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Frederico Lourenço - Latim Do Zero A Vergilio em 50 Lições-Quetzal (2020)
Frederico Lourenço - Latim Do Zero A Vergilio em 50 Lições-Quetzal (2020)
DO
ZERO
FREDERICO LOURENÇO
Como complemento à Nova Gramática do Latim,
Frederico Lourenço propõe um método atraente e direto
para a aprendizagem da língua latina.
LATI M
DO
ZERO
Ensaísta, tradutor, ficcionista e poeta, Frederico
Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é atualmente
professor associado com agregação da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra e membro do
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da
mesma instituição. Foi docente, entre 1989 e 2009,
da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em
Línguas e Literaturas Clássicas (1988) e se doutorou
em Literatura Grega (1999) com uma tese sobre
Euripides, orientada por Victor Jabouille (Lisboa)
e James Diggle (Cambridge). Publicou artigos sobre
Filologia Grega nas mais prestigiadas revistas
internacionais (Classical Quarterly e Journal o f
Hellenic Studies) e, além da Iliada, traduziu também
a Odisséia de Homero, tragédias de Sófocles e de
Euripides, e peças de Goethe, Schiller e Arthur
Schnitzler. No domínio da ficção, é autor de Pode
Um Desejo Imenso (2002). Na poesia, é autor de
Santo Asinha e Outros Poemas e de Clara Suspeita
de Luz. Publicou ensaios como O Livro Aberto:
Leituras da Bíblia, Grécia Revisitada, Estética
da Dança Clássica e Novos Ensaios Helénicos
e Alemães (Prêmio PEN Clube de Ensaio 2008).
Recebeu ainda os prêmios PEN Clube Primeira
Obra (2002), Prêmio D. Diniz da Casa de Mateus
(2003), Grande Prêmio de Tradução (2003), Prêmio
Europa David Mourão-Ferreira (2006).
Em 2016 iniciou na Quetzal a publicação dos seis
volumes da sua tradução da Bíblia — que lhe
valeu o Prêmio Pessoa —, em 2019 publicou
uma Nova Gramática do Latim e, em 2020,
Poesia Grega de Hesiodo a Teócrito — edição
bilingue em grego e português.
ò
QUETZAL. Ave trepadora da América Central,
que morre quando privada de liberdade;
raiz e origem de Quetzalcoatl (serpente
emplumada com penas de quetzal), divindade
dos Toltecas, cuja alma, segundo reza a lenda, teria
subido ao céu sob a forma de Estrela da Manhã.
Latim
do Zero
a Vergilio em 50 lições
F r e d e r ic o L ourenço
ò
Q U ETZA L
LATIM DO ZERO A V ER G lU O EM SO LIÇÕES
FredericoLourenço
1.· e d iç ã o
Novembro de 2020
1.“ REIMPRESSÃO
Dezembro de 2020
C o o rd e n a ç ã o
Francisco José Viegas
R evisão
Diogo Morais Baibosa
P a c in a ç ã o
Gráfica 99
D esig n d a c a p a
Rui Cartaxo Rodrigues
P ro d u ç ã o
Teresa Reis Gomes
ISBN: 978-989-722-702-8
Código Círculo de Leitores: 1107283
Depósito legal· 474 272/20
Quetzal Editores
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1
1500-499 Lisboa PORTUGAL
https://www.quetzaleditores.pt
quetzal@quetzalcditores.pt
TeL21 7626000
« T h e study o f Virgil brings w ith it the richest
o f all th e rew ards th at Latin has for its initiates.»
R.G. Austin
P rbfácio 13
Sinais e abreviaturas 17
I. L iç õ e s
Lição n.° 1 21
(Indicativo presente ativo da l.a conjugação; nominativo e acusativo do singular
[ l.a e 2.a declinações].)
Lição n.° 2 26
(Nominativo e acusativo do plural [ I a e 2 a declinações]; preposições ad e per,
indicativo presente de sum; Lucas 1:46.)
Lição n.° 3 32
(Genitivo; substantivos neutros da 2 a declinação; Cântico dos Cânticos
1:14; 2:2; 1:4; 4:10-11; Mateus 16:18-19; Vergilio, Eneida 1.1.)
Lição n.° 4 41
(Ablativo; indicativo futuro ativo; Mateus 3:16; 5:13-14; 4:7; 4:18; Lucas 1:28;
João 1:1; 10:11.)
Lição n.° 5 47
(Indicativo perfeito ativo; dativo; 3.a declinação; Gênesis 1:1;
Ovídio, Metamorfoses 1.556.)
Lição n.° 6 55
(Infinitivo presente ativo; indicativo imperfeito ativo da l.a conjugação;
indicativo presente e imperfeito ativos da 2.a conjugação; menção das quatro
conjugações; Eclesiastes 1:1; 2:10-11; 1:10; 1:7; 2:4; 3:8; 3:10; Vergilio, Eneida 3.9; 3.21.)
Lição n.° 7 62
(Pronomes pessoais; 1 Coríntios 13:12; Mateus 5:8; 6:9; Ovídio, Metamorfoses
1.6; 1.513; 1.517-8.)
Lição n.° 8 69
(4.a declinação; Vergilio, Eneida 1.34-35; César, Dê Bellõ Gallicõ 6.13.8;
Lucas 8:20; 1:41-42.)
Lição n.° 9 75
(Ovidio, Metamorfoses 1.513-514; 1.517-518; 1.521-524; Mateus 5:3.)
Lição n.° 10 80
(Vozpassiva, indicativo presente e futuro da 1.» e 2 a conjugações; indicativo
presente e futuro ativos da 3.a conjugação; Mateus 5:5-9; Vergilio, Eneida 2.277-279.)
Lição n.° 11 85
(Conjuntivo presente; infinitivo presente e perfeito; vocativo do singular
da 2 a dedinação; Catulo 8 [inicio].)
Lição n.° 12 91
(Vogais longas e breves; Catulo 8 [continuação].)
Lição n.° 13 96
(uolõ e rtóló; formas de imperativo; ut + conjuntivo (final); João 20:17;
Mateus 7:1; 7:6; Catulo 8 [continuação].)
II. V e rg ílio
III. Horácio
F.L.
Coimbra, 2020.
Sinais e abreviaturas
Sinais
Abreviaturas
Buchheit = V. Buchheit, Vergil über die Sendung Roms, Heidelberg,
1963.
Brink = C.O. Brink, Horace on Poetry, Cambridge, 1963-1982,3 vols.
Austin i = P. Vergili Maronis Aeneidos Liber Pnmus, edited with a com
mentary by R.G. Austin, Oxford, 1971.
18 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições
português latim
amo amõ
amas amas
ama amat
amamos amãmus
amais amãtis
amam 1 amant
salütãs
ambulãtis
clamat
labõrant
nãuigãmus.
«saúdas»
«caminhais»
«chama»
«trabalham»
«navegamos».
puella (nominativo)
puellam (acusativo)
amicus (nominativo)
amicum (acusativo).
laudõ («louvar»)
dubitõ («duvidar»)
célõ («esconder»)
dclectõ («deleitar», «encantar»)
dõnõ («dar»)
mõnstrõ («mostrar»).
laudãmus
dubitant
cêlãs
dêlectãtis
dõnat
mõnstrõ.
LiçAo N.° 2 27
«louvamos»
«duvidam»
«escondes»
«deleitais»
«dá»
«m ostro».
puellam, rosam
dominum, amicum.
Vamos agora ver mais palavras que se declinam como rosa e puella.
lüna («Lua»)
hõra («hora»)
cèna («ceia»)
oliua («azeitona»)
Lüsitània («Lusitânia»).
lupus («lobo»)
locus («lugar»)
fümus («fum o»)
agnus («cordeiro»)
deus («deus»).
sou
és
LiçAo N.° 2 31
é
somos
sois
são.
sum
es
est
sumus
estis
sunt
Lição n.° 3
lüna («Lua»)
hõra («hora»)
columba («pom ba»).
lünae
hõrae
columbae.
amica («amiga»)
fêmina («m ulher»)
cena («ceia»).
(Entre parênteses angulares < > coloco sempre as palavras que têm
de ser subentendidas em latim, pois a língua latina é infinitamente mais
sintética do que a nossa.)
Aproveitemos, ainda, uma frase do Cântico dos Cânticos para rever-
mos algo que vimos na lição anterior: o facto de as preposições latinas se
construírem com casos específicos.
Falámos na p. 30 em ad e per, que se constroem com acusativo:
Em português:
(Só uma nota para referir que os textos hebraico e grego correspon
dentes não têm o «m as»; têm « e»: «Sou negra e formosa.»)
Ora bem: a partir destas frases do Cântico dos Cânticos em latim,
introduzimos alguns conhecimentos novos:
prãtum («prado»)
saxum («rocha»)
cõnsilium («conselho»)
õuum («ovo»)
theãtrum («teatro»).
amicus («amigo»)
equus («cavalo»)
oculus («olho»)
dominus («senhor»).
oculus
saxum
cõnsilium.
Lição n .° 3 37
oculi
saxi
consilii
locus («lugar»)
filius («filho»)
bellum («guerra»; c£, em português, «bélico», «belicoso»).
locõrum
filiorum
bellõrum.
Ou seja:
uxnum («vinho»)
uerbum («palavra»)
templum («templo»)
auxilium («ajuda»).
uina
uerba
templa
auxilia.
amõ
amäs
Lição n * 3 39
amat
amãmus
amãtis
amant
aedificabo ( «edificarei»)
aedificabis ( « edificarás » )
aedificabit («edificará»)
aedificabimus («edificaremos»)
aedificabitis («edificareis»)
aedificãbunt («edificarão»).
nõn («não»)
et («e»).
sum
es
est
sumus
estis
sunt
Há pouco vimos na frase de Mateus: uõs estis sãl terrae («Vós sois
o sal da terra»).
Conhecemos o presente e o futuro do indicativo dos verbos da
l.a conjugação (como amõ). Relembremos:
presente futuro
amõ amãbõ
amãs amãbis
amat amãbit
amãmus amãbimus
amãtis amãbitis
amant amãbunt
44 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum.
ego sum pãstor bonus; bonus pãstor dat animam suam prõ ouibus.
Lição n.° 5
O primeiro tema desta lição tem a ver com o alfabeto latino, que,
como muitas pessoas já sabem, constituiu uma adaptação ao latim do
alfabeto grego. Isto não é de admirar, já que, quando Roma foi fundada
(no século v iu a.C.), o grego já era uma das várias línguas faladas na
península itálica. Todo o sul de Itália e a Sicilia constituíam zonas onde
a língua materna dos habitantes era o grego.
Por isso, uma das minhas frases preferidas da NGL (p. 20) é justa
mente a que diz: «Quando, no século vi a.C., Pitágoras deixou a sua ilha
de Samos (perto da atual Turquia) para se estabelecer em Crotona, no
sul de Itália, teve uma experiência análoga ao português que embarca
num avião em Lisboa e aterra no Rio de Janeiro: atravessou o mar, fez
uma longa viagem, mas a língua falada na cidade de chegada é a mesma
da cidade donde partiu.»
Naturalmente, houve letras do alfabeto grego que não serviram ao
latim; e criaram-se letras no alfabeto latino que não existiam no grego.
Uma delas é a letra «V».
Na Antiguidade, todos os textos eram escritos somente com letras
maiúsculas. Por exemplo, a palavra que já sabemos que significa «prado»
escrevia-se PRATVM. As famosas palavras correspondentes à sigla SPQR
escreviam-se assim por extenso: SENATVS POPVLVSQVE ROMANVS.
A convenção moderna na escrita do latim (em que usamos obvia
mente letras minúsculas, preciosa invenção dos séculos v i i i - i x d.C.) é que,
quando a letra «V» pertence a uma palavra em que usamos maiúscula, a
sua forma é V. Por exemplo, o nome da deusa do amor: em latim, Venus.
48 Latim do Zero a V ergílio em SO Lições
Mas, quando se trata de uma palavra em que a letra tem de ser minús
cula, muitos latinistas usam somente u. A palavra para «vinho», por
exemplo, escrita toda em maiúsculas à boa maneira antiga, grafa-se
VINVM. Se a escrevermos com letras minúsculas, a convenção dos lati
nistas (pelo menos de muitos deles) é escrever utnum.
Isto condiz mais com a pronúncia que V tinha na época clássica,
digamos nos tempos de Cícero e de Vergílio. Quando consideramos a
palavra inglesa para «vinho», vemos ainda o mesmo som inicial (wine),
que era também, antes até dos tempos homéricos, o som inicial da pala
vra em grego: wotnos (Folvoc).
Curiosamente, em alemão a palavra é pronunciada, apesar do «W »
inicial, com o mesmo som de três Unguas latinas (italiano, francês,
português):
Wein (alemão)
vin (francês)
vino (italiano)
vinho (português).
amãui («amei»)
amãuisti («amaste»)
amãuit («amou»)
amãuimus («amámos»)
amãuistis («amastes»)
amãuêrunt («amaram»).
Talvez o aspeto gráfico deste tempo verbal nos parecesse mais intui
tivo se usássemos a grafia usual noutros tempos:
amãvi
amãvisti
amãvit
amãvimus
amavistis
amaverunt
poeta rosam fêminae dat («O poeta oferece uma rosa à mulher»).
dativo (fêminae)
genitivo (fêminae)
nominativo do plural (fêminae).
dativo (lignõ)
ablativo (lignõ).
52 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições
N O M IN A TIV O : flõs/flõrês
a c u s a tiv o : florem /flõrés
G E N IT IV O : flõris/flõrum
DATIVO: flo r i/flõribus
a b la tiv o : flõre / flõribus.
fui («fili»)
fuisti («foste»)
fuit («foi»)
fuimus («fomos»)
fuistis («fostes»)
fuerunt («foram»).
õ tempora! õ mõrés!
Reparem:
no nominativo: uãnitãs
no genitivo do plural: uãnitãtum
na forma dixit, perfeito do verbo dicõ («dizer»).
et omnia quae désiderãuérunt oculi mei nõn negãut eis (Edesiastes 2:10).
58 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições
E proponhamos a tradução:
pãx,pãcis («paz»)
homõ, hominis («ser humano», «hom em »).
Como veem, na frase n.° 5 tém uma boa oportunidade para treinar
o dativo (filiis, «aos filhos»: complemento indireto), assim como o geni
tivo do plural da 3.a declinação. Já agora, dedi é o perfeito do verbo
«dar», que se enuncia dõ, dare, dedi, datum.
A menção que fizemos acima do verbo permanere é uma boa deixa
para falar no facto de que, no verbo latino, temos quatro conjugações:
amãbam («amava»)
amãbãs («amavas»)
amãbat («amava»)
amãbãmus («amávamos»)
amãbãtis («amáveis»)
amãbant («amavam»).
60 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições
habeõ / habèbam
habês / habêbàs
habet / habêbat
habêmus / habêbãmus
habêtis / habêbãtis
habent/ habebant
1. clamãbàs;
2. laudauêrunt;
3. habêbunt;
4. amãbant
1. imperfeito;
2. perfeito;
LiçAo N.° 7 63
3. futuro;
4. imperfeito.
1. pãstõribus;
2. uirtüft;
3. prãta;
4. amicõrum.
A CU SA Tivo: mê/nõs
g e n itiv o : mei/nostri
DATIVO: m ihi/ nõbis
a b la tiv o : m i / nobis.
NOMINATIVO: tü/uÕS
ACUSATIVO: te / UÕS
GENITIVO: tui/uestri
DATIVO: tib i/uóbis
ABLATIVO: te / uõbis.
Lição n .° 7 65
Para uma abordagem mais completa ao Pai-Nosso em latim, ver pp. 241-245.
66 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições
era / eram
eras /erãs
era / erat
éramos /eramus
éreis / erãtis
eram / erant
erõ («serei»)
eris («serás»)
erit («será»)
erimus («serem os»)
entis («sereis»)
erunt («serão»).
2 «Devido a mim os cantos são consonantes com as cordas», isto é, palavras e música formam,
devido à agência de Apoio, um todo harmonioso. Ver p. 76.
Lição n.° 8
1. imperfeito;
2. acusativo do plural;
3. ablativo do singular.
70 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
hts autem omnibus Druidibuspraeest ünus, qui summam inter eõs habet
auctoritatem.
his autem omnibus Druidibus praeest unus, qui summam inter eõs habet
auctõritãtem.
his autem omnibus Druidibus praeest ünus, qui summam inter eõs habet
auctõritãtem.
«Pois sobre todos estes Druidas um preside, que tem entre eles
a autoridade suprema.»
Com a indicação de que foris significa «lá fora», vejamos agora esta
frase do Evangelho de Lucas (8:20), quando vêm dar a Jesus a seguinte
notícia:
mãter mea etfrãtrés mel hi sunt qui uerbum Del audiunt etfaciunt
Notem que, nas palavras armenta gregèsque, temos dois tipos de acu-
sativo do plural: no caso de armenta («manadas»), temos um plural
neutro da 2.a declinação; no caso de gregês (do substantivo grex, gregis,
«rebanho»), temos um plural masculino da 3.a declinação.
Quanto a htc, não se trata neste contexto do pronome demonstrativo
hic, haec, hoc («este», «esta»; NGL, p. 221), mas sim do advérbio que
significa «aqui»: h\c.
76 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
«Eu não sou pastor; não guardo aqui, desgrenhado, manadas e reba
nhos.»
grego, dado que no texto grego deste Evangelho lê-se «mendigos pelo
espírito»; podem olhar para a nota a esta passagem na minha tradução
dos Evangelhos).
Vejamos ainda:
laudor
laudãris
laudatur
laudãmur
laudamini
laudantur.
laudãbõ / laudãbor
laudabis / laudaberis
laudabit / laudabitur
laudabimus / laudabimur
laudabitis / laudãbimini
laudabunt / laudabuntur.
descendo / descendam
descendis / descendes
descendit / descendet
descendimus / descendemus
descenditis/ descendetis
descendunt / descendent.
Note-se o seguinte:
ame / escreva
ames / escrevas
ame / escreva
amemos / escrevamos
ameis / escrevais
amem / escrevam.
amem/scribam
amês/scribãs
amet/ scribat
amemus / scribãmus
amêtis / scribãtis
ament / scribant
amer/scribar
ameris / scribãris
ametur/ scribatur
amèmur / scribãmur
amemini / scribamini
amentur / scribantur.
Ora bem: o latim é uma língua tão bela na lógica da sua gramática
que até tem uma forma própria, sintética, para o infinitivo perfeito.
Nós, em português, temos formas compostas para o infinitivo
perfeito:
Em latim, como já ficou dito, existe uma forma própria para o infi
nitivo perfeito, que é formado, logicamente, a partir do perfeito.
ã /â
ê/ è
ϊ/ϊ
õ/ ö
ü / ü.
uolõ («quero»)
uis («queres»)
uult( «quer»)
uolumus («querem os»)
uultis («quereis»)
uolunt («querem »).
Vejamos agora a frase em que Jesus diz «Não julgueis para que não
sejais julgados» (Mateus 7:1):
o imperativo negativo
o conjuntivo presente passivo (aqui de iüdicõ, iüdicàre, «julgar»)
e um primeiro exemplo de oração subordinada: uma oração final
de ut + conjuntivo.
Fiquem agora com tudo o que já lemos deste poema em latim. Leiam
várias vezes e saboreiem o gosto de ler um grande poeta latino no origi
nal. Na próxima lição terminaremos este poema.
«Não pode uma árvore boa produzir [à letra, fazer] frutos maus,
nem pode uma árvore má produzir frutos bons.»
«Toda a árvore que não produz fruto bom é cortada e é enviada para
o fogo.»
Bssa passagem em que João Batista fala de Jesus é útil para vermos
mais usos do pronome relativo. João Batista diz o seguinte:
Vejamos então:
3Só um comentário final: dcstinàtus não tem aqui um sentido muito diferente de obstinatus (que
não teria ficado bem no verso, por causa da seqüência metricamente incômoda Catulle
obstinatus).
Lição n.° 15
faciêns («fazendo»)
uidéns («vendo»)
adpropiãns («aproximando-se»)
infundens («derramando»)
impõnêns («pondo», «impondo»).
,
1 . formas de perfeito (excipit do verbo excipiõ, excipere, excepi,
nominativo:/aciês/faciês
acus ativo:f aciem /faciês
genitivo:faciêi/ faciêrum
dativo:faciêi/faciêbus
ablativo ifaciê /faciêbus.
dixitque Deus: «fiat lüx». et facta est lüx. et uldit Deux lucem, quod
esset bona, et diuisit lücem ac tenebräs. appelläuitque lücem «diem» et tene-
bräs «noctem».
Ora bem: aqui temos mais uma palavra da S.a declinação: a palavra
diès, diei, donde vem a nossa palavra portuguesa «dia».
£ a frase é útil para introduzirmos mais um tempo do conjuntivo:
o imperfeito, que aqui vemos na forma verbal esset. Vejamos o presente
e o imperfeito do verbo sum:
sim /essem
sis / esses
s it/ esset
simus / essemus
sitis / essetis
sint/ essent.
Na frase quod esset bona («que era boa») temos uma situação fasci
nante. Deus viu que a luz era boa; mas tanto em hebraico como em grego
não temos forma do verbo «ser», porque em ambas as frases (a hebraica
e a grega) o verbo está subentendido. O que é fascinante no texto latino é:
se soubesse o que o ser humano haveria um dia de fazer com este perigosís-
simo cheque em branco?
Mas curiosa é também a frase «crescei e multiplicai-vos»: a frase
que põe na boca do Deus do Antigo Testamento a ordem para nos repro
duzirmos, para nos dedicarmos à procriação de filhos. Um dos aspetos
fascinantes do pensamento e das convicções dos primeiros cristãos era
justamente a ideia contrária: não procriar. Se repararem bem, não há
frases colocadas pelos evangelistas na boca de Jesus que nos digam para
procriarmos. É certo que Jesus fala na indissolubilidade do casamento,
mas não aproveita o ensejo para incentivar a procriação de filhos. Nas
cartas autênticas de São Paulo, também não há incentivo à procriação.
Temos, antes, o incentivo à virgindade.
É certo que São Paulo afirma que não recebeu instrução de Deus
sobre a virgindade (l Coríntios 7:25):
inuocat tê, Domine, fidês mea, quam dedisti mihi, quam inspirasti mihi
per humãnitãtem filii tui.
4Cf. a nota de R.D. Williams a Eneida 3.145 em P. Vergili Maronis Aeneidos Liber Tertius, Oxford,
1962, p. 86.
Lição n .° 17 119
amãrem / uidèrem
amãrês / uidêrês
amãret/ uidêret
amãrêmus / uidèrèmus
amárêtis/ uidêrêtis
amãrent/ uidêrent.
adest uir summã auctoritate et religione etfide, qui dicit SÈ scire (Prõ
Archiâ 8).
Lição N.° 18 123
Notem:
Poucos versos depois, Vergílio (pela boca de Eneias, que está a con
tar a história das suas viagens a Dido), refere a ilha de Delos como sacra...
tellús (3.73), expressão onde não há a mínima dúvida de que sacra signi
fica «sagrada».
Qual será a aceção mais antiga de sacer? «Maldito» ou «sagrado»?
A primeira aceção é indubitavelmente antiga. Já a arcaica Lei das Doze
Tábuas, que os Gauleses destruíram no século iv a.C. (mas que nos che
gou por citações de autores mais tardios), emprega sacer no sentido de
«maldito», quando determina o seguinte:
Lição n.° 18 125
Como veem, traduzi eunte... illõ por «enquanto ele avançava». E per
cebemos também aquilo que referi da independência do sujeito do abla
tivo absoluto em relação ao verbo principal: o sujeito do ablativo absoluto
éJesus; o sujeito de substernebant são as pessoas que estendiam na via as
suas vestes.
Agora reparem na oração «quando chegou...»: em latim, cum adpro-
pinquãret Temos aqui cum (como conjunção: «quando») juntamente
Liçào N.° 19 129
Claro que os inferi são os lugares infernais; mas o que foram esses
vários e sombrios amores?
Agostinho carrega na linguagem do exagero, mas poupa na da cla
reza: diz que ficou putrefacto diante dos olhos de Deus ao agradar-se
a si mesmo e ao querer agradar aos olhos dos homens (notem a prepo
sição cõram + ablativo, «diante de»):
E, por fim, não é sem razão que Agostinho pergunta, naquela que é
a mais simples e avassaladora definição do amor:
«E o que era que me deleitava, a não ser [nisi] amar e ser amado?»
Vejamos a tradução:
«Eu ainda não amava, e amava amar; e por causa de uma carência
secreta eu me odiava, menos carente.»
õderam
õderãs
õderat
LiçAo N.° 21 137
õderãmus
õderãtis
õderant.
amãueram / amãuissem
amãuerãs / amãuissès
amãuerat / amãuisset
amãuerãmus / amãuissêmus
amãuerãtis / amãuissêtis
amãuerant / amãuissent.
6 Cf. R. Lane Foz, Augustine: Conversions and Confessions, London, 2015, p. 75; e o l.° volume
da edição das Confissões por Carolyn Hammond na série Loeb da Harvard University Press,
2014, p. xxiii.
Lição n.° 21 139
àquela em que ele afirma que era doce fruir do corpo da/do amante,
lemos a confissão de que ele costumava inquinar a veia da amizade com
a imundície (sordês, sordis) da concupiscência, assim obnubilando o
candor da amizade a partir do inferno da libido:
in illis annis quõ primum tempore in municipio quõ nãtus sum docêre
COEPERAM, COMPARAVERAM amicum, societate studiorum nimis
cãrum, coaeuum mihi et conflõrentemflõre adulescentiae.
«Naqueles anos, no tempo em que primeiramente no municipio
onde nasci comecei a ensinar, arranjei um amigo, muito caro pela socie
dade dos estudos [isto é, pelos estudos que partilhávamos], meu coevo
e desabrochando também na flor da adolescência.»
Por fim, só o choro (flêtus, flétús, 4.a declinação) era doce a Agosti
nho: sucedera ao amigo nas delícias da sua alma. £ com mais um mais-
-que-perfeito, terminamos esta lição:
Continuemos a narração:
uidéns autem Pharisaeus qui uocãuerat eum, ait intrã sé, dlcèns: «hic si
esset propheta, sciret quae et quãlis mulier, quae tangit eum».
«Se este fosse profeta, saberia que tipo de mulher <é esta> que lhe
está a tocar.»
Mas é evidente que Jesus sabe muito bem que mulher é esta. £ diz
a frase extraordinária7:
Ou seja:
cum uidissent Mariam quia citõ surrêxit et exiit, secütl sunt eam, dicen
tes quia uädit ad monumentum, ut ploret ibi. Maria ergõ cum uinisset ubi
erat lêsus, uidlns eum cecidit ad pedes eius et dixit ei: «Domine, sifuisses hic,
nõn esset mortuusfrãter meus».
