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MIGALHAS EVANGÉLICAS

Temas de meditação para todos os dias do ano

Pe. Theodoro Ratisbonne


DIREÇÃO E ORGANIZAÇÃO:
Pe. Jenuário Béo, nds

DIAGRAMAÇÃO, REVISÃO E CAPA:


Joel M. Moreira

Ratisbonne, Theodoro, 1802-1884


Migalhas Evangélicas / Theodoro Ratisbonne –
São Paulo: Sion, 2011.

1. Espiritualidade 2. História de Sion 3. Liturgia


Diária

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ÍNDICE:

Observações 7
Apresentação 8
Prefácio 9
ANO LITÚRGICO
ADVENTO
I SEMANA DO ADVENTO 14
II SEMANA DO ADVENTO 20
III SEMANA DO ADVENTO 26
IV SEMANA DO ADVENTO 32
VÉSPERA DE NATAL 38
NATAL 39
OITAVA DE NATAL
FESTA DE SANTO ESTEVÃO 40
FESTA DE SÃO JOÃO EVANGELISTA 40
FESTA DOS SANTOS INOCENTES 41
FESTA DA CIRCUNCISÃO 44
FESTA DA EPIFANIA 48
TEMPO COMUM (I PARTE)
II SEMANA 60
III SEMANA 66
IV SEMANA 73
V SEMANA 78
VI SEMANA 84
VII SEMANA 90
VIII SEMANA 96
IX SEMANA 102

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QUARESMA
QUARTA-FEIRA DE CINZAS 104
I SEMANA 107
II SEMANA 113
III SEMANA 118
IV SEMANA 124
DOMINGO DA PAIXÃO 130
DOMINGO DE RAMOS 136
SEMANA SANTA
QUINTA-FEIRA SANTA 139
SEXTA-FEIRA SANTA 140
SÁBADO DE ALELUIA 141
DOMINGO DE PÁSCOA 142
TEMPO PASCAL
DOMINGO IN ALBIS 148
II SEMANA 154
III SEMANA 161
IV SEMANA 166
V SEMANA 170
QUINTA-FEIRA ASCENSÃO DO SENHOR 173
PENTECOSTES 179
TEMPO COMUM (II PARTE)
X SEMANA 180
SANTÍSSIMA TRINDADE 184
XI SEMANA DO TEMPO COMUM 185
QUINTA-FEIRA SANTÍSSIMO SACRAMENTO 187
XII SEMANA TO TEMPO COMUM 190
FESTA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS 194

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XIII SEMANA DO TEMPO COMUM 196
XIV SEMANA 202
XV SEMANA 207
XVI SEMANA 213
XVII SEMANA 219
XVIII SEMANA 225
XIX SEMANA 231
XX SEMANA 236
XXI SEMANA 242
XXII SEMANA 248
XXIII SEMANA 253
XXIV SEMANA 259
XXV SEMANA 264
XXVI SEMANA 270
XXVII SEMANA 276
XXVIII SEMANA 282
XXIX SEMANA 287
XXX SEMANA 293
XXXI SEMANA 298
XXXII SEMANA 304
XXXIII SEMANA 310
XXXIV SEMANA 316
PRÓPRIO DOS SANTOS
APRESENTAÇÃO DE JESUS NO TEMPLO 322
SÃO JOSÉ 323
ANUNCIAÇÃO DA SANTÍSSIMA VIRGEM 323
SÃO JOÃO BATISTA 324
SÃO PEDRO E SÃO PAULO 325

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VISITAÇÃO DE NOSSA SENHORA 326
ASSUNÇÃO DA SANTÍSSIMA VIRGEM 327
NATIVIDADE DE NOSSA SENHORA 328
SANTOS ANJOS DA GUARDA 329
FESTA DE TODOS OS SANTOS 330
COMEMORAÇÃO DOS FIÉIS DEFUNTOS 330
APRESENTAÇÃO DA SANTÍSSIMA VIRGEM 331
IMACULADA CONCEIÇÃO DE MARIA 332
CORAÇÃO IMACULADO DE MARIA 333

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Observações

Este livro foi editado baseado na sua primeira edição em


língua portuguesa, em 1941, pela editora Vozes. Por conta
disto, foram feitas algumas alterações e atualizações tais como
se segue:

 Algumas palavras da língua portuguesa que caíram em


desuso foram substituídas por seus sinônimos
correspondentes, para melhor compreensão do texto;

 O texto foi atualizado de acordo com as novas regras do


acordo ortográfico, assinado em janeiro de 2009;

 A nomenclatura do calendário litúrgico utilizada pelo


autor foi alterada com a reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II. Com isso, alguns períodos foram
modificados. O período do atual Tempo Comum, por
exemplo, era chamado 1ª, 2ª, etc... semanas depois da
Epifania (ou depois do Pentecostes, no caso da 2ª parte).
Com isso, esta nova edição foi atualizada de acordo com
o novo calendário litúrgico, pensando na possibilidade de
manuseio diário do livro, ainda nos dias de hoje. No
entanto, há de se observar que as referências bíblicas
deste livro não correspondem necessariamente às do
atual calendário litúrgico.

O revisor.

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Apresentação

Este é um livro de meditações litúrgicas, feito pelo fundador


dos Religiosos de Nossa Senhora de Sion. É um texto antigo
com um sentido sempre novo. Este livro foi publicado pela
Editora Vozes em 1941 e reeditado em 1950. Os Religiosos de
Sion, não pretendendo comercializá-lo, fizeram esta cópia para
uso interno a fim de enriquecer todos os espíritos que
procuram alimentar-se da Palavra de Deus.
O Pe. Theodoro Ratisbonne, fundador da Congregação dos
Religiosos de Nossa Senhora de Sion, escreveu suas
meditações para as Religiosas de Sion, partindo do princípio
que a busca amorosa da Palavra e Deus é uma oração.
São trechos com o título de "Migalhas", mas que é
verdadeiro alimento espiritual para pessoas que desejam
meditar a Palavra. É um método que procura responder à
pergunta dos apóstolos: "Senhor, ensinai-nos a orar". É na
Palavra, essência da Encarnação, que o autor encontra o
fundamento de todo e qualquer método de espiritualidade.
Tenho certeza de que estes escritos não envelheceram e
poderão ser muito proveitosos para os que buscam a Deus.

Pe. Jenuário Béo, nds


Superior Geral dos Religiosos de N. S. Sion

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PREFÁCIO

Estas humildes migalhas, por nós colhidas no banquete da


Palavra evangélica, servem, há muitos anos, de alimento às
religiosas de Nossa Senhora de Sião. O desejo de contribuir à
edificação de outras Comunidades e de oferecer algum consolo
espiritual a maior número de almas levou-nos à publicação
deste manuscrito.
Bem sabemos que não faltam livros neste gênero. Mas é a
Igreja um jardim onde vicejam, com fertilidade inesgotável,
plantas diversas, alimentícias ou medicinais, que, conforme as
estações, correspondem a novas necessidades.
Ao publicar estes temas de meditações, nossa intenção
visa somente nutrir o espírito de oração; com este fim
enfeixamos, no menor número de palavras possível, verdades
substanciais, capazes de fortificar as almas, de esclarecê-las e
de conservá-las em harmonia com o espírito da Igreja.
Aqui não se trata de um ensino doutrinal, nem de uma
coleção de meditações, divididas e subdivididas de forma
didática. São centelhas da palavra evangélica que se
desprendem do texto, voltando a se reunir pela liturgia do ano
cristão.
Todos os mestres da vida espiritual insistem sobre a
importância da oração, baseados sobre as exortações de
Jesus Cristo e dos apóstolos. Mas a palavra — oração — em
sua verdadeira acepção, não significa apenas as fórmulas
pronunciadas pelos lábios; abrange todos os atos, todos os
impulsos, todos os movimentos tendentes à união da alma com
Deus.
Orar é amar; e a finalidade do amor é a união com o objeto
amado. A oração responde ao amor pelo amor. "Amareis com
todo o vosso coração, com todas as vossas forças, com todas
as vossas faculdades". Eis a lei da vida. Para viver a
verdadeira vida, é necessário, portanto, que todas as nossas
faculdades concorram para a oração. Orabo et spiritu, orabo et
mente. É este exercício a base da piedade cristã; e a virtude
perde toda a sua solidez quando o abandonamos. O progresso
espiritual não depende nem da multiplicidade, nem da extensão
das orações; depende exclusivamente das comunicações
íntimas e incessantes com Jesus Cristo, o Santo dos santos.
Não é pelos atos exteriores, mas sim pelas afeições,

