claro a partir da
refutação explícita de Lucrédo com o exemplo do trovão. Com efeito, em Dê rêrum nâtürâ (6.400),
Lucrécio afirmara que não há trovões com céu limpo. Horácio volta à ideia homérica (Odisséia
20.113-114) de que trovões com céu limpo existem, sim - embora não vá tão longe quanto
Homero (no passo citado) a ponto de dizer que, por meio deles, Zeus/Júpiter fala à raça humana.
446 Em Ténaro, na Lacónia (Peloponeso), existia uma gruta que seria uma das supostas entradas
para o mundo dos mortos. Note-se que este verso (1.34.10) é o único exemplo de um hende-
cassílabo alcaico em Horácio em que se dá a elisão de uma vogal longa no lugar da cesura (quõ
Styx et inuisi horrida Taenari).
447 Não é claro se, por «limite Atlântico», Horácio se está a referir ao Atlas ou ao rochedo a que
hoje chamamos Gibraltar.
448 prõmêns (de prõmô, no sentido de «dar a ver», «exibir», OLD s.u. 2). Horácio diz de Júpiter
o que Maria diz de Deus no Magnificat (Lucas 1:52): déposuit potentes dê sêde et exaltãuit humiles.
449 apex, apicis: «ápice»; aqui no sentido de «coroa».
N otas As O des 519

450 Metro: estrofe alcaica (NGL, pp. 391,406).


451 Âncio é uma localidade no litoral do Lácio (hoje chamado Anzio - e onde os romanos atuais
gostam de fazer praia). No tempo de Horácio, Antium era célebre por ser lugar de culto da deusa
Fortuna.
451 Horácio está a pensar em Emílio Paulo, a cujo esplendoroso triunfo se seguiu, dois dias
depois, a morte dos seus dois filhos. Dois versos antes, Horácio estaria a aludir (falando de um
corpo mortal elevado pela Fortuna do grau mais baixo) a Sérvio Túlio, antigo rei romano, filho
de um escravo.
453 Existe alguma controvérsia relativamente à construção gramatical de dominam, por causa
dos hipérbatos e das anáforas subentendidas na estrofe. Sigo na tradução a interpretação preco­
nizada por Nisbet & Hubbard (Vol. I, p. 390).
454 O «pélago carpátio» era uma zona do mar Egeu, entre Rodes e Creta, notória pelo perigo
que colocava à navegação. O barco é descrito como sendo de origem bitínia pelo exotismo, por
um lado; mas, por outro, também pelo facto de a Bitínia (na atual Turquia) ter sido uma região
arborizada que forneceu madeira para a construção navaL
455 «Dácio» seria um habitante do que é hoje a Romênia. Gregos e Romanos chamavam algo
indiscriminadamente «Citas» a todos os povos que viviam para lá do Danúbio.
456 O apelo «Às armas! Às armas» do hino nacional português tem um pedigree nobre que
podemos fazer remontar, até antes de Horácio, ao fr. 140 de Ésquilo.
457 Os manuscritos transmitem-nos duas redações divergentes da expressão referente à Neces­
sidade: saeua Necessitãs («cruel necessidade», lição escolhida por Keller/Holder, Klingner e
Shackleton Bailey) e serua Necessitãs («servil Necessidade», que só W ickham/Garrod prefe­
rem). A ideia da Necessidade como escrava da Fortuna é sugestiva, mas a expressão quiçá mais
estereotipada «cruel Necessidade» tem paralelos em Homero, Parménides e Euripides (ver
Nisbet & Hubbard, Vol. 1, p. 393) e resolve o problema de (na expressão com serua Necessitãs)
uma escrava caminhar à frente da sua dona - a não ser que Horácio tivesse em mente esse oxi-
moro social. A meu ver, saeua Necessitãs é a lição mais plausível, embora serua Necessitãs seja
a mais interessante (e com a sedução de ser a lectiõ difficilior).
4SS Não devemos pensar no chumbo como «líquido» no sentido em que está derretido, mas
sim na perspetiva de que serve para derreter.
459 Tal como na edição de Shackleton Bailey (e na Loeb de Niall Rudd), parece-me ser de
aceitar aqui a conjetura ut (Cunningham) por et (manuscritos). Este é o único passo nas Odes
em que Horácio usa a palavra meretrix (que ocorre, no entanto, nove vezes nas Sátiras).
460 cédó, cédere, cessi, cessum, «ceder», aqui (com retrô) «retirar-se», «afastar-se» (o verbo
surgira já em 1.6.6).
461 cadus, -í (masculino) designa um recipiente grande para líquidos. Quanto afaex,/aecis (feminino),
significa «borra».
461 A noção de que a Fortuna «salva» já vem da Olimpica 12 de Pindaro (ver especialmente as
primeiras duas estrofes: PGHT, pp. 250-251).
463 A imagem de um exército como «enxam e» já surge expressivamente nos Persas de Ésquilo
(v. 128).
464 As «zonas aurorais» referem o Oriente, onde nasce o Sol; o oceano Vermelho é o mar Índico.
463 Perfeito de pareô, parcere (verbo que já surgira em 1.28.23). Note-se a presença de trés
versos iniciados com sílaba breve nesta ode. À medida que vamos lendo os quatro livros de Odes
pela ordem, notamos que Horácio vai admitindo cada vez menos uma sílaba breve inicial na
estrofe alcaica, a ponto de, no Livro 4, não haver nenhum exemplo.
466 incus, incudis (feminino): «bigorna».
520 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições

