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Àkàrá njé - comiendo bombas

por Agnes Mariano


A cena se repete há décadas, sempre no mesmo lugar. No pequeno largo que dá
acesso à lagoa do Abaeté, ela surge sem avisar. Toda de branco, veste-se
majestosamente, com uma longa saia engomada, linda bata feita de rendas e
torço delicado sobre os cabelos. Maquiagem, um discreto esmalte cor-de-rosa,
colar, brincos, pulseiras e anéis dourados completam a indumentária dessa filha
de Oxum e Iansã, que combina fala mansa e temperamento obstinado. Com andar
firme, mas sem pressa, mal olha para os lados ao atravessar a rua, enquanto os
carros param para vê-la passar. Quem a vê assim, como uma rainha, nem imagina
que a vida de Cira é feita de muito suor e esforço. Ela acorda cedo, compra
pessoalmente os ingredientes, participa do preparo da massa e
acompanhamentos, orienta suas funcionárias sobre cada detalhe. Depois vem a
hora da venda na rua, fritando os bolinhos e atendendo os fregueses até altas
horas, todos os dias. Quem começou tudo foi sua mãe, que já ocupava esse lugar
antes dela nascer. Naquele tempo, Itapuã era pouco habitada, a clientela era
pequena e mesmo no resto da cidade não havia muitas baianas. Hoje, as coisas
mudaram. Aonde quer que elas estejam –Cira, Dinha, Loura, Chica, Ivone, Neinha
e tantas outras- uma multidão se desloca diariamente para reverenciá-las e
deliciar-se com o quitute incandescente que somente elas sabem fazer: o acarajé.

Feito apenas com feijão fradinho, cebola, sal e frito no azeite de dendê fervente,
não é à toa que esse misterioso bolinho tem a cor e a temperatura do fogo. O
acarajé é um alimento sagrado, oferecido a Oyá, também conhecida como
Iansã, a deusa africana que controla os ventos, as tempestades, os
relâmpagos e tem poder sobre o fogo. Na religião dos orixás, os homens
dialogam com seus deuses através dos sacrifícios e oferendas de alimentos.
O akará é um deles e veio parar no Brasil através dos escravos africanos
iorubás. Como eram as mulheres negras que dominavam as cozinhas, não
demorou para que essa e outras receitas africanas começassem a ser conhecidas
e admiradas nas mesas brasileiras, conta Luis da Câmara Cascudo. No Brasil
colonial, acarajés, abarás e carurus, entre outros pratos, eram vendidos nas ruas
em tabuleiros que as escravas de ganho equilibravam sobre suas cabeças,
enquanto iam cantando pregões para atrair a freguesia.Com o que conseguiam
juntar, muitas até conseguiram comprar a própria liberdade. Corajosas,
independentes e empreendedoras, as baianas foram aos poucos arriando seus
tabuleiros e se fixando em pontos estratégicos da cidade. Montar um tabuleiro
para vender quitutes na rua, típico hábito africano, passou a significar, cada vez
mais, a garantia do sustento da família. Além do preço acessível, do sabor
delicioso e das qualidades nutricionais do bolinho de feijão, a simpatia das baianas
sempre foi um tempero a mais, ajudando a conquistar uma freguesia cativa. A
partir da segunda metade do século XX, muitas delas foram ficando famosas,
como Romélia, Vitorina, Damásia e Quitéria, espalhadas principalmente pelo
centro e Comércio de Salvador. Nas últimas décadas, a cidade cresceu na direção

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norte, levando prosperidade às baianas que trabalhavam perto do mar: Dinha, no
Rio Vermelho; dona Chica; na Pituba; Cira em Itapuã. Mas há muitas outras
rainhas do dendê, como Regina, na Graça e Rio Vermelho; a Loura; no Horto
Florestal; dona Ivone, no Bonfim, ou Neinha, nas Mercês. Apareceram também
alguns rapazes que nada deixam a dever a nenhuma baiana, como os irmãos
Gregório e Zé Antonio.

Algumas delas chegaram a pegar o tempo do feijão ralado na pedra, ao modo


africano, e do acarajé servido só com pimenta. A trabalheira era enorme, pois
além de triturar o grão, é preciso tirar toda a casca e bater bem a massa. Com o
passar do tempo surgiram os moinhos elétricos, para diminuir o trabalho, mas os
clientes exigiam novidades, obrigando as baianas a acrescentarem novos recheios
no acarajé, como salada, vatapá, camarões e caruru. O antigo tabuleiro de
madeira sobre um cavalete em X, hoje visto raramente, foi cedendo lugar aos
tabuleiros de alumínio e vidros, maiores e mais confortáveis. O que não mudou
foram as figas, folhas de arruda, fitas e contas que todas usam sobre o corpo ou
dispõem sobre o tabuleiro para garantir proteção, tão necessária a quem trabalha
na rua. No inverno, elas lutam contra o vento e chuva, que afasta os fregueses e
respinga sobre o azeite, provocando queimaduras. No verão, se desdobram para
atender à clientela exigente que não gosta de esperar e só aceita acarajé bem
quentinho.

