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Geografias Pretas

CAPA

Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

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Geografias Pretas

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Geografias Pretas

Geografias Pretas:
Resistências e Existências no Brasil Contemporâneo

Aiala Colares Oliveira Couto


Luiz Augusto Soares Mendes
(Organizadores)

Belém – GAPTA
2023
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ


GRUPO ACADÊMICO PRODUÇÃO DO TERRITÓRIO E MEIO
AMBIENTE NA AMAZÔNIA

Reitor da UFPA: Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho


Líder do GAPTA: Prof. Dr. João Marcio Palheta
Editor de Publicações do GAPTA: Prof. Dr. Christian Nunes da Silva
Revisão Textual: Ábia Costa Camacho
Diagramação: Joyce Caetano e Christian Nunes da Silva
Imagem da Capa: Aiala Colares

Comissão Editorial GAPTA


Prof. Dr. Christian Nunes da Silva
Prof. Dr. João Marcio Palheta da Silva
Prof. Dr. Adolfo Oliveira Neto

Conselho Editorial GAPTA


Prof. Dr. André Cutrim Carvalho
Prof. Dr. Ricardo Ângelo Pereira de Lima
Prof. Dr. Ricardo José Batista Nogueira

Conselho Consultivo GAPTA


Prof. Dr. Afonso do Ó – Universidade do Algarve
Prof. Dr. Clay Anderson Chagas – UFPA
Profa. Dra. Cynthia Simmons – Florida University
Prof. Dr. David Gibbs McGrath – UFOPA
Prof. Dr. Eduardo Shiavone Cardoso – UFSM
Prof. Dr. Flávio Rodrigues do Nascimento – UFC
Prof. Dr. Gilberto Rocha – UFPA
Prof. Dr. José Sobreiro Filho – UFPA
Profa. Dra. Judite Nascimento – Univ. Cabo Verde/UniCV
Profa. Dra. Lisandra Pereira Lamoso – UFGD
Profa. Dra. Maria Célia Nunes Coelho – UFRJ
Profa. Dra. Maria de Fátima Nunes Carvalho - IPBEJA
Prof. Dr. Robert Walker – Florida University
Prof. Dr. Juliana Canga – UniLuanda
Prof. Dr. Maria Lúcia Brito da Cruz – UECE

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Identidade negra : Relações raciais :
Aspectos sociais 305.800981
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Os conceitos, declarações e opiniões emitidos nos manuscritos são de


responsabilidade exclusiva do (s) autor (es).
Todos os direitos reservados aos Autores
Impresso no Brasil

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Sumário
APRESENTAÇÃO
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RACISMO AMBIENTAL
Rita de Cássia Martins MONTEZUMA 13

RACIALIDADE E GEO-GRAFIAS 26
Luiz Augusto Soares MENDES

MOVIMENTO QUILOMBOLA E
POLÍTICA DE ESCALAS: GEO-GRAFIAS 50
DAS LUTAS HISTÓRICAS
Gabriel Romagnose Fortunato de Freitas MONTEIRO

NOTAS SOBRE “CULTURA


NEGRA”, CAPOEIRA ANGOLA E 78
CORPO-TERRITÓRIO
Diogo Marçal CIRQUEIRA

EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA


EM TERRITÓRIOS COBIÇADOS 95
Maria Albenize Farias MALCHER

A QUESTÃO RACIAL E A GEOGRAFIA


ESCOLAR CRÍTICA: CAMINHOS PARA
UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA 113
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O ENSINO DE GEOGRAFIA ESTÁ EM


TODOS OS LUGARES: PRÁTICAS
GEOGRÁFICAS NA ESCOLA 136
QUILOMBOLA
Laís Rodrigues CAMPOS

AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO
ENSINO DE GEOGRAFIA: REFLEXÕES A 153
PARTIR DE ESCOLAS DO CAMPO EM
GOIÁS
Joyce de Almeida BORGES
Lorena Francisco de SOUZA

SEGREGAÇÃO RACIAL: UMA


COLONIALIDADE EM BELÉM-PARÁ 183
Jakson Silva da SILVA

SOBRE OS AUTORES 213

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APRESENTAÇÃO

A Importância de uma produção científica a partir de


outras ordens, sobretudo as que ocasionam desordens, formando
outras perspectivas, narrativas e reflexões são condições cruciais
para o pensamento e para a existência de um mundo diverso, plural
e que possibilite mais acessibilidade. Por muito tempo a ciência não
constituiu dimensões sofre a diversidade e a potencialidade do
negro, pelo contrário produziu discursos que afastava diversos
grupos, raças e etnias de manifestarem seus sentidos de suas
existências, fossem elas culturais, artísticas e cotidianas.
Uma conjuntura que contribuiu para a fundamentação
social da produção do que Achille Mbembe chamou de
necropolítica, concepção que se compreende a partir do uso do
poder social e político para decretar como algumas pessoas, de
sobremaneira negras podem viver e como outras devem morrer. É
a dimensão que influencia na distribuição desigual da oportunidade
de viver e morrer no sistema capitalista atual.
A ideia de necropolítica influi nas ações da escala micro da
política, que a escala do cotidiano, onde nessa dimensão também
se combate-a, forjando o fortalecimento dos movimentos sociais
antirracista e de igualdade racial. Onde a existência negra junto com
suas memórias, sensibilidades, ancestralidades e cosmologias
caminhem e tenham força para produzir respeito, reconhecimento
e potência para a nossa existência.
Busca-se então contribuir para a construção de uma
ontologia negra, por meio de uma Geografia preta, produzida por
quem vive no movimento negro de base universitária, que não se
separa do movimento social negro que luta contra o racismo
estrutural e as condições históricas de exclusão da população negra
no Brasil. Contribuir para pensar a essencialidade de uma
sociedade que precisa aprender a se portar e a conviver com as
mais diversas expressões fenotípicas, genéticas, culturais e sociais.
As ideias de Abdias Nascimento na obra “Genocídio do
Negro brasileiro: processo de um racismo mascarado", sobretudo,
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quando o autor argumenta que vários foram os recursos utilizados


para frear o crescimento da população negra no Brasil do século
XX, pois havia uma “marcha negra”, um crescimento da população
afrodescendente, onde uma das principais formas desse
crescimento estava nos séculos anteriores (XVII, XVIII e XIX) era
o “pardo”, que foi fruto do “estupro da mulher negra pelos
brancos da sociedade dominante, originando, ainda, alguns outros
produtos de sangue misto: o mulato, o pardo, o moreno, o pardo-
vasco, o homem-de-cor, o fusco.
Desde então tem-se crimes cometidos contra os corpos
negros, nesse caso o crime de violação e de subjugação sexual
cometido contra a mulher negra pelo homem branco continuou
como prática normal ao longo das gerações. Realidade que deve
ser combatida por meio da construção de outras formas
pedagógicas, de ensino e de pensamento sociorracial, que se
especializam e aqui entra o papel da geografia como ciência do
espaço.
Os textos que constituem essa coletânea tratam das
perspectivas raciais, desmascaram as condições de esquecimento
da cultura negra e apresentam novas constituições sociorraciais, da
vivência, da ancestralidade e da cultura negra. Apresentam
proposições às práticas escolares, que inserem o ensino de uma
geografia negra, vislumbrando outros caminhos.
A apresentação desta obra em forma de coletânea traz
algumas reflexões que apontam para a necessidade de tornar a
geografia cada vez mais uma ciência militante. Não apenas
militante no sentido de trazer as principais pautas defendidas pelos
movimentos sociais, mas também, militante no sentido libertador
e descolonizador do pensamento.
Afirmamos que cada autor e cada autora desta coletânea
têm um compromisso político com a geografia, com a educação e
com a justiça social e racial. Apresentar um conjunto de textos que
tragam questões étnico-raciais relacionadas à ciência geográfica
traz responsabilidade e compromisso ético com a luta cotidiana da

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sociedade contra as desigualdades, sobretudo, um compromisso


com a luta antirracista.
Temas pertinentes serão aqui apresentados, debates que
partem de várias inquietações que afligem a população negra no
Brasil. Por isso, mais do que necessário torna-se traçar estas
discussões e provocações tão pertinentes para o debate em
geografia.
Assim, o racismo ambiental se apresenta enquanto um
tema pertinente para se pensar as questões sobre lutas por direitos
e por justiça ambiental que partem das populações negras. É um
processo de enfretamento que deve ser ressaltado como um
importante movimento da sociedade.
Também há de se considerar a relação entre racialidade e
geo-grafias, em que se realiza uma discussão de como a ciência
geográfica fora produzida a partir da expansão do modo de
produção capitalista, em defesa da acumulação e da expansão de
exploração da população negra africana, bem como a submissão
dos indígenas americanos. A proposta é romper com essa ciência
excludente e construir uma outra episteme geográfica mais
combativa, diversa e plural com base na ideia de geo-grafias e
mesmo de geograficidades.
Em relação às notas sobre cultura negra, há uma
importante reflexão sobre a cultura na produção do corpo e vice-
versa, tema que se apresenta aqui para além das proposições das
Geografias Feministas anglo-saxônicas, destacando-se os debates
de gênero que se iniciam nos anos de 1980.
A geografia do movimento quilombola também está aqui
nesta coletânea, pois como diz o texto, a questão quilombola se faz
presente na contemporaneidade diante de múltiplos processos.
Processos estes que envolvem questões territoriais de resistências
do povo quilombola e que a geografia sabe se posicionar bem
diante do contexto socioespacial e histórico que envolve os
quilombolas no Brasil.
Sobre a questão racial e a geografia escolar o texto busca
fazer um questionamento destacando que embora as correntes do

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pensamento geográfico tenham passado por um processo de


evolução – que sai de uma Geografia clássica tradicional e passa
para uma geografia crítica mais aberta à análise das questões sociais
e contraditórias impostas pelo modo de produção capitalista – em
grande medida, ainda foram muito tímidas ou incipientes as
abordagens que consideravam as relações entre classe, raça e
gênero como elementos importantes para a compreensão dos
conflitos sociais, portanto, a geografia escolar deve buscar inserir
tais temáticas em suas analises.
Em relação ao ensino de geografia, ele está em todos os
lugares. Pois, as múltiplas possibilidades de ensinar geografia estão
relacionadas aos diversos debates produzidos no interior do saber
geográfico, envolvendo as questões do agrário, urbano, gênero,
raça, etnia e sexualidade, como dimensões das bases espaciais. Por
isso, o desafio é ultrapassar um saber geográfico eurocêntrico e
revelar uma Geografia que contemple leis 10.639/03 e 11.645/08
que tratam do ensino de história e cultura Africana e Indígena, mas
que ainda são poucos utilizados em sala de aula.
Por fim, apresentamos um texto que traz reflexões sobre o
tratamento das diferenças e das relações étnico-raciais na geografia
escolar em escolas públicas, pautando-se em estudo de caso sobre
a realidade de três escolas do campo de municípios goianos.

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Luiz Augusto Soares Mendes
Organizadores

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RACISMO AMBIENTAL

Rita de Cássia Martins MONTEZUMA

Introdução

Racismo ambiental não é uma prática nova. Porém, a


criação do conceito e sua incorporação às lutas por direitos, por
justiça ambiental, é mais recente e, consequentemente, tornou-se
um processo de enfrentamento das injustiças que resultam de
determinadas condições de vida e da qualidade do ambiente em
que vivem.
Como o termo sugere, o Racismo ambiental abriga uma
concepção de raça e de ambiente, a partir do qual ele opera. Para
tanto, é imperativo uma breve reflexão sobre como os termos estão
colocados neste debate, sobretudo, o termo chave: raça. Sobre a
noção de raça, podemos dizer que principia na concepção biológica
surgida no século XVIII com Carl Linnaeus, ao identificar em
plantas e animais variações morfológicas dentro de uma mesma
população, portanto, de uma mesma espécie biológica (indivíduos
capazes de reproduzir entre si e gerar prole fértil por gerações
subsequentes) 1 , derivadas de adaptações às pressões ecológicas
ocorridas em ambientes geograficamente diferenciados. Tais
variações geográficas dentro da mesma espécie conotam, assim,
diversidade intraespecífica que, do ponto de vista ecológico, são

1O conceito de Espécie Biológica é compreendido como todo grupamento de indivíduos


de uma mesma espécie e, portanto, são capazes de cruzarem entre si e produzir prole
fértil nas gerações subsequentes. A espécie biológica é uma UNIDADE GENÉTICA
que consiste em um grande patrimônio gênico (o genótipo) em intercomunicação,
enquanto o indivíduo é meramente um veículo temporário com uma pequena porção do
conteúdo total do genótipo (MAYR, 1977). Nesse sentido, é preciso compreender que:
a) qualquer espécie é o produto de uma longa seleção e o genótipo inteiro é produto desta
seleção; b) qualquer componente do fenótipo é produto da interação do genótipo como
um todo e c) o fenótipo tem propriedades que favorecem a sobrevivência em
DETERMINADO AMBIENTE, mas não em todos os ambientes.

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atributos que conferem à espécie maior capacidade de


sobrevivência, de resistência, frente a fatores como pragas e
doenças, por exemplo.
No que tange ao debate sobre raça referente à espécie
humana, considerando-se que não há evidência alguma de
diminuição de fertilidade resultante de cruzamento entre seres
humanos, mesmo os mais distantes geograficamente e os mais
distintos fenotipicamente (COX; MOORE, 2009 p. 148), as
denominadas raças humanas nada mais são do que raças
geográficas, conforme destaca Cheikh Anta Diop2, ou variabilidade
intraespecífica (variedade dentro da mesma espécie). No debate
sobre raça e racismos esta compreensão é fundante, pois joga por
terra qualquer possibilidade de fundamentação genética/biológica
que justifique a desumanização de grupos humanos
fenotipicamente e/ou culturalmente distintos, a não ser por razões
político/ideológicas.
A variabilidade geográfica associada à diversidade humana
ganhou contornos ideológicos por volta dos séculos XVIII/XIX
na Europa, consubstanciando teorias científicas sobre raças,
dividindo a humanidade em diferentes grupos e competências para
justificar relações de superioridade/inferioridade que remetem, por
sua vez, às relações de apropriação, controle e dominação no
decorrer das expansões imperialistas. Surge, “a ideia de que
características biológicas – determinismo biológico – ou condições
climáticas – determinismo geográfico – que seriam capazes de
explicar as diferenças morais, psicológicas e intelectuais entre as
diferentes raças” (ALMEIDA, 2019). O conceito de raça aplicada
à espécie humana confirma-se e afirma-se, desta forma, como um
conceito sociopolítico (MOORE, 2009), sem fundamentação
científica.
Segundo Almeida (2019), Racismo

É uma forma sistemática de discriminação que tem a raça


como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas

2 Disponível em https://acervoafrica.org.br/video/videos/categoria/entrevistas/.

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conscientes ou inconscientes que culminam em


desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do
grupo racial ao qual pertençam... Um processo em que
condições de subalternidade e de privilégio que se
distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos
da política, da economia e das relações cotidianas. O
racismo articula-se com a segregação racial, ou seja, a
divisão espacial de raças em localidades específicas...
(grifo meu).

Aqui temos a chave para compreender uma das derivações


do Racismo que nos interessa: o Racismo Ambiental. Racismo
Ambiental é definido a partir do tratamento diferenciado que é
conferido a uma dada área geográfica em função da presença de
determinados grupos sociais (segregação) com base na cor/raça ou
etnia, por serem considerados minorias políticas. Racismo
Ambiental é considerado uma forma de Injustiça Ambiental,
caracterizado pela imposição desproporcional de riscos ambientais
às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e
informacionais. Como contraponto, surge o termo e o movimento
por Justiça Ambiental, que se refere à aspiração de um futuro no
qual a injustiça ambiental venha a ser superada.
A Injustiça Ambiental, por sua vez, se caracteriza por uma
valorização diferenciada do espaço, legitimada e promovida pelo
poder público de forma não equitativa, na medida em que os
benefícios de uma localização privilegiada, com fornecimento de
bens e serviços, são distribuídos de modo distintos entre os
diversos grupos sociais. Também é considerado Injustiça
Ambiental quando os riscos associados à precarização dos serviços
públicos, instalação de indústrias ou empreendimentos perigosos,
como fábricas poluidoras, áreas de deposição de rejeitos, aterros
sanitários, tratamento de esgoto, mineradoras ou outro tipo de uso
da terra, que implique em remoções de pessoas, são
geograficamente associadas a grupos politicamente minoritários,
definidos por fatores como classe social, origem, cor/raça e/ou

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etnia. Quando a prática de Injustiça Ambiental incide sobre tais


grupos, passa a ser identificado como Racismo Ambiental.
No Brasil o racismo é um elemento estruturador das
relações sociais, e assim, define o ordenamento do território e as
condições de infraestruturação, do acesso aos direitos, dos
recursos e da mobilidade. Por esta razão, no Brasil a Injustiça
Ambiental é correlata, se não sinônimo, do Racismo Ambiental.
Para compreender o Racismo Ambiental é importante nos
remetermos aos fatos históricos que possibilitaram a emergência
do termo e o contexto social em que foi gerado. Compreender suas
diversas formas de manifestação e como este incide no Brasil a
partir de duas grandes lógicas escalares: a primeira com uma
abordagem que nos possibilite refletir como o racismo ambiental
opera internamente; uma segunda mais ampliada situando o país
em uma condição de Zona de Sacrifício Global frente ao capital
mundial, sem deixar de considerar que essas duas escalas se
imbriquem e se superponham em determinados momentos.
Reconhecer os fatores e lógicas geradoras do racismo
ambiental é fundamental para a construção de normas, leis,
políticas públicas que visem à redução das desigualdades e as
diversas formas de violência, bem como para possibilitar a criação
de medidas reparadoras justas e transparentes no caso de
ocorrência de danos ambientais que afetam não apenas grupos,
mas, também, individualmente todas/os aquelas/es que vivem
sobre condições de risco e abandonos do Estado.

Como surgiu o Racismo Ambiental?

Por volta dos anos de 1960 e 1970 várias lutas por um


ambiente saudável e qualidade de vida ocorreram em muitos países.
Grande parte motivada pela percepção dos efeitos poluidores do
crescimento industrial acelerado, normalmente conectando a
degradação ambiental à precarização das condições de trabalho e
de vida de populações menos favorecidas.

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Características locacionais e sociais, como fatores


econômicos, fragilidade política e baixo acesso à informação
favoreceram à destinação de lixo, esgoto, rejeitos de um modo
geral, por parte dos poderes locais em muitos lugares no mundo
por muito tempo. Os movimentos por ambientes saudáveis, direito
a recursos e contra a instalação de lixo e produtos tóxicos criaram
uma pauta de luta ambiental nos Estados Unidos. Nos anos de
1970 vários movimentos reivindicatórios apontaram as
inequidades ambientais como decisões associadas às condições de
cor/raça e etnia, sem, contudo, conseguirem dados
comprobatórios que respaldassem mudanças na agenda pública
(ACSELRAD, 2002).
Em 1982, em um dos muitos movimentos que ocorriam à
época, um movimento contra a deposição do rejeito tóxico PBA
(bifenil policlorados) em Afton, localizado no Condado de Warren,
Carolina do Norte/EUA, foi comprovado pela primeira vez na
história do movimento ambiental que as inequidades ambientais
estavam associadas às classes mais baixas, aos afro-americanos,
latino-americanos e/ou indígenas, a partir de dados levantados
pelo reverendo Benjamim Chavis, vinculado à United Church of
Christ’s. Benjamim Chavis pôde comprovar que o fator cor/raça
ou etnicidade, quando comparado entre classes pobres, se
sobrepunha à renda, comprovando a existência de um racismo
vinculado às condições de degradação do ambiente e social, ao qual
atribuiu o termo Racismo Ambiental, promovendo a criação de
uma agenda política de combate às injustiças ambientais associada
à discriminação e segregação racial (CUTTER, 1995).
Para Chavin, Racismo Ambiental foi definido como a
discriminação racial das políticas ambientais reforçada por leis e
normas, que deliberadamente destina às comunidades de cor o lixo
tóxico, sanciona oficialmente a presença de venenos e poluentes
que ameaçam a vida das comunidades de cor e a exclusão histórica
das pessoas de cor da liderança dos movimentos ambientais
(CHAVIS, 1994 apud CUTTER, 1995).

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Em 1991 aconteceu a Primeira Cúpula Nacional das


Lideranças Ambientais das Pessoas de Cor, alargando a concepção
sobre o movimento ao incorporar saúde pública, segurança do
trabalhador, uso do solo, transporte, habitação, alocação de
recursos e capacitação da comunidade. E em 1994 o presidente
estadunidense Bill Clinton, emitiu a Ordem Executiva 12898,
intitulada “Ações Federais para Justiça Ambiental em Populações
Minoritárias e Populações de Baixa Renda” abordando a injustiça
ambiental dentro das leis e regulamentos federais existentes com a
proibição de práticas discriminatórias em programas que recebem
verbas federais (BULLARD et al., 2013).
No Brasil, em 2001 é criada a Rede Brasileira de Justiça
Ambiental – RBJA (www.justicaambiental.org.br) e em 2005 o I
Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, ambos na
Universidade Federal Fluminense, com apoio da
FIOCRUZ/CESTEH e da FASE/Projeto Brasil
Sustentável e Democrático3.
Porém, não é possível afirmar que Racismo Ambiental
tenha se consolidado como tema constituinte dos currículos em
Escolas, Universidades ou instituições de pesquisa brasileiras.
Embora o Racismo Ambiental esteja na origem do
movimento por Justiça Ambiental, nos Estados Unidos, “Justiça
Ambiental” tornou-se o termo guarda-chuva que passou a
incorporar também o racismo e outras formas de injustiças, sendo
considerado um termo mais integrador (CUTTER,1995). Em um
primeiro momento, acompanhando a lógica estadunidense, a
adoção do termo foi estendida também ao Brasil, possibilitando a
visibilidade de vários conflitos similares em natureza e estratégia
política, resultando naquilo que Cutter (1995) e Acselrad e
colaboradores (2009) definem como questões de Justiça
Ambiental. Porém, considerando a especificidade brasileira em
que o racismo delimita forma e informa todas as estruturas sociais,
apoiado no mito da democracia racial, é imperativo que o Racismo

3 www.professores.uff.br/seleneherculano/textos.

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Ambiental seja identificado e tratado como um movimento


específico e de destaque na realidade nacional.

Como o Racismo Ambiental opera?

A cor da pele, os traços fenotípicos, as corporeidades e


comportamentos, são definidores da categoria social e formam um
potente fator ordenador do espaço, definindo territórios,
influenciando o ordenamento do uso do solo, a arquitetura, o
acesso ao lazer, a manutenção dos lugares, a qualidade dos
equipamentos urbanos, a mobilidade no espaço urbano e silvestres,
os usos públicos em área urbana, assim como nas Unidades de
Conservação e Áreas Verdes em geral. Essa grafia diferenciada no
espaço parametrizada pela distinção baseada na cor/raça etnia são
algumas das múltiplas formas como o RACISMO AMBIENTAL
se apresenta. Como definem Pires e Guimarães (2016), Racismo
Ambiental é uma forma de discriminação institucional que se
materializa em políticas, práticas ou diretrizes que afetam
diferentemente e de maneira desvantajosa indivíduos, grupos ou
comunidades, em razão de sua pertença étnica ou racial.
Um ponto a ser considerado é o imbricamento de fatores
que vão resultar na classificação ambiental e, consequentemente,
nas práticas políticas, culturais e econômicas que incidem sobre
esses espaços segregados. Às interseções de classe, cor/raça e
etnias se somam à origem geográfica (nordestinos e nortistas) e
localização de moradia, como no caso de áreas de aterro sanitário,
lixões, periferias e áreas de risco.
Em todos os casos supracitados, o Racismo Ambiental está
apoiado no papel do Estado como legitimador ou como produtor
das desigualdades ambientais das áreas segregadas. Quando opera
em ação prévia o Estado define e delimita áreas para onde são
destinadas minorias sociopolíticas. Em geral, são locais distantes
das centralidades valorizadas economicamente ou socialmente,
locais onde o custo da construção e o valor do solo são baixos, mas
também onde o custo do acesso é alto. Casos de remoção de

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favelas, assentamentos rurais, ou grupos desalojados/desabrigados


para estes locais exemplificam essa prática.
É lícito considerar, neste aspecto, que o preconceito
também recai sobre sistemas ambientais concebidos como de
menor valor, ou desqualificados em sua natureza, como brejos,
manguezais e pântanos. Enquanto essas áreas não adquirem valor
de troca que atraia o capital, tornam-se o destino de grupos
subalternizados.
Quando a segregação não ocorre aprioristicamente, as
áreas ocupadas são tratadas com abandono. A ausência do poder
público é identificada na precariedade das condições de
urbanidades e da infraestrutura tais como: abastecimento de água,
esgotamento sanitário, coleta de lixo, escolas públicas, postos de
saúde, postos de trabalho formal, transporte público, áreas de lazer.
Equipamentos como praças, campo de futebol e outras
formas de lazer público, como as áreas verdes e parques públicos,
são tratadas com descaso e negligenciamento, ou associadas ao
perigo e violência. Formas simbólicas de desqualificação e
segregação espacial constituem-se em formas diferenciadas de
tratamento do “verde” urbano. Neste sentido, quando
consideramos os aspectos ecológicos (tamanho da área, qualidade
da vegetação, por ex.) o ordenamento da paisagem ganha enfoque
e o argumento da conservação da natureza passa a orientar o
ordenamento do “verde” urbano, como arborização e praças bem
cuidadas e ornamentadas, para áreas privilegiadas. Nas áreas onde
predominam classes sociais de baixa renda, os espaços verdes em
geral são abandonados, mal cuidados ou violentos, e denunciam o
caráter socialmente desigual das condições de acesso à proteção
ambiental.
Contudo, não é incomum que áreas anteriormente
negligenciadas se tornem alvo do interesse do mercado em outro
momento. Neste caso o Racismo Ambiental opera pela valorização
e apropriação de recursos situados em áreas de minorias
sociopolíticas, ao mesmo tempo negando a importância da
presença desses grupos na produção de valores: valores

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materializados em uma natureza que passa a ganhar o status de


conservável – torna-se área de proteção, via de regra, integral -, ou
na condição de negação de formas de existência que garantam a
sustentabilidade socioecológica do espaço.
Dessa forma, remove-se a população “invasora” e
promove-se a atração de novos moradores que sejam
economicamente e intelectualmente considerados capazes de
garantir a sustentabilidade ecológica da área. São os contornos da
necropolítica de higienização, eugenização, de branqueamento. O
capital reordena o território adotando narrativas identificadas com
uma noção de natureza e de qualidade de vida, se apropria da terra,
dos bens e recursos produzidos e, em contrapartida, segrega,
distância e criminaliza quem a produziu. A natureza passa a ser
valorizada, fetichizada e romantizada.
Outro modo de apropriação severamente danosa ocorre
quando o interesse e a subsequente apropriação, reside não mais
na natureza da superfície do solo, mas em seu subsolo. Para isso a
remoção da população não basta, pois requer que seus espaços de
memória, da ancestralidade, de convívio, sustento, de existência,
sejam removidos. A indenização é compensada pelos altos lucros
advindos da exploração dos recursos, em geral com pouca ou
nenhuma negociação. Esses são os casos de exploração de
minérios ou barragens.
Estes casos se configuram em crimes ambientais de ordem:
a) SOCIAL – pois contempla a questão da justaposição de
atividades econômicas, fortemente influenciadas por critérios
locacionais (valor de propriedades, transporte, acessibilidade,
infraestruturação) e a geografia social (minorias políticas,
econômicas, étnicas, raciais e/ou religiosas), produtores de
paisagens de risco; b) GERACIONAL – porque retiram a garantia
da qualidade e quantidade de recursos disponíveis para as
sucessivas gerações, incluindo a geração atual etc.) PROCESSUAL
– na medida em que a garantia a partir da qual as normas e
regulações governamentais, acordos e tratados internacionais,

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assim como as sanções que deveriam ser aplicadas sem


discriminação não ocorrem.
São crimes que deixam como legado ao povo uma
“mochila ecológica”, com toneladas de rejeito, contaminação,
esgotamento da água, da terra, perda de territórios de vida,
existências, memórias (ALIER, 2015), legados que intensificam a
pobreza e marginalização dos grupos envolvidos. Segundo
Pacheco e Faustino (2013) sobre o mapa de conflitos e injustiça
ambiental, dentre as categorias vítimas de racismo ambiental se
destacam 33,67% de indígenas, 31,99% agricultores familiares e
21,55% são quilombolas. Várias dessas comunidades se auto-
indentificam como pertencentes a mais de um grupo e sobre elas
podem incidir mais de um tipo de conflito, dano ambiental e
injustiças ambientais.
O que trazem em comum é a condição étnica ou racial de
grupos desfavorecidos e abandonados, para os quais vertem os
riscos e custos ambientais que maximizam a lucratividade dos
grandes empreendimentos, com apoio de um Estado e de
sociedade racistas, classistas, negligentes. A raça é a chave de
atuação das injustiças ambientais.
O Racismo Ambiental opera: 1) subestimando e reduzindo
a proteção contra a degradação ambiental; 2) reduzindo a
prevenção de impactos adversos de condições de deterioração
ambiental ANTES de o dano ocorrer; 3) alterando os mecanismos
de imputação da culpabilidade e de atribuição do ônus da prova de
contaminação aos residentes e não aos poluidores; protelando,
quando não anulando a reparação dos impactos com ações e
recursos de remediação/compensação, muitas vezes paliativa; 4)
tendo sempre como moeda de troca a empregabilidade; 5)
enfraquecendo e desqualificando as falas e os testemunhos das
lideranças locais, pesquisadores, ativistas e todos aqueles que se
pronunciam contra às injustiças cometidas pelos detentores do
poder; 6) cooptando políticos, governos, lideranças e, não raro,
técnicos e cientistas que se rendem aos valores das "consultorias".

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22
Geografias Pretas

O Racismo Ambiental opera também em escalas


diferenciadas. Sobre territórios de grupos sociais negros, latinos,
camponeses, indígenas e pobres em geral, são as Zonas de
Sacrifício nas escalas municipais, estaduais ou locais 4. Na escala
mundo, países com tais características, ou seja: pobres, fracos
politicamente e com predomínio de populações racializadas, são as
Zonas de Sacrifício na escala Global.

Como identificar o Racismo Ambiental?

Pequenos exercícios que acionem nossa memória nos


possibilitam a identificar onde e porque o racismo ocorre naquele
local. Um levantamento no bairro, ou município, sobre número de
linhas de ônibus e frequência com que passam, quantidade e
distância das escolas e postos de saúde, número de residências com
abastecimento de água, esgotamento sanitário, frequência da coleta
de lixo, presença de lixões, condições da pavimentação, presença
de calçadas, presença e qualidade da arborização, jardins e parques,
são alguns indicadores da existência da prática do Racismo
Ambiental.
A quantidade de moradores acometidos de doenças como
tuberculose, leishmaniose, esquistossomose, mortalidade infantil, é
reveladora da negligência em saúde como prática de racismo
ambiental. Violência das forças de segurança pública e presença de
forças paralelas como milícias, são outras formas que merecem ser
incorporadas ao debate. Além destes, pesquisar causas e ações de
remoções, considerando a forma e o local como as populações são
removidas, são outras estratégias de identificação.
Ao final, um bom debate em roda de conversa pode
auxiliar nas reflexões sobre mecanismos, estratégias e histórias de
resistência sobre o assunto. Como sugestão, o documentário Terra
Roubada, de Peter von Gunten sobre a barragem de Sobradinho,

4 Termo cunhado para designar os territórios de rejeitos, despejos, substâncias tóxicas,


do que é indesejável, levando à marginalização e estigmatização de áreas e grupos sociais
a partir da concentração, sobreposição e perpetuação de desigualdades.

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Geografias Pretas

no Baixo Rio São Francisco, e a remoção de nordestinos


(https://canoadetolda.org.br/sobradinho/2020/09/11/terra-
roubada/); “Vozes de Paracatu e Bento”, de Walter Salles
sobre a barragem do Fundão em Mariana/MG; o filme Narradores
de Javé, sobre memória, história e exclusão, Direção Eliane Caffé,
2004, Brasil (https://www.youtube.com/watch?v=Trm-CyihYs8),
são algumas boas dicas. Na literatura Quarto de Despejo, de
Carolina Maria de Jesus e Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior,
possibilitam um amplo debate sobre a produção do espaço
alicerçada no Racismo Ambiental.

Algumas Considerações

Racismo Ambiental é identificado de norte a sul neste país.


Fruto de uma colonização perversa, a segregação socioespacial
pautada na cor/raça/etnia, origem e classe, se constitui em fonte
vastíssima para uma produção intelectual de exposição e combate
ao racismo em suas múltiplas manifestações. O silenciamento e
ausência de grupos subalternizados no ambiente acadêmico atuou
como represa deste debate por séculos, o que em tempos atuais
nos garante farta matéria prima para investigação e abordagens.
Uma exploração que urge ser feita e estendida aos diversos níveis
de ensino, da Educação Básica à Pós-Graduação, nos espaços
formais e informais, em múltiplas linguagens. Produzir este
conhecimento e divulgá-lo amplamente é um ato político e
necessário.

Referências

ACSELRAD, H. Justiça ambiental e construção do risco.


Desenvolvimento e Meio Ambiente. n. 5. p. 49-60. jan./jun.
2002.
ALIER, J.M. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto.
379p. 2015.

Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

24
Geografias Pretas

BULLARD, R.D.; JOHNSON, G.S.; SMITH, S.L.; KING, D.W.


Vivendo na linha de frente da luta ambiental: lições das
comunidades mais vulneráveis dos Estados Unidos. Revista de
Educação, Ciências e Matemática v.3 n.3 set./dez. p. 1- 32.
2013.
COX, C.B.; MOORE, P.D. Biogeografia: uma Abordagem
Ecológica e Evolucionária. LTC 7ª ed. 398p. 2008.
CUTTER, S.L. Race, Class and Environmental Justice. Prog.
Hum. Geography, n.19, v.1, p. 111-122. 1995.
MAYR, ERNEST. Populações, espécies e evolução. São Paulo:
Editora Nacional/Editora Universidade de São Paulo. 485p. 1977.
MOORE, C. Racismo e Sociedade – novas bases
epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Maza
Edições. 320p. 2007.
PACHECO, T.; FAUSTINO, C.A. Iniludível e desumana
prevalência do Racismo Ambiental nos conflitos do mapa. In:
PORTO, M.F.; PACHEO, T.; LEROY, J.P. (comps.). Injustiça
Ambiental e Saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos (online). Rio
de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, p. 73-114. 2013.
https.\\doi.org/10.7476/9788575415764.0004.
PIRES, T.R.O.; GUIMARÃES, V. T. Injustiça ambiental,
racismo ambiental e a marca da estratificação sócio-racial
nas zonas de sacrifício: o caso do bairro de Santa Cruz na cidade
do Rio de Janeiro.

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25
Geografias Pretas

RACIALIDADE E GEO-GRAFIAS

Luiz Augusto Soares MENDES

Introdução

A natureza da Geografia como ciência moderna no século


XIX se dá no ambiente da expansão imperialista de países
Europeus, com destaque para a França e Alemanha - sobre os
continentes Africano e Americano. A ênfase dada às ideias das
ciências modernas, naquele momento, contemplava de forma
primordial as dimensões de domínio imperial, do controle, da
expansão capitalista e do domínio da natureza e dos corpos,
sobretudo, o dos povos dos continentes que estavam sendo
subalternizados. Para entender essas concepções que podem ser
chamadas de colonização e a sua continuidade, a colonialidade, faz-
se necessário um retorno ao pensamento dos geógrafos
fundadores - Frederic Ratzel e Paul Vidal de La Blach, como faz
questão de assim chamá-los Milton Santos (2007)1. Desses
geógrafos resgatamos dois conceitos: o de “Espaço vital” e o de
“Gênero de vida”.
Tais conceitos se ligam às categorias científicas que ao
longo desses dois séculos performaram a Geografia, talvez tenham
impedido de construir essa ciência e o entendimento de uma
sociedade de existência mais plural, ideia defendida por Milton
Santos, no célebre livro “Por uma Geografia nova: da crítica da
Geografia à Geografia crítica”. Concepção essa que apresenta
inicialmente a ciência geográfica voltada para uma dimensão que
vai para além da busca de um objeto (espaço social) e as suas
categorias científicas: região, lugar, território e paisagem.
1 Na obra epistemológica “Por uma Geografia nova: da crítica da geografia, a uma
geografia crítica” de Milton Santos (2007) classifica os primeiros geógrafos em duas
grandes categorias, conforme seus momentos de contribuição à conformação da ciência
geográfica.

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Geografias Pretas

De modo avesso, o desenvolvimento dos conceitos de


espaço vital e o de gênero de vida, foram utilizados pelo Estado
moderno-capitalista, para realizar a expansão do mercado, da
indústria, do modo de vida e de produção capitalista durante os
séculos XIX e XX, revelando a necessidade de inserir diversos
povos aos espúrios da modernidade. Utilizando-se da ciência e
uma ideia de civilidade, forçada, como ideários discursivos e
comportamentais para adentrar e conquistar os territórios
indígenas, africanos e de outras realidades antropológicas.
É interessante realizar esse resgate, pois é preciso desvelar
essa postura não neutra da ciência, que também não é a da
Geografia, como já alertava o filosofo iluminista Francis Bacon2.
Reinventar e reposicionar essas formas de posturas, construções e
dimensões da ciência já está sendo feita em grande parte por
autores que estão preocupados em reposicionar as ideias de
natureza, de raça, de gênero, de modernidade, de desenvolvimento,
de evolução e de colonização, assim como tantas outras, frente à
concepção de ciência moderna.
A perspectiva que construímos nas linhas desse ensaio, tenta
posicionar a raça, a negritude e a racialidade como potenciais ao
pensamento científico socioespacial, que tende a ir para além da
Geografia. É o reposicionamento de uma problemática da cor da
pele, para os geógrafos e geógrafas, que discutem e querem saber
como os nossos corpos de negros, negras e negres3 foram

2 Mesmo esse texto sendo de cunho decolononial, insiste-se em trazer alguns teóricos
Europeus, como Francis Bacon, devido as contradições apresentadas, visto que mostra
como um pensador como Bacon, que era também político, filósofo, cientista, ensaísta e
visconde de Saint Alban – Burgo Inglês, estava a “serviço” da reprodução do Capitalismo.
Ao ser reconhecido e considerado como um dos fundadores da Revolução Científica,
mostra-se como suas obras de cunho filosófico, destacavam-se como obras onde a
ciência era exaltada como benéfica para os seres humanos. Por isso em suas investigações,
ocupou-se especialmente da metodologia científica e do empirismo, sendo muitas vezes
chamado de "fundador da ciência moderna".
3 O termo negre se refere há uma construção lexical que insere os outros gêneros nos

textos, falas e construções sociais. Que não se fique no binarismo definido pelos artigos
(a) que expressa a mulher e (o) que expressa o homem. Precisamos de um léxico mais
plural e inclusivo.

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Geografias Pretas

relegados às condições mais espúrias no processo de


desenvolvimento social, científico e industrial, diante de uma
evolução violenta da produção capitalista, que se forja na base da
ciência moderna. A concepção convidativa de Quijano (2005)
sobre como a cor da pele estruturou e reestrutura as ideias da
colonização, agora da colonialidade, fazendo surgir o
etnocentrismo e a ideia do outro, o não-europeu, aqui é usada para
reposicionar a Geografia.
A busca incessante por essa inserção de conceitos e
categorias da Geografia são necessárias às dimensões que definem
e coadunam com o racismo estrutural - o racismo daltônico e o
preconceito, que se reverberam no espaço, e fundamentam a ideia
de evolução no pensamento geográfico. Sempre fomos
invisibilizados como sujeitos, como agentes ou mesmo atores
espaciais, quiçá autores de uma geografia urbana, que trabalhava
(trabalha) a aplicabilidade da teoria da produção do espaço urbano
muitas vezes sem sujeitos, somente sujeitados. Os saberes dos
povos imanentes ao território, julgados como “saberes
tradicionais”, “vernaculares”, em contraposição ao moderno, ao
novo e ao desenvolvimento, na abordagem da Geografia Agrária,
precisa se reposicionar. Falar de sentimento, de fenômenos, das
dimensões psicológicas, “não era fazer Geografia”, e para muitos
ainda não é. Não havia “espaço” para se pensar o lugar, a paisagem
e suas dimensões afetivas. Mulheres e mulheres negras, sobretudo,
não são sujeitos espaciais, “estavam sujeitadas” espacialmente. Não
poderiam existir enquanto corpo, fluído e existência no território,
como campo de forças e relações lógicas. Já a população

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Geografias Pretas

LGBTQIA+4 que até a década de 1990 era tratada como doente,


possuindo CID (Classificação Estatística Internacional de Doença
e Problemas Relacionados com a Saúde) própria, pouco é tratada
nas discussões acadêmicas, ou ainda, pode ser concebida como
manipuladores, atores e sujeitos espaciais. E aqui queremos dizer
que esses espaços estão sendo marcados, por performances,
negras, raciais, femininas e LGBTQIA+, que estão em um campo
cego, porém sendo desvelados, despidos da intolerância religiosa
cristã, branca, heteronormativa, classista, patrimonialista e racista,
“saindo do armário”.
Portanto, busca-se construir proposições para a evolução
de um ente, entre as diversas concepções que são postas da
superação dessa geografia moderna dicotômica, a serviço do
capital e do cientificismo puro. Busca-se entender o propósito das
geo-grafias de (PORTO GONÇALVES, 2002; 2015) e da
metageografia (CARLOS, 2015) e ainda de uma geograficidade,
(DARDEL, 2011) nos seus sentidos provocadores e de rupturas
com as concepções duras, positivistas, mecanicistas, cientificistas
da ciência, e nesse caso com a Geografia.

4 LGBTQIA+ é o movimento político e social que defende a diversidade, busca de mais


representatividade e de direitos para essa população. O seu nome demonstra a sua luta
por mais igualdade e respeito à diversidade. Cada letra representa um grupo de pessoas.
L = Lésbicas (mulheres que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja,
outras mulheres); G = Gays (homens que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo
gênero, ou seja, outros homens); B = Bissexuais (homens e mulheres que sentem atração
afetivo/sexual pelos gêneros masculino e feminino); T = Transgênero (refere-se a uma
identidade de gênero, chamada de “pessoas trans”, elas podem ser transgênero - homem
ou mulher -, travesti - identidade feminina - ou pessoa não-binária, que se compreende
além da divisão “homem e mulher”); Q = Queer (Pessoas com o gênero ‘Queer’ são
aquelas que transitam entre as noções de gênero, como é o caso das drag queens. Ideia
de que a identidade de gênero não é resultado da funcionalidade biológica, mas de uma
construção social.); I = Intersexo (pessoa que está entre o feminino e o masculino. As
suas combinações biológicas e desenvolvimento corporal – cromossomos, genitais,
hormônios etc. – não se enquadram na norma binária - masculino ou feminino). A =
Assexual (não sentem atração sexual por outras pessoas, independente do gênero.
Existem diferentes níveis de assexualidade e é comum essas pessoas não verem as
relações sexuais humanas como prioridade.); e o + (símbolo de “mais” aparece para
incluir outras identidades de gênero e orientações sexuais que não se encaixam no padrão
cis heteronormativo, mas que não aparecem em destaque antes do símbolo).

