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Bariani 100 anos

CRÔNICAS
Bariani Ortêncio

Crônicas do Bariani

2023
O sonhador do sertão

Com 100 anos recém-completados, Waldomiro Bariani Ortencio


imaginou um Goiás de beleza ímpar e reproduziu em suas crônicas,
artigos e livros hábitos e costumes da cultura goiana

Clenon Ferreira
clenon.ferreira@opopular.com.br

Para Waldomiro Bariani Ortencio, ser goiano é merendar pão, bis-


coito de queijo e catar os farelinhos sobrantes. É falar uai, curuiz, trem,
sungar. É saber que o Araguaia é sua praia, "o rio mais lindo do mun-
do". É não ser egoísta, e em nome do progresso, repartir suas terras
com Brasília e Tocantins. É não ter pressa, mas montar no primeiro
cavalo que passar arreado. "É acolher de coração aberto os irmãos de
outros Estados, como fez comigo", escreveu o folclorista em crônica
publicada em maio de 2010.
Muitas são as histórias de um sertão profundo e misterioso de
Goiás que o escritor sonhou em seus mais de 50 livros escritos ao lon-
go da carreira. Bariani completou 100 anos no dia 24 de julho, e, em
homenagem a um dos maiores nomes da cultura de Goiás, O POPU-
LAR presenteia seus leitores com este livro digital que traz uma cole-
tânea de crônicas publicadas no jornal ao longo dos anos. O presente
faz parte das comemorações dos 85 anos do POPULAR.
Paulista de Igarapava, Bariani chegou a Goiânia aos 15 anos.
Considerada na época um verdadeiro eldorado do progresso no meio
do sertão do Brasil Central, a cidade é um dos principais alvos do

3 Crônicas do Bariani
escritor, mas ele vai além. Em suas crônicas, faz uma imersão ao Cer-
rado, apresenta o cotidiano de goianas e goianos, destaca costumes,
paisagens e hábitos que apenas um autêntico "goiano do pé rachado"
saberia reconhecer.
"Quanto mais se vive, mais se aprende e... morre-se sabendo qua-
se nada. A vida é curta pra ser pequena", escreveu Bariani em uma de
suas crônicas. Os textos do autor reafirmam o seu caráter folclorista:
o sertão, o calor e o sol forte ajudam na condução das histórias que
discutem o valor do planalto central brasileiro no processo de ocu-
pação do País.
O escritor, que viveu o esplendor da criação da então nova capital
de Goiás em suas primeiras décadas, rompeu fronteiras musicais com
a criação do Bazar Paulistinha, que produzia e comercializa trabalhos
de artistas goianos para outros Estados. Foi também goleiro do Atlé-
tico Clube Goianiense, desafio dado pelo então prefeito de Goiânia
Venerando de Freitas Borges. Emprestou sua portentosa residência
modernista para eventos culturais e lançamentos literários.
"Existem dois tipos de bobos: os que empresta livros e os que de-
volve", brincou o autor em entrevista ao POPULAR em 2018. Bariani
hoje não escreve mais. A rotina é ocupada em ficar na sala de sua casa,
no primeiro andar, observando o corre-corre da calçada e da vista de
sua casa, a Praça Cívica. O Instituto, que leva seu nome, ainda tem li-
vros a serem editados e publicados. "Ser goiano é ser de paz, dar um
boi para não entrar na briga, mas uma boiada para não sair. Ser goia-
no é bom demais da conta", reitera.
Venha com a gente se deliciar com as crônicas que falam sobre o
que é ser goiano. Você vai rir e se emocionar.
Maktub!

4 Crônicas do Bariani
Cena de rua
18/08/2005

A pedido do editor estou preparando o livro Crônicas de Bariani


Ortencio, escritas em 1946 e 1956, lidas diariamente, ao meio-dia, na
Rádio Clube de Goiânia. Vamos transcrever a de 18 de junho de 1946.
Dizem que a sujeira somente aparece no limpo e hoje vi que é
verdade. A Avenida 24 de Outubro sempre foi uma vergonha. A poeira
nos castigou sempre, assim como a lama. Quantas vezes não ficamos
com dó das mocinhas apavonadas, que surgiam das beiradas do bair-
ro, com os seus vestidinhos vaporosos e decotados. Pareciam mesmo
pavões suntuosos, soberbos, chamando a atenção para a plumagem,
mas os pés... A poeira na seca e o barro nas águas fizeram da nossa
principal via uma lástima. Se ao menos estivesse claro, ainda vá lá,
mas... no escuro, andava-se ao léu da sorte.
Agora uma parte está asfaltada e toda a sua extensão, bem ilumi-
nada. Imaginem que até futebol de salão se joga lá, à noite. O asfalto
azul, olhado, assim de comprido, assemelha-se a um rio canalizado. À
noite reflete a iluminação dos globos e tudo fica muito bonito como se
fosse a via-láctea de cabeça pra baixo.
Não sei se alguém já desmaiou de fome aqui; talvez o caso de
hoje seja o primeiro. Um homem deitado, durante o dia, numa calça-
da da nossa avenida. Acharam que era cachaça, mas, quando consta-
tou fome absoluta, a mulher explicou, dizendo estarem seis dias sem
comer nada, o povo se constrangeu. Chegando à cidade, um homem
tipo de roça, uma mulher marcada pelo sofrimento e uma criança de-
pauperada, compunham o trio desambientado da fome. O marido, o
mais forte dos três, caiu desmaiado. Chegando gente, o povo, curio-

5 Crônicas do Bariani
so, acercou-se. A criança, inocente, se desapertou com os copinhos de
sorvetes catados na calçada e nas latas de lixo. A mulher é sempre
mais aguentadeira, pois a própria natureza se responsabiliza por isso.
O roceiro quando vem buscar o que de-comer na cidade é porque já
está nas últimas, que gente da roça é vergonhosa pra estar pedindo.
Os campineiros fizeram roda e quiseram tomar as devidas provi-
dências. Mas, onde levá-los? Citaram diversas siglas, como: LBA , SCM,
Iapi, IAPC, IAPTC, Sesi, Sesc, SVP e tantos outros ipepês que nem sei
se existem. Disseram que a Legião Brasileira de Assistência não pos-
suía ambulância; que a Santa Casa de Misericórdia estava na mesma
situação do homem desmaiado; que o Iapi só atende quem trabalha
na indústria; que o IAPC, idem, no comércio; que o IAPTC ampara so-
mente motoristas; que os Sesi e Sesc estavam fechados àquela hora e
que a Sociedade de São Vicente de Paulo só atende com cartão. Mas
acontece que a vítima não tinha tipo de operário de fábrica, nem de
empregado do comércio, nem de motorista e muito menos de mendi-
go. Resolveram apelar pela sigla que sempre funciona: Vaca, no caso,
a Vaquinha, ressuscitando a família da miséria. Primeiramente o João
Rassi animou o homem com uma aplicação de Coramina e, depois,
todos foram animados com os pastéis do Bar do Fiore.
Hoje não tem Macktub!

6 Crônicas do Bariani
Quiabo e jiló29/04/2015

Na coluna Alimente, do POPULAR, Fernanda Portes, no seu artigo


Jiló e quiabo, os repudiados, escreveu que há pessoas que não gostam
de jiló e quiabo por um ser amargo e o outro, babento. Jiló e quiabo
não são verduras nem legumes, são frutos culinários.
Recebi a visita do escritor Jaime Sautchuk, presenteando-me com
o seu livro Cruls, quando me perguntou por que os goianos gostam de
coisas amargas, como jiló, guariroba, almeirão, chicória, jurubeba...
Como faz parte da minha trilogia sobre a cultura popular, os li-
vros Cozinha Goiana e Medicina Popular, respondi-lhe que para o
nosso povo antigo tudo o que era amargo era remédio para o estô-
mago, como boldo, losna, carobinha-do-campo, manacá, milhomem,
quina, carqueja, erva-mate e até fedegoso, pois era comum no meio
rural mais pobre o uso de café feito com grãos torrados de fedegoso
e adoçado com rapadura. Portando, como tudo vem pela tradição, o
costume na alimentação de usar ingredientes amargos deve ter vin-
do dessa dedução.
Por exemplo, o empadão ou empada goiana, criação dos vila-
boenses, deve ter sido pela razão dos “ajantarados”, que são almoços-
-jantas aos domingos, pela tarde, onde eram servidas as famosas em-
padinhas (individuais) e alguém sugeriu que se fizesse uma empada
grande que daria para todos, usando formas de latas de marmelada e
de goiabada.
De em antes os quiabos eram aqueles grandões de quinas, que
babavam. Era raro encontrar os de hoje, como o chifre-de-veado. Já fui
vítima disso, quando moleque: uma senhora, na roça, me botou uma