Micro-empresárias intuitivas, a maioria das baianas trabalha todos os dias da


semana, empregando filhos, amigos, vizinhos e sustentando toda a família. No
começo, a atividade estava restrita às filhas de Iansã e Xangô, mas o acarajé
se popularizou tanto, que começaram a surgir baianas de todas as religiões
e passou a ser vendido também em lojas, bares, delicatessens, restaurantes
caros e supermercados. Com o crescimento enorme do número de
tabuleiros, surgiram também baianas de primeira viagem, que,

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despreparadas, oferecem produtos de má qualidade. A atividade foi
regulamentada por decreto municipal em 1998, definindo normas para a
indumentária, tabuleiro e localização. Em 2002, a divulgação de uma pesquisa
comprovando a falta de higiene no preparo de alguns acarajés deflagrou uma
nova onda de iniciativas que buscam melhorar a qualidade do produto. A
implementação de cursos de capacitação, fiscalização e a concessão de
empréstimos para que as baianas possam modernização suas cozinhas passaram
a ser assuntos prioritários para prefeituras e associações. Reconhecido como
patrimônio cultural de Salvador, pelos vereadores, o ofício das baianas de
acarajé foi reconhecido, em 2005, como patrimônio cultural imaterial do
Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Mas, na verdade, o akará de Iansã está acima de todas as polêmicas e interesses


mundanos. Ele é um alimento místico, artesanal, que só é saboroso se for feito
com rigor. Um prato cheio de segredos que só podem ser desvendados após anos
de observação paciente, cheia de riscos, porque envolve o fogo, o azeite fervente,
o sucesso e o fracasso. Ser baiana é uma escolha difícil. Significa assumir o
compromisso de ser incansável e ter coragem o tempo todo, assim como Iansã, a
dona dos acarajés. É também tornar-se capaz de dar colorido e perfume às
nossas comidas, tornando o nosso cotidiano bem mais saboroso.

ALIMENTO DO POVO

Sobre os balcões, caixotes e carrinhos de mão que percorrem a feira sem parar,
se misturam o vermelho intenso das pimentas, o dourado do dendê viscoso e o
verde escuro dos quiabos, pimentões e folhas. Por toda parte se vê também
feijões e camarões. Muitos outros ingredientes das comidas dos homens e dos
deuses podem ser encontrados nas barracas da feira de São Joaquim, por isso, é

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lá que quase todas baianas de acarajé de Salvador se abastecem. As pequenas e
as grandes, as famosas e as anônimas. Mas saber chegar até esses temperos e
frutos do mar e da terra é uma arte para poucos, pois não basta ter dinheiro: é
preciso saber onde comprar, como escolher e negociar. Se não aprender esses
segredos, o comprador não levará o melhor produto e ainda pode se perder numa
das intermináveis vielas da feira misteriosa, sob o olhar divertido dos feirantes
que, como bruxos, sabem de tudo que se passa nesse labirinto de cores, sons,
sujeira, cheiros e sabores.

No preparo da massa do acarajé e acompanhamentos, a busca pelo melhor


começa na feira, mas vai muito além dela. Cada detalhe deve ser respeitado e é
necessário vigilância constante para perceber os imprevistos –massa que azedou,
dendê que não serve para a fritura- suspender as vendas e substituir o produto.
“Ter qualidade é difícil, mas o prejuízo compensa. Se não ganhar hoje, ganha
amanhã”, ensina Maria Francisca dos Santos, a dona Chica, que vendeu acarajés
por 30 anos na Pituba.

Rei dos camarões

Para quem não conhece a feira, pode dar trabalho chegar até Jailton de Jesus da
Pureza, 40 anos. Mas o esforço vale a pena, pois é lá, na “Casa Pureza”, rua
cinco, quadra sete ou “rua do Camarão”, que se encontra alguns dos melhores
litros de dendê, feijões e camarões da cidade. Jailton começou em Jaguaripe,
onde nasceu e aprendeu a pescar o camarão e defumá-lo. Quando veio para
Salvador há mais de 20 anos, começou as vendas no balaio, “depois aluguei um
box, empacotava o camarão, botava no ônibus e ia vender de porta em porta no
Bonfim. No sábado vendia no balaio, até que vi que dava pra me manter na feira”,
relembra. Hoje, em sua barraca espaçosa, ele vende produtos selecionados que
vêm de longe: “Os camarões são do Maranhão, Rio de Janeiro, Alagoas,
Maragogipe, Nagé, Acupe, Valença. O dendê vem de Valença e Nazaré”.

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Comprar bons produtos envolve dois quesitos: um bom fornecedor e um
comprador que saiba escolher. O dendê, explica Jailton, tem os seus mistérios: “O
povo pensa que é só ver bonito e comprar, mas não é. Tem dendê que presta pra
moqueca, mas pode não servir pro acarajé. Se espumar quando esquentar, não
serve”. No caso do camarão, a alma da comida baiana, o assunto é ainda mais
delicado: “O produto tem que ser do dia, depois que chega aqui, só dura oito dias.
Hoje não estão mais defumando o camarão devidamente, porque quanto menos
defuma, mais ele pesa”. Com a sua experiência, Jailton se tornou o queridinho das
baianas; por isso, para conseguir produtos da Casa Pureza é preciso ir cedo. No
começo da tarde, muitas vezes, já não se encontra muita coisa à venda. Os
grandes sacos abarrotados com camarões “filé” empilhados no fundo da barraca,
certamente, já estarão reservados para alguma das suas clientes famosas: Cira,
Dinha, Regina ou Neinha.