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Geografias Pretas

A invenção das raças: outras perspectivas socioespaciais


possíveis

Partindo da ideia provocativa, da invenção como ato da


mente humana, é preciso situar que a invenção das raças está ligada
com a história do racismo o das práticas de escravidão realizadas
pelos países europeus. E ela tem data, é concebida entre os séculos
XVI e XVII, quando da expansão marítimo-comercial e o
capitalismo mercantilista, passaram a enxergar o que viria a ser a
África e a América, enquanto continentes. Vinculada a concepção
de raça Rodrigues (1995) aponta a história do racismo, que no
mundo ocidental está associado à escravidão, que é a expressão
mais primitiva do colonialismo, com base na invenção das raças.
Dessa maneira, a escravidão associada à expansão do
capitalismo violento, ao papel do cristianismo católico, a ideia de
civilitude é que se concebe a raça e suas significâncias pejorativas.
Definindo certos povos que foram marcados como não europeus,
mas dominados e governados por europeus. Para Quijano (2005)
a ideia de raça surge com a história de dominação da América e
deve ser colocada como dimensão da modernidade, que coloniza
o saber e os corpos, por conta das referências biológicas atribuídas
aos diferentes povos do novo continente. O enfoque do autor deu
ênfase às diferenças fenotípicas entre os europeus e os não
europeus. O corpo humano é colocado desde o início da história
do racismo, sendo utilizado para se construir uma referência de
estrutura biológica, que diferenciassem as populações.
Quijano (2005, p. 117) mostra como se forjaram as relações
sociais com base na diferença biológica dos corpos, produzindo-se
na “América identidades sociais historicamente novas: índios, negros
e mestiços, e redefiniu outras”, como a ideia de espanhol e português
– concepções que antes estavam vinculadas apenas à origem da
localização geográfica. Observa-se que essas “novas identidades”,
adquiriram uma conotação racial e pautaram relações sociais e de
dominação, de trabalho e de existência nas cidades.

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Geografias Pretas

Nesse sentido, o resgate dessas construções são


necessários, pois entendemos que essa ideia pautaram definições
científicas como a do “darwinismo social” e a própria concepção
de etnocentrismo, pois ao modo em que as relações sociais
configuravam relações de dominação, as identidades foram sendo
hierarquizadas, pautando papeis sociais e lugares de
correspondências espaciais de múltiplas escalas, por isso entende-
se que é necessário reconfigurar as dimensões espaciais, como se
buscou realizar em outras elucidações a partir de realidades.
O padrão de dominação empunhado pelo etnocentrismo,
que pode ser definido por aquele que não era o europeu, é também
pautado nas ideias de dominação da raça e do eurocentrismo. Tudo
o que estava fora do padrão eurocêntrico, fora racializado, assim a
identidade racial fora estabelecida como instrumento de
classificação social básica da população (QUIJANO, 2005, p. 118).
Um contraponto a essa construção histórica que hoje nos
é imputada pela colonialidade do saber, do ser e da natureza; que
dominam nossos imaginários e concepções é a construção da
racialidade com novo significado, como já pontuava o antropólogo
Munanga (2003), pois para ele é necessário ressignificar
etimologicamente a convenção do que se apresentou como raça à
luz da sociologia, e aqui defendemos em uma outra geografia. Para
tanto, buscamos entender a ideia de raça, agora como uma
diferença social entre os diferentes, cinco grupos classificatórios no
Brasil: o branco, o preto e/ou negro, o pardo, o amarelo e o
indígena), considerando a sua pluralidade e sua diversidade.
Dessa maneira, com base na redefinição da raça, em uma
categoria da pluralidade social, cultural, biológica e simbólica, usa-
se a concepção de racialidade para ajudar a compor a ideia de geo-
grafias, com base na redefinição social dos sujeitos sociais, que são
plurais e que construíram diferentes proposituras às suas
existências, extirpando, a partir de suas realidades, categorizações
sociais, definições positivistas que utilizam conceitos puramente
biológicos e menos sociais.

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Geografias Pretas

Categorias para geo-grafias: buscando metanarrativas do


presente

Para tratar das redefinições no pensamento geográfico se


faz necessário avançar para além dessa ciência. Partimos, das
reflexões filosóficas sobre raça, negritude e branquitude de Fanon
(2005), associadas às ideias de “episteme” de Foucault (2018).
Essas duas concepções nos dão um cabedal teórico e reflexivo para
reformular os elementos geográficos que precisam redefinir certas
categorias filosóficas, muitas das categorias científicas, bem como
conceitos na Geografia.
Para pensar e repensar o lugar, o território, a região, a
paisagem e o próprio espaço, urge definir uma agenda, preocupada
em listar, pontuar e priorizar no pensamento geográfico, nos
grupos de pesquisa e no cotidiano do fazer intelectual temas,
questões e pesquisas acerca da raça e da racialidade. Um projeto de
ciência e de desenvolvimento social em que aos corpos negros, à
reprodução da vida da população negra na cidade e ao espaço seja
dada visibilidade racial, a fim de construir e valorar o saber e o ser
do negro.
A discussão da racialidade e da raça está efetivamente
muito distante daquilo que nós do movimento negro de base
universitária estamos tentando construir. Essa afirmação, decorre,
pois em uma rápida pesquisa, você encontra um número pequeno,
de pesquisadores negros, que desenvolvem pesquisas sobre a
condição do ser do negro, bem como acerca da raça, do racismo,
da racialidade e da negritude.
Ainda assim, ao pontuar sobre os efeitos institucionais das
pesquisas produzidas em programas de pós-graduação em
Geografia em todo o Brasil, entre os anos de 1987 e 2018, com a
temática das relações raciais, com foco na população negra, Santos
(2020) revela que os trabalhos com essa temática têm crescido de
forma efetiva na última década. A autora, mostrar que,

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Geografias Pretas

Em relação aos aspectos cronológicos, verificamos um


aumento no número de teses e dissertações em Geografia
que abordam a questão racial a partir do ano de 2003, sendo
que o período com o maior número de produções foi o de
2016, quando foram defendidas 4 teses e 12 dissertações.
Entre 1987 e o ano 2000, nosso levantamento recuperou 3
dissertações e nenhuma tese. (SANTOS, 2020, p. 68).

Os dados da autora, nos ajudam a entender como a


racialidade e a raça enquanto centro de um novo processo
formalizador de episteme na Geografia podem ser capazes de
tornar a discussão acerca do corpo negro, da negritude e até
mesmo do movimento social negro mais profundas. Formalizando
e embasando ações que perpassam por políticas afirmativas, desde
a escala da micropolítica das ações no cotidiano de reprodução e
produção do conhecimento científico, nos cursos de formações,
até na escala macro para produzir uma ciência com corpus e com
diversos produtos sociais, que podem ser inseridos como
descobertas e desenvolvimento social à população brasileira.
Ao nosso entendimento, não é apenas uma “ciência para o
desenvolvimento econômico do ponto de vista do tradicionalismo
moderno-colonial. Trata-se da construção de práticas discursivas,
que darão lugar as figuras epistemológicas das ciências não
formalizadas, por exemplo. Como é que a discussão de raça está
sendo levada e sendo conduzida nas escolas a partir do dispositivo
da Lei nº 10.639/2003; produto da luta histórica do movimento
social negro, e conduzida por professores negros ou não,
sobretudo aqueles mais sensíveis às questões raciais no campo do
Ensino de Geografia.
Em defesa dessas questões e em busca de uma construção
das geo-grafias, relacionou-se, da forma didática, as categorias da
Geografia e sua correlação com o processo de formação
epistemológica, sua possível vinculação com as ideias de racialidade
e seu dimensionamento na contribuição do fazer-pensar e do ser,
não colonizadores dos corpos e da própria Geografia, ou a serviço
da colonialidade.
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Geografias Pretas

O território, definido como categoria geográfica do poder,


tem potência ao ser pensado na escala da micropolítica das relações
do cotidiano, da relação sociorracial, podendo servir como base na
construção de uma significação da ideia de territorialidade humana
(SACK, 1986) que seja preta, quilombola e indígena para ocuparem
os espaços da natureza e do meio urbano. Produzindo
territorialidades já existentes, mas sem reconhecimento, nos
espaços periféricos da cidade, onde predominam a precariedade, a
falta de infraestrutura, a exclusão, a violência e os olhares
excludentes dos outros da cidade sob os corpos “não-padrões”,
mas também a solidariedade e a coletividade que está ligada com
as novas posturas civilizacionais.
Para entender essa proposição, compreendemos que a
territorialidade humana é, portanto, mais bem “forjada” do que
uma mera manifestação instintiva. Sack (1986, p. 19) apresenta essa
territorialidade como uma “[...] tentativa de um indivíduo ou grupo
de afetar, influenciar, ou controlar pessoas, fenômenos, e relações,
delimitando e afirmando o controle sobre uma área geográfica”. A
capacidade de aprender com a coletividade vivenciada nas
comunidades quilombolas, coloca-se aqui como dimensão muito
mais necessária para reelaborar uma solidariedade social e vínculos
sociorraciais, desfeitos com o individualismo, na efetivação de uma
sociedade consumista, em que a corrupção destrói a vida, os
corpos e a natureza.
Uma proposição que se assenta nos ideais de uma
socialização da sociedade, onde se pregue a possibilidade de um
campo de luta contra a lógica individualista e sobretudo da
colonialidade, diferentemente encarnada por um aprendizado que
sinalize para a vida pela coletividade e, especialmente, a vida para a
coletividade. Elas nos mostram que a relação pregada como
utópica, pode ser ferramenta prática, uma proposição de territórios
da coletividade, em que os arranjos sejam mais sociais e culturais,
mais do bem comum e da sociabilidade, da diversidade e do
respeito, da natureza e das cosmologias, mais ancestrais e
simbólicas do que efetivamente economicista.

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Geografias Pretas

Os quilombos, esses locais por excelência, nos quais os


indivíduos vivem para e pela coletividade, potencializando
experiências únicas, que estão distantes da experiência
individualista colonial. Proposições que somadas a concepção de
Raffestin (1993), para quem o território não é somente o espaço
físico, depósito material de recursos, mas é, sobretudo, o resultado
de um programa intencional, isto é, da aplicação de energia e de
informações para a implantação de estratégias adotadas por atores
sintagmáticos – responsáveis pela elaboração e condução de um
programa –, que produzem este território da coletividade; devem
ser regras da reprodução social.
Falar de território, remete-se a territorialidades, e nessa
construção as ideias de Carmo (2006), quando propõe a construção
de “identidades territoriais”, por meio de uma reflexão acerca da
necessidade do território para grupos que foram subalternizados,
mas que possuem o saber do território e suas construções mais
profundas, são essenciais à reformulação de uma geografia. O
espaço não deve ser apenas percebido, é simbólico do ponto de
vista da contemplação e das identidades que lembram das
ancestralidades, das memórias, que são imensamente importantes
do ponto de vista das necessidades existenciais do povo.
Carmo (2006) afirma que os agentes ligados diretamente
com a terra, em suas atividades diárias usam a terra, o terreno e o
terreiro como fonte de recursos, vinculam-se à natureza, com
sentidos sociais psíquicos e emocionais. A concepção de espaço
ultrapassou as definições apenas de uma luta pelo simbólico,
avança para os sentidos da ancestralidade e no âmbito da memória,
para fundamentar suas construções e lutas políticas. Afirma-se que
os movimentos sociais com seus saberes, enxergam e entendem a
necessidade do espaço, como vital, como fonte de recursos, e por
isso, perfaz-se as dimensões territoriais, e fundam seus saberes
territoriais, ao usar, ao trabalhar e ao viver.
Essas ideias não podem estar distantes do processo de
ensino-aprendizagem, precisam estar no chão da escola. Visto que
é na educação básica que se colocam em práticas as vivências como

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Geografias Pretas

pontos de aprendizagem. Não distante do livro didático, como


ainda encontramos discussão sobre racialidade, processo espaciais
e vivências socioespaciais. Nesses materiais, os temas alusivos à
filosofia, à mitologia e ao cotidiano africano e afro-brasileiro
também não estão presentes.
Com o intuito de didatizar e construir esse processo,
destaca-se a necessidade do entendimento por parte dos discentes
da educação básica, por meio de construções cotidianas que
apontam para uma valorização do tema da racialidade. Assim
indaga-se: Quem sabe quando é o Dia da África? Qual real
significado do Dia da Consciência Negra? Apontar o “Dia da
África” 5 como mais um dia no calendário moderno colonial,
dedicado contra o racismo 6 , bem como o Dia da Consciência
Negra 7 ; são movimentos iniciais, porém categóricos da
conformação de novas ontologias, que contribuem para práticas e
metodologias mais acessíveis aos professores, que dialogam com
alunos, possibilitando entender que existe uma real discussão sobre
raça, que influencia na conformação do espaço, no cotidiano e em
dimensões dentro e fora da escola.
São pontos cruciais, passíveis de discussões que precisam
estar no cotidiano, dominando pensamentos, léxicos e práticas
existenciais, que também se expressam na escola e na sala de aula.
Assim, pode-se desobstruir o bloqueio que está no campo do
simbólico, do social e do psíquico, mascarando ainda a discussão
sobre racialidade, com fundamentação jurídica, política e cultural.
Por se ter um discurso que até então chega bloqueado, pois nossos

5 O Dia da África, era conhecido como Dia da Libertação Africana, é comemorado


anualmente em 25 de maio. Celebra o aniversário da fundação da Organização da
Unidade Africana (OUA), desde o ano 2002 substituída pela União Africana. Fundado
no ano de 1963, esse organismo nasceu devido a união de países que lutavam pela
independência da dominação Europeia.
6 Desde o ano de 1966, 21 de março é marcado por ser o Dia Internacional pela

Eliminação da Discriminação Racial.


7 O Dia Nacional da Consciência Negra é celebrado no Brasil em 20 de novembro. Foi

criado no ano de 2003 e incluído no calendário escolar, sendo oficialmente instituído no


calendário nacional, por meio da Lei nº 12.519/2011, sendo feriado em cerca de mil
cidades em todo o país, assim como em cinco Estados da federação.

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Geografias Pretas

imaginários, estão carregados de adjetivos pejorativos, que


desvalorizaram a ideia do negro, da raça, do que seja o quilombo,
o quilombismo e mesmo o imaginário social do negro no país.
Gerações não tiveram e ainda não possuem acesso, na
Escola e em toda sua formação Educacional (Educação Infantil,
Ensino fundamental, médio e superior), ao debate de temas que
envolvem a raça, a racialidade e a negritude. Sem esses discursos
que imprimem novas dimensões e novas concepções, torna-se
impossível produzir outra ciência, outros campos do saber.
Momento esse que quando efetivamente existem, começa-se a
proporcionar às pessoas e à sociedade, um outro mundo, assim
como a capacidade de se reconhecer como negro, e de tornar-se
preto. Proporcionando empoderamento, aceitação e novas ideias
sobre o corpo negro.
Essas práticas permitem começar a formulação de uma
nova episteme na Geografia, onde a racialidade seja o centro dos
múltiplos saberes científicos dentro dessa ciência, rompendo com
as ideias da negritude que perpetuaram ao longo dos séculos.
Rompendo com o pensamento dicotômico que domina geografia,
é o momento de possibilitar um novo pensar: “Se penso, logo
existo!” Como é o pensar e o existir negro? Fora do Eu (imaginário,
belo) branco, hétero, europeu e cristão!
Não mais há sujeição, mas sim os sujeitos negros começam
a ser construídos. A população negra, que está cursando a
universidade e a que não está no ensino superior. São seres
humanos que passam a se sentir parte de um movimento, da
sociedade como um todo, passam a se entender e serem
entendidos, como parte produtiva de uma construção social,
psíquica, simbólica e emocional. O empoderamento e o respeito
criam forças para o engajamento na luta política, por se
entenderem como sujeitos políticos da ação. E é esse sujeito da
ação que deve ser analisado dentro das dimensões categóricas da
geografia, devendo contribuir para o entendimento e para a
construção dessa nova episteme.

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Geografias Pretas

A construção social, psíquica e simbólica se coloca como


dimensões centrais da existência do ser e de sua sociabilidade, ou
seja, a construção de uma nova essência humana são cruciais para
fortalecimento pessoal e social das pessoas. Para isso a dimensão
filosófica que nos possibilita pensar o espaço, como uma categoria
da essência dentro da Geografia, que só pode mudar quando o ser
humano se modifica – o espaço muda conforme o ser se
metamorfoseia.
O espaço, então, como categoria da essência precisa ser
condição para se pensar o negro. Como base dessa condição negra
movimento da vida e da reprodução social que passa a valorizar os
aspectos do cotidiano simples, que agora devem ser pensadas a
partir do corpo e da coletividade do ser negro, que estão para além
do aparente. Se a produção do espaço se perfaz em condições que
não são estudadas, como as práticas políticas dos movimentos
sociais e suas ações como formação de uma geografia política, o
que possibilita entender a multidimensionalidade do poder, como
categoria espacial e da política.
Falar em multidimensionalidade espacial, remete-se ao
poder e ao território, ideias que caminham para traçar outros
horizontes, em que há uma contra hegemonia do poder, pautada
em ancestralidade, cosmogonias, cosmologias, fluidos, na natureza,
forças da floresta e de outros entes. Um conjunto de força e de
energias que conectam os seres humanos, não pelo saldo bancário,
ou pela quantidade de dinheiro ou bens que concentram.
A categoria Região, que não é um “conceito obstáculo”,
pelo contrário, é multidimensional, multidisciplinar e plural do
ponto de vista escalar, da ciência e da ação, coloca-se como um
aporte para a redefinição dos espaços hegemonizados, pois sua
utilização consegue mostrar as diferenciações espaciais provocadas
em escalas menores, pelo conjunto de poderes que se colocam
contra hegemônicos. A diferenciação de áreas caracterizada pela
separação e identificação de diferenças, particularidades, espaciais
não mais engessadas pela dimensão econômica ou industriais, mas
quem sabe um retorno à região natural e ao gênero de vida, com

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Geografias Pretas

destaque à perspectiva, do modo de vida quilombola, indígena ou


dos povos da floresta.
Pensar a região, em uma perspectiva pós-estruturalista nos
termos de Haesbaert (2014), como artefato e artifício, liga-se à
dimensão do quilombismo como define Nascimento (2019), onde
o Brasil negro assume suas raízes étnicas, históricas, culturais que
mudam de acordo com as diferenciações regionais. Para
Nascimento (2019, p. 274) a memória do negro brasileiro deve ser
considerada como parte e participe do esforço para a reconstrução
de um passado, da memória, no qual todos os afro-brasileiros estão
ligados.
Associar tais questões raciais com o pensamento regional
de Haesbaert (2015) consiste em produzir uma região como
realidade empírica, e como recurso analítico, onde a realidade
social e histórica que é construída permanentemente por meio da
dialética da sociedade-espaço e ainda com a cultura-natureza,
considerando aspectos da coletividade, do bem comum e das
relações ancestrais que ligam o presente com o passado e pessoas,
por meio de uma ideia de existência comum. A região aparece aqui
como artifício analítico, produzida por dimensões socioculturais,
econômicas, políticas e pelo modo de vida; define-se também,
como artefato - um objeto artístico (arte), desenvolvido pelos
sujeitos do território, em suas múltiplas territorialidades, vínculo e
ligações com o território (fato).
Pensar em uma região a partir dos elementos da diáspora
africana para o Brasil, nunca fora projetada de acordo com as
conjecturas que começam a se conformar no pensamento
geográfico, pois “ter um passado, é ter uma consequente
responsabilidade nos destinos e no futuro de uma nação negro-
africana, mesmo enquanto preservando a nossa condição de
edificadores deste país e de cidadãos genuínos do Brasil”.
(NASCIMENTO, 2019, p. 275). Dessa noção, que as regiões serão
potencializadas conformando as dimensões dos complexos
regionais e a regionalidade desse país valorizando a noção de
pluralidade racial do país, no pensamento geográfico, que ele sirva

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Geografias Pretas

como base para que nós formulemos outras categorias da práxis.


Categorias que são, objetivamente, a partir da ação de origens de
grupos étnicos e sua chegada ao Brasil, e como foram
sistematicamente excluídos, alocados nas diferentes regiões do
país, por conta de uma divisão sociorracial do trabalho.
Já o estudo sobre as paisagens a partir dos sentidos humanos
pouco se conformam para a população negra e para os negros,
dimensões pouco expressivas no sentido de sua difusão e
manifestação de ocorrência registrada. Assim, quando se entende
que a paisagem perpassa pelo que os sentidos humanos (tato,
audição, olfato, visão e paladar) podem captar, orientam dimensões
que a visão consegue enxergar é uma paisagem, tudo aquilo que
sua audição escuta é uma paisagem. Portanto, tudo que o ser
humano consegue sentir é uma paisagem. Fundamentam questões
cruciais à episteme da Geografia, a partir de duas questões: Como
a população negra enxerga a paisagem da cidade? Como os
quilombolas sentem, escutam e degustam seus territórios?
Fenomenologicamente é necessário identificar: Onde as
performances negras estão? São especializadas? Como as paisagens
negras se produzem nas cidades? Creio que temos poucas
respostas a tais perguntas, pois paisagem, monumento, sentidos e
existências negras foram esquecidas. Elas foram excluídas porque
elas estão dentro de uma dimensão invisível, chamada de campo
cego (LEFEBVRE, 1999), existem, mas foram invisibilizadas,
foram relegadas. Os espaços da periferia, das favelas e das baixadas
que foram relegados aos pobres e erráticos das cidades. Colocam-
se como campo cego, pois existem, mas não são estudados como
potências, como realidades que expressam sentimentos, existência
e carregam saberes.
Um campo cego, pois é pensado pelos de fora, suas
populações são tratadas como “agentes sociais excluídos”,
marginais, subalternizados. Esses espaços precisam estar
visivelmente como dimensão de uma utopia ou ainda heterotopia,
plural valorada e cheia de informações, relações, sentidos, fluidos,
energias e ideias que modificam o mundo.

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Geografias Pretas

Esse campo cego, aos termos de Lefebvre (1999) é bastante


conhecido entre os motoristas de automóveis, é o ponto cego, o
responsável pelos acidentes de trânsito. Sendo ainda exposto por
uma definição do que seria o espectro do visível, que está dentro e
pertence ao campo do saber e do existente, que reproduz ao
mesmo tempo o invisibilizado. Corpos negros na cidade, onde
estão? Quais são suas performances? Em que campo estão: do
visível, do invisível ou do invisibilizado?
As referências dos aspectos e das representações negras até
estão sendo projetadas mais recentemente. Porém as performances
de homens e mulheres negras são ínfimas diante dos espaços
ocupados e de representação do corpo negro. Daí a necessidade de
construir um sentido filosófico da condição negra no aparente das
paisagens, no aparente do meio físico, mas também entender como
se dão tais concepções na essência de suas produções culturais,
artísticas, sociais e políticas. Não considerando o aparente como
resíduo, mas como autêntico, real, capaz de dar corporeidade
fundamental, como potência forte que nunca apareceu. Que
sempre esteve colocada na condição de subalternidade, excluída,
periférica e marginalizada. Que só aparecem como figuras
ilustrativas ou como alegorias, como são colocados os indígenas,
por exemplo. Instrumentos alegóricos em períodos de carnaval e
no (dia do índio) dia dos povos indígenas.
Essas são dimensões que não servem à construção de uma
episteme, ou seja, ao conjunto de pensamentos que incluam e deem
sentidos para entender e construir uma paisagem negra e da
racialidade. Que o aparente seja plural, ou a paisagem cultural, a
paisagem social, ou ainda dos elementos que contribuam para essa
dimensão, que não sejam tratados como residuais, mas sim como
categorias da essência, pois a aparência liga-se com ela, colocando-
os como duas características de igual contribuição à episteme
geográfica. O fenótipo só existe na biologia porque existe o
genótipo. A biologia nunca estuda o fenótipo separado do
genótipo. Então é como, se fossemos ver os nossos trabalhos

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Geografias Pretas

dentro dessa perspectiva geográfica, ela tivesse se vinculado a uma


dimensão entre essência e aparência.
A necessidade de discutirmos o conhecimento geográfico
que inclui a racialidade, coloca-se como dimensão, que atribui
sentidos aos trabalhos acadêmicos, no século XXI.
Questionamentos e indagações ainda sem respostas, tais como:
Qual é o sentido da existência negra na cidade e na periferia? Como
os corpos negros estão marcados, marcam, na/a produção do
urbano? Para partir dessas preocupações ao que é o essencial. Para
que as pesquisas dos discentes e professores dessa Geografia negra,
da periferia há sentido e reconhecimento, por expressarem outras
formas de enxergar a cidade. Sendo possível afirmar e dizer que é
possível discutir e estudar essas tendências de trabalho que incluem
a racialidade.
Em relação a categoria lugar, creio que ela deva aparecer
aqui como a categoria mais potente para se estudar a racialidade no
pensamento geográfico, e para revolução a sua episteme. Incluí-la
e repensá-la é possibilitar um maior desenvolvimento, que é
necessário a quem já vem tentando trilhar em suas pesquisas com
o uso da ideia de “raça e a racialidade” na discussão. A concepção
de identidade, de pertencimento e dos pontos de manifestação da
cultura negra, bem como de sua arte, atribui sentido e existência à
categoria lugar, são atributos que permeiam a condição de forma
de reprodução da vida cotidiana.
As comunidades quilombolas, as periferias, os guetos, as
baixadas, as comunidades e as favelas devem ser consideradas
lugares de identidade territorial negra, por resvalarem
pertencimento entre suas populações e estabelecerem relações de
poder e identidade, conformadas por populações pardas e negras,
em sua grande maioria. Da ancestralidade quilombola ao trabalho
coletivo e da coletividade nas comunidades urbanas aos cuidados
com as suas áreas de moradia, com seus vizinhos e seus vínculos,
os ligam com o lugar, produzem “lugaridade”, lugar e identidade
para produzirem movimentos de existência, que resiste.

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Geografias Pretas

A categoria lugar, com a sua ideia de dimensão de essência


e de representatividade e de referência se constrói a partir das
manifestações representativas, dos imaginários sociais e religiosos,
com destaque às práticas religiosas de matriz africana que estão
presentes no quilombo, assim como na periferia das cidades,
criando os lugares da hierofania com as expressões das religiões de
matriz afro, tais como: as encruzilhadas, os rios, as praias, as
cachoeiras, florestas ou resíduos delas, que podem ser encontrados
nas cidades.
São grandes trunfos para estudarmos e incluir efetivamente
como um uma episteme que (des)envolva o pensamento
geográfico menos intolerante, mais laico e plural. Começa-se a
possibilitar uma condição à existência do negro, seja na cidade, seja
no campo, tais como as identidades territoriais e os sujeitos
territoriais concebidos pelo pensamento das geo-grafias de Porto-
Gonçalves (2015), devem falar por eles, seus lugares de fala,
próprios, não precisam ser identificados ou rotulados, apenas falar.
A concepção de “lugar de fala” pode ser ampliada com a
ideia da “fala do território”, e ainda a “fala do lugar”. Como essas
comunidades precisam de reconhecimento e, na verdade, elas só
precisam fazer ecoar suas vozes. Ou talvez não precisem; nós é que
vamos tentar colocar uma espécie de contribuição nossa no
desenvolvimento de ciências e de conhecimentos daquilo que nós
não temos, e essas comunidades carregam de forma extraordinária.
A categoria lugar vai potencializar a existência da
resistência da população negra. A resistência das populações
mestiça, cabocla, ribeirinha, sobretudo, da localizadas na região
Amazônica, porque o lugar de existência é de r-e-existência, para
nós também, como lugar da mais forte episteme, porque ele se
reproduz como campo do conhecimento das populações, sempre
estão adiante da sua realidade, explica-se, deixa-se, possibilita a sua
compreensão.
A forma de episteme significa uma abertura de campo
inesgotável de estudo, que aí vai para além da construção de
postulados, concepções e conceitos fechados. A episteme de uma

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Geografias Pretas

geografia menos colonizadora, sairemos da condição de


subalternos, que está dento de um processo de formação do
pensamento científico moderno-colonial.
A necessidade é contribuir para protagonizar as populações
com práticas, discursos, e dimensões socioespaciais negras. A
concepção de um corpus científico que seja plenamente vinculado
às vivências quilombolas, ribeirinhas, dos saberes territoriais e das
comunidades que produzem um conjunto de artifícios para
lutarem pela sua sobrevivência

Para Não Concluir

Não queremos concluir esse texto, pois temos a concepção


que ele é ensaístico, os temas que aqui se ancoram, não foram
esgotados, apresentamos ideias que mesmo não podem ser
esgotadas. Construímos de maneira objetiva e subjetiva, pois, aqui
se expõe um pensamento de base preta, um pensamento negro,
proposições para uma geografia negra. Uma possibilidade de se
teorizar sobre o sentido da ciência atual: branca, heteronormativa,
classista, cristã e intolerante.
Propusemos a conformação de uma episteme com um
outro corpus à Geografia. Queremos metaconceitos e
metanarrativas com base em uma metafilosofia e uma
metageografia no entendimento da nossa condição socioespacial,
possibilita formar geo-grafias. É o termo e esse desenhos, grafias,
descrições do espaço, da terra mais plurais, menos densa, e quem
sabe com concepções porosas.
Compactuando para uma episteme que provoque um novo
pensamento filosófico, que conduza para reflexões à construção de
uma sociedade que enxergue a população negra como centro das
relações de produção, da infraestrutura social e cultural, sujeito da
política e da sociedade. É necessário se acostumar com
professores, médicos, juízes, policiais, engenheiros, cientistas e
empresários negros, para que a referência e as metanarrativas sejam
racialmente, negras.

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Geografias Pretas

É necessário ainda pensar em heróis negros, não apenas


dos idealizados pela ficção, mas que estão no nosso cotidiano da
casa, do feirante, do feirante e de atividades invisibilizadas, que
assim potencializam com novas possibilidades literatas, faltam
ideias e mitologias africanas, com referências e matrizes negras. A
Geografia tem um papel interessante para elas a partir do estudo
das categorias, fomentar um imaginário, que não seja apenas dessa
mitologia branca, de uma branquitude total, mas também estamos
em escalas que deixaram lá.
Dessa maneira, na concepção de campo cego do Lefebvre
(1999) porque entre o céu e o inferno, entre o branco e o preto,
entre o homem e a mulher, entre o rico e o pobre, concepção que
trabalha Fanon (2008) ao dizer que a branquitude e a negritude, são
concepções que andam juntas, porém uma excluiu a outra, parece
que é um processo de evolução sair da negritude e ir aos processos
de branquitude, como se formam processo de desenvolvimento
social.
As ideias de Fanon (2008) atribuem potencialidade para o
pensamento de um novo campo de pesquisa mais amplo em que
as formas de representações consigam fazer outra construção
social. Afirmamos isso, pois autores renomados, mesmo buscando
construir uma geografia do século XXI, ainda trazem e produzem
invisibilidades às lutas negras, no Brasil e no Mundo. Assim, em
um trecho da obra de Vesentini (2013, p. 222), o autor afirma que,

[...] estamos vivenciando uma transição de uma geografia


tradicional escolar para uma(s) critica(s). Aquela primeira
seria descritiva e mnemônica, alicerçada no paradigma “a
Terra e o Homem”, com uma sequência predefinida de
temas: estrutura geológica e relevo, clima, vegetação,
hidrografia, população, economia; e a última, a(s)
geografia(s) crítica(s), vem se expandido no Brasil a partir
dos anos [19]80. [...] muitos professores de geografia, em
especial do ensino médio – e o Brasil talvez seja o grande
exemplo disso -, já praticavam em suas aulas uma geografia
escolar diferente da tradicional, com novas estratégias

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Geografias Pretas

debates e/ou trabalhos dirigidos em vez de apenas aulas


(expositivas, trabalhos de campo em áreas carentes,
interpretação de bons textos críticos etc.) e com novos
conteúdos (distribuição social da renda, a pobreza no
espaço, os sistemas socioeconômicos, o
subdesenvolvimento, etc.) (VESENTINI, 2013, p. 222).

Como podemos observar para o movimento de crítica da


geografia, as geografias críticas, envolvem apenas a distribuição da
economia (deveria ser a má), a pobreza na periferia e os problemas
nos sistemas econômicos. Não entram nesses debates as questões
de raça, racialidade e dimensões étnicos raciais. Assim sendo, não
são citadas e não fazem parte da nova roupagem que seria uma
geografia crítica.
As construções sociais, e demais contribuições efetivas
negras, que contribuem para pensar outra sociedade, para embasar
outra sociedade não entram em discussão. Não é uma geografia da
pluralidade social, e sim dos sistemas econômicos. Não possui um
conjunto de ideias e um conjunto de desenvolvimento social que
devemos ter, possuindo sim um conjunto de regras econômicas,
sociais e geopolíticas.
Em uma pesquisa sobre as pesquisas nos Programas de
Pós-Graduações em Geografia (PPG’s) Oliveira (2014) apresentou
um balanço problemático sobre os temas trabalhados em teses e
dissertações, que os discentes e docentes pesquisadores realizam
dentro dos PPG’s de Geografia no país. Semelhante indagação
realizaram Pinto e Silva (2019), adjetivando os conteúdos e atores
como hegemônicos, que são trabalhados e publicados por essa
geografia que se diz crítica, mas sem fazer sua crítica, desde a
década de 1970, como ressalta Santos (2007).
Por fim, pegamos ainda, o destaque do trecho de Vesentini
(2013, p. 223), quando menciona acerca da discussão racial, diz que
“as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos”, afirmando que
é “[...] o mais conhecido e famoso deles, foi o Movimento
dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, compreendido
entre 1955 e 1968 [...], um movimento que consistia em conseguir
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Geografias Pretas

reformas para abolir a discriminação e a segregação racial naquele


país. Ressaltamos que o autor até fala que a geografia crítica se
entrelaçou com os movimentos sociais e a luta pela ampliação dos
direitos civis e principalmente sociais, pela moradia, pelo acesso à
terra ou à educação de boa qualidade, pelo combate à pobreza, aos
preconceitos de gênero, de cultura/etnia e de orientação sexual etc.
Urge começarmos a produzir uma geografia descolonizada.
Em que as cátedras não sejam fechadas aos negros, aos indígenas,
aos quilombolas, ao ribeirinho, ao pescador, caiçara, beiradeiro e
aos sujeitos da periferia. Não precisamos de cátedras, precisa-se de
uma ciência que explique a vida, seja pela vida, pela inclusão social,
acadêmica, dos deficientes, dos diferentes.

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Geografias Pretas

MOVIMENTO QUILOMBOLA E
POLÍTICA DE ESCALAS: GEO-GRAFIAS
DAS LUTAS HISTÓRICAS1

Gabriel Romagnose Fortunato de Freitas MONTEIRO

Introdução

A questão quilombola se faz presente na


contemporaneidade diante de múltiplos processos, a saber: Em
primeiro lugar, podemos afirmar a retomada da sistemática
ofensiva contra quilombolas, indígenas e demais povos e
comunidades tradicionais no Brasil, seja pela precarização nos
processos de titulação, seja pelo descaso e falta de amparo no
direcionamento dos investimentos e das políticas públicas para
estes territórios, ou ainda pela brutalidade da violência cometida
por pistoleiros, fazendeiros, agentes do Estado, empresários, e
tantos outros, a estes povos.
Em segundo lugar, a contraofensiva da resistência
quilombola, movimento que se articula e se organiza através das
redes políticas de resistência e de solidariedade, com a produção de
políticas de escalas, tanto entre si (comunidades, associações,
comissões, coordenações, juventude quilombola, griôts, mulheres
quilombolas, saúde etc.), quanto na relação e coparticipação com
outros povos, movimentos, comunidades, universidades,
coletivos, instituições e organizações não governamentais em prol
dos objetivos coletivos.
Em terceiro lugar, a produção e a proliferação de estudos e
pesquisas acerca da questão quilombola é crescente em várias áreas
do conhecimento a partir das comunidades quilombolas e do
movimento quilombola, sendo a Geografia uma delas. Ciência esta
que nas recentes décadas se debruça e captura a compreensão das
espacialidades e das geograficidades dos movimentos sociais. Nas

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50
Geografias Pretas

diversas áreas do conhecimento, assim como na Geografia, os


estudos são variados e versam sobre inúmeros temas: desde o
âmbito da educação diferenciada quilombola, da afirmação e
reafirmação cultural, das territorialidades e dos processos de
territorialização, dos conflitos territoriais, da produção e da difusão
de saberes orais, das formas de organização e de articulação, dos
conhecimentos das plantas e ervas que envolvem a cura, das
formas de manejo do solo e do debate da soberania alimentar
agroecológica, entre muitos outros.
Visualiza-se, portanto, um grande mosaico nessa seara
(prática e epistemológica), cujos estudos se voltam a compreender
o processo de aquilombamento frente ao contexto
contemporâneo, mas recuperando as múltiplas historicidades
quilombolas. Desde o processo de redemocratização e
promulgação constitucional, é assegurado por Lei, o direito de
propriedade coletiva das terras e territórios às comunidades
quilombolas. Posteriormente, a regulamentação desses direitos por
decretos e leis federais, estaduais e municipais, com
desdobramentos por inúmeros programas e projetos institucionais,
durante um período de aproximadamente quinze anos, consolidou
políticas efetivas direcionadas aos quilombolas.
Essas conquistas são fruto das lutas históricas do
movimento negro e do movimento quilombola, cujo Estado se
configura enquanto uma das arenas de disputas ocupadas para o
tensionamento e para a promoção de ações efetivas e concretas. O
resultado foi o fortalecimento do movimento, bem como a
construção e expansão da identidade auto identificada. Assim, o
quilombo é acionado como símbolo da resistência negra
constantemente.
Vistas como “remanescentes”, tal qual afirma a legislação,
no contexto contemporâneo, as diversas fontes apontam para, pelo
menos, seis mil comunidades quilombolas em todo o território
nacional. Processos esses complexos, marcados pela des-re-
territorialização, muitas das vezes descontínuos e descontíguos. O
movimento quilombola é um movimento que possui um

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Geografias Pretas

repertório e uma trajetória de larga duração e, diante desta primeira


aproximação, nos cabe perguntar: Como compreender os
movimentos socioespaciais e socioterritoriais que possuem larga
duração? Quais processos geohistóricos estes enfrentaram? Quais
ações, nas suas táticas e estratégias de r-existências, foram criadas?
Como produzem as “políticas de escalas” nos processos de
resistências contemporâneos?
O presente texto tem como objetivo discutir essas
questões, tomando como centralidade o que estamos chamando de
movimento negro quilombola brasileiro, a partir das suas
trajetórias de lutas, que são de largas duração. Colocam-se contra
o racismo estrutural e estruturante na produção e na organização
dos espaços e territórios, cuja espoliação e expropriação das terras
e de seus territórios é uma de suas faces.
Portanto, o artigo está dividido em duas partes:
primeiramente, discutiremos as trajetórias das geo-grafias dos
quilombos na larga duração, que envolve a luta em múltiplos
processos e contextos geohistóricos na relação passado-presente.
Posteriormente, adentraremos na análise das “políticas de escalas”
como potência da prática espacial, elemento que vem sendo
mobilizado pelo movimento quilombola através da sua ação,
pautas e estratégias.

Por uma necessidade de contextualização: a trajetória dos


quilombos na larga duração

O texto em questão se coloca como um esforço crítico e


reflexivo a partir da relação e da leitura possível entre Movimento
Quilombola e as chamadas “Política de escalas”, um instrumento
teórico-conceitual e metodológica para o tratamento e
compreensão do problema.
Nos processos geohistóricos das lutas políticas e
simbólicas e na construção das estratégias para formulação de uma

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Geografias Pretas

agenda e de uma agência antirracista2, ambas pautadas pelo


Movimento Negro Quilombola brasileiro, acionamos sua
pluralidade de lutas e ações contra projetos de sociedade
hegemônicos, historicamente impostos, desde a formação
territorial do Brasil. No contexto colonial da produção e
organização de uma sociedade amparada pela lógica escravista, os
quilombos colocam-se como grandes símbolos de resistência,
produzindo contra-espaços (MOREIRA, 2006) frente a uma
sociedade disciplinar marcada pela Bio-necropolítica (MBEMBE,
2018). Tais comunidades ficaram também conhecidas como
mocambos e posteriormente quilombos, termos esses oriundos da
África Central, usados tanto para designar os acampamentos
improvisados, utilizados nas guerras, quanto aos guerreiros
imbamgalas (jagas) em seus ritos de iniciação (GOMES, 2015).
Para compreender tais dimensões, Munanga (1995) nos
afirma que:

O quilombo é seguramente uma palavra originária dos


povos de línguas bantu (Kilombo, aportuguesado:
quilombo). Sua presença e seu significado no Brasil têm a
ver com alguns ramos desses povos bantu, cujos membros
foram trazidos e escravizados nesta terra. Trata-se dos
grupos lunda, ovimbundo, mbundu, Kongo, imbangala,
etc., cujos territórios se dividem entre Angola e Zaire
(MUNANGA, 1995, p. 58 - grifo do autor).

Resistências e insurgências foram configuradas desde os


primeiros africanos que aqui chegaram (tanto no que se

2 Trata-se da agência antirracista, a construção de repertórios, táticas e estratégias


acionados nos processos de luta às questões que envolvem um problema sociohistórico-
espacial, nesse caso especificamente, o racismo estrutural-estruturante e institucional,
cujo Movimento Negro Quilombola cria mecanismos que combatam o racismo na
sociedade brasileira. Esta agência torna público tal problema por meio dos diversos
agentes antirracistas e está presente em diversos campos a saber: jurídico, político,
educacional, ambiental, cultural, midiático econômico etc. Neste sentido, a agência
antirracista se dá nas diferentes frentes de combate, mobilizando e educando a sociedade
para refletir e questionar sobre tais questões.