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aspirações e elevações de nossa alma que nos dirigimos a
Deus. "Non pedibus sed afíectibus", diz santo Agostinho. Seria
necessário expor as vantagens de um exercício que nos
aproxima sempre mais do foco do eterno amor?
Se, das relações com as pessoas sensatas, resulta um
aperfeiçoamento do nosso proceder; se, do entretenimento
com os sábios, nos tornamos mais cultos; quanto proveito não
havemos de tirar desses íntimos colóquios com o Deus das
virtudes, nestas comunicações com o céu? Não é tanto pelo
ensino, como pela prática e pelo exercício, que a alma se inicia
nestes suaves mistérios. É, contudo, salutar seguir os avisos
de guias experimentados. São todos unânimes em nos
aconselhar a prepararmos a ascensão do nosso coração, pela
aplicação do pensamento nos exercícios da meditação. Para
se acender o fogo, deve-se primeiramente juntar a madeira, a
resina, o combustível que irá alimentar a chama. O alimento da
meditação são os atos da vida e da morte de nosso Senhor
Jesus Cristo, são as emocionantes passagens de sua Paixão
ou ainda as vivificadoras palavras consignadas na Escritura. A
não ser que uma alma, favorecida por graça especial, se eleve
espontaneamente aos cumes do amor, a criatura deve procurar
e seguir fielmente um método de oração adaptado a suas
disposições particulares e necessidades íntimas.
Santa Teresa, santo Inácio, são Francisco de Sales e
outros diretores eminentes, explicaram esses santos métodos.
Uns visam principalmente o espírito, outros diretamente o
coração, e ainda outros combinam os diversos processos; mas
todos recomendam deixar às almas humildes uma grande
liberdade em suas comunicações com Deus.
Não é preciso arte para regular o amor. Há, contudo,
conselhos que variam para os principiantes, para os mais
adiantados e ainda para os que já atingiram maior perfeição. O
método mais fácil consiste em ler algum ponto em livro
autorizado, e em seguida refletir sobre as verdades expostas,
digeri-las, por assim dizer, assimilar a substância nutritiva e
retirar a verdade que deverá ser aplicada à vida prática. Para
esta espécie de meditação, é preciso ler pouco e bem.
Assim como a pomba que pousa à margem do riacho para
sorver algumas gotas e, depois, reabrindo suas asas, desfere o
voo para as nuvens, a alma contemplativa toma as migalhas da

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palavra de Deus e, depois de revigorar suas forças, estende as
asas dos seus bons desejos e remonta aos céus.
Os espíritos fortes aproveitam mais neste exercício
espiritual; encaram de um modo mais real o mistério que
desejam meditar; abrangem, ao princípio, as considerações
gerais, convergem depois a aplicação sobre si e daí retiram as
conclusões práticas.
Este sistema de meditação tem a vantagem de ocupar
todas as faculdades espirituais, pois que, enquanto a memória
se fixa e o entendimento reflete, os pensamentos santos se
formam e tomam vigor.
Santa Teresa compara estes métodos de orações a
andaimes sobre os quais a alma se eleva a uma certa altura. É
evidente que uma alma, atingindo as culminâncias da união
com Deus, conseguindo expandir-se em atos inflamados de fé,
esperança e amor, não deve se deter no pedestal, não
necessita mais descer ao pé da escada, para metodicamente
galgar os degraus.
Parece que nosso Senhor reservou a si mesmo o ensino
da oração. É a ele que se dirige o chefe dos apóstolos para
obter esta sagrada ciência. "Domine, doce nos orare. Senhor,
ensinai-nos a orar". Ouçamos a lição do divino Mestre:
"Quando orardes, entrai em vossa cela, fechai a porta e orai a
vosso Pai em segredo; e vosso Pai, que vê o que é oculto, vos
atenderá". A cela de que aqui se trata é o nosso coração. —
"Meu reino está dentro de vós", diz Jesus Cristo. — É aí que
Deus reside, nos fala, nos ouve e nos responde; aí é que ama-
mos e que somos amados. A Escritura nos revela que ele se
delicia entre os filhos dos homens. Mas, para tornar o coração
sensível a esses sublimes contatos, é necessário recolhimento,
calma, silêncio. É preciso que permaneçam fechadas as portas
dos sentidos, sob a guarda de uma vigilância atenta, a fim de
impedir que os rumores externos venham perturbar a
solenidade interior. Nesse pacífico abandono, pouco se fala;
contempla-se, goza-se, saboreia-se o dom de Deus; e a alma,
emocionada, expande-se com a singeleza de uma criança.
Como vibra ao mínimo sopro a corda musical, assim responde
a alma à ação do Espírito Santo e exclama, com amor: Abba,
Pater! Benditas as almas que, em troco de humilde fidelidade,
chegam à experiência destes profundos sentimentos de amor
de Deus, seu Pai! Desfrutam já neste mundo as primícias da

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futura alegria, exclamando com Davi: "Que haverá para mim no
céu e que poderia pedir à terra, senão vós, ó Senhor, que sois
o Deus do meu coração e minha partilha na eternidade?" É
Jesus Cristo que, cumulando-nos do seu espírito e dos seus
sentimentos, nos ensina a divina oração, em que damos ao
Deus Altíssimo o nome de Pai!
Chamamo-lo: nosso Pai, para dilatar a alma na caridade,
ao mesmo tempo que ela aumenta no amor. Ele nos move a
pedir que o nome deste Pai todo poderoso seja para sempre
glorificado — que o seu reino se estabeleça em nós e fora de
nós — que sua vontade — expressão de sua sabedoria, de sua
providência, de sua terna solicitude — seja feita na terra como
no céu. Então, depois de prestar ao Autor de todo o bem as
adorações a ele devidas, imploramos para nós a graça que nos
é necessária quotidianamente e, como muito recebemos,
prometemos dar muito, tudo perdoar; derramamos sobre o
nosso próximo a misericórdia que nos foi oferecida; pedimos,
enfim, o auxílio contra a tentação, suplicando a nosso Pai
celeste terminar em nós a obra da Redenção, livrando-nos de
todo o mal.
Tal é a oração divina, a oração-mater, de onde provêm
todas as filiações da oração; ela resume em si todos os outros
objetos de oração e cada uma de duas palavras contém
aplicações infindas. Enquanto, pois, outros assuntos de
meditação deixam a alma em completa aridez; quando esta aí
não encontra nem a luz, nem o alimento precisos, deve-se
então recorrer assiduamente à meditação sobre a oração
dominical. Quando mesmo as curtas meditações propostas
neste livro não tivessem a prerrogativa de vivificar a nossa
oração, trariam pelo menos a preciosa vantagem de nos unir
quotidianamente ao espírito da Igreja e às lições evangélicas
lidas no altar.
Consagrando-lhes alguns instantes à noite, estas palavras
germinariam durante o sono, como grãos de luz, e nosso
primeiro pensamento, ao despertar, pela manhã, seria bom e
santo.
As disposições de nossa alma nos primeiros momentos da
manhã influem sobre todos os atos do dia, e imprimem um feliz
impulso ao tempo decorrente.
É no seio de Deus que devemos sorver a água viva que se
derrama como uma benção sobre as obras e atividades diárias.

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Esperamos que nada de inexato nos haja escapado no
decurso destas páginas. Mas cumpriremos um dever de
consciência, submetendo-o, como todos os escritos nossos, ao
julgamento infalível da Santa Sé, não querendo e não podendo
ensinar na Igreja, senão aquilo que a Igreja nos ensinou.

