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14 Jornal da Tarde

Quinta-feira - 24-3-83 - O ESTADO DE S.PAULO

O CAIÇARA

(Relato: a vida entre as matas, as lagunas, os rios, o mar.)

Cigarro de papel apagado nos lábios, ele olha as duas canoas em frente
da casa. Alpargatas, calça rota já sem cor, agasalho velho e gorro alaranjado,
ele caminha sem pressa na linha da maré. Tem o rosto marcado pelo vento,
pelo sal, pelo sol, pelo tempo e acostumado com poucas e pequenas emoções.
Não parece incomodado com a chuva fina e insistente que disfarça o contorno
da serra do mar, em frente à sua casa, nesta manhã na baía dos Pinheiros.
A baía é todo o mundo de seu Acyr. Dele e do curió, da araponga, do
bonito lindo, do guaxe, do tié, do papagaio, da peroba, da canela amarela, do
cedro, do guapuruvu, das orquídeas, do robalo, da pescada, da tainha, da
sardinha, do cação, da caranha, do linguado, do badejo, da garoupa, do
camarão, da ostra, do caranguejo, da paca, da capivara, da anta, da jaguatirica,
do veado mateiro, e de um sem número de espécies de mosquitos. Que, juntos,
dão vida aos rios, aos mangues, à mata da serra, ao mundo do caiçara, do seu
pai, do seu avô, do seu bisavô... do índio.
Sua casa é simples como ele. Não tem porta nem janela, o chão é de
terra batida. Só um cômodo com meia dúzia de banquinhos, meia dúzia de
pratos, facas, garfos e colheres. Uma cartucheira e uma balança. Despensa
pequena e a cama: um estrado levantado do chão e coberto por uma esteira
encostada no fundo. O fogão são três pedras sobre o chão. Isso, no pé de um
morro ainda coberto pela mata original da ilha de Superagui.
Seu Acyr continua na beira d'água. De cócoras, acende o cigarro e dá
uma tragada funda. Não vê o horizonte, que não existe aqui nesta baía que
poderia ser confundida com um imenso lago tropical cercado pelas montanhas
de uma serra. O que talvez ajude a explicar a aparente indolência deste homem
integrado ao seu meio e que vive da pesca artesanal e da lavoura de
subsistência. E que, agora, espera que seu filho Mauricio acorde, junto com a
nora, Dina, e o neto, Disnei. Espera, não vai acordá-los na casa ao lado da sua,
na clareira aberta na mata: afinal, hoje é dia de chuva e, por isso, de tecer
taquara para o cerco, de remendar rede, de rachar lenha para o fogão. Trabalho

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de homem; para Dina o dia começará com a obrigação de buscar água nos dois
latões de 20 litros no poço na beira da mata.
Faz dez anos que seu Acyr mora nesta encosta de morro no fundo da
baía de Pinheiros ao lado da desembocadura do rio Real, que avança sobre a
ilha de Superagui. Antes, seu Acyr andou por aí. Pequeno, foi levado para
Curitiba. Ainda criança de colo voltou para Paranaguá. Morou no rio Taquari,
terra de seus pais em São Paulo, na baía de Trapandé. Morou com os avós no
canal do Varadouro, que ligou este mundo todo, de Iguape a Paranaguá.
Morou na ilha das Peças, que junto com a de Superagui e o continente ajuda a
formar a baía de Pinheiros. Seus pais separaram-se e ele voltou com o pai para
a casa dos avós no canal do Varadouro. Serviu o Exército e depois morou em
Paranaguá. Casou e trabalhou como podia de "bagrinho", substituto de
estivador. Trabalho duro e pouco dinheiro, foi para Curitiba. Trem de vida
apressado. Avariou. Voltou. Sem a mulher e com o filho de criação Maurício.
Mandou o filho para Paranaguá morar com os avós maternos. Faltou dinheiro.
Maurício voltou. Foram morar no canal do Varadouro, onde seu Acyr foi
palmiteiro. Contraventor porque a lei não permite. Foi preso. Não quis mais
saber disso. Veio morar aqui no morro, ao lado do rio Real. É aquicultor
profissional com carteira da Sudepe e tudo, paga mil e quinhentos por ano.
Tem quatro cercos, três tarrafas, rede de caceio e fundeio, duas canoas a remo
e uma motorizada. Tem dois cachorros, dois gatos, três galinhas e uma roça
nova. Porque a roça aqui é tocada por mulher e o casamento de Maurício e
Dina só tem um ano.