Padrão de qualidade

Saber comprar é importante, mas é só o início de um longo processo.


Antigamente, se começava catando o feijão e quebrando os grãos, para depois
colocar de molho, explica dona Chica. Hoje, o feijão fradinho do acarajé já é
vendido partidinho, só que antes da trituração é preciso retirar toda a casca, num
trabalho meticuloso que envolve deixar o feijão de molho na água e depois lavá-lo
várias vezes, passando pela peneira, explica José Antonio Vieira, filho de dona
Chica e um dos mais famosos baianos da cidade, ao lado de seu irmão Gregório
Bastos, primeiro homem da família a assumir o tabuleiro. “Lavar o feijão é a parte
mais pesada”, explica Zé, que começou pequeno junto com os irmãos, a ajudar a
mãe no preparo do bolinho. Gregório também lembra que só saía pra jogar bola se
antes fizesse o amigo prometer que, na volta, ajudaria a lavar o feijão.

Lavado e sem casca, chega a hora de triturar os grãos, em moinhos elétricos que
se compra na feira ou lojas populares. Então é hora de bater bastante a massa
com colher de madeira e depois acrescentar sal e cebola ralada. Aí, é fritar
pequenas porções no dendê bem quente. Como a massa está crua, é preciso ter
cuidado para que não azede com o calor, recomenda Zé. Exigentes, Dona Chica,
Cira e Dinha contam que, para garantir a qualidade, acompanham todas as etapas
de perto. “Nunca confiei em ninguém, sempre fiz tudo”, diz Dona Chica, que hoje
só faz acarajés em casa, por distração. Cira vai com freqüência na feira escolher
os ingredientes, “senão vem mercadoria ruim”, enquanto Dinha até desistiu de
manter suas franquias em Brasília e Rio de Janeiro: “Acarajé é comida caseira,
não dá pra industrializar, tem que ser feita todo dia”. Com a experiência, cada uma
desenvolveu suas técnicas para zelar pela reputação: “Cansei de parar de assar e
voltar pra casa, porque o azeite não estava bom. Também joguei panelas inteiras
de massa no lixo, porque tinha algum problema”, conta dona Chica, cujo exemplo
é seguido pelos filhos. Cira, não satisfeita em usar o mais caro camarão da
cidade, também os lava, cozinha e tempera. Já Dinha, no restaurante que
construiu no coração do Rio Vermelho, usa fogareiros e panelas de aço para
manter tudo aquecido.

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Alimento sagrado

Tanto rigor não é à toa, pois o acarajé é um alimento sagrado, para o corpo e o
espírito. No passado, para montar um tabuleiro e ir vender na rua era preciso ser
filha de Iansã ou Xangô e ser designada pelos orixás para cumprir essa missão.
Na África, explica Pierre Verger em seu livro Orixás, Oiá, também chamada de
Iansã, é a divindade dos ventos, tempestades e do rio Níger, que se chama Odò
Oya, em iorubá. Conta a lenda que, após se separar de Ogum e se unir a Xangô,
Iansã foi enviada pelo segundo marido à terra dos baribas em busca de um
preparado que, ingerido, lhe daria o poder de lançar fogo e chamas pela boca.
Ousada, Iansã provou do líquido, tornando-se também capaz de cuspir fogo, conta
Verger. É por isso que, para homenagear esses deuses, os africanos fazem
cerimônias com o fogo, como o ajere, onde um iniciado carrega na cabeça uma
jarra cheia de furos com fogo dentro ou o àkàrà, onde os iniciados engolem
mechas de algodão embebidas em azeite-de-dendê em combustão, narra Verger.

Filhas de Oxum vendem cocadas; filhas de Nanã, mingaus, filhas de Oxossi


vendem frutas e filhas de Iansã e Xangô, acarajés, explica a cachoeirana Ivone do
Carmo, que vende acarajés ao lado da igreja do Bonfim há 44 anos.
-Quando tinha 12 anos, fui num terreiro perto da minha casa, no Pau Miúdo,
procurar emprego. Tomei a benção, peguei a conversar e perguntei se precisavam
de empregada. Veio a mãe de santo, Maria do Socorro, e disse que eu não ia ser
empregada não, que ia ser do terreiro, porque ela tinha sonhado com uma

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senhora dando uma menina a ela. Ela terminou de me criar e me iniciou. Eu
tomava conta de tudo. Foi lá que eu aprendi a fazer os acarás dele,
compridinhos, e os dela, bem redondinhos. Fazia pra comida, pra vender do
lado do barracão e repartir no candomblé. Ainda mocinha vim morar no Bonfim e
aqui eu tive um sonho com Iansã me dizendo: ‘Ivone, você vai ser baiana, a
baiana mais famosa da Bahia’.Obediente, essa filha de Xangô não pestanejou e,
até hoje, mantém no alto da colina sagrada o seu tabuleiro, que é também o local
de encontro com uma legião de amigos e filhos de consideração que ela arranjou
em todos esses anos em que enfrentou os perigos da rua, o vento, o sol e a
chuva, para alimentar o povo baiano com o acará africano.