O Autor

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MIGALHAS EVANGÉLICAS

I DOMINGO DO ADVENTO
Predição do Juízo Final
I — O santo tempo do Advento, que recorda a primeira
vinda do Messias, abre-se na Igreja pelo solene anúncio do
segundo advento de Jesus Cristo. Assim, ao principiar o ano
eclesiástico, o Espírito de Deus aponta-nos o fim dos séculos,
para que encaremos seriamente os nossos últimos destinos.
É por isto que a Igreja desperta em nossa consciência o
temor dos juízos de Deus. Sua intenção é dispor-nos a melhor
interpretação da lei do amor, mostrando-nos as terríveis
consequências da lei da justiça. O preceito do juízo que nos
ameaça leva-nos a recorrer à misericórdia que nos é oferecida.
Então a confiança sucede ao temor e o amor afasta o receio.
II — Consideremos os dois julgamentos sucessivos que
todos os homens terão de sofrer: o primeiro — no momento da
partida deste mundo; o segundo — no dia em que o próprio
mundo será condenado. No juízo particular, a alma chegará só,
tremendo, perante Deus; no juízo universal a sentença divina
será promulgada diante de todas as gerações humanas.
Propriamente falando, estes dois juízos se resumem em
um; sendo o segundo apenas a revelação solene e geral do
primeiro. Se, contudo, o dia do juízo final nos parecer assaz
distante, encaremos, ao menos, conscienciosa e atentamente,
o julgamento particular que está bem próximo de nós e que
fixará para sempre nosso lugar entre os bem-aventurados ou
entre os perversos. Entremos piedosamente no espírito da
Igreja e com ardor peçamos a vinda do reino de Jesus Cristo,
para não termos os rigores da sua justiça.

SEGUNDA-FEIRA DA I SEMANA DO ADVENTO


"Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas" (Lc 21, 25)
I — O Senhor nos revela os sinais precursores do juízo
universal. Se a luz misteriosa de uma estrela foi para os Magos
o aviso da primeira vida de Jesus, outros sinais mais lúgubres
e formidáveis anunciarão a aproximação do último dia. "Este
dia não será nem dia, nem noite — diz o profeta — e na noite
desse dia a justiça acender-se-á como fornalha ardente". —
"Um pouco de tempo ainda — diz outro profeta — e sacudirei a
terra, o mar e todos os povos. Então o Juiz supremo aparecerá

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no meio das chamas e à sua aparência os ímpios secarão
como a palha, sem conservar nem germe nem raiz".
Compenetremo-nos profundamente destas grandes
verdades consignadas na Escritura, para nos excitar à
contrição e preparar os frutos de salutar penitência.
II — Por que se mostram os homens tão pouco im-
pressionados com o anúncio do último dia? — É que,
preocupados com as coisas terrenas e distraídos pelas
seduções do mundo, não ouvem os avisos de Deus ou ainda
os afastam de seus pensamentos, como se as ameaças nunca
houvessem de ser realizadas. Os apóstolos nos exortam, no
entanto, a conservarmo-nos alertas e o próprio Senhor adverte:
"Vigiai e orai, porque não sabeis nem o dia nem a hora". Esse
dia surgirá subitamente como um relâmpago que ilumina o
oriente e o ocidente. Será então, diz o Evangelho, como no
tempo do dilúvio, em que os homens caíram, inesperadamente,
na perdição, enquanto se entregavam aos divertimentos do
mundo. Reajamos contra esta fatal despreocupação e, já que
não conhecemos o dia nem a hora, vivamos como os primeiros
cristãos, aguardando piedosamente o advento de Jesus Cristo,
na feliz expectativa de contemplar a sua glória.

TERÇA-FEIRA DA I SEMANA DO ADVENTO


"Os homens hão de mirrar-se de susto na expectação do
que virá sobre o mundo" (Lc 21, 26).
I — Observemos se os prognósticos da última vinda não
se produzem atualmente e se as palavras dos profetas e do
Evangelho não se realizam visivelmente aos olhos de todos.
Os povos se levantam e transbordam como as ondas do mar; o
mundo está em expectativa: a guerra, como um incêndio, toma
proporções assustadoras; moléstias estranhas aparecem por
todas as regiões e atingem mesmo os diversos reinos da
natureza; o anjo da morte esvoaça pela terra. E, no entanto, a
iniquidade aumenta, a caridade esfria e poucos se convertem.
Teríamos chegado à época a que se referia Jesus Cristo,
quando dizia aos apóstolos: "Credes que encontrarei fé entre
os homens, quando voltar sobre a terra?" Seja como for,
estejamos prontos, já que desconhecemos o dia e a hora.
II — Nossos dias estão contados, habitamos um corpo
mortal, revestimento frágil que nos separa da eternidade e ao
qual o mínimo acidente pode derrubar. Se os avisos dos

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cataclismos do mundo não excitarem em nós uma vigilância
maior, receemos, pelo menos, expor-nos às surpresas da
morte. Porque é uma verdade certa: todo homem aparecerá
diante de Deus, no estado em que se achar na última hora, e
esta hora suprema é ordinariamente o resumo da própria vida.
Morre-se como se viveu. A melhor preparação para uma santa
morte é, por conseguinte, uma vida cristã.

QUARTA-FEIRA DA I SEMANA DO ADVENTO


"Então verão o Filho do homem vir sobre uma nuvem com
grande poder e majestade" (Lc 21, 27).
I — A primeira vinda de Jesus Cristo foi humilde e
misteriosa; a segunda será majestosa e solene. Então o Filho
de Deus, que se tornou Filho do homem para salvar a
humanidade, será motivo de horror para aqueles que
desprezaram o seu amor. Aparecerá nos esplendores da sua
glória, cercado por mil e mil milhões de anjos — diz o profeta
— e pronunciará os decretos da divina justiça, em meio de
terrificante silêncio. A uns ele dirá: "Ide, malditos, para o fogo
eterno!" e aos outros: "Vinde, benditos de meu Pai, possuir o
reino que vos foi preparado desde o princípio!" Um pavoroso
clamor ecoará na noite: "Eis o Esposo!" E ele dirá às virgens
loucas: "Não vos conheço!" — Depois coroará as virgens fiéis
na festa nupcial.
Contemplemos de antemão o imponente Tribunal daquele
que há de vir para julgar os vivos e os mortos! E para nos
assegurarmos um juízo favorável, sejamos, desde agora, o que
desejaríamos ser na última hora.
II — A cruz de Cristo, outrora escândalo para os judeus e
loucura para os gentios, fulgirá resplandecente no céu, como
balança da divina justiça; ela será o consolo de uns e a
condenação de outros. Foi ela o penhor da esperança, e
tornar-se-á o sinete do desespero; foi ela o laço sagrado das
almas, e será a parede intransponível entre os bons e os maus.
"Então — diz a Sagrada Escritura — os que fugiram à cruz
para buscar o gozo neste mundo, exclamarão, em lamentos, ao
ver as almas fiéis: "Ei-los, os que foram objeto de nosso sar-
casmo e de nossos ultrajes! Como éramos insensatos!
Somente lástima nos causavam então, e agora estão co-
locados entre os filhos de Deus e seu destino é triunfar
eternamente com os santos!".

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Ó minha alma! se partilhares aqui as humilhações e os
sofrimentos da cruz, participarás também de seus inefáveis
triunfos!