8O perfeito grego é imitado (de forma infeliz, a meu ver) na Nova Vulgata, onde se perderam,
nesta passagem, todas as subtilezas aqui analisadas e que eram próprias do texto como ele era
lido em latim na Antiguidade Tardia.
LiçAo N.° 22 145
cum uidissent Mariam quia citõ surrêxit et exiit; secüti sunt eam, dicen
tes quia uàdit ad monumentum, ut ploret ibi. María ergõ cum uênisset ubi
eratlêsus, uidêns eum cecidit ad pedes eius et dixit ei: «Domine, sifuisses hic,
nõn esset mortuus frãter meus».
respondit Iêsus et dicit ei: «quod egofaciõ tú nescis; modo scies», autem
postea dicit ei Petrus: «nõn lauãbis mihi pedes in aeternum».
«Respondeu Jesus e diz-lhe: “Aquilo que eu faço tu desconheces;
em breve saberás.” Porém, de seguida Pedro diz-lhe: “Não me lavarás os
pés até à eternidade."»
respondit Ièsus ei: «si nõn lauerõ tè, nõn habêspartem mêcum».
Ora, esta frase introduz-nos um tempo verbal (em lauerõ) que ainda
não vimos: o futuro perfeito. Trata-se de um tempo que faz parte do
sistema do Perfectum (portanto, é sempre regular) e é formado juntando
ao tema do perfeito o futuro do verbo sum.
Vejamos o caso do futuro perfeito de amõ - isto é, amãuerõ («eu
terei amado») - ao lado do conjuntivo perfeito do mesmo verbo, pois
são dois tempos muito próximos e parecidos (e que os próprios falantes
de latim confundiam: ver NGL, p. 152). Separo o indicativo futuro per
feito do conjuntivo perfeito por meio de « / »:
amãuerõ / amãuenm
amãueris / amãueris
amâuerit/ amãuerit
amãuerimus / amâuerimus
amãueritis / amãueritis
amãuerint/ amãuerint.
nõn est seruus maior domino suõ, neque apostolus maior eõ qui misit
illum, si haec scitis, beati eritis sifeceritis ea. nõn dê omnibus uõbis dicõ: «egõ
sciõ quõs êlêgerim».
nõn est seruus maior domino suõ, neque apostolus maior eõ qui misit
illum, si haec scitis, beãti eritis siféceritis ea. nõn dê omnibus uõbis dicõ: «egõ
sciõ quõs êlêgerim».
«Não é o servo maior do que o seu senhor, nem o apóstolo maior
do que aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, sereis felizes se as
fizerdes. Não de todos vós digo: “Eu conheço <aqueles> que escolhi.”»
Lição n.° 24
Thõmãs autem, ünus ex duodecim, nõn erat cum eis quando uènit
Iêsus. dixerunt ergõ ei alii discipuli: «uidimus Dominum». ille autem
dixit eis: «nisi uiderõ in manibus eiusfiguram clãuõrum et mittam digi
tum meum in locum clãuõrum et mittam manum meam in latus eius nõn
credam».
et post dies octõ iterum erant discipuli eius intus et Thomas cum eis. uênit
Iésus ianuis clausis et stetit in mediõ et dixit: «pãx uóbis». deinde dicit
Thõmae: «infer digitum tuum hüc et uidè manus meas; et adfer manum
tuam et mitte in latus meum; et nõli esse incredulus sedfidelis».
-ae, -i, -is podem marcar mais do que um caso, como já sabemos; e até a
inocente desinência -us pode surgir-nos na 2.a, na 3.ae na 4.adeclinações:
A forma verbal no plural indica-nos logo que tempus não pode ser ο
sujeito da frase; tem, por conseguinte, de ser o complemento direto;
sendo o complemento direto, tem de estar em acusativo; e para uma
palavra terminada em -us estar em acusativo, tem de ser neutra.
Vejamos a tradução*.
Uma das mais belas passagens da literatura universal que, para estu
dantes da língua latina, tem o valor acrescido de oferecer um treino útil
do indicativo futuro perfeito (e do conjuntivo, também) é o famoso voo
poético de São Paulo na l.a Carta aos Coríntios (capítulo 13).
Ninguém consegue ficar indiferente a esta maravilha:
«Se nas línguas dos homens e dos anjos eu falar, mas caridade não
tiver, tornei-me bronze ecoante ou címbalo ruidoso. £ se eu tiver pro
fecia e souber todos os mistérios e todo o conhecimento; e se tiver
toda a fé a ponto de mover montanhas, mas caridade não tiver, nada
sou.»
Em latim:
10A estranheza do indicativo futuro perfeito misturado com o conjuntivo perfeito nesta frase é
explicada por K. Sidwell como elemento que antecipa a maior liberdade no uso do conjuntivo
no latim medieval (Reading Medieval Latin, Cambridge, 1995, pp. 371-372).
LiçAo N.° 26 161
Ora, Agostinho cita esta passagem, para propor duas idéias interes
santes. Primeiro, exprime o que lhe diz a sua sensibilidade enquanto
falante de latim: que não existe diferença de sentido entre diligõ e amõ:
cum dicébatDominus «diligis mê» nihil aliud dicêbat quam « amãs mê».
«Por este motivo pensei que isto deve ser lembrado, porque alguns
pensam ser uma coisa “estima” ou “caridade”; outra coisa, “amor”. Dizem
pois que “estima” deve ser entendida em <sentido> positivo, “amor” em
<sentido> negativo... mas foi necessário dar a conhecer que as escrituras
da nossa religião, cuja autoridade antepomos a todas as outras literaturas,
não dizem ser “amor” uma coisa, outra coisa “estima” ou “caridade”. Pois
demonstrámos que também amor é dito em sentido positivo.»
Em latim:
ADD UCUNTAUTEMSCRIBAEETPHARISAEL
A tradução:
É preciso ressalvar, contudo, que o -ei- pode ser apenas erro de orto
grafia: no século IV, o antigo ditongo grego ei já era pronunciado i há
mais anos do que aqueles que nos separam do nascimento de Luís de
Camões.
Leiamos, agora, todo o episódio da mulher adúltera: primeiro, na
sua versão escrita mais antiga (Codex Bezae); depois, na sua versão canô
nica (Vulgata).
LiçAo N.° 27 167
Em português:
primeiro atire sobre ela uma pedra.” £ tendo-se inclinado de novo, escre
via com o seu dedo na terra. Cada um dos judeus saíam, começando
pelos presbíteros, a ponto de todos saírem e ele ficou só. £ como a
mulher <ainda ali> estava no meio, levantando-se Jesus disse à mulher:
“Onde estão? Ninguém te condenou?” Então ela disse-lhe: “Ninguém,
Senhor.” £ntão ele disse: “Nem eu te condeno. Vai e a partir de agora
não peques.”»
Uma diferença curiosa entre as duas versões tem que ver com a des
crição de Jesus a escrever na terra:
Vocabulário:
contingo, contingere, contigi, contactum: aqui «acontecer» (mas tam
bém «tocar», como sugere a palavra portuguesa «contacto», que vem
deste verbo)
fulgeõ,fulgère, fulsi: «brilhar» (aqui no composto circumfulgeo).
“ Cf. F.F. Bruce, The Acts of the Apostles: Greek Text with Introduction and Commentary, Grand
Rapids, 1990, p. SOI.
174 Latim do Z ero a Vergílio em 50 L ições
Numa passagem célebre da sua Epístola aos Pisões (mais tarde conhe
cida como Arte Poética), Horácio dedica versos memoráveis ao maior
poeta da Antiguidade: Homero.
O que sobretudo encanta Horácio na arte de Homero é a intuição per
feita com que o ponto certo da narrativa é escolhido. A história de Helena
não é contada a partir do «ovo gêmeo» do qual ela nasceu (sua mãe, Leda,
fora violada por Zeus sob a forma de um cisne; naturalmente, pôs um ovo);
nem o regresso de Diomedes é contado a partir da morte de Meleagro.
£m vez disso, o que Homero faz é avançar rapidamente até ao evento
marcante da narrativa, arrebatando assim o ouvinte para ações que já
vão a meio, como se o ouvinte já lhes conhecesse os antecedentes. Os
assuntos que Homero intui não brilharem poeticamente são deixados de
lado. £ a capacidade de invenção homérica é de tal ordem que «com
verdadeiras ele mistura coisas falsas», conseguindo assim o milagre que
é a impressão de coerência.
Vejamos primeiro, em português, estes versos fulcrais da Arfe Poética
( 148- 152):
festino,festinare: «apressar-se»
rapiõ, rapere: «arrebatar», «raptar»
dêspêrõ, dèspêrãre: «perder a esperança», «desesperar»
nitéscõ, nitêscere: «brilhar»
mentior, mentiri: «mentir», «inventar»
imus, ima, imum: «fundo», «estremo», «último».
«Que <poema> digno de tal bazófia trará <à luz> este promete
dor?», pergunta Horácio. «Os montes parirão; nascerá um ridículo rato.»
Vejamos em latim (note-se que hiatus, por implicar a imagem de
alguém de boca aberta, significa aqui «bazófia»):
não acham excitantes as suas próprias mamas. Certo é que o poeta - seja
o pássaro o seu próprio pênis, um dildo, ou somente um pássaro - está
sujeito a preocupações tristes (tristis... cürãs) insuscetíveis de alívio.
Por isso, a melhor interpretação deste fascinante poema está, para
mim, na seguinte frase de James Diggle: «In expressing the wish that he
might play with the bird himself and enjoy from that play the same con
solation which Lesbia enjoys, he seemingly commends the therapy which
the bird provides. But in picturing the bird as her substitute lover, he
allows us to see that he is jealous of the bird for enjoying her favours, and
perhaps a little disappointed with Lesbia that she can be so readily con
soled» (James Diggle, «On the Text of Catullus», Materiali e discussioni
per Vanalisi dei testi classici 57 [2006], pp. 85-88).
escondiam (para Ifigênia não ver) a faca com a qual seria morta; e como
ela, muda de medo, se ajoelhou - ou, na expressão incrível de Lucrécio,
«procurava a terra com os joelhos»:
O facto de ser filha nada lhe valeu diante do pai, seu assassino. Como
bem lembra Lucrécio, Ifigênia era a filha mais velha de Agamémnon; foi
o nascimento dela que fez de Agamémnon, que já era rei, algo de mais
humano: um pai. Por outras palavras, como o poeta diz, «ela, primeira,
presenteara o rei com nome paterno» (1.93-99):
miserae: dativo
prõdesse: composto de sum (trata-se do verbo prõsum, com o sentido
de «ser útil»)
192 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições
spiritus ubi uult spirat et uõcem eius audis, sed nõn scis unde ueniat et
quõ uãdat.
õdi («odeio»)
memini («recordo»).
Rabbi, scimus quia ã Deõ uénisti magister. nêmõ enim potest haec signa
facere, quae tufacis, nisifuerit Deus cum eô.
«Rabbi, sabemos que vieste da parte de Deus <como> mestre. Pois
ninguém pode realizar estes sinais, que tu realizas, a não ser que Deus
esteja com ele.»
Deus é, por definição, Algo que não se pode ver, como o próprio
evangelista afirma logo no primeiro capítulo do seu Evangelho (1:18;
Deum nêmõ uldit umquam, «ninguém jamais viu Deus»).
Acima, escrevi que o tema da invisibilidade/visibilidade é fulcral na
conversa entre Jesus e Nicodemos, mas trata-se no fundo de um tema
que está imbuído da mais significativa importância no Evangelho de João
no seu todo. No penúltimo capítulo do Evangelho, Jesus diz a Tomé
(20:29):
habuerõ / habuerim
habueris / habueris
habuerit/ habuerit
habuerimus / habuerimus
habueritis / habueritis
habuerint / habuerint.
13 Quem quiser um dia aprofundar este conhecimento poderá consultar a p. 178 do Vol. I da
monumental gramática latina de Kühner & Stegmann.
LiçAo N.° 34 203
«Tu não indagues, pois não é permitido saber, que fim a mim, que
fimati
os deuses terão dado, ó Leucónoe, nem babilónicos
cálculos experimentes. É melhor aguentar o que tiver de ser,
quer Júpiter conceda muitos invernos, quer seja este o último,
que agora desgasta o mar tirreno nos rochedos opostos.
Compenetra-te, decanta os vinhos e poda com breve espaço <de
tempo>
uma esperança longa. Enquanto falamos, terá fugido a invejosa
idade. Colhe o dia, confiada o menos possível no de amanhã.»
«Serás celebrado [isto é, serás escrito] por Vário, ave de meónio canto,
<como> forte vencedor de inimigos;
<escreverá> tudo o que o feroz militar, com navios ou com cavalos,
terá feito, sendo tu líder.»
Em relação à forma verbal gesserit (do verbo gero, gerere, gessi, ges
tum, donde vem o nosso verbo português «gerir» e o nosso substantivo
«gesto»), os autores do melhor comentário a Horário escrevem «“ges
serit” of course is future perfect»14, mas penso que não há aqui «of
course». Nada me impediria de interpretar gesserit como um conjuntivo
perfeito potencial numa oração relativa (remeto para a página já citada
de Kühner & Stegmann na nota 13 da p. 202).
14Cf. R. Nisbet & M. Hubbard, Λ Commentary on Horace Odes, Book I, Oxford, 1970, p. 85.
206 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições
1. nunc licet <ut> narres mê uisam <esse> tibi uèlãmine positõ, sipoteris
narrãre: «Agora é lícito que narres que eu fui vista por ti de roupa
deposta, se conseguires narrar»;
2. nunc licet tibi <ut> narres mê uisam <esse> uèlãmine positõ, si poteris
narrãre: «Agora é-te lícito narrar que eu fui vista de roupa deposta, se
conseguires narrar».
(ver NGL, p. 355) ou como dativo de agente (cf. NGL, p. 298). Ora licet
pode introduzir uma oração infinitiva, uma oração de ut+ conjuntivo ou
uma oração de conjuntivo (subentendendo o ut). Quando lemos as pala-
vras na ordem que Ovídio lhes deu, o facto de termos este tibi ambíguo
e duas formas de infinitivo baralham à primeira o nosso pobre cérebro.
Quais são esses infinitivos, já agora? São:
Vejamos então a frase tal como Diana a diz nas Metamorfoses (3.192-
-193):
(mê miserum; NGL, p. 294) e à enclitica -ne, que funciona como partícula
interrogativa (NGL, p. 344):
Andar à caça por montes e vales, por muito que ela tente gostar, não
é aquilo de que mais gosta a deusa do sexo. Virando-se para Adónis,
Vénus comenta «mas este esforço insólito já me cansou...» (sed labor
insolitus iam mê lassãuit...) e convida o rapagão a deitar-se com ela à som
bra de um choupo, onde a relva lhes proporciona um leito gratíssimo.
Ela intercala beijos nas palavras que se seguem (mediis interserit óscula
uerbis).
Vénus intercala beijos na conversa e Ovídio intercala na conversa
outra história: a de Atalanta e de Hipómenes. Narrada a qual, Vénus volta
à vaca fria: Adónis deve evitar animais perigosos, para que «a tua virili
dade não seja danosa para nós dois» (nê uirtús tua sit damnõsa duõbus
[10.707]). Como a palavra latina uirtüs vem de uir («homem»,
«varão»), o seu sentido primário não é tanto «virtude» como «mascu
linidade». Vénus sabe (como se diz em inglês) que «boys will be boys».
E escusado será dizer que, mal Vénus se afasta, levada pelo seu carro
puxado por cisnes, Adónis desata logo a caçar um javali que - não por
acaso - «lhe crava bem fundo as presas na virilha» (10.715-716): tõtõs
sub inguine dentes / abdidit Note-se que a palavra latina inguen, inguinis
(em português falamos de uma hérnia «inguinal») tanto significa
«virilha» como «órgãos genitais».
214 Latim do Z ero a VergIlio em 50 Lições
16Como canta Tannhäuser, já saturado de tanto sexo com Vénus na ópera de Richard Wagner,
«conflito e luta eu quero enfrentar, / seja para morrer, seja para matar» (tradução livre de «zu
Kampf und Streite will ich stehn / sei's auch auf Tod und Untergehn»).
Lição n.° 37
Ovidio faz aqui soar o tema que já ouvimos nas passagens analisadas
na lição anterior: a caçadora sente agora na pele o que antes a sua ativi
dade venatória levara os animais caçados a sentir.
O filho de Calisto, Árcade, tomar-se-á também caçador e mais tarde,
com inevitabilidade fatídica, no meio de uma caçada, deparará com uma ursa
que é a própria mãe. No momento em que ele vai para matar a ursa, «o
Omnipotente» (escreve Ovídio) transforma ambos em constelações no céu.
220 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições
1. subiit ergõ in montem Iésus et ibi sedêbat cum discipulis suis. (João 6:3)
Em que tempo se encontra a forma verbal sedibat?
3. est puer ünus hic qui habet quinque pãnês et duõs piscês. (6:9)
Em que caso se encontram as palavras panes e piscis?
13. pãnis enim Dei est, qui dê caelõ dêscendit et dat uitam mundõ. (6:33)
Apesar da aparente semelhança entre caelõ e mundõ, só uma das pala
vras está em dativo. Qual é?
14. nêmõ potest uenire ad mé nisi Pater, qui misit mê, traxerit eum.
(6:44)
Dedicámos alguma atenção ao problema da semelhança entre o indi
cativo futuro perfeito e o conjuntivo perfeito, e dei-vos umas dicas para
distinguirem estas formas homógrafas. De acordo com as dicas dadas,
acham que trãxerit (do verbo trahõ, trahere, trãxi, tractum) é indicativo
futuro perfeito ou conjuntivo perfeito?
17. uerba quae egõ locutus sum uõbis spiritus et uita sunt (6:63)
A forma verbal locutus sum pertence ao verbo loquor, loqui. Como se
chama este tipo de verbo?
18. sciebat enim ab initio Iésus qui essent nõn credentes et quis traditurus
esset eum. (6:64)
Há uma razão específica para o facto de duas formas verbais nesta
citação estarem no conjuntivo?
19. hic estpãnis qui dê caelõ dêscendit. nõn sicut mandücauèruntpatrês ues-
tri manna et mortui sunt, qui mandücat huncpãnem, uiuet in aeternum. (6:58)
230 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
a nós, leitores modernos, alerta-nos para o facto de, no fim, nos esperar
um ponto de interrogação):
Como veem, tanto a ordem das palavras como o respetivo efeito são
impossíveis de manter em português; tal como é impossível manter a
cláusula métrica ( - U ------ : crético + espondeu) com que Cícero
remata a frase (por uma questão de curiosidade, podem ler o capítulo a
explicar o que são cláusulas métricas em prosa nas pp. 407-413 da NGL).
Vamos ler só mais uma frase. Desta vez, da oração infinitiva depen
dem várias interrogativas indiretas, com o verbo no conjuntivo perfeito.
Mais uma vez, o verbo principal chega só no fim (arbitraris, do verbo
depoente arbitror, arbitrãri, «pensar», «considerar»):
quõ usque tandem abütêre, Catilina, patientiã nostrã? Quam diü etiam
furor iste turn nõs êlüdet? Quem ad finem sêsê effrênãta iactãbit audácia?
nihilne tê nocturnum praesidium Palãti, nihil urbis uigiliae, nihil timor
populi, nihil concursus bonõrum omnium, nihil hic munitissimus habendi
senatus locus, nihil hõrum õra uultüsque mõuêrunt? patere tua consilia nõn
sentis, constrictam iam hõrum omnium scientiã teneri coniüratiõnem tuam
nõn uidês?quid proximã, quid superiore nocte egeris, ubifueris, quõs conuo
cãueris, quid cõnsili cêperis, quem nostrum ignõrãre arbitrãris?
Lição n.° 41
Õ tempora, õ mõrêsl
senãtus haec intellegit, cônsul uidet; hic tamen uiuit uiuit? immõ uêrõ
etiam in senãtum uenit, fit püblict cõnsili particeps, notat et designat oculis
ad caedem ünum quemque nostrum.
«O senado percebe estas coisas; o cônsul vê; este, porém, vive. Vive?
Na verdade, ainda vem para o senado, é participante da decisão pública,
nota e designa com os olhos para a matança cada um de nós.»
mediocriter: «moderadamente»
labefacto, labefactare: «abalar», «minar»
status, statús: «estado»
interficio, interficere, interfeci, interfectum: «matar».
nam illa nimis antiqua praetereo, quod Gaius Seruilius Ahäla Spurium
Maelium nouts rebus studentem manü suã occidit
«Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o Teu nome. Che
guei ao Teu reino; seja feita a Tua vontade...»
Certamente notaram algo de estranho. Aqueles de nós que rezamos
o Pai-Nosso não dizemos «cheguei ao Teu reino». Dizemos «venha a
nós o Teu reino» (em latim, adueniat [também ueniat, dependendo dos
manuscritos] rêgnum tuum).
No entanto, a forma mais antiga da frase em latim, por incrível que
pareça, é uênt ad rêgnum tuum. Encontra-se no primeiro manuscrito
latino (que conheçamos) a transmitir textos dos Evangelhos: o Codex
Bobiensis, do século iv (atualmente em Turim).
O copista estaria distraído? Ou teria regado o almoço com muito
vinho? Certo é que ninguém lhe deu (ou dá) qualquer crédito, porque a
formulação «cheguei ao Teu reino» é por todos os especialistas consi
derada um lapso. O texto grego correspondente («chegue <agora> o teu
reino», com o imperativo aoristo de 3.apessoa έλθέτω) é estável na trans
missão manuscrita grega.
Sendo decerto implausível que Jesus nos tenha ensinado a rezar a
Deus «cheguei ao Teu reino», a ideia em si mesma não é inconcebível,
se a tomarmos em aceção mística: lembro-me de ter lido, quando era
adolescente, um livro sobre santos e místicos onde se dizia que Santa
Clara, quando rezava, nunca passava das primeiras palavras Pater noster,
porque entrava logo em êxtase devido à colossalidade cósmica que é um
ser humano poder tratar Deus por «Pai». Eu diria ainda que quem escuta
o Benedictus da Missa Solene de Beethoven consegue entender bem o
242 Latim do Zero λ Vergílio em 50 Lições
17Ver sobre estes temas H.A.G. Houghton, The Latin N ew Testament: A Guide to its Early History,
Texts, and Manuscripts , Oxford, 2016.
LiçAo N.° 42 245
na realidade humana, dois polos opostos que são vida e morte. Também
em termos gramaticais encontramos um reflexo desta polaridade: todos
os verbos estão no presente na parte do poema que refere a vida; quando,
numa transição abrupta, o tema passa a ser a morte, os verbos surgem
conjugados no futuro.
Comecemos por considerar os primeiros quatro versos:
Em latim:
mirabar enim cêterõs mortãlês uiuere, quia ille, quem quasi nõn mori
turum dilixeram, mortuus erat, quia ille alter eram, uiuere illo mortuo
mirabar, bene quidam dixit di amicõ suõ: dimidium animae suae. nam ego
sensi animam meam et animam illius ünamfuisse animam in duobus corpo
ribus, et ideõ mihi horrori erat uita, quia nolebam dimidius uiuere, et ideõ
forte mori metuebam, nê tõtus ille moreretur quem multum amãueram.
abre a peça, diz nõmen Arctürõ est mihi (em vez de nõmen Arcturus est
mihi).
Um pouco mais adiante no mesmo Livro 4, Agostinho deixa-nos
uma reflexão espantosa sobre o tempo, que complementa a visão hora-
ciana aflorada na lição anterior.
O tempo não passa de forma oca (afirma Agostinho) nem flui des-
propositadamente através dos nossos sentidos. Na verdade, opera na
mente humana coisas estranhas. Notemos como, dir-se-ia para vincar a
polivalência do efeito do tempo em nós, Agostinho opta pelo plural
«tempos» (em latim, tempora):
nõn uacant tempora nec õtiõsé uoluuntur per sensüs nostrõs: faciunt in
animõ mira opera.
Apesar do que se tinha dito antes (que o menino iria ser visto no
meio de deuses e heróis - subentende-se heróis gregos, devido à morfo-
logia grega do acusativo hêrõàs no v. 16), o perfil de heroísmo deste
menino não será o de um iletrado herói homérico ou o de um analfabeto
cavaleiro medieval: será por meio da LEITURA que este menino tomará
266 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
Virá então uma nova idade heroica: mais uma viagem dos Argonau-
tas e outra Guerra de Tróia (dois símbolos da forma como a poesia con
segue mitificar realidades como colonização, exploração, escravização e
extermínio, fazendo dos seus agentes «heróis» e «descobridores»).
Note-se que o nome Tiphys designa o timoneiro da nau Argo que levou
os Argonautas à Cólquida, para lá roubarem o simbólico «velo de ouro»;
em termos de latim, o conjuntivo uehat (do verbo uehõ, uehere, uexx, uec~
tum, «levar»; cf., em português, «vetor») justifica-se ou como oração
relativa final ou, em alternativa, como oração relativa de caracterização
(ver NGL, pp. 341-342). Note-se que hêrõãs é de novo um acusativo do
plural grego (ver NGL, p. 120).
L ição n .° 47 269
Será este o ponto de viragem. Pois a partir daqui (em latim, hinc),
assim que a passagem do tempo tiver feito (futuro perfeito em latim:
f icerit) do menino um adulto, parará a navegação e parará toda a ativi
dade econômica; parará a agricultura: a terra toda tudo dará! Nem será
preciso tingir a lã das ovelhas com cores mentirosas! As ovelhas nascerão
já com lã multicolor!
Em latim:
20'W. Wimmel, Kallimachos in Rom: Die Nachfolge seines apologetischen Dichtens in derAugusteer-
zeit, Wiesbaden, 1960. Ver também R. Hunter, The Shadow of Callimachus: Studies in the Recep
tion of Hellenistic Poetry at Rome, Cambridge, 2006.
210 fragmento está editado e traduzido no meu livro Poesia Grega de Hesiodo a Teócrito, Lisboa,
2020, pp. 284-287.
LiçAo N.° 48 277
poemas de Catulo (10, 22, 30) e Horácio (Odes 1.18). Natural (como
muitos séculos mais tarde Monteverdi) da cidade de Cremona, Varo bene
ficiara, sem grande margem para dúvida, de um acrescento significativo à
sua fortuna, oriundo das imorais confiscates e redistribuições de terras
no norte de Itália. Talvez por isso o mantuano Vergilio não tenha querido
empenhar-se muito em pôr por escrito as laudês e os tristia bella de Varo.
No meio de tantas recüsãtiõnés na poesia augustana inspiradas em
Calímaco, a Bucólica 6 de Vergilio distingue-se pelo facto de ser a mais
explicita na citação do poeta alexandrino. É também explicita na home
nagem que faz a outro imigrante na cidade de Alexandria: Teócrito,
o poeta siciliano que inventou, para todos os efeitos, a poesia pastoril.
Quando Vergilio fala em «verso siracusano» no primeiro verso da Bucó
lica 6, está explicitamente a referir-se a Teócrito.