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Geografias Pretas

denominou de “Américas”, quanto no “Brasil”), através de


inúmeras formas de protestos e reivindicações, ora individuais, ora
coletivizados. Dentre estas, podemos elencar as rebeliões,
insurreições, fugas, assassinatos dos senhores de engenho, a
morosidade na execução de tarefas, greves de fome, suicídios, entre
outros, aos quais “[...] se misturavam com a intolerância dos
senhores e a brutalidade dos feitores. Chicotadas, açoites, troncos
e prisões eram rotineiros. Assim como as notícias dos fugitivos
[...]” (GOMES, 2015, p. 9). A ordem estabelecida se expressava na
configuração de um regime de poder, que envolvia a calculada
brutalidade e o terrorismo (JAMES, 2010) contra os africanos
escravizados e indígenas.
As ações de resistência e de protestos mais comuns, porém
não únicos, ao sistema escravista foram as fugas das senzalas.
Extremamente difíceis para sua execução, uma vez que as formas
de repressão e violência do sistema eram extremamente opressivas
e rapidamente acionadas. Aqueles que escapavam (em grande
parte, coletivamente) formavam comunidades, procurando meios
para criar uma estrutura com base política, econômica e social
própria (GOMES, 2015), que visava a inserção e organização de
um sistema de produção, repartição e sociabilidade mais igualitária
“[...] sendo, com isso, um modelo alternativo de sociedade que
engendrava um confronto com o modelo escravista” (SANTOS,
2012, p. 651).
O quilombo, enquanto espaço de resistência, com origem
e inspiração africana e ressignificado no Brasil, foi capturado pelas
forças repressoras e transformado em espaços de “negros fugidos”
da escravidão, na linguagem do colonizador (FERREIRA, 2012).
Enquanto espaço de resistência, o quilombo não interessava ao
colonizador, pois essa resistência se fazia em relação ao sistema
escravista. O que justificava a perseguição e a captura dos
quilombos/quilombolas era justamente o fato de serem resistência
à ordem dominante.
Dessa forma, podemos mencionar o fato de que o primeiro
Estado livre das Américas existiu no Brasil. Trata-se da República

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Geografias Pretas

Negra de Palmares, primeira tentativa brasileira de uma sociedade


verdadeiramente democrática e igualitária, durante o período de
um século (1595-1695), na antiga capitania de Pernambuco.
Conforme a intelectual e militante Lélia González (1982, p. 91) já
apontava: “(...) Palmares foi o berço da nacionalidade brasileira”,
cuja língua oficial era “pretuguês”.
A colonialidade do poder (saber, ser e da mãe-natureza)
articulou uma trama de relações socioespaciais complexas e
contraditórias, baseadas na racionalidade ocidental (uma razão
indolente) que operava, desde a constituição do projeto de
modernidade, ou seja, desde a constituição do sistema-mundo
moderno-colonial, por lógicas binárias e por monoculturas – do
saber e do tempo-[espaço] linear (SOUSA SANTOS, 2002; 2006;
HAESBAERT e PORTO-GONÇALVES, 2006, grifo nosso).
Nessa premissa, quatro elementos, fundamentais,
compõem a base do padrão do mundo moderno-colonial, em uma
gama de relações articuladas entre si: i) a colonialidade do poder –
centrado na ideia de “raça” como classificação social universal; ii)
o capitalismo e seu padrão universal de exploração social; iii) o
Estado, como forma central universal de autoridade coletiva e o
Estado-nação como variante hegemônica; e iv) o eurocentrismo,
como forma hegemônica de controle da
subjetividade/intersubjetividade, no modo de produzir
conhecimento (QUIJANO, 2002). Nesse sentido, a colonialidade
instituiu um pacote de hierarquias globais3 (GROSFOUEL, 2006)
e determinou a propriedade da terra como mercadoria de privilégio
(tanto no campo, quanto na cidade) voltada para o homem branco
e seus fidalgos.
Desse modo, o legado da escravidão para a branquitude e
branquidade brasileira se configurou por meio da expropriação e
espoliação das terras e territórios indígenas e quilombolas,
constituída a partir dos múltiplos privilégios: desde uma herança
simbólica e concreta positiva aos benefícios concretos e

3 Grosfoguel elenca o pacote de hierarquias globais, a saber:

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Geografias Pretas

simbólicos, ambas ancoradas nos sujeitos raciais brancos em


detrimento da população negra e indígena (BENTO, 2002;
CARDOSO, 2008). A Lei de Terras de 1850 é prova cabal da
privatização e concentração das terras à minoria branca.
Por outro lado, houve (e ainda há!) um conjunto de
movimentos socioespaciais e socioterritoriais (FERNANDES,
2000; 2005) que lutaram em diferentes contextos4 pela abolição da
escravatura, pela dignidade humana e pelo direito de viver em seus
territórios. Dentre eles, podemos citar o Movimento Abolicionista:
movimento político e social que defendeu o fim da escravidão no
Brasil na segunda metade do século XIX e contou com a
participação de vários segmentos sociais (políticos, advogados,
médicos, engenheiros, jornalistas, artistas, estudantes etc.), na
figura de Rui Barbosa, José do Patrocínio, Luís Gama, Joaquim
Nabuco, André Rebouças, Francisco José do Nascimento, Tobias
Barreto, Ângelo Agostini, Castro Alves entre outros. Boa parte
desses sujeitos eram negros.
Pode-se afirmar que, em todos esses contextos (desde o
século XVI) os quilombos existiram, a partir da ocupação,
produção e organização próprias, mesmo com diversas dinâmicas
e origens e com diversas nomenclaturas atribuídas, tais como: as
“terras de preto”, “terras de santo”, “terras de índio”,
“comunidades de senzala”, comunidades negras rurais, entre
outros. Somente para citar as terras tradicionalmente ocupadas
mais comuns (ALMEIDA, 1989; 2002). A maior expressividade se

4 “Em virtude de uma grande seca no Nordeste e principalmente no estado do Ceará,


entre 1877 e 1879, toda a produção do estado foi desorganizada, matando de fome, cólera
e de varíola um quarto da população. Assim os proprietários escravistas buscaram vender
seus escravizados para os fazendeiros do Sudeste que produziam café, mas era necessário
embarcá-los no porto de Fortaleza. As sociedades civis engajadas na luta abolicionista,
desde 1880, como a Sociedade Cearense Libertadora, tiveram enquanto um dos seus
maiores representantes o jangadeiro Francisco José do Nascimento, conhecido como
Dragão do Mar, impediram o embarque de cativos, bloqueando o porto, sob o slogan
“no Ceará não se embarcam escravos”. Esse movimento forçou a abolição da escravidão
no Ceará em 1884, como primeiro estado a abolir a escravidão, quatro anos antes do
restante do Brasil”. Fonte: <http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/francisco-
josedonascimento>. Acesso em: 20 de mai. 2021.

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Geografias Pretas

deu nos espaços rurais, todavia, tanto no passado, quanto no


presente, os quilombos urbanos existem.
No século XX, uma das primeiras organizações a exigir a
igualdade e participação dos negros na sociedade brasileira foi a
Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em outubro de 1931 na
cidade de São Paulo e sob a liderança de Arlindo Veiga dos Santos,
José Correia Leite e outros. A organização desenvolvia diversas
atividades de caráter político, cultural e educacional para os
associados. Palestras, seminários, cursos e oficinas diversas,
promovia festivais de música e maior integração da população
negra (IPEAFRO, Acervo Digital)5.
A emergência do significado de quilombo para o
movimento socioespacial e socioterritorial negro vem sendo
construída e apropriada desde a criação do Jornal O Quilombo e do
Teatro Experimental do Negro6 (TEN), ambos idealizados e
produzidos por Abdias Nascimento na década de 1940. Outras
ações e propostas de sociabilização existiram, tais como: os clubes
negros, as escolas de samba, a impressa negra, os coletivos negros
etc. Surgiram e perpassaram por todo o século XX, cujos debates
e discussões sempre tiveram foco no enfrentamento ao racismo e
na proposição de ações voltadas para o empoderamento da
população negra, como a valorização e o fortalecimento da
identidade negra e as reivindicações do direito à educação, ao
trabalho, ao território, à vida e à dignidade humana. No final da

5 O principal propósito era discutir o racismo, promover melhores condições de vida e a


união política e social da “gente negra nacional”, produzindo escalas em diversos estados:
Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Espírito Santo e Rio Grande do Sul (IPEAFRO,
Acervo Digital).
Fonte: < http://ipeafro.org.br/acervo-digital/documentos/antecedentes-
do-ten/frente-negra-brasileira/>. Acesso em: 05 julh.de 2019.
6 “O Teatro Experimental do Negro (TEN) surgiu em 1944, no Rio de Janeiro, como

um projeto idealizado por Abdias Nascimento (1914-2011) inspirado na Frente Negra


Brasileira (da qual fez parte), com a proposta de valorização social do negro e da cultura
afro-brasileira por meio da educação e arte, bem como com a ambição de delinear um
novo estilo dramatúrgico, com uma estética própria, não uma mera recriação do que se
produzia em outros países”. Fonte: Fundação Cultural Palmares:
<http://www.palmares.gov.br/>. Acesso em: 10 jan. 2020.

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Geografias Pretas

década de 1970 a proposição de uma “resistência negra” foi


sistematizada por diversos grupos de estudos e entidades,
sobretudo com a fundação do Movimento Negro Unificado contra
a Discriminação Racial (MNU) em 07 de julho de 1978, na cidade
de São Paulo.
Desde então, o Movimento Negro propôs a eleição do dia
20 de novembro – data em que se registra a morte de Zumbi dos
Palmares, líder do Quilombo dos Palmares – como Dia Nacional
da Consciência Negra, alternativo ao 13 de maio – cuja assinatura
da Lei Áurea se deu pela princesa Isabel e marcava um
deslocamento do protagonismo negro. Assim, o dia 20 de
novembro, passou a ser enfatizado com eventos anuais e
incorporado ao calendário escolar, insistindo que os livros
didáticos incorporassem a história do negro e, em especial, do
Quilombo de Palmares (ARRUTI, 2008).
Abdias Nascimento ao publicar o livro “O Quilombismo”
em 1980, “buscava dar forma de tese “histórico-humanista” ao
quilombo, tornando-o como movimento social de resistência física
e cultural da população negra (...)” (ARRUTI, 2008, p. 7). Assim,
“Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer
reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão
existencial” (NASCIMENTO, 1980, p. 263).
Diante dessa ressemantização, os usos da interpretação do
quilombo se multiplicaram em diversas manifestações populares -
música, carnaval, literatura e cinema - como também na Igreja, a
partir da realização da Missa dos Quilombos em 20 de novembro
de 19817, na cidade de Recife, estado de Pernambuco, com
posterior realização em inúmeras cidades do país; e no
tombamento de monumentos negros, como o Terreiro de

7 A Missa dos Quilombos foi apresentada para um público de oito mil pessoas e teve o
repertório musical de Milton Nascimento. Na celebração, os representantes da Igreja
saíram às ruas de Recife se penitenciando e pedindo perdão aos crimes históricos
cometidos desde a escravidão. Posteriormente, a realização da Missa Afro-inculturada se
deu em múltiplas outras cidades, a exemplo do Rio de Janeiro, realizada no Armazém da
Utopia pela Companhia Ensaio Aberto em 2012.

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Geografias Pretas

Candomblé da Casa Branca, em Salvador na Bahia; e a Serra da


Barriga – União dos Palmares, em Alagoas (ARRUTI, 2008).
No campo acadêmico, tais ressemantizações surgem
através de estudos antropológicos sobre Comunidades negras
rurais ao longo dos anos de 1980. Alguns estudos seguiam a
tendência de projetar à tais comunidades a metáfora de quilombo,
outros à busca por africanidades, levado ao texto Constitucional8.
Nesse cenário, será no processo de reabertura política na
década de 1980 que o Quilombo voltará a ser mencionado no
discurso oficial do Estado Brasileiro e ganhará um salto escalar em
sua narrativa. A incorporação e disseminação do significado de
resistência pelo Movimento Negro foram chaves fundamentais para
refletir sobre “a reparação dos danos provocados pela escravidão
negra e a necessidade de se reconhecerem direitos singulares aos
afrodescendentes e de incorporá-los à Carta Magna” (FERREIRA,
2012, p. 647, grifos da autora). A partir desse momento, ocorreram
significativas revisões historiográficas e das ideias nos meios
acadêmicos, especialmente nas áreas das Ciências Humanas e na
educação (ANJOS, 2004).
Na mesma esteira, o Movimento Quilombola, vem desde
o “I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas”, realizado durante a Marcha Zumbi dos Palmares,
posicionando a questão quilombola como luta em defesa dos seus
territórios, destacando a dimensão das historicidades e
geograficidades como fio condutor da r-existência contemporânea
(PORTO-GONÇALVES, 2006; 2012). A emergência das políticas
públicas de reconhecimento e redistribuição voltadas para as

8 Interessante notar que, segundo Arruti (2008, p. 9), o processo de construção do texto
do artigo oscilou muitas vezes entre uma aproximação com as terras indígenas, ou de uma
espécie de usucapião especial, ou mesmo, um modelo de patrimônio. Por fim, na aprovação do
texto Constitucional, a redação foi extremamente sucinta e não avançou sobre os debates
realizados. Faltou uma explicitação dos critérios que definiriam estes sujeitos, que não
ficaram claros – o que abriria margem para uma série de interpretações e desqualificações
do reconhecimento de direitos coletivos. A questão fundiária foi exilada no corpo dito
“transitório”, ignorando-a como possibilidade de reforma agrária. Fala-se em
propriedade da terra, mas dispensa-se a historicidade dos grupos aquilombados.

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Geografias Pretas

comunidades negras como pauta das reivindicações ganharam


força e expansão. Nesse contexto, é criado no encontro a
Comissão Nacional Provisória das Comunidades Rurais, que
enseja novas demandas acerca do reconhecimento legal de direitos
específicos, gerando proposições legislativas em âmbito federal e
estadual (CONAQ, s/d). Já em 1996, no Encontro de Avaliação,
foi criado oficialmente a Coordenação Nacional de Articulação de
Quilombos (CONAQ), substituindo a que estava provisória e
constituindo-se enquanto entidade do movimento social que
capitania e mobiliza, em escala nacional, as Comunidades
Quilombolas.
Nesse período, durante a década de 1990 e após a
promulgação do Artigo 68 da Constituição Federal, as
comunidades denominadas como “terras de preto”, “terras de
santo” e “comunidades de senzala”, começaram a se apropriar da
legislação e a disputar, junto a acadêmicos e juristas, a
ressemantização do termo, com o objetivo de também ser
contempladas pelo dispositivo jurídico. Este fato gerou um amplo
debate na academia, associações de estudos e pesquisas e na
sociedade civil em geral, cuja “ressemantização” e alargamento
conceitual para captura efetiva da realidade, foram discutidos
(ARRUTI, 2008).
Em 1995, ocorre a titulação da primeira comunidade
quilombola no Brasil, após mais de trinta anos de luta para esta
concretização. Trata-se da Terra Quilombola Boa Vista, no
município de Oriximiná, no Estado do Pará, abrindo caminho para
outras titulações ainda no final dos anos 1990.
A partir dos anos 2000, ocorre uma virada no tratamento
das políticas públicas de reconhecimento e distribuição, outra vez,
fruto das ações e pressões políticas do Movimento Negro e do
Movimento Quilombola. Nesta nova conjuntura, o quilombo
ganha novos contornos, tanto na continuidade dos debates,
disputas e alargamentos sobre o conceito político e jurídico, quanto
nos processos de demarcação e titulação. No ano de 2003 a
promulgação do Decreto nº 4.887/2003 e a criação da Secretaria

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Geografias Pretas

de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº


4.886/2003), possibilitam um novo cenário na condução das
políticas como foco nas demandas dos quilombolas.
Nesses quase 20 anos da promulgação dos decretos e seus
desdobramentos muita coisa mudou, sobretudo a intensificação
dos processos de violência, racismo, desterritorialização material e
simbólica. A partir do ano de 2015 adentramos, cada vez mais, nos
desmontes do que vinha sendo minimamente construído enquanto
política pública de ações afirmativas, tanto no que se refere aos
quilombos, quanto de toda a população negra, indígenas e outros
povos e comunidades tradicionais. Constatamos e demonstramos
isso, em texto recente por meio do levantamento e da análise de
dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Comissão Pró-
Índio de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (CORRÊA; MONTEIRO; MARÇAL, 2020).
No entanto, mesmo diante de todos os conflitos, os movimentos
ainda existem e produzem suas grafias para resistir e reivindicar, se
articulam em redes e escalas, se fortalecem e mobilizam seus
apoiadores.
O movimento quilombola atua em diferentes frentes,
mobilizando múltiplas escalas de ação enquanto relações e
dimensões socioespaciais e socioterritoriais. Nesse sentido, está
presente tanto nos espaços rurais, quanto nos espaços urbanos e
tensiona constantemente a luta em defesa dos territórios
aquilombados e dos direitos territoriais coletivos. Discutiremos no
próximo tópico, a questão da “política de escala”.

A escala da ação política e a política de escala como potência


da prática espacial: breves apontamentos

Como visto anteriormente, ao discutir o Movimento Negro


Quilombola destaca-se que este possui uma prática espacial contra-
hegemônica em sua larga duração, através de suas ações, na
construção e mobilização das agendas, sociabilidades, identidades,

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Geografias Pretas

territorialidades e escalas. Logo, compreender a produção das


políticas de escalas por este movimento socioespacial e
socioterritorial se coloca como uma chave de leitura geográfica,
tanto epistemológica e metodológica, quanto na mobilização desta
categoria nas práticas espaciais escalares no campo da pesquisa em
Geografia e nos movimentos sociespaciais e socioterritoriais.
O debate teórico-metodológico sobre a escala geográfica e
a escala política, a partir da geografia e através dos seus raciocínios
espaciais é bastante amplo, plural e longe de haver consenso por
parte dos geógrafos e geógrafas. Segundo Moore (2018) nas
últimas décadas há uma forte teorização acerca da escala, tanto
como categoria de análise, quanto categoria da prática. Todavia,
para ele, as formas de se produzir essas distinções foram
fracassadas, contribuindo mais para uma confusão conceitual do
que de fato para a aplicabilidade das formulações propostas.
Na pertinência das reflexões sobre a escala, há múltiplos
desdobramentos nas reflexões geográficas, aos quais esta é (e vem
sendo) discutida como: i) um problema epistemológico; ii) uma
construção social; iii) uma construção social que produz políticas
de escalas; e iv) um problema: de categoria de análise à categoria
da prática, entre outros. Somente para ficar nas “vertentes” e
“tendências” que convergem com nossas reflexões de estudo.
Nessa seara, inúmeros/as geógrafos/as dedicam-se em cada, ou
transitando por esses “campos de investigação” sobre/a partir da
escala. Assim, os trabalhos de Castro (2009, 2014), Smith (2000;
2002), Souza (2013), Vainer (2002; 2006), Santos (2011), Soeterik
e Santos (2015), Moore (2018) e outras/as iluminam a investigação
ora desenvolvida, na perspectiva crítica qualitativa do conceito de
escala.
O que irá justificar a escala são os processos simultâneos
no/do real, assim como as coexistências de atores e fenômenos que
estão orientados nas disputas dos jogos depoder. “A multiplicidade
de termos mostra a diversidade de formas como atores sociais
subalternos [no caso os movimentos socioespaciais e
socioterritoriais] utilizam as “escalas da política” para fazer uma

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Geografias Pretas

“política de escalas”, ao mobilizar em múltiplos processos escalares


agentes/sujeitos e recursos para pensar os ordenamentos das
escalas e do poder (SOETERIK; SANTOS, 2015, p. 75, grifo
nosso). Estamos tratatando, portanto, da escala não somente
enquanto dimensão e abrangência espacial, mas também como
forma, conteúdo e, principalmente, relação socioespacial,
simultaneamente constituída.

No caso da emergência da temática racial no Brasil,


propomos aqui que o melhor é pensar em uma “política de
escalas” do Movimento Negro, visto que, em diferentes
momentos e espaços, é ele que tem o protagonismo na
construção, manutenção e imposição da agenda
(SOETERIK; SANTOS, 2015, p. 75).

Nessa esteira, nos aproximamos dos geógrafos e geógrafas


que partem de uma perspectiva crítica qualitativa e política do
conceito de escala, baseada em raciocínios centrados no espaço
para compreender as espacialidades e as geograficidades (PORTO-
GONÇALVES, 2001) dos movimentos socioespaciais e
socioterritoriais. Seguimos na trilha da compreensão de escala que
não opere a partir de hierarquias, nem entre escalas, nem entre
agentes/sujeitos (SOETERIK; SANTOS, 2015).
Importante ressaltar que estamos versando sobre a escala
geográfica9, tratada como “conjuntos de uma forma ou de outra
poderosos e institucionalizados de práticas e discursos em vez de
coisas concretas” (PAASI, 2004, p. 537 apud MOORE, 2018, p.
12), sobretudo a perspectiva voltada para as práticas cotidianas de
escalas e seus efeitos materiais, ou seja, o funcionamento da escala
enquanto categoria da prática.

9Diferente da escala cartográfica, que consiste na relação entre as dimensões de um


objeto na realidade, ou relação entre distâncias, e suas dimensões ou distâncias no mapa.
Ressalta-se que o desdobramento desse conceito e a compreensão de suas nuances mais
aprofundadas serão problematizadas para além deste texto, voltado para o
desenvolvimento da pesquisa doutoral.

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Geografias Pretas

Segundo Moore (2018, p. 4-5) há, em linhas gerais, duas


correntes de pensamento difusas: uma promulgada pelos geógrafos
político-econômicos “que tendem ver as escalas como entidades
socioespaciais materiais” e outra, de modo alternativo, que
caracteriza a escala como uma “figura representacional” ou quadro
discursivo. Nesse aspecto, “a escala é fundamentalmente vista
como um constructo epistemológico que apresenta ordenamentos
socioespaciais específicos” e “(...) através da sua utilização e da
contestação social que suscitam, as representações escalares
podem, por sua vez, ter efeitos materiais”.
Dessa forma, o supracitado autor identifica um problema
da escala como categoria analítica (tomada por ele como
problemática desnecessária), uma vez que estas, ao serem
coisificadas/reificadas, produzem estatutos e realidades
ontológicas, causando confusões conceituais e “dirige a atenção
para longe dos vários atores e práticas sociais envolvidos na política
de escala” (MOORE, 2018, p. 10), oposta ao nosso interesse de
aproximação. Essa crítica vai ao encontro da crítica anteriormente
formulada por Souza (2008; 2013), acerca da “visão de sobrevôo”
por parte das “profissões espaciais” (a começar pela Geografia),
que imputaram por muito tempo sobre os fenômenos espaciais,
evitando o interesse das relações socioespaciais.
Segundo essa crítica, as “profissões espaciais” analisaram
as sociedades e seus espaços quase sempre “do alto” e “de longe”,
na perspectiva de um “vôo de pássaro” ou “[...] no caso de
fenômenos representáveis, por meio de escalas cartográficas muito
pequenas (...)” (SOUZA, 2008, p. 104). Logo, essa visão acaba por
negligenciar os principais aspectos dos agentes produtores e
modeladores do espaço, a partir das suas práticas espaciais.
Ademais, o processo de coisificação/reificação da escala como
“dado” e um a priori pré-existente no espaço, sem rigor ou
preocupações conceituais, cria sérios problemas e confusões
conceituais (SOUZA, 2013).
Será nesses termos que Moore (2018, p. 12) propõe o
reconhecimento do poder epistemológico da escala, a partir dos

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Geografias Pretas

discursos, narrativas e práticas dos agentes e sujeitos


socioespaciais. Maneiras pelas quais “narrativas, classificações e
esquemas cognitivos de base escalar restringem ou permitem certas
formas de ver, pensar e agir” no espaço-tempo. Essa leitura nos
conduz a visão mais ampla dos processos situacionais dos sujeitos
e movimentos sociospaciais e socioterritoriais, ao abrir horizontes
de como a escala funciona epistemologicamente. Inspirado neste
debate, cabe-nos levantar a seguinte questão: de que maneira o
Movimento Quilombola se apropria das “escalas da política” e
também produz “políticas de escalas”, como uma categoria da
prática, da ação e da luta política para a transformação da realidade?
Não pretendemos responder essa questão/problemática de
forma direta, estanque e com apenas esse texto. Pelo contrário,
essas e outras questões nos movem e nos permite direcionar o
olhar na maneira de como o espaço é decodificado e
instrumentalizado, enquanto referencial organizacional das
espacialidades dos movimentos socioespaciais e socioterritorias
(SOUZA, 2008; FERNANDES, 2000; 2005) a partir da escala.
Podemos aproximar, a partir do que foi discutido
anteriormente que, as ações das geo-grafias das lutas históricas do
movimento quilombola, conformam “políticas de escalas”
(expressão cunhada pelo geógrafo estadunidense Neil Smith) por
meio das suas práticas espaciais insurgentes (SOUZA, 2010). O
citado autor, nos apresenta em uma sumária aproximação na
definição das “políticas de escalas” como:

[...] a articulação de ações e agentes operando em


níveis escalares diferentes (isto é, que possuem
magnitudes e alcances distintos) com a finalidade de
potencializar efeitos, neutralizar ou diminuir o impacto de
ações adversas ou tirar maiores vantagens de situações
favoráveis por exemplo, ampliando esferas de influência
(ao expandir audiências, sensibilizar atores que sejam
possíveis aliados etc.) (SOUZA, 2010, p. 42, grifo nosso).

E exemplifica:

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Geografias Pretas

As mais diferentes situações e combinações escalares


podem ter lugar: um movimento de base local ou regional
acessar, com a ajuda de mediadores ou apoiadores de fora
do local ou região, diretamente a arena global, para graças a
isso sensibilizar mais facilmente uma arena nacional;
capilarizar as articulações entre local, regional e nacional,
ganhando consistência e força para acessar a arena global e,
com isso, reforçar as pressões sobre o Estado nacional;
pular completamente o nível nacional (ou também regional)
e, com a ajuda das modernas tecnologias de comunicação
(Internet, vídeos) dirigir-se a uma audiência internacional...
(SOUZA, 2010, p. 42).

Essa interpretação traz consigo reflexões e instrumentos


que possibilitam compreender as práticas socioespaciais por meio
das “políticas de escala”. Nesse sentido, a compreensão da
abrangência espacial do fenômeno e da ação, das arenas de
disputas, dos jogos e saltos escalares são elementos presentes,
mesmo que não discutidos em seu texto. Ademais, por essa via,
conseguimos desvelar sistematicamente a produção das “políticas
de escalas” pelos diversos agentes/sujeitos coletivos.
Em continuidade, Souza (2013) retoma o debate da escala
geográfica e a divide em escala do fenômeno, escala de análise e
escala de ação. A primeira está associada a um suposto objeto real
e sua abrangência física no mundo. A segunda intelectualmente
produzida e endereçada a dar conta das questões/problemas
formulados. A terceira, a escala da ação, designa um raciocínio
eminentemente estratégico, ou seja, a abrangência espacial das
práticas dos agentes/sujeitos, altamente dinâmicas e mutáveis.
Ressalta-se para Moore (2018) que, a escala de análise causa
mais confusão conceitual do que propõe uma teorização concreta
e sem manobra. Na visão de Soeterik e Santos (2015) a escala se
coloca enquanto instrumento heurístico e nos permite “distinguir
níveis de análise do real, mas, no real, tais níveis são simultaneidades nas
temporalidades – dos atores sociais, dos objetos e das ações que
constroem o espaço geográfico” (p. 73, grifos nossos). Por sua vez,

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as categorias que utilizamos na Geografia como “local”, “regional”,


“nacional” e “global” para designar determinadas práticas e
fenômenos espaciais estão presentes todos no mesmo “lugar”,
marcados por verticalidades e horizontalidades, desencaixes e co-
presenças – “pensar global e agir local” se coloca enquanto uma
máxima (SANTOS, 2012; SANTOS, 2011). A escala do fenômeno
pode representar uma abrangência espacial dos fenômenos físicos
ou sociais e, tratando-se deste último, deve ser pensado pela “(...)
abrangência de ação coletiva programática ou consciente, como
resistências, lutas e movimentos sociais” (SOUZA, 2013, p. 181).
A partir destas compreensões é possível refletir sobre as
escalas do racismo como fenômeno socioespacial estrutural e
estruturante (ALMEIDA, 2018) da sociedade (moderna e pós-
moderna) e das relações socioespaciais, que ordena e regula
comportamentos e práticas. Está presente também nas dimensões
institucionais, epistêmicas e ambientais acerca das marcas e
reordenamentos que produz na escala global de forma pluriescalar.
Em contrapartida, os sujeitos coletivos do movimento negro
quilombola ao articularem e produzirem “políticas de escalas” na
perspectiva antirracista, tensionam a sociedade e se posicionam de
formas insurgentes.
Nessa ótica, partimos do pressuposto que tanto a escala
quanto o fenômeno são construções socioespaciais a partir de
relações de poder e não dados naturais. Nesse processo, a
emergência e publicização do debate sobre as questões étnico-
raciais, posicionadas desde a década de 1970 pelo Movimento
Negro brasileiro com foco na superação do racismo e agindo por
meio das reivindicações das políticas de reconhecimento e
redistribuição em todo o país, disputando espaços na arena
política, circunscreve a extensão e abrangência do fenômeno pela
luta no direito à vida, à dignidade, à educação, à terra, ao território,
ao trabalho, às políticas públicas etc.; voltadas para a população
negra enquanto reparação histórica e o direito de r-existir
(PORTO-GONÇALVES, 2010). A afirmação e imposição de uma
agenda de combate ao racismo está posta.

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Portanto, a escala é socialmente construída, medida


escolhida para conferir visibilidade ao fenômeno, definindo uma
realidade percebida/concebida. Enquanto estratégia de apreensão
da realidade irá definir o campo empírico da pesquisa (CASTRO,
2014). Do ponto de vista analítico a escala “é o artifício analítico
que confere visibilidade à parcela ou dimensão do real” (CASTRO,
2014, p. 90), ou seja, a relação entreposta entre o objeto real e o
objeto de conhecimento diante do problema formulado. Logo, “as
escalas de análises não são “dadas”: elas são antes “arrancadas” da
realidade no processo de construção do objeto do conhecimento
por parte do pesquisador” (SOUZA, 2013, p. 188).
A escala da ação diz respeito “a um aspecto específico (...)
e está diretamente associada a um raciocínio estratégico em relação
ao alcance espacial das práticas dos agentes” (SOUZA, 2013, p.
182). Neste sentido, a escala da ação será o “tipo de escala que se
refere a determinados fenômenos sociais, concernentes as ações
(em geral coletivas) e ao papel de agentes/sujeitos” (SOUZA,
2013, p. 182).
Assim, pensar em uma “política de escalas” possui enorme
riqueza, ao articular numa mesma leitura “a complexidade dos
jogos políticos organizados de forma multiescalar” (SOETERIK;
SANTOS, 2015, p. 75) e mantém o realce do protagonismo do
movimento social que cria a agenda no debate político.
Desse modo, inaugurando a virada do século e marcando
o início do século XXI, podemos inferir que a construção,
articulação e realização da III Conferência Mundial de Combate ao
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, adotada
em 08 de setembro de 2001, na cidade de Durban - África do Sul10,
se colocou como um exemplo de mobilização do Movimento
Negro Brasileiro na produção de uma “política de escalas” com
grandes envergaduras, ao impor instrumentos na arena política e

10 Promovida pela ONU (Organização das Nações Unidas), a também conhecida como
“Conferência de Durban”, teve como principal objetivo discutir políticas que ajudassem
a combater o racismo e outras formas de hierarquização com base na diferenciação racial
ou étnica.

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na construção da agenda antirracista, voltada às políticas públicas


de ações afirmativas no Brasil. Sendo o documento gerado nesta
conferência, base para aplicação e desdobramento das ações
afirmativas de discriminação positiva à população negra e indígena.
Ressalta-se que esta conferência postula um programa de
ação a ser adotado com profundidade na “escala-mundo”, a partir
dos amplos esforços de inúmeros Estados, países, governos,
grupos e sociedades inteiras a partir de medidas concretas de
“prevenção, educação e proteção com vistas à erradicação do
racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata em
níveis nacionais, regionais e internacionais”.
A partir das questões historicamente discutidas pelo
movimento social e levadas à Conferência, houve, no Brasil, a
construção e o desdobramento de um grande rol de políticas
públicas afirmativas, de reconhecimento e distribuição desde o
início dos anos 2000, citadas anteriormente. Essas foram
desdobraram e aprofundadas, diante dos direitos Constitucionais
garantidos em 1988. Por volta de, mais ou menos, 15 anos ocorreu
no Brasil a consolidação dessas políticas nas diversas áreas da
sociedade, com inúmeros programas que atenderam a população
negra, a partir das suas próprias demandas, disputas e negociações,
tomadas as arenas do Estado como espaço privilegiado da luta
política e da reivindicação que o mesmo assumisse o papel
propulsor da igualdade racial.
Nesse contexto, podemos mencionar, como exemplo, a
importância da criação da Secretaria de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), em março de 2003, pelo presidente à época, Luiz
Inácio Lula da Silva, com a tarefa de enfrentamento ao racismo e
mecanismos que assegurem acesso à população negra. Em 2015,
através da reforma administrativa realizada pela então presidenta
Dilma Rousseff, a SEPPIR passou a integrar o Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, o que
gerou inúmeras críticas pelos movimentos sociais.
No que tange o movimento quilombola, a sanção do
Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para

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identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação


das terras ocupadas por “remanescentes” das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), cujo critério de
autodefinição pelos próprios quilombos, foi fundamental na
garantia dos seus direitos territoriais.
Na mesma trincheira, a criação do Ano Internacional dos
Afrodescendentes em 2011 e a Década Internacional de
Afrodescendentes (de 2015 a 2024) 11 , ambas criadas pela
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) com
o tema “reconhecimento, justiça e desenvolvimento”, coloca a
proposição de ações de combate ao racismo e de respeitos e
proteção de todos os direitos humanos. Na escala nacional, os
Estados devem tomar medidas concretas e práticas por meio da
adoção e efetiva implementação, nacional e internacional, de
quadros jurídicos, políticas e programas de combate ao racismo,
discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata enfrentados
por afrodescendentes, tendo em conta a situação particular das
mulheres, meninas e jovens do sexo masculino.
Nos últimos anos, o movimento quilombola tem se
fortalecido e reorganizado de diversas formas (tanto interna,
quanto externamente), construindo tramas que afirma sua
existência política, econômica e cultural. Uma delas é por meio das
pautas coletivas que envolve a formação comunitária, o debate e a
articulação por meio da Coordenação Nacional de articula da
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), como
catalizador das suas pautas. São elas: a) o coletivo de “mulheres
quilombola na labuta por: Igualdade, Justiça, Território e nenhum
direito a menos”; b) a comissão da juventude quilombola; c) a
discussão sobre saúde da população quilombola; d) a luta pela
educação escolar quilombola; e) os processos jurídicos; e f) as
ações de comunicação/publicização.

11 Para maiores informações acesse os links:


https://www.un.org/en/events/iypad2011/index.shtml; https://decada-afro-
onu.org/index.shtml.
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Geografias Pretas

Essas pautas andam juntas, lado a lado, e em cada uma


dessas convergem monumentais esforços coletivos pela população
quilombola com o objetivo de conferir justiça territorial e
reparação histórica, por meio do cumprimento dos direitos e da
criação de acessos e oportunidades para superação das
desigualdades.
Dentre estas, cabe destacar o protagonismo e liderança das
mulheres quilombolas, como base da estrutura do movimento e
direcionamento das ações, uma vez que “não existe luta
quilombola sem a participação feminina” (CONAQ, s/d). É visível
os múltiplos papéis assumidos por estas na condução da agenda
quilombola – desde as matriarcas das comunidades, que guardam
os saberes da ancestralidade, repassam os ensinamentos de seu
povo, conectam temporalidades (passado e presente) e “mundos”
afrorreligiosos –, até às que tomam a frente nas mediações e
denúncias dos conflitos, na organização e ações cotidianas das
comunidades, na condução das assembleias, nos debates sobre
regularização fundiária, na formação de novos quadros, entre
inúmeros outros processos.
A formação dos novos quadros, tanto pelo movimento
social (isto é, a vida cotidiana e participação dos mais jovens em
todos as ações, convivências, sociabilidade, produção é um
processo de formação), quanto pelos processos de escolarização
da juventude quilombola (a começar pela educação diferenciada)
produz uma potência quilombola, na formação de seus próprios
intelectuais12. Esse movimento se coloca como um investimento
coletivo de estímulo a entrada de jovens quilombolas nas
universidades, através de diferentes programas de ações afirmativas
e de diversos cursos, como, por exemplo, a formação na educação
do campo. Hoje, há representações quilombolas em várias

12Poderíamos citar, como exemplos de intelectuais quilombolas: Dona Marilda Souza


(Quilombo do Bracuí-RJ), Laura dos Santos (Quilombo do Campinho-RJ), Antônio
Bispo dos Santos (Quilombo do Saco-Curtume-PI), Givânia da Silva (Quilombo
Conceição das Crioulas – PE), Selma dos Santos Dealdina (Quilombo do Angelim III –
ES) dentre tantos outros (CORRÊA; MONTEIRO; MARÇAL, 2020).

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Geografias Pretas

universidades do Brasil, e em vários cursos, o que produz o


domínio dos instrumentos jurídicos, a criação de novas alianças e
articulações, colocam em xeque as teorias eurocêntricas ainda
difundidas nas universidades e a obrigação do deslocamento para
um novo olhar e um novo tratamento para a questão étnico-racial.
Consequentemente, se dá o fortalecimento do movimento e das
comunidades e a publicização de suas questões.
A via política institucional também é arena de disputa, uma
vez que o aumento das candidaturas para os pleitos eleitorais está
posto como um elemento crescente do movimento e das lideranças
das comunidades13. Nesta ação, se apropriam das escalas da política
dos partidos para a construção efetiva de uma “política de escalas”,
criando agências e obrigando o deslocamento, o diálogo e a
formulação de programas e correntes partidárias que versem sobre
a questão quilombola na conjuntura atual (CORRÊA;
MONTEIRO; MARÇAL, 2020.

Considerações Finais (em aberto)

Como dito inicialmente buscamos nesse artigo, alinhar as


discussões que envolvem uma reflexão inicial sobre as tramas que
envolvem as “políticas de escalas” produzidas e conduzidas pelo
Movimento Quilombola. Esta análise nos subsidia para
compreender os processos geohistóricos e contemporâneos, na
qual o movimento em questão vem produzindo. Através das
narrativas, discursos e ações políticas ao projetar perspectivas e
intencionalidades sobre o espaço.
Conhecer a luta dos quilombos nas trajetórias de larga
duração, se coloca como um recurso metodológico ao mobilizar

13A título de exemplo, conforme apresentamos em texto anterior, de acordo com a base
de dados do TSE, nas eleições realizados em 2018, seis pessoas utilizaram o codinome
“quilombola” ao se candidatarem: Ronaldo Quilombola (PT-RJ), Ester Quilombola (PT-
GO), Frank Quilombola (Solidariedade-RJ), Xifroneze Quilombola (Psol-SE), Vera
Lúcia Quilombola (Psol-BA), Sandra Silva Quilombola (Psol-MG), sendo os três
primeiros candidatos a Deputado Estadual e as últimas a Deputado Federal. Nenhum
candidato, entretanto, foi eleito (CORRÊA; MONTEIRO; MARÇAL, 2020).

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Geografias Pretas

processos geohistóricos que afirmam a espacialidade do


movimento socioterritorial como produtor de mudanças e fissuras
nas brechas de uma sociedade racista e capitalista, que concentra
riquezas, poder e propriedades.
Diante dessas discussões, é visto que os movimentos
sociais, sobretudo o movimento quilombola, lutam não apenas
pela terra, mais efetivamente por territórios, incorporando as
dimensões identitárias, culturais e políticas. Esse movimento tem
avançado na organização e pressão política para o reconhecimento
de uma ontologia possível, diante dos ataques contemporâneos aos
direitos territoriais já conquistados.
Compreendemos que, mesmo diante dos avanços, tanto no
campo jurídico-político, quanto no campo acadêmico, ainda há
caminhos a percorrer para construção efetiva e concreta de um
Estado pluriétnico de direito numa perspectiva intercultural
(WALSH, 2002; 2012) e de uma sociedade brasileira antirracista em
todas as suas esferas e escalas.

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Geografias Pretas

NOTAS SOBRE “CULTURA NEGRA”,


CAPOEIRA ANGOLA E CORPO-
TERRITÓRIO1

Diogo Marçal Cirqueira

Introdução

"Amigos, o corpo é um grande sistema de


razão, por detrás de nossos pensamentos
acha-se um Senhor poderoso, um sábio
desconhecido."
Mestre Pastinha

O objetivo deste ensaio é realizar uma reflexão sobre a


cultura na produção do corpo e, inversamente, do corpo na
produção da cultura. Pretende-se também debater a dimensão
espacial desse processo através da categoria território. Para além
das proposições das Geografias Feministas anglo-saxãs cujo debate
de gênero foi cotejado com reflexões sobre o corpo desde o fim
dos anos de 1980 (DUNCAN, 1996), notamos discussões sobre
esse tema na Geografia brasileira desde os anos 1990. Algo que
pode ser notado, por exemplo, em proposições de Milton Santos
(2002 [1989], 2002 [2000], 2000, 1996, 1996/1997) sobre a
“corporeidade” e as "cidadanias mutiladas” e em seus debates
sobre o corpo como o elo entre o lugar e o global e a “materialidade
sensível” que intermedia razão e emoção; e Carlos (2007), em seus
debates sobre a apropriação e a vivência do lugar pelo corpo, para
citar dois exemplos. Ainda que haja essas referências anteriores,
não pretendo fazer um levantamento exaustivo sobre esse debate
nas discussões atuais realizadas por geógrafas e geógrafos que
debatem gênero, sexualidade e a raça em seus estudos (cf.
CIRQUEIRA e CORRÊA 2014; RATTS et al. 2016; SILVA, 2007,

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Geografias Pretas

2008), mas, demonstrar as possibilidades desse debate na


Geografia, principalmente para a compreensão da experiência
espacial negra.
Como a intenção aqui é tratar da cultura, mais exatamente,
sobre “cultura negra”, primeiramente gostaria de expor o alicerce
sobre o qual vou construir meus argumentos. Falar sobre cultura é
extremamente complicado. Sobre cultura negra, mais ainda.
Estudiosos do mundo ocidental catalogaram dezenas de noções de
cultura, o que demonstra que o seu conceito, ainda que corriqueiro,
é mais multiforme do que imaginamos (WILLIAMS, 2003). Ao
agregar o adjetivo negro – por si um qualificador dos mais
“escorregadios”, tendo em vista sua gênese na experiência também
multiforme dos descendentes de africanos na diáspora e em
contato com o sistema colonial-escravista (HALL, 2013; 2016) –
torna-se quase impossível o ato de colocar em fronteiras
conceituais bem delimitadas a explicação de “cultura”,
consequentemente, a de “cultura negra”. Ela, a “cultura negra”,
sempre escapa sorrateiramente das nossas gavetas conceituais.
(Isso, em si, já é um sinal!)
É nesse sentido que aqui não pretendo definir ou
conceituar cultura. Tomarei a cultura como algo contextual e
localizado, o que está em processo de fazer-se e é fruto de tensões
e escolhas (conscientes ou não) estabelecidas por grupos sociais.
Nesse sentido, é o modo pelo qual uma coletividade relaciona-se e
dá sentido ao seu real em um processo de singularização que lhe
outorga identidade (SODRÉ, 1988). Na medida em que trato da
“cultura negra”, falo das “criações” de um grupo social que vem
secularmente (sobre)vivendo sob circunstâncias de violência e
opressão extremas, que fez de sua existência o próprio ato de
resistência ao constituir, como alguns teóricos vêm enfatizando,
uma espécie de “(r)ex(s)istência” (resistência e existência)
(PORTO-GONÇALVES [s.d.]). Nenhuma noção ocidental
(como a de cultura) conseguiria abarcar a totalidade da existência
fraturada e caótica desse povo, a não ser que reflita sobre seu
constante (re)fazer-se e suas dimensões intangíveis. Do mesmo

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Geografias Pretas

modo, tendo em vista a diversidade de manifestações e de formas


de ser/estar no mundo que poderiam ser encaixadas na categoria
“cultura negra” no Brasil, falo de “cultura negra” (sempre com
aspas!), mas, “cultura negra” a partir da capoeira (angola). Isso
facilita os movimentos, contudo, não é menos desconfortável.
Ainda assim, me propicia um terreno mais sólido e palpável para
tratar desse assunto, uma vez que também faço parte de uma
“comunidade de linguagem” (HOOKS, 1994) e "comunidade
litúrgica" (SODRÉ, 2002) da capoeira.
Destaco que esse é um ensaio que parte das minhas
experiências pessoais constituídas no interior de determinadas
coletividades. Reconheço que certos aspectos da “cultura negra” e
da capoeira são irrepresentáveis, principalmente pela linguagem
escrita. Elementos da capoeira só são compreendidas dentro de
contextos e, indo além, a própria capoeira é uma linguagem em si
e seus códigos são impossíveis de tradução fora de uma lógica
contextual de percepção-ação coletiva. Fugindo de uma abstração
sem sujeito e buscando uma estrutura constituída de “um corpo
sem órgãos” (DELEUZE e GUATTARI, 2011), aqui apresento
uma perspectiva, parcial, limitada e datada sobre a “cultura negra”
que parte do meu eu-no-coletivo. Do mesmo modo, ainda que
reconheça a intraduzibilidade da capoeira, tento infundir na
linguagem escrita os seus fundamentos teórico-epistemológicos.
Duas são minhas referências aqui. Parto das noções de
“oralitude” de Martins (1997) e a ideia de "corpo-território"
proposta por Sodré (2002). Martins questiona às perspectivas
reducionistas que restringem as formas de produção de
conhecimento à linguagem da escrita. A autora ressalta que, ainda
que houvesse linguagem escrita em África desde os egípcios às
civilizações africanos pré-coloniais, o corpo para várias culturas
desse continente agiu como o artífice de linguagem. Nesse sentido,
para além de permitir que as culturas africanas se reproduzissem
nas Américas, o corpo se constituiu como episteme. Pelo corpo
experiências, saberes e compreensões filosóficas são expressas na
e através da performance; o corpo grafa saberes e

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Geografias Pretas

cosmopercepções no gesto, no movimento, na coreografia, nos


ritmos e timbres vocálicos. Isso quer dizer que, no caso de
africanos na diáspora, há uma experiência corporificada e um saber
incorporado que encontra no corpo em movimento um
instrumento de inscrição. A “oralitura” de Martins (1997) designa
a complexa textura das práticas corporais; seu funcionamento, os
processos, procedimentos, meios e sistemas de inscrição dos
saberes fundados e fundantes das epistemes corporais, destacando
neles o trânsito da memória, da história, das cosmovisões que pelas
corporeidades se processam. Frente a isso é importante mencionar
que a oralitude não só grafa; também rasura protocolos e sistemas
de fixação excludentes e discriminatórios.
Do mesmo modo, Sodré (2002, p. 135), ao chamar a
atenção para a dimensão espacial das formações culturais negro-
africanas no Brasil, propõe a noção de "corpo-território":

[...] todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir


de si mesmo, de um campo que lhe é próprio e que se
resume, em última instância, a seu corpo. o corpo é lugar-
zero do campo perceptivo, é um limite a partir do qual se
define um outro, seja coisa ou pessoa. O corpo serve-nos
de bússola, meio de orientação com referência aos outros.
Quanto mais livre sente-se um corpo, maior o alcance desse
poder de orientar-se por si mesmo, por seus próprios
padrões. Claro, se nos movimentamos, altera-se o sistema
de movimentação: os objetos podem ocupar o lugar-zero,
descentrando-se o sujeito da percepção. (SODRÉ, 2002, p.
135).