7 Crônicas do Bariani
concha cheia de quiabo babento no meu prato, o que me assustou
muito, pois detestava quiabo. E como a minha mãe ensinou que na
casa dos outros não se deve deixar restos no prato, engoli aquela coi-
sa com os olhos fechados, esperando coisa melhor, quando a senhora,
mui gentil, falou, para o meu espanto:
“Como ele gosta de quiabo!”
E vai mais uma conchada!...
“Escorrega igual a quiabo”
“Quiabo cozido é baba de bobo”.
O quiabo, pra não babar, deve ser cozido inteiro, depois passar
caldo de limão. Se for cortado em tiras e frito, será um ótimo tira-gos-
to. Um prato tradicional dos goianos-mineiros é o frango ao molho
com quiabo, angu e açafrão. O jiló comum de agora é liso e comprido,
que o original, redondo e enrugadinho, não está fácil nas bancas, e é
bom pra muita gente que não entende quando alguém lhe manda “to-
mar no j...!”
Patê de jiló acompanhado de fatia de pão torrado aqui em casa
sempre faço e as mulheres, que não gostam “disso ou daquilo”, ado-
ram, e até levam pra casa. Como fazer: jilós bem cozidos batidos no
liquidificador com bastante alho, pouca cebola, sal, azeite, limão, vi-
nagre, orégano, pimenta-bode in natura e cheiro verde.
Também, vinagrete de jiló: pego uma porção dos menores e com
os cabinhos, dou apenas uma fervura, coloco em uma vasilha de vidro
e os mesmos temperos do patê, com menos alho e mais vinagre. Outro
vinagrete bom demais da conta, a palito: cortar os jilós em fatias finas
e temperar com sal, azeite e limão. Pode fritar, também. E uma farofa-
da de jilós picadinhos vai bem.
Portanto, pra tudo tem jeito, é só procurar saber fazer.
Macktub!

8 Crônicas do Bariani
Mãos de aço
e pés de ferro
13/05/2015

Mãos de aço e pés de ferro já dá pra entender que se trata da


dança catira, de palmeado e bate-pés, por catireiros tradicionais, con-
ceituados. Esse foi o slogan anunciando o 2º Encontro de Catira de
Goiânia, que se realizou na Praça do Trabalhador, na Estação Ferro-
viária, no mês passado, sob os auspícios da Secult municipal, pelo seu
secretário, o escritor e artista plástico Ivanor Florêncio e a Comissão
Goiana de Folclore, pela sua presidente, historiadora Izabel Signoreli,
e seu vice Jadir Pessoa.
Dissemos catireiros tradicionais, mas houve uma grande surpresa!
Muito sucesso também fizeram os blocos de jovens, principalmente
de senhoritas. O ponto alto mesmo se deu com as apresentações de
crianças. O bisneto do Geraldinho Nogueira, o Gabriel, de apenas 3
anos, comprou e pagou a festa, foi aplaudido de pé pelo enorme públi-
co. De uniforme, tal os parceiros dos catireiros de Bela Vista, o mole-
quinho não errou um só paço e palmeou no ritmo certo, tal os demais.
O seu avô, João Nogueira, filho do Geraldinho, e mais seu parceiro de
viola, comandaram a dança.
De Itaguari participaram três grupos, um deles composto por se-
nhoritas super elegantes. Parecia até concurso de beleza. Os violeiros
veteranos Irmãos Floriano e a dupla Tatico e Adeni colaboraram, to-
cando e cantando para diversos grupos.
Anteriormente, a catira era composta somente por homens, sem-
pre adultos. A Comissão Goiana de Folclore criou 18 comissões muni-

9 Crônicas do Bariani
cipais para que o folclore fosse mostrado nas devidas regiões. E como
a tendência era acabar, pois as pessoas envelhecem e morrem, a co-
missão recomendou que se colocassem nos grupos dançarinos jovens,
crianças e também mulheres, o que está acontecendo.
A catira, de procedência indígena, com o nome de cateretê, alas-
trou-se do interior do Estado de São Paulo para os Estados do Centro
e do Sul. Sabe-se que cateretê é de origem tupi, mas a etimologia do
nome catira não tem registro certo, supõe-se que seja pela troca dos
parceiros, uns pra lá e outros pra cá durante a dança, porque é comum
nesses Estados a troca de coisas pelos gambireiros, baldrogueiros,
chamados também de catireiros.
Segundo Couto de Magalhães, “catira, dança só de homens, conside-
rada versão do cateretê paulista, é a mais brasileira de todas as danças”.
No imaginário do povo, catira é troca, barganha, gambira. Catirar
é barganhar e dançar a catira. Catireiro é dançador de catira e gam-
bireiro, indivíduo que se vira, comprando e vendendo, fazendo trocas.
A catira é infalível nos pousos de folias de reis. E a dança é encerrada
com divertidos Recortados, que são versos fora das modas, como:
“A minha mulher é uma coitada/ Tenho confiança por ser honra-
da/ Ela chega em casa de madrugada/ Achando dinheiro pelas estra-
da/ Eu saio de dia e não acho nada”.
“Quem namora mulher casada é um atrevido/ Uma olhada pra
mulher e quatro ou cinco no marido/ Cuidado com a bala do 30 no pé
do ouvido”
Macktub!

10 Crônicas do Bariani
Escritores policiais
brasileiros
07/01/2015

Acaba de sair do prelo da Kelps dois policiais do mestre educativo


Douglas Avanço: As Sementes da Morte e Quatro Vivos e um Morto.
O primeiro, em segunda edição. Anteriormente, publicou: Roteiro de
Análise; Iniciação ao Estudo de Fonética; Esquema de Didática; O Ca-
peta; Quando as Coisas começaram e Francisco, do Céu à Terra - Ida
e Volta. Outro excelente policial, As Cinco Leis Sagradas, é do jovem,
hoje médico, Rafael Ximenes. Os meus policiais: Morte sob Encomen-
da; Dr. Libério - O Homem Duplo; Estórias de Crimes e do Detetive
Waldir Lopes; O Enigma do Saco Azul; A Deal With Death (edição CBS)
e a novela A Busca, do livro Sertão Sem Fim. Esta novela, com o título
A Orelha, estava pronta para ser filmada, quando a cineasta (Apare-
cida Baxter, a dona Marocas da novela Redenção) faleceu. Estavam
convidados os artistas da Globo Othon Bastos e Stênio Garcia, além do
cantor Waldick Soriano.
Na Bienal de São Paulo, em 1975, quando lancei o meu livro Mor-
te sob Encomenda, o escritor e crítico literário Torriere Guimarães
criou, com escritores policiais presentes, o Clube da Rua Morgue, em
homenagem a Edgar Alan Poe. Também, naquela Bienal, com o escri-
tor José Louzeiro, autor de Pixote, fomos diplomados como os melho-
res escritores policiais brasileiros, ele em nouveau roman, de ação, e
eu, em enigma.
Vamos ressuscitar o Clube da Rua Morgue com a denominação de
Associação dos Escritores Policiais Brasileiros. Naquele tempo não ha-

11 Crônicas do Bariani
via internet, os membros do clube residiam em vários Estados e a comu-
nicação se tornou dificultosa, ocasionando a sua extinção. A associação
deverá ser presidida pelo mais fecundo e principal autor policial brasi-
leiro, o delegado Eurípedes III, autor de excelentes livros no gênero, ou
pelo Ivanor Florêncio (da Secult municipal), que lançou, recentemente,
o superpolicial O Troco, criando um invencível serial-killer.
Livros do Delegado: AR15 - A Nova Lei; Emboscada; Giovanna, uma
Cobrinha Muito Esperta (ilustrações por Júlia Franco); Noite Macabra
e Operação Avestruz; Dicas de Segurança - Violência Urbana e Um
Enigma de Onze Letras, fora outros ainda inéditos. São livros excelen-
tes, de muita trama e impacto.
Sobre o recente livro de Douglas Avanço, Sementes da Morte, bem
escrito e urdido, há um descuido: nos policiais sempre são mais de um
suspeito, caso contrário até o leitor comum descobre. No caso é Mar-
cos, velho mestre, amigo e orientador do ex-delegado Wild, que o fez
perder o cargo, pelo simples motivo de não querer ser seu cunhado. É
o que dá pra entender.
Em Quatros Vivos e um Morto, a trama é maior: um famoso cien-
tista mexicano está hospedado no apartamento 1037, o telefone está
fora do gancho e o hóspede, se saiu, ninguém viu e não deixou a chave
na portaria. No terceiro dia, o gerente do hotel, ao invés de chamar a
polícia, juntando-se com mais três funcionários, abre o apartamento,
dá com o hospede morto e, apavorados e desorientados, resolvem su-
mir com o cadáver, salvando a reputação do hotel, causando tremen-
da trapalhada e cadeia para os quatro. Bom tema para um filme com
Os Três Patetas. Mas no finalmente o autor põe a coisa a sério, que o
laudo do médico deu a causa-mortis como um adiantado tumor no
cérebro fulminando a vítima sem tempo de colocar o fone no gancho.
E o laudo médico, quase ilegível, “por precaução”, foi rasgado pelo ge-
rente e atirado no lixo.
Macktub!