467 A ideia de que Augusto deve ocupar-se com a chacina e a subjugação de povos estrangeiros e
acabar de vez com o fratricidio entre romanos foi o tema da Ode 1.2, tema que volta agora num
efeito de ring composition quase a fechar o Livro 1. Um pequeno toque calimaquiano surge na men­
ção de «Masságetas», que são mencionados no v. 15 do prólogo dos Aitia (ver PGHT, pp. 284-285).
468 Metro: dísticos.
1. glicónico ( ------- U U - U - )
2. asdepiadeu menor ( -------U U — U U - U - ) .
469 Não se sabe quem possa ter sido este Númida.
470 A «Hespéria últim a» é a Hispãnia.
471 C£ 1.26.8.
472 Esta expressão nõn aliõ rege («quando outro rei não havia») tem levantado dúvidas; há
quem interprete «rei» como referindo o professor que ensinou a ambos (Númida e Lâmia) as
primeiras letras; e há a interpretação de que Lâmia foi o «rei» da infância de Númida porque
era o seu melhor amigo e herói (o crush, como diríamos hoje).
473 A toga viril era normalmente assumida aos 15/16 anos.
474 O termo «nota ere tense» remete para o costume antigo de marcar com giz branco os dias
propídos. Porque «giz» em latim é crèta, decerto alguns romanos pensaram que vinha da ilha
de Crèta (na realidade, a etimologia de crèta, «giz», terá mais a ver com cemõ, «discernir»).
475 Participio perfeito de prõmõ, prõmere, prõmpsi, prõmptum, «tirar» (verbo que já encontrá­
mos, noutra aceção, em 134.14).
476 O nome «Sálios» designa sacerdotes de Marte, cuja dança singular é referida por T ito Lívio
(130.4).
477 A personagem feminina deste poema não só tem o nom e infeliz de «N ovilha» (em grego,
SápoXic, cujo sentido literal é «subjugada») como lhe são atribuídas as características de beber
de mais e de ser demasiado pegajosa. A luz sob a qual Horácio nos dá a ver Núm ida na relação
com os seus amigos homens (os muitos beijos dados, a recordação de Lâmia com o « re i» da
sua meninice) não poderia ser mais contrastante relativamente à que nos ilumina Núm ida como
amante de Dâmalis «de muito vinho», mulher em quem todos cravam os olhos «lânguidos»
(mas se calhar «podres» na intenção do olhar: ver nota ao v. 17, relativa a putris) e mais pega­
josa/ambiciosa do que heras «lascivas».
479 Horácio está talvez a pensar em Anacreonte (fr. 356: PGHT, pp. 114-115), onde surge a
palavra Apucriv com o sentido de «beber de um trago».
479 Embora o adjetivo putris (também puter) signifique « p ú trid o » (cf. a sua ligação com pus),
a aceção curiosa em que Horácio aqui o emprega sugere a ideia de «lânguido» (cf. O LD s.u. le,
onde este verso é citado).
490 Já vimos adulter no sentido de «am ante» em 1.33.9.
491 Por estranho que pareça, o sentido primário de ambitiosus é «w inding, tw isting, d in g in g »
(c£ OLD sii.). A aceção de «am bidoso» surge em segundo lugar no citado verbete.
m Metro: estrofe alcaica (NGL, pp. 391,406).
m O verbo pulsâ associado â ideia de dança faz lembrar o início dos Anais de É nio (Ntüsae·, quae
pedibus magnum pulsätis Olympum),
494 A referência aos Sálios, sacerdotes de Marte, cria aqui um dos dois elos evidentes com a ode anterior
493 O «e» de antehàc (na grafia arcaica, antidhãc) é teoricam ente breve, pelo que, em rigor,
a palavra forma um crético, o que seria impossível nesta posição da estrofe alcaica. H orácio
resolve o problema fingindo que a palavra é um dissílabo, m as o verso n o seu to d o dá um a
sensação imperfeita, também porque nele vemos o fenôm eno rarissimo em H orácio (ver N isbet
8c Hubbard, VoL 1, p. XLI) de o dodrante não estar separado da prim eira parte do verso p o r m eio
N otas às O des 521

