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Feito apenas com feijão fradinho, cebola, sal e frito no azeite de dendê fervente,
não é à toa que esse misterioso bolinho tem a cor e a temperatura do fogo. O
acarajé é um alimento sagrado, oferecido a Oyá, também conhecida como
Iansã, a deusa africana que controla os ventos, as tempestades, os
relâmpagos e tem poder sobre o fogo. Na religião dos orixás, os homens
dialogam com seus deuses através dos sacrifícios e oferendas de alimentos.
O akará é um deles e veio parar no Brasil através dos escravos africanos
iorubás. Como eram as mulheres negras que dominavam as cozinhas, não
demorou para que essa e outras receitas africanas começassem a ser conhecidas
e admiradas nas mesas brasileiras, conta Luis da Câmara Cascudo. No Brasil
colonial, acarajés, abarás e carurus, entre outros pratos, eram vendidos nas ruas
em tabuleiros que as escravas de ganho equilibravam sobre suas cabeças,
enquanto iam cantando pregões para atrair a freguesia.Com o que conseguiam
juntar, muitas até conseguiram comprar a própria liberdade. Corajosas,
independentes e empreendedoras, as baianas foram aos poucos arriando seus
tabuleiros e se fixando em pontos estratégicos da cidade. Montar um tabuleiro
para vender quitutes na rua, típico hábito africano, passou a significar, cada vez
mais, a garantia do sustento da família. Além do preço acessível, do sabor
delicioso e das qualidades nutricionais do bolinho de feijão, a simpatia das baianas
sempre foi um tempero a mais, ajudando a conquistar uma freguesia cativa. A
partir da segunda metade do século XX, muitas delas foram ficando famosas,
como Romélia, Vitorina, Damásia e Quitéria, espalhadas principalmente pelo
centro e Comércio de Salvador. Nas últimas décadas, a cidade cresceu na direção
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norte, levando prosperidade às baianas que trabalhavam perto do mar: Dinha, no
Rio Vermelho; dona Chica; na Pituba; Cira em Itapuã. Mas há muitas outras
rainhas do dendê, como Regina, na Graça e Rio Vermelho; a Loura; no Horto
Florestal; dona Ivone, no Bonfim, ou Neinha, nas Mercês. Apareceram também
alguns rapazes que nada deixam a dever a nenhuma baiana, como os irmãos
Gregório e Zé Antonio.
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despreparadas, oferecem produtos de má qualidade. A atividade foi
regulamentada por decreto municipal em 1998, definindo normas para a
indumentária, tabuleiro e localização. Em 2002, a divulgação de uma pesquisa
comprovando a falta de higiene no preparo de alguns acarajés deflagrou uma
nova onda de iniciativas que buscam melhorar a qualidade do produto. A
implementação de cursos de capacitação, fiscalização e a concessão de
empréstimos para que as baianas possam modernização suas cozinhas passaram
a ser assuntos prioritários para prefeituras e associações. Reconhecido como
patrimônio cultural de Salvador, pelos vereadores, o ofício das baianas de
acarajé foi reconhecido, em 2005, como patrimônio cultural imaterial do
Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
ALIMENTO DO POVO
Sobre os balcões, caixotes e carrinhos de mão que percorrem a feira sem parar,
se misturam o vermelho intenso das pimentas, o dourado do dendê viscoso e o
verde escuro dos quiabos, pimentões e folhas. Por toda parte se vê também
feijões e camarões. Muitos outros ingredientes das comidas dos homens e dos
deuses podem ser encontrados nas barracas da feira de São Joaquim, por isso, é
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lá que quase todas baianas de acarajé de Salvador se abastecem. As pequenas e
as grandes, as famosas e as anônimas. Mas saber chegar até esses temperos e
frutos do mar e da terra é uma arte para poucos, pois não basta ter dinheiro: é
preciso saber onde comprar, como escolher e negociar. Se não aprender esses
segredos, o comprador não levará o melhor produto e ainda pode se perder numa
das intermináveis vielas da feira misteriosa, sob o olhar divertido dos feirantes
que, como bruxos, sabem de tudo que se passa nesse labirinto de cores, sons,
sujeira, cheiros e sabores.