A ideia central por trás dessa conceituação é que, como não


há rito sem corpo nas tradições de matriz africana no Brasil, o
corpo configura-se como o território de "força" (ex. Asè), do
"ritmo", do "jogo", do "rito". Assim, mediante esses aspectos, esse
corpo produz movimentos e deslocamentos que descentram e
reelaboram simbólica e materialmente o espaço pelo corpo;
especialmente, rompe os limites fixados pela territorialização

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Geografias Pretas

dominante ao ocupar frestas no tempo-espaço e ao abolir e


inverter lógicas de controle. Deriva daí o “território do corpo”,
uma delimitação invisível do espaço que acompanha o indivíduo;
o “espaço pessoal” (o próprio corpo e o espaço adjacente), que é
“capaz de se expandir ou contrair-se de acordo com a situação e
caracterizando-se, portanto, pela flexibilidade.” (SODRÉ, 2002, p.
39, 147). Na visão do autor, o “território do corpo” sempre se
mostra flexibilizante, relativizando a fixação da área implicada na
noção de território físico, fazendo emergir a pluralidade. Esse
“corpo”, ao relacionar-se com o espaço (principalmente, mas não
unicamente) pelo movimento, o jogo, a ginga, o ritmo, modifica a
energia, a sensibilidade e a força que rege o território e faz “emergir
a pluralidade dos [e nos] lugares”.
Esses conceitos contribuem para que o corpo não seja
reduzido a um elemento estritamente biológico ou objetal, e nem
o imaginar como um ente interno ou externo ao espaço. Os
africanos em diáspora nos ensinam a imaginar o corpo como uma
estrutura aberta e um campo infinito de possibilidades, que não só
se apropria de espacialidades para existir, mas, torna-se o próprio
território para transpor realidades e estruturas colonizantes e
racistas.

Da cultura negra

A “cultura negra” da qual falo nasceu de um dos maiores


processos de terror e violência que a humanidade presenciou: o
sequestro e escravização de mais de 10 milhões de seres humanos
de África para as Américas (THE TRANSATLANTIC SLAVE
TRADE DATABASE, 2018). Talvez a imagem que melhor
represente o nascimento da “cultura negra” seja a da “porta do não
retorno” (BRAND, 2002). Essa porta era por onde embarcavam
os africanos e africanas capturados em África nos navios
tumbeiros. Ao transpor o portal, os cativos ingressavam em um
novo mundo cuja fluidez do mar os conduzia a uma rota sem rastro
e impossível de ser mapeada, por conseguinte, sem regresso.

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Geografias Pretas

Na verdade, a travessia do Atlântico deixava um grande


rastro de sangue nas águas salgadas (grande parte dos africanos
escravizados não suportavam a “viagem”, morriam por inanição,
banzo, se suicidavam ou se jogavam ao mar). Certamente a
humanidade não conheceu espaço e tempo mais sórdido do que os
navios negreiros (REDIKER, 2011). O rapto – e a brutalidade
vinculada a ele – é a ferida original que o povo negro e,
consequentemente, a sociedade brasileira carregam; a ferida
original que nos constituiu pessoas negras como nômades
desterritorializados; que nos impôs uma travessia com começo,
mas sem fim, que perdura ainda hoje (HARTMAN 2007); e o que,
de alguma forma, fundou a “cultura negra”.
A violência da escravidão e a diáspora que esse processo
produziu está na base da “cultura negra”. Sua constituição teve,
desde o início, que modular a produção de sentidos e significados
com um “mundo que se despedaçava” (ACHEBE, 2009) e com
um regime de terror constante e cíclico. Algo digno de nota nesse
processo eram os famosos rituais de “apagamento da memória”,
dos quais é mais conhecido no Brasil o que os escravizados eram
obrigados a dar três voltas em torno da “árvore do esquecimento”
antes de serem embarcados nos tumbeiros (BARBIERE;
LEONARDI, 1998). Acreditavam os escravizadores que esse ritual
apagaria as lembranças, diminuiria o sofrimento e aumentaria a
adaptabilidade ao sistema escravista dos cativos. Obviamente, isso
não ocorria e, talvez, esses rituais amplificassem subliminarmente
a energia da memória desses desterrados. Assim, a despeito de
africanos escravizados não poderem trazer objetos, transportavam
em seus corpos suas experiências socioculturais plasmadas na
memória, nos gestos e na linguagem.
A questão aqui é que essa estrutura social marcada pela
escravidão e o racismo que aprisiona o negro-africano, define (não
totalmente) as bases da constituição simbólica, prática e expressiva
da cultura negra diaspórica. Frente a isso, Spiller (2006) ressalta que
as circunstâncias em que surgiram as culturas negras - marcadas
pelo mundo da violência normativa, do trabalho forçado, do

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Geografias Pretas

esmagamento virtual absoluto e da luta cotidiana pela existência -


permitiu imaginar ou ousar imaginar um mundo além das
tecnologias repressivas de suas vidas cotidianas. Isso fez com que
as “culturas diaspóricas" buscassem desfazer as condições de
alienação total ao tempo que, simultaneamente, buscassem trazer à
tona um repertório de predicados que não existiam antes.
Nesse sentido, não são somente formas “crioulas”
(híbridas) utilizadas a partir dos implementos materiais e
imaginativos (às vezes até “esquizofrênicos”) acessíveis, mas,
também, uma disposição que incorpora uma contra-afirmação
declarada, que busca desfazer sua alienação e constituir um ponto
de vista novo. Em resumo, partindo da noção de “possibilidade
histórica” de Du Bois, Spiller (2006) enfatiza que a população
negra foi “forçada” a transformar seus "recursos de espírito" em
recusa e crítica.
Por outro lado, Gilroy (2012), ao enfatizar que “é a relação
senhor e escravo que fornece a chave para se compreender a
posição dos negros no mundo moderno”, realça a “cultura negra”
como um elemento constituído no interior da modernidade, mas,
como uma presença dissidente dentro dela. Essa “cultura” foi
produzida a partir e durante a escravidão, no entanto, embora
definida em comparação com o mundo da política formal
moderna, do qual os negros foram excluídos, promovia formas
específicas de identidade, visão de mundo, estratégias de
sobrevivência e concepções distintas de mudança social.
Em outros termos, como um “todo” autônomo, irredutível
aos efeitos da escravidão e subordinação racial, a “cultura negra”
gera também a consciência dos negros e cria atitudes emocionais
associadas a noções de liberdade e um entendimento característico
de subjetividade. O que fica mais evidente na leitura de Gilroy
(2012) e o que o aproxima de Spiller (2006), é a afirmação que a
situação ambígua de negros diaspóricos, dentro e fora da
modernidade, tendo que modular dois sistemas cultuais e
ideológicos (escravidão e modernidade), opostos, mas
interdependentes, e suas concepções de razão, história,

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Geografias Pretas

propriedade etc., conduziram para que as formulações culturais


negras dialogassem e assimilassem as tradições modernas, mas, ao
mesmo tempo, agissem como uma expressão antinômica à
modernidade.
Observamos, assim, a ruptura temporal e ontológica
causada pelo sequestro escravista produzindo categorias instáveis
e abertas na (política) cultural negra, mas, acima de tudo, também
sendo re-atualizada no mundo social moderno(colonial),
justamente para destruí-lo como tal.

Dos territórios do corpo e corpos-territórios

Agora, vamos realizar um exercício de imaginação: se


coloque em uma situação na qual você é sequestrado/a, vendado/a
e levado/a para uma terra onde – além de não se saber a localização
em relação a sua terra original – tudo, do meio físico-natural aos
aspectos sociais como os modos e as línguas lhe sejam estranhas.
As formas de experienciar essas situações são múltiplas, contudo,
é certo que seria como cair em um outro planeta, nada lhe faria
sentido! Espaço e tempo em um contexto como esse não teriam a
menor coerência; a sua percepção sensorial entraria em um modo
de desorientação - quiçá, de alucinação - profunda.
Provavelmente foi isso que os africanos escravizados
experienciaram quando chegaram ao Brasil e outros locais das
Américas. Em outros termos, tendo em vista a imposição de uma
alienação com seus corpos e com seu mundo, em “caos-
experiencial” se fez a existência desses mais de dez milhões de
“pessoas” que aqui chegaram. Neste lugar estranho e confuso,
onde nada era evidente e confiável, creio, o único terreno “sólido”
e indubitável era o corpo. Nesse contexto, o corpo constitui-se na
única certeza diante de um mundo em pedaços. No entanto, mais
que isso, tornou-se um território; efetivamente, um corpo-
território.
o corpo-território era tudo (e era nada) com o que os
africanos escravizados podiam contar. E se esse corpo-território

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Geografias Pretas

foi (e é até hoje) o alvo de toda a violência, ele também foi o limite,
a antítese, a contra-mola, a negativa desse sistema. O corpo-
território foi memória, arquivo, arma (TAVARES, 2013), religião,
metanarrativa; foi a matéria que permitiu que permanecêssemos
física e subjetivamente vivos e vivas. Não é por acaso que nas
práticas culturais negras na diáspora o corpo é elemento central,
que incorpora, literalmente, a existência e outros planos - o grande
exemplo são as religiões de matriz africana.
Ainda assim, deve-se mencionar que devido às
circunstâncias desfavoráveis, esse corpo-território teve que ser
extremamente maleável para sobreviver: refazer os sentidos, recriar
mitos, ressignificar a realidade, reterritorializar-se, negacear, trocar
os pés pelas mãos. Em um lugar desconhecido, repleto de terror e
incoerências, onde o hoje “sim”, o amanhã “não”, teve que se
recompor de fragmentos que trouxe de África na memória; fazer
do próprio corpo um mundo e fazer um mundo com o próprio
corpo.
A partir desse corpo-território – no qual veio tudo de
África, veio nada de África – que foi construído uma civilização;
uma África que só existe aqui. Isso é em si um fato memorável,
pois, tudo foi erigido do “nada” e em circunstâncias desumanas e
tenebrosas. É justamente desse vórtice que deriva a “cultura negra”
brasileira, bem como, surge a capoeira.
A capoeira talvez seja o arquétipo mais bem “terminado”
pelo povo negro nesse contexto horrendo e de estado
permanentemente caótico. Ela expressa em sua forma a
experiência concreta desse povo na diáspora e demonstra isso
articulando relações comunitárias, música, dramaturgia,
performance, religiosidade, luta, etc. Nesse caso, o corpo-território
emerge como a unidade de comunicação e agência que expressa o
diálogo com um mundo estranho, hostil e de terror.
O primeiro aspecto que chama a atenção é o caráter dúbio
e ambíguo que comporta o ritual da capoeira. Haja visto que uma
estrutura social conformava uma bio-necro-política de intenso
controle dos corpos contra as pessoas negras, isso está muito

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Geografias Pretas

ligado às modulações sociais de resistência que envolviam o


confronto direto e a dissimulação, a oposição e a acomodação, o
ataque e a defesa. Assim, não existe qualquer regra explícita ou
definição estrita que comande o jogo de capoeira. Além do mais,
não há um limite determinado entre brincadeira e luta, formas de
ataque ou defesa, dança ou combate.
A ambiguidade é tanta, como coloca Sodré (1988), que no
“jogo finge-se tão bem que o conceito de verdade da luta se
dissolve aos olhos do espectador, e – ai dele – do adversário
desavisado”. Busca-se, em outras palavras, encantar, “enfeitiçar”,
para ludibriar o companheiro de jogo a fim de ganhá-lo. Entenda-
se, para ganhá-lo e não para ganhar dele/a! O interessante é que,
tudo isso é regido por algo que existe, mas é quase impossível de
se explicar, definir, ou mesmo, ensinar. Alguns mestres de capoeira
chamam “isso” de malícia, outros, de malandragem ou mandinga;
a questão é que é algo que está em um campo tão profundo da
subjetividade e existência humana - como o amor - que é
impossível de ser transmitido através de processos pedagógicos ou
lógicas formais: “se tem ou não se tem malandragem!”
A capoeira é um jogo com fundamento, mas “sem” regra,
e a cada momento ou instante pode ser preenchido com uma nova
ação, encenação, sedução. É uma estrutura aberta e sempre dá
margem para o inesperado, para a criação, para o improviso. Na
verdade, as ações e diálogos (que não se reduzem aos jogadores,
mas a todos/as que compõem a roda ou o grupo) se dão na medida
da ocasião. A situação faz o bom capoeirista – principalmente o
angoleiro. É por isso que no jogo de capoeira se desconstrói a ideia
ocidental-davincciana de corpo: pés, mãos, cotovelos, cabeça,
joelho, são armas que podem ser acionadas a qualquer momento.
De pé, ponta-cabeça, de costas, no ar, no chão etc. são ambientes
e planos de lateralidades /verticalidades as quais o capoeirista
domina e utiliza a depender das exigências do contexto.
Sem dúvida a capoeira cria formas de “des-disciplinar” o
corpo, de manter o corpo constantemente indisciplinado ao
mundo que tenta regular, controlar, matar. O corpo não é a

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Geografias Pretas

retomada do território, mas a própria territorialidade. Braços,


pernas, cabeça, cordas vocais são as matrizes de uma linguagem
intraduzível no sistema estruturalista de linguagem ocidental, pois
coloca-se em um local para além do verbal, do gestual, do
expressivo. O corpo busca alcançar um equilíbrio das coisas
inatingíveis. As canções, narram simultaneamente passado-
presente-futuro, o amor [metáfora para uma liberdade] impossível
e inalcançável, um tempo-espaço etéreo. Os movimentos e gestos
têm alma e buscam exprimir coisas que estão aqui, no além. Tudo
isso é a expressão do desejo, da vontade, de um tempo-espaço
inalcançável que, plasmado em memórias perdidas e
irrecuperáveis, permanece ativa e tangível no corpo.
Outro aspecto característico da capoeira é a conformação
de microcosmos em cada comunidade de capoeiristas. Devido à
transplantação forçada e à sensação de constante
desterritorialização nos quais descendentes de africanos foram
inseridos, algo característico na existência desses sujeitos no
mundo foi (e é) o desejo constante de construir mundos estáveis;
realidades onde objetos e relações tenham um sentido simbólico
que possa ser lido e compartilhado com/em grupo.
Tendo esse desejo subliminar como horizonte, cada grupo
de capoeira é um mundo. Apesar de terem em comum bases –
estruturadas na experiência memorável de africanos transplantados
e escravizados, cada grupo define práticas, lógicas e uma ética
interna. Forma-se uma “comunidade de linguagem” (HOOKS,
1994) ou uma "comunide litúrgica" (SODRÉ, 2002) compartilhada
que pode dialogar com outras comunidades de linguagem, mas, do
ponto de vista prático, possui suas características específicas e
distintivas. Aqui a estrutura antifônica - o sistema dinâmico de
chamada e resposta - é um recurso que marca o ato ritualístico
comunitário na capoeira.
As lógicas da antífona são um potente recurso
intersubjetivo que, através da musicalidade, do jogo, da
performance, produz processos ativos de troca e interação que
alimentam lógicas ritualísticas que geram coesão e dinamismo à

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Geografias Pretas

coletividade. Fatos, narrativas e histórias não são somente


contados, os conteúdos são dramatizados e celebrados como
forma; o conteúdo da his/estória é comandado por normas
contextuais de recepção. Não que a narrativa em si não importe -
como um elemento de transmissão de saberes e (re)ativação da
memória, por exemplo, mas, histórias sobre bravura, de amores
impossíveis, de lutas desiguais, de trabalho (degradante), de fugas,
de revanche etc., são importantes pois são significantes nos
processos que ocorrem na zona momentânea do tempo-espaço da
roda. Essa forma de materializar histórias permiti(u) a criação de
campos de relações e comunicação alternativos, fundamentais para
a tradição de resistência negra e, consequentemente, para a
capoeira.
Do mesmo modo, a lógica antifônica oferece a abertura
para momentos de trocas dialógicas e comunitárias que expressam,
mas não garantem, relações sociais novas e não autoritárias. Ellison
(apud GILROY 2012, p. 168-169), em comentários ao Jazz,
enfatiza que as

[...] fronteiras entre o eu e o outro são borradas, e formas


especiais de prazer são criadas em decorrência dos
encontros e das conversas que são estabelecidos entre um
eu racial fraturado, incompleto e inacabado e os outros. A
antífona é a estrutura que abriga esses encontros essenciais
(...) é uma arte de afirmação individual no interior e contra
o grupo. (ELLISON, apud GILROY 2012, p. 168-169).

Analogamente, a antífona na capoeira (angola) gera a cada


momento uma disputa na qual, o/a capoeirista desafia todo o resto
do grupo; cada movimentação, canto, toque, performance,
improvisação, solos representam a definição de sua identidade
como indivíduo, como membro da coletividade e elo na cadeia da
tradição. Através da ética e rituais antifônicos, o capoeira “deve
perder sua identidade mesmo quando a encontra” (idem) para
construir estruturas comunicativas e expressivas para e pelo grupo.

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Geografias Pretas

No entanto, ainda que o indivíduo tenha agência, ele só


existe mediante a coletividade. De fato, a individualidade é
composta na antífona da coletividade, daí a importância da
comunidade. É muito peculiar da capoeira – e das várias
manifestações “culturais negras” (candomblé, congada, samba,
etc.) – o fato do status dos sujeitos que compõem os grupos ser
medido pelo tempo de prática e/ou experiência naquela
comunidade de linguagem. Já que não existe um método de ensino
rígido (é impossível se ensinar a malícia ou a malandragem!) e o
fato desses microcosmos estarem em processo constante de fazer-
se, é necessário que os sujeitos se enraízem e vivenciem os códigos
que circulam no grupo para que os possa compreender e,
consequentemente, possa participar efetivamente da coletividade.
A individualidade só tem sentido no mundo-grupo capoeira se ela
é regida pela ética coletiva e consegue dialogar como signos,
significados e práticas elusivas da capoeiragem. A comunidade na
capoeira é um mundo de estruturas abertas, mas, para participar
dos rituais – como por exemplo da roda de capoeira, deve-se
minimamente estar ciente dos princípios que regem essa micro-
totalidade; é necessário “pisar no chão devagar”, pois, nunca há
certezas ou garantias.
Nesse sentido, o corpo-território que emerge não é uma
singularidade incomunicante e encerrada em si. De fato, o que
expressa, é a vontade de escapar da condição objetal, da zona do
não ser; é um desafio a violência colonial que o reduz a uma forma
vazia à mercê de fantasias do mundo branco. É o resultado de
operações e montagens de si, é a busca de corporificar variados
tipos de ambiguidade, inversões e metamorfoses; evoca lógicas de
significados e movimentos inesperados justamente para liberar o
desejo e negacear das malhas do poder que busca colonizá-lo. É a
retoma do corpo como um lugar digno de amor, afeto e cuidado.
O corpo-território é a retoma de si, mas, acima de tudo, de
um nós. Proliferante, está sempre aberto a potencialidades
expressivas, aos fluxos, à comunicação, à interação, ao diálogo, às
relações - desde que não aprisione e fixe os processos de entropia

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Geografias Pretas

que daí derivam. Pois, apesar de território, infringe continuamente


para um movimento em direção ao outro, um movimento do
encontro. Conforma uma alteridade radical que se despe das
fronteiras que o diferencia do outro, que os separam (a despeito da
violência colonial, escravista, racista), e busca o estabelecimento de
vínculos sem a perda da singularidade (GLISSANT, 2011).
Partindo sempre de relações que não são dadas ou
predeterminadas, o corpo-território se instaura pelo movimento
que visa reunir alteridades e reconhecer no outro/a algo
(em)comum, que não é propriedade de ninguém, mas, permite
instaurar elos malungagem.

O fim é o começo… na volta que o mundo deu, na volta que


o mundo dá

Deve ser enfatizado, apesar de a capoeira ser uma armação


aberta, não é um regime de simbolização do mundo sem controle,
onde tudo pode ser inserido, inventado ou desconstruído. A
capoeira é um “mesmo-mutável” (changing same), como diria Jones
[Amiri Baraka] (2010), que mantém uma longa e sólida-líquida
tradição; algo que foi fundado por um corpo-território rebelde
fruto da violência da escravidão e que permanece transfigurado em
outros corpos que ainda atritam com um tempo-espaço caótico,
atroz e genocida. Não é por casualidade, esse corpo-território,
regido por uma memória (in)visível, permanece em travessia entre
“rotas e raízes” (GILROY, 2012; RATTS, 2007) no velho-novo
mar de sangue.
Esse estado de terror atemporal e onipresente faz com que
uma zona (in)consciente e (in)visível do trauma do sequestro
persista. A violência, a morte e o terror na diáspora africana estão
na zona do inexplicável; é algo que não pode ser expresso
racionalmente; quem sofre/sofreu a violência não tem palavras
para explicar. Isso não quer dizer que não possa ser representado,
expresso, colocado para fora. As formas de se fazer isso são
distintivas. Usa-se o corpo da maneira mais incomum para tratar

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Geografias Pretas

desse tema; busca-se outras linguagens para representar o


irrepresentável.
Assim, é em uma realidade superfantástica, regida pelo
desarranjo entre vida e morte, que esse corpo-território navega
aberto e fechado, firme e escorregadio, sólido e plástico, e continua
transpassando portas e mais portas sem retorno. Nada se perdeu,
tudo se perdeu... E esse corpo-território (im)perceptível nos ensina
ainda a tirar vantagens dos contextos mais desfavoráveis possíveis.
Esse corpo-território, realizando ainda um duro e truncado jogo
com o sofrimento, nos ensina a afirmar os valores da vida, da
liberdade, da felicidade. Talvez por isso devêssemos não interrogar
a capoeira sobre seu enigma. Seu “código rebelde” é indecifrável,
nos ensina mestre Moraes2. Talvez fosse melhor pensarmos no que
temos a oferecer a ela, a capoeira. Decifra-me, malungo, malunga,
ou te devoro?

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94
Geografias Pretas

EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA


EM TERRITÓRIOS COBIÇADOS

Maria Albenize Farias MALCHER

Introdução

A luta contra o racismo, pelo reconhecimento do território,


pela valorização da cultura e saberes construídos e “pelo
desenvolvimento de políticas públicas que reconheçam, repare e
garanta o direito das comunidades quilombolas à saúde, à moradia,
ao trabalho e à educação”. (BRASIL, 2011, p. 3), apresentam-se
como desafios para as comunidades quilombolas. Do ponto de
vista da política educacional, a disseminação da educação básica em
comunidades quilombolas se torna um desafio no estado do Pará.
Estudos realizados sobre a situação dessas localidades demonstram
que as unidades educacionais estão longe das residências dos
alunos e as condições de estrutura são precárias, há escassez de
água potável e as instalações sanitárias são inadequadas. Os dados
que vem sendo obtido no censo escolar, não nos dão suporte para
analisar a qualidade da educação oferecida às comunidades
quilombolas e nem monitorar o volume dos recursos destinados à
formação continuada de professores que atuam em territórios
quilombolas, a ampliação e melhoria da rede física escolar e a
produção e aquisição de material didático no estado do Pará.
Ainda que a educação escolar quilombola seja tratada como
uma política pública de educação diferenciada na prática é
indiferente, sobretudo para a grande maioria dos profissionais que
atuam em espaços educacionais. É importante não perder de vista
que se vive num momento histórico em que a educação quilombola
é debatida desde a reforma educacional iniciada na década de 1990,
como a lei nº. 9.394 de 20 de dezembro de 1996, uma vez que a
LDB - Lei 9394/96, em seu art. 26, §4º - estabelece que o ensino

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Geografias Pretas

da História do Brasil deva levar em conta as contribuições das


diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro,
especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
A educação voltada para as relações étnicorraciais requer
que sejam pensados alguns elementos para dialogar com a
implementação da lei 10.639/03 (antecessora da Resolução
08/2012), tais como: a) Romper com as relações preconceituosas
entre professor(a)/aluno(a); b) Possibilitar que o afro-negro-
brasileiro encontre referências positivas; c) Enfatizar a
contribuição da população negra e as suas contribuições para a
formação territorial brasileira; e) O papel dos negros e negras na
definição e na defesa dos territórios da negritude, a exemplo dos
quilombos. Foi à lei 10.639/2003 que tornou valorativo algo que
deveria ser naturalmente trabalhado nas escolas: a cultura afro-
brasileira e africana. Porém, na prática, muitos gestores, políticos,
reitores e pró-reitores, há décadas, ignoram a história e a realidade
das comunidades quilombolas e como consequência, o fosso
aumenta, apesar da crescente organização dos quilombos em
associações, em movimentos, em grupos, em federações, e em suas
representações por dentro das instituições públicas.

Proposições no processo de construção política de uma


Educação Escolar Quilombola

Uma espiada nuns remanescentes de quilombos do Pará


Negros pretos, um montão/ Outros nem tão pretos, são/
Em terra de avós e bisas, desde a escravidão/ A luta grande
é mesmo, pra ficar naquele chão/ Poucos não são
parentes/ Nesse lugar de pessoas negras resistentes/ No
meio rural estão, mas sem cercas precisar/ Cada família
sabe, qual que é mesmo seu lugar/ Com forte ou rouco
cantar/ Os galos avisam, que é hora de acordar/ Uns
acordam de lua, outros, até com alegria/ Maioria, quase
sempre, vive cheia de energia/ Enquanto galinhas ciscam
nos terreiros/ Cachorros protegem o povoado como
porteiros/ Nuns tem luz elétrica o dia inteiro/ Noutros,

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Geografias Pretas

lanterna, lamparina e candeeiro/ No pé de árvores


frondosas/ Tem banco fincado pra assuntar e inventar
algumas prosas/ Nuns tem duas Matintas/Noutros, tem
uma só/ Assombração como essa, tira da tripa qualquer
nó/ Fofoca não é muita, só algumas leva a um brigar/ Mas
isso acontece, em todo e qualquer lugar/ Tem capela pra
rezar/ Escolinha pra estudar/ Campo bonito ou feio, pra
mulher e homem jogar/ No retiro, tipiti ou catitu tem um
lugar/ Um forno, frio ou quente/ Pois farinha não pode
faltar/ No roçado ou nas matas na hora de safar comida/
Ter um terçado amolado, é sempre boa pedida/ No pescar,
paciência, silêncio, talvez até coisa não palha/ E canoa
amiga, garante pesca que valha/ Um açaí do bom, pede
farinha de mandioca/ Nada há de melhor, pra aliviar uma
forte broca/ Uns apreciam cupuaçu, taperebá e bacuri/
Outros não dispensam um grude, com jambu e tucupi/ Se
dor de barriga ou outra doença surgir/ Benzedeira tem
ervas e óleos, pra logo acudir/ Alguns desse jeito não
gostam não/ Mas muitos trabalhos, são feitos em mutirão/
Um sol lascado na roça, um repouso na sombra, carece/
Uma farofa de ovo, qualquer quilombola merece/
Artesanato de barro, de palha e cipó/ Vendem junto com
copaíba, andiroba e até goró/ Banho no rio sempre é bom
tomar/ Não deve é ser à tardinha, pra malária não pegar/
A pé, a cavalo, de baike, moto, rabeta ou caminhão/ Difícil
de chegar, é mesmo de avião/ Como a roça é trabalho duro
prá danar/ Um lazer tem quase sempre, data, hora e lugar/
Siriá, carimbó, lundu ou marambiré/ Não amofinam pro
samba de cacete, marujada ou aiué/ Mas não faltam regue,
rep, brega e lambada/ Nessas festas de gente preta
animada/ Até em festa de santo, pode rolar uma cana
abençoada/ Mas é só pra animar, um pouco mais a
moçada/ Nuns, recados vão por internet e até por celular/
Noutros, é só de boca em boca, para tudo anunciar/
Quando um raio risca e alumia o céu, um temor logo
aparece/ Correr a cobrir espelhos, é coisa que carece/ Na
beira de rio, igarapé, estrada ou perto da cachoeira/ Todos
sabem que a luta, é sempre pra vida inteira/ Se ter ancestrais

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Geografias Pretas

e morrer, são únicas certezas de nós viventes/ Vale ver luar,


junto com essas pessoas valentes/ Na beira do Trombetas,
do Amazonas ou do Acará/ No Marajó e em todo lugar/
Tem quilombos no Pará. (ENEBÊ, 2017).

Conduzida pela ideia de compreender a dinâmica sócio


espacial e, por assim dizer, a maneira como tal dinânica sob
vários aspectos, acredito ser fundamental apontar essa
diversidade de questões no texto-rimação. E, com atenção a elas,
refletir sobre o espaço vivido que, no olhar dos quilombolas e
também do meu, de alguma forma, encontra relação com a
produção do espaço amazônico. Em seu sentido mais amplo
representa o modo de vida de um grupo sem deixar de
apresentar as mazelas do racismo. Esta reflexão coaduna com a
interpretação da territorialidade como um sistema de direitos
que codificam o espaço pela sobrevivência de grupos, de seus
traços culturais e modos de vida, os quais se produzem e
reproduzem no território, onde a “ cultura é vista como um
reflexo, uma mediação e uma condição social. Não tem poder
explicativo, ao contrário, necessita ser explicada (CORRÊA,
2003, p.13).
Isso perpassa por repensar as posturas do ‘Estado’ e da
‘sociedade’ no campo da justiça social e do bem viver da
população no acesso aos direitos básicos e eliminação de
enormes desigualdades no campo do trabalho, emprego e
geração de renda que para a maioria da população negra não tem
se espacializado como tal. Para Bonnemaison (2002), é pela
existência de uma cultura que se cria um território e é por ele
que se fortalece e se exprime a relação simbólica existente entre
a cultura e o espaço. (p. 101-102). Isto significa também pensar
em uma ciência diferente, inspirada e renovada por experiências
de vida historicamente preteridas da produção cientifica e
tecnológica, o que evidencia também a necessidade de
fortalecimento do protagonismo da população negra para que
se tenham patamares mínimos de interlocução que possibilitem
mudanças.
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Geografias Pretas

Ainda que do ponto de vista de sua da organização,


constatou-se que a linguagem mais eficiente de ser entendida, é
aquela que individuo utiliza para mostrar suas especificidades,
sobretudo, étnica na qual estão agregadas suas referências e
todas as suas vivências religiosas, fisiológicas, políticas, culturais,
devendo ser apreciadas e reconhecidas como valores atenuantes
à cultura de toda a sociedade amazônica. A identidade se
comunica de maneira interna e externa, através de práticas
simbólicas e discursivas, (BOSSÉ, 2004), e está
indissociavelmente ligada à construção das representações que
fazem certas porções do espaço inseparáveis da construção das
identidades (CLAVAL, 1999).
A construção de uma educação quilombola não se resume
a uma ou duas ações pontuais e sim atingir a totalidade das relações,
nas quais a escola e o ensino para a educação das relações
etnicorraciais estão inseridos. Vale ressaltar que em meados das
decadas de 1980 e 90 era muito comum o acesso à educação em
comunidades quilombolas como prática de aprender a ler e
escrever com auxílio de pessoas denominadas professoras (os)
leigas (os), mais tarde é que surge às escolas de 1ª a 4ª série (atual
ensino fundamental I). Ainda hoje, muitas questões não foram
superadas e as condições de muitas escolas de ensino fundamental
I, localizada em comunidades quilombolas muitos professores
temporários são contratados pelo poder executivo ao “gosto do
gestor” e enfrentam certas situações graves de racismo. De acordo
com as Diretrizes Curriculares Nacionais, o Brasil estabeleceu um
modelo de desenvolvimento excludente que impediu a milhões de
brasileiros o acesso e a permanência na escola.
A educação quilombola, além de valorativa é uma ação
política reparadora, que, se compreendida no bojo das relações
socioespaciais destas comunidades com o território, torna-se
relevante, pois “é possível afirmar que a história dessa parcela da
população tem sido construída por meio de várias e distintas
estratégias de luta”. (BRASIL, 2011, p. 3) e representam espaço de
luta, resistência e avanço que se contrapõem ao desenvolvimento

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Geografias Pretas

imposto à Amazônia. Dessa forma, o debate acerca da educação


quilombola tende avançar no que se refere à inclusão de conteúdos
específicos, histórico-social da comunidade entre os temas
adotados nos conteúdos curriculares em geral, especialmente nos
municípios onde haja presença de tais comunidades.
Voltando ao debate da espacialização de todos os níveis da
educação básica, grande parte das escolas quilombolas oferece
somente o ensino fundamental I (1º ao 5º ano do ensino
fundamental), para dar continuidade aos estudos os (as) estudantes
quilombolas tendem a percorrer longas distâncias para estudar, a
dificuldade no deslocamento é um dos fatores que contribuem
para a evasão escolar nas áreas quilombolas. Dessa forma,
infelizmente a comunidade se defronta com a resolução de
problemas imediatos e básicos referentes à construção de vias de
acesso, bem como transporte escolar público regular, pois quando
falta transporte escolar.
Reitero que a maioria das escolas localizadas em áreas
quilombolas não oferece este nível de escolarização e a população
jovem destas comunidades é deslocada para outros
estabelecimentos de ensino, distantes da comunidade. Isto mostra
que a juventude quilombola, até hoje, não teve ainda acesso à
educação da forma que lhes é de direito. Normalmente essa mesma
parcela da população estudantil tem um período para estudar,
porque chega um momento que deixam de frequentar a escola para
trabalhar, para sobreviver.
E por último, ressalto que o meu propósito em discorrer
sobre a educação escolar quilombola parte da compreensão de que
a escola é uma mediadora política no fortalecimento de estratégias
de resistência e do modo de vida das comunidades quilombolas e
da salvaguarda de seu território. Assim como, para que não
ocorresse irrelevância da questão educacional no processo de
construção da identidade coletiva, sobretudo da juventude
quilombola.
Uma leitura antirracista busca elementos que considerem a
história da população discriminada, buscando romper com o

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Geografias Pretas

diálogo que presenteia a todos um conhecimento onde essa


situação continua velada. O que o Santos (2005, p. 67) chama de
globalização, seja uma forma de “globalismos localizados” ou
“localismos globalizados”, é o processo que cria o global, enquanto
posição dominante nas trocas desiguais e o que produz o local,
enquanto posição dominada e, portanto, hierarquicamente inferior
e primeira forma da globalização. Isso, segundo Santos (2005,
p.71), “consiste no impacto específico nas condições locais
produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que
decorrem do localismo globalizado”.
Dessa forma, a globalização hegemônica, na visão de
Santos e na nossa, é controlada pelas grandes corporações
capitalistas, pelo mercado financeiro e de capitais, apoiada por seus
representantes em todas as partes do mundo. A educação
quilombola, pautada numa compreensão de globalização contra-
hegemônica, caracterizada pela “ação insurgente de possibilidades”
(SANTOS, 2005) e de resistências cotidianas entre os quilombolas,
pois estabelecem relações recíprocas, que vão desde
tensionamentos, disputas, alianças e cooperações. Há momentos
em que até a apropriação das tradições é transformada em
fundamento legal para a garantia de direitos educacionais e dos
princípios da educação escolar quilombola, que em seu Art. 7º, da
resolução 08/2012 rege-se nas suas práticas e ações político-
pedagógicas a luz do:

[…] VIII - reconhecimento dos quilombolas como povos


ou comunidades tradicionais; XIX - conhecimento dos
processos históricos de luta pela regularização dos
territórios tradicionais dos povos quilombolas; X - direito
ao etnodesenvolvimento entendido como modelo de
desenvolvimento alternativo que considera a participação
das comunidades quilombolas, as suas tradições locais, o
seu ponto de vista ecológico, a sustentabilidade e as suas
formas de produção do trabalho e de vida. (BRASIL, 2012).

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Geografias Pretas

Sabe-se que a base do direito costumeiro é a que se funda


na posse e uso de uma terra partilhada por grupos de parentes,
descendentes, em sua maioria, dos que primeiramente se
estabeleceram no lugar. A partir da noção de resistência de Scott
(2011, p. 233), busco refletir sobre alguns enfrentamentos
cotidianos da luta pela permanência no território e a importância
da educação. Percebo que as comunidades quilombolas apesar de
apresentarem diferenças, acionam uma identidade comum em
torno da manutenção da terra para cultivo familiar, ora elaborando
estratégias de resistência à dominação, ora manejando a
regularização fundiária de seus territórios, na tentativa de defender
seus interesses e direitos. Observo que a defesa dos interesses
perpassa por escolhas inclusive morais, articuladas a um repertório
cultural dos quilombolas em suas diferentes vivências cotidianas,
permitindo que estes resistam àqueles que estão em posições
dominantes nas relações das quais participam.
Na medida em que é nele que se produz e reproduz vida
material da comunidade, no sentido de que as relações
socioespaciais entre os membros do próprio grupo ou entre outros
grupos são reconstruídas, se constituindo e afirmando como
sujeitos políticos na luta pelo exercício ou mesmo pela invenção de
direitos a partir de sua identidade. No processo de dominação,
imposição dos valores de um grupo sobre os de outro, a discussão
sobre identidade está na base da discussão dos direitos dos grupos
e das lutas contra as hegemonias culturais que são, acima de tudo,
políticas e econômicas, mas também formas enraizadas de relações
de poder dominantes, intensificada com o processo de
globalização.
Para Quijano (2005, p. 120), a globalização em todas as suas
formas de representação, expressa a “colonialidade do poder”. O
atual modelo padrão de dominação se dá a partir da articulação de
alguns fatores, dentre eles a “colonialidade do poder” tendo a ideia
de “raça”, como fundamento do padrão universal de classificação
social básica e de dominação social.

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Geografias Pretas

Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a


classificação social da população mundial de acordo com a
ideia de raça, uma construção mental que expressa à
experiência básica da dominação colonial e que desde então
permeia as dimensões mais importantes do poder mundial,
incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo.
(QUIJANO, 2005, p.117).

As relações de poder são caracterizadas pela presença


permanente de elementos como a dominação, a exploração e o
conflito (QUIJANO, 2005, p.119). Requer uma compreensão mais
alargada da história da escravidão no Brasil, notadamente a partir
da literatura pós-colonial e das relações entre o Brasil e Portugal,
que se mantiveram intactas nas relações raciais no Brasil até os dias
atuais.
Essa relação também contribui no emergir da ideia de
“raça”, a mais profunda e perdurável expressão da dominação
colonial, impostas sobre toda a população do planeta na expansão
do “colonialismo europeu” (QUIJANO, 2005, p.118). Neste
cenário, há emergência de um novo tempo, gestado a partir dos
territórios e dos lugares marcado pela resistência dos lugares às
perversidades impostas a ele pelo mundo. Um elemento que
contribui na análise deste processo é a abertura para uma leitura
antirracista.
Penso a noção de resistência cotidiana como instrumento
teórico-metodológico eficaz para compreensão da identidade
política, já que isto pode ser combinado ao direito costumeiro de
posse da terra, ocasionado pela irradiação (ou dispersão) das
famílias na própria comunidade e na formação de outras
comunidades. James Scott (2011, p. 229) amplia essa noção,
incluindo os princípios de reciprocidade e de subsistência ligadas a
um conjunto de deveres e obrigações mútuas que servem para
orientar as diversas formas de resistências cotidianas frente aos
mais “fortes”, o que é percebido nos princípios legais da educação
escolar quilombola:

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Geografias Pretas

XVI - reconhecimento e respeito da história dos


quilombos, dos espaços e dos tempos nos quais as crianças,
adolescentes, jovens, adultos e idosos quilombolas
aprendem e se educam;
XVII - direito dos estudantes, dos profissionais da
educação e da comunidade de se apropriarem dos
conhecimentos tradicionais e das formas de produção das
comunidades quilombolas de modo a contribuir para o seu
reconhecimento, valorização e continuidade;
XVIII - trabalho como princípio educativo das ações
didático-pedagógicas da escola;
XIX - valorização das ações de cooperação e de
solidariedade presentes na história das comunidades
quilombolas, a fim de contribuir para o fortalecimento das
redes de colaboração solidária por elas construídas;
XX - reconhecimento do lugar social, cultural, político,
econômico, educativo e ecológico ocupado pelas mulheres
no processo histórico de organização das comunidades
quilombolas e construção de práticas educativas que visem
à superação de todas as formas de violência racial e de
gênero. (BRASIL, 2012).

Observa-se nos princípios legais da educação escolar


quilombola que o direito costumeiro não está necessariamente
ligado à ausência de documentação legal da posse da terra, mas nas
dimensões imateriais do território reivindicado, dos costumes,
tradições e manifestações culturais próprias de cada comunidade
negra rural, onde as ações espacializadas e difusas dos quilombolas
são vistas à luz de Scott (2002 e 2011), como formas cotidianas de
resistência, que possuem uma dimensão oculta. É possível concluir
que a Lei nº 601, de 18/09/1850 (Lei de Terras), dentre outras
coisas, criou obstáculos de todas as ordens o acesso legal às terras,
coibindo a posse, sobretudo dos indígenas, escravizados e libertos,
pois institui a aquisição pela compra, como forma de acesso à terra,
o que tornou impossível a posse para os povos tradicionais do
campo, das florestas e das águas. Para Martins (1994) “os próprios
fazendeiros estariam em condições de personificar as necessidades

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Geografias Pretas

de reprodução capitalista do capital, não dependendo de uma nova


classe, distinta dos proprietários de terra, para viabilizar-se
historicamente” (MARTINS, 1994, p. 55). Para esse autor, a Lei
de Terras foi um retrocesso em relação à Lei de Sesmarias e no
regime sesmarial, “o Estado, mantinha sobre a terra a propriedade
eminente, podendo arrecadar terras devolutas ou abandonadas e
redistribuí-las para outras pessoas, como fora comum até o século
XVIII”. (p. 76). Dessa forma, com a criação de uma legislação a
exemplo da Lei de Terras, o papel do Estado no processo de
concentração fundiária atende exclusivamente aos interesses de
uma elite agrária que concentra a propriedade da terra e poder
político.
É possível acreditar que a decisão de lutar pela terra em
meados da década de 1980, era tida, basicamente, como uma
alternativa para permanecer na terra a partir da crença de um
direito fundiário e histórico, até mesmo por usucapião, uma vez
que a Lei de Terras foi aprovada em 1850, quando a população
negra ainda estava sob o regime de escravidão legalizada, não
podendo, portanto, acessá-la.Nesse caso, vale registrar que no
âmbito estadual, o Pará possui referência legal específica uma vez
que existe dispositivo na Constituição Estadual que reconhece o
direito dos quilombolas à propriedade da terra, estadualizando os
termos do art. 68, ADCT. Assim, vê-se que o Art. 322, da
Constituição Estadual de 1989 reza: “aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-
lhes títulos respectivos no prazo de um ano, depois de promulgada
esta constituição” (PARÁ, 2012, p.169). É sabido que o prazo de
um ano, não foi cumprido, até porque surgiram muitas dúvidas,
inclusive ligadas à autoaplicação do dispositivo. Insisto em ressaltar
que esses dispositivos podem ser considerados um avanço na
história do país, inclusive porque permite visibilidade à questão,
validando legalmente o antigo debate acerca da existência dos
quilombos, sua relação com a terra e a própria formação de um
território quilombola.