de diérese (ver NGL, pp. 390-391,406). O mesmo acontece, neste poema, no v. 14. É o único
poema em toda a coletânea dos quatro livros de Odes em que esta imperfeição métrica ocorre
duas vezes. Note-se que, além destas curiosidades, temos ainda a surpresa de duas ocorrências
no mesmo poema alcaico de versos iniciados com sílaba breve: cf. 15, 22. Embora Nunc est
bibendum seja, pelo seu incipit, um dos poemas mais célebres de Horácio, está longe de ser
tecnicamente o mais perfeito - ou então (quem sabe...) as imperfeições estão lá de propósito,
para sabotar sub-repticiamente a retórica propagandística do poema.
496 A excelência do vinho cécubo já fora tematizada em 1.20.9.
487 Curiosamente, os poetas augustanos nunca se referem a Cleópatra pelo nome.
499 O uso aqui da palavra uir («hom em », «varão») é irônica, já que Horácio está a referir-se
ao séquito de eunucos da rainha.
499 O tema da mulher bébeda proporciona uma ligação com a ode anterior, onde uma estran­
geira demasiado dada ao vinho se agarrava pegajosamente, como hera lasciva, a um romano.
490 Os fogos referidos dizem respeito às naus incendiadas na Batalha de Áccio.
491 O vinho mareótico era egípcio e, logo, aos olhos romanos, «m arado».
492 A Hemónia é uma zona no norte da Grécia.
493 Uma das razões pelas quais, aos olhos romanos, Cleópatra seria um «m onstro fatal» era o
facto de ela ser tida como filha de pais que eram irmãos.
494 As naus libumas (o nome diz respeito a uma região no norte de Itália) tinham sido usadas
por Octaviano na Batalha de Àccio. São mencionadas em Epodos 1.1.
495 Para esta aceção de príuãtus («destituído de estatuto»), ver o primeiro verbete sobre este
vocábulo no OLD s.u. 2b (onde o presente verso é citado).
496 Horácio não explicita o fim que Cleópatra quis evitar e que está claro numa passagem de
Tito Lívio (26.13.15): após a participação hum ilhante no triunfo, os prisioneiros de guerra eram
levados para o cárcere, onde eram flagelados e, de seguida, executados.
497 Metro: estrofe sáfica (NGL, p. 391).
499 O vocativo puer evoca ώ παϊ (« ó rapaz») em grego (cf. Anacreonte, fr. 356: PGHT, pp. 114-
-115) e refere-se obviamente a um escravo. Não deixa de ser curiosa a situação de Horácio dedi­
car o primeiro poema do Livro 1 a Mecenas e o último a um escravo, sendo Augusto o dedicatá-
rio do segundo poema e o herói vitorioso do penúltimo. Em tem pos passados, houve quem
duvidasse de que Horácio pudesse ter fechado o Livro 1 com um poema tão breve em que a
pessoa interpelada não passa de um escravo, surgindo assim a teoria de que, originalmente, o livro
teria 40 poemas, dos quais os dois últimos se perderam (ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 423).
499 A rejeição do luxo oriental é tão antiga quanto Arquíloco (fr. 19 West: «N ão me importa
o ouro de Giges...»).
300 Como alternativa ao presente do indicativo cúrõ, os aparatos das várias edições registam
a conjetura interessante de Bentley: cúrã (imperativo).
501 O último poema do Livro 1fecha com um enigma: que sentido devemos dar aqui ao adjetivo
artus na expressão artã uífe? É que são duas (e contraditórias) as hipóteses possíveis: «sob
estreita vinha» (OLD s.u. artus, 6, 7, 8) ou «sob espessa/cerrada vinha» (OLD s.u. 9). Tudo
depende do que pensamos ser a intenção de Horácio neste poema: reafirmação do requinte
calimaquiano na poesia por meio da rejeição do requinte oriental na vida? Fraenkel (pp. 297-
-298) opinou que o poema tem uma intenção estético-literária e que apregoa o compromisso
com o estilo simples na poesia - questão que esbarra com o facto óbvio de que «Horaces style
is in fact very complex» (Nisbet &Hubbard, Vol. I, p. 423). O sentido próprio de artus (cognato
de ars, artis [«arte»] e de άραρίαςω [«ajustar»]) sugere a ideia de «tightly fastened» ( O L D l).
Podemos imaginar, talvez, uma vinha simples e artisticamente ajustada à sua pérgula.
Respostas ao q u iz da Lição n.° 39