Para quem não conhece a feira, pode dar trabalho chegar até Jailton de Jesus da
Pureza, 40 anos. Mas o esforço vale a pena, pois é lá, na “Casa Pureza”, rua
cinco, quadra sete ou “rua do Camarão”, que se encontra alguns dos melhores
litros de dendê, feijões e camarões da cidade. Jailton começou em Jaguaripe,
onde nasceu e aprendeu a pescar o camarão e defumá-lo. Quando veio para
Salvador há mais de 20 anos, começou as vendas no balaio, “depois aluguei um
box, empacotava o camarão, botava no ônibus e ia vender de porta em porta no
Bonfim. No sábado vendia no balaio, até que vi que dava pra me manter na feira”,
relembra. Hoje, em sua barraca espaçosa, ele vende produtos selecionados que
vêm de longe: “Os camarões são do Maranhão, Rio de Janeiro, Alagoas,
Maragogipe, Nagé, Acupe, Valença. O dendê vem de Valença e Nazaré”.
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Comprar bons produtos envolve dois quesitos: um bom fornecedor e um
comprador que saiba escolher. O dendê, explica Jailton, tem os seus mistérios: “O
povo pensa que é só ver bonito e comprar, mas não é. Tem dendê que presta pra
moqueca, mas pode não servir pro acarajé. Se espumar quando esquentar, não
serve”. No caso do camarão, a alma da comida baiana, o assunto é ainda mais
delicado: “O produto tem que ser do dia, depois que chega aqui, só dura oito dias.
Hoje não estão mais defumando o camarão devidamente, porque quanto menos
defuma, mais ele pesa”. Com a sua experiência, Jailton se tornou o queridinho das
baianas; por isso, para conseguir produtos da Casa Pureza é preciso ir cedo. No
começo da tarde, muitas vezes, já não se encontra muita coisa à venda. Os
grandes sacos abarrotados com camarões “filé” empilhados no fundo da barraca,
certamente, já estarão reservados para alguma das suas clientes famosas: Cira,
Dinha, Regina ou Neinha.
Padrão de qualidade
Lavado e sem casca, chega a hora de triturar os grãos, em moinhos elétricos que
se compra na feira ou lojas populares. Então é hora de bater bastante a massa
com colher de madeira e depois acrescentar sal e cebola ralada. Aí, é fritar
pequenas porções no dendê bem quente. Como a massa está crua, é preciso ter
cuidado para que não azede com o calor, recomenda Zé. Exigentes, Dona Chica,
Cira e Dinha contam que, para garantir a qualidade, acompanham todas as etapas
de perto. “Nunca confiei em ninguém, sempre fiz tudo”, diz Dona Chica, que hoje
só faz acarajés em casa, por distração. Cira vai com freqüência na feira escolher
os ingredientes, “senão vem mercadoria ruim”, enquanto Dinha até desistiu de
manter suas franquias em Brasília e Rio de Janeiro: “Acarajé é comida caseira,
não dá pra industrializar, tem que ser feita todo dia”. Com a experiência, cada uma
desenvolveu suas técnicas para zelar pela reputação: “Cansei de parar de assar e
voltar pra casa, porque o azeite não estava bom. Também joguei panelas inteiras
de massa no lixo, porque tinha algum problema”, conta dona Chica, cujo exemplo
é seguido pelos filhos. Cira, não satisfeita em usar o mais caro camarão da
cidade, também os lava, cozinha e tempera. Já Dinha, no restaurante que
construiu no coração do Rio Vermelho, usa fogareiros e panelas de aço para
manter tudo aquecido.
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Alimento sagrado
Tanto rigor não é à toa, pois o acarajé é um alimento sagrado, para o corpo e o
espírito. No passado, para montar um tabuleiro e ir vender na rua era preciso ser
filha de Iansã ou Xangô e ser designada pelos orixás para cumprir essa missão.
Na África, explica Pierre Verger em seu livro Orixás, Oiá, também chamada de
Iansã, é a divindade dos ventos, tempestades e do rio Níger, que se chama Odò
Oya, em iorubá. Conta a lenda que, após se separar de Ogum e se unir a Xangô,
Iansã foi enviada pelo segundo marido à terra dos baribas em busca de um
preparado que, ingerido, lhe daria o poder de lançar fogo e chamas pela boca.