QUINTA-FEIRA DA I SEMANA DO ADVENTO


"Quando começarem, pois, a suceder estas coisas, olhai e
levantai a cabeça, porque está próxima a vossa redenção" (Lc
21, 28).
I — A ruína do mundo, que reduzirá a pó todos os bens da
terra, reanimará, pelo contrário, as esperanças daqueles que
renunciaram ao mundo. Aquilo que para uns será causa de
inconsolável aflição, será para outros motivo de alegria eterna.
Bem-aventurada então a alma fiel! Verá cumprirem-se as
palavras de Jesus Cristo; suas tristezas transformar-se-ão em
alegrias. "Chorem, desolem-se os que haviam colocado seu
coração no amor do século!", exclama o papa são Gregório.
Tremam os que preferiram uma vida curta e corrupta a uma
imortalidade feliz! Mas vós, que não sois amigos do mundo,
que abandonastes a vida do século para seguirdes a Jesus
Cristo, erguei a cabeça e exultai, pois o fim dos tempos será
para vós o princípio de uma felicidade interminável.
A vinda do soberano Juiz constituirá, portanto, para nós, ou
a suma felicidade ou o desespero, conforme se houver
apegado o nosso coração à terra ou ao céu.
II — Consideremos atentamente os dois estados opostos,
os eleitos e os condenados, para penetrarmos em nós mesmos
e apegarmo-nos ao que subsistirá intacto acima das ruínas do
mundo. É aqui na terra que precisamos decidir entre um e
outro senhor; não podemos servir ao mesmo tempo ao espírito
do século e ao espírito de Jesus Cristo. Quem amar a vida
presente, e a ela se apegar, perdê-la-á; e quem a abandonar e
a ela renunciar, será salvo. Se deixamos, pois, de viver para
nós, a fim de só vivermos para Jesus Cristo; se abraçamos a
nossa cruz para uni-la à Cruz de Jesus Cristo, contemplaremos
no último dia essa cruz toda refulgente, como a chave do céu e
o penhor da nossa salvação.
Erguei a cabeça, confiantes, vós que pertenceis a Jesus
Cristo, e dizei com a Esposa: "Vinde, Senhor Jesus, vinde sem
tardar!".

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SEXTA-FEIRA DA I SEMANA DO ADVENTO
"Considerai a figueira e as outras árvores" (Lc 21, 29).
I — O divino Mestre se compraz frequentemente em nos
mostrar, nos fenômenos da natureza, os misteriosos
ensinamentos que concordam com a sua palavra e com os
pressentimentos do nosso próprio coração. É que o mundo
visível é apenas um reflexo do mundo invisível e, sob este
ponto de vista, apresenta-nos ele as mesmas verdades que
revelam as Sagradas Escrituras e as luzes da nossa
consciência. A natureza, o coração humano e a Bíblia, são três
livros que em graus diversos exprimem a mesma linguagem.
Todos três, como tríplice eco da Verdade eterna, revelam ao
universo ás maravilhas de Deus, publicam as leis da vida
presente e as condições do futuro destino; narram a história do
homem, profetizam sua grandeza e sua nobre imortalidade;
entoam o cântico da justiça e da misericórdia de Deus. Estes
três livros se explicam e se completam mutuamente; são como
as três notas predominantes que constituem o acorde perfeito
das verdades reveladas. Peçamos ao Senhor a graça de
compreender e falar as coisas da eternidade.
II — Segundo a interpretação de são Bernardo, é a figueira
o símbolo do povo de Israel: "Produziu figos selvagens", diz o
Cântico dos Cânticos (Cap. 1°). "Vi seus pais como os
primeiros figos que aparecem nos mais altos ramos das
árvores" — assim se exprime o profeta Oseias (9, 10). Jesus
Cristo se serve da mesma figura em suas divinas parábolas:
"Um homem havia plantado uma figueira no meio do seu
campo". Em outra ocasião disse ele a Natanael: "Eu te vi
quando estavas debaixo da figueira". Em outra vez, Jesus
amaldiçoou a figueira por não haver dado frutos. E eis que a
analogia desta árvore misteriosa reaparece ainda entre os
sinais precursores do segundo advento. Anunciaria o despertar
da árvore seca, a volta de uma primavera de graças e de luz?
Indicariam suas folhas, ao retornar à vida, as primícias da volta
de Israel? É o que o profeta Isaías anuncia formalmente: "Um
dia as raízes de Jacó reanimar-se-ão com vigor; Israel
reflorescerá e encherá de frutos toda a superfície da terra" (27,
6). Em vista desta promessa que a Igreja repete após todos os
profetas, exclamaremos com o Eclesiástico: "Senhor, abreviai
os tempos, apressai o fim; reuni as tribos de Israel!".

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Quão feliz é a vocação daqueles que são chamados a
contribuir por seus labores, seus sacrifícios e suas preces ao
cumprimento dessas grandes esperanças!

SÁBADO DA I SEMANA DO ADVENTO


"Maria aparecerá no dia do juízo, como o arco-íris no
firmamento"
I — O arco-íris é o raio de luz ostentando os mais vivos
tons. Quando surge no meio das nuvens, como um celeste
sorriso, acalma o temor dos homens e dispõe os corações a
uma confiante tranquilidade. A linha que se desenha no
horizonte, ampla e curva parece figurar os braços de uma mãe,
estendidos para enlaçar e cobrir os filhos. O arco-íris, segundo
as Escrituras, é o símbolo da paz, da aliança e da
reconciliação; sua presença anuncia, como vemos, a
terminação das tempestades e o triunfo da bonança. Não
representa este fenômeno a imagem da Virgem imaculada? O
arco-íris, por si mesmo, não preserva a terra dos raios que a
ameaçam; ele reanima a esperança unicamente por ser a
figura de Maria; fala-nos de Maria, lembra-nos as divinas
promessas, mostra-nos, do alto do firmamento, a mão que nos
guarda, nos defende e nos protege.
Pensemos em Maria em todas as nossas amarguras, mas
recorramos, sobretudo, ao seu coração maternal, na hora das
derradeiras tribulações.
II — A Virgem Maria, sempre inseparavelmente unida a
Jesus Cristo, aparece no fim dos séculos, como no começo dos
caminhos de Deus. Foi ela a esperança do gênero humano no
dia do pecado e dos anátemas; será ainda ela o consolo dos
homens no dia do último juízo. Maria velou junto do presépio e
conservou-se de pé ao lado da cruz; e estará presente ao lado
do trono da Justiça divina. Mas, no meio do terror universal,
será Maria como o arco-íris nas nuvens. Apresentar-se-á como
nossa Mãe, seu Coração falará por nós, fará superabundar a
graça e a misericórdia. Felizes as almas consagradas a Maria!
Elas permanecerão de pé sobre os destroços do mundo.

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II DOMINGO DO ADVENTO
"João, ao ouvir, em sua prisão, as obras maravilhosas de
Cristo, enviou-lhe dois de seus discípulos" (Mt 11, 2).
I — Nestes dias de expectativa e de preparação, a Igreja
nos recorda os diversos testemunhos prestados por são João
ao Messias, a fim de nos demonstrar que as profecias do
Antigo Testamento se cumpriram em Jesus Cristo. Ao
testemunho de sua palavra, o santo Precursor alia o
testemunho do seu exemplo. Não se receia dos perigos que o
ameaçam, nem das contradições que se opõem, contanto que
Jesus Cristo seja anunciado, conhecido e amado. Conserva-se
calmo e paciente em suas cadeias, e sua fé se eleva acima de
todas as apreensões. Essa calma profunda, essa tranquilidade
constante, entre privações crudelíssimas, é efetivamente um
dos sinais mais evidentes da firmeza da fé cristã. Seguindo o
exemplo de são João Batista, suportemos dignamente as
aflições da vida presente e entreguemos a Deus o passado e o
futuro.
II — Consideremos o zelo de são João Batista, que, bem
longe de esmorecer em meio às contradições e aflições,
aumenta ainda de força na sua prisão, como o fogo que,
quanto mais comprimido, tanto mais vivo e ardente se torna.
Algemado, não pode ir a Jesus, mas envia-lhe seus discípulos.
Concede de bom grado a outros o consolo de que é privado.
Modelo de conduta para nós que nunca nos devemos abater
quando Deus nos experimenta, mas ainda nos aplicarmos a
consolar os outros, mesmo quando a nossa partilha forem só
cruzes e privações.