12 Crônicas do Bariani
Pinceladas sobre o Natal
e ano-novo
26/12/2014

O nascimento de Jesus é desconhecido, não se deu a 25 de dezem-


bro. Essa data começou a vigorar no século 4, no ano 354, em Roma. 25
de dezembro remonta à antiga festa pagã do Sol e passou a apresen-
tar Jesus como a Luz que veio para iluminar a humanidade.
O Natal no Brasil é representado pela árvore, pelo presépio e por
Papai Noel. A árvore de Natal é um adorno separado do presépio, por-
que é anterior ao cristianismo. Era a árvore de maio, como símbolo fe-
cundador da vegetação, venerada e festejada, augurava a continuida-
de de boas colheitas. Foi Martin Lutero, o fundador do protestantismo,
quem introduziu a árvore de Natal, decorada, no recinto familiar, pelo
seu casamento, em 1525. No Brasil, somente chegou em 1909.
O presépio foi criado por São Francisco de Assis em Grécio, na
Itália, em 1223. Em Lisboa, foi montado pela primeira vez em 1391
pelas freiras da Ordem do Salvador. Chegou ao Brasil pelos jesuítas
em 1583. Quem monta o presépio é obrigado a fazê-lo por sete anos
seguidos; caso contrário, terá atraso de vida.
Noel vem do francês e signica Natal: Papai Natal. A cor verde da
roupagem do Papai Noel foi mudada para vermelho com a propagan-
da da Coca-Cola, nos Estados Unidos e, apesar de existir desde 1881
nos Estados Unidos, só apareceu no Brasil na década de 1930, princi-
palmente como garoto-propaganda das Casas Pernambucanas.
Na lenda, Papai Noel é São Nicolau, que nasceu em Patara, pro-
víncia de Lícia, na Ásia Menor, e viveu, como bispo, na Turquia, na cida-

13 Crônicas do Bariani
de de Myra, no século 4. São Nicolau é padroeiro da Rússia imperial e
da Grécia. Vive em Lapônia, no Polo Norte e viaja no seu trenó à velo-
cidade da luz, ou seja, a 300 mil quilômetros por segundo. Para ajudar
um amigo, que precisava casar uma filha sem dote, São Nicolau atirou
do seu trenó um punhado de moedas de ouro pela chaminé, indo cair
dentro das botas que estavam secando na lareira do beneficiado.
Melchior, Gaspar e Baltazar não foram reis nem santos, apenas
magos. Presentearam o Menino Jesus com ouro (riqueza); incenso (di-
vindade) e mirra (longevidade).
Hoje o Natal tem função mais comercial do que religiosa. Mas,
com a crise atual, o bom velhinho está de saco vazio. Quem está de
saco cheio é o povo!
O primeiro dia do ano é o da confraternização universal. Devemos
entrar no ano com roupa nova e com as cores branca (paz e harmonia),
verde (esperança e confiança), azul (céu e o mar), rosa (amor, carinho),
amarelo (ouro, finanças) e vermelho (luta, pertinácia).
Perdoar as pessoas e não dever nada a ninguém. Ter algum di-
nheiro no bolso. Sapato novo para os primeiros passos, pois, segundo
os chineses, “uma grande caminhada começa com os primeiros passos”.
Comer lentilhas à meia-noite. Na tradição, Esaú vendeu a sua pri-
mogênita ao seu irmão Jacó, por um prato de lentilhas.
Simpatia: pegar nove sementes de romã e separar em três monti-
nhos, representando os Reis Magos. Engolir o de Melchior com um cá-
lice de vinho para ter alimento sempre; pegar o do rei Gaspar e jogar
por trás do ombro direito, para o passado; o do rei Baltazar, colocar na
carteira para ter dinheiro o ano todo.
E... pague a minha prenda!
Macktub!

14 Crônicas do Bariani
Outros perigos
do Araguaia
24/07/2003

Outros perigos comuns no rio Araguaia são os minúsculos candi-


rus, o mandi-chorão, o pintado, o poraquê (peixe elétrico ou treme-
-treme), a piranha e a arraia. Há duas espécies de carandiru: um de
mais ou menos um palmo, babento, que vem fácil ao anzol, mas não
é comestível. O outro carandiru é apenas uma minhoquinha que não
passa de dois centímetros, e se o turista for fazer uma necessidade
fisiológica dentro d’água, o candiru, devido a quentura do corpo do
freguês, penetra pela uretra, pelo ânus e... os recursos médicos aí são
poucos ou inexistentes.
Já aconteceu, em outros tempos, de chegarmos atrasados pela ma-
nhã para retirar piratingas fisgadas à noite nas pindas e encontrarmos
os peixes vazios, somente o couro e os ossos, devorados por bilhões de
minúsculos candirus. O mandi-chorão é frequente junto às cozinhas
dos acampamentos, catando restos de comida no fundo d’água. Como
o pintado, o mandi tem três farpas, ferrões venenosíssimos, que doem
e causam até ínguas. O poraquê (espécie de enguia) habita os lagos
sujos e uma esbarrada neste peixe é o mesmo que tocar num fio elétri-
co descascado: o freguês cai de costas; chega a acender uma lâmpada
elétrica.
Há várias espécies de piranhas, sendo a mais perigosa, a vermelha.
A piranha-preta é terrível, e as mais mansas são a branca e a chupita,
aquela piranha listrada de preto-e-branco. Não se deve entrar na água
com qualquer ferimento, mesmo não sangrando. Em poucos minutos o

15 Crônicas do Bariani
cardume deixa repousando suavemente, no fundo do rio, o esqueleto
branquinho de uma pessoa. Há um sistema telecomunicativo fabuloso
entre as piranhas. Devido à matança de jacarés as piranhas aumenta-
ram muito, infestando os rios e principalmente os lagos, que piranha é
o prato predileto de jacaré.
Agora vamos falar sobre a arraia. Arraia nunca matou ninguém,
mas já aleijou muita gente. A mais perigosa e mais comum é a arraia-
-de-fogo (pintas amarelas). A arraia-maçã não tem ferrão. As mais raras
são a bicuda, a borboleta, a elétrica e a pintada. O ferrão é em farpas
invertidas, como cauda de dragão; pisando na arraia o incauto recebe a
estocada, que ela arranca o ferrão dilacerando as carnes do indivíduo,
doendo doidamente por 24 horas. Não existe homem que não chore e
muitos soltam o barro; urinar, então, é regra sem exceção. A vítima não
deve tirar a parte ofendida fora da água, que o contato com o ar é que
faz doer mais. Deve enrolar um pano no ferimento ainda dentro d’água
ou mesmo colocar barro ou areia, contanto que vede o ar.
O veneno terrível está no próprio ferrão, devido ao lodo e demais
sujeiras. As arraias são mais frequentes nos rios do Norte, principal-
mente no vale araguaiano: o Araguaia, seus afluentes e inúmeros la-
gos. Portanto, cuidado nas águas paradas, sujas, lamacentas e folhas
podres acumuladas. A ferida é de cura difícil, prolongada, causando
entorpecimento, dormência, depois de 24 horas. Para evitar a estoca-
da, a terrível ferroada, é só entrar arrastando os pés no fundo d’água,
que a arraia, tocada, foge, só atacando, estocando, se pisar em cima.
Medicamentos contra ofensa de arraia há vários: anestesia de
dentista, permanganato de potássio, amoníaco e o principal, a xilocaí-
na (spray), que dá alívio imediato. A ferida deve ser preenchida com os
cristais do sal do permanganato. Tem aquela simpatia da mulher co-
locar a vagina no machucado, que traz alívio na hora. É só achar quem
se disponha a fazer a caridade, coisa muito difícil entre as sertanejas.
Se for aqui, na cidade...
Macktub!