1. Imperfeito.
2. Futuro.
3. Acusativo.
4. Perfeito.
5. Conjuntivo.
6. Dativo.
7. Ablativo.
8. uidêrunt.
9. nõlx timêre.
10. Ablativo absoluto.
11. operêmur.
12. opus.
13. mundõ.
14. Indicativo futuro perfeito (porque potest é também indicativo)
15. Conjuntivo perfeito (porque moriãtur também é conjuntivo; ver
Lição n.° 34)
16. Gerúndio
17. Depoente.
18. As frases cujos verbos estão no conjuntivo são interrogativas indiretas
(NGL, p. 345).
19. utuat.
20. uitae.
índice temático

Ablativo, 45-46, 54, 74, 123, 139, Conjuntivo perfeito ativo, 149,
142,185-186,231 150, 159, 200-206
Ablativo absoluto, 128, 132, 204, Conjuntivo perfeito e mais-que-
209,253,254,263 -perfeito passivos, 146
Acusativo, 24, 27,29, 136 Conjuntivo potencial, 202-203,
Acusativo de exclamação, 56, 211, 205
236 C onjuntivo presente ativo/
Adjetivos, 57,155 /passivo, 85-86
Agente da passiva, 107,235 cum («quando»), 94, 128-129,
Alfabeto, 45 140,145
Artigo (inexistência de), 25
Dativo, 51, 254 (atração do
Complemento direto, 27 dativo)
Conjugação mista, 73 Dativo de agente, 209
Conjuntivo de sum (presente e Declinação ( l.a), 52
imperfeito), 112,217 Declinação (2.a), 52
Conjuntivo deliberativo, 210- Declinação (3.a), 53,55,56
-211 Declinação (4.a), 70
Conjuntivo imperfeito ativo/ Declinação (5.a), 111
/passivo, 118-119 Desinência, 24
Conjuntivo jussitivo, 86, 89, 116,
253,260 Enunciação (de um substantivo),
Conjuntivo mais-que-perfeito 32
ativo, 138 Enunciação (de um verbo), 49-50
524 Latim do Z ero a V ergílio em 50 L ições