Entrando já no texto, repare-se na extravagância do efeito por que
Vergilio opta a abrir este poema: o adjetivo inicial prima concorda com
a última palavra do segundo verso, o nome de uma das Musas: Thalêa.
joelhos, foi isto que me disse Apoio Liceu: / “Lembra-te, querido poeta:
o animal para o sacrifício deve ser / o mais gordo possível; mas a Musa,
caro amigo, delgada”»), Vergílio prossegue com o motivo da recusa
(a ideia convencional de que outros poetas haverá para cumprir a tarefa)
e com a justificação da sua opção, tentando fazer ver que, mesmo um
poema calimaquiano, como aquele que irá escrever, poderá ser tido
como homenagem a Varo, pelo simples facto de Vergílio lá ter escrito o
seu nome. A fraseologia escolhida por Vergílio é diplomática («nenhuma
página agrada mais a Apoio do que uma em que esteja escrito o nome de
Varo»), mas, na realidade, a justificação valoriza, acima de tudo, o poeta:
é como se Vergílio dissesse «para obteres prestígio, basta que eu escreva
o teu nome num poema que nem sequer é sobre ti». O autor está acima
do tema.
1. Em síntese
acrescido pela morte recente do pai); também épia (isto é, vive a sua vida
numa atitude de respeito perante o divino); tal como Eneias é pius.
Uma das grandes questões que a Eneida nos coloca a nós, leitores
modernos, é se esse divino é assim tão merecedor da reverência que os
seres humanos no poema lhe dedicam. Dido, em particular, surge como
uma pessoa admirável e piedosa que duas deusas torturam sem piedade
até à morte. Claro que devemos evitar considerações anacrônicas; e seria
ridículo estarmos à espera de que os deuses greco-romanos correspon
dessem ao lema «Deus é amor» (1 João 4:8) que nos reconforta projetar
num ente divino. A Divindade Bondosa, de que falará mais tarde Frie
drich Schiller na sua «Ode à Alegria», não existe no ideário da epopeia
grego-latina.
Já em Homero os deuses são maus, pérfidos, invejosos, narcisistas,
indiferentes ao sofrimento alheio, abusadores sexuais e assassinos: são
exatamente iguais, por outras palavras, aos seres humanos. Vergílio podia
ter seguido na linha do seu amado Lucrécio e imaginado uma realidade
épica em que os deuses, ainda que existindo (algures, remotamente), não
se interessassem pelos seres humanos nem interferissem na realidade
humana. Podia ter antecipado Lucano (poeta do século i d.C.), que escre
verá uma epopeia (Dê bellõ ciuili, também conhecida entre nós como
Farsália) em que, por decisão do poeta, os deuses foram alvo de despe-
dimento coletivo.
Mas não: Vergílio preferiu aproveitar ao máximo todas as possibilida
des que os deuses homéricos oferecem ao escritor de uma epopeia. E segue,
no fundo, no encalço de Homero ao deixar implícita a ideia de que os
seres humanos viveriam num mundo mais pacífico, mais harmonioso e
mais feliz se os deuses não existissem; ou se, existindo, não interviessem
na vida humana. Mas para Homero, tal como para Vergílio, os deuses são
entes cujo grande entretenimento é contribuir para o sofrimento humano,
porque a existência divina - imortal e perfeita - acaba por ser uma enorme
maçada sem o jogo viciante que é a intervenção maliciosa na vida terrena.
Assim, no início do Canto 4 da lUada, Homero mostra-nos os deuses
sentados no seu Olimpo, brindando-se com taças de néctar e assistindo,
Introduç Ao A leitura da Eneida 299
2, Vergilio
Vergilio? Muito pouco: ficamos a saber que não era heterossexual e que
era sociofóbico, ainda que fosse permeável a convites por parte de Octa
viano (Augusto a partir de 27 a.C.) e de Mecenas, bilionários a quem o
poeta devia a sua estabilidade financeira. Ficamos a saber também que
o nortenho Vergílio desenvolveu uma ligação especial com a cidade de
Nápoles, onde em jovem aprofundou o estudo da filosofia epicurista e
onde, já poeta famoso, preferiu viver (embora tivesse casa em Roma).
Vergílio acabaria por morrer em Brindisi (21 de setembro de 19 a.C.),
à volta de uma viagem malograda à Grécia, mas foi sepultado, justamente,
em Nápoles.
Ora Nápoles e os seus arredores constituíam, na altura, o mais impor
tante centro epicurista em Itália. Os escritos de Epicuro e dos seus segui
dores enchiam, em língua grega, as bibliotecas de grandes aristocratas
romanos que tinham, na zona, casas luxuosas. Que Vergílio conheceu essa
literatura em grego é muito provável (a sua poesia em latim revela um
domínio perfeito do grego, seja ele de Homero ou de outros poetas); mas
a obra que mais influência exerceu na sua formação intelectual e na sua
maneira de escrever poesia foi o Dê rèrum nãtürã de Lucrécio, poema epi
curista e notável obra-prima literária em latim. Quando lemos Vergílio
(sobretudo as Geórgicas e a Eneida), a influência de Lucrécio é sempre
palpáveL
De acordo com o percurso biográfico reconstruído pelos classicis-
tas, a coletânea das dez Bucólicas foi a primeira obra poética de Vergí
lio a chamar a atenção para o talento do autor (que em 38 a.C., quando
o livro começou a ser difundido, tinha 32 anos). Que ele já dera nas
vistas aos olhos das altas esferas de Roma parece evidente a partir da
leitura da Bucólica 4 (ver p. 257), mas talvez não tivesse ainda chegado
mesmo ao topo da pirâmide social romana. Porquê? Porque o nome de
Mecenas está ausente da coletânea (embora bem presente nas Geórgi
cas). Qpanto a Octaviano, há duas teorias: há a teoria, maioritária entre
os latinistas, de que Octaviano é o jovem, equiparado a um deus, da
Bucólica 1; depois há a teoria minoritária (que pessoalmente considero
a mais verosímil) de que Octaviano está ausente das Bucólicas e que
Introdução à leitura da Eneida 301
2Leia-se o importantíssimo (mas quase ignorado - decerto por ter sido publicado numa revista
portuguesa) artigo de R.P.H. Green, «Octavian and Vergil’s Eclogues», Euphrosyne 24 (1996),
pp. 22S-236.
2Cf. PGHT, pp. 300-309.
302 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
5Mas seria assim tão nova? Remeto para C. Kollendorf, The Other Virgil: Pessimistic Readings of
the Aeneid in Early Modem Culture, Oxford, 2007.
304 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
ler nas entrelinhas do poema uma outra voz, como que a antecipação
da voz que mais tarde Camões dará ao Velho do Restelo (no Canto 4
d’Os Lusíadas): uma voz critica, que «sabota» a mensagem mais óbvia,
patriótica e glorificadora. Um dos livros mais interessantes a propor esta
abordagem é The Poetry oftheAeneid, de M.CJ. Putnam (Harvard, 1965).
Mas o melhor, a meu ver, é Further Voices in Vergil's Aeneid, de R.O.A.M.
Lyne (Oxford, 1987), um dos estudos mais fascinantes alguma vez escri
tos sobre poesia latina.
Entre os sustentáculos desta leitura sombria da Eneida temos a refe
rir o grande custo pessoal da missão de Eneias: não só ele nunca consegue
ser feliz, como espalha infelicidade à sua volta. Creúsa, Dido, Palinuro,
Miseno, Palante, Niso, Euríalo, Camila, Amata e finalmente Turno: todas
estas personagens perdem a vida de forma trágica e prematura por causa
da futura missão imperialista de Roma.
Mas a questão da felicidade individual, tema próprio da nossa con-
temporaneidade, constitui um anacronismo quando estamos a falar da
Roma do século i a.C. Tal como não passava pela cabeça de ninguém que
as mulheres devessem ser tratadas com igualdade de direitos relativa
mente aos homens - ou que os escravos tivessem o direito de ser tratados
como seres humanos (ou que o ser humano tivesse o direito de não ser
escravizado) -, também não havia a noção de que almejar a realização
individual coubesse como direito fosse a quem fosse. Havia uma socie
dade; e havia um lugar estabelecido nessa sociedade para cada pessoa.
Uns, debaixo do chicote, remavam acorrentados nas naus que assegura
vam a primazia militar romana; outros viviam uma vida inconcebivel-
mente privilegiada no Palatino. Era assim «de direito», porque as leis de
Roma assim determinavam.
Falar, pois, em «direito» e em «leis» não é despropositado no que
toca à Eneida, porque é esse o conceito que, pela boca de Júpiter (o tal
deus, mais uma vez, que pôs o veneno nas cobras e ordenou aos lobos
que caçassem), legitima o imperialismo romano. Diferentes impérios,
como sabemos, encontraram justificações diferentes para as suas ofensi
vas colonialistas: se portugueses e espanhóis tinham a desculpa santinha
Introdução à leitura da Eneida 305
6 «Armas» e «homem » aludem da forma mais sintética possfvel à Iliada e à Odisséia (note-se que
a primeira palavra da Odisséia é «homem» em acusativo: em grego, ándra [ftvSpa] = uirum).
Repare-se, no entanto, na diferença: Veigflio escreve, na l.apessoa do singular, canõ («eu canto»);
todavia, tanto na lUada como na Odisséia, a primeira forma verbal é um imperativo, dirigido à deusa
( lliada) ou Musa (Odisséia), na 2.a pessoa do singular. Quando, no v. 8, Vergilio se dirige
«homericamente» à Musa, pede para ela lhe «lembrar» (não «dizer», como na Odisséia) as
causas da animosidade de Juno contra Eneias. Embora o verbo memoro signifique também
«relatar», julgo que entra aqui em jogo a aceção «lembrar» (OLD sm. 4), pois Vergilio está a
explorar alusivamente o facto de as Musas serem filhas da Memória (como fazem o autor do
Panegírico de Messala [«Tibulo» 3.7.191]; Estácio na Ttbaida 7.289- e o próprioVeigflio em7.645,
meministis... et memorare potestis). Ora «lembrar» pressupõe rememorar algo que já sabemos: por
conseguinte, podemos ver a omnisciéncia do narrador da Eneida como algo que lhe é inerente, o
que constitui uma emancipação relativamente ao narrador homérico, o qual descreve a sua narração
como dependente das Musas, afirmando explicitamente que, por si, nada sabe (Ilíada 2.486).
7A palavra Ítâlíã é, em rigor, impossivel de encaixar no hexâmetro dactílico; a solução adotada
por Vergilio (já experimentada por Calímaco) é considerar longo o «i» inicial (ítâlíã). No
mesmo verso, encontramos outra licença métrica em Làuinia, tratada como trissílabo. Note-se,
ainda, a ausência de preposição no sintagma sintético Italiam (como se fosse ad Italiam: chama-
-se a este acusativo «de movimento» ou «de ponto de chegada»). Já Sérvio, comentador de
Vergilio no século iv, observa que a freqüente omissão de preposições faz parte do estilo
vergiliano.
8Ablativo de causa («por causa do fado»).
9 Genitivo do plural (= superõrum).
308 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições
30 Não é bem assim que Homero descreve a morte deste Ájax (não é o que enlouqueceu e se
suicidou em Tróia) em Odisséia 4.499-511. A imagem vergiliana de Ájax empalado numa rocha
é, de facto, horripilante: o castigo por ele ter violado Cassandra não podia ser mais explicito
(embora, é certo, Vergilio tenha optado por não ser explicito quanto à violação quando refere
Cassandra arrastada e desgrenhada em 2.403 - até porque nessa passagem posterior é Eneias
a narrar o saque de Troia na 1.* pessoa e Vergílio atém-se à focalização restritiva).
31 Os w. 46*49 chamam a atenção pelo facto de neles vermos repetido o mesmo padrão de
hexâmetro (dáctilo + 3 espondeus + dáctilo + espondeu), efeito que Vergílio (poeta da
musicalidade multimoda) normalmente evita. A intenção é, decerto, vincar quanto o estado
mental de Juno é obcecadamente monocórdico.
32Ventos do sul.
312 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
17A quantidade do segundo «i» de mihi oscila consoante a conveniência métrica. No v. 67 era
longo; aqui é breve (ver NGL, p. 216).
MEscandido como trissílabo.
19Vergílio está aqui a imitar Iliada 14.267-276, passo onde o suborno prometido por Hera (=Juno)
é uma das Graças como Akoitic («companheira de cama»). A Juno vergiliana insiste na
legitimidade do enlace de Éolo com Deiopeia, mesmo que para tal tenha de fazer tábua rasa do
facto de, em Homero (Odisséia 10), Éolo já ser casado e ter doze ülhos.
40O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta.
41Esta ideia (de que Éolo deve aJuno os seus privilégios) parece ser uma originalidade vergiliana.
O v. 80 dá-nos a sensação de que estamos a presenciar a conversa de dois graxistas mitómanos:
Juno afirma, como lisonja, que Éolo tem a autoridade (que não tem) para fazer o que ela quer
que ele faça; ele responde com a lisonja ainda maior de que tal autoridade só a ela,Juno, é devida.
A oferta de uma esposa, contudo, fica de fora da resposta de Éolo: talvez ele conhecesse melhor
o guião homérico e soubesse que, na verdade, já era casado e tinha doze filhos.
314 Latim d o Z ero a V e r g ílio em 50 L ições
50Estes baixios fazem pensar no golfo de Sirtes (Líbia). Ver p. 512, n. 343.
51Este verso famoso causou perplexidade a Sérvio, que não entendeu como podiam «aparecer»
raros nadadores se a escuridão era total (como léramos nos w. 88-89).
52Predicado da primeira de trés orações infinitivas dependentes de sênsit (com êmissam e com
refüsa subentender esse). Os sujeitos em acusativo são pontum, hiemem e stägna.
V ergílio , E neida , Canto 1 317
53 Apesar de muitos latinistas se terem interrogado (cf. Austin i, p. 64) sobre a aparente
incoerência da parte do poeta em descrever primeiro Neptuno como «gravemente indignado»
e, logo de seguida, elevando «da onda mais alta» (ou, em alternativa, «da onda à superfície»)
a «plácida cabeça», a mim parece clara a intenção de Vergílio: embora Neptuno esteja indignado
com uma tempestade ocorrida sem a sua autorização, ele não é afetado pela tempestade em si
mesma, pois nenhuma tempestade poderia afogar o deus do mar (nem, mais tarde, o Holandês
Voador de Richard Wagner).
54Já vários leitores da Eneida notaram que o Zéfiro não fazia parte do elenco de ventos culpados
nos w. 102-110.
55 Exemplo clássico da figura de estilo chamada «aposiopese» («silenciamento brusco»).
318 Latim do Z ero a V ergílio em 50 Lições
60 Para o sentido aqui de secundus, ver OLD $.u. A2a, onde este verso é citado («travelling with
the current»). Note-se que curru é uma forma de dativo arcaico (cf. Kühner & Holzweissig,
pp. 395-396). A imagem de Neptuno deslizando sobre as ondas é inspirada em Iliada 13.23-31.
61 Subentender sunt para completar a oração relativa introduzida por quae.
61O sentido aqui de cursü é quase adverbial (= rapide).
6i Vergílio baseia-se aqui nos versos lindíssimos que lemos em Odisséia 13.96-104, mas
acrescenta algo de muito especial que não está em Homero: a arte de fazer com que as palavras
nos transmitam a sensação de uma paisagem ao mesmo tempo idealizada e viva (como mais
tarde os pintores franceses Claude Lorrain e Poussin farão em registo pictórico). Um aspeto
importante a notar é o seguinte: os versos imitados da Odisséia referem-se â chegada de Odisseu
a ítaca. Estará Vergílio a dizer-nos que, se não fosse a obrigação de assegurar o futuro imperialista
de Roma imposta por Júpiter, Eneias teria encontrado em Cartago a sua ítaca?
320 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
44Tratando-se de África, serão antílopes? Talvez Vergílio não tenha pensado muito na exatidão
destes pormenores zoológicos.
47 Os w. 189-202 chamam a atenção pelo freto de os hexâmetros serem todos diferentes no
que toca à distribuição de dáctilos e de espondeus. Em catorze versos, o poeta usa, uma a seguir
à outra, catorze das dezasseis tipologias possíveis de hexâmetro (isto excluindo o rarissimo
[em Vergílio e Horácio] hexâmetro espondaico). Trata-se de uma das passagens da Eneida em
que Vergílio aposta mais na variedade musical.
48 prius... quam = priusquam («antes que»). Atenção aos conjuntivos fitndat e aequet, que
antecipam o resultado expectável da oração temporal (cf. NGL, pp. 336-337, $4).
44Como é que Eneias e Acates levaram sete animais enormes? No episódio da Odisséia em que
Vergílio aqui se baseia (10.156-173), Odisseu mata um só veado e, mesmo assim, Homero dá-se
ao trabalho de descrever a dificuldade sentida pelo herói no transporte do animal.
70Mais-que-perfeito sincopado (= onerâuerat).
322 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
79Em rigor, frâfioréum comparativo. Dado que, em Homero, Afrodite («deusa dos sorrisos»)
é caracterizada de outra maneira, talvez o comparativo aponte implicitamente para a ideia de
que esta deusa é «mais triste» do que a sua contrapartida homérica. É preciso reconhecer, já
agora, que oJúpiter de Vergílio está num patamar de serenidade superior ao do Zeus homérico.
90É necessário subentender potuit (cf. potuêre no verso seguinte).
81Infinitivo futuro de sum (NGL, p. 148), predicado da oração infinitiva dependente de potíicitus
<es> («prometeste»).
02O conjuntivo pode explicar-se como oração relativa de caracterização (NGL, p. 342) ou como
oração relativa final (NGL, p. 341).
8JAlguns latinistas consideram quefàtis é dativo; outros optam por interpretá-lo como ablativo.
Vergílio, Eneida, Canto 1 325
94Correspondem ao território que hoje chamamos Croácia. Tito Livio (1.1) menciona, ainda,
que Antenor veio ter à zona dos Vénetos (mais tarde Veneza, a partir do século vil d.G). Ficamos
a pensar se o primus do primeiro verso da Eneida não será uma pequena inverdade (pelo menos
no âmbito da História mítica, onde elas, de resto, abundam).
*$ Um pequeno exagero da parte de Vénus, pois a única nau que se perdeu foi a de Orontes
(w. 113-117). No V. 381 ficaremos a saber que a frota de Eneias era constituída, no total, por
vinte naus.
96Vénus abstém-se de mencionar o nome de Juno.
326 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
c o n tu n d e t m õ rè sq u e uiris e t m o e n ia p õ n e t,
esmagará; e para os homens costumes e muralhas estabelecerá95,
265 tertia d u m L atiõ ré g n a n te m u id e rit 96 aestãs,
até que o terceiro verão o veja reinando no Lácio
te rn aq u e tra n sie rin t R u tu lis h ib e rn a subãctis.
e tenham passado trés invernos, depois de subjugados os Rútulos.
at p u e r A scanius, cui n u n c c o g n o m e n íü lõ
Mas o rapaz Ascánio, a quem o cognome Iulo
additur (Ilus erat, dum rés stetit Ilia régnõ),
é adicionado (era Ilo, enquanto estava de pé o estado ílio em reinado)97,
trig in tã m agnos u o lu e n d is m e n sib u s o rb is
trinta grandes ciclos com meses volventes
270 im periõ explébit, rê g n u m q u e ab séd e L au in i
cumprirá em poder; e o reino da sede de Lavinio
transferet, e t L ongam m u ltã ui m ü n ie t A lbam ,
transferirá; e com muita força munirá Alba Longa.
hic iam te r cen tu m tõ tõ s ré g n ã b itu r an n õ s
Aqui durante trezentos anos inteiros reinar-se-á
gente sub H ecto reã, d õ n e c rég in a sacerd õ s
sob a gente de Heitor, até que uma sacerdotisa régia,
M ãrte grauis g em in am p a rtü d a b it Ilia prõ lem .
grávida de Marte, dará à luz - ília98 - uma prole gêmea.
" Que bom, para leitores romanos, saber que o seu «império sem fim» era dádiva expressa de
Júpiter!
100Subentender est mihi.
101 Filho de Trós, rei lendário de Troia, e avó de Anquises (portanto, bisavô de Eneias). Ftia
refere a região de que Aquiles era rei. Note-se que «Micenas» (como «Atenas») é plural em
grego e latim.
102servitium, -í, «escravidão».
103No verso em latim, terminet i conjuntivo, porque a oração relativa tem um sentido final (NGL,
p.341).
Vergílio, Eneida, Canto 1 329
107 No século XIX, um penetrante comentador de Vergílio escreveu: «Why should Dido drive
away the Trojans because she was “in ignorance of destiny”?Surely Dido would have been much
more likely to drive them away if she had been acquainted with destiny, for Aeneas was to cause
her death and the descendants of the Trojans were to destroy Carthage» (Page, p. 170). Já no
século XXI, outro comentador achou que o «ânimo sereno» e a «mente benigna» que Mercúrio
incute em Dido garantem «her own madness and death. Can this be viewed as anything but
divine cruelty?» (D.O. Ross, Virgil's Aetteid: A Reader's Guide, Oxford, 2007, pp. 108-109). No
Canto 5 da Odisséia, o Mercúrio grego (Hermes) é enviado por Zeus a Calipso com a mensagem
de que ela tem de abdicar de Odisseu (mais tarde, no Canto 4 da Eneida, Mercúrio será enviado
a Eneias para dizer que ele tem de abdicar de Dido). Nas palavras da Calipso homérica, ela
própria uma deusa, «Sois cruéis, ó deuses, e os mais invejosos de todos!» ( Odisséia 5.118).
,0$ Poeni («Púnicos»): «Cartagineses».
109acesserit.. teneant: os conjuntivos justificam-se por se tratar de interrogativas indiretas.
1,0Em rigor, deveria ser uidêt.
Vergílio, Enbida, Canto 331
111Vergilio evita a concordância natural de obuia («that is in the way or path, placed so as to
meet» [OLD]) com sisc (também porque obuiam iria contra a métrica), fazendo em vez disso
a concordância com mãter.
112Filha atlética (na visão tradicional, «maria-rapaz») de um rei lendário da Trácia (o Hebro é
o rio que ela ultrapassava na corrida). A ironia é que Vénus não é uma virgem masculinizada,
mas sim a mais feminina (e menos virgem) das deusas.
332 Latim do Zero a VergÍlio em 50 Lições
119Os manuscritos de Vergílio dão-nos a ler agri (lição seguida na edição de Conte). A conjetura
auri (adotada por Mynors) baseia-se na ideia de que os Fenícios eram mais comerciantes do
que agricultores.
119Este Pigmalião nada tem a ver com o de Ovídio, escultor que se apaixonou pela sua escultura
(Metamorfoses 10.243-297).
120No V. 343, o «y» de Sychaeus era longo; agora, poucos versos depois, é breve!
334 Latim do Zero a V ergílio em 50 L iç õ b s
121Vergílio mistura aqui etiologia com etimologia (em grego, ßvpca significa «pele de boi»).
Vergílio, Eneida, Canto 1 335
126 O conjuntivo perfeito justifica-se por se tratar de uma oração relativa de caracterização (NGL,
p. 342). Sobre a quantidade errada do «i», ver p. 201.
m Trata-se do adjetivo redux, reducis ( «restituído»).
m Subentender esse.
Vergílio, Eneida, Canto 1 337
129 Também na IUada (3.396) é a beleza do pescoço de Afrodite que dá a conhecer a deusa,
apesar do disfarce.
130Curioso o hiato dea itte.
131circum...füdit = circumfiidit Um toque homérico (tmese).
338 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
132 Cf. Odisséia 7.14-17: «Então Odisseu pôs-se a caminho da cidade. Sobre ele Atena /
/ derramara um denso nevoeiro, para assim o ajudar, / não fosse algum dos magnânimos Feaces
encontrá-lo / no caminho e interrogá-lo, desafiando-o a dizer quem era.» Vergílio evita o
exagero de Apolónio de Rodes, em cujo poema Hera espalha nevoeiro numa cidade inteira para
quejasão não dé nas vistas (Argondutica 3.210-212).
133Cf. Odisséia 8.362-363: «Mas para Chipre se dirigiu Afrodite, deusa dos sorrisos; / foi para
Pafos, pois aí tem seu templo e seu perfumado altar.»
134mãgãlia, -um: «cabanas» (palavra alegadamente cartaginesa).
133Os infinitivos dücere, mõlirí, subuoluere, optàre, conclúdere dependem de instant.
Virgílio, Eneida, Canto 1 339
134Não podemos passar em branco o anacronismo delicioso que consiste na fantasia de que já
existiriam teatros no período da Guerra de Troia. Um dado histórico importante a ter em conta
foi o facto de Augusto ter mandado reconstruir Cartago, cidade que seria mais tarde a morada
(por uns tempos) de um leitor fervoroso da Eneida: Santo Agostinho.
137Na sua Geórgica 4, Vergilio representara as abelhas como modelo de uma sociedade romana
ideal, onde todos trabalham e todos se sacrificam, e onde a felicidade individual não tem lugar.
Aqui as abelhinhas fanáticas de trabalhar são os Cartagineses, os quais, de modo antecipadamente
romano, Eneias aprova e qualifica defortúnãti.
,3eDativo de agente (em latim, é raro encontrarmos o dativo de agente com um verbo conjugado
no presente).
340 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
141A expressão celebérrima sunt lacrimae rérum é intraduzível (Robert Fagles propôs «thc world
is a world of tears»). Em termos mais literais, outro sentido possível é «também aqui existem
lágrimas por situações adversas», ou seja, «também aqui as pessoas se comovem perante o
sofrimento». A minha leitura pessoal, porém, vai noutra direção: intuo a partir do contexto
específico (contemplação de uma pintura) que as «lágrimas das coisas» se constituem,
relativamente à arte, ao mesmo tempo origem e tema. Vergílio propõe, a meu ver, uma situação
de autorreflexividade estética: ao mostrar-nos o herói da sua obra de arte comovendo-se com
arte e alimentando o seu espirito «com pintura imaterial», Vergílio faz de Eneias o espelho do
leitor-destinatário da arte vergiliana, que alimenta o seu espirito com este extraordinário poema.
144fugerent... premeret... instaret: o conjuntivo justifica-se por se tratar de interrogativas indiretas.
342 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
148 Os episódios aqui ilustrados pertencem vagamente aos Cantos 22 e 24 da Iliada (mas a
imagem de Aquiles a «vender» por ouro o cadáver de Heitor suscita a possibilidade de Vergilio
se estar a referir também a uma tragédia [hoje fragmentária] de Énio, Hectoris Lytra, «O Resgate
de Heitor»; por outro lado, o ato de arrastar Heitor á volta das muralhas de Troia faz lembrar
mais a Andrómaca de Euripides [v. 105] do que propriamente a Ilíada, poema em que Aquiles
arrasta o cadáver de Heitor à roda do túmulo de Pátrocio).