16 Crônicas do Bariani
A bola
19/04/2014

A surpreendente vitória do Atlético sobre o Goiás foi como um


orgasmo: veio no finzinho. Sou atleticano desde que cheguei em Goiâ-
nia, em 1938, quando defendi o seu gol de 1939 a 1944. Foi no tempo
do amadorismo, quando os jogadores compravam o seu material e
faziam vaquinhas para a compra da bola e jogos de camisas.
Posteriormente, Antônio Acioly tomou conta do clube e pagava
tudo. Em reconhecimento, quando o clube foi murado, só em Campi-
nas com uma lista angariando assinaturas para que o estádio tivesse o
seu nome: Estádio Antônio Acioly. Foram 132 assinantes.
A bola, naqueles idos, era de cobertão (couro) e pesava quase um
quilo. Tanto é que raramente petardos diretos e mesmo cobranças de
faltas máximas passavam por cima do travessão. Diferente de hoje
em que a maioria dos chutes em gol e até pênaltis sobem fugindo do
objetivo. Atualmente, a bola é levíssima, pesando apenas 450 gramas.
No meu tempo, se a bola furasse, o jogo era paralisado até que se
a consertasse. Antes do surgimento da válvula, era de amarrar como
cadarço de botina. A câmara de ar, puxada pra fora do cobertão e co-
lada com remendo Michelin, depois colocada, enchida com bomba, o
bico dobrado, amarrado e dobrado, passando-se e apertando o tento
de couro nos orifícios laterais.
Quando chegaram as bolas de válvulas, se furasse, não tinha jeito.
Isso até que fui a São Paulo e aprendi, na fábrica Stadium, como pro-
ceder, sem aparecer o local dos novos pontos. Fato idêntico ao deste
domingo, quando o Atlético Clube Goianiense se sagrou campeão de
2014, se deu em 1943, entre o Atlético e o Goiânia. Este precisava de

17 Crônicas do Bariani
um gol para vencer o campeonato. Para o Atlético bastava o empate.
O tempo já estava esgotado, a torcida aguardando o apito do juiz, gri-
tando Campeão! Campeão!, quando surgiu um pênalti duvidoso con-
tra o Atlético. Os jogadores e os torcedores não concordaram e invadi-
ram o campo (Estádio Olímpico). Bate, não bate!
Os campinenses pressionaram a diretoria do clube: João de Brito
Guimarães, Edson Hermano, Moacyr Cícero de Sá, Calimério Machado,
Reinaldo Toni, mas a Federação Goiana de Futebol ordenou que o pê-
nalti fosse cobrado na quarta-feira, às 16 horas, com os portões fecha-
dos e os dois times completos, em campo. Mesmo com os portões fe-
chados, os campineiros estavam, desde após o almoço, empoleirados
nos muros, nas carrocerias dos caminhões, em cima dos ônibus, muitos
com escadas, todos na maior expectativa.
Os personagens principais da grande decisão eram apenas dois:
o goleiro, no caso, eu, e o batedor do pênalti, o Salsicha (Elso Rosa),
o maior chutador do Goiânia. As nossas pernas, minhas e do Salsicha,
tremiam como “varas verdes”. Se eu engolisse um frango, teria de me
mudar de Campinas. O juiz colocou a bola na marca do pênalti. Salsi-
cha pegou um afasto duns 10 passos. Eu o vi como um gigante pernal-
ta. Gingou o corpo pra lá e pra cá e veio firme! Foi aquela paulada! A
bola subiu, passou uns três metros acima do travessão e foi quebrar os
vidros do vitrô do vestiário junto ao muro da Avenida Paranaíba.
Os atleticanos, eufóricos, saltaram os muros. Fomos carregados
quase até Campinas. Não restou um só foguete nas lojas. O céu de
Campinas se enfumaçou. Virou tarde de agosto!
Macktub!

18 Crônicas do Bariani
Para-choques de
caminhões e seus saberes
02/03/2014

Toda expressão curta, saída da filosofia popular, que encerra sen-


tido completo, que diz tudo em resumo e que tenha um princípio de
verdade, é um ditado. São conceitos breves, ricos em imagens e de
efeito rápido na compreensão do ouvinte. Para o povo, é dito ou di-
tado. O folclore, que é um departamento da antropologia, estuda e
divide o ditado em vários ramos, como adágio, provérbio, anexim, afo-
rismo, máxima, refrão ou rifão e sentença. Resumindo, podemos cha-
mar tudo isso de filosofia popular, porque, nos adágios, ditados, etc.,
entram sabedoria, malícia, ironia, sátira e muita experiência de vida.
São frases filosóficas e humorísticas, ditas pelo povo, sabedoria popu-
lar, filosofia popular.
A sentença contém um sentido ou princípio geral: “Quem com fer-
ro fere, com ferro será ferido”. O provérbio tem caráter prático e popu-
lar: “Deus dá asas para quem não sabe voar”.
O aforismo é sentença moral: “Quem dá aos pobres empresta a
Deus”; “Não deseje para os outros o que não quer para si”. A máxima
é uma expressão que encerra um sentido indiscutível: “O pau, quando
nasce torto, até a cinza é torta”.
Os ditados são mais vivos na linguagem dos caminhoneiros, que
afixam suas filosofias nos para-choques de seus caminhões e rece-
beram, acertadamente, definição própria: filosofia de para-choques.
Caminhoneiro, palavra nova que substitui motorista ou o antigo cho-
fer, chauffeur, é gente acostumada com as dificuldades, vivendo mais

19 Crônicas do Bariani
tempo em viagem do que em suas casas, morando praticamente nas
cabines dos caminhões. Adquirem muita experiência de vida e levam
pelo Brasil inteiro, nas estradas e nas cidades, as suas filosofias.
Muito se escreveu sobre os para-choques dos caminhões, mas pen-
so que o mais completo trabalho no gênero está saindo agora, com a
folclorista Norma Simão Adad Mirandola, autora do excelente livro
sobre teares manuais: As Tecedeiras de Goiás, edição da UFG, 1993.
A autora pesquisou por 50 anos e registrou 1.308 ditados da filosofia
popular em ordem alfabética, todos em para-choques de caminhões
que viajam pelo Brasil afora, levando mensagens folclóricas, tal qual,
sem mudar ou acrescentar uma simples vírgula nas frases, muitas mu-
dando o sentido, como: “Bateu o pau quebra” (o pau quebra se bater).
Se colocar vírgula: “Bateu, o pau quebra” (Se bater, vai haver quebra).
Bom trabalho para colecionadores, pois há colecionador para tudo.
E aos que vão se casar, não se esquecerem do recado aqui do li-
vro: “Ter pai pobre é destino, ter sogro pobre é burrice”.
Vamos ver alguns dos mais conhecidos ditados, adágios ou pro-
vérbios, deste livro da Norma: “A mulher que se vende não vale o que
recebe”; “Boca que não merece beijo, pimenta nela”; “Correndo, só
Pelé ganhou dinheiro”; “Na estrada da vida não há retorno”; “Eu amo
a sogra da minha mulher”; “Frete e mulher feia eu não carrego”; “Fe-
liz foi Adão que não teve sogra nem caminhão”; “Gostoso 100 limi-
te”; “Hoje aqui, amanhã não sei onde”; “Inveja é falta de capacidade”;
“Jesus Cristo é o caminho”; “Lagoa que tem piranha, jacaré nada de
costa”; “Motorista é igual bezerro, só dorme apartado”; “Não aprendi
a dizer adeus”; “O sono indica o momento de parar”; “Papai, não corra,
não mata, não morra. Nós precisamos de você”; “Viúva é como lenha
verde: demora mas pega fogo”.
Com esse livro o folclore brasileiro fica enriquecido. Porque: Macktub!

20 Crônicas do Bariani
Contador de causos
25/03/2014

Jô Soares recomenda: “Para plateia velha, causos novos. Para pla-


teia jovem, causos velhos”. Como se sabe, um causo pode ser o alon-
gamento de uma piada ou de uma anedota, dependendo do modo que
são conduzidas. A piada é rapidinha como a piada de um pinto. A ane-
dota já é um relato maior. Quando uma história é contada, oralmente,
em linguagem popular, é um causo; se for escrita em linguagem lite-
rária, ela é um conto.
O bom contador de causo nasce com o dom, pode até ser semial-
fabetizado, tudo dependendo do modo, do jeito de contar, como foi o
caso do Geraldinho Nogueira. Há maus contadores que estragam um
bom causo, e já há outros que fazem sucesso com causos lá nem tanto.
Nem sempre um bom contador de causos é também um bom escritor,
e nem sempre um bom escritor é um bom contador de causos.
Humorismo se faz com expressões espirituosas para rir. Humo-
rista é aquele que também escreve humor, peças engraçadas para os
atores-cômicos. Nilton Pinto, da dupla com Tom Carvalho, é o humo-
rista, pois é ele quem escreve, produz os programas. Humorístico é o
que se refere a humor, como espetáculo humorístico. Cômico é o ator
de comédias, que representa nos palcos, como o palhaço no circo.
Engraçado é o espirituoso, cujos causos e piadas agradam sem ser
chato. Já o engraçadinho é o atrevido, o inoportuno, o indesejável, o
chato. O caçoísta critica, mexe com os outros, mas sem ofender. Brin-
calhão é aquele que chega animando, comunicativo, movimentando
o ambiente, brincando com uns e com outros. Pândego, também, é o
alegre, o que anima.