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Geografias Pretas

Vale enfatizar que os principais direitos das comunidades


remanescentes de quilombos reconhecidos através da Constituição
Federal - CF foram, basicamente, a outorga do título de
reconhecimento de propriedade das terras ocupadas (art. 68) e os
direitos culturais (arts. 215 e 216). O artigo 215 prevê que “o
Estado garantirá a todos, o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais […]”. Nesse
sentido, estabelece em seu § 1º que “o Estado protegerá as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras,
e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional […]”. Já o artigo 216 no §5º estabelece que “Ficam
tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos […]” (BRASIL,
1988, p.134-135).
Não se deve esquecer que a juvenilidade da identidade
quilombola como sujeito de direito, foi atribuída pós-1988, nesse
sentido, uma grande arma das comunidades poderá ser a identidade
territorial dos que pleiteiam o território que ocupa. Se por um lado
a emergência do artigo 68 da CF indica um avanço em termos de
aquisição e garantia de direitos quilombolas - fruto de intensas lutas
políticas. Por outro lado, a efetivação de tais direitos, a
implementação das políticas destinadas para territórios
quilombolas, o reconhecimento das identidades atribuídas e
acionadas, estão em permanente situação de ameaça –
contrariando normas, o INCRA tem exigido parecer histórico-
antropológico, no RTID – Relatório Técnico de Delimitação e
Identificação, o que invalida, de certa forma, a autoidentificação.
Insisto em apontar que o reconhecimento de que a titulação do
território das comunidades negras rurais é um grande passo diante
da estrutura de um país conservador e se define como um dos
principais desafios, sobretudo, quando esta questão refere
diretamente na problemática agrária, ou seja, na permanência e
reconhecimento das terras remanescentes de quilombos e no seu
papel no cenário atual de transformação do campo brasileiro.

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106
Geografias Pretas

Outro aspecto a destacar é que as desigualdades


sócioespaciais estão estruturadas de tal forma, que sempre é
preciso reconhecer a desigualdade, para que sejam proporcionadas
oportunidades iguais aos sujeitos. A categoria comunidade
quilombola ganhou um significado específico devido a uma
façanha política cujo mérito cabe às articulações de organizações e
pessoas em diferentes níveis, sobretudo, do movimento negro
(MOVINE).
Bentes (2014) compreende movimento negro como

[...] todas as formas organizativas (juridicamente registradas


ou informais) que desenvolvem atividades que podem
favorecer ao processo de superação do racismo anti-negro,
mesmo as que não se explicitam como fazendo parte do
mesmo (MOVINE). Exemplo: um grupo de capoeira ou
um terreiro de umbanda, os quais, pelo simples fato de
valorizarem expressão da cultura e da religiosidade africana
negra, contribuem para o fortalecimento da cultura e
religiões de matrizes africanas, respectivamente, pode ser
considerado movimento negro. Importa destacar que o
movimento negro não representa a população negra com
um todo, embora a maioria das organizações busque essa
legitimidade, destaque-se, também, que ele não é composto
somente por pessoas negras. (BENTES, 2014, p.64).

Em uma compreensão ampla é forçoso um


reconhecimento crítico de que a maioria das associações até então
criadas, e até mesmo parte de suas assessorias, não dominam, os
meandros legislativos-jurídicos que possam vir a beneficiá-las ou
prejudicá-las. Relembro que as comunidades quilombolas desde o
início construíram suas territorialidades em meio aos conflitos e às
tensões em torno da permanência na terra e apropriação de seus
recursos, o que muda no contexto atual é o reconhecimento deste
sujeito político, que permite forjar estratégias que demonstram
suas territorialidades, mesmo que seja pela sobreposição de
territórios múltiplos, em diferentes escalas. Desse modo, diante da
titulação ou certificação de uma comunidade quilombola ou até no
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107
Geografias Pretas

simples ato de abertura de um processo de titulação, o Estado se


mantém resistente e por vezes desconhece as territorialidades
quilombola no estado do Pará.
Dessa forma, a territorialização em uma determinada área,
não implica somente em delimitá-la territorialmente e sim
dinamicamente, quando as fronteiras criadas, afetem o
comportamento social por força do controle de acesso por parte
de autoridades. Souza (2003) afirma ser o território “um espaço
definido e delimitado por e a partir das relações de poder”
(SOUZA, 2003, p.78). Neste caso, o território quilombola pode ser
considerado apenas um espaço em termos de base, limites
territoriais em que por vezes é diretamente relacionado com a
forma como o Estado a cria. Redimensionando sempre em torno
da lógica de que há uma dissonância importante que tem a ver com
a própria noção de “quem domina ou influência e como domina
ou influencia esse espaço? [...] quem influência ou domina quem
nesse espaço, e como?” (SOUZA, 2003, p.79). Geralmente
primeiro esses projetos são elaborados por alguém em posição de
poder, e só depois vem à fase de "envolver" grupos locais neles.
Desta forma, percebo que dependendo do “projeto de território”
e dos sujeitos envolvidos, a ação de poder pode configurar
apropriação material e imaterial, dominação e influência.
Observo que, se por um lado a emergência do artigo 68 da
Constituição Federal de 1988 indica um avanço na aquisição e
garantia de direitos quilombolas, por outro, a efetivação de tais
direitos – incluindo a implementação das políticas destinadas para
territórios quilombolas – está em permanente situação de ameaça.
Dessa forma, o fortalecimento organizativo das comunidades e
associações quilombolas, não somente no apoio às reivindicações
básicas ligadas à titulação de terras, mas também, reivindicando o
acesso e permanência nas instituições de ensino superior, mediante
a reserva de vagas no PSE - Processo Seletivo
Especial/Quilombola. Não obstante, a precariedade da estrutura
educacional nestas comunidades se apresenta como um obstáculo
da manutenção efetiva dessas vagas enquanto forem necessárias,

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108
Geografias Pretas

uma vez que o acesso ao ensino médio é uma das dificuldades


quase sempre intransponível.
Decerto, a espacialização da política da educação
quilombola envolve mais questões do que as relacionadas com o
ato político em si, uma vez que as políticas de ação afirmativa para
os territórios quilombolas requerem, sobre essas perspectivas, uma
atenção diferenciada para as condições de elaboração,
planejamento e execução de tais ações cuja finalidade é configurar
um plano horizontal da dinâmica dos elementos da territorialidade
quilombola de cada comunidade, sobretudo, na Amazônia, onde
as distâncias e dificuldades de acesso têm sido fatores de
isolamento e exclusão.

Considerações Finais

É sabido que a educação é considerada direito de todos,


dever do Estado e família, sendo promovida e incentivada
juntamente com a sociedade, propiciando o desenvolvimento
pessoal, o preparo para exercer a cidadania e qualificação para o
trabalho (BRASIL, 1988). A educação também pode ser vista
como um fator de coesão e “precisa abandonar um modelo no qual
se esperam alunos homogêneos [...] diferentes, e incorporar uma
concepção que considere a diversidade tanto no âmbito do
trabalho com os conteúdos escolares quanto no das relações
interpessoais” (ARAÚJO, 1998, p. 44). Reconhecendo a
importância a e relevância da temática em discussão a educação
básica carece implementar ações ligadas as Leis nº 10.639/2003, nº
11.645/2008 e Resolução 08/2012.
A educação das relações etnicorracial pode e deve ser
trabalhada no ambiente escolar, permeando o desenvolvimento
das atividades pedagógicas inovadoras. Assim, a educação
quilombola é parte de um projeto político-pedagógico que se
quer presente nas instituições públicas de ensino, pois nosso
objetivo é contribuir na construção de uma sociedade plural,
ética, solidária e capaz de valorizar todos os aspectos ligados as

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109
Geografias Pretas

necessidades da vida em sociedade, numa perspectiva política,


crítica, renovada e antirracista da educação brasileira.
Nesse sentido, o pensamento de que a escola,
independentemente de sua natureza, é um espaço por excelência
de manifestações culturais com múltiplas faces onde o singular e o
plural se encontram num processo permanente de trocas de
experiências, e que deve necessariamente ser apreendida e
concebida como tal. Assim, chamamos a responsabilidade de todos
que fazem parte desse movimento da educação antirracista e de
valorização da diversidade que se propõem a romper com os
vícios, desconstruir os estereótipos, preconceitos e a discriminação
que por muito tempo a Educação no Brasil veiculou e ainda se faz
presente. Comungamos da ideia de que o/a educador/a é por sua
natureza ideológica socialmente produzida, atuante, criativo/a,
crítico/a, antirracista.
Desta forma, referido tema se coloca de forma a refletir
o contexto que ora vivenciamos em tempos de globalização em
suas mais variadas formas de manifestação e dominação que
interfere, sobremaneira, na dinâmica espacial de diferentes
grupos sociais, culturais e étnico-lingüísticos que lutam pelo
firmamento de seus espaços como símbolo de resistência e
representação do sujeito, em particular, no universo escolar.
Portanto, é necessário enfatiza o papel da diversidade cultural
na escola e a presença da coletividade dos grupos culturais e
étnicorraciais. Não obstante a isso, ao tratar das especificidades
que compõe a diversidade cultural, independentemente das
diferenças a escola estará cumprido sua função social e política.

Referências

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brasileira. In: AQUINO, Júlio Groppa (org.): Diferenças e
preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. 4ª Ed. São
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Geografias Pretas

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_______. Decreto Presidencial 4.887/2003 de 20 de novembro
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Geografias Pretas

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Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

112
Geografias Pretas

A QUESTÃO RACIAL E A GEOGRAFIA


ESCOLAR CRÍTICA: CAMINHOS PARA
UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

Aiala Colares Oliveira COUTO

A geografia crítica e a invisibilidade da questão racial

De início, destaca-se que a Geografia crítica se apresenta


como uma nova corrente do pensamento que surge na segunda
metade do século XX em países como: EUA, Inglaterra, Suécia,
Itália, França e Brasil. Na escola americana a chamada Geografia
radical teve grande destaque nas publicações da revista Antipode
durante os anos de 1960 e 1970. Mas, a celebre obra de Yves
Lacoste intitulada “A geografia antes de mais nada serve para fazer
a guerra” (1976) cria o termo Geografia crítica com grande
repercussão na Europa, principalmente na Escola francesa, que
tinha geógrafos fortemente influenciados pela escola americana de
Geografia. Somado a isso, cabe aqui destacar a importância das
publicações de textos e artigos da revista francesa Herodote.
Diante disso, a Geografia crítica é uma corrente contrária à
geografia quantitativa, pois considera as contradições sociais
resultantes do modo de produção capitalista e da divisão
internacional de trabalho, os quais afetam negativamente
principalmente os países subdesenvolvidos. Portanto, ela se soma
aos vários movimentos que buscam romper com esse modelo
contraditório que invisibiliza questões centrais que fazem entender
a lógica de organização e expansão do capital.
Para Corrêa (2001, p. 23), a Geografia crítica coloca-se
como “uma revolução que procura romper, de um lado, com a
geografia tradicional e, de outro, com a geografia teorético-
quantitativa”. Moreira (2008) faz uma importante observação
acerca da ciência geográfica, isso porque, para este autor, somente

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113
Geografias Pretas

é possível entender a Geografia sea analisarmos como uma ciência


social que tem o espaço como seu objeto de estudo, mas não um
espaço que é receptáculo das ações, apenas a base física, mas um
espaço que é produzido socialmente, a partir do trabalho. Em sua
necessidade de sobrevivência, o homem intervém na natureza
transformando-a, via processo de produção de bens necessários à
sua existência; ao mesmo tempo em que nessa relação produz o
espaço geográfico transforma a si mesmo de um ser animal em um
ser social.
Para Moraes (1999), no nível acadêmico, os geógrafos
críticos opõem-se ao empirismo exacerbado da Geografia
tradicional, além de refutarem sua análise pautada no mundo das
“aparências”, decorrente da fundamentação positivista, a qual visa
a busca de um objeto automatizado, a ideia absoluta de lei, não se
preocupando com a diferenciação das qualidades distintas dos
fenômenos humanos, entre outros. A geografia pragmática,
também com fundamentação neopositivista, é fortemente criticada
pelo conteúdo acrítico, “alienante”, vinculado à legitimação do
poder do Estado burguês. A seguir, destaca-se uma tabela
simplificada que tenta apresentar de forma didática a evolução das
correntes do pensamento geográfico.

Quadro 1 – Correntes do pensamento geográfico


ESCOLA CORRENTE CONTEXTO CONCEITOS
- Tradicional Determinismo Final do séc. XIX Espaço vital e
alemã território
- Tradicional Possibilismo Primeira metade Região e paisagem
francesa do séc. XX
- Lógico- Teorética- Década de 1950 Espaço relativo
positivista quantitativa
- Materialista Geografia Década de 1970 Espaço, região,
dialética; crítica território, lugar,
- natureza, redes,
Fenomenológica; paisagem,
- Existencialista sociedade etc.
Fonte: Adaptado Moraes (1999).

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114
Geografias Pretas

Embora as correntes do pensamento geográfico tenham


passado por um processo de evolução – que sai de uma Geografia
clássica tradicional e passa para uma Geografia crítica mais aberta
à análise das questões sociais e contraditórias impostas pelo modo
de produção capitalista – em grande medida, ainda foram muito
tímidas ou incipientes as abordagens que consideravam as relações
entre classe, raça e gênero como elementos importantes para a
compreensão dos conflitos sociais. É preciso chamar a atenção
para a necessidade de se compreender que raça e racismo são
elementos estruturais do capitalismo (MBEMBE, 2019), logo, não
estão desvinculados da estrutura de classe, da relação sociedade-
natureza, da exploração do trabalho, da dominação de gênero e da
dominação religiosa.
Nesse contexto, a geografia acaba por reproduzir a ciência
colonial que transforma o corpo-negro-sujeito em corpo-negro-objeto,
tendo na raça uma tecnologia de poder, como nos alertou Foucault
(1976), e no racismo um dispositivo de violência, como destaca
Mbembe (2018). Desse modo, a geografia política que nasce na
França e na Alemanha teve na necropolítica1 (MBEMBE, 2006)
sua ferramenta de sujeição e docilização dos corpos – fato este que
deve ser considerado pela Geografia crítica.
No Brasil, nos anos de 1970 vivia-se um contexto político
marcado pelo autoritarismo dos governos militares pós-golpe de
1964. Tratava-se de um projeto de modernização conservador que
potencializava problemas sociais e mascarava a perversidade
sistêmica da ditadura; tais fatos passam a ser questionados por
artistas, intelectuais, políticos, dentre outros. É nesta década que a
geografia crítica chega ao Brasil através do primeiro encontro da
Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) na cidade de
Fortaleza, em 1978, todavia, de acordo com Vesentini (2001)
professores da educação básica (ensino fundamental e médio) já
vinham atuando a partir de uma Geografia crítica, desenvolvendo

1 Necropolítica significa a gestão da morte como bem ressalta Mbembe (2006), é deixar
morrer e fazer viver, é a expressão máxima da soberania em decidir quem morre e quem
vive.

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115
Geografias Pretas

práticas pedagógicas em sala de aula por intermédio de um diálogo


realizado junto aos professores das universidades.
Vale destacar que a Geografia crítica vai ser uma defensora
assídua de uma radical transformação no ensino de Geografia nas
escolas. Ela deveria se apresentar como uma disciplina que
contribuísse para desenvolver habilidades críticas e reflexivas dos
alunos. Seria também uma forma de negar o antigo método
tradicional de ensino, o qual se baseava por técnicas de
memorização de conceitos e conteúdo. Desse modo, temas como
Globalização e Revolução Tecnológica, desenvolvimento
econômico e relação centro-periferia, dentre outros, passaram a
fazer parte de incansáveis debates dentro das salas de aula.
Apesar de todo esse esforço, ainda é possível se deparar
com algumas reflexões acerca da epistemologia da Geografia que
mantêm certa invisibilidade em relação à questão racial. Isso
corresponde a um silenciamento da história dos povos negros, cuja
população foi subalternizada e transformada em objeto de troca
pelos processos de conquistas e narrativas coloniais, fator que
ajudou a construir a imagem da bárbara e animalesca do negro e da
África, pois assim se construiu o sujeito racial sob o imaginário
ocidental. Assim, fica evidente que a Geografia tradicional teve
destaque na criação desse imaginário e no processo de conquista.
De forma inconsequente encontram-se narrativas que
ainda reproduzem uma “geografia imaginária” (ESCOBAR, 2006)
que negligencia a existência de cartografias contra hegemônicas de
outros mundos e outras geografias, os quais o processo
civilizatório não conseguiu apagar totalmente. Não obstante, a
resistência desses povos ao mesmo tempo permitiu manifestações
das condições de existências e de vivências que reproduziram
identidades e diferenças tão presentes no espaço geográfico. Por
isso, é fundamental que o trabalho em sala de aula traga estas
reflexões e questionamentos, pois a Geografia deve ser libertadora
nesse sentido.
Desse modo, para Cavalcanti (1993, p. 77):

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116
Geografias Pretas

O trabalho do professor deve ser o de partir da realidade


do aluno, de suas observações e sensações – plano sensório
– para propiciar a ampliação de conceitos já existentes e
formação de novos conceitos que serão instrumentos para
uma análise crítica – planto abstrato/racional da realidade.
Nesse entendimento, o conhecimento do espaço
geográfico parte do plano sensório, do observável – a
paisagem geográfica -, para ir apreendendo suas relações
internas, atingindo, com isso, sua estrutura interna, seu
conteúdo – o espaço geográfico. (CAVALCANTI, 1993, p.
77)

Nestes termos, as transformações que o mundo


contemporâneo vem passando, sobretudo, nos âmbitos
econômico, político, social e cultural, exigem um esforço
intelectual em avaliar as formas significativas de aprendizagem e o
método de ensino utilizado como transmissor do conhecimento.
Por isso, a Geografia destaca-se em sala de aula por ser uma
disciplina capaz de integrar os diversos conhecimentos para
explicar o mundo. Portanto, a Geografia crítica escolar nos ensinos
fundamental e médio deve buscar a sistematização do
conhecimento, trazendo para si questões de classe, raça e gênero.
Ela deve, também, se encarregar de propor quebras de paradigmas
que contribuam nas desconstruções de narrativas que reforçam o
racismo, a exclusão e as desigualdades.

O ensino de Geografia crítica e os desafios da luta antirracista


no Brasil

O debate anterior – apresentado de forma breve acerca da


evolução do pensamento geográfico, mesmo sintetizado – teve
como proposta trazer algumas reflexões, mesmo que iniciais, em
relação ao lugar das questões raciais nas geografias acadêmicas e
escolares. Ele se estende para além de uma provocação carregada
de posicionamento político sob influência da militância do
movimento negro, que denuncia cotidianamente o racismo

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117
Geografias Pretas

estrutural e institucional que violenta, subalterna e invisibiliza a


contribuição histórica e geográfica dos afrodescentes para a
construção da América Latina. Esse debate contribui para a
compreensão do território brasileiro e de suas diversidades.
Com efeito, questões importantes devem ser levantadas
pelo ensino de Geografia crítica no contexto escolar. Elas devem
servir como formas pedagógica de inclusão de pautas
socioafirmativas em seus currículos, pois, seja nas cidades, seja no
campo, os sujeitos a partir da construção dos sentidos de lugar,
território, região, paisagem e espaço têm suas bases de reprodução
da vida em sociedade. E essas relações passam por formas de
organização que trazem como marcas as lutas históricas por
afirmação de suas existências.
Certa vez Carlos (2007) destacou que o lugar se dá pela
tríada habitante-identidade-lugar. Para a autora, isso se revela no
plano da vida do indivíduo, em que este plano é aquele do local.
As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados
se exprimem todos os dias nos modos do uso, nas condições mais
banais, no secundário, no acidental. É o espaço passível de ser
sentido, pensado, apropriado e vivido por meio do corpo. Mas, é
também no plano do vivido que se dão as grandes contradições
que elegem o racismo como uma tecnologia de poder que cria as
condições estruturais que colocam a população negra em condição
de vulnerabilidade e sujeita ao extermínio e a todos os tipos de
violência e exclusão. Então, como fazer esse debate a partir do
ensino de geografia?
Para Holzer (1992, p. 4440), “O espaço vivido é uma
experiência contínua, egocêntrica e social, um espaço de
movimento e um espaço-tempo vivido...(que) ... Se refere ao
afetivo, ao mágico, ao imaginário”. Entende-se aqui que se deve
partir do princípio de que na geografia a efetivação de sua práxis
pedagógica ocorre por meio de um processo ensino-aprendizagem
fundamentado no princípio da flexibilidade curricular e na
transposição do ambiente de sala de aula; num processo constante
de integração com a sociedade e suas lutas e resistências.

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118
Geografias Pretas

Se o professor deve partir da realidade dos alunos para


levar para sala de aula temas importantes da sociedade, que os
fazem compreender as contradições socioespaciais, ele deve, antes
de tudo, fazer o esforço de obter conhecimento sobre o tema da
diversidade étnica e cultural no Brasil, assim como, deve também
ter a noção da importância de tratar de temas que ajudam na
desconstrução de estereótipos e preconceitos criados pelas
heranças da colonialidade. É uma aprendizagem necessária para o
educando ter um conhecimento amplo sobre a construção da
geografia no mundo.
Para Kimura (2008.p. 47),

A aprendizagem realizada facilita uma obtenção


subsequente de informações, uma vez que os dados a serem
incorporados adquirem contornos em um mundo que se
vai construindo no ser humano, servindo como referência
para essa incorporação. Não é uma incorporação nos
mesmos termos anteriormente realizados pelo ser humano;
ela integra o processo de aprendizagem que se dá na
interação, na relação ativa do ser humano e o fazer, com
mundo que é o seu ambiente. (KIMURA, 2008, p.47).

Para ser de fato crítica essa aprendizagem deve demostrar


que no Brasil o racismo estrutural é uma prática cotidiana que
vitimiza mulheres e homens, negras e negros, crianças, jovens e
idosos e que a população afrodescendente convive com situações
constrangedoras difundidas por narrativas e iniciativas de pessoas
que promovem o racismo. Portanto, o racismo é um tipo de
violência simbólica, psicológica e até mesmo física, a qual está
presente nas relações sociais e na construção do espaço geográfico.
O professor pode, inclusive, utilizar dados estatísticos que
tratam da distribuição espacial da população negra no Brasil, dados
sobre violência, ocupação, subemprego, dentre outros. É
necessário compreender que o racismo estrutural reproduz as
formas mais perversas de desigualdades sociorraciais presentes na
sociedade brasileira. Diante disso, há uma dívida histórica do

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119
Geografias Pretas

Estado em relação aos afrodescendentes, logo, são necessárias


medidas de inclusão –como as políticas socioafirmativas, a
exemplo do sistema de cotas raciais e reservas de vagas para o
ingresso ao ensino superior público. Apesar de importantes, essas
medidas tornaram-se polêmicas e sofrem severas críticas daqueles
que negam e naturalizam tal prática por acreditarem na existência
de uma “democracia racial”.
Não se pode negar as transformações que o mundo vem
sofrendo nas últimas décadas em relação ao conteúdo social. Hoje,
pautas importantes são levantadas por militantes que tentam
desconstruir um padrão hegemônico de sociedade, o qual se
fundamenta em um modelo Ocidental-hétero-normativo-branco-cristão.
Nesse cenário, surgem pautas como o respeito às diversidades de
gênero; pautas feministas das mulheres que lutam por igualdade de
direitos e pelo fim do patriarcado que reproduz o machismo e a
violência contra a mulher; pautas como o direito dos povos
originários das Américas e o direito à vida da população negra que
luta contra o racismo que mata, daí o slogan “vidas negras
importam”. É em meio a esse debate que a Geografia crítica deve
ganhar destaque em sala de aula como a disciplina capaz de integrar
os diversos conhecimentos para explicar o mundo e sua
complexidade.
O desafio da Geografia escolar nos ensinos fundamentais
e médios é contribuir para a sistematização do conhecimento,
passando por um processo de descolonização do saber2. Os
movimentos de resistências das populações exigem um esforço
intelectual e um posicionamento da Geografia em avaliar as formas
mais significativas de aprendizagem e o método de ensino utilizado
como intermediador de um conhecimento que pode ser
preconcebido a partir da vivência do aluno. Logo, cabe à escola
um ensino verdadeiramente crítico de Geografia, a fim de torná-la
mais apropriada para explicar o mundo atual e sua metamorfose.

2 A colonialidade do saber diz respeito às formas coloniais que foram impostas pelos
colonizadores e que permanecem enquanto um colonialismo interno do ser, saber e do
poder. Esse tema é encontrando no texto de Anibal Quijano (2005).

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120
Geografias Pretas

Para Moares (1999), vários geógrafos críticos passaram a


ter um posicionamento em defesa de uma transformação da
realidade social, tendo o saber como importante arma para esta
transformação. Assim, o conhecimento científico assume um
conteúdo fortemente político e, portanto, a Geografia deve ser
militante, isto é, lutar por uma sociedade mais justa e servir como
um instrumento de libertação dos homens, pois ela tem condições
de fazer uma análise do conjunto de relações que atuam no
processo de construção do Espaço Geográfico.
O ensino de Geografia hodiernamente requer dos
professores a formulação de questões centrais, de forma que
despertem o interesse dos alunos para que a partir daí eles possam
entender o significado de se ensinar e aprender Geografia. Alguns
autores afirmam que o ensino de Geografia é fundamental para que
as novas gerações acompanhem e entendam as transformações do
mundo o que dá um status que a disciplina não possuía. Oliveira
(1998 apud STRAFORINI (2004, p. 51) acredita que existe um
renovado interesse pelo estudo da Geografia em virtude do
processo de aceleração da Globalização. Nesse sentido, a
Geografia se destaca como a única disciplina que possibilita o
acompanhamento das transformações recentes de forma integrada.
É nesse contexto que questões centrais sobre a luta antirracista no
Brasil e no mundo deve aparecer como um conteúdo
interdisciplinar e transversal.
Porém, ao analisar o contexto de ensino de Geografia
observa-se que as questões raciais são excluídas ou pouco
exploradas em temas de urbanização e população, por exemplo, e,
não raro, o continente africano é tratado como uma região de
conflitos, pobreza, miséria, guerras e endemias, como se na África
não houvesse aspectos positivos em relação à sua história e cultura.
Assim, história da África aparece nos livros de Geografia limitada
por um olhar moderno-colonial civilizatório, cuja análise nega o
lugar de fala dos sujeitos e reproduz processos de violências
epistêmicas, as quais passam despercebidas nos debates em sala de
aula.

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121
Geografias Pretas

Mesmo diante das contradições que faziam parte da vida


dos escravos, estes trouxeram para a colônia seus hábitos, suas
crenças, formas e expressões religiosas e artísticas, ou seja,
manifestações socioculturais que precisam ser apresentadas como
elementos identitários presentes nas várias formas de produção do
espaço geográfico, considerando o espaço geográfico como “um
conjunto indissociável, solidários e contraditórios, de sistemas de
objetos e sistemas de ações” (SANTOS, 1996, p. 63).
A formação de professores de Geografia no contexto
brasileiro, de acordo com Brasil (2008), deve ter uma

[...] política curricular, fundada em dimensões históricas,


sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e
busca combater o racismo e as discriminações que atingem
particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe-se a
divulgação e produção de conhecimentos, a formação de
atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial –
descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes
de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção
de uma nação democrática, em que todos, igualmente,
tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada.
(BRASIL, 2008).

Somos o último país do mundo a declarar o fim da


escravidão. Foram sustentados cerca de 300 anos de escravidão e
mesmo após o fim desse sistema o próprio Estado – alinhado ao
discurso da elite branca – criou todas as formas de invisibilidade,
exploração e exclusão dessa população. Os dados estatísticos sobre
as questões sociais no Brasil se encarregam de conformar a
necessidade de políticas públicas inclusivas para as negras e os
negros que se encontra nas áreas periféricas das grandes cidades,
nas áreas de conflitos fundiários no campo, nas zonas de tensão
social, no subemprego e no trabalho precário. Esse grupo
sociorracial está nas evasões escolares da rede pública de ensino,

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122
Geografias Pretas

nos baixos índices educacionais com altas taxas de analfabetismo e


na exploração do trabalho infantil.
Por isso, “a Geografia, necessariamente, deve proporcionar
a construção de conceitos que possibilitem ao aluno compreender
o seu presente e pensar o futuro através do inconformismo com o
presente. Mas esse presente não pode ser visto como algo parado,
estático, mas sim em constante movimento” (STRAFORINI,
2005, p. 50). O professor enquanto sujeito mediador do saber que
transmite ao aluno deve também avaliar sua própria formação e
rever suas práticas pedagógicas, mas, com o objetivo de criar um
desenvolvimento autônomo do aluno, analisando teoria e
praticidade.
Vesentini (1999) é categórico ao afirmar que, com a
Globalização, a escola não tem somente a função de desenvolver a
inteligência, o senso crítico, a criatividade a iniciativa pessoal, mas
também discutir os grandes problemas do mundo. Nesse ínterim,
é fato que um dos grandes problemas do mundo é não
compreensão de que a primeira mercadoria global do capitalismo
foi o Negro sequestrado da África pelo tráfico de escravos do
Atlântico, que construiu as bases para o capitalismo comercial, ou
seja: as mesmas que ajudaram a construir o racismo no mundo.
Por fim, deve-se atentar para o fato de que não é tarefa
única e exclusiva da Geografia o papel de transformação da
sociedade. Um debate interdisciplinar envolvendo o diálogo com
as outras disciplinas é o mais coerente. Assim, a interação entre os
diversos campos do conhecimento seria alternativa mais eficaz
para a construção de cidadãos mais críticos e conscientes de seus
deveres e direitos. Uma sociedade justa e solidária com a luta
antirracista é mister dentro e fora dos ambientes escolares;
portanto, professor, aluno, escola e sociedade devem estar
alinhados em uma interação constante com os saberes construídos
a partir de verdades escondidas ou nunca ditas antes e que hoje
devem aparecer no currículo escolar, sobretudo, no ensino de
Geografia crítica.

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123
Geografias Pretas

A luta antirracista no Brasil e o papel do ensino de Geografia

A chamada para o compromisso do ensino de Geografia


crítica no contexto escolar vem num momento importante de luta
antirracista no Brasil e no mundo. Esse contexto também traz
lembranças de algumas conquistas das comunidades negras que
foram marcadas pela criação de Leis Federais durante os governos
dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma
Rousseff (2011 a 2016). Nesse sentido, destacam-se leis
importantes, como:
a) Lei n° 10.639/03, que foi alterada pela Lei n° 11.645/08, o
que representa um marco histórico na política educacional
brasileira, onde orienta-se os sistemas de ensino e as suas
instituições a incorporarem o tema da diversidade étnicorracial e
indígena no Brasil aos seus projetos políticos pedagógicos e, por
conseguinte, em suas práticas educacionais;
b) Lei n° 12.288/10, que institui o Estatuto da Igualdade Racial,
destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos
e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de
intolerância étnica;
c) Lei n° 12.711/12, que destina a reserva de 50% das vagas
matriculadas por curso nas Universidades e Institutos Federais
para alunos oriundos integralmente do ensino público. As demais
50% vagas continuam destinadas para ampla concorrência.
Para Souza (2009), a população negra e a cultura afro-
brasileira propiciam ao professor(a) condições de rever práticas e
posturas, conceitos e paradigmas na construção de uma educação
antirracista que preze pela diversidade e igualdade racial. Segundo
Kaercher (1997, p. 61), “a geografia pode ser um instrumento
valioso para elevarmos a criticidade de nossos alunos. Por tratar de
assuntos polêmicos e políticos, a Geografia pode gerar um sem-
número limite quebrando-se assim a tendência secular de nossa
escola como algo tedioso e desligado do cotidiano".

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124
Geografias Pretas

Para Munanga e Gomes (2006), o debate sobre as políticas


de ação afirmativa e de cotas em benefício dos alunos negros e
pobres no ensino público universitário parte do quadro das
desigualdades sociais e raciais gritantes acumuladas ao longo dos
anos entre brancos e negros. Essas desigualdades são observadas
em todos os setores da vida nacional: mercado de trabalho, sistema
de saúde, setor político, área de lazer, esporte, educação, entre
outros. Ora, nomeio de todas essas desigualdades, a educação
ocupa uma posição de destaque como centro nevrálgico ao qual
são umbilicalmente vinculadas todas as outras.
Para Silvério (2006), as políticas de ação afirmativa são,
antes de tudo, políticas sociais compensatórias. Quando
designamos políticas sociais compensatórias queremos dizer que
são intervenções do Estado, a partir de demanda da sociedade civil,
as quais garantem o cumprimento de direitos sociais, que não são
integralmente cumpridos pela sociedade. As políticas sociais
compensatórias, por sua vez, abrangem programas sociais que
remediam problemas gerados em larga medida por ineficientes
políticas preventivas anteriores ou devido à permanência de
mecanismos sociais de exclusão. Uma outra característica das
políticas compensatórias é que elas têm uma duração definida, isto
é, elas podem deixar de ter vigência desde que inexistam os
mecanismos de exclusão social que lhes deram.
O ensino de geografia no Brasil assume a responsabilidade
de acompanhar as transformações do mundo e promover a
interação com a sala de aula, facilitando o papel do aluno enquanto
sujeito social e transformador do espaço geográfico. Assim, deve-
se “provocar o educando para conhecer e conquistar o seu lugar
no mundo em uma teia de justiça social. Parece ser simples, mas
não é, no mínimo, desafiador, como toda prática pedagógica”
(CASTROGIOVANNI, 2007, p. 44):

E para isso é fundamental uma adoção de novos


procedimentos didáticos: não mais apenas ou
principalmente a aula expositiva, mas, sim, estudos do meio
(isto é, trabalhos fora da sala de aula), dinâmicas de grupo
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125
Geografias Pretas

e trabalhos dirigidos, debates, uso de computadores (e suas


redes) e outros recursos tecnológicos, preocupações com
atividades interdisciplinares e com temas transversais etc.
(VESENTINNI, 2004, p. 228).

Nesse sentido, o ensino de Geografia, quando


considerados esses elementos, torna-se uma importante
ferramenta de luta e resistência ao racismo, à discriminação e ao
preconceito, pois é importante trabalhar em sala de aula as
categorias geográficas de espaço, território, lugar, paisagem e
região, demostrando a relação desses conceitos coma formação
dos espaços de resistências da população negra, destacando-se,
então, as periferias, favelas e os territórios remanescentes
quilombolas no campo.
A luta do movimento negro brasileiro pelo fim das
desigualdades raciais teve grande contribuição para a criação da Lei
nº 12.288, de 20 de julho de 2010, já apresentada neste texto como
o Estatuto da Igualdade Racial. Desse modo, em seu Art. 1° esta
Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à
população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a
defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o
combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Faz-se necessário um saber-fazer que ajude na construção de um
projeto de descolonização dos saberes e dos sujeitos, através do
ensino de uma Geografia crítica antirracista, “no intuito de que este
saber, fundamental na construção de visões de mundo e
comportamentos e posicionamento, contribua com o projeto de
educar para a igualdade racial” (SANTOS, 2009, p. 22).
O ensino de Geografia crítica antirracista também pode se
apresentar enquanto uma ferramenta ou instrumento de luta contra
a violência ou genocídio da população negra no Brasil. Existe uma
Geografia particular que define quem morre e quem vive, estabelecendo
uma necropolítica (MBEMBE, 2006) que torna corpos negros
matáveis e reforça a naturalização das políticas de extermínio
relacionadas ao racismo de Estado. Analisar esse fenômeno pelo

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126
Geografias Pretas

componente espacial é dever do ensino de Geografia, mas ela deve


explicar o contexto considerando as questões raciais.
Os resultados da pesquisa desenvolvida pelo Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP) apresentaram o Atlas da Violência
2019 e os números divulgados só reforçam as colocações acima.
De acordo com o estudo, a diferença da morte de negros em
relação a dos brancos é significativa. Por exemplo, em 2016 o
percentual de negros assassinados no Brasil era de 71,6% e em
2017 houve um incremento desses números, passando para 75%
das vítimas de homicídio. Ou seja, a taxa de homicídios de negros
(pretos e pardos) por grupo de 100.000 habitantes em 2017 foi de
43,1 e a de não negros (brancos, amarelos e índios) foi de 16,0.
Nestes termos, para cada indivíduo não negro assassinado a de
negros tem uma taxa de 2,7.
De acordo com os dados do Atlas da Violência (2019), em
um período de 10 anos, correspondendo de 2007 a 2017, a taxa de
letalidade de negros no Brasil cresceu 33% e a de não negros de
3,3%. Uma avaliação apenas do ano de 2017 apresenta um índice
com redução de 0,3% das mortes de não negros e um aumento de
7,2% de negros. O Brasil registrou 65.602 homicídios em 2017, o
que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para
cada cem mil habitantes. É o maior nível histórico de letalidade
violenta intencional no país.
Nesse mesmo ano 35.783 jovens foram assassinados no
Brasil, um dado preocupante que representa um índice de 69,9
homicídios para cada 100 mil jovens. Ainda segundo esse estudo,
entre 2016 e 2017 houve no Brasil um aumento de 6,7% na média
de homicídios de jovens. Na última década esse número passou de
50,8 pessoas entre 15 e 29 anos executadas por grupo de 100 mil
jovens em 2007, para 69,9 em 2017 – aumento de 37,5% sendo
este crescimento um recorde histórico em relação à morte de
jovens. Esses dados demostram que há uma desigualdade
sociorracial histórica no Brasil e que só pode ser resolvida com
políticas de inclusão.

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127
Geografias Pretas

No Brasil, o Estado sustenta-se em políticas e ações que


mantêm uma estrutura escravocrata em sua essência, tendo uma
sociedade racista que reproduz discursos de morte. Esses discursos
soam como narrativas que justificam uma política de extermínio
direcionada, sobretudo, para a população negra dispersa nas favelas
e periferias das grandes cidades brasileiras. Então, o racismo é um
regulador da maneira como a morte é administrada, ele define
quem morre, onde morre e até mesmo como se deve morrer, é o
dever-morrer. É uma política sobre formas de vida que são
transformadas em vidas sem forma.
A responsabilidade do ensino de Geografia a partir de uma
proposta educativa antirracista caminha por ensinar o educando a:

(i) conhecer sua posição no mundo, e para isto o indivíduo


precisa conhecer o mundo; (ii) tomar posição neste mundo,
que significa se colocar politicamente no processo de
construção e reconstrução desse mundo. Se posicionar no
mundo é, portanto, conhecer a sua posição no mundo e
tomar posição neste mundo, agir. Saber Geografia é saber
onde você está, conhecer o mundo, mas isto serve
fundamentalmente para você agir sobre esse mundo no
processo de reconstrução da sociedade: se apresentar para
participar (SANTOS, 2007, p. 27).

Ao trazer reflexões importantes da vida cotidiana para a


sala de aula e relacionar os dados estatísticos à realidade
socioespacial do Brasil, o ensino de Geografia, através de uma
perspectiva crítica, também contribui para o resgate de identidades
e ancestralidades não reconhecidas ou negadas historicamente pela
racialidade presente na sociedade e, consequentemente, presentes
no processo educativo brasileiro. A racialidade deve estar presente
na geografia a partir de uma nova gramática que seja capaz de
desconstruir o racismo presente implicitamente nos primeiros
textos geográficos. Mas ainda, a racialidade presente na Geografia
deve dar voz aos vários movimentos de resistências presentes na
dinâmica dos conflitos socioespaciais e que estavam silenciados

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128
Geografias Pretas

pela geopolítica do conhecimento. Portanto, a narrativa da


desconstrução dos discursos é mais do que necessária: ele é
urgente.
Em relação à Raça, Mbembe (2019) destaca que só é
possível falar de raça (ou do racismo) numa linguagem fatalmente
imperfeita, dúbia, até inadequada. Por hora, bastará dizer que é
uma forma de representação primária. Incapaz de distinguir entre
o externo e o interno, os invólucros e os conteúdos, ela remete, em
primeira instância, aos simulacros de superfície. Vista em
profundidade, a raça é um complexo perverso, gerador de temores
e tormentos, perturbações do pensamento e de terror,
principalmente de infinitos sofrimentos e, eventualmente, de
catástrofes.
Frantz Fanon (1968) destaca que raça é também o nome
que se deve dar ao ressentimento amargo, ao irreparável desejo de
vingança, isto é, à raiva daqueles que, condenados à sujeição, veem-
se com frequência obrigados a sofrer uma infinidade de injúrias,
todos os tipos de estupros e humilhações e incontentáveis feridas.
Primeiramente, a raça não existe enquanto fato natural, físico,
antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção útil,
uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica, cuja
função é desviar a atenção de conflitos considerados, sob outro
ponto de vista, como mais genuínos – a luta de classes ou a luta de
sexos, por exemplo (MBEMBE, 2019, p. 2019).
O professor de Geografia defronta-se na escola com dois
tipos distintos de práticas pedagógicas; as instituídas e tradicionais,
e as práticas alternativas. De um lado, uma prática marcada por
mecanismos conhecidos de antemão: a reprodução de conteúdo, a
consideração de conteúdos como inquestionáveis, acabados, o
formalismo, o verbalismo, a memorização. De outro, algumas
experiências e alguns encaminhamentos que começam a ganhar
consistência (CAVALCANTI, 2006). A tabela 2 a seguir é uma
proposta metodológica de ensino para trabalhar os conteúdos que
tratam de questões étnico-raciais importantes. São

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Geografias Pretas

temas/conteúdos que podem ser abordados a partir das categorias


ou conceitos da Geografia.
A ideia é contextualizar as Leis n° 12.288/10, n° 12.711/12
e n° 11.645/08 de forma interdisciplinar e transversal. A criação da
Lei n° 10.639/03representa um marco histórico na política
educacional brasileira, pois foi ela que deu como orientação aos
sistemas de ensino e às suas instituições a incorporação do tema
sobre a diversidade étnico-racial no Brasil aos seus projetos
políticos pedagógicos. Todavia, sabe-se que há uma resistência por
parte dos sistemas educacionais em seguirem tais orientações.

Quadro 2 – Relação das questões raciais com os conteúdos de


Geografia
LEIS OBJETIVOS CONTEÚDOS
FEDERAIS
Lei n° Lei de Diretrizes e Bases da - Organização do espaço;
10.639/03 Educação que inclui no currículo - Territórios quilombolas
oficial das redes de ensino no Brasil;
público e privada a - Cultura da periferia e
obrigatoriedade do ensino de resistência;
História e Cultura Afro- - Religiões de Matriz
Brasileira e Africana. Africana;
Lei n° Institui o Estatuto da Igualdade - Raça, gênero e classe;
12.288/10 Racial, destinado a garantir à - Religiões de matriz
população negra a efetivação da africanas;
igualdade de oportunidades, a - Racismo estrutural e
defesa dos direitos étnicos institucional;
individuais, coletivos e difusos e - Genocídio da população
o combate à discriminação e às negra;
demais formas de intolerância
étnica.
Lei n° Destina a reserva de 50% das - Políticas
12.711/12 vagas matriculadas por curso nas socioafirmativas;
Universidades e Institutos - Políticas educacionais;
Federais para alunos oriundos - Educação e inclusão;
integralmente do ensino público. - Superação das
As demais 50% vagas continuam desigualdades raciais;

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130
Geografias Pretas

destinadas para ampla


concorrência.
Lei n° Altera a Lein° 10/639/03 que - Organização do espaço
11.645/08 inclui no currículo oficial a indígena;
obrigatoriedade da temática - Povos originários das
história e cultura afro-brasileira e américas;
indígena em todas as escolas, - Etnicidade e diversidade
públicas e particulares, do ensino no Brasil;
fundamental até o ensino médio. - Direitos territoriais;

É importante, pois, salientar que tais políticas têm como


meta garantir o direito dos negros a se reconhecerem na cultura
nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem
com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. Desse
modo, destaca-se que por essas políticas busca-se como meta o
direito dos negros, assim como de todos os cidadãos brasileiros, a
cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente
instaladas e equipadas, orientados por professores qualificados
para o ensino das diferentes áreas de Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL,
2003).
Por fim, estudar Geografia verdadeiramente crítica na sala
de aula torna-se um instrumento de formação/libertação contra
processos hegemônicos de dominação dos saberes. É pela
Geografia que se consegue ter a compreensão do espaço
geográfico e sua totalidade, por ela compreende-se também a
relação sociedade e natureza e as contradições socioespaciais das
heranças da formação econômica e territorial do Brasil. A
Geografia deve assumir esse compromisso na luta antirracista e
não se resumir aos conteúdos que invisibilizaram processos raciais.
Cabe, então, aos professores de Geografia escolar buscarem
leituras e alternativas pedagógicas cabíveis com a realidade do povo
brasileiro e, a partir disso, engajar-se na luta por justiça social e pelo
fim das desigualdades sociorraciais.