RECEITA AFRICANA

São apenas 9h de uma manhã de quarta-feira e o largo do Pelourinho já está


tomado pela multidão que transborda do templo azul e dourado erguido pelos
escravos, a Igreja do Rosário dos Pretos. Nas saias, blusas, calças e adereços,
todos os tons de vermelho e branco, para homenagear Iansã. Enquanto desce
apressada a ladeira em direção à missa, a mulher comenta:-Devo tudo que tenho
a ela, meu apartamento, meu carro. Ave Maria, graças a Deus sou filha de Iansã.
A amiga, orgulhosa, responde:-Eu também, sou filha de Xangô.A missa já está
perto do final, quando Iansã resolve mostrar a sua presença: nuvens negras
surgem de repente e pingos grossos desabam sobre o povo, abençoando-o.-Já
estava até demorando, porque no dia dela sempre tem trovoada- explica uma
senhora.Na Bahia, todos os anos é assim: quatro de dezembro é dia de
homenagear a santa do manto vermelho e a orixá dos ventos e das tempestades,
dia em que tem emoção, chuva, procissão, música e muito acarajé.

Essa mistura de fé e comida é uma história antiga que começou na África,


prosseguiu no Brasil e perdura até hoje, porque as comidas que os africanos
faziam para oferecer aos seus deuses caíram no gosto dos brasileiros e nunca

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mais deixaram de ocupar um lugar de honra em nosso cardápio. A semelhança é
tão grande que um africano se sente em casa na Bahia. Como conta a empresária
nigeriana Rasidat Lola Akanni, que mora há muitos anos no Brasil, quando quer
relembrar o sabor do legítimo akará da sua terra, bem crocante, ela não precisa
fazê-lo em casa, apenas vai ao tabuleiro de uma certa baiana.

Comer akará

Na África, o nosso abará se chama moìn-moìn. “É uma massa de feijão fradinho


bem lavado e temperado com cebola, pimentão, tomate, gengibre e dendê. Depois
a gente coloca camarão e ovo cozido dentro e cozinha na água enrolado na folha
da bananeira”, explica Rasidat. Como é considerado um alimento leve, ele é
comido “de manhã, junto com o mingau”. O caruru tem quiabos, dendê, pimenta,
camarão e carne ou peixe: “A gente come na hora do almoço, junto com amalá,
uma bola de massa feita no fogo com farinha de inhame seco e água”. Já o akará,
é “a massa de feijão moída com temperos como pimentão, cebola, pimenta e
quando vai fritar coloca camarão ou peixe dentro. A gente come qualquer hora, em
qualquer lugar, é uma merenda. Lá, vende akará na rua, na feira, no restaurante,
as mulheres ficam sentadas fritando e servindo, como aqui”, conta a nigeriana,
que também entende de comida e prepara banquetes africanos por encomenda.

Segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, a palavra acarajé pode ser uma
versão reduzida do pregão cantado pelas antigas vendedoras ambulantes. Na sua
música "A preta do acarajé", Dorival Caymmi reproduziu livremente um deles: “O
akará jé ecó olailai ô”. Pregão que era um convite aos fregueses para virem
comer (jé) a sua iguaria (akará). Em cada grupo étnico iorubá o acará era feito de
certa forma, explica Costa Lima: akarakere bem pequeno entre os egbá,
acarájexá bem maior, entre os ijexá. Na Bahia, aos poucos, se definiu um
tamanho médio para a venda ao público. O que não mudou foi o desabafo que
Caymmi ouvia da baiana e registrou em sua canção: “Todo mundo gosta de
acarajé, mas o trabalho que dá pra fazer é que é”.

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Enfeitiçando o paladar

Muitos dos ingredientes e receitas vieram da África, mas foi na cozinha das
nossas casas-grandes e senzalas que surgiu a culinária afro-baiana, tendo como
elementos centrais o dendê africano, a pimenta sul-americana e o côco da Índia.
Como lembra Luis da Câmara Cascudo, em seu texto A cozinha africana no
Brasil, escravos iorubanos foram levados para muitos lugares, mas somente aqui
a culinária africana se aprimorou e difundiu tanto. A explicação, propõe ele, é que
“no Brasil, a presença da preta na cozinha classificava-se como indispensável e
regular”, o que não ocorria em outros locais, onde havia até quem condenasse a
colaboração das escravas na cozinha. De fato, ao se tornarem responsáveis pela
alimentação das famílias, essas mulheres recebiam um fardo e um poder, o de
recriar receitas, acrescentar ingredientes, fundir costumes africanos com
portugueses e indígenas.

No começo do século XVII, a palmeira africana da qual se extrai o azeite de dendê


foi introduzida no Brasil, explica Costa Lima. Com a chegada desse e outros
ingredientes, sabe-se que, no mínimo, em fins do século XVIII, além de
degustados nas residências, os pratos africanos já eram comumente vendidos nas
ruas. É de 1802 uma carta do professor de grego Vilhena queixando-se da venda
a pregão, pelas escravas de ganho, de mocotós, carurus, vatapás, mingaus,
acaçás, acarajés, entre outras “couzas (sic) insignificantes e vis”. Segundo Costa
Lima, desde essa época, os tabuleiros das baianas já alimentavam a preço
acessível a população subempregada e pobre da cidade com seus quitutes
deliciosos. Com essa venda nas ruas a serviço dos patrões, muitas chegaram a
reunir quantia suficiente para comprar a própria liberdade.