SEGUNDA-FEIRA DA II SEMANA DO ADVENTO


"E eles lhe disseram: És tu aquele que há de vir ou
devemos esperar outro?" (Mc 11, 3).
I — A esta pergunta, de que depende a salvação do gênero
humano, foi dada a resposta cabal, em que não transpira a
menor dúvida. Encontramo-la tanto nos livros sagrados como
na história. Mesmo os que não acreditam em Jesus Cristo não
esperam outro Salvador. É ele o único mediador entre Deus e
os homens. Só ele, Filho eterno de Deus, encarnado na
natureza humana, fiel à sua promessa, veio trazer-nos a graça
e a salvação eterna. Não é por nós nem por outra criatura
qualquer que podemos ser curados, purificados, reconciliados

20
com Deus: precisamos de Jesus Cristo, o único libertador dos
homens. É ele o prometido desde o começo dos séculos, a
quem o mundo não cessou de esperar. Só ele, nem outro mais,
é que deveria vir para nos libertar do jugo de satanás. E ele
veio no tempo marcado, dando-nos de novo a luz e a vida. É a
ele, portanto, que devemos irrevogavelmente nos unir, sem nos
deixar desviar por nenhuma criatura, sem que nos detenham
razões humanas ou considerações terrestres. Nada prevaleça
sobre a obrigação absoluta de seguir a Jesus Cristo.
Renovemos-lhe do fundo do nosso coração o dom de toda
a nossa vida.
II — O exemplo de são João Batista, enviando seus
discípulos a Jesus, deve servir de regra aos pais e a todos que
instruem ou dirigem almas. Ai dos que, por interesse
mercenário ou para satisfazer uma vaidade oculta, ou ainda
para obedecer a um impulso do amor próprio, trouxerem
presas em suas armadilhas as almas que deviam formar para
Jesus Cristo! Jesus é o Esposo, o Deus zeloso, o único Senhor
e Mestre, o foco único para onde deve convergir todo o amor.
Colocar outro em seu lugar é adorar a criatura, renovar as
corrupções da idolatria, é destruir a ordem da criação. Por con-
seguinte, o amor filial, bem como o amor fraterno, só é legítimo,
salutar e sagrado, quando tem por princípio e por fim: Jesus
Cristo, o Deus do amor. É em Jesus Cristo que os laços de
amizade se purificam, consolidam e se perpetuam na
eternidade.
Meditemos a conduta de são João e a dos seus discípulos.
Estes não violam os direitos de Jesus Cristo pelo amor que
dedicam ao santo Precursor; João não usurpa os títulos de
Jesus Cristo pelo amor que o une aos próprios discípulos. O
mútuo amor que se dedicam só tem por fim Jesus Cristo.

TERÇA-FEIRA DA II SEMANA DO ADVENTO


"Ide dizer a João o que vistes e o que ouvistes" (Mt 11, 7).
I — Ouvir e ver; tais são, segundo são João, as condições
para o conhecimento de Jesus Cristo. Primeiramente ouvir;
porque a fé é a condição essencial de toda ciência; desde
então o primeiro ato necessário para todos que aspiram a ser
discípulos de Jesus Cristo é o ato de fé e de confiança; isto é,
semente de toda a virtude e de toda a verdade. Depois da fé,
desenvolve-se a visão; a alma crente começa a ver, sente,

21
goza de modo inefável as realidades que principiara por admitir
e adquire a evidência com uma clareza que aumenta cada vez
mais; como um cego de nascimento que pede a cura, por ter
acreditado na luz antes de tê-la visto e, após seu
restabelecimento, contempla com seus próprios olhos o que
fora antes o objeto de sua crença. Assim a fé, por muito tempo
obscura, justifica-se pela consideração de suas obras e de
seus frutos. "Provai e vede", diz o salmista. A palavra provada
por um coração humilde torna-se fecunda e luminosa na vida
prática.
II — Nosso divino Modelo revelou-se por suas palavras e
suas ações; será igualmente por estes dois modos que
faremos conhecer o que somos. Mas se nossas palavras
devem ser sempre a expressão simples da verdade, será mais
ainda com nossos atos que mostraremos o que somos, pois,
conforme as nossas obras, seremos julgados. Lembremo-nos,
portanto, que as testemunhas de nossa vida dirão de nós o que
viram e ouviram, e procedamos de maneira que a visita de
Deus, que tudo vê, e o ouvido que tudo escuta, encontrem em
nossa vida interior, bem como na exterior, os traços pelos quais
são reconhecidos os verdadeiros discípulos de Jesus Cristo.

QUARTA-FEIRA DA II SEMANA DO ADVENTO


"Os cegos veem, os paralíticos andam, os leprosos são
curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e os pobres
são evangelizados" (Mt 11, 5).
I — Diz o profeta Isaías: "O próprio Deus virá e nos salvará.
Então os cegos abrirão os olhos, os surdos ouvirão; o paralítico
correrá como um veado e a língua dos mudos será
desembaraçada" (35, 5, 6).
Estes milagres todos foram operados por Jesus Cristo na
presença dos judeus e atestam seu poder divino. Mas o
milagre que ultrapassa todos os outros, milagre permanente, é
a cegueira dos próprios judeus, depositários dos livros sacros,
que não viram, não compreenderam, não admitiram a
realização deslumbrante das profecias. Oremos para que essa
cegueira milagrosa seja milagrosamente curada. Oremos para
que a nação de onde jorrou a luz saia das trevas do erro e das
sombras da morte.
O exemplo de Israel deve esclarecer os cristãos. A ce-
gueira do espírito é uma consequência do endurecimento do

22
coração e o coração empedernido pelo orgulho torna-se
inacessível à graça.
II — Os milagres de Jesus Cristo possuem outra si-
gnificação. Segundo a opinião de santo Agostinho, são os
sinais visíveis das operações análogas que o Senhor faz nas
almas. Os prodígios perpetuam-se ininterruptamente através
dos séculos. As graças de salvação não cessam: propagam-se
pelos sacramentos e por diversos modos, segundo a natureza
das enfermidades espirituais. O sacerdócio católico reproduz
incessantemente as obras de Jesus Cristo; por menos que
atentemos nos fatos deslumbrantes, desenrolados sob nossa
vista, havemos de notar com admiração que os cegos
readquirem a visão, os surdos ouvem a palavra de Deus, a
lepra do pecado desaparece, os mortos revivem, os pobres de
espírito adquirem tesouros de ciência e de luz.
Não nos detenhamos a admirar estas maravilhas.
Saibamos aproveitar-nos delas, quando gemermos sob o peso
de qualquer enfermidade, dirijamo-nos confiantes a Jesus
Cristo, o Médico divino de nossas almas.

QUINTA-FEIRA DA II SEMANA DO ADVENTO


"Os pobres são evangelizados"
I — Esta palavra divina glorifica a pobreza. Eis uma das
maravilhas que, conforme o profeta Isaías, deveriam
caracterizar a pregação do Evangelho. "Os pobres alegrar-se-
ão no Santo de Israel". Realmente, não é para os felizes do
mundo que Jesus Cristo traz os bens do céu. Aqueles que
buscam suas delícias sobre a terra não sabem apreciar os
dons de Deus. Ricos de sua abastança, a nada mais aspiram;
e, contentes consigo mesmos, não reconhecem a necessidade
de serem curados, nem esclarecidos, nem corrigidos. Eis o que
explica serem as graças do Evangelho oferecidas de
preferência aos pobres, isto é, aos que conhecem sua miséria,
pois estes sentem a carência de um auxílio e, penetrados do
sentimento de sua penúria, dirigem-se ao Salvador que se
compraz em os consolar, saciar e enriquecer.
II — Se nos julgamos ricos com nossos haveres, livremo-
nos desta presunção, façamo-nos pobres, a fim de termos uma
parte na herança dos filhos de Deus.
A pobreza evangélica exige certamente que des-
apeguemos nosso coração dos bens da terra; mas sua

23
significação é de mais sublime alcance. Seria inútil des-
prezarmos os bens terrestres, se não renunciássemos à
importância que damos aos nossos pensamentos, à nossa
opinião, às riquezas do nosso talento. Os verdadeiros
discípulos, depois de tudo abandonarem, devem renunciar-se a
si próprios; e, tudo entregando a Deus, nele encontram o
cêntuplo. Sob este ponto de vista, é a pobreza condição
essencial para a perfeição evangélica; é o pedestal da
verdadeira grandeza e o penhor da futura bem-aventurança.