149 Mémnon e Pentesileia eram temas do ciclo épico grego. A menção de uma virgem que
combate no meio de homens é proléptica (cf. Camila no Canto 11 da Eneida).
344 Latim do Zbro a Vergílio em 50 Liçõbs
'*° Estes «jovens» (iuuenés) são do sexo masculino, o que logo à partida nos convida a olhar
para Dido com olhos romanos: afinal que mulher é esta, que lidera uma cidade como se fosse
um homem e é acompanhada por um séquito de rapazolas? Pensemos no choque e no escândalo
que surgiu em Roma quando Agripina, viúva de um imperador (Cláudio) e mãe de outro
(Nero), se preparava para receber embaixadores juntamente com Nero como se ela fosse um
homem. Os circunstantes, segundo Tácito (Anais 12.5), ficaram constrangidos de vergonha;
e a situação escandalosa só se resolveu graças à reação rápida de Séneca, que evitou a subida
de Agripina à tribuna. Nós vemos Dido como personagem maravilhosa e como mulher
independente a viver em pleno uma vocação política (antes de a paixão tóxica a destruir). Será
que os leitores romanos de Vergílio a romantizariam como nós? Ou passagens como esta
provocar-lhes-iam, antes, uma sensação de vergonha alheia?
151 O símile a comparar Dido com Diana evoca o símile do Canto 6 da Odisséia que compara
Nausícaa com a Diana grega, Artemis. Claro que (tratando-se de Vergílio) a comparação está
longe de ser inocente: o tema do amor e da caça já estava implícito na epifania de Vénus
disfarçada de caçadora; será depois durante uma caçada no Canto 4 que o amor de Dido e Eneias
é consumado.
152Cf. a nota ao v. 497. A escolha da palavra uiris não será decerto acidental.
Vergílio, Eneida, Canto 1 345
154populõ, populäre: «devastar», «espoliar». Ver nota a 4.403. A grande ironia é que, séculos
mais tarde, os futuros Romanos destruirão a cidade fundada por Dido.
155 O nome sugere a palavra grega para «vinho» (olvoc), talvez por Itália ter um clima
especialmente bom para o cultivo da vinha.
156Este é o primeiro dos trés versos incompletos que se encontram no Canto 1 da Eneida (os
outros são 560 e 636). Os ladnistas ainda hoje discutem se Vergílio deixou os versos incompletos
da Eneida como efeito surpreendente e deliberado, ou se a incompletude é sinal de que o autor
não fizera ainda a última revisão.
157Sobre a quantidade oscilante dos «o» que compõem este nome, ver NGL, p. 59, n. 17.
ls$procáx,procàcis (adjetivo): «insolente», «vicioso» (aqui «feroz»).
Vergílio, Eneida, Canto 1 347
quod genus hõc 159 hom inum ? quaeue hunc tam barbara m õrem
Que raça é esta de homens? Que tão bárbara pátria este costume
540 p e rm ittit patria? h o sp itiõ p ro h ib é m u r harénae;
permite? Somos privados da hospitalidade da praia;
bella cient prim ãque uetant consistere terra.
travam guerra e impedem<-nos> de pisar na primeira terra.
sl genus húm ãnum et mortalia tem nitis arma
Se a raça humana e as armas mortais desprezais,
at spêrãte deõs m em orés fandi atque nefandi.
aguardai os deuses lembrados do bem e do mal.
rêx erat Aenéãs nõbis, quõ iustior alter
O nosso rei era Eneias, mais justo do que o qual outro
545 nec pietãte fuit, n ec b ellõ m aio r e t arm is.
não houve nem pela piedade, nem maior na guerra e nas armas.
q uem si fãta u iru m seru an t, si u escitu r aurã
Se os fados salvaguardam este homem, se se alimenta do ar
aetheria, neque adhüc crüdélibus occubat umbris,
etéreo e não jaz ainda nas sombras cruéis
nõn m etus160, officiõ nec té certasse priõrem
não <temos> medo; que não te arrependas de seres tu primeira <em relação a ele>
paeniteat. sunt et Siculis regionibus urbés
a contribuir com ajuda. Existem também nas regiões sicilianas cidades
550 armaque Trõiãnõque ã sanguine clãrus Acestés.
e armas e <está lá> o preclaro Acestes <príncipe> de sangue troiana
quassatam uentis liceat 161 subdücere ciassem,
Que seja licito aportar a frota estilhaçada pelos ventos
et siluis aptãre trabés et stringere rémõs:
e nos bosques ajeitar traves e desbastar remos
si datur Italiam, sociis et rége recepto,
(se nos é dado demandar Itália, recuperado o rei e os companheiros),
tendere, ut Italiam laeti Latium que petämus;
para que, alegres, procuremos Itália e o Lácio.
555 sin absüm pta salüs, et té, pater optim e Teucrum,
Mas se a salvação for recusada e a ti, pai ótimo dos Teucros,
167Conjuntivo desiderativo (NGL, p. 269); para a forma morfológica, ver NGL, p. 151.
350 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
168 Esta passagem imita dois momentos na Odisséia em que Atena faz Odisseu mais belo,
primeiro para fazer com que ele agrade a Nausicaa (6.229-235), depois para fizer o mesmo em
relação a Penélope (23.156-162). Eis a passagem do Canto 6: «Foi então que Atena, filha de
Zeus, o fez / mais alto de aspeto e mais forte. Da cabeça / fez crescer cabelos crespos, semelhantes
à flor hiacintina. / Tal como derrama ouro sobre prata um artífice, / a quem Hefesto e Atena
ensinaram toda a espécie / de técnicas, e assim fàz uma obra graciosa - assim a deusa / derramou
a graciosidade sobre a cabeça e os ombros de Odisseu.» A passagem do Canto 23 tem um
acrescento relevante, que é «igual de corpo aos deuses imortais» (v. 163), o que corresponde
a deõ similis no v. 589.
169A expressão «luz purpúrea da juventude» tem causado alguma estranheza aos latinistas;
provavelmente, Vergílio está a lembrar-se da cor hiacintina evocada por Homero a propósito
dos cabelos de Odisseu (ver nota anterior). Curiosamente, ao referir mais tarde a morte de
Camila, Vergílio falará de novo de uma «cor purpúrea» que abandona, na morte, o rosto da
virgem (11.819).
170adflãrat (indicativo mais-que-perfeito sincopado) = adfláuerat.
Vergílio, Eneida, Canto 1 351
174O terceiro verso dirigido por Dido a Eneias ostenta a técnica catuliana (rarissima em Vergilio)
de pôr palavras gregas no fim do verso de modo a formar um hexámetro em que o quinto pé
é um espondeu.
175Meio-irmão do grego Ájax (o que se suicidou em Troia), e não o lendário rei troiano. O facto
de ter sido posto fora de casa pelo pai após a Guerra de Troia permitiu que, na literatura greco*
-latina, Teucro dialogasse com personagens célebres em locais exóticos: Euripides, na sua
tragédia Helena, coloca-o a conversar com Helena no Egito; Vergilio pressupõe longas conversas
protagonizadas por Teucro em Sídon (= Tiro?; ver nota ao v. 446).
176Pelasgos = Gregos.
Vergílio, Eneida, Canto 1 353
1010 conjunüvo justifica-se por se tratar de uma ordem indireta (neste caso sem ut). Ver NGL,
p. 349.
100A quantidade ilícita do «e» longo (ainda que possível na prosódia arcaizante de Énio e de
Lucrécio) parece sublinhar o carácter ilícito dos «himeneus» de Helena (prenunciando o
irrealismo do «casamento» fantasiado por Dido no Canto 4). Note-se, ainda, que a simbologia
de roupas outrora pertencentes às problemáticas Leda e Helena já aponta para a impossibilidade
de o amor entre Dido e Eneias dar certo.
Vergílio, Eneida, Canto 1 355
186Normalmente Sidônius.
187Cythéra, Cytherorum (a ilha de Vénus é morfologicamente um plural neutro).
188latex, laticis: «líquido». O adjetivo «lieu» diz respeito a Baco.
189Com dois versos de permeio, temos agora o conjuntivo dependente de ut, no v. 685.
Vbrgílio, Eneida, Canto 357
m penus, -iis (feminino): «provisão» (segundo o OLD, palavra cognata depanasáh em sãnscríto,
«fruta-pão»).
194Dativo (construção de insidô, insidere, insidi, insessum).
Vergílio, Eneida, Canto 1 359
w Epíteto de Vénus, tão rebuscado que só temos a explicação de Sérvio (comentador de Vergilio
no século iv), segundo a qual se refere a uma fonte na Beócia onde as Graças se banhavam.
m reses, residis (adjetivo): «inativo».
197 Expressão imitada de Homero (Odisséia 1.148). A metáfora de «coroar» implica encher
as taças até cima.
,w Conjuntivo desiderativo.
360 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
d ix it e t in m è n s a m la tic u m lib ã u it h o n õ re m ,
Falou; e na mesa derramou em libação honra de líquidos
p rim a q u e , lib ã tõ 199, s u m m õ te n u s 200a ttig it õ re,
e primeira, feita a libação, tocou <a taça> com o cimo da boca;
tu m B itiae d e d it in c re p ita n s; ille im p ig e r h a u s it
depois deu<-a> a Bítias, incitando<-o>. Ele, rápido, esvaziou
s p ü m a n te m p a te ra m e t p lê n õ sé p rõ lu it a u rõ ;
a taça espumejante e bebeu do ouro pleno;
740 p o s t alii p ro c e re s, c ith a ra c rin itu s Iõ p ã s
depois <beberam> os outros próceres. O cabeludo lopas com a citara
personat aurãtã, d o cu it q u em m axim us Atlãs.
dourada toca, a quem ensinou o enormissimo Atlas.
h ic c a n it e rra n te m lú n a m s õ lisq u e lab õ ré s;
Este canta a Lua errante e os labores do Sol;
unde h om inum genus e t pecudés; u n d e im b er et ignes;
donde a raça dos homens e os animais; donde chuva e fogos;
A rctürum pluuiãsque H yadas g em in õ sq u e T riõnês;
Arcturo e as chuvosas Hiades e os dois Triões201;
745 q u id ta n tu m Õ c e a n õ p ro p e re n t sê tin g e re sõ lé s
por que razão os sóis invemais tanto se apressam para tocar no Oceano,
hiberni, uel quae tardis m o ra n o ctib u s o bstet.
ou que demora obsta às noites lentas.
ingem inant plausú Tyrii, T rõesque seq u u n tu r.
Os Tírios redobram com aplauso e os Troianos seguem<-nos>.
nec n õ n et uariõ n o ctem serm õ n e trah êb at
Também com conversa variada passava a noite
infélix D idõ lo n gum que b ib éb at am õrem ,
a infeliz Dido e bebia um longo amor,
750 m ulta super P riam õ rogitãns, su p e r H ecto re m ulta;
muito perguntando acerca de Priamo, muito acerca de Heitor;
205VergÜio salienta a perceção subjetiva do tempo pelo prisma de Dido: os Cantos 2 e 3, narrados
por Eneias, tinham constituído oflashback (já que a narrativa foi lançada, como diria Horácio
[Arte Poética 148], in mediás rês) dos acontecimentos ocorridos antes da chegada dos Troianos
a Cartago: o cavalo de pau, o saque de Troia, a fuga do grupo de refugiados e todos os tormentos
porque passaram. Com o advérbio iamdüdum («há muito tempo»), Vergilio mostra-nos como
Dido já não se consegue lembrar de uma existência em que não estava apaixonada por Eneias.
A paixão define agora a sua vida.
206 Camões escreverá que o amor é fogo que arde e não «se vé»; mas Vergilio é mais subtil:
o amor é fogo que não vé.
207Concorda com Aurora, no verso seguinte.
208A «lâmpada febeia» é o Sol (= Apoio = Febo).
Vergílio, Eneida, Canto 4 363
209 Isto é, a «sempre sintonizada» irmã; as duas afinam em tudo pelo mesmo diapasão. Ver
depois a nota ao v. 672. Cf. também o v. 686. Neste sublime Canto 4, Vergilio planeia o seu
vocabulário com extrema minúcia. Note-se também, desde já, a vontade expressa de Vergilio
de conferir ao Canto 4 o ambiente de uma tragédia grega: a conversa inicial das duas irmãs
lembraria ao leitor culto antigo a abertura da A ntigona de Sófodes.
210 nostris... sêdibus: dativo (pedido pela construção de succêdõ).
211Uma expressão muito compacta: temos de imaginar quâlis est et quàli õre (de õs, ôris, «rosto» )
séfert. Para o sentido de ferõ aqui, pense-se em tenue (francês) ou em H altung (alemão). O que
Dido está a comentar em concreto é o aspeto aristocrático de Eneias («que príncipe!»).
212 Uma controvérsia interminável entre os latinistas é se arm is é o ablativo de arma , arm õrum
(«armas») ou de arm us, -i («ombro»; cf., em inglês e alemão, a r m ). Depende do que
imaginamos que Dido está a elogiar: o heroismo de Eneias; ou o facto de ele ser bonito.
(Sublinhe-se que, para o O L D s.u., a palavra aqui é armus, «ombro».) Seja como for, os ablativos
fo r ti pectore e <fortibus> arm is são ablativos de qualidade (NGL, p. 311).
213Vergilio deixa-nos ver o descontrolo emocional de Dido em dois hexâmetros seguidos que
são o extremo um do outro: v. 1 3 ( - U U - U U - U U - U U - U U — ); v. 14 (---------------
--U U --).
2,4 Perfeito de fallô, fallere, fefelli, fa ls u m : «enganar».
364 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
221Um toque genial de Vergílio. O facto de Dido romper em lágrimas depois do que disse mostra
quanto a fidelidade (da boca para fora) à memória de Siqueu representa o contrário daquilo
que, no seu íntimo, ela neste momento sente e quer.
222Indicativo futuro passivo (= carpèris).
223Indicativo futuro perfeito sincopado (= nõucris).
224diues, diuitis (adjetivo): «rico».
223Conjuntivo perfeito (por se tratar de uma interrogativa indireta).
226Porque montavam a cavalo sem usarem freios.
227Ablativo de causa.
366 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
Conjundvo potencial.
229Mau grado os receios de Ana, a cidade famosa de Barça (donde mais tarde seriam oriundos
Amílcar e outros ferozes oponentes de Roma) não ficava propriamente ali à mão de semear
(a distância da cidade de Dido seria à volta de 1000 km).
230Um dos 57 versos incompletos da Eneida.
231 Sobre as quantidades excêntricas de «Orion» em latim, ver N G L , p. 59, n. 17.
232 Alguns latinistas duvidam que Vergílio tenha escrito aqui im pénsõ (pois seria a única
ocorrência na sua obra de impénsus [ «muito caro», «muito dispendioso» ]; cf. o uso da palavra
para referir, em contexto gastronômico, o preço caríssimo dos rouxinóis em Horácio, Sátiras
2.3.245). Há alguma variação manuscrita neste verso; para muitos comentadores de Vergílio,
a forma preferível do verso seria hts dictis incensum an im u m in fla m m à u it am õre («tendo dito
estas coisas, inflamou o espírito aceso de amor»). Pessoalmente, gosto do verso tal como o
lemos na edição de Mynors e de Conte (com im pénsõ): este amor vai sair caro a Dido, pela
simples razão de que ela vai ter de pagar caro por ele.
Vergílio, Eneida, Canto 4 367
55 sp e m q u e d e d it d u b ia e m e n ti so lu itq u e p u d õ re m .
e deu esperança à mente hesitante e desfez o pudor.
principio dêlübra 233 adeunt pãcem que p er ãrãs
Primeiro visitam santuários e paz pelos altares
e x q u iru n t; m a c ta n t léc tã s d é m o re b id e n tis 234
elas pedem; sacrificam, segundo o rito, ovelhas escolhidas
légiferae C ererí P h oebõque patríque Lyaeõ,
à legisladora Ceres, a Febo e ao pai Lieu [Baco],
Iünõnl ante om nls, cui uincla iugãlia cürae235.
a Juno antes de todos, a cujo cuidado <competem> os vínculos conjugais.
60 ipsa tenéns dextrã pateram p ulcherrim a D ldõ
A própria (segurando na dextra uma taça) lindíssima Dido
c a n d e n tis uaccae m e d ia in te r c o m u a fu n d it,
derrama <o líquido entre os cornos de uma vaca branca,
a u t a n te õ ra d e u m p in g u is s p a tia tu r a d ãrãs,
ou diante dos semblantes dos deuses avança para os ricos altares
in sta u ra tq u e d ie m d õ n is, p e c u d u m q u e reclü sls
e renova13134*137o dia com ofertas, nos peitos abertos do gado
pectoribüs inhiãns spirantia cõnsulit exta.
olhando embasbacada e consulta as vísceras expirantes.
65 h eu , u ã tu m ignãrae m e n tê s! q u id u õ ta fu re n te m ,
Ó mentes ignorantes dos vates! O que ajudam votos a uma louca,
q u id d é lú b ra iu u a n t? é st 237 m o llis fla m m a m e d u lla s
o que ajudam santuários? Uma chama devora <seus> maleáveis tutanos13*
241A maravilha da ordem das palavras no verso de Vergilio não é transponível para português.
Como comenta Austin iv (p. 47), este verso demonstra «the magic of an inflected language».
242Vergilio vai acumulando, por meio da escolha das palavras, elementos que nos convidam a
avaliar com desaprovação os sentimentos de Dido, embora convidando-nos ao mesmo tempo
a solidarizar-nos com o sofrimento da rainha.
243Participio perfeito de uereor, uerêri, ueritus sum («venerar», «recear»).
370 Latim do Zero λ V ergílio em 50 Lições
248Supino (com valor final; ver NGL, p. 363) de uênor, uènàri («caçar»).
249Isto é, «o Sol de amanhã».
250 extulerit (de efferõ) e retêxerit (de retegõ): indicativos futuros perfeitos.
251 àla, -ae tem como sentido primário «asa», mas aqui significa «grupo de caçadores».
252 indãgõ, -inis: «rastreio» (em sentido venatório); «armadilha» (por extensão de sentido
«indagação», ou seja, o ato de rastrear). Claro que a ambigüidade é deliciosa, porque a
armadilha das deusas é para Dido e Eneias. Cf. Richard Wagner, Tristão e Isolda, 2.° ato, «a uma
presa mais nobre do que estás a pensar diz respeito sua armadilha venatória» [«einem edlem
Wild, als dein Wähnen meint, gilt ihre Jägerslist»]).
253Aqui um trissilabo. Mas a palavra, na verdade, tem quatro sílabas: já começamos a perceber
que este «conúbio estável» não vai dar certo - logo pelo facto de faltar uma sílaba a «conúbio».
372 Latim do Z ero λ V ergílio em 50 Lições
in c é d u n t. ip se a n te aliõ s p u lc h e rrim u s o m n is
avançam. Ele próprio, o mais belo diante de todos,
ín fe rt sê s o c iu m A e n é ã s a tq u e a g m in a iu n g it.
Eneias, apresenta-se como sócio e junta os grupos.
q u ãlis u b i h ib e rn a m L y ciam X a n th iq u e flu e n ta
Tal como quando a invernosa Licia e as correntes do Xanto
d é se rit ac D ê lu m m ã te m a m in u ls it A p o llõ
Apoio abandona e visita a materna Delos
145 In sta u ra tq u e ch o ro s, m ix tlq u e a ltã ria c irc u m
c <lá> instaura coros - e misturados à volta dos altares
C rê té s q u e D ry o p é s q u e fre m u n t p ic tiq u e A g a th y rs i261;
gritam os Cretenses e os Dríopes e os pintados Agatirsos;
ipse iugis 262 C y n th i g ra d itu r m o lliq u e flu e n te m
o próprio pisa as encostas do Cinto e com delicada folhagem o esvoaçante
fro n d e p re m it c rin e m fin g é n s a tq u e im p lic a t au rõ ,
cabelo prende moldando<-o> e entretece-o com ouro;
têla s o n a n t u m e ris: h a u d illõ s é g n io r ib a t
as setas chocalham nos ombros263: não mais lerdo do que aquele ia
150 A enéãs, ta n tu m ê g reg iõ d e c u s é n ite t õ re.
Eneias; tanta beleza <quanta a de Apoio > brilha no seu rosto distinta
p o stq u a m altõ s u e n tu m 264 in m o n tis a tq u e in u ia lü s tra ,
Depois que chegaram aos altos montes e às tocas inacessíveis,
ecce ferae saxi d é ie c ta e u e rtic e c a p ra e
eis que cabras selvagens deslocadas <pelos caçadores> do cume de um penedo
d ê c u rrê re iugis; aliã d ê p a rte p a te n tis
desceram nas encostas; de outra parte através dos abertos
tr ã n s m ittu n t c u rsü c a m p o s a tq u e a g m in a c e ru i
campos cervos se deslocam em corrida e reúnem bandos
155 p u lu e ru le n ta fugã g lo m e ra n t m o n tis q u e re lin q u u n t,
poeirentos na fuga e deixam os montes.
a t p u e r A sc a n iu s m e d iis in u a llib u s ã c ri
Mas o rapaz Ascânio no meio dos vales com o impetuoso
261 Este verso fascinante (e que caleidoscópio de sons!) ostenta trés tratamentos métricos
diferentes da enclitica -que: Crctèsquc Dryopcsquifremunt pictique Agathyrsi.
262 iugum, -í: «jugo» (mas aqui «encosta»).
263Imitação claríssima de Iliada 1.46-47, onde Apoio, assim descrito, tiaz a morte. Vergilio conta
com a cultura homérica do leitor para perceber as implicações.
264 Subentender est illis. O verbo ueniô é aqui utilizado no perfeito passivo de modo impessoal.
374 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
267EmJacta atquc infecta, Vergílio já inventara as expressões do século xxi fake news e alternative
facts.
376 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçõbs
hic 270 Ham m õne satus 271 rapta Garamantide nym pha
Este [Iarbas], gerado por Hámon e pela violada ninfa garamántide272,
templa loui centum lãtis immãnia rêgnis,
cem enormes templos para Júpiter nos seus amplos reinos
200 centum ãrãs posuit uigilemque sacrãuerat ignem,
e cem altares estabeleceu e santificara o fogo vigilante -
excubias273 diuum aeternas, pecudum que cruõre
sentinelas eternas dos deuses; e com o sangue de gado
pingue solum et uariís florentia limina sertis,
o solo <era> rico e as soleiras <estavam> floridas com grinaldas diversas.
isque ãmens animi et rum õre accensus amãrõ
Ora este, demente de espírito e incensado com o rumor amargo,
dicitur 274 ante ãrãs m edia inter nüm ina 275 diuum
diz-se que diante dos altares no meio das presenças dos deuses
201A oração infinitiva materializa os rumores em discurso indireto (situação que justifica
também o conjuntivo dignêtur).
m O antecedente de longa é hiemem; subentender sit (conjuntivo de discurso indireto).
270Vergílio estaria aqui a pensar na grafia antiga hicc (já que a sílaba é escandida como longs).
Ver NGL, p. 222.
271Participio perfeito de serõ, serere, sêui, satum: «semear».
272Os Garamantes eram um povo do norte de Afirica.
272excubiae, excubiarum: «sentinelas».
274Construção pessoal + oração infinitiva; ver NGL, p. 323.
275númina aqui como termo para «imagens divinas».
Vergílio, Eneida, Canto 4 377
Ui Iarbas está tão descontrolado de raiva que se esqueceu de que o «i» de p o titu r é longo.
236De modo passivo-agressivo, Iarbas termina a sua tirada de grande devoto de Júpiter com uma
farpa contra... Júpiter.
237 Surpreende a quantidade longa atribuída ao «u» final de a d lo q u itú r (em rigor seria
adloquitur).
233 Imperativo (2.* pessoa do singular) de labor, làbi, lapsus su m («deslizar»). Cf. também
adloquere (v. 226).
239Uma vez na Ülada (5.311-318) e outra na própria E neida (2.620,665).
290Infinitivo futuro de sum (N G L , p. 148). É preciso subentender novamente p r õ m isit e o sujeito
(«Eneias») em acusativo.
291 Introduz uma seqüência de relativas finais com os verbos no conjuntivo: regeret... prõderet...
mitteret.
Vbrgílio, Enbida, Canto 4 379
296Esta «frase bela e misteriosa» (Austin iv, p. 86) nunca foi satisfatoriamente explicada; talvez
aluda ao costume romano de reabrir os olhos dos mortos antes da cremação. Note-se que o
sentido primário de resigno> , resignãre é «rasgar o selo» (ou «deslacrar»).
i97frétus (adjetivo) + ablativo: «confiante em». Ver NCL, p. 315.
298Atlas, pai de Maia (mãe de Mercúrio), é avó materno do deus (como será referido no v. 258).
299Mercúrio é chamado «Cilénio» por ter nascido no monte Cilene (na Arcádia).
Vergílio, Eneida, Canto 4 381
300 mágãlia\, -tum (neutro plural): «casebres» (a palavra é apropriada no contexto por não ser
latina, mas sim de origem cartaginesa: cf. OLD s.u.).
301 discernõ, discernere, discréui, discretum: «separar» (aqui no sentido de «entretecer»,
«entremear»).
302 No sentido de «excessivamente empenhado no papel de marido» (ou, talvez em aceção
ainda mais negativa, «boneco nas mãos da mulher» ). De qualquer forma, a palavra seria sempre
sarcástica, uma vez que «marido» e «mulher» não passam de papéis fantasiados por Dido e
Eneias: vivem a ficção de serem casados, mas, na realidade, não o são.
303O sujeito da oração infinitiva (mé) tem de ser subentendido a partir do v. 268.
382 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
307 Conjuntivos de discurso indireto: ap ten t... cõgant... p a ren t... d is sim u le n t (no caso de sit,
o conjuntivo justifica-se por se tratar de uma interrogativa indireta).
303Sujeito em acusativo da oração infinitiva cujo predicado virá dois versos depois: te m p tã tü ru m
<esse>.
309 O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma oração subordinada numa seqüência em
discurso indireto. O mesmo vale para spêret.
3,0 a ditus, aditüs: «aproximação», «acesso», «abordagem».
311 Subentender s in t (conjuntivo de interrogativa indireta); e depois, com q u is m o d u s,
subentender sit.
yilfacessõ, facessere, facessiui, fac e ssitu m : «fazer», «cumprir».
313 Conjuntivo potencial.
3,4As orações infinitivas (predicados: arm árí... p a rã ri ; sujeitos: classem... cu rsu m ) dependem de
d ê tu lit (perfeito de dêferô).
384 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
3.5 Celebrante do culto de Baco (note-se que as letras a negrito em T h y ia s formam um ditongo
em latim). Vergílio está a reforçar o parentesco (por ele mais que desejado) entre o Canto 4 e a
tragédia grega, remetendo para a loucura representada por Euripides nas B acantes. No v. 471
virá a referência explícita a outra tragédia euripidiana em que figura um louco: Orestes.