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131
Geografias Pretas

Considerações finais

Com efeito, o ensino de Geografia crítica deve possibilitar


em sala de aula o desenvolvimento de novos saberes no campo
científico educacional, valorizando, especialmente, temas
importantes das relações étnico-raciais, os quais devem aparecer
como formas de desconstrução de saberes coloniais que reforçam
o racismo. Como uma prática educativa antirracista, a Geografia
escolar – ao aprimorar a análise das categorias espaço, território,
lugar, paisagem, formação socioespacial e organização espacial –
traz para o ensino conteúdos que tratam do cotidiano da população
afrodescendente no Brasil.
A articulação entre teoria e prática se consubstanciou com a
adoção da prática enquanto componente curricular, sendo
vivenciada ao longo da formação do educando e não apenas no
desenvolvimento das disciplinas do núcleo pedagógico ou do
estágio supervisionado. A destinação de um percentual de carga
horária prática nas disciplinas formadoras do núcleo específico
permitirá a efetivação de uma práxis pedagógica pautada na
discussão sobre a aplicação dos conteúdos destas disciplinas no
âmbito da Educação Básica, em especial, nos níveis fundamental e
médio de ensino (Projeto Político Pedagógico, 2009).
É necessária essa reflexão acerca da raça, pois embora
algumas poucas conquistas tenham acontecido para as
comunidades negras no Brasil – como a política de reserva de
vagas no ensino superior público que legitima e legaliza as ações
afirmativas de combate às desigualdades raciais (políticas de cotas)
e a criação da Lei n° 10.639/03 que representa um marco histórico
na política educacional brasileira e que orienta os sistemas de
ensino e as suas instituições a incorporarem o tema da diversidade
étnico-racial no Brasil aos seus projetos políticos pedagógicos e às
suas práticas pedagógicas – ainda prevalece um número bastante
desigual em relação às desigualdades socioeconômicas. Cabe então
ao ensino de uma Geografia verdadeiramente crítica construir
metodologias ativas e inovadoras a partir de práticas pedagógicas

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132
Geografias Pretas

libertadoras de fato e de direitos, ou seja, tornando-se uma das


referências na busca por justiça social.

Referências

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Geografias Pretas

O ENSINO DE GEOGRAFIA ESTÁ EM


TODOS OS LUGARES: PRÁTICAS
GEOGRÁFICAS NA ESCOLA
QUILOMBOLA1

Laís Rodrigues CAMPOS

Introdução

O ensino de Geografia tem um papel essencial para o


fortalecimento da identidade territorial, haja vista, que a
territorialidade quilombola fortalecida está ligada aos fatores
sociais, político-econômicos e culturais. Nesse processo, os
fundamentos teórico-metodológicos da ciência geográfica também
possuem extrema relevância, cujo significado, está para além do
trabalho dos conteúdos geográficos em diferentes contextos
escolares, mas no sentido de entender que os professores de
Geografia devem possibilitar aos alunos a análise espacial a partir
da realidade que os cerca.
As múltiplas possibilidades de ensinar Geografia estão
relacionadas aos diversos debates produzidos no interior do saber
geográfico, envolvendo as questões do agrário, urbano, gênero,
raça, etnia e sexualidade, como dimensões das bases espaciais.
O desafio é ultrapassar um saber geográfico eurocêntrico e
revelar uma Geografia que contemple leis 10.639/03 e 11.645/08,
já que os estudos que abordam tal temática ainda são poucos
utilizados no ambiente escolar, a exemplo de trabalhos sobre
ensino de geografia em escolas quilombolas, que ainda são tão
tímidos, quando comparados à quantidade de territórios
quilombolas e suas escolas existentes no país.
Desse modo, acredita-se que as escolas e seus currículos
devem promover o respeito às diferenças, a promoção dos direitos
humanos, o ensino da história da África, da história e cultura afro-
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Geografias Pretas

brasileira, que seja uma educação da cidadania, das espacialidades,


dos saberes, das culturas, das resistências, das identidades e das
práticas coletivas.
Nesse sentido, apresento reflexões para os seguintes
questionamentos: qual Geografia é ensinada no território
quilombola? Como a comunidade quilombola enquanto lugar de
vivência, experiências é um espaço de aprendizagem escolar? Como
os saberes cotidianos podem estar associados aos conteúdos
geográficos trabalhados na escola quilombola?
Diante disso, o cenário de investigação foi escola quilombola
municipal de Ensino Fundamental Maria Lúcia Ledo, situada na
comunidade Vila União- Campina, localizada no município de
Salvaterra, estado do Pará. Um fator importante na escolha do
lócus deu-se ao processo de implementação da educação escolar
quilombola no município que tem no currículo e no conteúdo de
Geografia do ensino fundamental, orientações articuladas aos
saberes quilombolas.
Os sujeitos diretos desse estudo foram duas professoras do
Ensino Fundamental I em exercício de uma escola rural
quilombola no município de Salvaterra, no estado do Pará, sendo
uma delas, professora da disciplina de Geografia, que já atuava nos
anos iniciais na escola, e a outra docente atua na disciplina de
Educação Quilombola e duas turmas de alunos do 6º ano do Anos
Finais
Para realizar esta pesquisa utilizei uma abordagem qualitativa
do tipo participante para coleta empírica dos dados e concepções
teórico-metodológicos da Geografia cultural para interpretação do
material final.
No decorrer da investigação todas as experiências vividas
foram sendo capturados, os acontecimentos no ambiente escolar,
na sala de aula, nas atividades externas a escola. Em cada etapa
desse percurso, os sentidos buscavam apreender a essência desses
lugares, movimentos, algo próprio e identitário, ali ocorreram fatos
míticos do Marajó, ensinamentos sobre ensino de Geografia e a
percepção do ser quilombola, ou seja, caminhos que subsidiaram a

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Geografias Pretas

construção da pesquisa, o mergulho empírico para o processo de


aprendizagem do contexto educacional quilombola.
Essas compreensões do aprendizado em campo estão
explicitadas nas seções seguintes, a primeira aborda o cenário da
Educação Escolar Quilombola, seu processo de institucionalização
enquanto modalidade de ensino, além de memórias que ressaltam
o percurso da concepção de Quilombo no Brasil, na Amazônia,
processo que fundamenta o sentido de identidade quilombola. Na
segunda seção, algumas reflexões sobre o ensino de Geografia na
escola quilombola, com olhares sobre a prática geográfica realizada
no espaço escolar. E por fim, breves considerações que não
finalizam as questões apresentadas nesse estudo, mas
potencializam diálogos futuros sobre a temática.

O contexto da Educação Escolar Quilombola: percursos,


memórias....

As pesquisas realizadas por Larchert; Oliveira (2013),


Miranda (2016), Campos; Gallinari (2017), Arruti (2017), Carril
(2017) e dos dados do último escolar apontam que o cenário da
educação escolar quilombola no Brasil é contextualizado por
situações que demandam de melhores condições ao processo de
implementação dessa modalidade de ensino.
O histórico de institucionalização da educação escolar
quilombola é uma conquista dos movimentos negro e quilombola
para que o acesso ao ensino chegasse de forma satisfatória às
populações quilombolas, como reconhecimento do direito à
educação, algo que foi discutido e colocado como proposta desde
o processo de implementação da lei 10.639-03, sendo referenciada
no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana , em 2013.
Diante de diversas discussões e atividades organizadas pelo
Grupo de Trabalho para Educação Quilombola, no Conselho
Nacional de Educação (CNE), no ano de 2012 as Diretrizes

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Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola


foram aprovadas pela Câmara de Educação Básica do Conselho
Nacional de Educação. Desse modo, o ensino destinado às
populações quilombolas como política pública educacional
abrange a seguinte definição central:

Art.9º A Educação Escolar Quilombola compreende:


I – escolas quilombolas
II- escolas que atendem estudantes oriundos de territórios
quilombolas.
Parágrafo Único: Entende-se por escola quilombola aquela
localizada em território quilombola. (BRASIL, 2012, p.18)

Ao contextualizar a educação escolar quilombola, o


território aparece como principal categoria que defini essa política
pública. Nesse sentido, a definição de Quilombo no Brasil perpassa
por diferentes momentos do processo histórico de ancestralidade
das populações negras no país. Não querendo recair sobre uma
conotação que naturaliza esse termo somente ao processo de
escravidão dos negros em séculos passados.
Fato que me levou a percorrer as diferentes ressignificações
que o conceito de Quilombo foi ganhando ao longo do tempo,
além disso, esse termo segundo Munanga (1996) é uma palavra
originária da língua bantu umbundo referindo-se a Kilombo e no Brasil
essa relação tem a ver com os povos bantu que pertenciam a
territórios na África Central, entre Zaira e Angola e que foram
escravizados no território brasileiro. Nesse caso:

Eram termos da África Central usados para designar


acampamentos improvisados, utilizados para guerras ou
mesmo apresamentos de escravizados. No século XVII, a
palavra quilombo também era associada aos guerreiros
imbangalas (jagas) e seus rituais de iniciação. Já mocambo,
ou mukambu tanto em Kimbundu como em Kicongo
(línguas de várias partes da África Central), significava pau
de fieira, tipo de suportes com forquilhas utilizados para

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Geografias Pretas

erguer choupanas nos acampamentos. (GOMES, 2015,


p.10).

O autor afirma que no Brasil anterior ao termo Quilombo


utilizou-se a denominação mocambo nos primeiros anos da
colonização. Nesse caso, “mocambos (estruturas para erguer casas)
teriam se transformado em quilombos (acampamentos), e tais
expressões africanas ganharam traduções atlânticas entre o Brasil e
a África” (GOMES, 2015, p.11). Nos registros coloniais surgiram
algumas definições de quilombo como a legislação de 1740, aonde
o Conselho Ultramarino instituiu como “toda a habitação de
negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda
que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”,
(idem, 2015, p.73)
Durante o período imperial “esses critérios ficaram ainda
mais largos, de forma que a reunião de três escravos fugidos,
mesmo que não formassem ranchos permanentes, poderia ser
considerado um quilombo.” (ARRUTI, 2017, p.109). O fato é que
o quilombo histórico segundo Fiabani (2012) ancorava-se nos
seguintes processos: a formação, a reprodução e a resistência. No
decorrer desses anos de regime colonial e imperial a repressão
contra esse modelo organizado pela população negra foi intensa,

A rebeldia negra foi um problema na vida institucional


brasileira representou um sacrifício intenso, violentou o
processo histórico e originou um amplo debate
historiográfico. Com relação ao sistema escravocrata à
rebeldia negra, insurreição racial, foi um processo contínuo
e esporádico, como fez ver a historiografia oficial.
(MOURA, 1988, p.222)

Esse processo na Amazônia não foi diferente, em


específico no Pará no final do século XVIII para início do século
XIX Castro (1999) relata que grupos sociais que lutavam contra a
opressão escravista na região, ocuparam coletivamente terras no
interior do território e formaram os mocambos ou quilombos. A

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Geografias Pretas

ocupação dessas áreas foi tão intensa que muitos estavam


localizados em áreas próximas de rios e igarapés menos povoados.
Diante desse cenário:

No Grão-Pará, alguns mocambos estavam situados em


campos alagados a maior parte do ano, mas desde os
primeiros tempos eram conhecidas as articulações com as
senzalas. Não raro houve conflitos entre quilombolas e
cativos nas plantações, motivados por desconfianças,
roubos, delações e mesmo ciúmes. (GOMES, 2015, p.28)

A formação desses quilombos no território amazônico foi


fruto da grande mão-de-obra de negros africanos trazidos por
europeus para serem escravizados em terras de ocupação colonial.
Como no restante do Brasil, os africanos se organizaram e lutaram
contra o sistema escravista imposto por portugueses, franceses e
holandeses, no interior da Amazônia.
Afim, de entender o quilombo contemporâneo, volto ao
contexto étnico e político do termo que no período republicano
“não desapareceu, mas sofreu uma radical ressemantização.”
(ARRUTI, 2017, p.110). Desse modo, antes de projetar uma noção
jurídica- político em termos da legislação brasileira, dentre as
definições trazidas pelo movimento negro da década de 80, temos
a seguinte afirmação:

Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer


dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência,
comunhão existencial. Repetimos que a sociedade
quilombola representa uma etapa no processo humano e
sócio-político em termos de igualitarismo econômico.
(NASCIMENTO, 1980, p.263)

Nesse interim, na década de 1980 foi criada a Fundação


Cultural Palmares antes vinculada ao Ministério da Cultura que
subsidiava políticas públicas voltadas para a população negra
brasileira. Na década de 90, o termo volta a ser discutido e

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Geografias Pretas

entendido a partir do contexto fundiário brasileiro referente as


bases legais normativas. No estudo de Gusmão (1993) a autora
ressalta que a noção de quilombo incorporada à legislação trouxe
alguns equívocos em relação à questão identitária, no sentido de
entender o que significa ser remanescente de quilombo conforme
o Art. 68 ADCT/CF-1988:

Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que


estejam ocupando suas terras é reconhecida à propriedade
definitiva, devendo o Estado, emitir-lhes os respectivos
títulos. Garantindo também os direitos culturais, definindo
como responsabilidade do Estado a proteção das
manifestações das culturas populares, indígenas e
afrodescendentes. (BRASIL, 1988)

Segundo os estudos de Arruti (2017), Almeida(2002),


O’Dwyer (2002) e Leite (2000), essa definição trouxe discussões
referentes ao uso comum da terra e da identidade étnica das
populações quilombolas. Nesse sentido, a Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) ao ser convocada pelo Ministério Público
Federal em 1994 criou o Grupo de Trabalho Comunidades Negras
Rurais para definir o que seria “remanescente de quilombo”.
Assim, tem-se a seguinte perspectiva:

Segundo a Associação Brasileira de Antropologia (ABA,


1994), a categoria “remanescentes de quilombos” deve
compreender todos os grupos que desenvolveram práticas
de resistência na manutenção e na reprodução de seus
modos de vida característicos em um determinado lugar,
cuja identidade se define por uma referência histórica
comum, construída a partir de vivências e de valores
partilhados. Nesse sentido, eles se constituem como
“grupos étnicos”, isto é, um tipo organizacional que
confere pertencimento através de normas e meios
empregados para indicar afiliação ou exclusão, cuja
territorialidade é caracterizada pelo “uso comum”,
pela“sazonalidade das atividades agrícolas, extrativistas e

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outras e por uma ocupação do espaço que teria por base os


laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de
solidariedade e reciprocidade” (ABA, 1997 [1994], p. 81-
82). (ARRUTI, 2017, p.113)

Dessa forma, o conceito de quilombo remete à valorização


da identidade quilombola, ancestralidade, à vinculação com a terra
ligada a coletividade do grupo social, segundo Almeida (1989) o
sentido dessa territorialidade possui diferentes denominações em
níveis locais, como: Terras de Santo, Terras de Índios, Terras de
Parentes, Terras de Irmandade, Terras de Herança e Terras de
Preto entendidas como áreas doadas, repassadas ou conquistada
por um grupo ou uma pessoa de origem escrava que possua
documentação legalizada. Assim, referente à titulação das terras
quilombolas, temos a seguinte normativa do decreto 4.887∕03:

Art.1º-Os procedimentos administrativos para a


identificação, o reconhecimento, a delimitação, a
demarcação e a titulação da propriedade definitiva das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos, de que trata o art.68 do ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, serão procedidos de acordo
com o estabelecido neste Decreto. (BRASIL, 2003)

Todo esse percurso referente à definição de quilombo no


Brasil foi no sentido de contextualizar o que demarca um território
quilombola, em demonstrar como se caracteriza o cenário das
comunidades quilombolas, principalmente na Amazônia e como a
identidade coletiva legitima esse território pelo vínculo com a terra,
o modo de vida, produção, cultura, buscando abranger políticas
públicas de saúde, educação, soberania alimentar.
Esse percurso, foi necessário para ressaltar que a memória
segundo POLLAK (1992) constitui-se por personagens, pessoas,
enredos. E foram muitos acontecimentos, narrativas, que
demonstram o processo de ancestralidade negra e quilombola.
Algo que nos possibilita compreender a identidade quilombola e

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Geografias Pretas

revela como a Educação Escolar Quilombola foi sendo construída


a partir da luta do movimento quilombola, fruto de práticas
geográficas que antecedem o espaço institucional.

O ensino de Geografia na escola quilombola: olhares sobre


prática geográfica

A escola quilombola é mais do que um espaço


institucionalizado, de conhecimentos disciplinares, sua função
também se foca no reconhecimento do território quilombola, das
identidades historicamente construídas e mobilizadas pelo saber
local. Nesta relação do conteúdo disciplinar com a identidade
quilombola aponta-se uma educação escolar diferenciada. Desse
modo,

O que demarca, então, educação escolar diferenciada? Um


argumento categórico é a localização dessas escolas no
território da comunidade, a fim de intensificar a
participação das comunidades nas definições curriculares e
a incorporação da cultura como saber. (MIRANDA, 2018,
p.204)

Entendo que o professor de Geografia ao abordar na


escola, o espaço vivenciado pelo aluno, necessita articulá-lo aos
instrumentos conceituais (conceitos) do conhecimento geográfico
e à dimensão teórico-metodológica da Geografia. É fundamental
estabelecer um exercício crítico sobre a realidade e os fenômenos
espaciais, para não cair no reducionismo geográfico, em achar que
a Geografia é a própria realidade. Portanto, é preciso
comprometimento, domínio e clareza dos fundamentos da ciência
geográfica para realizar o ensino de Geografia em diferentes
contextos e possibilitar o desenvolvimento do pensamento
espacial dos alunos. Concordo com Kaercher (1998) que:

Os conceitos e vivências espaciais (geográficas) são


importantes, fazem parte da nossa vida a todo instante.
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Em outras palavras: Geografia não é só o que está no livro


ou o que o professor fala. Você a faz diariamente. Ao vir
para a escola a pé, de carro ou de ônibus, por exemplo, você
mapeou, na sua cabeça, o trajeto. Em outras palavras: o
homem faz Geografia desde sempre. (p. 74)

Com essa perspectiva do autor ressalto na Educação


Escolar Quilombola a importância de uma Geografia ensinada a
partir de uma leitura geográfica da vivência, do território, das
identidades, do pertencimento do grupo social e das relações que
se articulam entre o conteúdo estabelecido e os elementos
socioculturais das populações quilombolas. Logo,

[...]Sabemos que o(a) estudante quilombola chega na escola


com vivência, experiências de fora da escola que precisam
ser reconhecidas, pois há aprendizados, há saberes e
conhecimentos aprendidos pela observação, participação e
oralidade transmitidos pelos(as) mais velhos(as), pelos(as)
patriarcas e matriarcas. Compartilhados na sua
Comunidade, a partir de sua origem étnicorracial. A escola
pode, a partir de seu currículo, nas suas práticas
pedagógicas, proporcionar um sentimento de
pertencimento e/ou positivação à experiência do(a)
aluno(a). (SILVA, p.63, 2020)

Desse modo, ao trabalhar um conteúdo geográfico em sala,


o professor pode potencializar a relação do conhecimento
geográfico com o saber local do aluno. O que torna uma
importante tarefa no trabalho geográfico desenvolvido pelos
professores de Geografia das escolas quilombolas e na própria
implementação dessa modalidade de ensino. Nesse aspecto, trago
os seguintes relatos das professoras:

Educação quilombola pra mim é quando nós trabalhamos


contextos que estão inseridos, que estão muito vivíveis na
comunidade, por exemplo, aqui nos temos traços dessa
situação de raízes e aí teve certo período que a escola não

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Geografias Pretas

trabalhava dessa forma e hoje graças a deus já conseguimos


inserir na proposta curricular para trabalhar essas
intervenções inclusive são intervenções muito boas, é boa
porque vem fazer com que os alunos se identifiquem com
o lugar porque a gente tem essa resistência aqui na escola,
então educação quilombola pra mim é resgatar realmente
esse conhecimento dessas raízes que nós temos na nossa
comunidade. (Professora ISABELA, pesquisa de campo)

Eu compreendo como uma modalidade de educação ainda


com material muito escasso e aqui no município é muito
difícil de trabalhar a temática. É um trabalho muito
minucioso, há conflitos enormes, mas, nos temos tido
resultados positivos e muito, porque havia uma rejeição
muito grande e hoje em dia já conseguem aceitar melhor a
modalidade de educação. (Professora ERLEN, pesquisa de
campo)

Nesse caso é fundamental articular a prática docente e a


cultura escolar ao pertencimento étnico-cultural da comunidade.
Mediante esse cenário, no ensino da escola quilombola “é
necessário inserir no projeto educativo os conteúdos éticos,
morais, comportamentais, culturais, sociais [...] não os
desvinculando dos conteúdos de cada área de conhecimento ou de
cada disciplina”. (LARCHERT; OLIVEIRA, 2013, p.53).
Diante disso, no decorrer da pesquisa foram observadas
aulas de Geografia com turmas do 6º ano dos anos finais do ensino
fundamental, nesse momento busquei analisar o processo de
ensino-aprendizagem dos conteúdos geográficos articulados ao
cotidiano dos alunos quilombolas, as metodologias de ensino, os
recursos e materiais didáticos utilizados para o desenvolvimento
do pensamento geográfico tendo o lugar do aluno como referência
na educação escolar quilombola. Com o intuito de discutir práticas
de ensino de Geografia que trabalhem essa perspectiva (relação
conteúdo geográfico e vivência dos alunos), trago a análise de aulas
que aconteceram sob essa abordagem.

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Geografias Pretas

No sentido de trabalhar essa vivência, experiências e


conhecimentos que os alunos possuem a respeito de seu cotidiano
com os conteúdos de Geografia, a professora utilizou-se de aula
campo realizada em diferentes áreas do espaço escolar quilombola
(figura 01) para aprofundar o conceito de lugar abordado em sala
de aula, visto que, a escola está inserida na comunidade.
Essa relação da escola com o território quilombola está
diretamente interligada ao contexto identitário dos alunos. Dessa
forma, ao trabalhar a concepção de lugar, explorando o próprio
ambiente escolar quilombola e não somente a abordagem do
conteúdo geográfico em sala, a professora buscou a partir das
observações e anotações em campo compreender os sentidos que
os alunos atribuem ao lugar deles e como esses aspectos estão
relacionados à identidade quilombola.

Figura 01- professora de Geografia e alunos em aula campo na


escola da comunidade.

Fonte: pesquisa de campo, acervo da autora.

Esse tipo de atividade no ensino de Geografia contribui de


maneira significativa no aprendizado dos alunos à medida que as

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Geografias Pretas

informações geográficas presentes nos conteúdos conseguem


potencializar as práticas sociais. Desse modo, a dimensão do vivido
também está no interior da escola, na relação dos saberes
científicos e cotidianos.
A análise dessas práticas de ensino de Geografia realizadas
na escola quilombola me permitiu entender que antes dos alunos
representarem seus lugares era necessário que os mesmos
conseguissem explorar suas dimensões do vivido, a relação que o
sujeito tem com o lugar e na compreensão da identidade territorial.
Nesse aspecto:

Os estudantes precisam compreender o mundo tomando


como referência o seu lugar, que pode ser sua casa, sua rua,
seu quintal, seu bairro, sua cidade, seu país, o mundo. O
ensino de Geografia deve levar o aluno a olhar o lugar a
partir da relação de existência dele mesmo, e compreender
que o lugar contém nossa história, nossa identidade, neles
marcamos territorialidades de pertencimento. Através do
ensino de Geografia, os estudantes tornam-se capazes de se
reconhecerem no mundo enquanto sujeitos e dai
reconhecer os outros homens e lugares na sua diferença e
diversidade, percebendo que não são muros que nos
dividem de forma material. (NOGUEIRA, 2016, p.198)

Nessa perspectiva humanística de ensinar Geografia, a


representação “é um ato de comunicação intersubjetivo, é também
uma maneira de se colocar-se no mundo [...] trazer o lá para aqui,
tornar o espaço familiar, torná-lo um lugar.” (HOLZER,
HOLZER, 2005, p.201). Por isso, o conhecimento geográfico
trabalhado nas aulas e articulados a realidade dos alunos
possibilitam o desenvolvimento de uma linguagem que aborda o
subjetivo junto ao contexto escolar.
Ao entender que a escola e o ensino de Geografia têm um
importante papel na formação dos indivíduos. Analisei que o lugar
da Geografia no espaço escolar quilombola está na força das
práticas espaciais de alunos e professores que se lugarizam nesse

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Geografias Pretas

ambiente educacional, de suas experiências construídas na


realidade que vivenciam e no sentido que o mundo escolar e
geográfico possui na vida desses sujeitos.

Algumas Considerações

Destaco que as primeiras etapas metodológicas tiveram


como objetivo compreender no espaço escolar a concepção dos
alunos sobre a questão identitária. Nesse caso, o processo de
problematização não surgiu no sentido de delimitar o que é ser
quilombola, haja vista, que “O deslocamento operado na definição
de quilombo repercutiu numa identidade negociada, forjada no
decorrer de processos de invisibilidade ativamente produzida e de
visibilidade insurgente.” (MIRANDA, 2018, p.198).
Então, o sentido da identidade quilombola perpassa não
somente por caráter étnico, mas por questões políticas em face aos
direitos relacionados à terra e ao território que é material e
simbólico. Assim, “a terra como território é fruto da narrativa
social em contexto de tensão em que grupos diversos se
confrontam (...) expõe os muitos sentidos da terra: como valor da
vida, como espaço de sentido; posse ancestral”. (GUSMÃO, 1993,
p.13).
A metodologia utilizada com os alunos foi no sentido de
capturar imagens sobre o lugar e a identidade territorial
quilombola, que os mesmos representam. No sentido de
representarem suas experiências com o lugar, que está interiorizado
no território, em identidades que foram e são construídas. Por isso
não houve uma “análise” sistematizada, fechada, mas uma
abordagem cultural e educativa. Pelo viés da Geografia humanista-
cultural foram compreendidos artefatos simbólicos de
representação.
Busquei interpretar a visão de mundo dos alunos sobre o
lugar que vivem e traços da identidade territorial quilombola, no
sentido de demonstrar a potencialidade do ensino de Geografia a
partir desses conceitos abordados em sala.

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Geografias Pretas

São imagens que descrevem uma relação intersubjetiva


ligada ao trajeto que percorrem diariamente, aos símbolos que
fazem parte da dinâmica do lugar. Nesse sentido “nossas
experiências de lugar, no entanto, parecem resistir ao tempo.
Construções, estradas e costumes locais, que são as manifestações
mais óbvias de uma lenta mudança do cenário invariável de vidas
individuais [...].” (RELPH, 2012, p.28).
Esse processo pode ser entendido a partir das experiências
e “o lugar é uma seiva para as corporeidades e essas desenvolvem
sentidos na construção dos lugares.” (CHAVEIRO; 2012 p.270).
Este autor revela que o encontro de corporeidades com o lugar
transforma-se num território de existência. (Idem). Logo, o lugar e
identidade territorial.
No caso, dessa representação sobre o território
quilombola, entende-se que o “ser” se faz tão presente e me
reporta aos dizeres de Nascimento (1989) ao dizer: “A Terra é o
meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu
estou. Quando eu estou, eu sou.” (Apud RATTS, 2006, p. 59).
Portanto, defendo que o ensino de Geografia está em todos
os lugares, nos diferentes contextos. No caso, das escolas
quilombolas, afirmo que a recontextualização dos conceitos
geográficos em sala de aula necessita da articulação com o
cotidiano dos alunos, com a realidade quilombola.

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152
Geografias Pretas

AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO
ENSINO DE GEOGRAFIA: REFLEXÕES
A PARTIR DE ESCOLAS DO CAMPO EM
GOIÁS

Joyce de Almeida BORGES


Lorena Francisco de SOUZA

Introdução

Pretendemos discutir aqui algumas reflexões sobre o


tratamento das diferenças e das relações étnico-raciais na geografia
escolar em escolas públicas, pautando-se em estudo de caso sobre
a realidade de três escolas do campo de municípios goianos. Uma
educação pública e de qualidade é um princípio reivindicado pelos
movimentos sociais desde o início do século XX no Brasil e não
podemos deixar de mencionar que grande parte das políticas
públicas educacionais que se pautam na construção de uma
sociedade democrática do conhecimento, no acesso e permanência
da população de baixa renda, em sua maioria negra, só se tornaram
possíveis devido à luta dos movimentos sociais negros, na cidade e
no campo.
Estamos presenciando um fato sanitário histórico marcado
pela pandemia do Coronavírus desde o início de 2020. Graças a
este fato somado à negligência do Estado em sua pauta
negacionista e pouco combativa à recuperação econômica e
investimento em vacinas, chegamos até agora a mais de 500 mil
mortes em todo o Brasil. Paralelamente, acompanhamos o
massacre de jovens negros, em sua maioria homens, representados
por 75% dos assassinatos de brasileiros entre 2008 e 2018 (IPEA,
2020), o que reforça a necropolítica do Estado (MBEMBE, 2018)
representando, neste caso, a cruel execução de homens e mulheres
negros e negras nas ruas, em espaços públicos e nas favelas.
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Geografias Pretas

A necropolítica é um elemento concreto nas práticas das


instituições do Estado, sobretudo quando vinculadas a políticas de
governo e não podemos deixar de considerar que o racismo
estrutural (ALMEIDA, 2018), fortalecido desde os períodos
escravocratas, persegue, física e simbolicamente, comunidades
negras e sujeitados/as negros/as. No entanto, em meio às
campanhas dos movimentos sociais negros iniciados nos EUA
após a morte de George Floyd, vivenciamos o espelhamento da
bandeira “Vidas negras importam” para a realidade brasileira,
tornando a pauta mais próxima da realidade de milhares de
brasileiros negros e negras nas mais diversas instituições e
realidades.
Para nós que atuamos como docentes em cursos de
licenciatura, a pauta antirracista tem se apresentado de forma
urgente, a despeito do silenciamento sobre o racismo que assola a
existência de pessoas negras. A efetivação do debate racial no
âmbito acadêmico e escolar é, assim, um caminho para o
fortalecimento de uma pedagogia antirracista e um pareamento
com uma proposta de superação da desigualdade e da
discriminação em seus dispositivos também de gênero,
sexualidade, idade, classe dentre outras variáveis. A realidade
racializada está nos meandros das relações interpessoais, bem
como na coletividade, nas relações entre grupos e instituições,
interferindo na maneira como homens e mulheres negros e negras,
brancos e brancas se veem no mundo, compreendem sua
existência e lidam com os conflitos e privilégios da construção de
sua identidade racial afirmada.
Neste sentido, o racismo e as diferenças são algo presente
na nossa sociedade e no interior das escolas. Há um campo de
tensão entre o modelo de universalização do ensino e a luta por
modos de ensinar que atinjam diferentes grupos sociais em estágios
de aprendizagem distintos. A diferença não deve ficar só nas
documentações instrumentalizadas pela LDB (1996) e nem tão
pouco nas leis 10.639/2003 e 11.645/08, embora saibamos que,
em muitas realidades locais, estas leis não são nem mesmo

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Geografias Pretas

conhecidas pela comunidade escolar. Esta ausência deve-se


também pela desconexão entre as pautas dos movimentos sociais
e as pautas das instituições escolares que, muitas vezes, reforça o
discurso do desempenho, da formação para o mercado de trabalho
a partir da organização de conteúdos “clássicos” já previstos em
documentos orientadores. É uma questão que não deve estar
apenas vinculada como um projeto, necessita envolver toda a
dinâmica escolar em um trabalho profundo. (CANDAU, 2000)
Para tanto, pensamos em caminhos para que o ensino de
Geografia propicie questões essenciais ao conhecimento de nossos
e nossas estudantes na promoção de uma visão ampla acerca de
nossa formação social e histórica, no estudo dos aspectos
econômicos, políticos e culturais em suas espacialidades distintas
ao longo do território brasileiro, o que configurou a política da
branquitude das classes dominantes e a perpetuação do racismo às
populações não brancas e empobrecidas pela estrutura moderno-
colonial.
Embora saibamos que a formação social brasileira
apresenta aspectos relevantes sobre o trabalho de homens e
mulheres negros e negras escravizados, ainda presenciamos,
sobretudo nas instituições escolares, uma simplificação e
estereotipia das contribuições da matriz africana no território
brasileiro, reforçando o chamado legado cultural no que se refere
a artes e culinária, a despeito da religiosidade e da exploração da
força de trabalho escravizada como ponto nevrálgico para a
solidificação do racismo no cotidiano de brasileiras e brasileiros.
O legado da relação entre Brasil e África1 durante o período
da escravização (1533-1888) esteve muito além das convicções
rasas apresentadas por uma história tida como oficial. Muitos
foram os conhecimentos africanos territorializados na América
Latina, como podemos destacar: o domínio da metalurgia, do
ferro, do bronze, da cerâmica, a domesticação de animais, a
construção de diques, o uso do arado, o aprimoramento na

1Um dos primeiros geógrafos a tratar da relação entre Brasil e África foi Manoel Correia
de Andrade no Livro “O Brasil e a África”, publicado em 1989.

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Geografias Pretas

astronomia e na matemática, na Física, o uso Medicinal das plantas,


o cultivo do café, do algodão, do feijão-fradinho, amendoim, arroz,
inhame, a fabricação do azeite de dendê, a confecção de tecidos, o
manusear do couro, do tear, a aprimoramento de técnicas de
navegação, técnicas de conservação dos alimentos, etc.
(MACHADO, 2017)
A perspectiva analítica adotada nestes escritos, são
provenientes de concepções que se assemelha ao olhar de
Nascimento (1993) a partir de um olhar calcado no conceito de
afrocentricidade, ou seja, a construção teórica não hegemônica
radicada na experiência africana, resulta na compreensão do todo
a partir de referenciais africanos.
No que se refere aos princípios da educação, em suas
instâncias formal e não formal, nos amparamos em Freire (2015) e
Dubet (2004) ao pautarem-se na construção de uma escola e uma
sociedade mais justa ou menos desigual. Neste sentido,
questionamos as finalidades educativas das escolas, do mesmo
modo, a finalidade das escolas para os/as pobres, negros e negras
e camponeses e camponesas. Partimos de uma visão progressista
de ensino, que valorize a criticidade, a criação, a reinvenção, que
priorize valores sociais, a sensibilidade, a subjetividade, para além
da conformação do ser mercadológico, por meio de um currículo
diversificado que valorize as experiências locais. (LIBÂNEO,
2016)
Para o desenvolvimento destas e outras reflexões,
dividimos este artigo em três partes. A primeira parte desta
discussão tratará sobre o cotidiano escolar, a ideia de igualdade, as
diferenças e os aspectos pedagógicos mais gerais ligados à
juventude escolar representada pelos estudantes negros e negras. A
segunda etapa retratará alguns elementos históricos e as relações
entre o Ensino de Geografia, conteúdos e questões importantes
cujas temáticas remetem a África, às Geografias Negras 2, ao

2 Este termo significa, para Cirqueira, Guimarães e Souza (2020), a produção de


pesquisadores negros, negras e aliados brancos e brancas que buscam compreender as

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156
Geografias Pretas

racismo e às relações raciais. E por fim, a terceira parte aponta os


aspectos referentes ao estudo de caso identificados pelas
entrevistas com 13 professores e professoras do Ensino público
do Estado de Goiás que atuam na segunda fase do Ensino
Fundamental e Ensino Médio no campo nos municípios de
Inhumas, cidade de Goiás e Itapuranga-GO.

As diferenças e o cotidiano escolar

Eles carregam as desigualdades porque como diferentes em


etnia, raça, classe são inferiores. Nasceram desiguais,
inferiores, sub-humanos. Uma condição de origem.
Representações que as teorias pedagógicas tentam, mas não
conseguem superar, porque se tornara estruturantes do
sistema educacional e da autoidentidade de pensar e fazer
educação. (ARROYO, 2014)

A epígrafe se apresenta como um importante ponto de


partida para refletirmos sobre as instituições escolares e o
tratamento das diferenças em seu cerne. O sistema mundo
moderno colonial, para a perspectiva teórica decolonial, estruturou
uma base eurocentrada no que se refere à difusão de
conhecimentos, dominação e escravização de outras sociedades
para a consolidação de um padrão de poder definido em
classificação racial e geopolítica (QUIJANO, 2005)
A base moderno-colonial estende-se no contexto atual, seja
nas concepções epistêmicas e produção do conhecimento, nas
representações de mundo e de corporeidades, na hierarquização de
saberes e nas relações sociais. Portanto, a intencionalidade de
políticas segregacionistas, de regimes escravocratas, de supressão
de grupos subalternizados, da necropolítica racial instituída como
política de Estado, está na manutenção de um sistema-mundo
eurocêntrico. A superação desta base só se torna possível a partir

relações étnico-raciais, o racismo, o antirracismo, as populações negras (brasileira,


africanas e diaspóricas) a partir da Geografia e das teorias espaciais.

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Geografias Pretas

de uma busca coletiva por igualdade3 de direitos e pelo


reconhecimento das diferenças, liderados por sujeitos
discriminados e subalternizados no seio de movimentos sociais,
manifestações, coletivos e contra as formas de opressão que
perduram no contexto político atual.
Indagamos, nesse sentido, por que se tenta manter a ideia
de igualdade negando a diferença? Para continuar garantindo
privilégios. Privilégios a quem? Sabemos que a presença de não
brancos/as em espaços públicos, universidades, no trabalho, na
televisão, incomoda e gera reações que ainda são controladas pelo
Estado, por algumas instituições para garantir e justificar a
manutenção das desigualdades sociais. (ARROYO, 2014)
É impossível negar que a realidade escolar envolva temas
ligados ao gênero, às sexualidades, às questões sociais e étnico-
raciais, pois a escola é parte e reflexo da sociedade. Sabemos que,
por muito tempo, houve um silenciamento e uma dificuldade em
lidar com a diferença numa perspectiva interseccional
(AKOTIRENE, 2018) entre professores e professoras e
estudantes nos espaços escolares. Para rompermos com o silêncio
que assola esta instituição e nos deixa inertes, questionamos os
discursos propagados de igualdade e mostramos que: “essa escola
não se tornou mais justa porque reduziu a diferença quanto aos
resultados favoráveis entre as categorias sociais e sim porque
permitiu que todos os alunos entrassem na mesma competição.”
(DUBET, 2004)
A escola é permeada de desigualdades e têm em seu papel
meritocrático o aval para legitimar estas desigualdades. Entre o
abismo do que se classifica como alunos bons e menos bons, os/as
estudantes negros/as oriundos/as de condições familiares menos
favorecidas, em sua maioria, acabam sendo rotulados como alunos
“fracassados”, não visualizados como consequências de um

3 Temos uma visão “desutopisadora” da ideia de igualdade. Somos sim diferentes uns
dos outros. Porque sabemos que as oportunidades e condições reais de cada pessoa é
muito relativa, o que dificulta o ideal de igualdade romantizado e universalizado desde os
tempos do Iluminismo.

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Geografias Pretas

processo social violento, responsabilizados pelo seu baixo


desempenho escolar. Estes/as, muitas vezes, desistem da escola e
estão representados nos números da evasão escolar, se sentem
desmotivados/as a continuarem num ambiente de hostilidade e
conflito racial materializados em racismo e discriminação das mais
diversas ordens.
Souza (2016) afirma que há um descompasso entre a teoria
e a prática no cotidiano escolar, além da visão estereotipada dos
livros didáticos e o medo, recusa ou descaso com as temáticas
étnico-raciais, de gênero e sexualidades. E ainda por muito tempo,
as pessoas negras, mais especificamente por três séculos, sofreram
um processo de inferiorização que resultou na baixa autoestima e
dificuldade em reconhecer a sua identidade racial negra. Desse
modo, precisamos discutir a importância da mediação didática de
professores e professoras para o tratamento das diferenças e o
debate étnico-racial, ressignificando a história africana no Brasil,
construindo referenciais positivos sobre a imagem e sentido de
existência de comunidades negras, para além do caricato modelo
de atleta, artista e culinária. Este processo de ressignificação exige
certo esforço docente, domínio teórico pautado numa pauta
antirracista e confiada ao entendimento de que o racismo estrutural
precisa ser problematizado como modelo vigente de uma
sociedade de privilégios.
Candau (2008) nos alertou para o fato de que as diferenças
na escola não se restringem aos aspectos físicos. Para a autora há
diferentes ritmos, estilos cognitivos, modos de aprender, traços de
personalidade, acesso ao saber e níveis diferenciados. Um grande
número de alunos/as contribui para o desconhecimento profundo
acerca de cada um/a. E a diversidade implica em resultados
escolares diferentes. Nossa concepção de educação tradicional
impregnou a ideia de homogeneizar os saberes. E a formação
precária reflete na prática tradicional, sem meios para efetivação de
práticas diferenciadas. (TARDIF, 2012)
Além disso, a falta de investimentos, a “taylorização” da
escola, a militarização, a diminuição da autonomia estudantil e

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Geografias Pretas

docente, a desvalorização profissional e as condições do trabalho


docente também dificultam um tratamento profundo e
responsável sobre a diferenciação entre grupos ou níveis de
aprendizado, favorecendo a reprodução do monocultural, do
conhecido como “universal” (TARDIF, 2012).
Ao final deste tópico, relacionamos aqui nosso lugar social
(GONZALEZ, 1982) como autoras e pesquisadoras na discussão
sobre as diferenças no ensino e na escola. Na graduação, uma das
autoras deste artigo pesquisou a escola do campo Escola Família
Agrícola, localizada na Cidade de Goiás, espaço o qual pôde
verificar o método da Pedagogia da Alternância e as práticas
pedagógicas vivenciadas nesta unidade escolar do campo. Trata-se
de um jeito de ensinar muito particular que têm forte influência
dos movimentos sociais do campo, do jeito de viver e produzir
coletivamente, uma juventude com perfil relativamente envolvida
nas atividades campesinas reforçadas no cotidiano da escola.
Uma das autoras é formada em Geografia e, desde que
concluiu a graduação, em 2007, iniciou a docência em escolas
públicas e particulares, em Goiânia, Aparecida de Goiânia,
posteriormente em Minaçu, no estado de Goiás. A dissertação de
mestrado desta autora foi intitulada “identidades goianas no ensino
de Geografia” (BORGES, 2010), na qual buscou identificar
práticas pedagógicas dos professores em dez escolas públicas do
centro e da periferia da cidade ligadas à cultura, à diversidade, às
identidades de Goiás no cotidiano escolar. Foram analisadas a
percepção de estudantes do ensino fundamental acerca da cultura
e das identidades goianas. Nessas experiências realizadas, pôde-se
notar que os/as professores/as, embora cansados/as de ouvir
“temos que reinventar a escola”, “dinamizar”, “mudar os
currículos mofados”, já diria Arroyo (2014), executam na
resistência algumas experiências interessantes com temas diversos,
entre um deles, o estudo sobre o continente africano.
A outra autora deste escrito formou-se na licenciatura em
Geografia e seu mestrado referiu-se ao estudo das trajetórias
socioespaciais de professoras negras na Região Metropolitana de

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160
Geografias Pretas

Goiânia (SOUZA, 2007), com o intuito de discutir as vivências


destas na cidade, problematizando suas relações com o trabalho, a
universidade e o lazer. Considera-se este trabalho como um
precursor da temática racial e de gênero e sua relação com o
espaço, a cidade e a educação. Ao evidenciar a mobilidade destas e
suas maneiras de viver a cidade, observamos que a condição racial
e de gênero tem uma dimensão espacial e configura lugares sociais
ao grupo, neste caso, inferindo, posições de inferioridade ou
subalternidade, situações cotidianas de racismo e discriminação,
além de se tornarem protagonistas no debate racial nas instituições
de ensino em que lecionam. As experiências desta autora com os
movimentos sociais negros, sobretudo de mulheres negras,
consolidam o interesse pelo ensino, pesquisa e extensão voltados
para a discussão racial e de gênero nas escolas e nas universidades,
uma vez que na condição de formadora de futuros professores e
professoras de Geografia, defende-se a construção de um projeto
de justiça social de base feminista negra (COLLINS, 2019).
Ao evidenciarmos nossas trajetórias acadêmicas e pessoais,
reforçamos a importância de produzirmos conhecimento sobre a
temática racial e africana para o ensino de Geografia, uma vez que
a escola é um terreno fértil para a valorização das diferenças e
precisa valer os direitos assegurados pelos documentos curriculares
orientadores de respeito e a pluralidade como um elemento da
riqueza humana. Retirar da zona periférica as experiências isoladas
é valoroso, pois acreditamos numa Geografia que reflita sobre a
diferença em sua espacialidade e reconheça a temática africana
como importante caminho de desconstrução de estereótipos e
discriminação sobre o ser negro e negra.