SEXTA-FEIRA DA II SEMANA DO ADVENTO


"E Jesus falou-lhes de são João Batista: Que fostes ver no
deserto? Um caniço agitado pelo vento?" (Mt 11, 7)
I — Os homens que em seu próprio nome dogmatizam,
semelhantes aos caniços que vergam e variam ao sabor do
vento, não têm consistência, e suas obras estão em
contradição com seus ensinamentos. Não era assim o enviado
de Deus que pregava a doutrina da salvação. Profeta do
Messias, do qual era o precursor e a figura, sua vida santa
deixava pressentir as virtudes do Evangelho, como a aurora
precede a luz do sol. Ele fez demonstrar a sua missão pela
constância nas provações, pela paciência na adversidade, pela
coragem nos perigos e pelo inflexível testemunho que deu de
nosso Senhor Jesus Cristo.
As almas chamadas a servir de mediadoras da verdade
não se tornam sólidos instrumentos de Deus, senão depois de
se exercitarem por muito tempo, como são João, na prática das
virtudes que devem ensinar.
II — São João Batista não se preocupa nem com as
homenagens de que é objeto, nem com o povo que o cerca,
nem com os privilégios de sua vocação. Vê apenas Jesus
Cristo! Quer contemple o céu aberto sobre o Jordão, quer
considere o Filho de Deus a seus pés, permanece humilde,
desprendido de si mesmo, ocupado unicamente no seu
ministério. É este o exemplo proposto à alma consagrada ao
Senhor. Semelhante à flor misteriosa que conserva suas
pétalas sempre voltadas para o sol, correspondendo a todas as
suas influências, assim a alma detém seu olhar em Jesus, seu
Modelo, e impregna-se das celestiais virtudes que se
reproduzem em sua conduta.

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Eis o que a consola e esclarece; e, feliz em viver para
aquele que lhe deu o ser, nunca se lastima, nunca perde a
confiança e a energia, persevera em meio às provações
interiores e exteriores, porque sabe que tudo contribui para a
santificação e para a felicidade dos que amam a Deus.

SÁBADO DA II SEMANA DO ADVENTO


Maria considerada como Mãe espiritual de são João
Batista
I – o santo Precursor, filho de Isabel quanto às leis da
natureza, é, segundo as leis da graça e da vida sobrenatural,
filho de Maria, porque, no mistério da Visitação, a Virgem
imaculada lhe transmitiu os dons do Espírito Santo, de que era
depositária e dispensadora; ela deixou que jorrasse a graça
transbordante de seu Coração e comunicou-lhe a vida do céu.
É, por conseguinte, sua mãe verdadeira, como seria mais
tarde, no Calvário, verdadeiramente mãe do outro João.
Vemos, portanto, que o primeiro e o último ato do divino
Salvador, em seu advento como em sua partida, consagram a
augusta maternidade que é o canal de todas as misericórdias.
Aprendamos da ação visível que Maria exerce sobre são João
Batista, bem como das palavras solenes que a proclamam mãe
de são João Evangelista, o que Maria é para nós, quando de
coração pertencemos a Deus.
II — Os laços sagrados, que unem o precursor de Jesus
Cristo à Virgem imaculada, produziram entre essas duas almas
admiráveis semelhanças. O traço principal da perfeição de são
João Batista é o mesmo que caracteriza a Mãe de Jesus: era
profundamente humilde e, sob o véu da humildade, escondia,
como Maria, a auréola da mais eminente santidade. Como
Maria, amava a solidão e o silêncio; e, por se haver humilhado
como Maria, para somente sobre Jesus atrair todas as
homenagens e adorações dos homens, é que foi exaltado
acima de todos e é o maior de todos os santos. Nós, que nos
honramos de ser filhos de Maria, somos, porventura, humildes?
Esforçamo-nos por nos assemelharmos à nossa Mãe?
Renunciamos à vanglória, para procurarmos somente a glória
de Jesus Cristo? É praticando a verdadeira humildade que os
filhos de Maria se assemelham à sua Mãe.

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III DOMINGO DO ADVENTO
"Os judeus de Jerusalém enviaram a são João sacerdotes
e levitas" (Jo 1, 19).
I — A embaixada de Jerusalém demonstra, ao mesmo
tempo, a grandeza e a humildade de são João Batista. Sua
grandeza — pois que os povos o tomam por um dos antigos
profetas, cuja vida fora um desenrolar de prodígios; e até pelo
Messias, isto é, pelo Santo dos santos, por aquele que era a
esperança dos patriarcas e a promessa de Israel. Quanto mais
cresce, porém, no espírito dos homens, mais foge o precursor
às suas homenagens. Assim como a estrela d'alva desaparece
no firmamento ante a luz do sol, rei dos astros, são João
eclipsa-se inteiramente na ocasião em que se manifesta ao
mundo o Sol da Justiça — Jesus Cristo. Sua resposta aos
judeus é a simples expressão da humildade; não faz prevalecer
nenhuma de suas prerrogativas, não fala nem de seu
nascimento ilustre, nem de sua missão de profeta, nem do
título de anjo que a sagrada Escritura lhe outorga: diz o que
não é, mas não diz o que é. Eis como devemos agir, como
devemos falar de nós.
II — A humilde atitude de são João ante a legação dos
judeus apresenta-nos a ocasião de observar os movimentos
opostos da humildade e da vaidade. Enquanto a vaidade se
atribui méritos que não possui, a humildade não se prevalece
dos que pode possuir; e tanto se empenha esta em ocultar
seus predicados, quanto se esmera a vaidade em subtilmente
fazê-los realçar e enaltecer. Há a vaidade que se prende às
próprias virtudes, qual peçonhentos insetos que infectam as
mais belas flores. Nada mais pérfido do que tais ilusões em
matéria de religião. Ora, a vaidade que foge às advertências e
se desvanece com os elogios, acaba infalivelmente na
confusão, pois não pode perdurar a glória que se dão
reciprocamente os homens. A humildade, pelo contrário, é o
santo aniquilamento que purifica a alma e a induz a se elevar
até aos esplendores de Deus.
Acautelemo-nos para nunca seguir os impulsos do amor
próprio e, como João Batista, atendamos unicamente às
inspirações da santa humildade.

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SEGUNDA-FEIRA DA III SEMANA DO ADVENTO
"Perguntaram-lhe eles: Quem és tu?"
I — Coloquemo-nos em espírito na situação em que se
encontra são João Batista e suponhamos que nos venham
perguntar: Quem sois? Que dizeis de vós mesmo? Se esta
pergunta nos fosse formulada com autoridade, qual seria nossa
resposta? Confessaríamos simplesmente o que nos falta ser?
Ou responderíamos de maneira engenhosa, a fim de fazer crer
a outros ser justo o bom conceito em que nos têm? Seria bem
pouco protestar não sermos possuidores dos méritos a nós
atribuídos, se dissimulássemos os nossos defeitos, as
fraquezas que as aparências não acusam. Como são raras as
almas que, seguindo o exemplo do Precursor, se empenham
mais em fazer conhecer o que as humilha, do que aquilo que
as eleva!
Se não temos o ânimo de expor o lado defeituoso da nossa
vida, levemos, todavia, essa humilde sinceridade ao tribunal da
penitência. Não raro a vaidade espiritual induz até a provocar
elogios justamente naquilo que somente deveria
produzir uma humilhação salutar.
II — "Quem és tu?" Devem todos responder com são João:
De mim nada sou; tudo que sou, tudo que possuo, vem
daquele que me deu o ser. É dele que procedem todas as
graças da ordem natural e da ordem sobrenatural. "Que
possuis que não tenhais recebido? E se recebestes, por que
vos gloriais como se nada houvésseis recebido?" (1 Cr 4, 7).
Dizem que satanás não permaneceu na justiça e na verdade,
por ter sido o primeiro a recusar sua homenagem ao Autor da
vida. Aqueles que, seguindo o exemplo do príncipe do orgulho,
atribuem a si os dons do alto, para deles se vangloriar, co-
metem um roubo e uma depravação. A verdadeira humildade
atribui tudo a Deus, somente ela permanece na justiça e na
verdade. "Dizei às criaturas, exclama santo Agostinho, que se
elas possuem algum encanto, algum atrativo, alguma qualidade
amável, receberam estes predicados daquele que é mais belo,
melhor, mais atraente do que elas, e, por conseguinte, mais
amável e mais digno de ser amado...".