Ousada, Iansã provou do líquido, tornando-se também capaz de cuspir fogo, conta
Verger. É por isso que, para homenagear esses deuses, os africanos fazem
cerimônias com o fogo, como o ajere, onde um iniciado carrega na cabeça uma
jarra cheia de furos com fogo dentro ou o àkàrà, onde os iniciados engolem
mechas de algodão embebidas em azeite-de-dendê em combustão, narra Verger.
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senhora dando uma menina a ela. Ela terminou de me criar e me iniciou. Eu
tomava conta de tudo. Foi lá que eu aprendi a fazer os acarás dele,
compridinhos, e os dela, bem redondinhos. Fazia pra comida, pra vender do
lado do barracão e repartir no candomblé. Ainda mocinha vim morar no Bonfim e
aqui eu tive um sonho com Iansã me dizendo: ‘Ivone, você vai ser baiana, a
baiana mais famosa da Bahia’.Obediente, essa filha de Xangô não pestanejou e,
até hoje, mantém no alto da colina sagrada o seu tabuleiro, que é também o local
de encontro com uma legião de amigos e filhos de consideração que ela arranjou
em todos esses anos em que enfrentou os perigos da rua, o vento, o sol e a
chuva, para alimentar o povo baiano com o acará africano.
RECEITA AFRICANA
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mais deixaram de ocupar um lugar de honra em nosso cardápio. A semelhança é
tão grande que um africano se sente em casa na Bahia. Como conta a empresária
nigeriana Rasidat Lola Akanni, que mora há muitos anos no Brasil, quando quer
relembrar o sabor do legítimo akará da sua terra, bem crocante, ela não precisa
fazê-lo em casa, apenas vai ao tabuleiro de uma certa baiana.
Comer akará
Segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, a palavra acarajé pode ser uma
versão reduzida do pregão cantado pelas antigas vendedoras ambulantes. Na sua
música "A preta do acarajé", Dorival Caymmi reproduziu livremente um deles: “O
akará jé ecó olailai ô”. Pregão que era um convite aos fregueses para virem
comer (jé) a sua iguaria (akará). Em cada grupo étnico iorubá o acará era feito de
certa forma, explica Costa Lima: akarakere bem pequeno entre os egbá,
acarájexá bem maior, entre os ijexá. Na Bahia, aos poucos, se definiu um
tamanho médio para a venda ao público. O que não mudou foi o desabafo que
Caymmi ouvia da baiana e registrou em sua canção: “Todo mundo gosta de
acarajé, mas o trabalho que dá pra fazer é que é”.
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Enfeitiçando o paladar
Muitos dos ingredientes e receitas vieram da África, mas foi na cozinha das
nossas casas-grandes e senzalas que surgiu a culinária afro-baiana, tendo como
elementos centrais o dendê africano, a pimenta sul-americana e o côco da Índia.
Como lembra Luis da Câmara Cascudo, em seu texto A cozinha africana no
Brasil, escravos iorubanos foram levados para muitos lugares, mas somente aqui
a culinária africana se aprimorou e difundiu tanto. A explicação, propõe ele, é que
“no Brasil, a presença da preta na cozinha classificava-se como indispensável e
regular”, o que não ocorria em outros locais, onde havia até quem condenasse a
colaboração das escravas na cozinha. De fato, ao se tornarem responsáveis pela
alimentação das famílias, essas mulheres recebiam um fardo e um poder, o de
recriar receitas, acrescentar ingredientes, fundir costumes africanos com
portugueses e indígenas.
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Também no final do século XVIII acontecia na Bahia um fenômeno importante
para o desenvolvimento da culinária: “Começa a se organizar em comunidades
estruturadas o sistema religioso dos escravos de origem nagô e iorubá”, como
explica Costa Lima. Onde havia orixás, havia sacrifícios e oferendas de alimento,
pois é assim que os africanos dialogam com seus orixás: fazem seus pratos
prediletos, colocam um pouco em frente ao altar e repartem o resto entre os
homens após as cerimônias (ajeum). “Nesse tempo foram recriadas muitas das
comidas cotidianas dos homens e dos santos. Pois que os santos comem o que
os homens comem”, explica o antropólogo. Foi também por isso que receitas tão
antigas e que vieram de tão longe nunca foram esquecidas. Como esquecer o ebô
de Oxalá, o doboru de Obaluaê, o omolucum de Oxum ou o acará de Iansã?
