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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CAMPUS REITOR JOÃO DAVID FERREIRA LIMA


LETRAS - LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
MORFOLOGIA DO PORTUGUÊS
PROFESSOR(A): RAYNICE GERALDINE PEREIRA DA SILVA

RESENHA CRÍTICA

GÊNERO NEUTRO: IMPASSES E APLICABILIDADE


Fernando dos Santos

Introdução

A demanda pela reformulação da marcação de gênero no português brasileiro, visando


incorporar possibilidades de marcar o gênero neutro na língua, tomou força na última década.
Diversos grupos sociais colocaram este debate linguístico em evidência no interior da
sociedade, alcançando, inclusive, os meios acadêmicos. Em síntese, foram os movimentos
LGBTQI+ e feminista que assinalaram os motivos de realizar modificações na língua para
uma maior inclusão do gênero neutro na fala e na escrita.
Todavia, em contrapartida, houveram diversos impasses em relação a aplicabilidade
das propostas apresentadas. A marcação do neutro a partir do uso de caracteres como x ou @
e da letra -e (em substituição ao -o em itens sexuados) esbarram em problemas de ordem
morfológica, fonológica e fonética. Ademais, também se colocam barreiras no sentido da
naturalização e da impredizibilidade do português (SCHWINDT, 2020).
Uma mudança no sistema da língua envolve um amplo e complexo processo de
reelaboração da mesma, analisando os prós e contras desta mudança. Também se mostra
necessário a análise de fatores extralinguísticos: políticos, sociais e outros, objetivando uma
proposta mais aplicável. À vista disso, analiso alguns trabalhos sobre a flexão de gênero no
português e a discussão contemporânea em torno do gênero neutro. Ao final, esboço uma
proposta de flexão de gênero.
Duas perspectivas

Segundo o linguista brasileiro Mattoso Camara Jr. (2011, p. 88), com relação à flexão
de gênero nas gramáticas tradicionais do português, ocorre uma incompreensão semântica da
sua natureza. É comum que associemos o gênero ao sexo dos seres. Contudo, existem duas
ponderações que ele assinala em relação a esta associação. Uma delas é de que o gênero, na
língua portuguesa, abarca todos os substantivos, sejam eles seres sexuados ou apenas
“coisas”. A outra é que, em muitos casos, haveria uma “discrepância entre gênero e sexo”
(Ibidem). Alguns exemplos que podemos apontar, a partir dessa ponderação de Camara Jr.
(2011), são os substantivos criança, sempre feminino, porém pode se referir tanto à menino
ou menina, e cadáver, sempre masculino, que também pode se referir a ambos os sexos.
Esses substantivos são chamados de epicenos.
Mais um ponto, no nível semântico, assinalado por Camara Jr. (2011, p. 88), é o de
que o masculino seria “uma forma geral [e] não marcada” e o feminino indicaria “uma
especialização qualquer”. Assim, podemos pensar, segundo o autor, que o substantivo barco,
no masculino, se refere de forma geral a qualquer espécie de barco, enquanto que o
substantivo barca, feminino, gênero marcado com -a, se refere a um tipo específico de barco.
Outra confusão que ocorre em relação à flexão de gênero no português é a de confundir
flexão com derivação. Que é o caso dos sufixos -triz e inha para a derivação de imperador
[masculino] em imperatriz [feminino] e galo [masculino] em galinha [feminino] (Ibidem,
p.89).
Para o autor existe apenas uma flexão de gênero no português, com pouquíssimos
alomorfes. Nessa perspectiva, o masculino é sempre Ø, não marcado, ao contrário do
feminino, que é marcado pela flexão em -a. Camara Jr. (2011, p. 92) ainda coloca que as
“gramáticas escolares podem, portanto, ensinar o gênero dos nomes substantivos na base da
forma masculina ou feminina do artigo, que eles implicitamente exigem”.
Como contraponto, Kehdi (1990, p. 30) aponta um problema nessa perspectiva.
Segundo o autor, Mattoso teria desconsiderado a questão de que o falante, comumente, ao
flexionar uma palavra feminina em masculina, recorre à utilização da desinência -o. É o caso
das palavras mulher, em feminino, que vira mulheraço, em masculino, e coruja, em feminino,
que vira corujo, em masculino. Kehdi (1990), resumidamente, defende que a “a flexão de
gênero não se reduz a uma oposição Ø / -a, e, sim, a uma oposição -o / -a” (Ibidem, p. 31) .
Analisando essas duas perspectivas, percebe-se que as ponderações de Mattoso
Camara Jr. são imprescindíveis para pensarmos a maneira que a flexão de gênero é abordada
nas gramáticas tradicionais do português. O caso de não considerar as flexões de palavras
femininas flexionadas a partir da desinência -o em masculino, como apontada por Kehdi
(1990), não impossibilita de pensarmos o gênero como uma oposição entre o masculino, não
marcado, Ø, e, o feminino, marcado pela desinência -a. Certas formas, que fazem exceção a
regra, como as assinaladas por Kehdi (1990) – corujo, crianço, madrasto – são praticamente
inutilizáveis no português cotidianamente e não soam naturais. Também teríamos que, a partir
das considerações de Kehdi (1990), pensar como ficariam os substantivos marcados por -e,
que podem ser utilizados tanto para o masculino quanto para o feminino. Apesar das
ressalvas necessárias, a proposta de Mattoso Camara Jr. se mostra mais completa e viável
para a discussão em torno da flexão de gênero no português brasileiro.