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Também no final do século XVIII acontecia na Bahia um fenômeno importante
para o desenvolvimento da culinária: “Começa a se organizar em comunidades
estruturadas o sistema religioso dos escravos de origem nagô e iorubá”, como
explica Costa Lima. Onde havia orixás, havia sacrifícios e oferendas de alimento,
pois é assim que os africanos dialogam com seus orixás: fazem seus pratos
prediletos, colocam um pouco em frente ao altar e repartem o resto entre os
homens após as cerimônias (ajeum). “Nesse tempo foram recriadas muitas das
comidas cotidianas dos homens e dos santos. Pois que os santos comem o que
os homens comem”, explica o antropólogo. Foi também por isso que receitas tão
antigas e que vieram de tão longe nunca foram esquecidas. Como esquecer o ebô
de Oxalá, o doboru de Obaluaê, o omolucum de Oxum ou o acará de Iansã?

Nessa época, onde as panelas eram de barro, o fogão, à lenha, e não havia
eletrodomésticos, o feijão do acarajé era moído segundo a técnica africana, na
pedra de ralar: “Mede cinqüenta centímetros de comprimento por vinte e três de
largura, tendo cerca de dez centímetros de altura. A face plana em vez de lisa, é
ligeiramente picada por canteiro, de modo a torná-la porosa ou crespa. Um rolo de
forma cilíndrica, da mesma pedra, impelido para frente e para trás, sobre a pedra,
na atitude de quem mói, tritura facilmente o milho, o feijão, o arroz”, explicou
Manuel Querino em seu texto A arte culinária na Bahia, de 1916. Segundo Costa
Lima, Querino, que também dá a receita completa do bolinho africano, é autor da
primeira descrição etnográfica do acarajé.

Nos terreiros mais tradicionais, até hoje se mantém o hábito de usar a pedra de
ralar, pelo menos no preparo do alimento para os santos. A baiana Ivone do
Carmo, que alcançou esse tempo, conta que o ato de moer na pedra servia
também como uma espécie de treinamento corporal para o momento do transe.
“Tinha que passar o feijão na pedra pra dar o ‘gincar’ no ombro, pra quando o
santo pegar a gente, tremer bem o ombro. Hoje o santo é cá embaixo, é um
remelexo danado. Naquele tempo era no ombro. A não ser quando é Iansã que
pega, porque aí tem que remexer tudo mesmo. Misericórdia! Solta tudo, solta as
frangas. É bonito de ver”, diz ela, que sabe muito bem que cozinha e magia se
misturam. Antes de sair para fazer as vendas, ela se protege: “Na porta da minha
casa coloco minhas farofas de mel pra chamar prosperidade, farofa branca, farofa
vermelha. Posso levar também uma água de alfazema ou água com mel pra jogar
no ponto”.

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VIDA DE BAIANA

Para ela, o dia começa cedo, às 6 horas da manhã. Não demora muito e já está
na cozinha, separando os ingredientes. Os ajudantes vão chegando -filhos,
vizinhos, parentes-, e a labuta começa. Depois de cinco horas de trabalho duro,
está tudo pronto: abará, vatapá, pimenta, camarões, salada, passarinha, massa do
acarajé, do bolinho de estudante e outras iguarias. Então, é hora de se aprontar
impecavelmente, para agradar os fregueses: longa saia rodada, bata de rendas,
torço e colares. Mas, para que a venda seja boa, pois toda a família depende
disso, é preciso também pedir ajuda ao invisível: água, cachaça e farofa são
despachadas na porta de casa, em homenagem à força que domina as ruas e
pequenas porções dos alimentos vão para os altares caseiros. Quando chega ao
local da venda, ela também lança na rua três pequenos acarajés, que abrem os
caminhos e, sobre o tabuleiro, dispõe plantas como espada-de-Ogum e arruda,
figas, contas, fitas, imagens e moedas, completando a proteção. A vida da baiana
é assim, cheia de disciplina e rituais. E foi assim, com todo esse rigor, que essas
mulheres sem instrução, mas cheias de espírito de liderança, competência e
iniciativa, conseguiram se tornar as mais bem sucedidas empresárias do povo.

O tabuleiro passou por muitas transformações em todos esses séculos. Antes era
ambulante, transportado sobre a cabeça da baiana que trazia os bolinhos fritos de
casa e os vendia frios, acompanhados só com pimenta. No final dos anos 40, elas
começaram a se fixar em pontos estratégicos diminuindo o peso no deslocamento,
mas aumentando e muito a quantidade de apetrechos: fogareiro, tacho para o
azeite, panelona para bater a massa, balaio com as comidas, além do tabuleiro de
madeira. Sentadas por anos a fio no mesmo lugar, atendendo seus fregueses com
simpatia e qualidade, elas ganharam fama. Em seu livro Bahia de Todos os
Santos, Jorge Amado fala de Vitorina, que fritava seus acarajés na porta do bar
Anjo Azul, na rua do Cabeça, de Damásia da Conceição, em frente à Escola de

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Belas Artes, de Quitéria de Brito, na Baixa dos Sapateiros e de Romélia, mulher
de mestre Pastinha, que vendia acarajés no largo do Pelourinho. E para a
sobremesa, era só ir até Odília, em frente à Alfândega, onde estavam as melhores
cocadas. Boas negociantes, elas souberam se adaptar às mudanças sempre
buscando locais movimentados. Salvador cresceu para o norte, por isso elas
também seguiram o rumo de Yemanjá.