eõ, ire, 83,104,107,167 Indicativo perfeito ativo de amõ, 49


-ire p o r -èrunt, 93 Indicativo perfeito ativo de sum,
ergõ, 65 53-54
Indicativo perfeito passivo de amõ,
fiõ, 97 107
Formas verbais sincopadas, 250 Indicativo presente ativo de amõ,
22,43
Genitivo, 32-37,169,190,236 Indicativo presente ativo de habeõ,
Gerundio, 157-158 60
Gerundivo, 163 Indicativo presente ativo de uolõ,
Gerundivo por gerúndio, 233 97
Indicativo presente passivo de
hic (advérbio), 75 laudõ, 81
Indicativo presente de sum, 31
Imperativo, 99,100,113-114,152 Infinitivo, 87,225
Indicativo futuro ativo de amõ, in mediãs rês, 175
38-39,43 Interrogativa direta, 158,211
Indicativo futuro ativo de déscendõ, Interrogativa indireta, 138, 150,
82 153,171,195,235
Indicativo futuro de sum, 67
Indicativo futuro passivo de laudõ, memini, 197
81
Indicativo futuro passivo de uideõ, -ne, 211,233
104 né + conjuntivo, 176, 202, 213,
Indicativo futuro perfeito, 149, 218 (nêue), 254
150,159,200-206 Neutro, 3 5 ,5 6
Indicativo imperfeito ativo de nõlt, nõlite, 98,115
amõ, 59 Nominativo, 2 4 ,2 9
Indicativo imperfeito ativo de
habeõ, 6 0 õdi, 197
Indicativo imperfeito de sum , 6 6 Oração condicional, 119, 143,
Indicativo mais-que-perfeito ativo, 193-194,197,202,208-209
137,140-141 Oração consecutiva, 167,240
Í n d ic e t e m á t ic o 525

Oração final, 99, 113, 176, 213, Segundo termo de comparação,


218 150
Oração infinitiva, 120-122, 133, sèsê, 233
153, 158, 219, 225, 234, 237, sum com dativo, 110
254 Supino, 224
Oração relativa, 123
três (numeral), 172
Particípios, 105, 116, 126-127,
210,254 ubi («quando» ), 132
Perfeito redobrado, 189-190 uft, 167
Preposições, 30, 34, 44, 54, 108, üti, 231
134 ut, 167,206,240
Pronome demonstrativo, 57, 72,
7 3,109,110,237 Verbo impessoal, 158, 186, 209,
Pronome indefinido, 225,252 237,249
Pronome interrogativo, 103 Verbo (quatro conjugações), 59
Pronome pessoal, 6 4 ,7 3 ,7 7 Vocativo, 88-89
Pronome possessivo, 2 9 ,6 5 ,7 3 Vogais longas e breves, 91-93
Pronome relativo, 5 7 ,7 2 ,7 3 ,1 0 2 - uõs, 42
-103,110 Voz passiva, 80

-que, 40,111
quod (conjunção), 78,239
quoniam, 64,78
Este Latim do Zero a Vergilio cm SO lições,
de Frederico Lourenço,
publicado por Quetzal Editores,
foi composto em caracteres da família Amo,
criada em 2007 por Robert Slimbach
e inspirada na elegante tradição da tipografia italiana dos séculos xv e xvi,
bem como dos cursivos de Ludovico Vicentino degli Arrighi.
A designação «Amo» deve-se ao rio que atravessa a cidade de Florença.
Este livro foi reimpresso por Bloco Gráfico,
em papel Munken Print Cream/90 g,
durante o més de dezembro de 2020.
Obras de Frederico Lourenço na Quetzal:

Bíblia, tradução em 6 volumes


Odisséia, de H om ero
Odisséia de Homero Adaptada para Jovens
Ilíada, de H om ero
Iliada de Homero Adaptada para Jovens
Nova Gramática do Latim
Poesia Grega de Hesiodo a Teócrito
Latim do Zero a Vergilio em 50 Lições

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