Nessa época, onde as panelas eram de barro, o fogão, à lenha, e não havia
eletrodomésticos, o feijão do acarajé era moído segundo a técnica africana, na
pedra de ralar: “Mede cinqüenta centímetros de comprimento por vinte e três de
largura, tendo cerca de dez centímetros de altura. A face plana em vez de lisa, é
ligeiramente picada por canteiro, de modo a torná-la porosa ou crespa. Um rolo de
forma cilíndrica, da mesma pedra, impelido para frente e para trás, sobre a pedra,
na atitude de quem mói, tritura facilmente o milho, o feijão, o arroz”, explicou
Manuel Querino em seu texto A arte culinária na Bahia, de 1916. Segundo Costa
Lima, Querino, que também dá a receita completa do bolinho africano, é autor da
primeira descrição etnográfica do acarajé.
Nos terreiros mais tradicionais, até hoje se mantém o hábito de usar a pedra de
ralar, pelo menos no preparo do alimento para os santos. A baiana Ivone do
Carmo, que alcançou esse tempo, conta que o ato de moer na pedra servia
também como uma espécie de treinamento corporal para o momento do transe.
“Tinha que passar o feijão na pedra pra dar o ‘gincar’ no ombro, pra quando o
santo pegar a gente, tremer bem o ombro. Hoje o santo é cá embaixo, é um
remelexo danado. Naquele tempo era no ombro. A não ser quando é Iansã que
pega, porque aí tem que remexer tudo mesmo. Misericórdia! Solta tudo, solta as
frangas. É bonito de ver”, diz ela, que sabe muito bem que cozinha e magia se
misturam. Antes de sair para fazer as vendas, ela se protege: “Na porta da minha
casa coloco minhas farofas de mel pra chamar prosperidade, farofa branca, farofa
vermelha. Posso levar também uma água de alfazema ou água com mel pra jogar
no ponto”.
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VIDA DE BAIANA
Para ela, o dia começa cedo, às 6 horas da manhã. Não demora muito e já está
na cozinha, separando os ingredientes. Os ajudantes vão chegando -filhos,
vizinhos, parentes-, e a labuta começa. Depois de cinco horas de trabalho duro,
está tudo pronto: abará, vatapá, pimenta, camarões, salada, passarinha, massa do
acarajé, do bolinho de estudante e outras iguarias. Então, é hora de se aprontar
impecavelmente, para agradar os fregueses: longa saia rodada, bata de rendas,
torço e colares. Mas, para que a venda seja boa, pois toda a família depende
disso, é preciso também pedir ajuda ao invisível: água, cachaça e farofa são
despachadas na porta de casa, em homenagem à força que domina as ruas e
pequenas porções dos alimentos vão para os altares caseiros. Quando chega ao
local da venda, ela também lança na rua três pequenos acarajés, que abrem os
caminhos e, sobre o tabuleiro, dispõe plantas como espada-de-Ogum e arruda,
figas, contas, fitas, imagens e moedas, completando a proteção. A vida da baiana
é assim, cheia de disciplina e rituais. E foi assim, com todo esse rigor, que essas
mulheres sem instrução, mas cheias de espírito de liderança, competência e
iniciativa, conseguiram se tornar as mais bem sucedidas empresárias do povo.
O tabuleiro passou por muitas transformações em todos esses séculos. Antes era
ambulante, transportado sobre a cabeça da baiana que trazia os bolinhos fritos de
casa e os vendia frios, acompanhados só com pimenta. No final dos anos 40, elas
começaram a se fixar em pontos estratégicos diminuindo o peso no deslocamento,
mas aumentando e muito a quantidade de apetrechos: fogareiro, tacho para o
azeite, panelona para bater a massa, balaio com as comidas, além do tabuleiro de
madeira. Sentadas por anos a fio no mesmo lugar, atendendo seus fregueses com
simpatia e qualidade, elas ganharam fama. Em seu livro Bahia de Todos os
Santos, Jorge Amado fala de Vitorina, que fritava seus acarajés na porta do bar
Anjo Azul, na rua do Cabeça, de Damásia da Conceição, em frente à Escola de
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Belas Artes, de Quitéria de Brito, na Baixa dos Sapateiros e de Romélia, mulher
de mestre Pastinha, que vendia acarajés no largo do Pelourinho. E para a
sobremesa, era só ir até Odília, em frente à Alfândega, onde estavam as melhores
cocadas. Boas negociantes, elas souberam se adaptar às mudanças sempre
buscando locais movimentados. Salvador cresceu para o norte, por isso elas
também seguiram o rumo de Yemanjá.