21 Crônicas do Bariani
O verdadeiro cômico é mesmo o palhaço de circo, que se apre-
senta caracterizado, sendo o ídolo das crianças, muitas vezes somente
fazendo graça, como os palhaços estrangeiros que não falam o por-
tuguês. Nas Folias de Reis há os palhaços que vão à frente, animando,
fazendo macaquices para a criançada e puxando os foliões. Nas cava-
lhadas os mascarados são verdadeiros palhaços a cavalo, exoticamen-
te caracterizados, alegrando e assustando o pessoal.
O lançamento do livro da Editora Kelps, Até Parece Mentira..., que
venho coletando e escrevendo há 20 anos, se dará no dia 27, quin-
ta-feira, às 20 horas, no nosso Instituto (Rua 82, nº 565, Setor Sul). A
capa é do cartunista do POPULAR, Jorge Braga; as ilustrações da ar-
tista plástica Maria Júlia Franco; o prefácio do jornalista Oscar Dias
e o comentarista, Jadir de Morais Pessoa, professor de Antropologia
da UFG. Serviremos pasteizinhos de pequi e de guariroba, paçoca da
Maura e amendoim-cavalo. Também, a cachaça Vale do Cedro (com o
degustador Gabriel Ortencio), chope do Glória e sucos naturais. Ainda,
apresentações musicais de Júlia Franco; Júlio Cesar, o mago da vio-
la, Marcus Biancardini e o garoto, violeiro-revelação Arthur Noronha.
Até Parece Mentira... contou com as participações de Batista Custódio
(personagem de Genésio David Amaral), Rogério Borges (O POPULAR),
Gil Perini, Celso Costa Ferreira, Doracino Naves, Lêda Selma, Hélio Mo-
reira, Ivany Ribeiro Machado, Renato Maurício, Ulisses Aesse (persona-
gem de Edson Costa), Odair Silva, Jeovah de Oliveira, compadre Cabral
e Eulício de Oliveira Lobo. O livro contém 325 páginas e custa R$ 30.
Contamos com as presenças dos amigos e dos que serão novos amigos.
Macktub!

22 Crônicas do Bariani
Sobre censo e fogões
23/05/2014

Construção aqui no Instituto, no Espaço Culinário Cozinha Goia-


na, um fogão a lenha e me lembrei da minha primeira publicação no
POPULAR, quando a crônica era batida à máquina e levada em mãos
à Redação. O jornalista Jaime Câmara, em 1991, ordenou ao Domicia-
no de Faria, diretor deste jornal, que as crônicas semanais passassem
a ser diárias, nomeando, além dos cronistas que já estavam, como o
seu velho amigo Mário Moraes e Jean Pierre, também nós quatro: José
Mendonça Teles, Carmo Bernardes, Brasigóis Felício e eu. Depois en-
traram Ursulino Leão e Belkiss Spenciere Carneiro.
Para relembrar, republico a minha primeira crônica, de 20/9/91 O
censo, os recenseadores e os fogões:
O Censo está aí. Há muita gente fugindo dos recenseadores, até
de umas mocinhas bonitinhas e bem preparadas, como a Rosa Maria,
que me visitou. Ela me disse que muitas pessoas, na sua área, que é a
dos bairros chiques, não aparecem, quando muito, mandam a empre-
gada dizer que os patrões estão viajando. Outras atendem apenas nos
interfones dos portões e a maior parte não gosta de certas perguntas
do questionário, como a idade, quando se trata de mulheres. Mas isso
tudo não deixa de ter a sua razão de ser, as pessoas se resguardando,
principalmente, de assaltos, sequestros e... do Leão.
Qual seria a população de Goiânia? Seiscentas mil almas? Somen-
te isso ou isso tudo? E quantas residências? Anteriormente o Censo
contava por fogos (fogões) das residências e não por pessoas. Consi-
derando que uma família é constituída de cinco pessoas, teremos 120
mil moradias e, portanto, 120 mil fogões consumindo gás em Goiânia.

23 Crônicas do Bariani
E se não tivesse o gás, haveria lenha para tantos fogões? Teríamos de
transformar todas as lavouras e terras mais em reflorestamentos? E
São Paulo e o Rio de Janeiro? E a Cidade do México, Nova York, Tóquio
e Pequim? E o gás como combustível alternativo vai durar a vida toda?
“O Petróleo é nosso?”, quer dizer, é renovável?
A solução será a evolução científica e isso dependerá de pesquisas.
Somente com as pesquisas surgirão novas fontes de energia. O ideal
para o consumo dos fogões seriam as energias alternativas, como a
hidroelétrica, largamente usada nos países ricos, mas cara nos países
do Terceiro Mundo, tanto para quem constrói como para os usuários.
As construções das usinas hidroelétricas abalam os orçamentos dos
governos e ocasionam o desequilíbrio climático, como aconteceu com
Itaipu e Tucuruí, um verdadeiro descontrole entre enchentes e secas.
A situação se inverteu: secas prolongadas no Sul e enchentes destrui-
doras no Nordeste.
Mas vai chegar um tempo em que a mão da tecnologia irá empur-
rar as nuvens carregadas de um ponto a outro dos territórios, princi-
palmente no Brasil, de extensão continental. Acontece que é o aperto
que faz o sapo pular e aqui no Brasil nunca vai ter perigo de um fogão
ficar sem cozinhar feijão e mandioca, que o brasileiro é criativo, o País
é super-rico em matérias-primas e, com serragem de madeira ou com
carvão de casca de coco, ou, ainda, bagaço de cana, nenhum fogão
vai parar. O meu tio Pedro Bariani, durante a Revolução Constitucio-
nalista de São Paulo, adaptou o caminhão a gasolina da serraria para
queimar álcool e rodou que foi uma beleza.
Fogão também queima álcool e a cozinha fica até mais cheirosa.
Macktub!

24 Crônicas do Bariani
Meus 50 anos de
literatura
16/08/2006

Quando, no limiar da vida, começamos a fazer coisas fora do co-


tidiano, não esperamos que os frutos se sazonem e comecem a ser
colhidos meio século depois. Molecote, de bola no pé, vara e anzol
na mão, e estilingue ao pescoço, esperava, ansioso, chegar aos 7 anos
para entrar no grupo escolar, aprender a ler e escrever, após as leitu-
ras dos raros livros que apareciam: Contos da Vovozinha e Contos da
Carochinha. Lia, repetidamente, e inventava outras estórias.
O caminho para chegar a escrever e publicar é liguento, puxando
uma coisa atrás da outra. Basta ter vocação. Ler, quase todos leem,
mas poucos escrevem e chegam a publicar. Neste ano, depois dos 50
de publicação do O Que Foi pelo Sertão (14 contos premiados e publi-
cados pelo jornal O Tempo, 1956), comecei a ser lembrado. Primeira-
mente, em março, dando o nome, na 19ª Bienal Internacional do Livro
de São Paulo, ao Espaço Goiás – Bariani Ortencio; em maio, pelo Cen-
tro de Cultura da Região Centro-Oeste (Ceculco), com homenagem
na União Brasileira de Escritores; no mesmo mês, pelos conterrâneos
de Igarapava (SP), que me honraram com o superlançamento do meu
penúltimo livro – A Fronteira – Revolução Constitucionalista de 1932,
merecendo até decreto oficial do prefeito. Na semana passada fui re-
cebido, com muito carinho, no projeto Balaio de Arte e Cultura – Edi-
ção Talentos Spaço Ville, pelo cantor e economista Lucas Faria. Foram
mais de 20 apresentações artísticas, com a presença de intelectuais
e de bons amigos. Júlia Franco, Jadir Pessoa e Jota Ferreira adentra-

25 Crônicas do Bariani
ram o salão apresentando a minha folia Senhora do Rosário, tendo eu
como alferes da bandeira.
Como teria de falar, além dos agradecimentos, constava que con-
tasse alguns causos. Apelei pelas informações humorísticas, para jus-
tificar o meu desespero numa área que não é a minha: a de ator. Co-
mecei dizendo que há muita diferença entre o escritor e o contador de
causos. Um escritor nem sempre é um bom contador de causos, como,
também, um bom contador de causos nem sempre é um bom escritor.
O bom contador já nasce com o dom, pode ser até analfabeto, e o su-
cesso depende do modo de ele contar. Foi o caso do Geraldinho No-
gueira. Há maus contadores de piadas e de causos que estragam uma
boa piada e um bom causo. E há os que fazem absoluto sucesso com
piadas velhas e causos ruins. Jô Soares sentencia: “Para um público
novo, piadas velhas, e para um público velho, piadas novas”.
Um conto ou um causo é um acontecimento contado ou escrito,
com desfecho que surpreende o leitor ou o ouvinte. Quando a histó-
ria é contada em linguagem coloquial, popular, é um causo. A mesma
história escrita em linguagem literária, já é um conto. Na decoração
do Spaço Ville, um banner enorme, com a minha foto, pelo Carlos Sen-
na, contendo o poema O Dono da Bola, impresso e lido pela autora
Bete Caldeiras Brito, secretária do Instituto Histórico e Geográfico de
Goiás: “Cedo chegou/ quis ficar/ fixar e ficou/ Lidou na lida/ madeira
esculpida/ costura cosida./ Menino moleque/ o dono da bola. / Rasga-
da... emendava/ como se nova fosse./ Consertava a jogada/ impondo
presença/ goleiro escalado/ só bola ausente./ A melodia o conquista:/
escreve, vende/ produz, diversifica./ Pesquisa, publica/ preserva a cul-
tura/ resguardando raízes./F olclore o fascina/ a arte o seduz/ a escrita
o domina./ – Conhece de tudo. De tudo um pouco./ – Um pouco, não!/
De tudo, um montão!”
Obrigado, gente! Macktub!