3.6Perfeito sincopado (= spérãuisti). Note-se que dissim ulare depende de posse, que, por sua vez,
depende de spérãsti. Temos de subentender té como sujeito da oração infinitiva cujo predicado
é posse. Fiel ao seu propósito de tomar a tragédia grega como modelo no Canto 4, Vergílio faz
aqui eco dos discursos dirigidos a Jasão por Medeia na tragédia M edeia de Euripides.
Vergílio, Eneida, Canto 4 385
mêne fugis? per ego 317 hãs lacrimas dextram que tuam té
Será que foges de mim? Eu por estas lágrimas e pela tua dextra
3 is (quando aliud mihi iam miserae nihil ipsa reliqui),
(uma vez que já nenhuma outra coisa eu própria deixei à miserável que sou),
per cõnübia nostra, per inceptos hymenaeos,
pelos nossos conúbios, pelos himeneus começados,
si bene quid dé té merui, fuit aut tibi quicquam
se algo de bom de ti mereci, ou se a ti foi doce algo
dulce meum, miserére 318 dom üs lãbentis et istam,
meu, apieda-te da casa a ruir e esta,
õrõ, si quis adhüc precibus locus, exue m entem .
peço-te, se algum lugar aqui <há> para preces, intenção afasta!
320 té propter Libycae gentês N om adum que tyranni
Por tua causa as gentes líbicas e os tiranos dos Númidas
õdére, infénsi Tyrii; té propter eundem
<me> odeiam; os Tírios <me são> hostis; por tua causa também
exstinctus pudor et, quã sõlã sidera adibam,
o pudor acabou e, com a qual sozinha eu às estrelas rumava,
fãma prior, cui mé m oribundam déseris hospes
<minha > fama anterior <acabou >. A quem me deixas moribunda, ó hóspede
(hoc sõlum nõm en quoniam dé coniuge restat)?
(porque só este nome resta do cônjuge <que foste>)?
325 quid moror? an mea Pygmalion dum m oenia frãter
Porque me demoro? Até que <meu> irmão Pigmalião as minhas muralhas
dêstruat aut captam dücat Gaetülus Iarbas?
destrua ou o getulo larbas me leve como cativa?
saltem si qua mihi dê té suscepta fuisset
Se ao menos de ti tivesse sido recebida por mim alguma
ante fugam subolés319, si quis mihi paruulus aulá
prole antes da <tua> fuga, se comigo um pequenino Eneias
lüderet Aenêãs, qul té tam en õre referret,
brincasse no palácio, o qual embora <só> pelo rosto te traria de volta.
3.7 Note-se que ego e ti (v. 314) são, respetivamente, o sujeito e o complemento direto de õrõ
no V. 319.
3.8 Imperativo (2.® pessoa do singular) de misereor, miserêri (+ genitivo: domüs lãbentis).
319subolis, -is: «prole», «descendência» (ver Bucólica 4.49, p. 271).
386 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
320A verdade é que o discurso de Eneias é maior do que o de Dido. Mais uma vez, a ordem das
palavras é complexa. Na ordem direta, a frase seria ego n u m q u a m negãbõ tê p rõ m e rita m <esse>
plú rim a quae ualês ênum erãrefandõ («Eu nunca negarei que tu agiste com mérito em relação às
muitas <coisas positivas> que consegues enumerar falando»).
321Eqüivale aqui a potes («consegues»).
322 Subentender esse. Eneias está a reconhecer o mérito com que Dido agiu em relação a ele
(e a responder a m erui, perfeito de m ereõ [v. 317], com prõm ereor).
323 «Elissa» é o nome cartaginês de Dido. Está no genitivo por causa da construção de m e m in i
(cf. NGL, pp. 305-306).
324O imperativo em néfinge é um recurso próprio da poesia (a expressão normal seria nõlifingere:
cf. NGL, pp. 347-348).
Vergílio, Eneida, Canto 4 387
325 Dado que temos aqui um nominativo desgarrado, temos de subentender um verbo (talvez
de novo admonet, para equilibrar a frase sobre Ascânio com a frase sobre Anquises).
388 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
3MTrata-se aqui do infinitivo futuro de hauriõ, haurire: subentenda-se <tc> hausürum <esse>
(a oração infinitiva depende de spirõ).
339Acusativo grego, pressupondo que Didõ em grego se declinaria, por exemplo, como Λητώ,
«Latona», cujo acusativo (pelo menos em ático) é igual ao nominativo.
330 Cf. as palavras de Norma na ópera homônima de Vincenzo Bellini: «Te sullónde e te sui
venti / Seguiranno mie furie ardenti! / Mia vendetta e notte e giomo / Ruggirà intomo a te!»
390 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
111 Normalmente um comentador sensível, Austin (iv, p. 121) surpreende ao criticar aqui o
adjetivo «marmóreo» como supérfluo. Trata-se de um adjetivo raro em Vergílio, aplicado
a uma estátua nas Bucólicas (7.35) e a Orfeu morto nas Geórgicas (4.523). Na Eneida só ocorre
aqui e uma vez no Canto 6 aplicado ao mar (6.729). Na minha leitura, parece clara a intenção
de Vergílio: o tálamo de Dido é «marmóreo» porque, terminada a relação com Eneias,
doravante o quarto será para ela uma sepultura. Cf., no v. 457, o «templo de mármore» dedicado
à memória do marido de Dido.
112Acusativo de relação (NGL, pp. 293-294).
111 «Untada» no sentido de «impermeabilizada com pez».
114A explicação lógica para os «remos frondosos» é que são remos sobresselentes, cuja madeira
ainda está em bruto. Com este pormenor, Vergílio sublinha o inesperado da partida.
111Conjuntivo potencial. Vergílio envolve o leitor na narrativa, interpelando-o na 2.a pessoa do
singular.
Vergíuo , Eneida, Canto 4 391
347Dido está a referir-se à tradição segundo a qual Diomedes profanou o túmulo de Anquises.
349 Ou «no momento da minha morte». O verso já foi considerado «the most difficult in
Virgil» (cf. Austin iv, p. 131). Todo este discurso de Dido (em que ela nega aceitar o luto pelo
relacionamento que acabou e, em modo passivo-agressivo, chafurda, abjeta, na fantasia de uma
negociação) é dificílimo de ler: não porque o latim seja difícil, mas porque as emoções expressas
são difíceis - e arrepiantemente consentàneas com a experiência rebaixante do «amor tóxico»
que já calhou a muitos de nós.
349No sentido de «imperturbáveis».
394 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
330Estas lágrimas inãnés («que não servem para nada») são um dos maiores enigmas da poesia
veigiliana: são lágrimas de Ana ou de Eneias? Muitas pessoas pensam que as lágrimas são de
Ana. Santo Agostinho, porém, pensava que eram de Eneias ( Cidade de Deus 9.4). Como leitores
presos neste portentoso megadrama passional, sabe-nos bem pensar que Eneias tem suficiente
sensibilidade humana para chorar com a situação excruciante de Dido (mesmo sendo lágrimas
que não servem de nada - nem a ela, nem a ele).
331 quõ funciona aqui como conjunção final com um comparativo (ver NGL, p. 327).
332 turicremus (adjetivo): «abrasado de incenso». Este adjetivo, inventado (tanto quanto
sabemos) por Lucrécio, é formado a partir de tús, túris ( « incenso» ) e cremo, cremâre ( «cremar»).
Vergílio, Eneida, Canto 4 395
353O uso aqui de «obsceno» (que mistura as aceções de «pavoroso» e de «macabro») lembra
o presságio que anunciou a morte de Júlio César em Geórgicas 1.470: o ladrar (subentende-se
no passo em causa) de cadelas «obscenas».
354queri e dücere são infinitivos de ação repetida (ver nota ao v. 422).
396 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
355Vergílio remete aqui para uma cena famosa das Bacantes de Euripides (w. 918-919), em que
Penteu, alucinado, diz que vé o Sol e Tebas a dobrar. A referência a Orestes (o filho de
Agamémnon que enlouquece depois de ter assassinado a mãe) alude também à tragédia
homônima de Euripides.
356 Temos de imaginar aqui as várias aceções de âter: «negro», mas também «sinistro»,
«malévolo».
357 Esta linguagem de «decisões» quanto ao suicídio ecoa outra personagem euripidiana
(também ferida de paixão tóxica por vontade de Afrodite): Fedraem H ipótíto (w. 401-402; 723).
358Uma expressão arrojadíssima de Vergílio: a ideia subjacente é que Dido serena o semblante
com a simulação da esperança.
359Imperativo de grá to r,g rà tá rig rá tu s sum («felicitar»).
360Outra remissão para a linguagem usada por Fedia ( H ip ó lito 7 \6 ). Dido fala para enganar a irmã,
mas o leitor culto, ao ler inuéni, sabe que Dido está a referir-se ao εύρημα de Fedra: o suicídio.
361Os conjuntivos reddat e soluat justificam-se por se tratar de orações relativas de caracterização
(cf. NGL, p. 342).
362As formas de pronome demonstrativo eum e eõ chamam a atenção, porque, curiosamente,
Vergílio mostra relutância em usar o pronome is, ea, id. Mas neste verso ocorre duas vezes, talvez
porque a relutância de Dido em pronunciar o nome de Eneias é ainda maior (note-se que, em
todo o Canto 4, ela só pronuncia a palavra «Eneias» uma vez: é no v. 329 - e o Eneias a quem
ela aí se refere é o fantasiado «pequeno Eneias», o filho que nunca nasceu).
Vergílio, Eneida, Canto 4 397
343Vendo o Oceano, à boa maneira homérica, como rio que circunda a terra.
344 Conjuntivo oblíquo de discurso reportado (ver NGL, p. 270).
345Talvez no sentido de «ribombar». A ideia de ver (em vez de escutar) um som parece arrojada,
mas é mais uma remissão para a tragédia grega (uma personagem de Ésquilo diz «vi um
barulho» em Sete contra Tebas 103).
344 Forma de infinitivo passivo arcaico (há vários exemplos em Plauto e Énio, assim como em
Lucrécio).
398 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
347 Não é por acaso que Vergílio volta aqui à premissa do poema (Arma uirumque), ao mesmo
tempo que Dido rebatiza o «pio Eneias» de impius. Como se neste momento, pelos olhos de Dido,
a razão de ser do poema (o valor das armas, da masculinidade e da pietás) não passasse de um logro.
344 O plural fúnera («mortes») em vez do singular remete novamente para a linguagem da
tragédia grega, onde «mortes» (θάνατοι) surge como «plural enobrecedor». Ver J. Diggle,
Euripidea: Collected Essays, Oxford, 1994, pp. 155-157.
349Acusativo de relação («a sacerdotisa solta no que diz respeito aos cabelos»).
Vergílio , Eneida, Canto 4 399
sio te r c e n tu m to n a t õ re d e õ s, E re b u m q u e C h a o sq u e
troveja com a boca370trezentos371 deuses: Érebo e Caos
te r g e m in a m q u e H e c a té n , tria u irg in is õ ra D iãn ae.
c a tríplice Hécate, os trés rostos da virgem Diana372.
s p a rs e ra t e t la tic é s s im u lã tõ s fo n tis A u e m i,
Espargira também águas fingidas373da fonte de Avemo,
falcib u s e t m e ssa e a d lü n a m q u a e ru n tu r ã én is
e são procuradas ervas cortadas à luz da Lua com brònzeas foices,
p ú b e n tê s h e rb a e n ig ri c u m la c te u e n é n i;
ervas vigorosas com o leite de negro veneno;
515 quaeritur et nãscentis equi dé fronte reuulsus
é procurado também - da testa de um cavalo nascente arrancado
e t m ã tri p ra e r e p tu s am o r.
e à mãe tirado - um amor374.
ipsa m o lã 375 m a n ib u s q u e p ils a ltã ria iü x tã
Ela própria, com cereal moído e com mãos pias junto dos altares,
ü n u m ex ú ta p e d e m u in clís, in u e ste re c in c ta ,
tendo descalçado um pé das correias376, com o vestido desapertado,
te s tã tu r m o r itü ra d e õ s e t c õ n sc ia fãti
toma como testemunhas - ela que vai morrer - os deuses e as estrelas
190Dido deu a volta completa às hipóteses que a podiam impedir de se suicidar; e dá-se conta
de que tudo é impossível: (1) humilhar-se ao ponto de procurar um sucedâneo de Eneias não
dá; (2) ir sozinha para Itália com os Troianos não dá; (3) levar os Cartagineses atrás, que a custo
ela convencera a sair de Sídon, também não dá. Não resta mais nada: só morrer.
191Os verbos em latim estão no presente porque, para Dido (agora em modo autoexculpatório
e passivo-agressivo), Ana foi a culpada da situação e continua a sé-lo.
192expers, expertis: «livre de», «desprovido de» (+ genitivo; ver NGL, p. 307).
191A expressão more ferae tem feito correr rios de tinta (o comentário oitocendsta de James
Henry dedica doze páginas a este verso!). Mesmo que lhe atribuamos (com Austin iv, p. 164)
o sentido de «à maneira <inocente> de um animal silvestre» (em inglês, «innocently, like a
woodland creature»), a expressão não deixa de ser estranha. Talvez Vergílio queira sublinhar
que Dido já não diz coisa com coisa.
Vergílio, Eneida, Canto 4 403
394 O contraste com Dido (incapaz de dormir) não podia ser maior; e, mais uma vez, Vergílio
acerta em cheio no retrato psicológico. Eneias não está a dormir porque é um grunho insensível;
o sono cm que ele cai é o da exaustão após o conflito interior que levou á decisão, para resolver
de vez as coisas, de terminar com Dido e abandonar para sempre Cartago. Atendendo a que a
estadia em Cartago é o único momento da Eneida em que vislumbramos um Eneias feliz, está
descrita a magnitude do conflito interior cuja ressaca o deixa agora exausta
393 O conjuntivo justifica-se por se tratar de uma oração relativa de caracterização.
396 Cf. nota ao v. 409.
397 Indicativo futuro perfeita
404 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
398A frase é absurda no geral e mais absurda ainda no particular, já que (como notam todos os
comentadores) Dido é tudo menos inconstante no seu amor por Eneias. Talvez devamos
categorizar a frase segundo um dos motivos mais desconcertantes da Eneida, que consiste,
sempre que possível, em deixar os deuses ficar mal. Como observa Lyne a propósito deste verso,
na Eneida Mercúrio «is not an honourable or pleasant character» ( W ords a n d the Poet:
Characteristic Techniques o f Style in Vergil's Aeneid, Oxford, 1989, p. 49).
m Trata-se do adjetivo dexter no sentido de «propício»; concorda com sidera (acusativo do plural).
Vergílio, Eneida, Canto 4 40S
Oprima aqui no sentido do adjetivo homérico ήριγένεια («a que cedo desponta»).
401Estes versos a descrever o nascer do dia não são arbitrários: Vergílio imitou o início do Canto
5 da Odisséia, justamente o canto em que Odisseu abandona Calipso. Note-se, no entanto, que
Vergílio opta por um potpourri homérico ao introduzir «a que cedo desponta» a partir da
fórmula onde se fala dos «róseos dedos» da Aurora; e transfere, de outra fórmula homérica,
o «açafroado» do manto da Aurora para a cama que ela partilha com Titono.
402 Os cabelos loiros da fenícia Dido fazem-nos pensar novamente em Fedra (Hipólito 220).
402Pressupondo novamente hicc (ver nota ao v. 198).
404 Vergílio está aqui a imitar uma construção tipicamente grega: não + futuro = imperativo
positivo. Ou seja, «não buscarão?» = «buscai!». Austin (iv, p. 173) comenta que este discurso
de Dido «must surely rank with the most magnificent of any poet in any language».
406 Latim do Zero a Vergílio em 50 Liçõbs
4iS Conjuntivo jussitivo (de exorior, exoriri). A 2.a pessoa do singular cria um efeito chamativo
com aliquis... ultor (referência prolépdca a Aníbal, o general cartaginês que constituiria, no final
do século ui a.C., a grande ameaça à hegemonia romana no Ocidente).
4,6 O efeito da sílaba hipermétrica (pois o verso tem uma sílaba a mais) sugere a emoção
incontida de Dido.
417 É espantoso como, quase no fim da história de Dido, Vergílio introduz de repente uma
nova personagem, extraindo dela o máximo significado em dois versos que nos completam
o retrato de Dido, no momento em que nos despedimos dela. É-nos dado a ver o carinho pela
velha ama de Siqueu, que Dido não quis deixar no desamparo em Tiro; e também a perda da
própria ama, soando aqui um toque patético e, avant la lettre, quase operático («La mamma
morta»).
4,8 Começamos a fechar (dir-se-ia musicalmente) o círculo deste canto (e da vida de Dido):
cf. V. 9, Anna soror, agora, Annam... sorõrem.
419A frase também permitiria, em alternativa, juntar mihi a cãra: «minha querida ama».
Vergílio, Eneida, Canto 4 409
420Há manuscritos que nos dão a ler aqui celerãbat (lição preferida por Conte; na edição de Mynors,
lemos a lectio difficilior, que é celebrabat). Que, no latim mais antigo, celeber («célebre») também
podia significar «célere» é-nos provado por um fragmento do tragediógrafo romano Ácio.
421 trementis... genas é acusativo de relação.
422Mais um pequeno pormenor que completa a história de Dido: a espada de Eneias constituíra
uma oferta solicitada por Dido - não um presente espontaneamente oferecido por Eneias.
421Vergílio inspirou-se aqui no discurso de Alceste, antes de dar a vida pelo marido (Euripides,
Alceste 175-179).
410 Latim do Zero a VergIlio em 50 Lições
424A voz de Alceste dá lugar à de um nobre general romano a compor o seu próprio epitáfio.
Voltamos depois a Euripides com si litora tantum / nunquam Dardaniae tetigissent nostra carinae (c£
os versos iniciais da Medcia), mas também à Ariadne de Catulo (64.171-172), donde vêm as palavras
tetigissent e litora. E m vez das «popas» (puppis ) de Catulo, Vergilio dá-nos «quilhas» (carinae).
425 «Não vingadas», já que o ultor («vingador») será Aníbal.
424Para muitos leitores, as palavras sic, sic marcam o momento em que Dido se fere com a espada.
Vergílio, Eneida, Canto 4 411
427 Vergílio adapta à morte de Dido o que Homero dissera sobre a morte de Heitor (lUada
22.410-411).
424exanimis («fora de si», «em estado de choque») descreve aqui a situação contrária ä que
fora sugerida por unanimam no v. 8. As irmãs, que eram unha com carne, foram perdendo, ao
longo do Canto 4, a ligação umbilical.
429Novamente pressupondo hocc.
430Conjuntivo mais-que-perfeito sincopado (= uocàuissés).
431 Perfeito sincopado, 2.a pessoa do singular (= exstinxisti).
432Os «senadores» (patres) fazem lembrar 1.426.
412 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
tu m Iü n õ o m n ip o té n s 437 lo n g u m m ise râ ta d o lõ re m
Então Juno omnipotente, apiedada da dor prolongada
difficilisque obitus Irim dèmisit Olympõ
e de óbitos <tão> difíceis enviou íris do Olimpo,
695 quae lu ctan tem a n im am n e x õ sq u e re so lu e re t 438 a rtü s.
para que a alma em luta e os membros cerrados ela soltasse.
4J9 Dis, Ditis: «o Rico», ou seja, Plutão, rico em almas (do grego πλούτος, «rico»).
440 Por Juno.
III.
H orácio
Introdução à leitura do Livro 1
das O d e s de Horácio
novo, que tinha chegado de Roma: Bruto, o mais famoso dos assassinos
de César.
Ora Bruto viera para Atenas para fugir de Roma, mas também com
o intuito de assistir a aulas de filosofia (talvez lhe estivesse a fazer falta
enquadrar «filosoficamente» o evento chocante que protagonizara nos
idos de março). £ havia uma terceira razão: angariar, em Atenas, jovens
romanos para a sua causa. Pois Atenas era para Roma o que, mais tarde,
Oxford seria para Londres (ou Coimbra para Lisboa, pelo menos até
inícios do século xx), ou seja, uma cidade universitária (diríamos hoje),
onde os filhos de romanos ricos completavam os seus estudos. O próprio
facto de Horácio (que nunca esconderia a sua origem como filho de um
ex-escravo) se encontrar naquele meio diz-nos muito sobre a qualidade
superlativa da educação que recebeu; muito provavelmente o pai era um
homem de posses que tinha sido apanhado nas convulsões políticas
daquela época, em que, de repente, proprietários passavam ao estatuto
de sem-abrigo e homens livres eram vendidos como escravos - mas, com
reviravolta igualmente repentina, os expropriados recuperavam por vezes
algum patrimônio perdido, e alguns dos que tinham experimentado a
escravidão voltavam a ser homens livres.
Horácio deixou-se encantar pelos ideais antiautocráticos de Bruto e
combateu, em 42 a.C., na Batalha de Filipos, na seqüência da qual Bruto,
derrotado, se suicidou. De volta a Roma, o que esperou Horácio foi uma
desanimadora travessia do deserto, como ex-combatente daquela que
era, para o poder instituído, a fação errada. No entanto, a sua educação
esmerada e o talento que já começava a demonstrar levaram à amizade
com Vergílio e, por intermédio deste, foi apresentado a Mecenas (talvez
em 38 a.C.). Nas primeiras obras poéticas que nos chegaram de Horácio,
já o vemos sob o patrocínio de Mecenas: no primeiro poema das Sátiras
e no primeiro dos Epodos, o nome de Mecenas está logo escancarado.
£ não menos escancarado fica o facto de o antigo amigo de Bruto,
o antigo opositor da autocracia, ter virado a casaca: em toda a sua poesia,
Horácio mostra-se partidário do autocrata Octaviano (chamado Augusto
a partir de 27 a.C.).
I ntrodução λ leitura do Livro 1 das O drs de H orAcio 419
1. 14
1.1
uénãtor43tenerae coniugis44immemof45,
seu uisa est catulis cerua fidelibus46
seu rúpit teretes47Marsus aper48plagas.
Mé doctarum hederae praemia frontium49
30 dis miscent superis, mê gelidum nemus
Nymphãrumque leués cum Satyris chori50
sécernunt populõ, si neque tibiãssl
Euterpé52cohibet nec Polyhymnia53
Lesboum refugit tendere barbiton54.
35 quod si mê lyricis uãtibus 55 inserês56,
sublimi feriam sidera uertice57.
1.258
1.2
1.3 102
1.3
1.4 125
1.4
1.5 138
1.5
1.6 144
Scriberis145Vario146fortis et hostium
uictor Maeonii147carminis ãlite148,
quam rem cumque ferõx nãuibus aut equis
miles té duce gesserit149:
1.6
5 Pela nossa parte, Agripa, nem dizer estas coisas, nem o grave
aborrecimento do Pelida desconhecedor de ceder,
nem os itinerários pelo mar do dúplice Ulisses,
nem a cruel casa de Pélops
1.7 158
1.7
1.8 175
1.9 192
1.8
1.9
1.10210
1.10
1. 11223
1. 12230
1.11
Tu não indagues, pois não é permitido saber, que fim a mim, que fim a ti
os deuses terão dado, ó Leucónoe, nem babilónicos
cálculos experimentes. É melhor aguentar o que tiver de ser,
quer Júpiter conceda muitos invernos, quer seja este o último,
s que agora desgasta o mar tirreno nos rochedos opostos.
Compenetra-te, decanta os vinhos e poda com breve espaço <de tempo>
uma esperança longa. Enquanto falamos, terá fugido a invejosa
idade. Colhe o dia, confiada o menos possível no de amanhã.
1.12
Pai e p ro te to r da raça h u m an a,
50 nascido de Saturno, a ti foi d a d o p elo s fados
o cuidado d o grande C ésar; q u e tu reines,
estan d o C ésar em seg u n d o <lugar>.
1.I3260
1.14268
1.13
1.14
n ü p e r sollicitum q u ae m ih i taed iu m ,
n u n c d ésld eriu m c u raq u e n õ n leuis,
interfusa n iten tis
20 uités aeq u o ra C ycladas274.
1.15275
1.15
n õ n L ãertiadén , ex itiu m tu a e
genti, n õ n Pyliu m N e sto ra respicis?
u rg en t 282 im pau id i té S alam inius
Teucer, té S th en elu s sciéns
lanças e as p o n ta s d e flech a c re te n se
evitarás e o e stré p ito ; e < ev itarás> p e rs e g u ir o célere
Á jax; ai, e m b o ra ta rd io < n o c o m b a t o o s a d ú lte ro s
20 cabelos co m p ó d esfigurarás.
25 d a b a ta lh a - ou , se fo r p re c iso c o m a n d a r cavalos,
n ão <é> in d o le n te auriga. T a m b é m M e rio n e s
c o n h ecerás. E is q u e e stá lo u c o p a ra te e n c o n tra r
o atro z T id id a , m e lh o r q u e o pai,
d e q u e m tu - c o m o u m v e ad o <foge> d e u m lo b o
30 v isto n a o u tra p a rte d o vale, e sq u e c id o d a g ram a -
fugirás, efem in ad o , c o m re sp iração ofeg an te,
coisa q u e n ã o p ro m e te ste à tu a < a m a n te > !
1.16286
1.16
1.17295
1.17
n e m os lo b o s d e M arte,
ío e n q u a n to co m flauta doce, ó T ín d a ris,
eco aram os vales e os lisos ro c h e d o s
d a reclin an te U stica.
O s deu ses o lh a m p o r m im . A os d e u se s m in h a p ie d a d e
e < m in h a> M u sa é g rata. A q u i a a b u n d â n c ia d as h o n ra s
is d o c am p o fluirá p a ra ti em p len o , o p u le n ta ,
d e c o m o b e n ig n o ;
1.I8308
1.18
1.19319
M ãter saeua C u p id in u m
T h ébãnaequ e iu b e t m ê Sem elae p u e r
et lasciua L icentia
finitis anim u m red d ere am o rib u s320,
s ü rit m é G lycerae 321 n ito r
splendentis Pariõ m a rm o re pü riu s;
ü rit grata p ro te ru itä s
et uultus nim iu m lü b ricu s aspici,
in m é tõ ta ru èn s V enus
io C y p ru m deseru it, n ec p a titu r S cythãs
e t uersis anim o su m equis
P arth u m dicere n ec q u ae n ih il a ttin e n t322,
hic uiu u m m ih i caesp item 323, h ic
uerbênãs, pu eri, p õ n ite tü ra q u e
is bim i 324 cum patera 325 m eri:
m actãtã u e n ie t le n io r h o stia.
1.20326
1.19
A cruel M ãe dos C u p id o s
e o filho da tebana Sém ele
e a lasciva L icenciosidade obrigam -m e
a v o ltar o coração p ara am ores term inados.
5 Q ueim a-m e o fulgor de G licera
b rilh an d o de form a m ais p u ra do que o m árm ore de Paros.
O grato atrevim en to queim a,
assim com o o rosto dem asiado lustroso de se ver.