A emergência do -e como desinência de gênero neutro

Luiz Carlos Schwindt (2020), em um ensaio intitulado “Sobre gênero neutro em


português brasileiro e os limites do sistema linguístico”, apresenta, dentre outras, a proposta
de marcação do gênero neutro no português através do morfema -e. Para o autor, existe
vantagem e predisposição a adotar o -e como marcador de gênero neutro em substantivos e
adjetivos que se referem a seres sexuados.
Algumas das motivações apontadas são: uma conformação maior ao inventário
fonológico e por já possuir papel morfológico como marcador de classe temática. No nível
fonológico, segundo o autor, o -e parece como mais natural e correspondente ao som na
língua, em contraponto ao x e @. Ademais, também aponta que, na questão escrita, o uso de
caracteres x e @ não são recomendados a pessoas privadas de visão, devido a impossibilidade
de serem processados completamente (SCHWINDT, 2020).
Entretanto, apesar de haver motivações e uma predisposição a neutralização do
morfema -e como marcador do gênero neutro, Schwindt (2020, p. 16) argumenta que, por
outro ângulo, o -e como desinência do neutro no grupo dos nomes sexuados pode forçar a
uma identificação de -a como feminino e -o como masculino, causando problemas em
palavras como presidente [neutro] que passaria a se flexionar em presidenta [feminino] e
presidento [masculino].
Com essas ponderações podemos pensar nos prós e contras do uso do morfema -e
para marcação do gênero neutro no português brasileiro. Assim sendo, teríamos, por um lado,
uma opção mais viável em relação à neutralização no interior da língua, por encontrar maior
correspondência na oralidade. Nesse ponto, também poderíamos considerar que haveria uma
maior aplicabilidade no meio social, não restringindo a disseminação dessa mudança
deliberada aos meios virtuais, como em redes sociais, blogs e outros, como ocorre com os
caracteres x e @. Ainda nessa questão de aplicabilidade, o -e teria mais um ponto positivo
devido ao comportamento mais ou menos equilibrado dentro dos nomes sexuados, como
aponta o autor em seu ensaio.
No que concerne aos pontos contrários, podemos apontar, principalmente, a confusão
que ocorreria com os substantivos que, terminados com a vogal -e, se referem tanto ao
masculino quanto ao feminino – como é o caso da palavra estudante, que utilizando a
marcação do neutro em -e, obrigaria a criação de outras duas flexões: estudanta, para marcar
o feminino, e estudanto, para marcar o masculino. Dessa maneira, a utilização do morfema -e
aparece como pouco produtivo para o falante do português.

Considerações finais

A flexão de gênero no português brasileiro e os desdobramentos da possível marcação


do gênero neutro abarcam uma série de discussões linguísticas e sociais. O entendimento da
marcação do gênero nas gramáticas tradicionais do português são envoltas por diversos
problemas e abordei alguns deles através da leitura crítica de textos de Mattoso Camara Jr.
(2011) e Valter Kehdi (1990). Além disso, apresentei criticamente uma das propostas de
marcação do gênero neutro no português brasileiro, a partir do ensaio de Luiz Carlos
Schwindt (2020).
Analisando duas perspectivas, indiquei a de Mattoso Camara Jr. (2011) como a mais
completa para pensarmos a flexão de gênero no português brasileiro. A sua proposta do
masculino como Ø, forma não marcada, em contraposição ao feminino -a, forma marcada,
parece dar conta de explicar as possíveis flexões de gênero em substantivos. Todavia, as
ressalvas feitas por Kehdi (1990) parecem demonstrar que é necessário esclarecer certas
lacunas nesta proposta de Mattoso Camara Jr.
Os possíveis caminhos para tornar viável a marcação do gênero neutro no português
brasileiro atestam diversos impasses, tanto no sentido de aplicabilidade – como propor uma
mudança tão rígida ao falante?, quanto no sentido formal da língua – a permeabilidade dos
morfemas, fonemas e condições de estruturas silábicas são resistentes a mudanças
(SCHWINDT, 2020). Assim sendo, a proposta do morfema -e como desinência do gênero
neutro, apresentada aqui, aparece como um caminho repleto de contradições difíceis de
solucionar. Contudo, dentre as propostas apresentadas por Schwindt (2020) em seu ensaio,
esta foi a que demonstrou-se mais viável para utilização pelos falantes.
Por último, apresento aqui uma proposta de flexão de gênero no português. A
utilização da vogal -i como forma de marcar o gênero neutro em nomes de seres sexuados e
que são divididos em masculino e feminino, visto à naturalidade que o falante possui ao
pronunciar esta vogal nas palavras terminadas em -e. Poderia ser um caminho para resolver o
imbróglio causado pela utilização do -e para marcar gênero neutro, que obriga a adição de
mais duas flexões para marcar os outros dois gêneros. Também teria uma aceitação maior por
já pertencer ao sistema alfabético do português e possuir uma correspondência maior com o
som da letra.

Referências bibliográficas

CAMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

KEHDI, Valter. Morfemas do português. São Paulo: Ática, 1990.

SCHWINDT, Luiz Carlos. Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do


sistema linguístico. Revista da ABRALIN, [S. l.], v. 19, n. 1, p. 1-23, 2020.

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