26 Crônicas do Bariani
Picolé
27/12/2002

O picolé substituiu a tradicional guloseima infantil, o pirulito. Que-


ria agradar uma criança era dar-lhe um pirulito, que virou até nome
de palhaço de circo. Todo cara muito magro era apelidado de pirulito.
Tem até o ditado que o fulano é tão mau que “toma até pirulito de
menino!”. Depois veio o picolé, mas bem depois do sorvete, que substi-
tui, atualmente, qualquer sobremesa. Tem problema com sobremesa?
Apele para o sorvete, que agrada todo mundo.
Sou do tempo que o sorvete era vendido em carrinho de 70 cen-
tímetros quadrados e alto como uma pequena torre, com duas rodas
grandes, desproporcionais. O copinho de papel duro era preenchido
com uma colher (das de sopa) e custava 100 réis, um tostão (décima
parte do “mil-réis ou destões”). Não tinha pazinha, era lambido. E se
a pessoa incauta metesse os dentes cariados na massa gelada, sentia
uma tremenda dor fina que subia pela cabeça, fechava os olhos, abria
a boca, o sorvete derretia pela quentura da boca e caía no chão. Se al-
gum cachorro fosse aproveitar e desse também uma dentada, largava
e saía ganindo. Presenciei isso várias vezes, pois fui sorveteiro na mi-
nha adolescência, trabalhando na Sorveteria Paulista, do Chico Ford,
em Igarapava, que já foi Santa Rita do Paraíso e Porto das Canoas,
margeando o Rio Grande.
O picolé surgiu por lá na década de 30, era redondo e com o pa-
lito redondo, também, e se chamava pau-gelado. Não havia malícia
e crianças e senhoritas, senhoras e senhores, chupavam pau-gelado
numa boa. Naquela época surgiu o Toddy, que foi um sucesso, substi-
tuindo o chocolate nos sorvetes. Mas foi com xarope bem forte, gros-

27 Crônicas do Bariani
so, de chocolate que fiz, pela primeira vez, na minha terra, o Eskimó.
Havia picolé, aliás, pau-gelado somente de creme, de chocolate e de
groselha. Para o Eskimó o xarope era colocado superquente em uma
vasilha tipo coqueleteira e o pau-gelado introduzido e retirado rapi-
damente, que saía com a crosta de chocolate já seca, e era só enrolar
no papel-manteiga. Este era vendido a 200 réis.
Hoje, com o avanço vertiginoso da industrialização, os doces ge-
lados progrediram muito e não se acha mais um picolé redondo pra
matar saudade. Mas o tal avanço subiu, deu piruetas, diversificou e
chegou ao cerrado, divulgando a nossa cultura (em dois sentidos), pois,
dos primitivos apenas de creme, de chocolate e de groselha, chega-
mos, com a pergunta comuníssima, da criança e até nós, adultos, abrir
o carrinho do picolezeiro e perguntar: “Picolé do que que tem?”, que
além dos comuns, ele responde: “Tem de pequi, tem de murici, tem de
araticum, tem de jatobá, de araçá, de gabiroba, de fruta-de-ema, de
fruta-de-lobo, de mama-cadela, de marmelada-de-cachorro...” Daqui a
uns tempos vamos encontrar picolé de coco macaúba, de guariroba...
tudo bom demais da conta!...
Uma sorveteria no Setor Coimbra só trabalha com as frutas do
cerrado, que são delícias puras, valorizando e preservando o cerrado,
que é o nosso principal hábitat, aqui no Brasil Central.
Macktub!

28 Crônicas do Bariani
O tempo apaga tudo
12/01/2006

De fato, o tempo apaga tudo, mas não deveria ser assim, princi-
palmente as memórias dos reconhecidos valores que já se foram. O
ano começou com uma reportagem sobre o Bairro Feliz, por um jornal
diário. Registra que o bairro abriga muitos jornalistas, músicos, artistas
e escritores, nominando vários, os principais. Fiquei feliz e triste, ao
mesmo tempo, pois não li referência nenhuma sobre os maiores escri-
tores que residiram e morreram lá. Anatole Ramos e Yêda Schmaltz.
Mereciam, pelos menos, uma simples referência para a juventude to-
mar conhecimento que são conterrâneos de dois expoentes da litera-
tura em Goiás.
A reportagem biografa o nosso querido Juvenal de Barros, jorna-
lista e mestre cerimonial do Palácio das Esmeraldas e da Assembleia
Legislativa. Disserta, com ilustrações em cores, sobre a escritora Dirce
Leite, que usa o pseudônimo de Yaciara Nara e enumera os seus mui-
tos livros publicados; a querida professora Marta Machado. Também,
o escritor e compositor Humberto de Medeiros Noleto, com as suas
poesias e crônicas. O artista plástico que resume o seu grande nome
José César Teatini de Souza Clímaco em Zecésar, professor de gravu-
ras. O músico Diogo Ramos, trompetista da Banda Musical da Prefeitu-
ra. E até do homem mais belo do bairro, Pedro Henrique.
Tudo bem, há bons e ótimos profissionais da nossa cultura espa-
lhados por todos os mais de 600 bairros da capital. Mas e o Anatole
e a Yêda? O Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, pelo seu novo
presidente, o escritor Aidenor Aires, envia cartão de boas festas aos
membros, com um enunciado histórico da Yêda Oscarlina Schmaltz:

29 Crônicas do Bariani
“Goiás é um homem: Pedro e sobre esta pedra, se edificou sobre a ter-
ra vermelha, o princípio do futuro”. Ela é neta do grande poeta pionei-
ro do modernismo em Goiás, Demóstenes Cristino. Nasceu em Recife,
em 1941, mas veio ainda molequinha para cá. Yêda jogou em todas
as posições das letras e das artes, desde poesia, prosa e artes plásti-
cas. Professora de Letras e Artes nas Universidades Católica e Federal.
Premiada várias vezes em Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro. São 19 as
suas obras publicadas, como Caminhos de Mim; Tempos de Semear;
Secretária; O Peixenauta....
Também temos muito o que falar sobre o grande amigo e profissio-
nal das letras Anatole Ramos, que foi advogado, pracinha na 2ª Gran-
de Guerra, professor de Português e Literatura, firmou-se mais como
jornalista, desde o Cinco de Março, passando por todos os jornais que
foram surgindo. Crítico literário ferino e ganhador de muitos concur-
sos, criticava muito os concursos de “cartas marcadas”. Usava colocar
pingos de cola entre algumas páginas dos seus trabalhos concorrentes
para ver se a comissão julgadora lia todos os trabalhos. E constatou
que quase sempre não lia, caracterizando, aí, as famigeradas “cartas
marcadas”, que tanto apavoram os concorrentes (honestos). A sua ba-
gagem literária soma oito livros.
Seu hobby foi marcenaria. Ele praticava curiosidades numa oficina
improvisada nos fundos da sua residência. Anatole faleceu em 1994,
aos 70 anos. A Yêda recebeu uma régia homenagem da União Brasilei-
ra de Escritores (UBE), emprestando o seu nome ao auditório, o salão
nobre onde se encontra a galeria dos presidentes da entidade. O Ana-
tole é apenas patrono da cadeira do Valdenes Menezes na Academia
de Letras, Ciências e Artes de Inhumas (Alcai). Esperamos que seja justi-
çado. A palavra está com vocês, pioneiros e moradores do Bairro Feliz.
Macktub!

30 Crônicas do Bariani
Sua majestade, a cachaça
03/08/2006

Cachaça sempre foi sinônimo de deboche: “Aqui só dá cachacei-


ro!”, “vai curtir essa cachaça pra lá!”, “cachorro que morde bode, mu-
lher que erra uma vez, e homem que bebe cachaça, nem o diabo pode
com os três”... e vai por aí afora.
Fabricante de cachaça não aceita ser cachaceiro, mas empresá-
rio, industrial e, quando muito, alambiqueiro. Dizem que a cachaça é
originária da Índia, e que começou a sua produção no Brasil, em São
Vicente (SP), em 1526, e em Olinda (PB). Uma das muitas lendas reza
que escravos colocavam sempre a garapa, o caldo da cana, no tacho,
e iam mexendo e fervendo até pegar o ponto de melado.
Certo dia, quando o feitor estava muito exigente para um serviço,
eles, sem dar tempo para ferver bastante, como exigia a fazeção do
melado, esconderam o tacho e deixaram para o dia seguinte. Quando
foram buscá-lo, o caldo estava azedo, mas, com medo de jogarem fora,
colocaram o caldo novo por cima e ferveram juntos, mexendo bastan-
te. Acontece que o azedo, fermentado, se tornou álcool e evaporou. O
restante foi formando gotículas no telhado da rebaixa do engenho e,
como goteira, foi pingando. Era a cachaça, daí o nome pinga.
E quando dançavam, ali mesmo, no engenho, os pingos, caindo
nos seus rostos, na boca, os alegravam bastante. Sempre que queriam
ficar alegres, dançavam ali e “lambiam” a pinga. E quando pingava nas
suas costas feridas pelas chibatadas do feitor, ardia; daí o nome de
água ardente.
Com o tempo, a pinga foi sendo aprimorada e caiu no gosto das
demais pessoas, começando pelos feitores e senhores de escravos. A