V énus, ru in d o inteira c o n tra m im ,
io deixou C hipre; e não p erm ite que <eu>
cante os C itas nem o P arto corajoso, voltados os cavalos,
n em as coisas qu e não <lhe> dizem respeito.
P o n d e aqui para m im u m tufo de relva fresca,
rapazes; < po n d e> aqui verbenas e incensos
is co m um a taça de v in h o de dois anos:
<Vénus> chegará m ais am ena, sacrificada a vitim a.
1.20
C aecubum e t p ré lõ d o m ita m C a lê n õ
ίο tü b ibês üu am : m ea n e c F alern ae
te m p e ra n t uités n e q u e F o rm ia n i
põcu la collés331.
1.21332
< £ m casa> b e b e rá s C é c u b o e u v a e sp re m id a
10 e m p re n s a d e C ales; n e m as v in h a s falern as
n e m o s m o n te s fo rm ia n o s te m p e ra m
as m in h a s taças.
1.21
C a n ta i D ia n a , ó d e lic a d a s v irg e n s!
R ap azes, c a n ta i o in to n s o C ín tio
e L a to n a p r o f u n d a m e n te a m a d a
p o r J ú p ite r su p re m o .
vós, m a c h o s, elevai c o m o m e s m o n ú m e r o d e lo u v o re s
io T e m p e e D e lo s < lu g a r> n a ta l d e A p o io
e o o m b r o ilu stre p e la aljava
e p e la lira fra te rn a .
1.22340
n am q u e m é siluã lu p u s in Sabinã,
10 d u m m eam c an to 345 L alagen346 e t u ltra
term in u m cüris u ag o r exp ed itis,
fugit inerm em ,
p õ n e sub c u rrú n im iu m p ro p in q u i
sõlis in terra d o m ib u s n eg ãtã:
d ulce rid e n te m L alagen am ãb õ ,
dulce lo q u e n te m 351.
Livro 1 das O des de H orAcio 465
1.22
1.23352
1·24358
1.23
1.24
1.25369
1.25
1.26379
1.27387
1.26
1.27
1.28394
1.28
1.29410
1.30415
1.29
1.30
1.31419
1.32426
131
caro ccomo ele é> aos próprios deuses, já que três e quatro vezes
por ano revê o mar Atlântico
is impunemente. A mim alimentam-me azeitonas,
a mim chicória e leves malvas.
132
I.33435
1.33
1.34443
1.34
1.354S0
1.35
1.36468
1.36
1.37482
1.37
1.38497
1.38
10 mêta... êuitàta (feminino do singular, nominativo; meta remete aqui para o sentido do
«poste» que marca uma das partes da corrida): o predicado será provavelmente éuehit, no v. 6
(também predicado de palma). Nisbet 8c Hubbard (Vol. 1, pp. 5-6) propõem que se deve suben
tender de novo iuuat (só que, desta feita, na construção pessoal) como predicado de mêta, pelo
que a tradução seria «existem aqueles a quem apraz com <seu> carro o pó olímpico ter colhido;
e a meta por ferventes rodas evitada <agrada>; e a palma nobilitante exalta os senhores das
terras até aos deuses».
11 palma... nõbilis: a palma da vitória é, por ineréncia, nobilitante. Sublinhe-se a relação etimo-
lógica entre nõbilis («conhecido», «notável», «nobre») e o verbo nõscõ, nõscere, nõui, nõtum
(«conhecer»).
12 O acusativo justifica-se porque se subentende iuuat (v. 4).
12 móbilium... Quiritium (genitivo do plural): os Quirítés são os cidadãos de Roma (Quirinus era
o nome de um deus romano, visto como Rómulo divinizado, cujo culto tinha lugar no Quirinal
[uma das colinas de Roma]). O adjetivo biforme mõbilis («móvel», «rápido», mas também
«volúvel»), aplicado a uma turba de cidadãos, faz pleno sentido literário, desde a multidão de
soldados cuja mobilidade o poeta da llíada (2.144) compara ás ondas do mar, à volubilidade
dos habitantes de Jerusalém no Novo Testamento, que, tendo recebido Jesus com ramos (espe
cificamente ramos de palmeira em João 12:13), clamam depois para que ele seja crucificada
14 Para o sentido final do infinitivo (um tique próprio da linguagem poética latina, pois na prosa
a ideia de fim é expressa com as variantes que estão elencadas em NGL, p. 328), ver Kühner &
Stegmann, Vol. 1, pp. 680-681.
15 O adjetivo tergeminus significa «tríplice»; honor, honõris significa «honra». A interpretação
mais aceite destas «honras tríplices» assenta na ideia de que Horádo se está a referir aos trés
grandes cargos políticos romanos: edil, pretor e cônsul Existe, no entanto, uma interpretação
mais antiga, segundo a qual o que está aqui em causa é a ideia de «tríplices aplausos» (ou seja,
reiterados aplausos; ver Nisbet 8c Hubbard, Vol I, p. 7).
16 Subentender de novo iuuat («apraz»).
17 horreum, -t: «celeiro» (palavra de etimologia desconhecida).
18 Neutro do pronome quisquis (ver NGL, p. 229), aqui com o sentido de «tudo aquilo que».
19 uerritur: do verbo uerrõ, uerrere, uerrí, uersum («varrer»), cujo supino é igual ao do verbo
uertõ, uertere, uerti, uersum («voltar», «virar», «lavrar»: note-se que a palavra portuguesa
«verso» vem de uersus, uersús, literalmente a linha desenhada pelo arado; depois, em sentido
metafórico, uma linha de palavras escritas).
20 O substantivo feminino area (l.a dedinação) significa «espaço aberto» (como «área» em
português), mas também «eira». Nas eiras da Líbia, o cereal seria espedalraente abundante.
21 Infinitivo defindõ,findere,fidi, fissum (à letra «cortar»; cf., em português, «fissura»). A ideia
de que instrumentos agrícolas «cortam» a terra já vem da poesia grega arcaica (Sólon). Também
a ideia de que uma nau «corta» o mar (v. 14) é tão antiga quanto a Odisséia (3.175). sarculum, -í:
«enxada», «sacho».
22 Os Atáüdas, dinastia grega de Pérgamo, eram vistos pelos Romanos como símbolo de riqueza
e ostentação.
22 trabe Cypriã (ablativo): trabs, trabis (ver NGL, p. 107, n. 29) significa «tábua»; aqui o sentido
metafórico é «nau». A ilha de Chipre era famosa pelas suas excelentes madeiras.
24 Myrtõum... mare (acusativo neutro; o substantivo mare é da 3.a dedinação: ver NGL,
pp. 116-117): o mar de Mirto (onde sopram ventos fortes) fica entre as Cidades e o Peloponesa
25 Icariisfluctibus (dativo; ver OLD s.u. luctor; a construção normal em prosa seria com cum +
ablativo): estas «ondas icárias» aludem à zona do mar Egeu onde ícaro caiu e se afogou
494 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Liçôbs
prefixo dê- (que lhe confere um sentido negativo: cf. debilis como contrário de habilis; ou, em
português, «deformar» como contrário de «formar») e testor, testári, testátus sum («invocar
como testemunha», «apelar»).
42 sub Ioue frigido: o nome Iuppiter tem uma declinação curiosa em latim (ver NGL, pp. 117-
-118), a qual deixa ver a proximidade edmológica com o teónimo grego «Zeus». A identifica
ção de Zeus/Júpiter, enquanto deus celeste e meteorológico, com o céu já está patente na expres
são de Homero «chuva de Zeus» (ílíada 5.91).
43 uénàtor, uênátõris («caçador»). A palavra deriva do verbo depoente uênor, uenári, uénãtus
sum («caçar»), da mesma raiz indo-europeia que vemos no verbo inglês win.
44 tenerae coniugis (genitivo, dependente de immemor, ver NGL, p. 307). O substantivo coniunx,
coniugis pode significar «marido» ou «mulher» (sendo mais frequente nesta segunda aceção).
Tem por base a palavra iugum («jugo»). O adjetivo tener implica delicadeza e fragilidade, mas
também juventude. Derivam dele dois adjetivos muito parecidos em português: «temo» e
«tenro» (aliás, tener em latim também se pode aplicar a uma came «tenra»).
43 immemor (genitivo immemoris): o sufixo in- confere um sentido negativo (memor significa
«recordado», «lembrado»). Cf., em português, «inconsciente» por oposição a «consciente».
44 catulis...fidêlibus (ablativo de agente; embora a regra geral seja que, no caso de seres animados
[incluindo, portanto, animais: cf. Kühner & Stegmann, Vol. I, p. 377], o agente da passiva seja
expresso por meio de a/ab + ablativo [cf. NGL, p. 310], na poesia pode-nos surgir o ablativo
sem preposição mesmo que se trate de um ser animado [cf. Kühner 8c Stegmann, VoL I, p. 388]).
O substantivo masculino da 2.a declinação catulis, -í significa, à letra, «cachorro» (pois é um
diminutivo de canis, «cão»), mas muitas vezes tem simplesmente o sentido de «cão». Aideia
de fidelidade associada a cães (dai o adjetivofidêlis) é tão antiga quanto a Odisséia homérica (ver
17.291-327).
47 teretês... plagas (acusativo do plural): «redes finas». O adjetivo teres, teretis significa, à letra,
«arredondado», «torneado»; aqui é usado numa aceção rara: «fino». Não confundir o subs
tantivo feminino da l.a declinaçãoplàga, -ae («rede») complàga, -ae («ferida»).
48 Marsus aper (nominativo): o adjetivo «marso» refere-se à região dos Marsi, que habitavam
a zona da Itália Central onde fica a cidade de Áquila. O substantivo masculino da 2.a declinação
aper, apri significa «javali» (e tem a mesma etimologia da palavra alemã para javali, Eber,
o vocábulo português «javali» é de origem árabe).
49 doctàrum... frontium (genitivo determinativo, a depender do plural neutro praemia, «prê
mios»): os poetas augustanos (e antes deles já os neotéricos) assumem a identidade de poetae
docti («poetas doutos»). Em doctus confluem várias correntes vindas do passado: a aceção de
sophós (coçóc, «sábio») aplicado ao poeta por Sólon na Grécia Arcaica; a aceção de sophós
como «genial» imaginada por Pindaro no século v a.G; e a preocupação dos scholar poets de
Alexandria, de mostrarem na sua poesia as suas muitas leituras (a referência máxima aqui é
Calímaco). O substantivo frõns, frontis significa «fronte», «testa» (também «rosto»).
A «hera» (planta sagrada de Dioniso/Baco) contrasta aqui de forma interessante com o louro
(planta sagrada de Apoio) no verso final do Livro 3 (cf. 3.30.16).
30 Nymphárumque leuês.~ chori: a ideia de «coro» (de acordo com a etimologia da palavra grega
khorós [χορός]) pressupõe a de dança; as «danças leves» das ninfas com sátiros evocam uma
imagem de agilidade, mas não devemos passar por cima da componente sexual. Os sátiros (seres
híbridos, misto de homens e de bodes) são, por natureza, lubricos e representam a pulsão sexual
desenfreada, ao passo que as ninfas, por eles assediadas e que tipicamente lhes fogem, introdu-
zem o tema do desejo sexual frustrado. Qual será a razão pela qual estas coreografias de sexo
evitado contribuem para a separação entre o poeta e o povo? Talvez porque, para escrever boa
496 Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
poesia, não basta apenas a frieza sagrada do gelidum nemus; o calor evocado por estas danças
(de que o sexo é motor) é também indispensável, do mesmo modo que a hera de Dioniso/Baco
é contrabalançada pelo louro de Apoia
51 tíbiàs (acusadvo do plural): o substantivo feminino da l.a dedinação tibia, -ae designa um
instrumento de sopro que pode ter tubo simples ou, como no presente caso (tratando-se do
plural), dupla
52 Euterpe (nominativo do singular; substantivo grego da l.a dedinação; ver NGL, p. 79): uma
das nove Musas («Abem deleitosa»).
53 Polyhymnia (nominativo): outro nome de musa («A de muitos cantos»).
54 Lesbõum_ barbiton (acusativo): o substantivo grego da 2.a dedinação (ver NGL, pp. 87-88)
barbitos, -i designa uma forma de lira; aqui é-lhe aplicado o adjetivo «lésbio», remetendo para
os dois grandes poetas de Lesbos, Alceu e Safo.
u lyricis uàtibus (ablativo): este sintagma ostenta uma combinação expressiva de grego (lyricis)
e de latim (uàtibus). O substantivo uãtês, uátis («profeta», «vidente») é retintamente latino,
ao passo que o adjetivo lyricus é grego. Este novo conceito de «vate lírico» (não havia «líricos»
latinos antes de Horido, como apontam Nisbet & Hubbard, Vol. 1, p. 15) arrasta consigo a ideia
de inspiração divina ou, mais propriamente, de talento «divino».
56 inseres: futuro do indicativo do verbo inserô, inserere, inserui, insertum («inserir», «introdu
zir», «juntar a»). Há manuscritos que nos dão aqui a ler o presente em vez do futura
57 sublimL. uertice (ablativo instrumental): o substantivo uertex, uerticis tem o sentido de «vór
tice», mas também designa o topo da cabeça.
M Metro: estrofe sáfica (NGL, p. 391).
59 satis: «o suficiente» (substantivo indeclinável, muitas vezes construído com genitivo parti
tive [NGL, p. 303], como no presente caso). Da raiz latina sat- temos em português «satisfazer»
e também «saciar».
60 Dativo do pluraL
61 dirae/grandinis (genitivo): o sentido próprio do adjetivo dirus é «ominoso». O substantivo
feminino grando, grandinis significa «granizo».
62 sacras- arcis (acusativo do plural): o substantivo feminino da 3.a dedinação arx, arcis signi
fica o ponto mais alto (ou politicamente mais importante) de uma cidade, a «cidadela» (espe-
dficamente, no caso de Roma, o Capitólio: ou, no de Atenas, a Acrópole); no entanto, aludindo
a Roma, a palavra no plural pode também assumir como referente as famosas sete colinas. Para
Nisbet & Hubbard (VoL I, p. 22), é na primeira aceção que Horácio emprega aqui a palavra.
43 gentis (acusativo do plural): o substantivo feminino da 3.a dedinação gens, gentis é de tema
em -i- e, por isso, os poetas preferem muitas vezes -is (em vez de -és) como desinéncia do acu
sativo do plural (ver NGL, p. 92).
64 ni rediret: a conjunção nè seguida de conjuntivo traduz-se facilmente em inglês por meio de
lest, mas é difidl encontrar um paraldo exato noutras línguas. A ideia aqui subjacente é análoga à
da construção a seguir a um verbo que exprime receio (NGL, p. 353). Quanto a rediret, é o imper
feito do conjuntivo de redeõ («regressar»), um composto de eõ («ir»; ver NGL, pp. 197-199).
63 saeculum (nominativo) Pyrrhae (genitivo): este conceito do «século de Pirra» (ou «idade
de Pirra») refere-se ao grande dilúvio (magnificamente descrito nas Metamorfoses de Ovídio
[1.260-415]), de que Deucalião e Pirra foram os únicos sobreviventes. O receio de que essa
idade regresse tem por base a convicção estoica de que o mundo está sujeito a um ritmo cíclico:
quando todos os astros voltarem à sua posição inicial, tudo começará de novo. A ideia de que
o reset de cada ciclo ocorre por meio de «deflagração» ou de «dilúvio» também é típica do
pensamento antigo.
N otas As O des 497
66 noua monstra (acusativo do plural neutro): o substantivo mõnstrum, -i tem como sentido
primário «prodígio», «portento» (cf. a sua ligação etimológica com o verbo moneô, monere,
monui, monitum, «advertir»); pode significar também «monstruosidade», «monstro». Estes
prodígios/portentos são «novos» no sentido de «inauditos».
67 questae (genitivo do singular): concorda com Pyrrhae. Trata-se do participio do verbo queror,
queri, questus sum («queixar-se», «exprimir descontentamento»).
69 omne... pecus (acusativo do singular neutro): o «rebanho» (pecus, pecoris) do deus marítimo
Proteu é constituído por focas (cf. Odisséia 4.411-413).
69 uisere: infinitivo presente de uisõ («ver», «visitar»; o verbo é formado a partir de uideô).
O exemplo deste verso é citado por Kühner & Stegmann (Vol I, p. 681; cf. também Woodcock,
p. 19) como ilustração do uso final do infinitivo em latim.
70 haesit: perfeito de haereõ, haerere, haesi, haesum («aderir», «agarrar-se a», «pegar-se a»).
71 superiectõ /... aequore (ablativo): o presente verso é a primeira citação no verbete do OLD
referente ao verbo da conjugação mista superiaciõ, superiacere, superiéci, superiectum («to throw
or scatter on top or over the surface»). O substantivo neutro da 3.* declinação aequor, aequoris
significa «superfície», «extensão»; também, por associação evidente, «superfície do mar» ou
até, no geral, «água».
72 pauidae /...dammae (nominativo do plural): já encontráramos o adjetivo pauidus («apavo
rado») em 1.1.14. O substantivo damma, -ae refere qualquer dpo de fêmea de veado, gazela
ou antílope.
73 litore Etruscõ (ablativo instrumental: cf. Nisbet & Hubbard, Vol. 1, p. 25). A «margem
etrusca» do Tibre é, para alguns comentadores, a sua margem ocidental; outros interpretam
o termo como referindo a costa de Itália a norte da foz do Tibre.
74 déiectum: supino com valor final (NGL, p. 363). Trata-se do verbo déiciõ, dêicere, déiêci, detec
tum (composto de iaciõ), «derrubar». Este é o único exemplo de um supino com valor final na
produção lírica de Horácio (ver Brink, Vol. Ill, p. 303).
75 Iliae... querenti (dativo): ília (Reia Sílvia) engravidou dos gêmeos Rómulo e Remo e, por ser
virgem vestal, foi atirada ao Tibre como castigo após o nascimento dos bebês (que foram ama
mentados por uma loba). Segundo uma das tradições, deu-se uma espécie de casamento místico
entre ília e o Tibre (daí que ele seja referido como uxõrius, «atencioso/carinhoso em relação à
esposa»; note-se que uxor, uxõris [«esposa»], por estranho que pareça, tem a mesma raiz de
ox [«boi»] em inglês ou Ochs em alemão; cf. OLD. Talvez a ideia original fosse a associação de
bois à compra de mulheres, tal como se diz na IUada [23.705] que certa mulher vale quatro bois;
ou, na Odisséia [ 1.431 ], que outra vale vinte bois). Querenti é o participio presente (em dativo)
do verbo queror, «queixar-se», «indignar-se» (cf. v. 6). ília está a queixar-se de quê? Uma
interpretação antiga sugere que é do assassínio de Júlio César que ela se queixa; mas, assim
sendo, não faz sentido o advérbio nimium («excessivamente»). O mais provável é que Horácio
a imagine ainda, tantos séculos depois, queixando-se da crueldade de ter sido atirada ao rio.
76 uagus (nominativo; concorda com uxõrius amnis): «errante» (cf. «vaguear», «vagabundo»,
etc.).
77 Ioue nõn probante: ablativo absoluto (NGL, pp. 312-313).
n amnis (nominativo): «rio» (substantivo masculino da 3.a declinação). A raiz indo-europeia
aponta para a ideia de água (sânscrito, àpah, «água»; ver OLD).
79 acuisse: infinitivo perfeito do verbo acuo, acuere, acui, acútum («afiar»; cf. «agudo», «agu
çado»).
w quõ: pronome relativo (NGL, p. 226) em ablativo (instrumental, NGL, p. 310), construído
com conjuntivo (perirent) por ser uma oração relativa de caracterização (NGL, p. 342).
498 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
91 grauês Persae (nominativo): os Persas (que, na verdade, já não eram os mesmos Persas que
tinham combatido os Gregos na época clássica, mas sim povos a que os Romanos chamavam
Parthi) são «graves» por serem «perigosos».
92 rara: a juventude (iuuentús, iuuentútis) é vista como tendo rareado, tomando-se «rara»,
devido à hecatombe causada pelo estado contínuo de guerra civil em que Roma esteve desde
o inicio do século i a.C. O adjetivo rárus (cognato de έρημος em grego; cf., em português,
«ermo») significa primariamente «frouxo», «poroso», «espaçado», «pouco freqüente».
93 uocet..fafígenh conjuntivos deliberativos (NGL, p. 269).
94 rebus: dativo do plural de ris, rã, «coisa», «assunto». Dativo de vantagem (NGL, pp. 296-298).
99 prece: ablativo do singular de prex, precis (a palavra é mais freqüente no plural e, curiosamente,
não existe nenhum exemplo literário do nominativo do singular), «prece». A raiz indo-europeia
é a mesma da palavra alemã Präge («pergunta»).
96 uirginés sanctae: as virgens vestais.
97 partis (acusativo do plural): no singular, pars, partis significa «parte»; no plural, pode ter
(como no presente caso) o sentido de «papel» (no sentido da «parte» desempenhada por um
ator numa peça de teatro; ou no sentido de «incumbência», «função»).
99 ueniãs: conjuntivo presente de ueniõ, uenire, uéni, uentum («vir»; a sua forma em latim não
dá visualmente a medida da sua relação etimológica com βαίνω em grego e com come em inglês
ou kommen em alemão; todos estes termos provêm de um antigo verbo indo-europeu, *gumiõ).
Pedir a um deus que «venha» já ocorre na poetisa arcaica Safo (fr. 1). Cf. «Vem SenhorJesus»
em Apocalipse 22:20.
99 nübe: ablativo singular do substantivo feminino da 3.* declinação nübis, núbis («nuvem»).
A ideia de um ser divino vestido de nuvem é tão antigo quanto a Jlíada (S. 186; no caso, Apoio).
C£ também o anjo vestido de nuvem em Apocalipse 10:1.
90 candentis umerõs: acusativo do plural; trata-se de um acusativo de relação (NGL, pp. 293-
-294). O substantivo umerus, -í significa «ombro» (cf., em grego, õpoc). O adjetivo candens,
candentis significa «brilhante», «candente». Note-se o oximoro implícito na ideia de os ombros
brilhantes do deus estarem vestidos de nuvem.
91 Erycina ridêns: a deusa «sorridente» é Vénus (tal como Afrodite em Homero é «amiga de
sorrir»), referida como «Ericina» (cf. «linda Ericina», Lusíadas 2.18). Montanha da Sicilia,
Érix era o local de um templo antigo de Afrodite/Vénus, talvez de fundação fenícia. Uma tradi
ção posterior relata que o templo ruiu na noite em que, lá longe da Sicilia, em Belém, nasceu
Jesus, tendo sido depois reconstruído por Tibério, que, como alegado descendente de Eneias
(tal como Júlio César e Augusto), se considerava familiar da deusa (ver Nisbet & Hubbard,
VoL I, p. 30).
92 Nisbet & Hubbard (Vol. I, pp. 31-32) comentam que o verbo respiciõ constitui o termo
próprio para o olhar de um deus sobre a humanidade, dando um exemplo tirado de Plauto
(Bacchides, 638): deus repiciet nõs aliquis. Poderíamos citar também a Vulgata: quis ut Dominus
Deus noster qui in excelsis habitans humilia respicit in caelò et in terrai (Salmo 112 [= 113 Bíblia
Hebraica]: 5-6).
93 A referência agora é ao deus Marte, pai de Rómulo e, assim, «antepassado» e progenitor
(auctor) dos Romanos.
94 lêuis significa «liso»; não confundir com liuis, «leve».
95 Ver 1.1.28.
96 ãles, alitis: «alado» (como substantivo, «ave»; cf. ãla, -ae, «asa»). O ãles...filius da «alma»
(isto é, «alimentadora») Maia é Mercúrio (deus da eloqüência, mas também do engano e da
mentira), visto como tendo encarnado no «jovem» que é Augusto.
Notas às O des 499
97 O uso de patiêns é curioso neste contexto quase teológico em que um salvador divino
encarna na terra sob forma humana e «aguenta», para salvação da humanidade, a condição
de homem. Nisbet & Hubbard (Vol. I, p. 36) citam não só o caso de Apoio, que «aguentou»
servir na terra (Euripides, Alceste, 1-2), como as famosas palavras da Carta aos Filipenses 2:6-8
a propósito de Jesus Cristo, «que existindo em forma de Deus [...] esvaziou-se a si mesmo
tomando a forma de um escravo, tendo nascido numa semelhança de seres humanos e [...]
rebaixou-se, tendo-se tomado obediente até à morte». Pense-se, neste contexto, na expressão
Christus patiêns.
98 A ideia de que as almas pertencem ao céu e para lá «regressam» depois da morte é uma
novidade filosófica da Grécia Clássica, que contradiz a cultura grega anterior (com a sua imagem
de um Hades subterrâneo - imagem de resto consentânea com a visão de Sheol, lugar dos mor
tos no Antigo Testamento).
99 O sentido próprio de iniquus é «desigual» (pois é formado a partir do prefixo negativo in +
aequus). Por extensão de sentido, pode significar «descontente», «mal impressionado» com
qualquer coisa (com complemento em dativo).
100 Outro etnónimo clássico para os mesmos Parthi já antes referidos como «Persas».
101 O poema acaba, em apoteose, com o nome da figura a quem é dedicado (Caesar=Augusto)
e com um aparente erro de latim, dado que o sujeito do ablativo absoluto te duce é o mesmo do
verbo sinás. Para mais exemplos desta curiosidade gramatical, ver Kühner & Stegmann, VoL I,
pp. 786-788.
102 Metro: dísticos.
1. glicónico (------ U U - U - )
2. asdcpiadeu menor (------ U U — U U - U - ) .
103 Vénus.
104 Castor e Pólux, os Dioscuros (e a constelação dos Gêmeos).
105 Conjuntivo presente de regõ, regere, rêxi, rectum («dirigir», «guiar»).
106 Ablativo absoluto. O verbo obstringo, obstringere, obstrinxi, obstrictum significa «atar»,
«prender», «constranger».
107 O lápyx é o vento de noroeste, portanto o vento certo e desejável para impelir uma nau de
Itália para a Grécia.
108 rõbur, rõboris (neutro): «carvalho».
109 aes, aeris (neutro): «bronze» (c£ NGL, p. 56, n. 13).
110 trux, trucis (adjetivo): «áspero», «impiedoso». Curiosamente não está etimologicamente
relacionado com «trucidar» (que é formado em latim [trucido, trucidáre] por caedõ precedido
de um prefixo de origem desconhecida), mas sim com «truculento».
111 As Híades (pequeno grupo de estrelas na constelação Touro) são «tristes» pela sua asso
ciação etimológica à palavra grega para «chuva» (Orróc); em Portugal também dizemos de um
dia de chuva: «Q ue tempo tão triste!» Outra teoria é que o nome se relaciona com sús
(«suíno»; cf. em inglês swine e em alemão Schwein, mas em grego óc).