O Ensino de Geografia e a temática africana

Desconhecer as raízes africanas é desconhecer as raízes do


Brasil. (LARKIN, 1993)

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Geografias Pretas

[..]Quando aqui chegaram não perderam a sua fé. Criaram


a capoeira, o samba e o candomblé.[..](Trecho da música de
capoeira: Que navio é esse?)

A Geografia e História da África é um dos inúmeros


conteúdos explorados pelos/as professores/as de Geografia. E
assim como acontece com outros objetos de aprendizagem, as
professoras e os professores possuem dificuldades para ministrá-
los, seja pela falta de formação aprofundada sobre o tema, falta de
materiais, dificuldades em exercer a interdisciplinaridade e/ou falta
de tempo para planejamento didático-pedagógico. Mesmo diante
deste contexto, presenciamos a realização de projetos
protagonizados por professores e professoras negros e negras de
Goiânia sobre os Kalunga, a cultura, a arte, a dança negra e a
capoeira4.
É importante salientarmos que a valorização do ensino da
África é, inicialmente, uma escolha pelos estudos de temas
subalternizados e invisibilizados. Essa condição também é a
realidade da maioria da população negra no Brasil e no mundo.
Como já mencionamos, os currículos escolares têm dificuldade em
priorizar temas ou conteúdos ligados à África e às pessoas e
comunidades negras em virtude de nosso pensamento colonizado,
principalmente por vivermos num país que carrega o triste fato de
ter sido um dos últimos países a abolir a escravização. De antemão,
ao mencionarmos a África nos estudos escolares faz-se necessário
pontuar qual a perspectiva da visão de mundo africana afim de
ampliarmos nossos conhecimentos acerca deste continente.
(QUIJANO, 2005)
Oliveira (2003) na obra “A cosmovisão africana no Brasil”
afirmou que a cosmovisão africana é pautada na lógica que prima
pelo bem do planeta e pela valorização da vida. Esta concepção
não vai ao encontro da concepção capitalista de mundo, pautado

4Essa discussão foi aprofundada durante a Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação IESA (UFG) e 2010 intitulada “Identidades goianas:
percepção e ensino.”

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Geografias Pretas

na exploração humana, no lucro e no uso e apropriação da terra


cujo objetivo principal é o acúmulo do capital. O mesmo autor
(2003, p. 20) chama a atenção para o fato de que se faz necessário
“não apenas humanizar-se, mas africanizar-se quanto a valores e
formas de vida.”
Ainda sobre a cosmovisão africana é importante ressaltar
que o sagrado emana da natureza e que nesta cosmovisão estão
integrados a natureza, política, poder e religião. Há uma conexão
entre o universo e o todo, chamada de força vital, uma conexão
entre as partes. Essa força também busca fortalecimento na própria
terra e na ancestralidade.
Na cultura africana alguns elementos chave são citados por
Oliveira (2003) como: a palavra, a qual deve-se fazer bom uso e ter
cuidado ao proferi-la. Há dialogicidade entre o sagrado e o
profano, não separação da pessoalidade da coletividade, no culto
aos orixás não há salvacionismo, não há pecado, nem culpa, o
importante é o bem de todos. Para a visão africana o ser humano
é composto de Ara (corpo físico), Ojiji (representação visível da
essência espiritual), Okan (órgão relacionado com o sangue e o
coração), Emi (princípio vital a respiração) e o Ori (a cabeça-
essência real do ser).
Apontamos também as reflexões de Noguera (2014) ao
reivindicar uma filosofia africana reconhecida e valorizada no
Ocidente, pois o sistema moderno-colonial trouxe também a
subjugação epistêmica, a injustiça cultural e intelectual de africanos
e africanas. Para ele, a lei 10639/03 representa uma condição para
pensarmos de forma descolonizada a filosofia, comumente tratada
como conhecimento genuinamente greco-romano, incorporando a
filosofia africana nos currículos.
Podemos nos perguntar: como esta cosmovisão africana se
relaciona ao ensino de Geografia? Os ensinamentos africanos,
assim como os saberes de outros povos, como os saberes
camponeses por exemplo, são contribuições para o caminhar da
humanidade numa perspectiva menos competitiva, na busca pela
integração com a natureza, reativando a reconexão afetiva para

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Geografias Pretas

além da visão ocidental capitalista, superando o individualismo nas


relações, entre outros aspectos que abordamos ao longo da
discussão.

Por uma educação no/do campo que ensino sobre as


diferenças

Como seres humanos, somos limitados quanto ao que


podemos fazer ou dar. Assim, ao educar crianças,
precisamos, definitivamente, do apoio de outras pessoas. É
como dizemos: “é preciso uma aldeia para manter os pais
sãos.” (Sobonfu Somé em O espirito da intimidade)

A formação social latino-americana é extremamente


marcada pela presença de princípios e valores camponeses/as,
negros/as e indígenas na cultura, no cotidiano, na maneira de nos
reunirmos, comemorarmos e trabalharmos. A história deixou
marcas e registros importantes das aproximações entre estes povos
na organização territorial popular, na religiosidade, na culinária e
no modo de nos expressarmos enquanto sujeitos portadores de
saberes e conhecimentos que se complementaram e se
diversificaram em inúmeras expressividades das regiões brasileiras.
Na tese de doutorado intitulada “Saberes sociais e
memórias de territórios camponeses em Goiás (pós-1964)”
(BORGES, 2020) pesquisamos como os saberes sociais se
territorializavam em dois movimentos sociais do campo, o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o Movimento
Terra Livre. Nesta pesquisa foram identificadas as principais
formas de violências físicas e simbólicas sofridas por lideranças
políticas no campo. Valorizamos estes sujeitos, seus saberes e suas
memórias para compreender fatos e momentos históricos da luta
pela terra em Goiás.
Durante andanças entre as lideranças do campo, palestras,
caminhadas, acampamentos, a corporeidade negra sempre esteve
presente. Entre os/as entrevistados/as, entre os/as assentados/as
que sofreram perseguições. Nos depoimentos apresentados um
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Geografias Pretas

misto entre saberes construídos por práticas políticas campesinas


embrenhadas às identidades históricas negras de Goiás 5. Por quê?
Basta lembrarmos da Lei de Terras e da história da terra no Brasil.
A sociedade brasileira produz e reproduz um pensamento
racista enraizado em muitos âmbitos. Um deles, no próprio seio da
educação, a qual inferioriza estudantes negros e negras, os coloca
como “os mais difíceis da escola, os mais desinteressados,
repetentes”. Contudo, tendo a clareza da necessidade de nos
posicionar diante de fatos e realidades problematizadoras, viemos
rompendo barreiras, escapando da lógica racista que ainda
obscurece nossa forma de olhar sobre nós mesmos, nossas origens
e nossas corporeidades. Lidar com estas questões na educação e no
cotidiano é delicado, porém, um exercício permanente e
necessário.
Como professoras, colegas de trabalho e amigas há mais de
uma década, temos procurado refletir sobre nossas práticas
pedagógicas, pesquisa e extensão a partir do conteúdo África,
referenciando a perspectiva racial como um elemento importante
para a análise geográfica sobre a realidade social e procurando
incorporar em nossas atuações junto a escolas de ensino básico o
debate sobre corporeidade negra, Geografia e História da África,
além de promovermos tais discussões em momentos acadêmicos,
em grupos de estudos, palestras, bancas e eventos também

5 Entre as identidades negras representantes da população do campo de Goiás na


pesquisa de tese podemos citar: Seu Antônio Baiano, um dos primeiros a enfrentar os
desmandos no campo, o assentado, Manoel da Mata, do assentamento Rancho Grande,
Zezinho uma das fortes resistências atuais do assentamento Serra Dourada, localizado
no município de Goiás, além de acampados do movimento Terra Livre do Faina,
acampados de Itapuranga e de Corumbá de Goiás no maior acampamento que ocorreu
e Goiás e 2015, no acampamento Do Tomás Balduíno, com pessoas provenientes de
várias periferias de Goiás (BORGES, 2020).

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165
Geografias Pretas

promovidos por Núcleos de Estudos e Pesquisas em que


estabelecemos parcerias, como o Lagente6 e o NEAAD7.
Deste modo, esta parceria se estendeu para a compreensão
da África nas escolas goianas do campo. A educação do campo,
antes de mais nada, representa a luta pela educação pública aos/às
campesinos/as. Defendê-la significa defender os direitos de
camponeses/as, pobres, negros/as e indígenas continuarem
estudando em seus territórios e fortalecendo suas comunidades,
laços e resistências.
A partir dos pressupostos político-pedagógicos de Miguel
Arroyo (2014), os coletivos populares de cada região e
município afirmam as pedagogias a serem construídas nos
espaços escolares. Assim, inicialmente, é preciso saber: Quem
são os alunos do campo, do que as famílias vivem, do que
trabalham, como vivem, quais as suas perspectivas e visões de
mundo? São sujeitos portadores de consciência política? Ou
estão desconectados das lutas sociais e políticas? São esses
sujeitos que pressionam e afirmam o modelo de pedagogia a
ser praticada.
Após o desocultamento do campo, ocorre a desconstrução
da imagem cristalizada como sujeitos inferiores e passam a
repensar outros caminhos por meio das leituras, do despertar do
senso crítico, do desvelar de sua condição posta como sub-
humanos, da reconstrução da autoestima, da tomada de
consciência proposta por Gramsci, durante a catarse, na reflexão
do ser capaz, do ser “mais”, como afirmou também Freire (1996).
São nesses moldes que se gestam novas pedagogias, novas relações
entre sujeitos, novas relações de poder e novas práticas educativas
e políticas.

6 Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-raciais e Espacialidades, coordenado pelo


Prof. Dr. Alex Ratts no Instituto de Estudos Socioambientais na Universidade Federal
de Goiás.
7 Núcleo de Estudos e Pesquisas Africanos e Afrodiaspóricos da Universidade Estadual

de Goiás, coordenado pela profa. Dra. Lorena Francisco de Souza.

Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

166
Geografias Pretas

Na obra de Arroyo (2014), Outros sujeitos e outras pedagogias,


há um cruzamento do conceito de Pedagogia do Oprimido e do
Opressor de Paulo Freire (2015), com o que ele denomina de
Pedagogia da dominação e da subalternização. No espaço
educacional, há os discursos que reproduzem ora uma dessas
pedagogias, ora outra. Os códigos, os símbolos, os índices, as
classificações, as relações de poder, as vivências e os projetos
executados em cada escola trouxeram uma perspectiva que pode
se aproximar da pedagogia dos dominados ou da pedagogia dos
dominantes.
É por meio das matrizes pedagógicas da luta, da mística, do
trabalho e da vivência que se constrói a educação do campo, a
partir de um projeto coletivo e popular de sociedade. A educação
e seus atores precisam identificar as contradições,
compreendê-las e superá-las. A terra e o trabalho como
processos formadores de emancipação e resistência reconhecem os
sujeitos para a construção de novas práxis pedagógicas.
Torna-se fundamental discutir as relações de trabalho e de
exploração presentes no campo e na cidade e a violência do capital
sobre os sujeitos, como explicou Arroyo (2012). E mais do que
isso, para Arroyo (2014), não basta apenas afirmar que o trabalho,
os movimentos sociais e as vivências com a terra e no campo
educam. Todas essas coisas somadas humanizam os sujeitos,
ressignificam e produzem novos sujeitos e novos conhecimentos.
Nas análises de Arroyo (2014) há uma associação dos
elementos das resistências políticas com as resistências
epistemológicas. Ele mostrou como cada uma dessas vertentes está
entrelaçada à outra, ou seja, não é possível pensar na resistência de
grupos subalternizados sem uma episteme da resistência, sem
conceitos, sem ciência, sem formação, sem uma maneira de
produzir pedagogias que reflitam no seio da resistência social,
política e cultural dos povos do campo. O saber e o ensinar devem
se atentar à capacidade de escuta, renovada, atenta, em sintonia
com a vida e com o ser humano.

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167
Geografias Pretas

No convívio com o outro nos humanizamos, aprendemos


cada dia mais, sendo esse o processo de humanização que estamos
carentes. Isso porque crescemos rodeados de técnicas,
conversamos com nossos/as amigos/as com mais frequência por
computador e celular e não estabelecemos relações pessoais de
diálogo, de construção coletiva. Questionamos o desinteresse
dos/as alunos/as, mas não questionamos a desumanização da
escola, das nossas aulas, a disputa por currículos, os conteúdos
prévios, fechados, as relações burocratizadas. Assim, os/as
alunos/as são nomeados por números, mas não questionamos as
inúmeras possibilidades de abrir conteúdos, lançar o novo. Como
lembra Hooks (2013), ao referendar a importância das obras de
Freire na sua trajetória acadêmica, pessoal e profissional, “não é
possível entrar na luta como objetos para se tornar sujeito mais
tarde”. É preciso incentivar e respeitar o protagonismo juvenil na
condução de temas e abordagens que façam sentido para sua
existência e cotidiano dentro e fora da escola.
Para Arroyo (2013) é necessário fortalecermos os
professores e as professoras em suas práticas, em seu trabalho e na
valorização de seus saberes, identificar as contradições,
compreendê-las e buscar superá-las. Entendemos a educação
como um dos vetores, mas não o único, associado ao papel do
Estado e de outros setores da economia. E a terra e o trabalho
como processos formadores de emancipação e resistência
reconheceram os sujeitos para a construção de uma nova práxis
pedagógica. Portanto, torna-se fundamental discutir as relações de
trabalho e de explorações presentes no campo e a violência do
capital sobre os sujeitos, como explicou Arroyo (2012).
Arroyo (2012) afirmou que são as próprias tensões do
campo que questionaram qual o currículo, qual identidade docente,
qual opção política e que projeto de educação queremos construir.
Essas tensões no campo pressionaram as tendências pedagógicas a
abrirem as visões até então reducionistas de educação e de ensino.
A luta por uma educação humanizadora coincidiu com a luta pela
terra, território, trabalho e identidades. Não é possível pensar um

Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

168
Geografias Pretas

projeto de sociedade para um grupo a partir de outro projeto de


sociedade. Portanto, o autor ressaltou a necessidade de programar,
na educação básica, a história do trabalho no Brasil, a violência do
capital, as explorações nas relações sociais, para se potencializar a
tomada de consciência para uma educação emancipadora.
Sendo assim, focaremos a partir de agora na discussão de
informações obtidas de professores e professoras do campo
atuantes nos municípios de Inhumas, Goiás e Itapuranga, no
Estado de Goiás, a respeito de suas práticas docentes no que se
refere aos conteúdos de africanidades no ensino de Geografia.

O Ensino das relações étnico-raciais na educação do campo


nos municípios de Inhumas, Goiás e Itapuranga-GO

O objetivo de nossos questionamentos aos professores e


às professoras de escolas do campo foi identificar e analisar as
práticas educacionais ligadas a questão étnico-racial a fim de
aprimorar os estudos desta área, contribuindo para novas reflexões
e práticas docentes vinculadas a estas abordagens.
Neste triste momento de pandemia tivemos que optar pela
elaboração e aplicação de questionários via Google Forms para
professores e professores de escolas do campo nos municípios já
referendados. Foi a primeira vez que apropriamos deste recurso,
porém as respostas foram relativamente proveitosas e
contemplaram os objetivos propostos, já citados no início deste
artigo.
Entre os/as professores/as entrevistados/as de faixa etária
dos 27 aos 54 anos estão professores/as formados/as há mais
tempo, recém-formados, outros cursando o Curso de Educação do
campo, a maioria com especialização, alguns com mestrado, outro
cursando doutorado, um público diverso. Estes/as professores/as
atuam tanto no Ensino de Geografia como em demais disciplinas
do Ensino Fundamental e Médio nos municípios referidos.
O munícipio de Inhumas encontra-se a 45 Km de Goiânia
e possui 53.259 habitantes segundo o IBGE (2020). Até o ano de

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169
Geografias Pretas

1993, o munícipio de Inhumas possuía 28 (vinte e oito) escolas no


campo. Eram 25 (vinte e cinto) municipais e 3 (três) estaduais. Elas
possuíam o regime multisseriado da 1ª a 4ª série. De 1993 até o ano
de 2007, foram fechadas 21 (vinte e uma) escolas no campo. O
poder público optou por manter as escolas de melhor
infraestrutura com a políticas de escolas polos (SOUZA, 2010), o
que demonstra que se mudam os municípios, mas a lógica de
negação à educação em seus locais de origem são as mesmas.
Os/as estudantes são obrigados/as a serem transportados por
longas distâncias e horas de cansaço até chegarem a seus destinos
de estudo na cidade.
Até 2010 eram 7 (sete) escolas no campo em Inhumas,
localizadas nas regiões de Serra Abaixo, Lajes e Ponte Queimada.
Neste munícipio, a educação do campo se configura no próprio
currículo a partir da Escola Agropecuária de Inhumas que oferece
a segunda fase do ensino fundamental (6° ao 9° ano).
Indagamos: “Como você observa as relações étnico-raciais presentes
na sala de aula?” Com esta questão objetivamos pontuar se os/as
professores/as se atentavam para tal questão e quais elementos
eles/as priorizavam nas análises e na difícil tarefa de trazer essa
discussão para a sala de aula. Entre as respostas:

Na matriz de habilidades traz poucos conteúdos ligados a


essa temática. Eu sempre busco relacionar as questões
étnico-raciais aos conteúdos propostos na matriz de
habilidades, porém sempre tenho que elaborar atividades
extras para que eu consiga relacionar aos acontecimentos
locais.

Nunca deixei de discutir. (...) Sempre encontro pontos de


vista que me surpreende quando dou voz aos alunos.

Com atenção e cuidado.

Quase não é presente nas discussões apresentadas pelas


disciplinas.

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170
Geografias Pretas

Uma abordagem necessária de ser realizada, porém com


pouco espaço nas pautas que as escolas abordam e seus
projetos e ações.

O ensino sobre as relações étnico-raciais ainda está


superficial.

São relações que transmite preconceitos. Pela vivência dos


alunos que ainda estão arraigados, embora vejo abertos ao
diálogo sobre o tema e uma maioria apresenta postura
respeitosa, porém ainda temos traços de discriminação.

É possível observar uma preocupação dos docentes com o


tratamento das questões étnico-raciais no ambiente escolar,
embora ainda percebam uma ausência do tema nas disciplinas
escolares, sendo necessários atividades extras e uma dedicação que
ultrapasse o que é apresentado pelas matrizes curriculares.
O munícipio de Goiás, com distância de 170 km de
Goiânia, é reconhecido pela presença de conflitos sociais do
campo representado pela disputa de terras entre as famílias
tradicionais da região (Caiado, Fleury, Berquó) e outros setores
sociais ligados à Teologia da Libertação, aos sindicatos dos
trabalhadores rurais e aos movimentos do campo. O munícipio
apresenta atualmente 26 (vinte e seis) assentamentos rurais.
(INCRA, 2018).
Em 2019, o munícipio contava com 9 (nove) escolas rurais
que atendem da educação infantil ao ensino médio. Entre elas:
Escola Municipal Olympia Angélica de Lima, Escola Família
Agrícola de Goiás, Escola Municipal Arnulpho Di Ramos Caiado,
Escola Municipal Vale do Amanhecer, Escola Municipal Holanda,
Escola Municipal Terezinha de Jesus Rocha, Escola Municipal
Bom Sucesso, Escola Estadual Albion de Castro Curado e Escola
Estadual Walter Angel.
Um dos professores do campo, entrevistado e atuante do
município de Goiás, afirmou que o principal desafio entre os

Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

171
Geografias Pretas

docentes para discutir a questão étnico-racial nas escolas está ligado


à “falta de vontade e conhecimento dos professores.” Outros desafios foram
apresentados por professores/as do mesmo município e de outros:
“Desconstruir falas e atitudes preconceituosas é uma tarefa difícil”. “Falta
tempo para uma reflexão mais efetiva que não paire na superficialidade.”
Já o munícipio de Itapuranga-GO, localizado acerca de 136
Km de Goiânia, no ano de 1980, tinha 35 (trinta e cinco) escolas
no meio rural, hoje somente duas, sendo a Escola Municipal Betel
e a Escola Municipal Serra Dourada, localizada no povoado de
Cruzeiro Dourado. A Escola Municipal Betel atende crianças
desde a Educação Infantil ao 9º ano oriundos da Fazenda Córrego
do Cedro, Região de Vila São José, Trevo de Diolândia, Joaquim
Apolinário, Boa Sorte, dentre outros. A Escola M. Betel recebe
alunos de diversas fazendas, como, Baú I e II, Lapinha, Vila S. Jose,
Santo Antônio, Boa Sorte, Santana, Córrego Grande e outras. A
Escola Betel comanda os distritos do município de Itapuranga,
exceto Lages. (MEMORIAL, Professor/diretor José Barros.
ENTREVISTA, fevereiro de 2021)
Durante a gestão de João Batista da Trindade em julho de
1986, o Executivo Municipal conveniou com a Secretaria da
Educação do Estado de Goiás na recuperação da Escola Povoado
Betel. Durante muitos anos essa Unidade ficou a cargo da rede
estadual, mas em 1998 a mesma foi intitulada Escola Municipal
Betel, localizada na Fazenda Córrego Grande, município de
Itapuranga/GO, com Lei de Criação nº 1.181/98 – Portaria da
SEE nº 2.876/2005. Este foi o primeiro polo educacional da rede
municipal de ensino.
A Unidade funciona em 02 (dois) períodos matutinos e
vespertinos, oferecendo educação regular (Educação Infantil
(Jardim I e Jardim II) e Ensino Fundamental de I ao 5° ano) e conta
com o Projeto Escola Integral (Mais Educação) do Governo
Federal. A Escola municipal Betel “Sede”, possui 8 (oito)
professores, nos distritos há mais 20 professores. Os alunos do 6°
ao 9° ano tinham a oportunidade de participarem de aulas de
dança, esporte e reforço escolar. No entanto, em 2019 houve uma

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172
Geografias Pretas

mudança no município e a 2° fase foi destinada a responsabilidade


do estado. Atualmente na Escola Betel funcionam salas
multisseriadas.
A maioria dos alunos pertence a famílias de camponeses, a
origem dos filhos é apontada nas entrevistas como filhos de
vaqueiros, caseiros, meeiros, produtores de leite e hortaliças. A
escola ainda é vista como centro de informações, referência para a
comunidade, tanto de informação como cultural, por exemplo, a
escola promove a festa junina, tradição no município desde sua
fundação, que conta com a participação dos pais na elaboração
inclusive do formato da festa.
Na entrada da escola visualizamos o campo de futebol,
bem cuidado, utilizado para as aulas de educação física. A escola
possui dois pavilhões pequenos, salas de aula, sala da direção,
biblioteca, banheiros e uma cozinha. Há também a necessidade de
alguns equipamentos novos como armários maiores e recursos de
mídia. Ainda no que se refere ao espaço físico da escola Betel
observamos que contêm espaços para jogar basquete, ping-pong e
vôlei. A escola possui uma horta com modelo de mandala
estruturada com garrafas pets, economiza água, aproveita melhor o
espaço. O espaço é arborizado e cuidado.
Entre os professores desta escola, entrevistamos, um deles,
do sexo masculino, idade de 54 anos, possui ensino superior com
espacialização. É licenciado e Letras e Pedagogia. Este professor é
regente no ensino fundamental há 24 anos. O referido entrevistado
á foi diretor de escola por 6 anos e hoje é coordenador dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e do Pacto nacional de
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) no município de
Itapuranga. Ele leciona além da Escola Betel também na Escola
Municipal Vera Cruz.
Indagamos a respeito do racismo e das relações étnico-
raciais presentes no cotidiano escolar, sobre isto o professor
afirmou: “Existem diferenças sociais relacionadas às questões étnico-raciais e
sempre temos que fazer intervenções e esclarecimentos sobre as discriminações.”

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173
Geografias Pretas

Em relação à indagação se tal discussão tem sido realizada


em sala de aula e os conteúdos abordados com relação às questões
étnico-raciais o professor contribuiu: “Sim. Estudamos as
desigualdades sociais nos centros urbanos. Estudamos a formação do povo
brasileiro, estudamos as diferentes culturas das regiões brasileiras.”
Foi perguntado sobre se a importância em discutir a
questão étnico-racial junto aos alunos do campo, quanto a isto o
professor explicou: “Considero importante e realizo discussões pontuais
sobre o sensacionalismo das mídias que desejam apenas audiência e não ajuda
a combater o racismo e o preconceito. Precisamos debater os fatos e encontrar
soluções para as causas.” Outro professor acrescentou: “Considero de
extrema importância haja vista que os livros didáticos trazem poucos conteúdos
relacionados à temática, portanto é um desafio que nós professores temos, temos
que trazer essa temática para a sala de aula, sobretudo, para o campo.”
Entre os principais desafios apontados pelo professor para
discutir tal abordagem, ele destacou: “Encontrar material didático
relacionado ao tema e conciliar com os planos curriculares vigentes”. A forma
de debater a questão étnico racial também foi apresentada pelos/as
professores/as, mostrando que se deve ter muito cuidado por
exemplo, “A presença de muitos alunos que se sentem desconfortáveis, pois
os mesmos se enquadram dentro deste processo de discriminação e a faixa etária
adolescente é preciso bom senso, porque uma reflexão se não for bem conduzida
pode trazer mais transtornos. É preciso cuidado e muito amor ao retratar o
assunto, às vezes um olhar diferente pode significar algo para o aluno.”
Estas afirmações nos chamam a atenção para a
preocupação que os/as professores/as demonstram ter para o
tratamento das questões étnico-raciais nos conteúdos e na sala de
aula, inclusive para mediar conflitos raciais e discriminatórios. A
ausência de materiais didáticos também apresentado como um
dificultador para a discussão da temática, mesmo que a produção
pedagógica sobre a educação das relações étnico-raciais já seja
robusta, sobretudo como pesquisa na área de Educação e nas
Ciências Humanas. O problema é que este material não chega até
às escolas de forma ampla e os materiais disponíveis, sobretudo os

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174
Geografias Pretas

livros didáticos, apresentam poucas possibilidades para este debate,


o que também foi algo apresentado pelos/as professores/as.
No que se refere às metodologias utilizadas para
materializar essa discussão, foram citados vídeos pelos 13 (treze)
professores que responderam às perguntas pelo google forms. Entre
os vídeos que eles demonstraram conhecimento e apropriação em
suas aulas relacionando as questões étnico raciais se destacaram:

Quadro 01
Raízes da cultura brasileira.
O xadrez das cores: o preconceito e o desafio da acolhida da
diversidade.
Viva a cultura brasileira.
Zumbi dos Palmares, presente na luta!”
Tiros em Huanda.
A história de um massacre.
Pantera negra.
Vista minha pele.
Estrelas além do tempo.
O povo brasileiro.
Cidade de Deus.
Lives com professores da área de questão racial.
Entrevistas com o geógrafo e professor Milton Santos.
Organização: Filmes e documentários citados pelos professores
de escolas públicas em Goiás utilizados em sala de aula na
questão étnico racial. (BORGES, Joyce de Almeida. 2021.)

Algumas metodologias foram citadas pelos/as


professores/as no que se refere às práticas ligadas a abordagem
mencionada: “materiais da cor da cultura”, “atividades interdisciplinares”
e “rodas de conversas”. Uma Metodologia entre os/as
entrevistados/as nos chamou bastante a atenção: “Já trabalhei em
escolas particulares e me lembro de uma vez não ter nenhum aluno negro em
sala de aula. Pedi aos alunos que olhassem uns para os outros e identificassem

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175
Geografias Pretas

semelhanças e diferenças entre eles até problematizar essa questão da exclusão


social de pessoas negras em certos espaços.” Este trabalho de busca da
alteridade com a turma é um importante caminho para o
reconhecimento da diferença e o entendimento sobre o que sua
ausência representa.
Entre os principais conteúdos de Geografia aos quais os/as
professores/as vinculam as questões étnico-raciais foram
apontados: “Urbanização mundial, agricultura mundial, formação do
território brasileiro. População. África. Migração.” Segundo eles no 5°
ano aparece já na BNCC8 a temática “Diferenças étnico-raciais e
étnico-culturais e desigualdades sociais”, o qual pode ser
problematizado o que levantamos nesta discussão. Neste
documento, ao estabelecer as conexões entre os conceitos básicos
da Geografia e a vivência dos alunos da primeira fase do Ensino
Fundamental, verificamos a afirmação de que

(...)é imprescindível que os alunos identifiquem a presença


e a sociodiversidade de culturas indígenas, afro-brasileiras,
quilombolas, ciganas e dos demais povos e comunidades
tradicionais para compreender suas características
socioculturais e suas territorialidades. Do mesmo modo, é
necessário que eles diferenciem os lugares de vivência e
compreendam a produção das paisagens e a inter-relação
entre elas, como o campo/cidade e o urbano/rural, no que
tange aos aspectos políticos, sociais, culturais, étnico-raciais
e econômicos (BRASIL, 2017, p.368).

Este excerto configura a temática como um Tema


Contemporâneo Transversal (TCT) necessário no ensino de
Geografia e garantido como objeto de conhecimento, o que
incentiva a mediação dos/as professores/as de Geografia de
trabalharem em diferentes escalas e contextos as diferenças étnico-
raciais no sentido de reconhecê-las como um elemento que possui
uma dimensão espacial. No documento referente aos Anos Finais

8 Base Nacional Comum Curricular.

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176
Geografias Pretas

do Ensino Fundamental (BRASIL, 2017), observa-se a ênfase na


multiescalaridade de fenômenos como a migração, a atuação de
movimentos sociais, a realidade do continente africano nos
aspectos regional e global que também possibilitam a apresentação
e discussão da temática étnico-racial, efetivamente.

Considerações Finais

Como nos mostrou Caldart (2009) a educação do campo


continua com um referencial marcado pela tradição pedagógica da
emancipação numa proposta de educação contra hegemônica,
contra a expansão do agronegócio, contra a pedagogia da exclusão,
do capital e da individualização. É uma perspectiva que defende o
diálogo dos saberes e também representa a defesa da escola pública
à classe trabalhadora.
O combate às desigualdades sofridas no cotidiano escolar
é importantíssimo, o que pode ser confirmado com o próprio
depoimento de um dos professores: “É importante para amenizar as
desigualdades raciais.” São contextos sociais de segregação,
discriminação, pobreza, violências físicas e simbólicas, por que não
os enfatizar? Por que não contribuir para a construção de novas
identidades? A escola é um dos espaços de construção e
desconstrução de verdades apresentadas como incontestáveis,
estáticas e absolutas. Para os/as professores/as é importante
sensibilizar os/as alunos/as e comunidade escolar, lançando
olhares para as questões apontadas.
Os depoimentos apresentados pelos/as docentes do
campo mostram como eles/as se preocupam com a questão
étnico- racial, demonstram conhecimentos acerca da temática,
criticidade, apontam exemplos, no entanto, eles/as mesmos/as
afirmaram que o debate necessita de uma atenção maior da
comunidade escolar como um todo, um cuidado pedagógico que
possa efetivar uma percepção transformadora diante da realidade
enfrentada pelas pessoas negras em situações cotidianas de racismo
e discriminação.

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177
Geografias Pretas

Como afirma Souza (2020) a discussão sobre o/a negro/a


na formação da população brasileira precisa ser apresentada com o
objetivo de superar estereótipos e buscar uma aproximação da
geografia na escola na promoção de práticas cidadãs que envolva
também o reconhecimento das diferenças e como elas incidem
sobre os sujeitos na maneira como vivenciam e criam
espacialidades.

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182
Geografias Pretas

SEGREGAÇÃO RACIAL: UMA


COLONIALIDADE EM BELÉM-PARÁ

Jakson Silva da Silva

Introdução

Espoliação, com o sentido de desapossar as pessoas dos


seus lugares e de direitos para uma vida humanizada na cidade,
expressa muito o que artigo discute. O conceito é definido desde
Lúcio Kowarick (1980) como um conjunto de extorsões impostas
a populações de baixa renda. Capitais privados e Estado, para
valorizar o espaço urbano, forçam moradores de favelas a se
deslocarem para áreas distantes, onde igualmente não contam com
serviços de consumo coletivo e tampouco da sociabilidade que
haviam construído nos seus lugares de origem. O artigo propõe
que essa espoliação tem cor.
A fim de fornecer informações territoriais sobre as regiões
metropolitanas, o IBGE utiliza a classificação “aglomerados
subnormais” para caracterizar áreas conhecidas em todo o Brasil
como favelas. Em Belém, cujo território tem 40% da superfície
abaixo do nível do mar (Agência Belém, 2018), essas áreas são
denominadas baixadas. Desprovidas de serviços de energia elétrica,
esgotamento sanitário, água ou coleta de lixo, e ainda
caracterizadas pela ausência de título de propriedade, carências
estas que definem um aglomerado subnormal (IBGE, 2011), as
baixadas sofrem alagamentos em decorrência das marés e das
chuvas intensas, mas também em decorrência da falta de
manutenção dos canais que cortam a cidade. Os alagamentos são
problema crônico nas partes mais baixas da cidade e o
assoreamento dos canais, maltratados pelo poder público
municipal, contribui muito para esse drama.

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Geografias Pretas

Nas baixadas moram os pobres, até que elas passem por


algum processo de urbanização, geralmente encadeado por um
projeto de macrodrenagem. Uma recorrência nos processos de
urbanização em Belém é a remoção dos moradores tradicionais,
política pública que ensejou o jargão popular “baixada saneada não
é pra pobre”, jargão que carrega uma dimensão ideológica, como
se fosse natural que as áreas bem localizadas devessem
necessariamente ser ocupadas pelas classes dominantes
(VILLAÇA, 1997). Os pobres são sistematicamente removidos
dos seus lugares quando estes passam por alguma urbanização. A
segregação espacial dos pobres é amplamente reconhecida e
naturalizada. Mas quem são os pobres? A partir dessa pergunta
vamos desenvolver uma interpretação pouco considerada nos
processos de segregação social e espacial em Belém.
Para militantes do Centro de Estudos e Defesa do Negro
no Pará (Cedenpa) não há dúvida: “as periferias de Belém são
negras”. A leitura racial da cidade e suas periferias abandonadas,
feita pelo Cedenpa e algumas outras entidades e movimentos
sociais, é, no entanto, pouco difundida. A partir da academia, a
maioria dos estudos admite as segregações socioespaciais, mas não
as qualifica como também raciais. É raro o reconhecimento do
racismo na sociedade e nas políticas públicas, o caráter racial e
segregador dos poderes públicos e privados, que inferiorizam
lugares e pessoas e produzem realidades desumanas. Segregar é
apartar de serviços e infraestrutura, negar o direito à vida urbana,
engendrar periferias desconectadas do tecido urbano e nelas zonas
desumanas espoliadas de tudo. Segregar é abandonar estas zonas à
violência, omitir habitação popular e participação real dos
moradores nos projetos urbanísticos, desde a concepção desses
projetos, de modo a permitir a permanência deles, os moradores,
no lugar. Contra essa grande omissão de direitos, é preciso nomear
o racismo das segregações urbanas. Em Belém, as segregações
raciais são concebidas e praticadas pelas elites dominantes desde
tempos coloniais. Tal colonialidade do poder (QUIJANO, 2000) é
o eixo argumentativo desse artigo.

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184
Geografias Pretas

O reconhecimento dessa realidade persistente acrescenta à


leitura do urbano capitalista realizada por Henri Lefebvre há mais
de 50 anos, em O Direito à Cidade (1969), desde então uma
referência para aqueles que se preocupam com a espoliação dos
pobres urbanos, seus longos trajetos entre casa e trabalho, a perda
dos seus espaços de moradia e sociabilidade e tudo mais que
caracteriza a falta do direito de pertencer à cidade, cada vez mais
movida pelos direitos da propriedade privada e pelo lucro. A esse
olhar clássico sobre a cidade acrescentamos o racismo imiscuído
nos projetos urbanísticos como uma chave de interpretação,
trazendo para o espaço urbano a noção de colonialidade do poder,
que distingue raça como um elemento central para o
estabelecimento de hierarquias sociais
Assim, nas suas sessões o artigo argumenta que (i) as
baixadas e as periferias de Belém são ocupadas histórica e
predominantemente por pretos e pardos pobres, conforme
classificação do IBGE (que na classificação esconde os indígenas,
que, no entanto, reconhecidos ou não, existem na cidade); (ii) os
lugares dos pretos, pardos e indígenas, onde a vida popular pulsa
em modos e tradições culturais que sustentam a resistência, esses
lugares são sistematicamente desprezados pela administração
pública, que os abandona para torna-los deteriorados e depois os
submeterem a gentrificações, que levam às segregações; (iii) esse
processo de espoliação desumaniza os pretos e partos pobres e
significa uma ameaça real aos territórios de identidade negra e afro-
indígena (identidade essa ainda não politicamente afirmada), que
são as feiras e portos públicos da cidade, situados na orla e
cobiçados pela lógica capitalista local; (iv) localmente, o mote
discursivo “janelas para o rio” exerce um apelo quase consensual,
embora sirva particularmente a interesses de investidores
capitalistas associados ao poder público; (v) efetivamente, em
Belém, ao longo da orla, já que a proximidade das águas valoriza
o solo urbano, no lugar dos portos e feiras, investidores e governos
projetam e implantam waterfronts, que podem ser traduzidas aqui
como “janelas para o rio”, para proporcionar contemplação,

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185
Geografias Pretas

consumo e lucros; (vi) feirantes, usuários e moradores de bairros


como o Jurunas, Guamá e Condor, e moradores do outro lado do
rio, que fazem desses portos/feiras portas de entrada e saída entre
a cidade e as ilhas, se não resistirem, perderão seu lugar e com ele
espaço de trabalho e obtenção de renda, de relações sociais e de
vizinhança longamente construídos, (vii) a efetividade da luta pelo
direito à cidade, e especialmente pelos lugares de vivência popular,
passa pela afirmação identitária e étnico-racial das pessoas que os
usam.
As remoções ocorrem sistematicamente e repetem a velha
espoliação pelo poder branco colonial, que desde sempre
desapossa populações nativas dos seus lugares. Belém nasceu
segregando os indígenas Tupinambá e Pacajá das suas aldeias e
depois escravizando-os. Contemporaneamente, a orla da cidade se
valorizou pela proximidade com as águas e nela não se cogita a
permanência dos lugares populares, porque as pessoas que a
ocupam como valor de uso são desprezadas. Esse desprezo que
desumaniza os pretos e pardos pobres, levando-as a viver em
condições “abaixo da linha do humano”, é um traço colonial de
Belém pouco considerado nas interpretações acadêmicas sobre a
cidade. É justamente a permanência desse traço racista nas
políticas urbanas que o artigo aponta como uma colonialidade do
poder.

Pessoas abaixo da linha do humano

O descaso da administração pública para com os lugares


populares e a manutenção das pessoas onde elas tecem sua
existência é uma colonialidade em Belém, onde mais da metade da
população é compelida a viver abaixo da linha do humano. De
acordo com o Censo 2010 do IBGE, a Região Metropolitana de
Belém (RMB), com 2,1 milhões de habitantes, tinha a maior
proporção de aglomerados subnormais em seu espaço urbano
entre as regiões metropolitanas do Brasil (PENNAFORT, 2013).

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186
Geografias Pretas

A expressão “abaixo da linha do humano” é extraída de Os


Condenados da Terra, da crítica que Frantz Fanon faz da cidade
colonial, segregada em zonas humanas, por um lado, e zonas
inumanas, por outro lado: “O mundo colonial é um mundo
dividido em compartimentos. A cidade do colonizado (...) é um
lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados” (1961, p.
27). Aqui no artigo colocamos a pergunta: quem são esses “mal
afamados” moradores das “zonas vermelhas” de Belém. As zonas
vermelhas são locais de alta periculosidade, assim chamados pela
própria polícia. É nelas que a juventude pobre e negra vem sendo
exterminada. Segundo o pesquisador Aiala Colares, coordenador
do Observatório de Estudos em Defesa da Juventude Negra
(OBEJ/UFPA), o tráfico de drogas dominou as periferias da
Região Metropolitana de Belém (RMB), situação que se relaciona
à falta de políticas públicas e à formação de zonas de miséria, onde
os jovens são recrutados para o tráfico.
Nesse contexto, o Estado do Pará, puxado pela RMB,
atingiu a taxa de 45,3 homicídios por 100 mil habitantes,
caracterizando uma situação de guerra. (Diário do Pará,
04/02/2018). Aiala Colares mapeou os bairros onde, em Belém,
em função do tráfico de drogas, confronto com a polícia e ação de
milícias ocorreram, entre 2011 e 2016, execuções em maior
número. São bairros como Guamá, Icoaraci, Sacramenta, Jurunas,
Cabanagem e Benguí, entre outros –, periféricos mais em virtude
do abandono a que estes “territórios negros” estão relegados pelo
Estado do que em termos geográficos, já que o crescimento da
cidade os tornou relativamente próximos do centro. Parece que
para o Estado a morte dos negros da periferia importa pouco.
Segundo o pesquisador Aila Colares, o Estado não investiga esses
assassinatos: “vivemos numa espécie de cultura onde o pobre e
negro (...) a morte dele parece ‘justificável’ (...) Quando uma pessoa
branca, classe média e do centro é assassinada, o crime é
investigado e logo se tem uma resposta”. (Diário do Pará,
28/01/2018).

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Geografias Pretas

A violência tolerada pelo Estado nas periferias é mais um


aspecto do desprezo que o Estado reserva a elas e a seus habitantes.
Importa aqui atribuir sentido à falta de atenção do Estado para
com esses lugares. Segregar é excluir, relegar ao abandono lugares
que contam pouco na lógica dominante da cidade, que é não só
capitalista como também racista.
É importante insistir. O Estado capitalista é classista, isso
parece ser ponto pacífico. Mas é também racista, conforme
queremos afirmar. Pode-se dizer que essa atribuição de sentido ao
abandono das periferias é certamente um enquadramento
interpretativo nosso, uma percepção subjetiva e discursiva da
realidade. No entanto, para além da subjetividade interpretativa, há
um fato muito objetivo nessas periferias: o sofrimento da
população é real, assim como às vezes também é a revolta.
Conversando com elas, a emoção indignada com que as pessoas se
manifestam é concreta.
Marituba é um município da RMB para onde foi
transferido o Aterro Sanitário da Grande Belém, assim chamado
oficialmente, mas funcionando de fato como um lixão fétido. A
população sofre com um mau cheiro insuportável e também com
a poluição do igarapé Uriboquinha, que atravessa o território
quilombola do Abacatal. Antes, o Uriboquinha servia o quilombo
com água potável, agora não mais. Conurbada à capital do estado
e atravessada pela BR 316, onde ocorrem frequentes acidentes
fatais, Marituba é uma localidade muito desfavorecida. Oferece
poucos empregos e funciona como município-dormitório de
Belém. Com alta densidade demográfica, Marituba tem 77,2% da
sua população vivendo “abaixo da linha do humano”, em
aglomerados subnormais, a mais alta proporção do país, segundo
o Censo 2010 do IBGE. O sentido que o movimento popular
contra o lixão atribui à realidade é de sofrimento de uma população
desumanizada pelo poder público, que “joga tudo de ruim para
Marituba”.