Domingo
Seu Acyr remenda uma rede de pesca, Maurício tece sua esteira de
taquara, Dina bota o feijão sobre o fogo e a chuva continua caindo. Fina,
insistente, destas que molham até o osso. Não há preocupação com as horas ou
com o dia da semana ou do mês: a lua determina um período bom para a pesca
e para o tempo; a lua muda amanhã, quarto crescente; lua cheia, tempo de
mosquito. Hoje é dia de chuva e, por isso, de pouco trabalho. Se fosse dia de
chuva forte, torrencial, seria domingo - o dia de descanso.
Não é dia do barco que vai de Paranaguá a Cananéia e um motor quebra
o silêncio e pára o trabalho. Odair e Dácio encostam no porto de seu Acyr e
pedem pousada. Vieram da Vila das Peças, voltada para o mar, na ilha das
Peças onde a linha do horizonte existe e onde têm outra perspectiva: "ricos",
alegres e extrovertidos, não são reservados e desconfiados como o habitante
do fundo da baía. Os dois vieram para cá fugindo do mau tempo. Tão ruim
que não permite a pesca na boca da barra nesta época do ano em que o peixe
está fora (novembro), correndo a costa.
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Odair não é um caiçara típico. Sua estatura não é mediana, sua pele não
é morena, seus cabelos não são escuros. Ele é alto, forte, seus olhos são azuis,
sua pele é clara e o cabelo é castanho. Destoa mesmo do grupo sentado em
volta do fogo tomando café.
- A hora que entrar um dinheiro na minha mão, o peixe pode estar
amontoado aí que não quero saber mais desta vida. É muita batalha para pouco
dinheiro.
Nenhum comentário. Eles são mesmo gente de poucas palavras neste
mundo de pouca fartura. Maurício, com suas calças cor-de-vinho arregaçadas,
descalço, camiseta justa, cabelo crespo e comprido, em pé na porta nem se
vira: continua olhando a chuva lá fora.
- Hoje o peixe fica por conta de vocês.
Odair e Dácio saem na sua canoa de árvore centenária. Vão lançar a
rede de fundeio e depois voltarão, acompanhando a rede de caceio com o
motor desligado, ao sabor da maré. Maurício volta para a sua esteira de
taquara, Dina cuida do filho e vai preparando a comida, seu Acyr volta para
suas redes e a chuva continua caindo.
A maré já vazou e logo começará a enchente. Os quatro cercos da
família não vão ser visitados hoje: não é dia do "gaivota", o atravessador
destas bandas, e é dia de chuva. O robalo, o parati guaçu, o sargo, o badejo, a
pescada, a caranha, o linguado e principalmente a tainha, peixes que caem no
cerco de seu Acyr, podem esperar mais um dia. Melhor para o "gaivota" que
receberá o peixe fresco de amanhã em troca de pouco dinheiro e alguma
mercadoria. Pouca também: café, farinha, arroz e feijão, junto com o peixe e a
banana compõem a alimentação básica. Além disso, a família pode estar
precisando de algum remédio, de um bujão de gás para o lampião, uma
ferramenta, fio de náilon para a rede, arame para o cerco, combustível para o
barco a motor. Ou ainda algum luxo como roupa nova, uma bota de borracha
ou alpargata, que sapato não usam. E nem teria sentido usarem sempre que
estão entrando e saindo d'água no trabalho da pesca.
Cigarro de papel apagado nos lábios, seu Acyr desce até a linha da
maré. Sorrindo, mostrando os dentes maltratados, amarelos e carcomidos.
Olha as canoas e o barco a motor. Verifica o estado das tarrafas dependuradas
numa árvore. Anda à toa na beira d'água e aproveita a maré que ainda está
baixa para catar uma dúzia de ostras. Ostras de palmo e meio, verdadeiros
bifes. Depois volta para casa, já é quase tempo de comer. Maurício vem
chegando também. Dina, agora, prepara o arroz e um robalo para os três e
mais Odair e Dácio, que já voltaram e esperam sentados num canto da casa.
Os cachorros e os gatos mendigam uma migalha. São enxotados. É
tempo de chuva e de comida contada. Os animais têm de se virar com o que
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caçam: ratos, baratas, aranhas, passarinhos, um pequeno predador e até mesmo
algum peixe que encoste com a maré alta. Pratos fundos cheios de arroz, feijão
e farinha. Um pedaço de peixe para cada um. É a única refeição do dia, que de
vez em quando e muito espaçadamente tem carne também. De vaca ou de
alguma caça. Que mais? Em tempo de boa pesca e de mais dinheiro, bolacha,
um refrigerante, macarrão, outra fruta que não banana. E até pão ou um
bolinho frito a base de água e farinha. Por quê? O gaivota, o atravessador,
paga 550 cruzeiros por quilo de peixe de primeira e entre 200 e cem o quilo do
de segunda e fornece o arroz por 150 cruzeiros o quilo, o feijão por 140 o
quilo, a farinha por 80 o quilo e o café por 880 o quilo.
- Era bom que soprasse uma brisa de Leste. Ou então um Sul claro.
A torcida é de seu Acyr, que espera o bom tempo para substituir um de
seus cercos já velho e quase desativado com seus três meses de uso, vida
média desta armadilha de peixes. E é também a de todos os habitantes da baía
dos Pinheiros. Dos que moram na vila Fátima, no fim do canal do Varadouro,
fundo da baía; na vila do Canudal, pouco acima da casa de seu Acyr e também
na margem esquerda da baía, perto da desembocadura do rio do Engenho; na
vila do Barbado, a cerca de dois quilômetros da casa de seu Acyr em direção à
barra; na vila de Colônia, ainda mais abaixo; na vila de Bertioga, a única da
margem direita da baía; na vila de Superagui, na boca da barra, corajosa,
voltada para o sul.
E torcida também dos que vivem isolados nas encostas dos morros.