112 Embora o sentido próprio de fretum, -i seja «canal», «estreito» (onde a água «ferve»; c£
a ligação etimológica com ferueõ e fermentum), na poesia o plural é muitas vezes usado como
sinônimo de «m ar».
113 Trata-se de uma cordilheira de montes no que é hoje a Albânia. O nome, de origem grega,
cujo desenho métrico ( - U U - U - ) lhe permite entrar sem dificuldade neste esquema rítmico,
sugere «altura» (άκρον) e «trovoadas» (κεραυνός, «trovão»). Talvez Horácio lhes aplique o
adjetivo «infames» (de má fama, de má memória) porque lá se perderam alguns navios de
Octaviano após a Batalha de Áccia
soo Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições
114 tránsiliô é formado a partir de saliõ, salire («saltar»; cf., em grego, ύλλομαι). A partir da
aceção de «irromper» (OLD s.u. 3) temos o nosso verbo «sair».
115 Embora o sentido próprio de uadum, -i implique uma água onde se tem pé (cf. os verbos
cognatos em inglês to wade ou em alemão waten, «passar a vau», «vadear»), na linguagem
poética pode significar «águas do mar».
116 Infinitivo de perpetior, perpeti, perpessus sum (composto de patior): «sofrer até ao fim»,
«aguentar».
117 Aqui genus, generis (neutro) é usado no sentido de «filho» (OLD s.u. 2). O filho dejápeto
era Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para o dar aos seres humanos.
118 A imagem evocada por este verbo (incumbõ, incumbere, «ficar sobre», «abater-se sobre» ) tor-
na-se mais expressiva pelo facto de o perfeito (incubui) ser igual ao de incubo, incubãre ( « incubar» ).
119 O adjetivo sémõtus significa «distante». No verso, sêmõti concorda com léti (létum significa
«morte»).
lJ0 Composto de rapiõ, o verbo corripio, corripere significa «agarrar», «arrebatar», mas também
«apressar».
121 Isto é, expertus est (perfeito de experior, experiri, «experimentar»).
122 O perfeito deperrumpô («despedaçar», «arrombar») ostenta aparentemente uma quan
tidade transgressora na última sílaba (cf. NGL, p. 381 [b]), como se explicitasse a transgressão
implícita no «hercúleo trabalho»; por outro lado, pode tratar-se somente de um arcaísmo, visto
que está documentada a desinéncia -eit (3.a pessoa do singular do perfeito) em inscrições arcai
cas (e há casos análogos em Plauto e Terêncio). No Livro 1 há outro exemplo em 1.13.6. Ver
Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 57 (e exemplos parecidos nas Sátiras: 1.4.82; 1.5.90; 2.1.82; 2.2.47).
122 O sentido próprio de arduus é «alto», «íngreme».
124 põnõ aqui no sentido de «pôr de parte».
125 Metro: dísticos, cujo desenho rítmico ocorre somente nesta ode.
1. tetrámetro dactílico + itifálico ( - U - U — )
2. X - U — + itifálico.
126 O sentido primário de ãcris é «afiado», «pontiagudo» (cf., em grego, átcpoc, «cimeiro»).
Aplicado ao inverno, sugere uma mistura de «cortante» e de «áspero».
127 uicis, uicis (feminino): «mudança», «recorrência», «alternância» (palavra cognata de
Wechsel [«mudança»] em alemão).
128 uér, uêris (neutro): «primavera» (cf. ρήρ em grego dórico; em ático, £ap).
129 O «Favónio» é o Zéfiro (vente de oeste).
130 carina, -at (feminino): «quilha» (por extensão de sentido, «navio»). O seu sentido origi
nal é «casca de noz» (cf. a palavra genérica, em grego, para qualquer tipo de noz ou castanha,
κάρυον; c£ também sânscrito karakah, «coco»).
111 cãnus (adjetivo, originalmente *càsnus) descreve o branqueamento dos cabelos causado pela
idade (em osco, casnar significa «ancião»), donde «cãs» para cabelos brancos em português;
também se aplica a outros objetos com o sentido de «branqueado».
122 pruina, -ac: «geada». Palavra cognata de freeze (inglês) efrieren (alemão).
122 A expressão Grátiae decentes é inerentemente tautológica, atendendo ao sentido de «gra
cioso» que aqui devemos adscrever a decéns (cf. OLD s.u. 2b).
124 O sentido do verbo uisõ aqui é «visitar». Há manuscritos que, em vez de uisit, nos dão a ler
úrit («queima»). Embora Nisbet & Hubbard (Vol. I , p. 66) digam de ürit que «it does not
deserve the slightest consideration», era esta a forma que estava presente no texto lido por
Camões, como se vê no v. 17 da ode «Fogem as neves frias», em que o poeta português imitou
o latino: «Enquanto as oficinas / dos Cidopas Vulcano está queimando.»
Notas As O des 501
135 A expressão fãbulaequc Mãttés é enigmática. A interpretação que lhe dou é que fàbulae se
encontra no genitivo do singular (ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, pp. 69-70; e A.S. Hollis, Frag
ments of Roman Poetry, Oxford, 2007, p. vii).
136 tális, -i (masculino): «dado». Imagina-se aqui a nomeação do «simposiarca» (isto é, «sobe
rano do banquete») tirada à sorte por meio do lançamento de dados.
137 Horácio atém-se ao estereótipo greco-latino de que a beleza masculina é mais atraente para
pessoas do mesmo sexo quando é imatura; e mais desejada por pessoas do sexo oposto depois
de atingida a maturidade. A ideia está explícita num poema de Fánias (Antologia Grega 12.13)
e implícita no Idílio 13 de Teócrito («Hilas»). Ver M.S. Celentano, «Licida: la passione degli
uomini, 1amore delle donne», Quademi Urbinati di Cultura Classica 18 (1984), pp. 127-135.
,M Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U —U - )
3. ferecrácio ( ------ U U — )
4. glicónico (------ U U - U - ) .
139 O verbo urgeõ, urgére, urgut significa «apertar» e é cognato de würgen («estrangular») em
alemão e de worry em inglês. Os amantes «are not merely talking», como eufemisticamente
comentam Nisbet & Hubbard (Vol. I, p. 74), mas estão embrenhados no próprio ato.
140 O antro (talvez uma cavema artificial, algures num jardim aristocrático) é «grato» porque
o que lá se está a passar (não obstante as conotações de urget) é bem-vindo aos dois interve
nientes.
141 O adjetivo encontra-se em ablativo, a concordar com té (o verbo fruor constrói-se com
ablativo). A Pirra é aplicado o adjetivo de Afrodite em Homero («dourada Afrodite»; por
exemplo Iliada 3.64).
142 uacuus significa «vazio», mas também «desocupado», «disponível», «descomprome
tido».
143 Para alguns especialistas, Horácio não escreveu aqui «deus» (deõ), mas sim «deusa» (deae,
isto é, Afrodite, deusa que nasceu do mar). Ver a discussão de Nisbet & Hubbard, VoL I,
pp. 79-80.
144 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U ----- U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U ----- U U - U - )
3. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
4. glicónico (------ U U - U - ).
145 «Serás escrito» no sentido de «serás celebrado». Cf. o Soneto 3 de Milton, «thou shalt be
writ». A ode insere-se num gênero típico da poesia augustana não-épica, a que a crítica moderna
dá o nome de recusãtiõ da epopeia (de que exemplos célebres são a Bucólica 6 de Vergilio [ver
neste livro pp. 275-277], várias elegias de Propércio e a Sátira 2.1 de Horácio. Ver RXXA.M.
Lyne, Horace: Behind the Public Poetry, Yale, 1995, pp. 31-39).
146 Poeta imensamente admirado pelos seus contemporâneos e amigo de Vergilio e de Horácio.
Juntamente com Tuca, preparou (a pedido de Augusto) a Eneida de Vergilio para publicação,
depois da morte do poeta. Ver A.S. Hollis, Fragments of Roman Poetry, Oxford, 2007, pp. 260-262.
147 O adjetivo Maeõnius refere-se a Homero (cf. 4.9.5-6 Maeõnius... / Homêrus). «Meónia»
designava a região onde fica a cidade de Esmirna, uma das várias que se arrogavam ter sido
o berço de Homero.
143 O substantivo ãles, àlitis significa «ave», aqui talvez, em concreto, o cisne. A forma àlite
concorda com Vario (ablativo de agente, sem preposição).
502 Latim do Zero λ V ergílio em 50 Lições
149 Futuro perfeito (e não o homógrafo conjuntivo perfeito: cf. Nisbet & Hubbard, Vol. I,
p. 85). Ver p. 205.
150 Marco Vipsânio Agrípa, o gênio militar que, graças às suas vitórias, consolidou o regime
augustano, e cujo nome vemos ainda hoje na fachada do Panteão em Roma.
151 stomachus, -f significa, tal como em grego (οτόμαχοο), «estômago»; mas em sentido meta
fórico significa «má disposição», «aborrecimento». O uso do termo por parte de Horácio
sugere alguma distância irônica em relação à «gravidade» da má disposição de Aquiles.
152 O tema da casa cruel dos Atridas tinha servido justamente de inspiração para uma tragédia
chamada Tiestes (perdida, mas elogiada por Quintiliano 10.1.98), escrita pelo próprio Vária
,S3 O adjetivo tenuis surge, na poesia augustana, carregado de segundos sentidos de cariz esté-
dco-literário, servindo como equivalente latino de λεπτός (οϋλεπταλέος), tal como este termo
foi usado por Calfmaco no sentido de «fino», «magro», «subtil» (por oposição a «gran
dioso»).
154 Embora haja quem interprete a forma como conjuntivo perfeito, também é possível enten-
dè-la como indicativo futuro perfeito. Ver p. 205.
155 A resposta a esta pergunta parece ser «Homero», pois a estrofe alude basicamente ao Canto
5 da Ilíaâa. Mas não estará Horácio a dizer que Vário seria capaz do mesmo - isto é, que não
ficaria atrás de Homero, tal como não ficou atrás dos trágicos gregos no campo da tragédia? Ver
a discussão em Nisbet & Hubbard.
116 Os comentadores discutem o sentido exato de «unhas cortadas». Estarão elas cortadas de
modo a ficar mais afiadas e, por isso, mais cortantes? Ou terá sido intenção de Horácio defla-
donar estas lutas de donzelas e mancebos por meio do pormenor de que elas não recorrem a
armas mais perigosas do que simples unhas - ainda para mais cortadas?
157 Os dois versos finais deste poema permitem diversas interpretações e são retintamente
intraduzfveis. Vacui remete para a ideia de descomprometimento amoroso, ao passo que ürimur
sugere a ideia contrária. Quanto a leués, retoma o sentido estético-literário de tenués (v. 9).
154 Metro: dísticos.
1. hexâmetro dactflico
2. tetrâmetro dactflico.
1S9 Tempi designa um vale na Tessália, famoso pela sua beleza, na zona onde fica o Olimpo.
Note-se que a sua forma em latim é um neutro do plural; também «Tebas» e «Delfos» são
plurais, tanto em latim como em grego (daí que o adjetivo insignis esteja no acusativo do plural).
Esta longa lista de topónimos constitui um priamel (estratégia retórica presente na Ode l.l).
140 A expressão não é inocente, sobretudo depois de termos ouvido únum no verso anterior.
Trata-se de uma alusão ao prólogo dos Aitia de Calímaco, em que o poeta alexandrino se defen
dia da crítica de não ter escrito «um poema contínuo», dando a entender que seria empresa de
pouco valor. O termo carmen perpetuum ganhará depois um sentido bem mais positivo na aber
tura das Metamorfoses de Ovídio.
141 A coroa imaginada é de folhas de oliveira, em homenagem à deusa padroeira de Atenas.
A imagem de ela ser colhida «de toda a parte» poderá referir-se ao uso abundante, mas sem
discernimento, dos poetas gregos.
142 Em grego, Argos (Άργοο) é um substantivo neutro (daí aptum). A ideia de que Argos é sítio
apto para cavalos (ou de que Micenas é rica) é um lugar-comum homérico.
143 «Paciente» no sentido em que a virtude mais admirada pelos Espartanos (Lacedemónios)
era a capacidade de aguentar tudo sem queixas: fome, sede, frio, dor, morte.
144 Albúnea é o nome da sibila associada a Tibur. A sua «casa» seria talvez uma gruta ou lapa,
local de culto e veneração.
Notas As O des 503
224 O verbo liquô (1.* conjugação) significa «liquidificar», mas também «decantar», «filtrar»,
«purificar».
229 Futuro perfeita
230 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
231 O nome grego da musa relaciona-se com o verbo κλείω («celebrar»), como quando
Hesfodo diz das musas que «cantam» (μέλπονται, cf. «melodia») e «celebram» (κλείουαν)
as leis dos imortais (Teogonia 66-67). A etimologia justifica também o «i» longo de Cliõ em
latim. A escolha de instrumento musical que Horácio oferece à musa é pura ornamentação, já
que este mundo poético se situa no plano das palavras - e não no das notas musicais.
232 Futuro de reánõ, rtántrt (composto de canõ, «cantar»): «ecoar», «ressoar».
233 Na aceção de «eco» (OLD s.u. 3b). A ideia de «ecoar» vem especialmente a propósito,
atendendo a que a primeira estrofe é ela própria um eco da abertura de Odes Olímpicas 2.1 -2 de
Pindaro: «Hinos soberanos da lira! / Que deus, que herói, que homem celebraremos?»
234 Trata-se do ablativo de õra, -at («região»), e não do quase homógrafo (a quantidade do
«i» é diferente) genitivo do singular de bs («boca»).
233 Advérbio: «às cegas», «ao acaso», «desordenadamente».
236 A mãe de Orfeu era Calíope, outra das nove Musas.
237 As palavras em acusativo uôcàlem... morantem... blandum concordam com Orphea (acusativo
grego; ver NGL, p. 121).
233 Sérvio, comentador de Vergílio, parece ter conhecido um texto em que aqui se lia doctum.
239 Terá Horácio escrito mesmo quercüs, uma vez que já antes referira siluae? Parece faltar a
menção da outra categoria de ente hipersensível ao canto de Orfeu: os animais. Nos aparatos
das edições de Shackleton Bailey e de Wickham-Garrod, lemos duas interessantes conjeturas
(de Wolff e de Campbell, respetivamente): beluae («bestas», forma escandida como dissflabo;
mas não será totalmente convincente, dada a ocorrência de bêluis [ainda para mais como trissí-
labo] no v. 23); e ceruae («corças»).
240 mundus, -í pode significar, além de «mundo», «céu». A ideia de um universo «bem tem
perado» é estoica, mas a noção de que as estações (hõrae) são de Júpiter/Zeus já é homérica
(Odisséia 24.344: «estações de Zeus», Aiòc ώραι).
241 uigeõ significa «vigorar», mas também «florescer». À frase subjaz o pressuposto de que
nenhuma coisa é «secundária» relativamente a Júpiter, porque não existe esse segundo lugar
(como num concurso em que não há segundo prêmio; há só prêmio único).
242 A uirgõ é Diana; «Líber» designa Baco (o adjetivo liber significa «livre»; não confundir
com líber, «livro»).
243 Hércules («Alcides») e os filhos de Leda, os gêmeos Castor e Pólux. No tocante a estes,
destacar que um era bom na equitação e outro no pugilato é uma convenção que já vem da Uíada
(3.237).
244 Ablativo do plural de pugnus, -í («punho», aqui em sentido pugilista) e não de pugna, -ae
(«combate»).
243 concidõ («cair»; não confundir com conctdõ, «cortar»).
246 Os manuscritos divergem entre quia, qui e quod (sendo quod a lição que oferece menos
dúvidas: ver Nisbet 8c Hubbard, Vol. 1, p. 154). Os Dioscuros fazem parte do elenco antigo de
seres divinos capazes, quando querem (uoluére), de acalmar ventos e tempestades marítimas,
desde Éolo na Odisséia 10.21-22 a Jesus nos Evangelhos (Mateus 8:23-27; Marcos 4:35-41;
Lucas 8:22-25), passando pela romana Vénus (Lucrécio 1.6-8) e pela egípcia ísis (a quem são
atribuídas as palavras «Eu acalmo e encrespo o mar», numa inscrição grega citada por Nisbet
8c Hubbard, Vol. I, p. 155).
Notas às O des 507
convencional na poesia erótica greco-latina, remetendo para o herói grego cuja ferida só pôde
ser curada pela mesma arma que a infligiu, à semelhança da ferida do amor que só o amor pode
curar).
242 A quantidade «errada» do «e» configura uma situação análoga à que encontrámos em
1.336. Muitos manuscritos, no entanto, dão-nos a ler manent (que seria a lição preferível, caso
se tratasse de prosa; mas, na linguagem poética latina, o singular é estilisticamente mais apro
priado neste contexto).
243 Ficaríamos na dúvida se esta humidade que desliza pelas faces seria lágrimas ou suor se
não tivéssemos os versos de Safo que Horácio está a imitar (Safo, fr. 31: «um subtil / fogo
de imediato se pós a correr debaixo da pele; / não vejo nada com os olhos, zunem-me / os
ouvidos; / o suor escorre-me do corpo e o tremor / me toma toda» [PGHT, pp. 82-85]).
Na sua imitação do mesmo poema de Safo, Catulo (carme 51) optou por deixar de fora a
sudorese.
264 arguõ arguere, argui, argütum significa «m ostrar», «revelar», «demonstrar»; liga-se
etimologicamente a άργής («brilhante»; cf., em sánscrito, arjuna, «branco»; a noção de
brancura brilhante está também presente nas palavras clássicas para «prata»: argentum e
ápyvpoc).
245 Note-se o oximoro aqui usado por Horácio: mácerõ (l.* conjugação) significa «molhar»,
«macerar», «demolhar» (e só por extensão de sentido «aborrecer»).
246 Embora haja quem interprete quinta parte como «quintessência», a noção (própria da época
medieval) é anacrônica. A expressão de Horácio aponta para a necessidade de diluir o «néctar
de Vénus» (ou seja, o amor): uma parte de amor para quatro partes de indiferença será a medida
certa.
247 Os versos finais do poema fazem soar uma nota séria, como se, de repente - e depois de um
quadro deprimente de amor tóxico, marcado por marcas de violência física - Horácio quisesse
lembrar-nos que existe também amor «a sério».
244 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. ferecrácio (------U U — )
4. gücónico (------U U - U -).
249 O mote desta ode parte de dois poemas de Alceu (que só nos chegaram em fragmentos) e
de uma passagem de Teógnis.
270 málus, -í: «mastro» (não confundir com màlum, «mal», «desgraça», que surge no v. 10).
271 antemnae (também antennae) designa as vergas ou «antenas» de um navio. A palavra é de
etimologia desconhedda.
272 funis,funis (masculino): «cabo», «corda», «amarra».
273 Entende-se a imagem esculpida ou cinzelada de divinidades na proa do navio.
274 Embora não seja dara a razão pela qual Horácio foca aqui as Cidades, é possível que esteja
em causa uma alusão a Teógnis 672, onde se refere a ilha de Meios, última das Cidades, a partir
da qual as naus estavam em mar aberto. O poema no seu todo tem sido lido como alegoria
política: a náuis é o Estado (alegoria já presente na poesia grega, desde logo em Ésquilo, Sete
contra Tebas 2; Sófodes, Rei Édipo 22-23). Dar concretude à alegoria - seja do ponto de vista
temporal (antes ou depois de Áccio?), seja na identificação de temas específicos (o porto será
Augusto? O mastro danificado, o Egito?) - tem-se revelado notoriamente difícil. A noção
de que o Estado é um barco continua implídta hoje nas palavras «governo» e «governante»
(cf.gubernator, «timoneiro»).
N otas As O des 509
coagido...»). De facto, a ideia de Prometeu ter sido «coagido» avulta estranha, já que, noutros
exemplos literários da sua intervenção na feitura do ser humano, ele age por si próprio quando
se trata de incluir, na textura humana, alguma singularidade original (como no caso da Fábula
4.16 de Fedro, que atribui a existência da homossexualidade no ser humano ao facto de Prome
teu ter criado o homem sob o efeito do vinho).
293 Sobre a estranheza de, neste verso, a segunda parte (o «dodrante»: - U U - U - ) não estar
separada da primeira por meio de fim de palavra (como sucede habitualmente nos hendecassí-
labos alcaicos de Horácio), ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 213.
294 Trata-se da primeira ocorrência conhecida de «recantar» no sentido de «retratar-se».
Horácio está a pensar no verbo grego παλινωιδέω, à letra «cantar de novo» (no sentido de
«retratar-se»). A mais famosa palinódia no mundo antigo era a que Estesícoro compôs depois
de ter escrito um poema demolidor sobre Helena.
295 Metro: estrofe alcaica (ver NGL, pp. 391,406).
296 Lucretilis: monte na região sabina, perto de Roma.
297 Lycaeus: monte na Arcádia (Grécia).
299 O «fedorento marido» é o bode; as «errantes esposas», cabras.
299 Nome feminino de origem grega, que evoca vagamente Helena (suposta filha de Tindáreo).
Talvez tenha servido a Horácio para estabelecer um fio condutor (a própria Helena) entre este
grupo de odes (15,16,17).
300 Não é possível identificar ao certo Vstica, além de que se terá situado na região sabina. Alguns
antigos desaeveram-na como monte; e outros, como vale. Ver Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 221.
301 A expressão copia... benigno... comü evoca a imagem da comucópia.
302 O adjetivo refere-se ao facto de o poeta Anacreonte ter sido originário da ilha de Teos.
303 Não é clara a razão pela qual Circe é descrita como «vítrea». As duas interpretações possí
veis são que ela é «vítrea» no sentido de «translúcida» (ou seja, não é «transparente», tal
como o vidro do tempo de Horácio não era transparente); ou então o adjetivo poderá referir-se
ao mar (talvez porque a mãe de Circe era uma Oceânide, como se lê na Odisséia 10.139).
304 Baco é referido como Semeleius por ser filho da princesa tebana Sémele; quanto a Thyõneus,
trata-se de um nome grego (embora não ocorra na literatura grega). O seu sentido não é claro,
pois dá a entender que a mãe de Baco seria Thyõnè, uma das Híades.
305 O adjetivo protentus («violento») está etimologicamente ligado a πτέρυξ («asa»), o que
sugere a ideia de uma violência rápida, precipitada.
306 dispari é dativo e feminino (o referente subentendido é Tíndaris).
307 iniaô, inicere (composto de iaciô, «arremessar»): «lançar», «atirar». Na grafia de outros
tempos, iniciat escrevia-se injiciat
309 Metro: asdepiadeus maiores (como 1.11). A escolha do metro tem causalidade dupla: por
um lado, o poema de Horácio começa com uma alusão ao fir. 342 de Alceu («não plantes outra
árvore de preferência à vinha» [μηδ’έν Αλλο çuxeúcqic πρότερον δένδριον άμπέλω]), que per
tence a um poema em asdepiadeus maiores; por outro lado, aceitando a identificação de «Varo»
com Públio Alfeno Varo, amigo de Catulo, temos a coincidência inescapável de também Catulo
ter dedicado um poema (enigmaticamente cheio de queixumes) a Varo em asdepiadeus maio
res (cf. Catulo 30, onde ocorre também, no v. 11, a palavra Fidês). Ao mesmo Varo é dedicada
a deslumbrante Bucólica 6 de Vergílio. Ver pp. 276-277.
309 Conjuntivo perfeito de serõ, serere, séui, satum, «plantar».
310 Cátilo era tido como fundador de Tíbur.
311 Por que razão terá Horácio usado aqui o verbo crepõ, cujas conotações são todas desagra
dáveis (a aceção Id no OLD é nada menos que «peidar-se»)? Talvez o sentido, no presente
N o ta s ks O d es 511
contexto, seja próximo da expressão portuguesa «estar sempre a bater na mesma tecla»
(cf. OLD s.tL 4).
3.2 Na mitologia grega, os Centauros embebedaram-se no casamento de Hipodamia com Pirí-
too (soberano dos Lápitas), com conseqüências funestas (cf. Odisséia 21.295-296).
3.3 Évio (tal como Liber e Bassareu) é Baco. Não se sabe ao certo qual será a alusão mítica
implícita na menção dos Sitónios (povo do norte da Grécia).
314 obsita são «coisas cobertas» (cf. OLD s.u., que explicita o elo comobserõ [composto de serõ],
«plantar»; cf. a primeira forma verbal do poema séucris).
315 «Berecíntio» eqüivale a «frígio» (referindo-se, portanto, à Asia Menor).
316 Gloria no sentido de «vanglória».
317 Não é claro o sentido aqui de pródiga ( «pródiga» ?, «desperdiçada» ?; ver OLD sju. lb, onde
este verso é citado). Talvez se trate de um oximoro. De qualquer forma, contrariamente a Ana
creonte (que descreve o séquito de Dioniso como constituído por Bros, por ninfas e pela própria
Afrodite [fr. 357; PGHT, pp. 116-117]), Horácio prefere imaginar o séquito de Baco como
formado por personificações dos efeitos da bebedeira, que são, por sua vez, uma exposição
impiedosa e transparente (perlucidior) dos defeitos do bébedo: narcisismo; convencimento
absurdo; incontinéncia verbal.
318 As palavras corttü (v. 14) e uitrâ proporcionam um nexo verbal com o poema anterior, bem
à maneira de Horácio.
3,9 Metro: dísticos.
1. glicónico (------- U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - ) .
320 O tema do ataque renovado do amor é um lugar-comum da poesia grega arcaica: ver Safo,
fr. 130; Anacreonte, fir. 358,413 (fragmentos presentes em PGHT),
321 Glícera («doce»; cf. Dulce) seria, para ouvidos romanos, um nome típico de prostituta:
uma Glícera trabalhava num dos bordéis de Pompeios (cf. Nisbet 8c Hubbard, VoL 1, p. 240).
322 Afinal um poema que começou com as marcas de um erôtikón (έρωτικόν) mostra-se como
sendo, na verdade, uma recusãtiõ da poesia épica. «T he poem is in fact much too detached to
be a love poem; it is not about a girl, but about literature and Horace» (Nisbet & Hubbard,
Vol. I, p. 238).
323 caespes, caespitis (masculino): «tufo» ou «torrão».
324 Em bimus («de dois anos») está implícita a ideia de bis hiems («dois invernos»).
325 patera, -ac: a palavra designa uma taça ou recipiente achatado, para uso nas libações.
326 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
327 léui: perfeito de linõ, «untar», «selar». A rolha era untada com pez, para evitar que o vinho
ficasse exposto ao ar.
328 A ovação a Mecenas no teatro terá ocorrido na seqüência de um período de doença (ver
Nisbet 8c Hubbard, Vol. I, p. 248).
329 Embora dáre não tenha aqui um apoio manuscrito comparável ao de cãre, avulta como
expressivo na ligação com eques pelo facto de clãrus, em rigor, ser um epíteto próprio de sena
dores, estatuto que Mecenas não procurou (preferindo manter-se eques), mas que Horácio lhe
confere poeticamente com clãre (dir-se-ia honoris causâ).