Nome bem falado

Há 60 anos atrás, havia duas baianas no Rio Vermelho: Ubaldina, no largo de


Santana e Bolinha, na Mariquita. Com a perda da mãe, aos cinco anos, a
pequena Lindinalva foi morar com a avó Ubaldina e passou a ajudá-la. Aos sete
já sabia cozinhar e despachar os fregueses. Aos dez, a avó ficou doente e ela teve
que assumir o ponto sozinha, de onde nunca mais saiu. Em 44 anos de acarajé o
seu nome se tornou uma marca de sucesso, conhecida nacionalmente: Dinha.
Hoje, além do ponto, é dona de um restaurante no mesmo largo. Segundo Dinha -
que não pára de trabalhar, vive com a agenda lotada e já chegou a sustentar 46
pessoas com os seus acarajés-, foram três os fatores que a ajudaram: “Sou
muitíssimo exigente”, confessa ela, que lidera uma equipe disciplinada a quem
ensina que “o cliente sempre tem razão”. As amizades também foram importantes:
“Conheci muita gente aqui: doutor Sócrates, doutor Diocleciano, doutor Wilson
Lins, Jorge Amado. Desde quando Nizan começou na publicidade foi me
ajudando. Conheci Gil, Caetano, Oliveto”, conta ela, que chega a preparar quatro
buffets por dia. E, além de tudo, “foi Deus quem me iluminou e me ajudou a
crescer, mesmo sem escolaridade. Hoje quero meus filhos preparados. Todos

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fizeram faculdade, mas voltaram pro acarajé. Uma assumiu o ponto e o outro é
gerente do restaurante”, relata, orgulhosa.

Um pouco mais à frente, na Pituba, encontra-se o tabuleiro da família de Dona


Chica. De trabalho, Maria Francisca dos Santos ou dona Chica, entende. Com
nove filhos para criar, ela se virava como podia. Vendia bananas e um dia arriscou
montar uma barraca na festa da Pituba. Teve prejuízo, mas lá conheceu uma
barraqueira que se ofereceu para ensiná-la a fazer acarajés. O primeiro ponto foi
na praia do Jardim dos Namorados há 30 anos. De lá, seguiu para a avenida
Manoel Dias da Silva sempre com os seus auxiliares: os nove filhos e filhas que
estudavam num turno e no outro a ajudavam. Vendendo o seu acarajé barato e
delicioso, Chica foi cativando os moradores do bairro, admirados com seus
quitutes e sua integridade. “Doutor Avena atendia os meninos e já dava o remédio.
Dona Maria Tavares mandava chamar os meninos pra almoçar. Tinha dia quando
a fila estava grande, que Tica, uma branca, vinha me ajudar a despachar”,
relembra ela, citando alguns amigos. Em seu modesto tabuleiro, Chica conheceu
também gerentes de banco, advogados e políticos como Paulo Souto, Otto
Alencar, João Durval, Antonio Carlos Magalhães, Roberto Santos e Manoel
Castro. Amigos influentes que a ajudaram com empréstimos, empregos e a
continuar no ponto, de onde tentaram tirá-la duas vezes. Era respeitada também
pelos moleques do bairro, que a chamavam de mãe. Seguindo o exemplo da mãe
lutadora, todos os filhos prosperaram, alguns frequentaram universidade e quatro
deles ingressaram no ramo do acarajé, como empresários bem sucedidos:
Gregório, Zé, Agnaldo e Gegê.

E, seguindo ainda o curso do mar, lá onde Salvador termina, encontra-se outro


antigo e famoso tabuleiro, o de Jaciara de Jesus Santos, 48 anos, mais
conhecida como Cira. Nascida e criada em Itapuã, ela conta que faz tudo até hoje
como aprendeu com a mãe, dona Odete, que aprendeu “com uma senhora muito
antiga daqui, dona Sorazinha”. Quando tinha 17 anos sua mãe faleceu, lhe

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deixando o ponto, uma panela pequena e um fogão de abanar. “Naquele tempo o
acarajé era só com pimenta, depois é que fui botando mais coisas”. Ao redor do
seu tabuleiro que fica num quiosque espaçoso, foram surgindo barracas, bares,
casas e shopping. Hoje, com uma clientela gigantesca, ela explica que sua fama
cresceu aos poucos: “O que me ajudou foi o boca a boca. Só depois que meu
nome já era bem falado é que foi parar no jornal”. Meia dúzia de moças com
guarda-pó branco atendem os fregueses, mas ao todo são 25 pessoas
trabalhando para Cira, que tem cinco filhos e mantém outro ponto no Rio
Vermelho, comandado pela filha Jussara. Ao contrário da maioria das baianas,
ela não gosta de fazer eventos, “desgasta muito”, preferindo se concentrar no seu
produto, que vigia de perto: “Nunca mudei a qualidade, por isso nunca caí”. Com
tanto trabalho, Cira quase não tem tempo para outras coisas: “De vez em quando
dou uma olhada na tv ou vou na praia, mas é difícil”, conta ela, que, vaidosa, se
diverte mesmo é com sua coleção de roupas de baiana e suas jóias. Sua outra
paixão, é claro, são os acarajés, que degusta todos os dias.