Maurício
Odair, Dácio, seu Acyr, Dina e Maurício tomam o café. E se preparam
para ir à casa do Maurício, ao lado. Do Maurício que não sabe quem é o pai e
que não conhece a mãe, zeladora do grupo escolar da ilha do Mel, na baía de
Paranaguá. Que foi dado ao seu Acyr com uma semana. Que sonhou ser
advogado por ter um tio advogado. Que sonhou ser piloto por ver os jatos
passarem.
- Agora, me conformo com o que a gente é e pronto. A gente se
conforma com o que a gente tem, com a vida que leva. Pelo menos aqui todo o
tempo é meu. Na cidade trabalharia das sete às sete num servicinho qualquer
por um salário.
Faz um ano que está casado com Dina, nome de batismo Dinazarte.
Filha do Euduís e da Amélia Cardoso. O namoro foi difícil: ela morava na vila
do Barbado e a única via de comunicação é a baía. O veículo, a canoa a remo.
Uma verdadeira viagem. Um dia ele não aguentou. Nem ela. Fugiram e depois
casaram. Hoje sonham juntos com muitas galinhas, porcos, vacas, alguma
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plantação. Com um sítio um pouco de terra. Há nove meses tiveram um filho:
Dina estava sozinha em casa e sentiu que a criança ia nascer. Pegou uma
canoa e foi até a casa da mãe. Remando. A avó serviu de parteira. Chamaram
o filho de Disnei por causa Walt Disney. E por causa da televisão.
Sim, uma televisão perdida aqui e ligada numa bateria. Usada uma hora
por dia. Não durante todo o ano: quando a bateria acaba, chega a ficar meses
desativada. Mas de qualquer maneira uma televisão aqui. Mexendo com a
realidade e com os sonhos.
Há cinco anos, quando seu Acyr, comprou a televisão, Maurício ficou
transtornado, alucinou mesmo. Queria porque queria ir para São Paulo, para o
Rio. Não pensava nem queria saber se a vida nestes lugares não tinha nada a
ver com a sua. Se as relações entre as pessoas eram diferentes e ditadas por
fatores desconhecidos por ele. Não imaginava que nas cidades a relação das
pessoas com os segundos, minutos, horas, dias semanas meses anos é
fundamental para a sobrevivência. Não adiantava o pai contar sua experiência
em Curitiba: "Quando fui para lá, toda aquela pressa, aquela correria e mais o
frio me deixaram avariado. Fui internado. Quando saí, voltei para cá, que é o
nosso lugar. Aquilo lá não é para nós".
"Aquilo que você veste tem de combinar com o que você calça... Proteja
seus dentes com... A nova cibalena da dor não tem pena...Flex, o
condicionador instantâneo e xampu...com monange nas unhas qualquer
homem vai querer a sua mão."
- Ser alguma coisa na vida é assim como eu sonhei: ser alguém de alto
nível.
Mauricio tem 23 anos, é casado e tem um filho. Fora o tempo que
morou com os avós em Paranaguá, dos dois aos cinco anos, jamais saiu do
fundo da baía de Pinheiros. Seu vizinho mais próximo mora na vila do
Canudal. Por terra ele não vai a parte alguma a não ser à roça atrás da casa, ao
poço na beira da mata e ao banheiro, que é a mata. Todas as vias de
comunicação são por água de canoa a remo. Tem o barco que faz o
abastecimento e tem o pessoal da Sucam e tem o padre de Guarequeçaba. Uma
vez por ano alguém da família vai a Paranaguá comprar alguma coisa com o
que restou de um ano de trabalho. É todo o contato com o mundo de fora da
baía. Mesmo aqui, só no tempo em que namorava saía mais. Mas tem sempre
algum pescador de outro ponto pedindo pousada e é assim que as notícias vão
correndo.
A moça entra na loja. Bonita. Rosto maquiado, dentes íntegros, cabelos
bem tratados , roupa na moda. Quer uma calça lee. É enganada. A câmara
focaliza por trás. Ela tira as calças e, levemente inclinada para frente , exige