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fizeram faculdade, mas voltaram pro acarajé. Uma assumiu o ponto e o outro é
gerente do restaurante”, relata, orgulhosa.
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deixando o ponto, uma panela pequena e um fogão de abanar. “Naquele tempo o
acarajé era só com pimenta, depois é que fui botando mais coisas”. Ao redor do
seu tabuleiro que fica num quiosque espaçoso, foram surgindo barracas, bares,
casas e shopping. Hoje, com uma clientela gigantesca, ela explica que sua fama
cresceu aos poucos: “O que me ajudou foi o boca a boca. Só depois que meu
nome já era bem falado é que foi parar no jornal”. Meia dúzia de moças com
guarda-pó branco atendem os fregueses, mas ao todo são 25 pessoas
trabalhando para Cira, que tem cinco filhos e mantém outro ponto no Rio
Vermelho, comandado pela filha Jussara. Ao contrário da maioria das baianas,
ela não gosta de fazer eventos, “desgasta muito”, preferindo se concentrar no seu
produto, que vigia de perto: “Nunca mudei a qualidade, por isso nunca caí”. Com
tanto trabalho, Cira quase não tem tempo para outras coisas: “De vez em quando
dou uma olhada na tv ou vou na praia, mas é difícil”, conta ela, que, vaidosa, se
diverte mesmo é com sua coleção de roupas de baiana e suas jóias. Sua outra
paixão, é claro, são os acarajés, que degusta todos os dias.
TABULEIRO FAMILIAR
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envolve trabalho duro de domingo a domingo, comprar o traje especial, se
cadastrar, pagar taxas e encarar todos os tipos de clientes. Apesar dos riscos, a
opção pelo tabuleiro tem sido cada vez mais freqüente, entre mulheres e homens
de várias faixas etárias, níveis de escolaridade e religiões. O motivo é simples:
barato, nutritivo e delicioso, o acarajé não sai de moda, é um sucesso.
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Baianos de acarajé
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Negócio lucrativo
No ramo do acarajé não existe sorte, o sucesso é fruto de muito trabalho, por
isso, só permanecem os fortes. Sérias, objetivas, elas têm gestos precisos e
sempre estão alertas a tudo que se passa à sua volta. Qualquer descuido pode
significar uma queimadura grave, passar troco errado, azedar um alimento.
Apontada por muitos como dona do melhor tabuleiro do centro da cidade, Neinha
já ocupa há mais de 25 anos o seu ponto nas Mercês. Ela diz que “queria outra
coisa na vida”, mas não teve opção, por isso seguiu a tradição iniciada pela avó,
que vendia acarajés na porta de casa, na Liberdade. Suas quatro irmãs também
vendem acarajé, mas as duas filhas não se interessam pelo ramo. A candidata a
sucessora, por enquanto, parece ser a netinha, “que já pega na colher, ajuda e diz
que ser baiana”, conta Neinha.
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Apesar da pouca idade -28 anos- Lucélia Santos ou “Neguinha” é uma lutadora
experiente: começou há 18 anos ajudando a mãe, sempre no ponto em frente ao
Farol da Barra. “No início tinha uma vergonha danada, hoje não troco minha
profissão por nada. É bem melhor do que ficar em cozinha de branco ou tomar
conta de criança dos outros”, diz ela. Para vender os acarajés, Lucélia e a mãe
criaram um método engenhoso: “Ela mora em São Caetano e faz tudo em casa.