27
TERÇA-FEIRA DA III SEMANA DO ADVENTO
"Sou a voz que clama no deserto"
I — Eis a resposta de são João Batista aos delegados de
Jerusalém; e nada mais acrescentou. Ele se tem como um leve
sopro, como um som que de si mesmo não passa de um vão
ruído, como voz que transmite a palavra; mas esta voz, este
som, este sopro, era animado do espírito de Deus. João Batista
tinha razão, portanto, em se considerar unicamente como uma
voz, porque a voz não pode atribuir a si a verdade da qual é
mediadoras, assim como a pena não pode atribuir a si o
pensamento de que é instrumento; assim como o pincel não se
atribui a harmonia das cores. O homem nunca é proprietário e
ainda menos o autor dos dons de Deus; é apenas o
usufrutuário, e seu único mérito consiste em bem empregá-los
para a glória daquele que lhos confiou. A verdadeira humildade
não nega os dons de Deus, mas também deles não se
envaidece; não recusa os talentos, mas deles se utiliza em
proveito daquele de quem emanam.
Compreendamos que a humildade é a condição da in-
tegridade que devemos ter no serviço de Deus.
II — À imitação dos instrumentos sonoros que modulam e
diversificam as entoações da música, é necessário que os
mediadoras do Espírito Santo sejam puros e vazios de si
mesmos, a fim de transmitir sem alteração as graças que
propagam. Toda criatura tem a missão de fazer o bem; mas
aquelas que são particularmente consagradas ao serviço de
Deus têm vocação mais ou menos análoga à de são João
Batista. Anunciar Jesus Cristo, fazê-lo conhecido e amado,
salvar as almas, elevá-las e edificá-las, eis o mais nobre de
todos os ministérios. Mas, para dignamente exercê-lo, não é
suficiente a palavra, é preciso obras e a vida inteira deve ser
uma prédica. Seja no falar, no agir, ou no sofrer, em tudo que
fizerdes, deixai agir o espírito de Deus, para que através a
transparência da vossa vida se reconheça Jesus Cristo. É a
grande recomendação do Evangelho: "Que vossa luz brilhe
ante os homens; que eles vejam vossas obras, a fim de
glorificarem vosso Pai que está no céu".

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QUARTA-FEIRA DA III SEMANA DO ADVENTO
"Por que batizas, se não és o Cristo, nem Elias, nem o
profeta?"
I — Sabiam perfeitamente os judeus que à vinda do
Messias haveria um novo batismo; os profetas haviam predito
este mistério. "Nesse dia, diz Zacarias, uma fonte brotará na
casa de Davi para lavar-se aí o pecador" (13, 1). — Mas, cegos
pela presunção, não entendiam que o batismo de João era
apenas a preparação para o batismo de Jesus Cristo. Não
admitiam que o verdadeiro batismo fosse a aplicação do
sangue e dos méritos da divina Vítima. O batismo de são João
figurava a graça, mas não a conferia; preparava os corações,
mas não os purificava.
Nós, que fomos regenerados pelo batismo de Jesus Cristo,
usemos com dignidade o título de cristãos; provemos por uma
vida santa e celestial que nos tornamos novos homens.
II — Os judeus, repreendendo João por batizar, sem ser
nem o Cristo, nem Elias, nem profeta, oferecem-nos ocasião de
observar que, desde a imolação de Jesus Cristo, a missão de
conferir o batismo foi generalizada. O Salvador do mundo quis
facilitar a difusão da graça da regeneração das almas; mas
esta divina dádiva em nada altera a santidade do sacramento.
O batismo do precursor era uma cerimônia figurativa da qual
dependia a obrigação de uma vida de reparação e de pe-
nitência; mas o batismo de Jesus Cristo é um ato real e
substancial que purifica a alma de todas as suas faltas, a
desliga de todas as suas dívidas, a une como um ramo
degenerado à árvore da vida, e a torna fecunda em frutos de
bênçãos.
Ó cristãos, quão grande é vossa dignidade! Participais, de
um certo modo, da própria natureza divina; sois herdeiros de
Deus, co-herdeiros de Jesus Cristo. "Sede, portanto, imitadores
de Deus!" — exclama o grande apóstolo: "Imitatores Dei
estote!".

QUINTA-FEIRA DA III SEMANA DO ADVENTO


"No meio de vós está alguém que não conheceis"
I – Deus está em toda parte e ninguém pode subtrair-se à
sua presença. Assim como o sol, sua brilhante figura no
firmamento, o trono do Altíssimo está nas sublimidades do céu.
Mas toda a criação subsiste e, por assim dizer, nada em sua

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luz indescritível. Ele nos dá o movimento, o ar e a vida. A
atmosfera que respiramos, e dentro da qual nos movemos,
pode nos oferecer uma outra imagem dessa presença; aí
haurimos o elemento vital que está, ao mesmo tempo, dentro e
fora de nós. É assim que nossa vida se alimenta e conserva
por suas comunicações incessantes com Deus, fonte única de
tudo quanto existe. Mas, além da presença universal da di-
vindade, o Filho de Deus, assumindo a nossa natureza,
aproximou-se de nós de uma maneira mais íntima: vive na
Igreja, que é seu corpo, reside em nossos tabernáculos; age
pelos sacramentos, habita substancialmente em nós por sua
graça e seu amor. "O reino de Deus está dentro de vós —
disse Jesus Cristo. Eu estou em vós e vós estais em mim".
Recolhamo-nos ao mais profundo da nossa alma para aí
adorarmos nosso Deus, em espírito e em verdade.
II — Se contemplarmos com admiração a presença de
Deus na marcha regular das constelações celestes, quão mais
admiravelmente se revela esta divina presença na assembleia
das almas cristãs aplicadas unanimemente em satisfazer ao
Deus que servem com amor! O pensamento de que o Senhor
nos vê, nos ouve e nos protege, faz nascer em nós um
profundo sentimento de paz e de confiança. Este pensamento
sustenta principalmente a oração: ela brota com mais
frequência e fervor quando se sabe que, perto do coração que
sofre, está aquele que atende. É, por conseguinte, para
reanimar a piedade que são João Batista lembra ao povo a
presença do Salvador, presença tão frequentemente esquecida
ou ignorada. O próprio Jesus nos dirige esta palavra
consoladora: "Onde diversas pessoas se reunirem em meu
nome, aí estarei no meio delas".

SEXTA-FEIRA DA III SEMANA DO ADVENTO


"Não sou digno de desatar os cordões de suas sandálias"
I — As almas verdadeiramente humildes reconhecem de
bom modo sua inferioridade e, sem pesar, reconhecem a
superioridade alheia. Não seremos realmente humildes se,
verificando nossas misérias pessoais, não admitirmos que
nossos irmãos sejam mais perfeitos do que nós. Este paralelo
ordinariamente nos magoa; prestamos de boa vontade justiça
às suas virtudes, desde que o seu brilho não ofusque o nosso;
consentimos em elogiá-los, mas sob a condição de

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conservarmos a preferência e o primeiro lugar. E, em geral,
comparamo-nos de melhor grado aos que nos são inferiores,
do que aos que estão acima de nós, a fim de pôr em relevo
nossa distinção e, por assim dizer, justificar a nossa própria
estima. Folga são João, pelo contrário, com o último lugar aos
pés de Jesus. Imitemos sua humildade, olhando sempre os que
são mais santos, mais hábeis, mais ilustrados e mais perfeitos
do que nós.
II — Se são João Batista não se achava digno de desatar
as sandálias de Jesus, que deveremos sentir a respeito da
mais modesta prática no serviço de Deus? Nosso Senhor vive
em seus membros; vive particularmente nos pobres e
considera como feito a ele mesmo o bem que se faz ao menor
de seus filhos. Haverá, então, na casa do Senhor, ofício que
não seja glorioso, por vil que pareça aos olhos do mundo? Para
nos impregnarmos da humildade de são João Batista, devemos
reputar-nos tão ínfimos que a todos reconheceremos acima de
nós.
Realmente, se em nós predominasse o sentimento de
nossa fraqueza, nunca teríamos a tentação da nos lastimar,
quer dos trabalhos, quer dos nossos superiores, nem
ousaríamos mesmo supor haver na terra algo que de nós fosse
indigno ou a nós inferior. De modo que, embora fôssemos
colocados pela Providência acima dos outros,
permaneceríamos pequenos diante de Deus, utilizando-nos de
nossa posição proeminente apenas para, em maior amplitude,
exercermos a abnegação e a caridade.

