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Aos vícios 

 
Eu sou aquele que os passados anos 
Cantei na minha lira maldizente 
Torpezas do Brasil, vícios e enganos. 
 
E bem que os descantei bastantemente, 
[5] Canto segunda vez na mesma lira 
O mesmo assunto em pletro diferente. 
 
Já sinto que me inflama e que me inspira 
Tália, que anjo é da minha guarda 
Des que Apolo mandou que me assistira. 
 
[10] De que pode servir calar quem cala? 
Nunca se há de falar o que se sente?! 
Sempre se há de sentir o que se fala. 
 
Qual homem pode haver tão paciente, 
Que, vendo o triste estado da Bahia, 
[15] Não chore, não suspire e não lamente? 
O néscio, o ignorante, o inexperto, 
Que não elege o bom, nem mau reprova, 
Por tudo passa deslumbrado e incerto. 
 
E quando vê talvez na doce treva 
[20] Louvado o bem, e o mal vituperado, 
A tudo faz focinho, e nada aprova. 
 
Diz logo prudentaço e repousado: 
— Fulano é um satírico, é um louco, 
De língua má, de coração danado. 
 
[25] Se souberas falar, também falaras, 
Também satirizaras, se souberas, 
E se foras poeta, poetizaras. 
 
A ignorância dos homens destas eras 
Sisudos faz ser uns, outros prudentes, 
[30] Que a mudez canoniza bestas feras. 
 
Há bons, por não poder ser insolentes, 
Outros há comedidos de medrosos, 
Não mordem outros não — por não ter dentes. 
 
Quantos há que os telhados têm vidrosos, 
[35] e deixam de atirar sua pedrada, 
De sua mesma telha receosos? 
 
Uma só natureza nos foi dada; 
Não criou Deus os naturais diversos; 
Um só Adão criou, e esse de nada. 
 
[40] Todos somos ruins, todos perversos, 
Só os distingue o vício e a virtude, 
De que uns são comensais, outros adversos. 
 
Quem maior a tiver, do que eu ter pude, 
Esse só me censure, esse me note 
[45] Calem-se os mais, chitom, e haja saúde. 
Procura da Poesia [Carlos Drummond de Andrade]
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro


são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.


O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza


nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,


não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.


Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.


Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

[A rosa do povo]

Poema Autopsicografia  – Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

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