330 O Tibre é referido como «paterno» relativamente a Mecenas porque o rio, tal como o
ilustre amigo de Horácio, é originário da Etrúria (hoje Toscánia).
331 Horácio enumera os quatro vinhos mais ilustres bebidos em Roma (Cécubo, Caleno, Falemo,
Formiano) para dizer que não os tem para oferecer a Mecenas. Os vinhos são provavelmente
simbólicos de outra realidade (talvez de índole estético-literária, mesmo que a esta interpretação
512 Latim do Z ero a Vergílio em 50 Lições
falte a bênção de Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 248): não está a ser dito que o poeta não tem
recursos para comprar bons vinhos, já que, na Ode 4.11, Horácio promete, a uma (presumível)
prostituta chamada Fílis, um Albano (um dos melhores vinhos de Itália), significativamente
para celebrar o aniversário de Mecenas.
332 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. ferecrádo (------ U U — )
4. glicónico (-------U U - U - ) .
333 O adjetivo Cynthius («Cíntio») relaciona-se com o monte Cinto na ilha de Delos, onde,
segundo a tradição mitológica, Apoio e Ártemis/Diana nasceram. O facto de Apoio ser descrito
como «intonso» remete para o seu aspeto jovem (lembremos as estátuas gregas de κούροι
[kouroi], com os seus cabelos compridos).
334 Monte perto de Tusculo.
333 O Erimanto ficava na Arcádia (no Peloponeso central); o Grago, na Lícia (atual Turquia).
Tipicamente, Horádo combina um orónimo latino (Algido) com dois gregos, imbuindo assim
o monte itálico da mística própria das montanhas gregas.
336 Ver nota a 1.73.
337 más, maris: «macho».
333 A lira de Apoio é «fraterna» pelo facto de ter sido inventada pelo seu irmão, Mercúrio
(Hermes, na tradição grega). Ver Ode 1.10.
339 O pronome hic («este» ) refere-se a Apoio. A mundividéncia patente nesta estrofe - de que
a sodedade romana é formada por César e povo, sem aristocracia nem instituições republicanas
(e.g. Senado) no meio - é «frankly shocking», como notam Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 254.
340 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
341 O adjetivo integer (formado a partir de tango, «tocar») tem como sentido primário «into
cável». No uso que dele faz Horádo no presente verso sobrelevam aceções como «irrepreen
sível», «virtuoso».
342 Aristio Fusco, gramático e amigo de Horádo, mencionado noutros poemas (Sátiras 1.9,
Epístolas 1.10).
343 A designação «Sirtes» alude a dois golfos no norte de Africa, um deles na zona da Líbia;
outro, na da Tunísia. Horádo não está a referir apenas os perigos marítimos, mas também os
terrestres (o território era conhecido pelos seus muitos animais selvagens); paralelamente,
poderá estar a lembrar também uma viagem árdua empreendida por Catão de Útica à frente de
10 000 homens em 47 a.C., tema que, no século i d.C., interessou também a Lucano, no Livro
9 da sua epopeia.
344 Hydaspês é um rio indiano, perto do qual Alexandre Magno obteve uma grande vitória em
326 a.C. O adjetivofãbulõsus ocorre pela primeira vez em Horácio; pode, até, ter sido um neo-
logismo de sua invenção.
345 Em rigor, as formas verbais cantô e uagor são presentes do indicativo, mais maleáveis metri-
camente do que formas de imperfeito ou de perfeito, o que resulta na mistura de tempos que
aqui vemos na estrofe (fügit é perfeito). Sobre este fenômeno na poesia latina, ver Kühner &
Stegmann, VoL I, pp. 116-117.
346 Este antropónimo feminino de sabor grego é formado a partir do verbo grego lalagéõ
(λαλαγέω), «tagarelar».
347 Horácio heleniza, pela morfologia, o topónimo que significa «Dáunia» (nome para a
Apúlia).
N otas As O des 513
342 Certamente o mesmo Quintilio elogiado por Horácio como crítico eximio na Arte Poética
(338-444).
345 Como habitualmente em poesia, o verbo está conjugado no singular, não obstante os seus
vários sujeitos.
364 Chama a atenção créditum, vocábulo usado a propósito de Vergilio em 1.3.5, nesta frase
dirigida a... Vergílio. Terá Quintilio morrido num naufrágio?
345 Equivalente a moderéris (2.* pessoa do singular do conjuntivo presente de moderor). Para
a aceção em que Horácio usa aqui o verbo («manejar»), ver OLD s.u. lb (onde este verso
é citado).
346 A ordem das palavras nas duas estrofes finais é muito intrincada: quam corresponde, na
tradução portuguesa, à forma «a» em «a compelisse».
347 A imagem aqui apresentada de Mercúrio é bem mais tétrica relativamente ao que léramos
na Ode 1.10; lembra, de certa forma, o próprio Hades em Pindaro (Olímpicas 9.33-35: PGHT,
pp. 230-231).
344 patientia na aceção de «capacidade de aguentar».
349 Metro: estrofe sáfica (ver NGL, p. 391).
370 «Janelas» decerto no sentido de «portadas de madeira».
371 O adjetivo creber (que vem de créscô) significa primariamente «cerrado», «denso», mas
descreve igualmente aquilo que se repete de forma frequente ou incessante.
372 Dizer que a porta «ama a soleira» implica a ideia de que, agora, ela abre muito menos do
que antes (uma forma de dizer que Lídia é cada vez menos solicitada). A imagem dos jovens
a atirar pedras às janelas fechadas remete para o gênero poético grego conhecido como para-
klausíthuron, um poema «cantado» pelo amante excluído (lacrimãns exclusus amàtor é a bela
expressão de Lucrécio 4.1177) junto da porta fechada, em que o amante interpela também
a porta. Um bom exemplo em latim é Propércio 1.16 (onde a porta também tem direito a
falar!). No entanto, Horácio mistura aqui o tópico da porta fechada com o tópico helenístico
do castigo que acontecerá inexoravelmente à mulher (ou, em contexto homossexual, ao
jovem: ver Teócrito 7.120-124; PGHT, pp. 318-319) que recusa o assédio do poeta: a velhice.
373 Também se poderia interpretar facilis como nominativo («porta fácil»); mas ver a argu
mentação de Nisbet & Hubbard, VoL I, p. 294 a favor da interpretação como facilis (acusativo
do plural, a concordar com cardinés).
374 anus, -ús (feminino): «velhota». Não confundir com ânus, -í ( «ânus» ). A imagem de Lídia
como prostituta velha - desdenhada por potenciais clientes, sozinha de noite num beco ventoso
e sem luar, destituída (à letra, «leve», leuis: isto é, sem peso de importância e sem meios de
subsistência) - é confrangedora.
373 Para a noção tipicamente grega de que a ventania vem da Trácia, ver Itíada 9.5. A ideia do
vento como bacante furiosa será depois ecoada por Ovidio (Tristia 1.2.29).
374 Estas «mães de cavalos» são simplesmente éguas.
377 O adjetivo pullus está relacionado não só com palleõ («empalidecer») como com iróXióc
(«cinzento»). A frase permite também a interpretação de que a rapaziada laeta de testosterona
se compraz com «hera viçosa» e com «mirto cinzento» (segundo esta interpretação, o signi
ficado conceptual da estrofe seria que os homens gostam de raparigas e de mulheres maduras,
mas as velhas são para atirar ao rio).
379 O Hebro é um rio na Trácia e pode estar aqui como projeção fantasiosa da própria ideia de
um rio invemal Há, no entanto, editores que defendem aqui Eurõ (embora sem sustentação
manuscrita), o que implica outra ideia: em vez de as ramagens secas serem atiradas ao rio gelado,
seriam atiradas ao vento de leste.
N otas As O des SIS
398 É curioso ler aqui que Titono, amante mortal da Aurora, morreu, já que a mitologia grega
diz dele que recebeu dos deuses a imortalidade (ainda que não a juventude eterna, razão pela
qual acabou por ser repudiado pela amante divina).
399 Com o nome «filho de Pântoo» (Pantoidés) Horácio está (talvez ironicamente) a referir
Pitágoras, que dizia ter sido, numa encarnação anterior, o troiano £uforbo, filho de Pântoo, cuja
morte Homero descreve no Canto 17 da Ilíada. Perante vários escudos supostamente troianos
pendurados na parede do templo de Hera emArgos, Pitágoras foi capaz de identificar aquele que
fora «seu»; tirado o escudo da parede, «comprovou-se» a veracidade da afirmação de Pitágoras,
pois viu-se que o escudo tinha gravado, no verso, o nome de Euforbo (sem que ninguém questio
nasseo problema de, no tempo da Guerra de Tróia, o alfabetogrego não ter sido ainda inventada..).
400 Na crença antiga, Prosérpina (na Grécia, Perséfone) cortava uma madeixa de cabelo a cada
morto, tomando assima sua morte irreversível. Ver p. 413.
401 Embora os manuscritos mais antigos nos deem a ler rapidus, é possível que Horácio tenha
escrito rabidus (ver Nisbet & Hubbard, Vol. 1, p. 331).
402 O sentido primário de malignus é «m esquinho» (cf. OLD s.u. l); Horácio usa também,
noutros textos (e.g. Odes 2.16.39), a palavra no seu sentido secundário de «m aldoso».
403 O sintagma càplti mhümãtõ suscita muitas dúvidas devido ao hiato, para o qual não existe
um paralelo verdadeiramente convincente em Horácio. Por isso, na edição da Teubner, Shackle-
ton Bailey coloca o adjetivo entre cruzes.
404 Venúsia era, obviamente, a cidade onde Horácio nasceu.
405 Trata-se aqui de plectõ, plectere no sentido de «bater» (ou, na voz passiva, de «apanhar»
pancada); e não plectõ no sentido do verbo grego πλέκω («entrançar»).
406 Interpretando té como ablativo.
407 O sentido de debita iüra é difícil de descortinar, como comentam Nisbet & Hubbard,
VoL I, p. 335.
404 O substantivo uicis, uicis está aqui a ser usado na aceção de «retribuição» (cf. OLD s.u. 5, onde
este verso é citado), e não como o encontrámos na Ode 1.4.1.
409 Para currere ligado à ideia da viagem marítima, cf. Sátiras 1.1.30.
410 Metro: estrofe alcaica (NGL, pp. 391,406).
411 Amigo de Horácio, também referido em Epístolas 1.12. Os dois poemas mostram-no perante
o dilema de escolher entre uma vida dedicada aos livros e uma vida dedicada ao dinheiro (sem
o qual, como se sabe, a vida dos livros carece de sustentação). A expedição militar a que Horácio
se refere nesta ode teve lugar em 26-25 a.C. e, apesar da propaganda romana sobre o seu êxito
(Estrabão fala numa batalha onde morreram 10 000 árabes e só dois romanos!), foi um desastre
em que a maior parte do exército romano pereceu (ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 338, para
um elenco das fontes antigas).
412 gaza, -ae (feminino): «tesouro» (palavra de origem persa, expressivamente usada em
Eneida 1.119).
413 cyathus, -t (em grego, icúaOoc) designa, em rigor, uma espécie de «concha» usada para tirar
vinho de um recipiente maior para uma taça (a palavra é usada por Anacreonte no fir. 356 [PGHT,
pp. 114-115]). A projeção fantasiosa que Horácio pinta deste rapaz árabe, educado pelo pai para
a vida militar mas agora reduzido a escravo e sujeito a ser abusado sexualmente (a conotação
sexual é óbvia nos cabelos «ganimedeus», como diria Marcial 9.16.6), constitui uma vinheta
quase tão triste como a da donzela árabe (agora escrava) a quem os Romanos mataram o noivo.
414 O filósofo estoico Panécio veio para Roma em meados do século li a.G, onde gravitou â
volta de Cipião Emiliano. A expressão «casa socrática» remete para «escola socrática» (sem
que vislumbremos o que Horácio entende por tal termo).
Notas As O des 517
433 Esta «tartaruga» é, na realidade, a carapaça da tartaruga, a partir da qual Mercúrio inventou
alira.
434 A forma cumque (transmitida pelos manuscritos) levanta muitas dúvidas quanto à sua inter
pretação e têm sido várias as conjeturas propostas por diferentes estudiosos (ver a longa discussão
em Nisbet & Hubbard, Vol. 1, pp. 365-367). Sigo a interpretação dada à lição dos manuscritos
por Fraenkel (p. 170), «in whatever manner, provided it is done rite». Para «sé por mim sau
dada» (millL· salue) como equivalente a χαΐρέ μοι na poesia grega, ver Fraenkel, p. 169.
435 Metro: estrofe.
1. asdepiadeu menor (-----U U — U U -U -)
2. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
3. asdepiadeu menor (------ U U — U U - U - )
4. gbcónico (-----U U - U -).
436 Certamente o requintado poeta elegiaco AlbioTibulo, também destinatário da Epístola 1.4
(onde ocorre a famosa frase Epicúri dê grege porcum). O tema da ode - só gosto de ti se não
gostares de mim- é sintetizado por Ovidio no verso quod sequiturJugiõ; quodfiigit, ipse sequor,
«fujo do que me segue; sigo o que me foge» (Amores 2.19.36).
437 A expressão immitis Glycerae configura um oximoro, já que esta «D oce» (ver nota a 1.19.5)
é bem amarga.
438 Licóris foi um nome tomado célebre, para os contemporâneos de Horácio, por Comélio
Galo; embora a obra poética de Galo se tenha perdido (à exceção de brevíssimos fragmentos:
ver A.S. Hollis, Fragments of Roman Poetry, Oxford, 2007, pp. 219-252), sabemos da importân
cia que nda desempenhou Licóris graças à Bucólica 10 de Vergílio.
4)9 Existe uma Fóloe na poesia de Tibulo, concretamente na elegia 1.8.0 nome ocorre de novo
na Ode 2.5 de Horácio.
440 adulter, -ι (masculino) significa não só «adúltero» como «amante» (ver OLD s.u.).
441 compés, -edis: «grilhão» (usado por escravos).
443 Mírtale é um nome real, epigraficamente documentado. O paradoxo de Horácio se apresen
tar como acorrentado por uma ex-escrava salta à vista.
443 Metro: estrofe alcaica (ver NGL, pp. 391,406).
444 Aqui parcus no sentido de «avarento» (stingy, OLD s.u. lb). Um cultor «parco» dos deuses
é alguém que não quer gastar dinheiro (oferecer sacrifícios, etc.) com religião.
443 A expressividade dos oximoros vinca a retratação do passado epicurista e a reconversão da voz
falante neste poema a uma mundividência remistificada. Que esta ode representa (teatraliza,
quase) um afastamento da desmistificação lucredana da crença religiosa parece claro a partir da
refutação explícita de Lucrédo com o exemplo do trovão. Com efeito, em Dê rêrum nâtürâ (6.400),
Lucrécio afirmara que não há trovões com céu limpo. Horácio volta à ideia homérica (Odisséia
20.113-114) de que trovões com céu limpo existem, sim - embora não vá tão longe quanto
Homero (no passo citado) a ponto de dizer que, por meio deles, Zeus/Júpiter fala à raça humana.
446 Em Ténaro, na Lacónia (Peloponeso), existia uma gruta que seria uma das supostas entradas
para o mundo dos mortos. Note-se que este verso (1.34.10) é o único exemplo de um hende-
cassílabo alcaico em Horácio em que se dá a elisão de uma vogal longa no lugar da cesura (quõ
Styx et inuisi horrida Taenari).
447 Não é claro se, por «limite Atlântico», Horácio se está a referir ao Atlas ou ao rochedo a que
hoje chamamos Gibraltar.
448 prõmêns (de prõmô, no sentido de «dar a ver», «exibir», OLD s.u. 2). Horácio diz de Júpiter
o que Maria diz de Deus no Magnificat (Lucas 1:52): déposuit potentes dê sêde et exaltãuit humiles.
449 apex, apicis: «ápice»; aqui no sentido de «coroa».
N otas As O des 519
467 A ideia de que Augusto deve ocupar-se com a chacina e a subjugação de povos estrangeiros e
acabar de vez com o fratricidio entre romanos foi o tema da Ode 1.2, tema que volta agora num
efeito de ring composition quase a fechar o Livro 1. Um pequeno toque calimaquiano surge na men
ção de «Masságetas», que são mencionados no v. 15 do prólogo dos Aitia (ver PGHT, pp. 284-285).
468 Metro: dísticos.
1. glicónico ( ------- U U - U - )
2. asdepiadeu menor ( -------U U — U U - U - ) .
469 Não se sabe quem possa ter sido este Númida.
470 A «Hespéria últim a» é a Hispãnia.
471 C£ 1.26.8.
472 Esta expressão nõn aliõ rege («quando outro rei não havia») tem levantado dúvidas; há
quem interprete «rei» como referindo o professor que ensinou a ambos (Númida e Lâmia) as
primeiras letras; e há a interpretação de que Lâmia foi o «rei» da infância de Númida porque
era o seu melhor amigo e herói (o crush, como diríamos hoje).
473 A toga viril era normalmente assumida aos 15/16 anos.
474 O termo «nota ere tense» remete para o costume antigo de marcar com giz branco os dias
propídos. Porque «giz» em latim é crèta, decerto alguns romanos pensaram que vinha da ilha
de Crèta (na realidade, a etimologia de crèta, «giz», terá mais a ver com cemõ, «discernir»).
475 Participio perfeito de prõmõ, prõmere, prõmpsi, prõmptum, «tirar» (verbo que já encontrá
mos, noutra aceção, em 134.14).
476 O nome «Sálios» designa sacerdotes de Marte, cuja dança singular é referida por T ito Lívio
(130.4).
477 A personagem feminina deste poema não só tem o nom e infeliz de «N ovilha» (em grego,
SápoXic, cujo sentido literal é «subjugada») como lhe são atribuídas as características de beber
de mais e de ser demasiado pegajosa. A luz sob a qual Horácio nos dá a ver Núm ida na relação
com os seus amigos homens (os muitos beijos dados, a recordação de Lâmia com o « re i» da
sua meninice) não poderia ser mais contrastante relativamente à que nos ilumina Núm ida como
amante de Dâmalis «de muito vinho», mulher em quem todos cravam os olhos «lânguidos»
(mas se calhar «podres» na intenção do olhar: ver nota ao v. 17, relativa a putris) e mais pega
josa/ambiciosa do que heras «lascivas».
479 Horácio está talvez a pensar em Anacreonte (fr. 356: PGHT, pp. 114-115), onde surge a
palavra Apucriv com o sentido de «beber de um trago».
479 Embora o adjetivo putris (também puter) signifique « p ú trid o » (cf. a sua ligação com pus),
a aceção curiosa em que Horácio aqui o emprega sugere a ideia de «lânguido» (cf. O LD s.u. le,
onde este verso é citado).
490 Já vimos adulter no sentido de «am ante» em 1.33.9.
491 Por estranho que pareça, o sentido primário de ambitiosus é «w inding, tw isting, d in g in g »
(c£ OLD sii.). A aceção de «am bidoso» surge em segundo lugar no citado verbete.
m Metro: estrofe alcaica (NGL, pp. 391,406).
m O verbo pulsâ associado â ideia de dança faz lembrar o início dos Anais de É nio (Ntüsae·, quae
pedibus magnum pulsätis Olympum),
494 A referência aos Sálios, sacerdotes de Marte, cria aqui um dos dois elos evidentes com a ode anterior
493 O «e» de antehàc (na grafia arcaica, antidhãc) é teoricam ente breve, pelo que, em rigor,
a palavra forma um crético, o que seria impossível nesta posição da estrofe alcaica. H orácio
resolve o problema fingindo que a palavra é um dissílabo, m as o verso n o seu to d o dá um a
sensação imperfeita, também porque nele vemos o fenôm eno rarissimo em H orácio (ver N isbet
8c Hubbard, VoL 1, p. XLI) de o dodrante não estar separado da prim eira parte do verso p o r m eio
N otas às O des 521
de diérese (ver NGL, pp. 390-391,406). O mesmo acontece, neste poema, no v. 14. É o único
poema em toda a coletânea dos quatro livros de Odes em que esta imperfeição métrica ocorre
duas vezes. Note-se que, além destas curiosidades, temos ainda a surpresa de duas ocorrências
no mesmo poema alcaico de versos iniciados com sílaba breve: cf. 15, 22. Embora Nunc est
bibendum seja, pelo seu incipit, um dos poemas mais célebres de Horácio, está longe de ser
tecnicamente o mais perfeito - ou então (quem sabe...) as imperfeições estão lá de propósito,
para sabotar sub-repticiamente a retórica propagandística do poema.
496 A excelência do vinho cécubo já fora tematizada em 1.20.9.
487 Curiosamente, os poetas augustanos nunca se referem a Cleópatra pelo nome.
499 O uso aqui da palavra uir («hom em », «varão») é irônica, já que Horácio está a referir-se
ao séquito de eunucos da rainha.
499 O tema da mulher bébeda proporciona uma ligação com a ode anterior, onde uma estran
geira demasiado dada ao vinho se agarrava pegajosamente, como hera lasciva, a um romano.
490 Os fogos referidos dizem respeito às naus incendiadas na Batalha de Áccio.
491 O vinho mareótico era egípcio e, logo, aos olhos romanos, «m arado».
492 A Hemónia é uma zona no norte da Grécia.
493 Uma das razões pelas quais, aos olhos romanos, Cleópatra seria um «m onstro fatal» era o
facto de ela ser tida como filha de pais que eram irmãos.
494 As naus libumas (o nome diz respeito a uma região no norte de Itália) tinham sido usadas
por Octaviano na Batalha de Àccio. São mencionadas em Epodos 1.1.
495 Para esta aceção de príuãtus («destituído de estatuto»), ver o primeiro verbete sobre este
vocábulo no OLD s.u. 2b (onde o presente verso é citado).
496 Horácio não explicita o fim que Cleópatra quis evitar e que está claro numa passagem de
Tito Lívio (26.13.15): após a participação hum ilhante no triunfo, os prisioneiros de guerra eram
levados para o cárcere, onde eram flagelados e, de seguida, executados.
497 Metro: estrofe sáfica (NGL, p. 391).
499 O vocativo puer evoca ώ παϊ (« ó rapaz») em grego (cf. Anacreonte, fr. 356: PGHT, pp. 114-
-115) e refere-se obviamente a um escravo. Não deixa de ser curiosa a situação de Horácio dedi
car o primeiro poema do Livro 1 a Mecenas e o último a um escravo, sendo Augusto o dedicatá-
rio do segundo poema e o herói vitorioso do penúltimo. Em tem pos passados, houve quem
duvidasse de que Horácio pudesse ter fechado o Livro 1 com um poema tão breve em que a
pessoa interpelada não passa de um escravo, surgindo assim a teoria de que, originalmente, o livro
teria 40 poemas, dos quais os dois últimos se perderam (ver Nisbet & Hubbard, Vol. I, p. 423).
499 A rejeição do luxo oriental é tão antiga quanto Arquíloco (fr. 19 West: «N ão me importa
o ouro de Giges...»).
300 Como alternativa ao presente do indicativo cúrõ, os aparatos das várias edições registam
a conjetura interessante de Bentley: cúrã (imperativo).
501 O último poema do Livro 1fecha com um enigma: que sentido devemos dar aqui ao adjetivo
artus na expressão artã uífe? É que são duas (e contraditórias) as hipóteses possíveis: «sob
estreita vinha» (OLD s.u. artus, 6, 7, 8) ou «sob espessa/cerrada vinha» (OLD s.u. 9). Tudo
depende do que pensamos ser a intenção de Horácio neste poema: reafirmação do requinte
calimaquiano na poesia por meio da rejeição do requinte oriental na vida? Fraenkel (pp. 297-
-298) opinou que o poema tem uma intenção estético-literária e que apregoa o compromisso
com o estilo simples na poesia - questão que esbarra com o facto óbvio de que «Horaces style
is in fact very complex» (Nisbet &Hubbard, Vol. I, p. 423). O sentido próprio de artus (cognato
de ars, artis [«arte»] e de άραρίαςω [«ajustar»]) sugere a ideia de «tightly fastened» ( O L D l).
Podemos imaginar, talvez, uma vinha simples e artisticamente ajustada à sua pérgula.
Respostas ao q u iz da Lição n.° 39
1. Imperfeito.
2. Futuro.
3. Acusativo.
4. Perfeito.
5. Conjuntivo.
6. Dativo.
7. Ablativo.
8. uidêrunt.
9. nõlx timêre.
10. Ablativo absoluto.
11. operêmur.
12. opus.
13. mundõ.
14. Indicativo futuro perfeito (porque potest é também indicativo)
15. Conjuntivo perfeito (porque moriãtur também é conjuntivo; ver
Lição n.° 34)
16. Gerúndio
17. Depoente.
18. As frases cujos verbos estão no conjuntivo são interrogativas indiretas
(NGL, p. 345).
19. utuat.
20. uitae.
índice temático
Ablativo, 45-46, 54, 74, 123, 139, Conjuntivo perfeito ativo, 149,
142,185-186,231 150, 159, 200-206
Ablativo absoluto, 128, 132, 204, Conjuntivo perfeito e mais-que-
209,253,254,263 -perfeito passivos, 146
Acusativo, 24, 27,29, 136 Conjuntivo potencial, 202-203,
Acusativo de exclamação, 56, 211, 205
236 C onjuntivo presente ativo/
Adjetivos, 57,155 /passivo, 85-86
Agente da passiva, 107,235 cum («quando»), 94, 128-129,
Alfabeto, 45 140,145
Artigo (inexistência de), 25
Dativo, 51, 254 (atração do
Complemento direto, 27 dativo)
Conjugação mista, 73 Dativo de agente, 209
Conjuntivo de sum (presente e Declinação ( l.a), 52
imperfeito), 112,217 Declinação (2.a), 52
Conjuntivo deliberativo, 210- Declinação (3.a), 53,55,56
-211 Declinação (4.a), 70
Conjuntivo imperfeito ativo/ Declinação (5.a), 111
/passivo, 118-119 Desinência, 24
Conjuntivo jussitivo, 86, 89, 116,
253,260 Enunciação (de um substantivo),
Conjuntivo mais-que-perfeito 32
ativo, 138 Enunciação (de um verbo), 49-50
524 Latim do Z ero a V ergílio em 50 L ições
-que, 40,111
quod (conjunção), 78,239
quoniam, 64,78
Este Latim do Zero a Vergilio cm SO lições,
de Frederico Lourenço,
publicado por Quetzal Editores,
foi composto em caracteres da família Amo,
criada em 2007 por Robert Slimbach
e inspirada na elegante tradição da tipografia italiana dos séculos xv e xvi,
bem como dos cursivos de Ludovico Vicentino degli Arrighi.
A designação «Amo» deve-se ao rio que atravessa a cidade de Florença.
Este livro foi reimpresso por Bloco Gráfico,
em papel Munken Print Cream/90 g,
durante o més de dezembro de 2020.
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