31 Crônicas do Bariani
cachaça, agora, é a “bebida oficial do Brasil”. Nada de pinga e nada
de aguardente. Cachaça vem de cachaza (castelhano), que significa
vinho das borras (da uva). Há umas 30 mil marcas brasileiras. A brasi-
leiríssima cachaça artesanal, cuja produção anual atinge 400 milhões
de litros, da qual só é exportada 1%, tem muitas virtudes, pois sara
doenças, esquenta no frio, esfria no calor, desinibe e desperta, alegra
na tristeza e consola na paixão, faz mudo falar, é alívio na dor e força
na fraqueza, anima velório e sustenta pagode, anestesia e desinfeta e...
Tivemos ótimas cachaças goianas no final do século passado,
como a Estrela, de Trindade; de Quirinópolis e Bom Jardim, a Lajimei-
ra, a Pântano, a Gradação, a Cachoeirinha e a Bom Jardim; em Orizona,
a Fernandinha e a Orizonita, para citar apenas algumas. A Vale de Ce-
dro – Reserva Especial Ouro, safra de 1999, com embalagem de luxo,
teve lançamento festivo aos 19 deste mês, no município de Palestina
de Goiás, pelo 57º aniversário do seu proprietário, o empresário Carlos
Heitor de Morais. Pessoas ilustres que marcaram presenças no even-
to: de Jataí, Luiz Azeredo Coutinho, da Folha de Sudoeste, com vários
colegas, e o tenente-coronel Ricardo Evangelista, comandante do 41º
BIMTz; de Iporá, Adão Dias da Silva e Naildo, do jornal Espaço Livre;
o jornalista Valdecy, do oeste goiano; Valteir Santos, da Rádio Nova
Onda; o empresário Vilton Pereira, com os seus filhos Augusto, Túlio e
Vilton Jr., além de amigos e familiares. De Goiânia, nós, com a família,
e o antropólogo, professor da UFG, Jadir de Morais Pessoa, com a am-
bientalista dra. Cida, dentre outros. Vamos tomar uma “saideira”?
Macktub!

32 Crônicas do Bariani
Antônio Poteiro, oitentão!
05/11/2005

Antônio Batista de Souza, o Antônio Português, que conheci no


final da década de 50, chegou à plenitude do cacho das bananas ma-
duras. À época, eu, com uma cerâmica artística ao lado de uma outra,
de telhas e tijolos, na Fazenda Serrinha, entre Aragoiânia e Guapó,
precisava de um artesão para potes e moringas. Fui à cerâmica de Pe-
dro Neto, para que o seu ceramista, Seu Américo, me indicasse bom
profissional. Recomendou-me seu filho, Antônio, que residia em Uber-
lândia e, apesar de ainda novo, estava aposentado, pois havia sido aci-
dentado numa perna.
Contratei o homem. Franqueei-lhe um cômodo nas dependências
da minha casa em Campinas, onde ele ficava, quando vinha receber,
todo mês. E assim lá na Serrinha ficou o Antônio Português rodando
torno, produzindo potes e moringas. Passou a ser chamado, pelos co-
legas, Antônio Poteiro. A minha mãe se tornou sua comadre, batizan-
do alguns de seus filhos.
Os antigos diziam que a oportunidade é como um cavalo arreado
que passa apenas uma vez na sua porta, mas não para. E que a gente
deve correr e pular em cima, pois raramente ou jamais voltará a pas-
sar. Acontece que o Poteiro conseguiu montar em dois cavalos-opor-
tunidades: um, da Regina Lacerda, e o outro, do Siron Franco.
Eu e a Regina havíamos montado uma loja de artesanato, a Ga-
mela, na Anhanguera. Quero antes dizer que em Goiás não se fala em
folclore sem mencionar Regina Lacerda. Só em Goiás, não; também no
País e até no exterior; tanto é que ela recebera um pedido para enviar
algumas peças do artesanato goiano à Feira de Artesanato Internacio-

33 Crônicas do Bariani
nal de Milão. Na Serrinha trabalhava, junto ao Poteiro, o grande primi-
tivista e artista Caetano Somma, encarregado da pintura da produção
da indústria. Ele fazia pranchetas de argila com temas folclóricos.
Regina encomendou-lhe umas peças para enviar à Feira de Mi-
lão e perguntou ao Poteiro se ele não fazia também figuras. Ele disse
que sabia fazer figuras, mas eram coisas muito feias. Regina pediu-lhe
para que fizesse algumas, que quanto mais feias ele achasse, mais bo-
nitas ela achava. E assim a Gamela começou a comercializar os seus
primeiros trabalhos artísticos. Depois, a segunda oportunidade, a de
pintar, foi com o cavalo arreado do Siron, que sempre nos visitava.
Siron estava saindo daquela fase de retratar madames da socieda-
de goianiense. Viu as cerâmicas do Poteiro e ordenou: – Você vai pas-
sar essas coisas aí pra telas. Respondeu que não ia dar certo, porque
de tinta ele só conhecia as de caiar paredes e de tingir roupa. Siron
lhe levou telas, tintas e pincéis e transformou o ceramista artesanal
no famoso pintor primitivista que é ele hoje. Mas isso não foi rápido,
não. Aconteceu bem depois. Antônio Poteiro se mudou para Goiânia
e eu lhe trazia pastões de argila marombada (a vácuo), enrolados em
plásticos. Minha mãe lhe cedeu um cômodo em Campinas, onde ele
guardava a sua produção, levando de bicicleta às feiras.
Em abril de 1960, pela inauguração de Brasília, estava eu distri-
buindo, em vários pontos estratégicos de venda, caixas do meu disco
Brasília-21 de Abril, que se transformou em hino da Novacap, quan-
do deparei com o Poteiro em um gramado tentando vender os seus
produtos. Disse-me que não havia vendido nada. Deixei com ele uma
caixa com 25 discos e recomendei-lhe que dissesse em alto e bom som
que o presidente Juscelino dava uma mensagem no começo do disco,
sobre a construção de Brasília. Até hoje não sei se ele deu conta de
vender algum disco.
Macktub!

34 Crônicas do Bariani
Quanto mais se vive,
mais se aprende
11/10/2005

Quanto mais se vive, mais se aprende e... morre-se sabendo quase


nada. A carteira de habilitação da gente só se sabe quando está ven-
cida, pelas blitze. As nossas leis de trânsito vieram lá dos países do
Primeiro Mundo, França e Estados Unidos, e só foram sofrer transfor-
mações em 1998. Até então, a CNH não tinha vencimento. O portador
ficava cego, coxo, demente, e a carteira valendo. A minha, por exem-
plo, valeu por 48 anos (12/6/50). Passei por duas revalidações, uma
pega pela blitz, e a outra pelo Detran.
Aconteceu que a minha CNH estava com mais de 19 pontos de
multas e eu tive de freqüentar um curso na Coopertran. As multas não
tinham como defender, escapar, apelar, pois as infrações foram foto-
grafadas até em cores, com todo o veículo, principalmente, a placa.
Jogar a culpa nos outros, sendo que o pessoal é aqui de casa, não deu!
Perambulei pelos imensos blocos do Detran, encontrei funcionários
ótimos, amáveis, que me orientaram, passei nos exames médicos, mas
não houve como escapar do curso.
Sábado e domingo pela manhã, 70 colegas, com o instrutor de
trânsito Roberto Mendes. Sábado, à tarde, Primeiros Socorros, com o
sargento do Corpo de Bombeiros Luiz Carlos, ambos competentes, co-
municativos, supereducados, jocosos, pacienciosos, trabalhando bem
com a mímica e com palavras certas. As aulas de trânsito foram mais
agradáveis do que as de Primeiros Socorros, pelo interesse, pois a gente
chega à conclusão que se sabe muito pouco de trânsito. Quanto ao so-

35 Crônicas do Bariani
corro, é uma índole que trazemos conosco. Foram 15 horas aprazíveis,
durante as quais aprendemos o que achávamos que sabíamos muito.
E quanto mais tempo temos de CNH, mais desleixados somos. Ape-
sar da gente “saber tudo”, se conscientiza de como socorrer, de como
não matar e de como não morrer. Em todos os itens vê-se a preocu-
pação do governo em preservar, em amparar a vida do cidadão, com
leis compatíveis que a maioria ignora ou passa por cima. Quando va-
mos viajar, por exemplo, a preocupação é de abastecer o carro, olhar
os óleos e a água, calibrar os pneus, mas nunca nos lembramos ou
ligamos para o estepe. E já pensou furar um pneu na estrada, retirar a
enorme bagagem do porta-malas, colocar a trenheira no acostamen-
to e ter a desagradável surpresa de pegar o pneu murcho? E a correia
dentada, a mangueira, os fusíveis, as lâmpadas sobressalentes? E a re-
gulagem dos faróis?
No curso, o que mais impressiona são os vídeos mostrando as im-
prudências, as irresponsabilidades dos condutores, com cenas que até
embrulham o estômago da gente. Mas há também burrices, principal-
mente em placas de estradas, como curva perigosa à frente. Ora, via-
jante não é Curupira, que tem os pés pra trás. Deveria ser curva peri-
gosa a 200 metros, ou à esquerda ou à direita. Também o crime infame
de erros de alguma placas indicativas: Rio Urú, Itauçú A 5 kms.
O interessante do curso é a presença marcada por um sistema
moderno de computação, pelas impressões digitais. Esse sistema de-
veria ser também empregado nos vestibulares, evitando fraudes, uns
fazendo provas em nomes de outros. No final chega-se à conclusão de
que todas as imprudências giram em torno da irresponsabilidade, a
falta de atenção e a velocidade descontrolada. E a moral da história é
a sabedoria popular: “Correr não é pressa!”
Macktub!