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uma com o mesmo selo. Deixa à mostra as pernas bem tratadas e a calcinha de
lycra, numa bunda de sonho.
- A gente não pode dizer não vai ser. Mas a vontade da gente é que ele
não fique na pesca. Que ele estude. Seja alguma coisa na vida.

Dina
Dina tem dezenove anos. Altura mediana, magra, pele alva, cabelos
negros quase sempre presos. Dentes e mãos sem trato. Gosta do Maurício,
com quem pôde sair da casa dos pais e dos nove irmãos e ir para outra com
dois cômodos com cama de colchão e tudo, mesa de fórmica com seis
cadeiras, uma cama e a televisão. Só dela, do filho e do marido. Todo dia
acorda, toma café e depois pega água no poço, varre a casa, lava a roupa,
prepara a comida, olha a roça, ajuda a trançar esteira de taquara. E cuida do
filho Disnei de nove meses, que está aprendendo a falar também com a
televisão. E que ela quer que "seja alguma coisa na vida",
Acyr abre a porta e olha o tempo. Parou de chover. Sugere mais um
café, logo aceito, na sua casa.
Nem o seu Acyr, nem o Maurício, nem ninguém na baía de Pinheiros
tem qualquer documento de posse sobre a terra. Terra pobre de água, terra
pobre de terra firme neste mundo de mangue. Terra rica só nas vertentes dos
morros, o pé da serra. Mas criadouro natural de um sem-número de espécies
de peixes, além de ostras, camarões e ponto de passagem das migrações de
dezenas de espécies de aves.
- O mês que vem (novembro) tem camarão. A gente vê eles pela costa,
pequenininhos. Mas todo mundo mete a manjubeira, a rede é filó, não é rede
mais. É pano. Vem tudo, tudo, tudo. Mata a manjuba e o camarãozinho. E o
japonês lá de São Paulo leva tudo. Aqui e pra cá não vende. É proibido. Mas
não sei o que acontece lá para São Paulo.
A conversa continua. Agora só entre seu Acyr, Rolando e eu. O assunto
é a pesca, a próxima canoa, os próximos cercos, os rios, a baía. A vida dele. E
eu peço que ele me fale de seus problemas e de seus sonhos. Os pequenos e os
grandes. E o velho, já meio deitado em sua cama no fundo de sua casa sem
porta e sem janela, inicia um monólogo.

O sonho
Amanhã, visita ao cerco. Vem o gaivota. Vai dá pouco, tempo ruim e fora da
época. Arrastão na baía. Barco já tenho, só falta a rede. Mas é cara e proibido.
Não deixa, criar. Mas dá camarão e o preço é bom. É por isso. Ninguém
respeita. Todo mundo pesca de tudo quanto é jeito. Arrasta tudo quanto é tipo
de rede. Se prejudica, o peixe vem rareando. Isso era coisa de louco, há uns 20
6
anos. Pode voltar. É só deixar... O tempo vai melhorar, a lua entrou sem
chuva. O vento tá virando. Vai dar para montar o cerco novo, no rio. Queria
oito. A família tá grande. Disnei, Maurício, a Dina, moça trabalhadora... Tem
aquela terra em Paranaguá. Beira d'água, uns 30 alqueires. Dava pra pôr uns
bois, muita galinha, plantar. E tinha a pesca. Preço bom. Precisava duma
reserva.

Amanhã

Rodrigo Lara Mesquita

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