TABULEIRO FAMILIAR

Eles começam em casa, aprendendo a catar o camarão e lavar o feijão. Depois


ajudam a carregar o balaio, o tabuleiro e atender os clientes. Chegar perto da
massa é outro estágio e fritar os bolinhos, então, só para quem já entende muito
do ramo, pois é preciso muita observação para ser capaz de perceber quando o
azeite atinge a temperatura certa ou identificar a qualidade do dendê apenas pelo
cheiro. Após anos de treino, chega finalmente a hora do aprendiz tomar a sua
decisão: procurar outra ocupação ou assumir um tabuleiro. A decisão é séria, pois

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envolve trabalho duro de domingo a domingo, comprar o traje especial, se
cadastrar, pagar taxas e encarar todos os tipos de clientes. Apesar dos riscos, a
opção pelo tabuleiro tem sido cada vez mais freqüente, entre mulheres e homens
de várias faixas etárias, níveis de escolaridade e religiões. O motivo é simples:
barato, nutritivo e delicioso, o acarajé não sai de moda, é um sucesso.

Tentando aumentar os lucros ou apenas garantir o pão nosso de cada dia, os


tabuleiros se proliferaram muito nos últimos anos, trazendo novidades. Surgiram
polêmicas, como entre Dinha e Regina, em 1998, disputando o movimentado largo
de Santana; apareceram os “baianos” de acarajé, sob protesto dos mais ortodoxos
e foi criado o acarajé de soja, feito por Nira, em Camaçari. Até evangélicos
ingressaram no ramo, como Deny Costa, a Loura do Horto Florestal, apontada
como dona do melhor acarajé numa pesquisa feita pela internet. O acarajé passou
a ser encontrado também em lojas, delicatessens, bares e ampliou o seu espaço
nas prateleiras dos supermercados, onde é vendido em caixinhas. Para disciplinar
tudo isso, associações, prefeituras e governo começaram a dedicar atenção
especial ao tema. O decreto municipal 12.175/1998 e portarias subseqüentes
regulamentam a profissão, padronizam indumentária, tabuleiro, definem a
distância mínima de 50 metros entre as baianas e outros detalhes. Vieram
também os cursos, apoio financeiro e fiscalização.

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Baianos de acarajé

Quem o conhece como professor de educação física com mestrado em Educação


da Universidade Federal da Bahia (Ufba), nem desconfia, mas José Antonio
Vieira, é o mesmo Zé que, há mais de 10 anos, assumiu um tabuleiro num
shopping de Piatã e hoje já possui mais dois pontos: um no Cidadela e outro de
acarajé a quilo. O pioneiro foi o seu irmão, Gregório Bastos, 41 anos. “Estava
casado, sem emprego, então comecei no ponto de minha mãe (Dona Chica), que
dava a sexta para mim, até que resolvi botar um ponto meu”, conta Gregório, que
foi da Marinha. Ele passou um ano a procura do local, inclusive em outras capitais
do Nordeste, quando obteve sinal positivo num grande shopping de Salvador: “A
única exigência era colocar uma baiana pra vender, porque homem não vendia
naquela época. Fui usando o jogo de cintura: de vez em quando assumia o
tabuleiro, dizia que a baiana tinha pedido demissão, que ia arranjar outra, até que
passou a tv, fez uma matéria comigo e eles viram que eu podia ser o garoto-
propaganda do shopping e passaram a cobrar a minha presença”. Na época,
houve rejeição das associações e não foi fácil garantir o direito de um homem
também vender acarajés, mas a competência de Gregório acabou falando mais
alto. Para Zé, a história foi parecida: já tinha aprendido tudo com a mãe, em cujo
tabuleiro começou a se exercitar como “baiano” e também optou pela venda em
shopping. Para ele que é funcionário público e foi sócio de uma empresa, o
tabuleiro terminou sendo a opção mais rentável. Com nove funcionários que se
dividem entre a fabricação e venda dos bolinhos, Zé não pára de crescer.
Seguindo o exemplo do irmão, criou também um ponto de venda de acarajé a
quilo, na Estrada do Coco, e trabalha muito com eventos. Assim como a mãe e o
irmão, é cheio de clientes famosos, como artistas e políticos, que fazem questão
da sua presença, pois os dois temperos básicos do acarajé são a pimenta e a
conversa com o vendedor. Casado e com filhos, ele acorda antes das 6h e
trabalha de domingo a domingo para gerenciar tantas atividades ao mesmo
tempo. Gentil e tranqüilo, enquanto cumprimenta os clientes ou atende mais uma
ligação no celular, conta que a sua principal preocupação é com a qualidade:
“Chegamos a um nível em que a gente não pode deixar cair”.

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Negócio lucrativo

No ramo do acarajé não existe sorte, o sucesso é fruto de muito trabalho, por
isso, só permanecem os fortes. Sérias, objetivas, elas têm gestos precisos e
sempre estão alertas a tudo que se passa à sua volta. Qualquer descuido pode
significar uma queimadura grave, passar troco errado, azedar um alimento.
Apontada por muitos como dona do melhor tabuleiro do centro da cidade, Neinha
já ocupa há mais de 25 anos o seu ponto nas Mercês. Ela diz que “queria outra
coisa na vida”, mas não teve opção, por isso seguiu a tradição iniciada pela avó,
que vendia acarajés na porta de casa, na Liberdade. Suas quatro irmãs também
vendem acarajé, mas as duas filhas não se interessam pelo ramo. A candidata a
sucessora, por enquanto, parece ser a netinha, “que já pega na colher, ajuda e diz
que ser baiana”, conta Neinha.