36 Crônicas do Bariani
Ecologicamente
correto e incorreto
11/08/2007

O universo foi construído absolutamente correto com a nature-


za. Antes, tínhamos a chuva das flores em maio; a do caju em julho
e, em 8 de setembro, o roceiro estava com o milho escolhido na cuia
para semear, porque no dia anterior chovia, impreterivelmente, dando
início ao tempo das águas. 19 de março, era a enchente de São José,
encerrando o tempo chuvoso. Depois vieram as grandes hidrelétricas,
alterando a meteorologia, os desmatamentos irresponsáveis, princi-
palmente os ciliares, e os milhões de escapamentos de veículos moto-
rizados fumegando, poluindo, esquentando a atmosfera.
Mas a gente saindo por aí ainda se dá com sítios ecologicamente
corretos. Foi o que presenciamos na nossa viagem de 300 quilômetros
até Palestina de Goiás, quando fomos visitar o genro Heitor, que ani-
versariava.
Assim que o carro ganhava estrada, os capões-de-mato nos des-
lumbravam com a mesclagem vermelho-roxa dos muitos nós-de-por-
co, também conhecidos por cega-machado, mas cujo nome é aricá.
Os ipês amarelos na cultura e as caraíbas no Cerrado, começando a
pintar. Nas beiras dos córregos, as sangras-d’água pintando o verde
com folhas alaranjadas salpicadas. Veredas exuberantes de buritizais
penteados pelo vento.
Durante o trajeto, dois veados campeiros pulam na frente do car-
ro e saem paralelos em corrida de saltos, sem jeito de deixar o leito
da estrada, até que resolvem e se embrenham no mato. No descam-

37 Crônicas do Bariani
pado, perdizes grandes, como galinhas de terreiro, a levantarem voos
quase em cima da Parati. Também, quati e tamanduá mortos, vítimas
da maldade dos motoristas, além de um gambá e uma saracura, que
jamais cantará os seus “três-potes”. Na casa da fazenda, ao lado da
indústria Vale do Cedro, show de plantas ornamentais, que a Suely
cuida com carinho maternal. São canteiros compridos de uma espécie
aqui, outros canteiros ali e, como o terreno permite degraus, tem-se a
impressão de um pequeno jardim suspenso de Babilônia. Inhambuzi-
nho chororó, das perninhas vermelhas, tentando adentrar a cozinha.
Um casal de seriemas, também ali na porta, comendo na bacia dos
cachorros, Sansão e Dalila.
Dois casais de pássaros pequenos, da família da gralha, comen-
do mamão no estaleiro próprio para alimentar pássaros soltos, livres;
além destes, sabiás, sanhaços, tejos e pássaros -pretos, que, em agra-
decimento à comida, saltam para os vasos de flores dependurados na
área de serviço, estalando os bicos em cantos agudos, com direito a
repiques e a volteios de voz.
Mas toda a graça, beleza e encanto acabam entre Israelândia e
Iporá, buracos e crateras rendando o asfalto. Aí tem início o bailado
lento, “cavalheiros e damas”, caminhões e jamantas, ônibus e gaiolas,
automóveis e peruas, furgões e caminhonetes, no vaivém, rodando em
passos sem compassos, procurando espaços, pares separados numa
dança marcada com a sinfonia dos buracos, pela batuta do maestro
governo. É lindo! Mas é uma pena!...
Macktub!
PS: Amigos do Araguaia – “Os lagos estão para o Araguaia assim
como os manguezais estão para o mar: são imprescindíveis para a re-
produção das espécies do rio. Por isso as áreas de grande concentra-
ção de lagos conectados ao rio, como a Fazenda Aricá, em Aruanã,
devem ser preservadas em forma de Reserva Particular do Patrimônio
Natural ou outra” (Jadir Pessoa, antropólogo).

38 Crônicas do Bariani
Também rezo, e muito!
22/04/2006

Li a crônica do Ursulino Leão, onde relata as suas orações apren-


didas de berço, modificando-as, ao seu modo. Pois eu também sou um
grande rezador. Rezo, ao me deitar e ao me levantar, uma Ave Maria,
um Padre Nosso, uma Salve Rainha, a oração a Nossa Senhora Apare-
cida, o Salmo 90 (da Proteção e da Confiança), o Credo (Símbolo dos
Apóstolos); depois volto ao Pai Nosso e termino com a Ave Maria.
Pelas manhãs, no Bosque dos Buritis, faço uma prece ao Criador,
a Jesus-Irmão, e a Nossa Senhora-Mãe, agradecendo por tudo e por
todos. Mas não vou certinho, como aprendi, não; faço, também, modifi-
cações, como: na Ave Maria termino com “para sempre, amém”, e não
“nossa morte”, pois detesto a palavra morte. No Pai Nosso, termino
com “Vós que sois o poder e a glória”. No Credo, digo: “Em Jesus Cris-
to, nosso irmão e Senhor” (tiro o “filho único”). No Salmo 90 faço uma
poda e acrescento outros dizeres.
Ao adentrar o escritório rezo uma Ave Maria em frente ao retrato
de dona Josephina, minha mãe, e um Pai Nosso, em frente ao do sr. An-
tônio, meu pai, que já se foram. Não viajo sem rezar nem me levanto
com o pé esquerdo.
O nosso país é um contraste, porque é muito rico e o seu povo,
muito pobre, onde os “representantes do povo”, ao invés de cumpri-
rem a sua missão, que é de proteção aos cidadãos, roubam-lhes tudo,
a começar pela moradia, a merenda escolar, os remédios do SUS, o
aumento dos salários miseráveis dos professores, até o subemprego,
enfim, tiram-lhe a condição digna de viver, levando os humildes bra-
sileiros para a condição vegetativa, privando-os, enfim, da alegria da

39 Crônicas do Bariani
vida. E, ao invés de serem julgados pelas CPIs corporativistas, o certo
seria ou é, pela Justiça comum, sentados nos bancos duros dos réus.
Em alusão a essa desumanidade, apelei para a Divindade, criando
uma Oração pelos Humildes, que está no meu livro à espera de edito-
ra, Shoppings de Cristo: “Piedade, Senhor! Para os que não têm onde
morar, e para tantos outros que não sabem onde moram. Para os que
não comem por não poderem comer, e para muitos outros por não
terem o que comer. Piedade, Senhor! Para os que não andam por não
poderem andar, e para tantos outros que andam sem ter para onde ir.
Para os que se contentam com um pedaço de pão, enquanto outros
não se satisfazem com a fartura. Piedade, Senhor! Para os que sorriem
com a dor na doença, enquanto outros clamam em plena saúde. Para
os que se alegram na tristeza, enquanto outros se entristecem na ale-
gria. Para a luta desigual entre os pobres de bens e os ricos, pobres
de espírito. Piedade, Senhor! Não para esse país que é muito rico, mas
para o seu povo que é muito pobre. Não para os que se sentam à fren-
te, mas aos que estão muito atrás. Piedade, Senhor! Os homens que
nos sustentam não têm o que comer, enquanto os que os escravizam
estão fartos. Os poderosos praticam a injustiça em nome da Justiça, e
estão cada vez mais poderosos e impunes. Piedade, Senhor! Crianças
morrem antes de nascer, e a maioria que nasce é marginalizada. Pie-
dade, Senhor! Não para mim, que me destes muito, mas para os humil-
des sem esperança...”
Maktub!

40 Crônicas do Bariani
Expediente
Texto: Clenon Almeida
Edição: Luiz Spada e Rodrigo Hirose
Edição-executiva: Silvana Bittencourt
Arte: André Rodrigues e Eric Damasceno Kaji

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