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188
Geografias Pretas

Marituba: “Fora lixão”

Face à realidade de Marituba, com águas, solo e vegetação


contaminados, além do ar irrespirável e das doenças transmitidas
pelos insetos que se proliferam a partir do lixão, o Governo Federal
reconheceu uma situação de emergência criada pelos impactos do
chamado aterro sanitário, que recebe todo o lixo produzido na
Grande Belém. O reconhecimento federal se deu depois que
centenas de manifestantes interditaram a BR-316, impedindo não
só o tráfego como também o acesso dos caminhões de coleta ao
aterro, gerando acúmulo de lixo em Belém e outros municípios da
região metropolitana. O faturamento do empreendimento que
explora o chamado aterro sanitário depende da pesagem dos
caminhões de coleta de lixo na balança situada no portão de
entrada. Quanto mais toneladas de lixo os caminhões despejam no
aterro, maior é o lucro do empreendimento. Essa é a lógica de
remuneração do negócio. O empreendimento não faz qualquer
seleção prévia dos resíduos sólidos, não há qualquer incentivo à
atividade de reciclagem, de modo que uma impressionante
montanha de lixo pode ser avistada desde a estrada de acesso.
O bloqueio da rodovia é um recurso da “Frente
Permanente Fora Lixão” (FPFL) para chamar a atenção para o
sofrimento da população de Marituba. O cheiro ruim não alcança
Belém, onde o problema ainda não está de fato colocado.
“Estamos sozinhos, o movimento fora lixão está só”, reclama uma
militante. Mas a indiferença não livra a capital dos efeitos nocivos
do lixão, já que o empreendimento não tem onde lançar o
chorume, também chamado “líquido percolato”, que libera forte
cheiro de coisa podre resultante da putrefação de matérias
orgânicas. Os militantes do FPFL afirmam que são “21 bacias
abarrotadas de chorume escoando para o igarapé”, que por sua vez
vai desaguar no rio Guamá, que banha Belém. “O caos ainda está
por vir, isso é só o começo”. Em reunião com a FPFL, um
integrante do movimento nos informou que “são entre 200.000 a
300.000 metros cúbicos de chorume. A empresa não tem

Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

189
Geografias Pretas

condições de tratar o volume de chorume produzido. Se não fosse


nosso grito, eles já estariam jogando no rio Guamá, e ainda
querem”.
Mas que empresa é essa que assumiu a gestão do aterro
sanitário da RMB como um empreendimento lucrativo e não tem
condições de tratar o chorume? O aterro sanitário foi implantado
em 2015 para tratar os resíduos sólidos de Belém, Ananindeua,
Marituba e demais municípios da RMB, e é operado pela Guamá
Tratamento de Resíduos Ltda., empresa que pertence à Solvi
Participações S/A, acionista majoritária da Revita Engenharia e da
Vega. A holding Solví opera e gerencia concessões e contratos
públicos e privados no Brasil, Peru, Bolívia e Argentina. No seu
sítio eletrônico (http://www.solvi.com/compromisso-solvi/), a
entrada “Compromisso Solví” informa que

O Grupo Solví é formado por empresas que se destacam


por sua atuação em quatro segmentos: Resíduos
Públicos, Soluções Industriais, Saneamento e
Valorização Energética. Com o suporte e apoio de seu
time de mais de 19 mil profissionais, marca presença em
municípios brasileiros, além de Argentina, Bolívia e Peru.
Todas as empresas que carregam a marca Solví assumem
o compromisso de oferecer Soluções para a vida, a partir
da prestação de serviços diferenciados, altamente eficientes
e inovadores, capazes de permitir a coexistência
harmoniosa entre o meio ambiente e a sociedade.

A distância entre a retórica do “Compromisso Solví”, que


fala em “soluções para a vida”, e a realidade desumana que o grupo
empresarial produz com o lixão de Marituba é abissal, para usar
uma palavra empregada por Boaventura de Sousa Santos, quando
esse autor conceitua o sistema de visíveis e invisíveis distinções que
caracteriza o que ele define como pensamento abissal, que
obscurece realidades concretas, situando-as do outro lado ou
abaixo de uma linha de existência humana relevante. Ou seja, o

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190
Geografias Pretas

sofrimento dos moradores de Marituba é, na prática, irrelevante


para a multinacional.

Modern Western thinking is an abyssal thinking. It consists


of a system of visible and invisible distinctions, the invisible
distinctions being the foundation of the visible ones. The
invisible distinctions are established through radical lines
that divides social reality into two realms, the realm of “this
side of the line” and the realm of “the other side of the
line”. The division is such that “the other side of the line
vanishes as reality, becomes nonexistent, and is indeed
produced as nonexistent. Nonexistent means not existent
in any relevant or comprehensible way of being. (SANTOS,
2007, p, 45).

O lixão de Marituba é exemplo da forma colonial com que


empresas e poderes públicos se relacionam nessa metrópole do
Norte do Brasil, na medida em que estes permitem o licenciamento
e a operação de empreendimentos em flagrante desrespeito à
legislação ambiental e, no caso do lixão de Marituba, da Lei Nº
12.305, que orienta a instalação e a operação de projetos de aterros
sanitários para o tratamento de resíduos sólidos. Contudo, entre a
legislação urbanística e seus instrumentos legais, por um lado, e a
realidade a que eles deveriam se aplicar, por outro, há uma enorme
distância, uma distância abissal, podemos dizer, a qual, segundo
Ermínia Maricato (2000), é mediada pelas relações de poder, que
aqui “flexibilizam” a aplicação da lei dos resíduos sólidos.
Por que uma multinacional como a Solví atua aqui ao
arrepio da lei e de forma tão irresponsável e aética? Por que
multinacionais que provavelmente atuam corretamente nos seus
países de origem, como a mineradora norueguesa Hydro Alunorte,
que contaminou com rejeitos minerais a região de Barcarena, tem
aqui aquiescência para operar precariamente, vazando rejeitos que
prejudicam a vida de dezenas de comunidades? Se vê que o certo
e o errado, o bem e o mal, o respeito a regras e aos outros não são
escolhas éticas universalmente aplicáveis. Como diz Bauman

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191
Geografias Pretas

(1997), os humanos são moralmente ambivalentes e as


subsequentes instituições também operam de forma ambivalente.
Significa dizer que as empresas do sistema-mundo capitalista de
fato não interiorizam a responsabilidade pelo outro, sem que o
Estado, aqui na precariedade dessa metrópole periférica, exerça seu
poder de coerção. “Por que as autoridades são omissas? Quem está
ganhando com essas práticas erradas?”, perguntam as pessoas.
Os resíduos sólidos, pesados na balança de entrada e
depositados diariamente no chamado aterro sanitário,
provenientes de Belém, Ananindeua e Marituba (que somam cerca
de 2.100.000 habitantes), são estimados em mais de 2.000
toneladas. Portanto, a Revita Engenharia e a Vega, subsidiárias da
Solví que operam o lixão sem cumprir a lei dos resíduos sólidos,
devem estar faturando bem. Além destes, outros ganhos ilícitos são
apontados. Um empresário que participa da ação coletiva que
mobiliza o Fórum Permanente Fora Lixão (FPFL) denuncia a
existência de uma “máfia do lixo” que financia campanhas
políticas. Um advogado, também integrante do FPFL,
provavelmente candidato nas próximas eleições, informa que o
custo de uma campanha para vereador em Marituba chega a R$
300.000,00. Na Câmara Municipal de Marituba, dos 15 vereadores
eleitos na última eleição, só uma vereadora faz oposição ao
prefeito. A vereadora Chica diz que o poder público não enfrenta
o problema por causa dos recursos da campanha: “os empresários
dão, mas querem de volta”. Ela diz que o governador a trata como
“aquela neguinha”. De forma racista, portanto.
A forma pejorativa pela qual o governador trata a vereadora
que o crítica é significativa para o argumento de que a escravidão é
nosso berço, de Jessé Souza. Instituição fundamental para a
interpretação do Brasil, o escravismo continua ecoando nas
relações entre as elites e a população pobre, preta e parda que
habita nossas periferias, que tem pouco poder de consumo e quase
nenhum poder político. Hoje, as favelas de Marituba
correspondem às senzalas, “o ódio ao pobre hoje em dia é a
continuação do ódio devotado ao escravo de antes” (Sousa 2017,

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Geografias Pretas

p. 67). Segundo o autor, a escravidão é a semente da sociabilidade


nacional, marcada pela insensibilidade em relação à dor e ao
sofrimento alheio. Sob condições modernas, em processos de
urbanização excludente, praticamos segregações racistas,
argumentamos aqui nesse artigo. O escravo e o pária dos
mocambos são “a pré-história daquela classe que chamo
provocativamente de ‘ralé brasileira’, para denunciar seu
abandono”, afirma Jessé Souza (idem, p. 66).
A população dessa periferia que é Marituba não merece
respeito, não merece nem mesmo respirar um ar fresco. A
vereadora Chica enquadra o lixão como uma “fábrica de doenças:
no chorume tem larvas de carapanã em grande quantidade. Em
Marituba as pessoas sofrem com doenças respiratórias, com
chikungunya, zica e dengue, viroses e vermes”. Nos espaços
degradados se concentram os grupos mais vulneráveis. A
degradação do lugar acentua a dificuldade de subsistência das
pessoas e as estigmatiza. O desprezo pelo lugar se estende a seus
moradores. Na verdade, o desprezo pelo lugar é o desprezo pelas
pessoas que o habitam. Nessa lógica, os pretos e pardos pobres das
periferias são segregados abaixo da linha do humano.
Em um tópico de um artigo, intitulado “Zonas fanonianas
y la línea abisal de De Sousa Santos”, Ramón Grosfoguel (2012)
articula a concepção fanoniana de racismo com a linha abissal da
relevância/irrelevância existencial de Boaventura de Sousa Santos,
acima considerada, para cunhar as expressões “zona do ser” e
“zona do não-ser”. Para Fanon, o racismo é uma hierarquia global
de superioridade e inferioridade sobre a linha do humano, a qual
tem sido produzida e reproduzida como estrutura de dominação.
Para Boaventura, na modernidade existe uma linha abismal entre
os habitantes acima dessa linha e os habitantes abaixo dela. “Si
traducimos esta línea como de lo humano y llamamos zona del ser
a los que habitan encima de la línea abismal y zona del no-ser a los
que habitan por debajo de ella, podemos enriquecer nuestro
entendimiento de la modernidad” (idem, p. 95). A modernidade,

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193
Geografias Pretas

segundo Grosfoguel, está emoldurada em um sistema-mundo que,


entre outros atributos, é racial e colonial.
Nesse contexto urbano de colonialidade do poder,
Marituba como uma “senzala” resiste contra a “casa-grande”. A
população se mobiliza e vincula os governantes às irregularidades
do aterro sanitário. Em março de 2017, no Dia Mundial da Água,
ali poluídas pelo lixão e outros empreendimentos criminosos, o
movimento Fórum Permanente Fora Lixão reuniu, segundo o
FPFL, cerca de 50 mil pessoas, no Km 17 da Br 316.

Figura 1: Manifestação Pública do Fórum Permanente Fora


Lixão.

Foto: Herbert Nascimento. 22 de março de 2017

Zonas fanonianas ou territórios negros na cidade

O sentido racial das segregações socioespaciais é tema


“discutido desde os primórdios da Escola de Chicago”, argumenta
o artigo Segregação Socioespacial e Desigualdades em Salvador
(CARVALHO & PEREIRA, 2015, p. 5). A negação de direitos a
populações urbanas é global e algumas cidades brasileiras contam
com relatos de discriminação racial, como é o caso de Salvador,
onde, desde os anos 1960, a orla é ocupada por “camadas de alta e
média renda” e os pobres são segregados para “áreas então

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194
Geografias Pretas

distantes e desequipadas” (idem, p. 6). Segundo os autores do


artigo, a segregação espacial em Salvador tem cor.

As articulações existentes entre as condições


socioeconômicas, as diferenças raciais e a localização de
moradia levaram esses espaços a assumir diferentes
“cores”. A parte central da cidade e a Orla Atlântica (...)
onde ficam as áreas que foram classificadas como médias e
superiores ... constituíram os espaços privilegiados da
parcela branca da população. Já os pretos e pardos se
abrigavam predominantemente em áreas do tipo popular
ou popular inferior (...) as diferenças e desigualdade entre
esses diferentes espaços puderam ser constatadas através de
vários indicadores. (idem, p. 8).

À pobreza dos moradores de renda baixa das áreas


distantes e desequipadas soma-se o desemprego, a precariedade
dos domicílios, a deficiência escolar, o analfabetismo funcional, a
carência de transportes e a violência. Essa destituição que
desumaniza os lugares ocupados pelos pretos e pardos pobres,
segregados do direito à cidade, entendido como acesso a direitos
sociais e equipamentos urbanos, e, de outro lado, o enobrecimento
das áreas embranquecidas da cidade, essa dicotomia caracteriza a
cidade colonial descrita por Fanon, dividida em zonas. “A zona
habitada pelos colonizadores não é complementar da zona
habitada pelos colonizados. Essas duas zonas se opõem”
(FANON, 1968, p. 2/). Na zona do colonizador:

A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e


ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes
de lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas,
nem mesmo sondadas.(...) as ruas de suas cidades são
limpas, sem buraco, sem seixos. A cidade do colono é uma
cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanente de
boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos,
de estrangeiros. (FANON, 1968, p. 28/29).

Aiala Colares Oliveira Couto & Luiz Augusto Soares Mendes (Org.)

195
Geografias Pretas

De outro lado, a cidade habitada pelos colonizados é


desprovida de tudo e os negros têm fome de tudo. É como canta
a Nação Zumbi, uma banda de Recife, capital de Pernambuco:
“sem fastio, com fome de tudo, passando por cima de tudo e de
todos, a fome universal sempre querendo tudo” (2007). Ou seja,

A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena,


cidade negra, a medina, a reserva, é um lugar mal afamado,
povoado por homens mal afamados. Aí se nasce não se
importa onde, não importa como. Morre-se não importa
onde, não importa de que. É um mundo sem intervalos,
onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas
sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade
faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de
luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma
cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de
negros, é uma cidade de árabes. O olhar que o colonizado
lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um
olhar de inveja. [...] (FANON, 1968, p. 28/29).

É verdade que as áreas mais centrais de Belém não são


assim tão sólidas, iluminadas, sem buracos e seguras como Fanon
descreve a cidade do branco colonizador. Uma urbanização
precária, inclusive pela inexistência de esgotamento sanitário em
grande parte da cidade, caracteriza Belém como um todo, assim
como outras capitais do Norte do Brasil. Além de que muitas
baixadas, na forma de “aglomerados subnormais” ou favelas, aqui
em Belém situam-se próximas às áreas centrais, ocupando seu chão
inundável. De modo que a segregação que se verifica aqui não é
espacialmente tão marcada com a que descreve Fanon. Contudo,
as zonas de pobreza habitadas pelos pretos e pardos pobres,
situadas próximas às áreas nobres, estabelecem o mesmo quadro
de uma cidade cindida pelo contraste e desigualdade de estrutura,
serviços e condições de vida. De modo que as periferias, sejam
elas distantes ou próximas do centro urbano, fazem a RMB ter a
maior proporção da população habitando aglomerados

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Geografias Pretas

subnormais – 53,9% - entre todas as regiões metropolitanas do


país, de acordo com o censo 2010 do IBGE. Portanto, não sendo
um caso aparte no contexto urbano brasileiro, a extensão da
pobreza segregada de serviços urbanos faz de Belém um caso
notável.
O livro Desigualdades raciais e segregação urbana em antigas
capitais: Salvador, cidade D’Oxum, e Rio de Janeiro, cidade de Ogum, de
Antonia dos Santos Garcia (2009), expõe a lógica racial na gênese
destas metrópoles, e empreende uma abordagem histórica para
demonstrar que a presente segregação urbana é racial. Conjugando
as categorias raça, cor, ocupação, escolaridade, renda e habitação a
autora desvela a condição negra em Salvador e no Rio de Janeiro:
“são espaços estruturados onde a hierarquia social se inscreve no
plano de distribuição das residências e serviços urbanos”
(GARCIA, 2009, p. 32). Essa realidade hierárquica no espaço
urbano caracteriza igualmente Belém, cidade cuja compreensão
requer retirar sua leitura racial da condição de tabu. É preciso, pois,
articular a desigualdade e a pobreza à segregação racial no espaço
urbano (PEIXOTO & SILVA, 2016).
De acordo com Garcia, a resistência às segregações raciais
urbanas passa pela afirmação de identidades territoriais coletivas:
“as identidades territoriais coletivas têm uma importância
fundamental para o repensar e o agir sobre a cidade e não podem
ser ignoradas nas políticas urbanas que, de fato, pretendem garantir
o direito de todos à cidade” (2009, p. 164). Esse é um ponto
politicamente importante. A questão das identidades territoriais é
muito relevante na economia política do espaço urbano. Se os
pretos e pardos pobres adquirem consciência da questão racial no
lugar onde estão, estes lugares ganham o status de território de
pertencimento, e a resistência ganha novos tons e significados.
Mais que lutar pela sobrevivência material, trata-se ao mesmo
tempo de reivindicar reconhecimento racial no território, uma
atitude política com repercussões importantes na luta de
resistência (PEIXOTO & SILVA, 2016).

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Geografias Pretas

O reconhecimento de uma identidade que associa classe e


raça geraria um efeito de uma resistência muito mais aguerrida ao
direito ao lugar na cidade. Essa é uma tese a ser provada pelo
movimento negro na cidade. Florestan Fernandes (1988) aborda a
“continuidade de estruturas sociais e mentais coloniais e
escravistas” nas cidades brasileiras, defende a superação do
passado e fala de uma “segunda abolição”: “a abolição erigida pelos
negros e para os negros”. O autor fala do rompimento com a
“continuidade de estruturas sociais e mentais coloniais e
escravistas”. Essas estruturas sociais e mentais são, aliás, os traços
que nos levam a identificar Belém como uma cidade colonial.
Antonia Garcia e Florestan Fernandes sugerem uma junção de luta
de classes e luta pelo reconhecimento racial no território: “existem
duas polaridades, que não se contrapõem, mas se interpenetram
como elementos explosivos — a classe e a raça” (Fernandes, 1988).
Jessé Souza afirma que o presente não se explica sem o
passado e que a escravidão plantou a semente da sociabilidade
nacional. O negro escravizado, racialmente inferiorizado e
condenado, se transformou em classe condenada à condição de
abandono e degredo a que os pretos e pardos pobres estão
submetidos na cidade, desde sempre. O autor defende que
vivemos segregações racistas sob condições modernas, e que,
como efeito duradouro da escravidão, não internalizamos
sensibilidade em relação à dor e ao sofrimento do outro.
Segregação racial no espaço urbano e movimentos de
resistência a essa iniquidade são temas que, ainda que sem a ênfase
que merecem, tem tido algum reconhecimento. A dissertação de
mestrado intitulada A cidade de Camilo: escravidão urbana em Belém do
Grão-Pará (1871-1888), de Laurindo Junior (2012), fala sobre a
constituição dos territórios negros em Belém, em fins do século
XIX. O autor afirma haver então territórios negros segregados
dentro da cidade Belém, com os escravizados urbanos mantendo
práticas de resistência cultural. A segregação dos negros
racialmente inferiorizados atinge o período da Belle Époque, e a
construção de territórios negros se dá principalmente mediante

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Geografias Pretas

práticas culturais “pelos escravos ‘no tempo de trabalho’, mas


principalmente ‘no tempo de não trabalho’, associados às práticas
e valores culturais que se tornaram próprios às populações negras”
(LAURINDO JUNIOR, 2012, p. 149).
De fato, a resistência onde ela ocorre se dá muito em
virtude da manutenção das tradições culturais no território. Raquel
Rolnik, no artigo “Territórios negros nas cidades brasileiras
(etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro)”, mostra que
os territórios urbanos negros estão ligados às necessidades das
populações escravizadas existirem nos seus modos de vida.
Segundo a autora, “existe um território negro específico nas
cidades brasileiras, território que tem uma história, uma tradição”
(ROLNIK, 1989, p.1). Os territórios negros nas cidades existem
com casas de samba, terreiros, irmandades, mercados populares,
feiras livres, favelas e guetos. Em Belém, a afirmação da cultura
negra no território acontece na Cidade Velha, através do hip hop,
assim como nas festas populares religiosas, que assinalam o
pertencimento dos territórios aos negros, seja na feira do Ver-o-
Peso ou no bairro do Jurunas, onde São Benedito, sincretizado na
Umbanda com o Orixá Ossaim, é santo padroeiro.
A presença da cultura negra em Belém acontece também
nas relações entre o urbano e o rural, entre a cidade e os interiores,
entre as casas ribeirinhas do outro lado do rio e os portos/feiras
da Palha, do Acaí e do Ver-o-Peso. O mundo rural amazônico,
particularmente nas redondezas de Belém, sempre exerceu forte
influência na cultura negra da cidade. Constituído historicamente
por negros livres e fugidos, mestiços, indígenas e soldados brancos
desertores, que se refugiavam nos quilombos desde os tempos da
escravidão urbana em Belém, no século XIX (LOPES, 2002), o ir
e vir dessa população enraizou sua presença nos lugares de vida
popular ao longo da orla.
Os portos públicos da Palha e do Açaí recebem a influência
da cultura negra e ribeirinha dos quilombos de Itacuã-Miri e
Guajará-Miri, situados do outro lado do rio Guamá e da baía do
Guajará, no município do Acará. Negras e negros também vêm das

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Geografias Pretas

ilhas do Combú, das Onças, do Maracujá, dos Papagaios e do


Murutucum, assim como dos municípios de Igarapé Miri, Moju e
São Miguel, navegando nas suas embarcações tradicionais para
descarregar nos portos públicos e nos trapiches gêneros
alimentícios e culturas quilombolas e ribeirinhas. As populações
frequentam os portos públicos, as feiras e os trapiches para vender
e trocar mercadorias, como açaí, farinha, carvão, cerveja, água,
peixe, frutas, palha, madeira, estabelecendo transações econômicas
reguladas por noções de reciprocidade. Além disso, buscam a
cidade para consultas médicas, para tirar documentos, estudar,
conseguir serviços públicos e lazer.

Figura 2: Cartograma de aglomerados urbanos subnormais de


Belém.

Os portos/feiras públicos são lugares urbanos negros e


neles viceja intensa vida popular. Todo esse patrimônio material e
imaterial popular está ameaçado de destruição em nome das
“janelas para o rio”, mote que enseja a valorização capitalista da
orla de Belém. O cartograma 2, de aglomerados subnormais de
Belém, do IBGE/Cartogramas (2010), mostra como estas áreas se
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200
Geografias Pretas

concentram na faixa da orla que abrange os bairros do Jurunas,


Condor e Guamá, adentrando para o bairro da Terra Firme, nome
irônico para uma área sujeita a constantes alagamentos.

Gentrificação branqueadora numa periferia próxima

Gentrification nomeia um conceito que desde os anos 19601


revela o processo de valorização espacial e residencial de distritos
operários londrinos, o qual levou à substituição dos tradicionais
usuários dessas áreas por pessoas afluentes – chamados landed gentry
ou gentleman. Essa renovação de áreas urbanas deterioradas passou
a integrar o receituário do planejamento urbano global e se tornou
bastante comum na economia política das cidades, gerando
controvérsias e conflitos, posto que muitas vezes o processo
implica na remoção de grupos étnico-raciais de baixa renda, que
eventualmente resistem a ele. Neil Smith (2007) analisa a forma do
fenômeno em Nova York, nos anos 1990, mostrando como ele se
globalizou, tornando-se um pensamento urbano dominante, tanto
nos Estados Unidos como na Europa, Ásia e afinal em todo o
mundo, sempre com sentido de valorizar e aumentar a
rentabilidade do solo urbano e fomentar o avanço dos mercados
imobiliários. No Brasil, Marcelo Souza (2016) utiliza o termo para
interpretar o deslocamento forçado de populações pobres que no
neoliberalismo urbano contribui para a segregação. Outros autores
utilizam as palavras revitalização, renovação, higienização e
requalificação para designar processos semelhantes.
Usamos a palavra gentrificação porque ela carrega uma
semântica que enquadra bem o sentido social e político de
substituição da vida popular por espaços para o consumo da classe

1 The term gentrification was first coined in 1964 by Ruth Glass to describe the changes
she observed in the social structure and housing market of parts of inner London. One
by one, many of the working class quarters of London have been invaded by the middle
classes—upper and lower … Once this process of ‘gentrification’ starts in a district it
goes on rapidly until all or most of the original working class occupiers are displaced and
the whole social character of the district is changed (Glass, 1964, p. xviii). (HAMMETT,
2003).

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Geografias Pretas

média alta. Aqui em Belém, gentrificações se concretizam quando


uma beira de uso popular se torna um espaço de exploração
empresarial, de onde a clientela, enquanto consome, contempla a
paisagem das águas e da floresta do outro lado do rio. Aqui os
projetos urbanísticos costumam também empregar termos como
waterfront, píer, shopping, em lugar de feira, trapiche e beira, para
renomear os lugares de acordo com os novos usuários para os
quais eles se destinam. Esse desvelo semântico para o
enobrecimento ideológico dos espaços, e ainda a reprodução
internacional de modelos urbanísticos que esses termos encerram,
tudo isso faz o estrangeirismo se encaixar bem no contexto da
Estrada Nova de Belém, onde pretendemos qualificar um
incipiente processo de gentrificação que afeta portos e feiras
públicos.
O debate sobre a gentrificação de lugares na Estrada Nova
de Belém, oficialmente denominada av. Bernardo Sayão, é um
debate sobre a perda de espaços públicos na cidade. Se relaciona à
negação do popular em favor do capital que cobiça espaços na orla.
Em Belém há o apelo “janelas para o rio”, que significa a
valorização e a mercantilização da paisagem, apelo que se tornou
uma espécie de pensamento único na cidade. Otília Arantes (2000)
trata esse desejo coletivo pela paisagem como um apelo cultural,
que produz consensos e gentrifications, e cria a necessidade
de upgradings na infraestrutura urbana, associando governos, mídia
e empresários, os tais place entrepreneurs que descobriram o lugar, as
orlas em particular, e nelas o “culturalismo de mercado”, como
espaço privilegiado de valorização do capital no mundo dos
negócios. Aqui em Belém, contra o pensamento único das janelas
os usuários dos portos públicos cunharam a metáfora alternativa
de “portas para o rio”, condição espacial que os permite ir e vir
entre as ilhas e o que chamam continente.
Com foco especialmente no porto da Palha, buscamos
realizar uma defesa do lugar, enquanto é tempo. Esse artigo
expressa essa preocupação, também manifesta em ações culturais
que temos realizado, a partir da universidade, com usuários, no

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Geografias Pretas

sentido de reforçar com eles identidades e sentimento de


pertencimento. Nesse lugar de intensa vida popular, os pretos e
pardos pobres podem afirmar territórios de existência e resistência.
Apoiando seus anseios de permanência e prosperidade no lugar, a
universidade, mediante ações de extensão, pode se afirmar como
serviço.
A prioridade do poder público, apoiado por agentes
financeiros nacionais e internacionais, é a valorização capitalista do
espaço, em vez da valorização da sociabilidade e da diversidade de
modos de vida. Por outro lado, a existência do lugar, onde as
pessoas se encontram, olham umas para as outras e conversam,
consideramos ser condição básica para a democracia na cidade
(PEIXOTO & SILVA, 2016). No Porto da Palha, a “significância
do rosto” (LÉVINAS, 1997) e as relações pessoais têm valor. A
gentrificação pretendida ali significa a substituição dos pretos e
pardos pobres por um novo usuário “embranquecido”, que tem
estilo de vida baseado no poder econômico, que vem atraído pelo
investimento imobiliário e pela criação de um novo espaço de
consumo.
No lugar onde se encontram os portos/feiras da Estrada
Nova ocorrem os chamados fatos sociais totais: o ciclo virtuoso do
dar, receber e retribuir que caracteriza as reciprocidades das trocas
múltiplas, as quais estruturam o mundo social, conforme nos
revelou Marcel Mauss (2008). Os usuários dos portos/feiras, nos
seus diversos ofícios, ocupam diariamente esse espaço público que
existe não só para vender e comprar. Embora essa seja uma
importante motivação, ocorrem nessas feiras outros tipos de troca.
O comércio se dá dentro de um universo relacional próprio.
Comprando e vendendo, as pessoas estabelecem relações, vínculos
e parcerias. Amarram-se umas às outras mediante fiados, forras e
outras instituições típicas. O comércio se dá dentro de instituições
e regras tácitas que são parte da identidade desses lugares
(PEIXOTO & SILVA, 2016).
Uma “gentrificação branqueadora” pretende remover o
porto da Palha como lugar de pertencimento e vida popular.

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Geografias Pretas

Querem instalar na orla de Belém mais uma “janela para o rio”.


Esse objetivo, que alia administração pública e interesses privados,
se encaminha pela deterioração planejada do lugar, deixado ao
abandono e, portanto, segregado de serviços públicos.
Deteriorado, o lugar então é abordado com alguma solução voltada
à sua requalificação. Contra essa lógica perversa, que enquadramos
como uma colonialidade do poder, buscamos empreender uma
defesa do lugar.

A defesa do lugar contra a colonialidade do poder

A maioria dos prefeitos eleitos conduz as políticas urbanas


de mãos dadas com seus amigos empresários, e é realmente incrível
como a democracia assim manipulada produz poderes tão pouco
democráticos e tão avessos à diversidade. Aqui em Belém, e
especialmente na valorizada orla da cidade, o pensamento único é
a abertura de espaço para o investimento de capital, na forma de
“janelas para o rio”. Não se cogita manter e fomentar a vida
popular nos seus lugares. Contudo, essa vida popular e o valor de
uso dos lugares conferem um caráter genuíno à cultura e à
economia de Belém. Remover o porto da Palha, uma “porta para
o rio”, significa “matar” um atributo essencial da cidade.
Jane Jacobs, considerando a realidade de Nova York na
década de 1960, defendeu de maneira enfática, no livro Morte e vida
de grandes cidades, a necessidade de criar e manter condições para a
diversidade urbana: “a necessidade que as cidades têm de uma
diversidade de usos mais complexa e densa, que propicie entre eles
uma sustentação mútua” (2000, p. 13). Seguindo a linha de
pensamento desse clássico do planejamento urbano, que considera
a prosperidade da cidade como um todo, e não apenas a de poucos
favorecidos “amigos do rei”, consideramos importante defender a
diversidade econômica e social na Estrada Nova de Belém
(PEIXOTO & SILVA, 2016). Tratando essa diversidade de usos
na forma metafórica de “janelas” e “portas”, é importante para a

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Geografias Pretas

cidade a manutenção da porta de ir e vir representada pelo porto


da Palha.
Muito mais que apenas um trapiche abandonado pelo
poder público, o porto da Palha é um animado lugar de vida
popular, onde se instalou desde há muito uma movimentada feira
com dezenas de barracas que vendem típicos produtos de
consumo popular, entre os quais açaí, mantas de pirarucu, palha,
frutas e uma variedade de utensílios domésticos. Ali funcionam
oficinas de barco com seus carpinteiros e dali se cruza para o outro
lado do rio, para as ilhas do município e para comunidades
quilombolas. O trapiche do porto da Palha é um lugar de
encontros, de festas populares e ancoragem de tradições
ribeirinhas, de trabalhadores artistas que pintam nomes nos barcos
e criam uma forma de cultura itinerante. Uma genuína cultura local
em burburinho, numa zona de fronteira entre o urbano e o
ribeirinho, em intensa movimentação de gente em trapiches
repletos de paneiros de açaí, quadro que provavelmente encanta
mais aos viajantes do que os cenários artificiais de piers e waterfronts,
criados para atrair turistas e “gerar emprego e renda”, conforme
prega o discurso do poder. Mas renda para quem?
Economia popular pujante, um dos pontos de recebimento
e distribuição de açaí em Belém, o porto da Palha influencia toda
uma redondeza, conformada às necessidades de usuários que
adquirem alimentos, roupas, gás de cozinha e cerveja, entre outros
gêneros, uma vez que ali se encontra de tudo um pouco, inclusive
em termos de serviços populares. Funciona como uma porta aberta
24 horas, para quem vem navegando de ilhas e interiores e
desembarca na capital para comprar e vender mercadorias,
frequentar escolas públicas nas imediações, encontrar familiares e
trocar conversas. Portanto, não é apenas para comprar e vender
que os ribeirinhos vêm ao continente. Eles vêm ao porto da Palha
também porque no trapiche, nas barracas e nas imediações
desdobra-se um mundo de possibilidades, de vida social e
trabalhos.

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205
Geografias Pretas

Por que desenraizar tanta vida popular dali, em vez de


melhorar o lugar, urbanizando e mantendo as famílias, vizinhanças
e economia popular no seu ambiente, investindo na reforma do
trapiche, instalando sanitários e outros equipamentos coletivos?
Sem dúvida um desprezo pelo lugar, mas principalmente um
desprezo pelas pessoas que têm o lugar como valor de uso. Uma
espécie de colonialismo local.
Arturo Escobar (2005) interpreta essa situação de
realidades submetidas como o domínio do espaço sobre o lugar,
seu desenraizamento em função do processo de valorização do
capital, que encobre formas subalternas de configurar o mundo.
Necessário dizer que esse encobrimento é um caso de racismo
institucional, movido pela prefeitura. Necessário nomear o mal
para desnaturalizar a violência que significa a remoção dos pretos
e pardos pobres dos seus lugares. Racismo, para autores
decoloniais, como Ramón Grosfoguel (2012) e Anibal Quijano
(2005), é uma hierarquia de superioridade e inferioridade, baseada
em pressupostos culturais, políticos e raciais. Essa hierarquia
persiste na lógica urbana. Inferiorizados, os pretos e pardos pobres
são obrigados a sair para dar espaço a um tipo de destruição
criadora, que orienta uma concepção de urbanismo que
sistematicamente substitui o lugar de vida popular pelo espaço de
valorização do valor econômico. A anulação do lugar significa a
negação do conhecimento baseado no lugar, afirma Escobar
(2005). No entanto, são esses inferiorizados que estabelecem no
espaço vivido uma visão “lugar-específica” do mundo e uma
relação não dicotômica entre natureza e cultura. Escobar exorta à
construção do lugar como um projeto, a partir da crítica radical ao
poder. Um poder colonial que ainda vigora em Belém.

Conclusão: Belém “moderna”, porém colonial

Belém, com uma população de quase 1,5 milhão de


habitantes, numa região metropolitana com 2,2 milhões, tem um
veículo motorizado para cada 3 pessoas, quase uma dezena de

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Geografias Pretas

shopping centers e, entre outros indicadores de grandeza, cerca de


cinquenta edifícios com mais de trinta andares, com nomes como
Aquarius Tower, Mirage Bay, Village Exclusive, Infinity, Real Class e suas
janelas voltadas para o rio. Números e designações que
proporcionam certa representação de cidade moderna.
Ao mesmo tempo, vigora na cidade a ideologia do privado,
pouca consideração para o espaço público, grande desigualdade de
renda e por cor, sistemática segregação da população pobre nos
processos de urbanização, além de saneamento extremamente
precário nas periferias, que apresentam altas taxas de mortalidade
de jovens negros. Esse é o lado desumano da cidade moderna, que
ostenta zonas de exclusão. Uma cidade social e racialmente
dividida, com a maioria da população apartada da condição cidadã.
Moderna em algumas grandezas, Belém é colonial na
insensibilidade para com o sofrimento de populações periféricas
na região metropolitana. Em Marituba, as pessoas são obrigadas
por uma empresa multinacional que opera um lixão a respirar um
ar fétido. Não existe solidariedade para com as necessidades do
outro e essa patologia urbana é um eco da escravidão e, portanto,
interpelamos Belém em suas colonialidades, mostrando os
vínculos do tempo presente com a situação colonial.
Belém, em seu processo de urbanização, manifesta
colonialidades várias. No artigo jogamos ênfase na remoção dos
pretos e pardos pobres dos seus lugares de vida, na imposição de
um racismo institucionalizado sobre eles. As remoções repetem a
velha espoliação praticada pelo poder branco colonial, que desde
sempre saqueou as populações nativas dos seus lugares. E
esperamos ter deixado patente que os processos de segregação não
constituem fenômenos irrelevantes, passíveis de naturalização – na
forma da máxima popular “baixada saneada não é pra pobre” - ,
posto que contribuem para a reprodução da pobreza e das
desigualdades. Significa, pois, uma prática a ser enfrentada para a
construção de uma cidade mais justa e democrática.
As periferias de Belém revelam realidades desumanas numa
cidade cindida, racial e socialmente segregada. Essa cidade cindida

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Geografias Pretas

se assemelha ao mundo colonial descrito por Fanon, que segrega a


cidade em zonas humanas e zonas desumanizadas. “O mundo
colonial é um mundo dividido em compartimentos”, afirma Frantz
Fanon.
A desumanidade do capitalismo estabelece classificações
raciais na divisão social do trabalho, nas políticas públicas e na
localização espacial das populações inferiorizadas. Os processos de
urbanização segregam, despossuem as pessoas dos seus lugares, e
essas lógicas repetem estruturas coloniais. Belém é colonial na
violência policial que atinge jovens negros nas zonas
desumanizadas da cidade. Na ausência de serviços públicos nos
lugares populares, abandonados para se tornarem alvo de
revitalizações e gentrificações. Nas longas distancias que os
segregados urbanos precisam viajar cotidianamente para alcançar
seus postos de trabalho. As colonialidades que associam raça e
classe nas muitas hierarquias de tratamento se manifestam de
muitas maneiras.
Há racismo na supressão dos sentidos da vida popular nas
feiras e mercados. Na superexploração do trabalho a que pretos e
pardos pobres são submetidos. Há racismo na negação de qualquer
participação real nas decisões sobre projetos urbanos, posto que o
poder público despreza o saber popular e despeja sobre a
população modelos urbanísticos emulados das metrópoles
centrais, que se refletem em waterfronts e piers que tomam o lugar
dos portos públicos e trapiches, que ligam as ilhas e o continente e
permitem a vida popular nas beiras da cidade.
O consumo conspícuo na cidade, ostentado nos
numerosos edifícios de alto padrão e nos muitos shopping centers, se
relaciona ao extrativismo primário, especialmente à riqueza
derivada da exportação de madeira e outras matérias primas,
conforme a mesma ordem mundial dos tempos coloniais. Os
poderes públicos são subservientes às empresas multinacionais que
aqui operam, poluindo com rejeitos minerais as águas que servem
às comunidades, certamente de maneira bem diversa da forma
como atuam nos seus países sede. O lixão de Marituba, operado

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Geografias Pretas

também por uma multinacional, desumaniza seus habitantes, assim


como a comunidade quilombola do Abacatal, que tem as águas do
igarapé Uriboquinha contaminadas. O patriarcalismo, esse traço
colonial presente nos monumentos e estátuas de conquistadores
brancos, persiste nos espaços urbanos perigosos para as mulheres.
As fronteiras internas, que constrangem os pretos e pardos pobres,
que na prática não podem frequentar os espaços gentrificados, se
fecham na cidade.

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Geografias Pretas

SOBRE OS AUTORES

Aiala Colares Oliveira Couto


Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do
Pará (UFPA). Especialista em Planejamento Urbano pelo Curso de
Formação Internacional de Pós-graduados em Áreas Amazônicas
(FIPAM), Mestre em Planejamento do desenvolvimento pelo
Núcleo de Altos estudos Amazônicos (NAEA) e Doutor em
Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pelo Programa de
Pós Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico
Úmido (PPGDSTU-NAEA-UFPA). Fez estágio Pós Doutoral em
Geografia com ênfase em análise regional pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Professor Assistente IV da
Universidade do Estado do Pará (UEPA).

Gabriel Romagnose Fortunato De Freitas Monteiro


Professor de Geografia Humana da Universidade Estadual de
Minas Gerais (UEMG), Unidade Carangola. Doutorando em
Geografia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal Fluminense (POSGEO/UFF), na linha de pesquisa de
Ordenamento Territorial Urbano-Regional e no eixo de Território,
Política e Movimentos Sociais. Mestre em Geografia pelo mesmo
programa (2017). Graduado no curso de Geografia pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de
Formação de Professores, na categoria de licenciatura plena (2014).

Jakson Silva da Silva


Graduação em História pela Escola Superior Madre Celeste
(ESMAC/2009), especialização em Desenvolvimento Urbano,
Políticas Públicas e Ordenamento Territorial pelo Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos (NAEA-UFPA), mestrado e doutorado em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Integra o projeto Observatório de Conflitos Urbanos de Belém,
em convênio com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional (IPPUR-UFRJ), e o Instituto de Filosofia e Ciências
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Geografias Pretas

Humanas (IFCH/UFPA). É professor de História na Educação de


Jovens e Adultos (EJA- SESI/PA) e na SEDUC (PA), ensino
regular. E-mail: jakson1610@gmail.com

Joyce de Almeida Borges


Professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG/Campus
Cora Coralina). Licenciada em Geografia pela Universidade
Estadual de Goiás (UEG), Mestre em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás (UFG) e Doutora em Educação pela
Universidade Federal de Goiás (UFG). Desenvolve ensino,
pesquisa e extensão sobre movimentos sociais, trabalho e
educação, Geografia, ensino e a cultura. E-mail:
albojoyceueg@gmail.com

Laís Rodrigues Campos


Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Pará
(UEPA) e em Geografia pelo Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA). Especialista em Educação
para as Relações Étnico-raciais pelo Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros (NEAB) do IFPA - Campus Belém. Mestra em
Educação pela Universidade Federal do Pará. Doutora em
Geografia pela Universidade Federal de Goiás. Atua como
professora da área de Pedagogia, lotada no Centro de Ensino e
Pesquisa Aplicada à Educação, da Universidade Federal de Goiás
(UFG).

Lorena Francisco de Souza


Professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG/Campus
Cora Coralina). Licenciada em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás (UFG), Mestre em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás (UFG) e Doutora em Geografia Humana pela
Universidade de São Paulo (USP). Desenvolve ensino, pesquisa e
extensão sobre relações raciais, gênero e Geografia, formação de
professores/as e Ensino de Geografia. E-mail: lorena.souza@ueg.br

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Luiz Augusto Soares Mendes


Professor Adjunto do Instituto Ciberespacial da Universidade
Federal Rural da Amazônia. Doutor em Geografia pela
Universidade Federal Fluminense (UFF - 2018). Mestre (2015),
Licenciado e Bacharel (2013) em Geografia pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). E-mail: lasmgeo@hotmail.com e
luiz.mendes@ufra.edu.br

Maria Albenize Farias Malcher


Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Pará – FPA Campus Belém; Militante do Centro de Estudos e
Defesa do Negro do Pará – CEDENPA; Diretora de Relações
Institucionais da Associação de Pesquisadores/as Negros/as –
ABPN e Co-Coordenadora do Consórcio Nacional de Núcleos de
Estudos Afro-Brasileiros/CONNEAB (2020-22 – Gestão
Aquilombar). E-mail: geomalcher@gmail.com

Rita de Cássia Martins Montezuma


Professora Associada do Departamento de Geografia da
Universidade Federal Fluminense, graduada em Ciências
Biológicas pela UERJ, mestrado em Ecologia e doutorado em
Geografia pela UFRJ. Professora permanente do Programa de Pós-
Graduação em Geografia da UFF, Niterói, e colaboradora do
Mestrado Profissional em Arquitetura Paisagística do
PROURB/FAU/UFRJ. Atua no ensino, pesquisa e extensão em
experiência na área de Geografia, com ênfase em nos seguintes
temas: Ecologia de Paisagens, Ecologia e Biogeografia Urbana,
Ecologia Política, Gestão de Áreas Protegidas/Unidades de
Conservação da Natureza, Diagnóstico Ambiental e Conflitos
Socioambientais. E-mail: ritamontezuma@id.uff.br

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Todos os direitos reservados aos autores

Contatos: cnsgeo@yahoo.com.br

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