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Apesar da pouca idade -28 anos- Lucélia Santos ou “Neguinha” é uma lutadora
experiente: começou há 18 anos ajudando a mãe, sempre no ponto em frente ao
Farol da Barra. “No início tinha uma vergonha danada, hoje não troco minha
profissão por nada. É bem melhor do que ficar em cozinha de branco ou tomar
conta de criança dos outros”, diz ela. Para vender os acarajés, Lucélia e a mãe
criaram um método engenhoso: “Ela mora em São Caetano e faz tudo em casa.
Meu pai vem pra cá vender coco e traz a cesta. Eu moro em Plataforma e venho
vender. Fico aqui até 10h da noite e mando a cesta por ele”. Rindo, ela diz que o
tabuleiro foi sua única opção porque não gosta de estudar, mas atende tantos
fregueses estrangeiros que já está decidida a aprender inglês para se aprimorar
na sua profissão que, segundo ela, tem como principal qualidade proporcionar
“dinheiro na hora, ao vivo”. Tanto que, com os acarajés, ela ganha mais que o
marido.

Cozinha de rua

Como empresas familiares que são, cada tabuleiro tem as suas regras. Alguns
empregam membros da família que podem ter o direito de assumir o tabuleiro em
dias de menor movimento. Outros chegam a garantir o sustento de dezenas de
pessoas geralmente remuneradas como diaristas, com valor fixo, independente da
quantidade que vendem e sem carteira assinada. O caminho natural é buscar a
independência como no caso de Tania Fernandes, que trabalha para Regina, no
ponto do Rio Vermelho. Agora que conhece bem todos os segredos do ramo ela
quer ter seu próprio ponto: “Vou pra São Paulo, os clientes vivem pedindo. Lá eles

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fazem acarajé de mandioca”. Fugindo do desemprego ou apostando na venda do
acarajé como uma lucrativa fonte de renda, somente em Salvador são cerca de
2.800 baianas e baianos registrados na Associação das Baianas de Acarajé e
Mingau Receptivos e Similares da Bahia (ABAM), que divide com a Federação
Baiana dos Cultos Afro-brasileiros (Febacab) a responsabilidade pelo
cadastramento. Montar uma cozinha no meio da rua, entretanto, é uma tarefa
difícil que nem todos desempenham bem. A comprovação veio em fevereiro de
2002 no auge do verão baiano, com a divulgação nacional pela tv de uma
pesquisa da Ufba que detectou altos índices de coliformes fecais em amostras de
acarajés coletadas em Salvador. Instalou-se uma crise com redução de até 30%
nas vendas. O susto passou, mas ficou nítida a importância de profissionalizar o
setor. A partir daí intensificaram-se iniciativas que envolvem Abam, Febacab,
governo, prefeituras, Sebrae, Sesc/Senac, universidades, Vigilância Sanitária e
bancos. Assim como ocorre em Camaçari, em Salvador foi criado um curso de
capacitação sobre higiene na manipulação de alimentos para as baianas. A
segunda etapa foi visitoriar as cozinhas e depois conceder selo de qualidade e
linhas de crédito de até R$ 8 mil para reformar cozinhas, tabuleiros e
indumentárias. Apesar de mal sinalizado, o Memorial das Baianas é bem
localizado no Belvedere da Sé, centro histórico de Salvador. Depois de visitar a
exposição permanente com objetos, indumentárias e apetrechos culinários do
passado e do presente, o visitante atento encontra a discreta sala onde trabalha a
diretoria da Abam. Em uma mesa, a presidente Maria Leda Marques. Em outra a
vice, Rita Santos. Enquanto folheiam a pasta que reúne documentos, recortes,
convites e ofícios, vão relembrando das batalhas vencidas, homenagens,
parceiros, projetos e falam dos próximos desafios. Ali não há tabuleiro com
acarajé fritando, ainda assim amigos e conhecidos também aparecem com
freqüência para um dedo de prosa ou pedir uma ajuda. Orgulhosa da força das
mulheres que representa, Leda não poupa elogio às baianas mas não deixa o
interlocutor sair iludido. Para ela as baianas precisam, sim, de apoio: treinamento,
informação, equipamentos melhores, por isso o seu trabalho nunca termina. Antes
de se despedir do visitante, já do lado de fora, uma parada no mirante de onde se
avista a Baía de Todos os Santos, os sobrados em ruínas e velhos edifícios do
bairro do Comércio. Leda então se lembra de como tudo começou. Fala das
escravas, das ganhadeiras mercado seus produtos pelas ruas, dos primeiros
tabuleiros e, com um olhar emocionado, diz que as baianas ainda sonham em
conquistar, sim, muito mais respeito.

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Dicas “Moer o feijão bem fino para o abará e deixar a massa mais grossa
para o acarajé, senão ele não fica crocante” (Cira)

“Se o azeite estiver muito frio, encharca o acarajé. Se estiver muito quente,
frita por cima e não cozinha por dentro” (Zé Antonio)

“Quando estiver subindo fumaça coloca o acarajé e abaixa o fogo. Se estiver


quente demais, coloca um pouco de azeite frio” (Tania)

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