Meu pai vem pra cá vender coco e traz a cesta. Eu moro em Plataforma e venho
vender. Fico aqui até 10h da noite e mando a cesta por ele”. Rindo, ela diz que o
tabuleiro foi sua única opção porque não gosta de estudar, mas atende tantos
fregueses estrangeiros que já está decidida a aprender inglês para se aprimorar
na sua profissão que, segundo ela, tem como principal qualidade proporcionar
“dinheiro na hora, ao vivo”. Tanto que, com os acarajés, ela ganha mais que o
marido.
Cozinha de rua
Como empresas familiares que são, cada tabuleiro tem as suas regras. Alguns
empregam membros da família que podem ter o direito de assumir o tabuleiro em
dias de menor movimento. Outros chegam a garantir o sustento de dezenas de
pessoas geralmente remuneradas como diaristas, com valor fixo, independente da
quantidade que vendem e sem carteira assinada. O caminho natural é buscar a
independência como no caso de Tania Fernandes, que trabalha para Regina, no
ponto do Rio Vermelho. Agora que conhece bem todos os segredos do ramo ela
quer ter seu próprio ponto: “Vou pra São Paulo, os clientes vivem pedindo. Lá eles
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fazem acarajé de mandioca”. Fugindo do desemprego ou apostando na venda do
acarajé como uma lucrativa fonte de renda, somente em Salvador são cerca de
2.800 baianas e baianos registrados na Associação das Baianas de Acarajé e
Mingau Receptivos e Similares da Bahia (ABAM), que divide com a Federação
Baiana dos Cultos Afro-brasileiros (Febacab) a responsabilidade pelo
cadastramento. Montar uma cozinha no meio da rua, entretanto, é uma tarefa
difícil que nem todos desempenham bem. A comprovação veio em fevereiro de
2002 no auge do verão baiano, com a divulgação nacional pela tv de uma
pesquisa da Ufba que detectou altos índices de coliformes fecais em amostras de
acarajés coletadas em Salvador. Instalou-se uma crise com redução de até 30%
nas vendas. O susto passou, mas ficou nítida a importância de profissionalizar o
setor. A partir daí intensificaram-se iniciativas que envolvem Abam, Febacab,
governo, prefeituras, Sebrae, Sesc/Senac, universidades, Vigilância Sanitária e
bancos. Assim como ocorre em Camaçari, em Salvador foi criado um curso de
capacitação sobre higiene na manipulação de alimentos para as baianas. A
segunda etapa foi visitoriar as cozinhas e depois conceder selo de qualidade e
linhas de crédito de até R$ 8 mil para reformar cozinhas, tabuleiros e
indumentárias. Apesar de mal sinalizado, o Memorial das Baianas é bem
localizado no Belvedere da Sé, centro histórico de Salvador. Depois de visitar a
exposição permanente com objetos, indumentárias e apetrechos culinários do
passado e do presente, o visitante atento encontra a discreta sala onde trabalha a
diretoria da Abam. Em uma mesa, a presidente Maria Leda Marques. Em outra a
vice, Rita Santos. Enquanto folheiam a pasta que reúne documentos, recortes,
convites e ofícios, vão relembrando das batalhas vencidas, homenagens,
parceiros, projetos e falam dos próximos desafios. Ali não há tabuleiro com
acarajé fritando, ainda assim amigos e conhecidos também aparecem com
freqüência para um dedo de prosa ou pedir uma ajuda. Orgulhosa da força das
mulheres que representa, Leda não poupa elogio às baianas mas não deixa o
interlocutor sair iludido. Para ela as baianas precisam, sim, de apoio: treinamento,
informação, equipamentos melhores, por isso o seu trabalho nunca termina. Antes
de se despedir do visitante, já do lado de fora, uma parada no mirante de onde se
avista a Baía de Todos os Santos, os sobrados em ruínas e velhos edifícios do
bairro do Comércio. Leda então se lembra de como tudo começou. Fala das
escravas, das ganhadeiras mercado seus produtos pelas ruas, dos primeiros
tabuleiros e, com um olhar emocionado, diz que as baianas ainda sonham em
conquistar, sim, muito mais respeito.
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Dicas “Moer o feijão bem fino para o abará e deixar a massa mais grossa
para o acarajé, senão ele não fica crocante” (Cira)
“Se o azeite estiver muito frio, encharca o acarajé. Se estiver muito quente,
frita por cima e não cozinha por dentro” (Zé Antonio)
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