SÁBADO DA III SEMANA DO ADVENTO


Maria está sempre presente no meio de nós
I — Nossa Mãe celestial permaneceu visivelmente no seio
da Igreja após a ascensão de Jesus, para nos fazer
compreender a sua presença invisível na Igreja, através dos
séculos. As vocações de Deus são irrevogáveis, perpetuam-se
na eternidade. Creiamos firmemente que Maria não cessará
nunca de exercer seu ministério maternal para com seus filhos.
Nossas relações para com ela não se limitam simplesmente a
homenagens de respeito e a longínquas invocações: cremos
na presença daquela que é objeto do nosso culto filial. Ela
escuta as nossas vozes suplicantes; responde, age em nosso

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favor junto ao trono da graça; é ela a medianeira pela qual
Deus vem a nós e pela qual nossa alma sobe até ele.
Lembremo-nos, portanto, em todas as circunstâncias da
nossa vida, que Maria não está longe de nós.
II — Diz-nos o Evangelho: "Onde estiver o Mestre aí
estarão os discípulos". Com mais razão ainda cabem estas
palavras a Maria, mãe dos discípulos e do Mestre. Desde que
Jesus permanecerá conosco até à consumação dos séculos,
Maria também estará conosco em todos os momentos de
nossa vida. Poderá um coração de mãe viver distante de seus
filhos? É verdade que não podemos vê-la; mas o nosso
coração sente que está perto dos que a invocam e, quanto
maior é a nossa confiança, tanto mais vivo e manifesto se torna
este sentimento. Viver sob o seu olhar maternal, testemunhar-
lhe constantemente nossa sujeição, corresponder com humilde
fidelidade à graça da qual é ela o canal; aprender em sua
escola a doçura, a modéstia e a abnegação de nós mesmos,
trabalhar e honrar com ela a Deus, edificar o nosso próximo;
tais são os frutos evangélicos que produz a convicção da
presença de Maria.

IV DOMINGO DO ADVENTO
"Preparai os caminhos do Senhor" (Lc 3, 4).
I — A preparação do caminho do Senhor consiste nas
disposições com as quais nossa boa vontade corresponde à
vontade de Deus. Ora, Deus quer salvar nossa alma e para
esse fim desce até nós. Ele nos traz a graça, a luz e todos os
meios de santificação. Faz-se homem para ao homem servir de
modelo. E, ao mesmo tempo que nos traça as normas de uma
vida santa, dá-nos forças divinas para cumpri-las. Da parte de
Deus, a medida dos dons é completa, mas o homem é livre de
se aproveitar deles; e deles não se utiliza senão conforme a
preparação de sua vontade e a cooperação fiel à graça.
Invoquemos Maria, invoquemos João Batista e peçamos ao
Espírito Santo para excitar nossa vontade, a fim de que esta se
aplique em realizar os desígnios da Providência.
II — Para concorrer aos atos da misericórdia divina, é
necessário oferecer a Deus a nossa boa vontade, primeira
condição de verdadeira penitência; porque a penitência
pregada por João tem por único objetivo tornar nossa vontade
simples e reta diante do Senhor. Somos o que somos pela

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vontade; é por ela que nos afastamos do mal para nos
apegarmos ao bem; é pela vontade que derrubamos a
montanha do orgulho e da vaidade, que preenchemos o vale
de uma vida inútil, que concertamos os caminhos de nossos
pensamentos errôneos, que extirpamos os defeitos de um
caráter desigual e teimoso. É insuficiente almejar o fim, urge
querer os meios que a ele conduzem.
Saibamos, portanto, mover nossa vontade com energia;
voltemo-la para o lado de Deus, tornemo-la boa e santa,
unindo-a à vontade divina. Somente então seremos apontados
entre os homens de boa vontade aos quais os anjos trazem a
paz do céu.

SEGUNDA-FEIRA DA IV SEMANA DO ADVENTO


"Fazei penitência, porque se aproxima o reino de Deus"
I — Nestes dias de preparação e de expectativa, não se
farta a Igreja de nos recomendar a penitência. Sempre solícita,
quer que estejamos aptos a receber as graças que o Messias
oferece aos homens de boa vontade e libertados de qualquer
obstáculo capaz de afastar estas graças. A negligência, a
leviandade de espírito, as preocupações terrenas nos privariam
dos frutos preciosos da reconciliação. Preservemo-nos,
entretanto, duma ilusória penitência. Para a remissão das faltas
não basta a enumeração maquinai dos pecados; é
imprescindível estarmos sinceramente arrependidos, contritos
e humilhados, firmemente resolvidos a nos emendar.
Aproveitemos os avisos da Igreja, ouçamos nossa consciência,
não deixemos nossas resoluções para o futuro. "Se ouves hoje
a voz do teu Deus, não deixes endurecer teu coração" — diz a
Escritura; o divino Mestre quer encontrar-nos vigilantes, como
servos à espera do seu Senhor; e a hora de sua visita é por
nós ignorada. Ouvir-se-á uma voz em meio da noite: "Ecce
sponsus!" Eis o Esposo! Feliz da alma fiel que responder:
"Ecce ancilla Domini!" Eis a escrava do Senhor!
II — Nosso Senhor vem a nós com as mãos a transbordar
de graças; mas estas são proporcionadas às nossas
necessidades e desejos. Ora, para sentir a necessidade da
graça, é preciso reconhecer as misérias humanas; e para
desejá-las é indispensável conhecer as infinitas misericórdias
de Deus. É por isto que, resumindo toda a ciência da salvação,
exclama santo Agostinho: "Noverim te, noverim me!" Senhor,

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fazei que eu vos conheça e que eu me conheça! A mim, para
sentir minha impotência, a vós, para que experimente a força
do vosso auxílio. Que me conheça para ser humilde; que vos
conheça, para vos implorar com confiança. Humildade e
confiança! Eis os atos que devemos formular sem cessar; mais
eficazes não existem para atrair as graças do céu.

TERÇA-FEIRA DA IV SEMANA DO ADVENTO


"Eis que estou à porta e bato!"
I — O Senhor nos implora suavemente: "Meu filho, dá-me
teu coração!" Ele nos admoesta, porque nos ama; mas não
força, porque o amor não admite constrangimento. A nós é que
compete consagrar santamente esta liberdade, amando nosso
Deus e Salvador com terno e especial afeto. É certo que, se
assim o amarmos, ouviremos sua voz, recebê-lo-emos em
nosso coração, a ele sujeitaremos nossa vontade, nosso
espírito e todas as nossas faculdades, para que ele reine como
soberano sobre nós e de nós se apodere para sempre.
Peçamos ao Bem-amado, que bate à nossa porta, que ele
mesmo abra, e permaneçamos recolhidos em nosso interior,
para que em nós encontre o que procura e faça suas delícias
no que ama.
II — A vinda de Jesus Cristo ao mundo é um prodígio cheio
de amor e de mistério; porque o divino Salvador não vem
somente visitar a humanidade em geral, mas estende sua
solicitude a cada um em particular, e toda alma cristã pode
afirmar com são Paulo: "ele me amou e entregou-se por mim!"
Certamente ninguém poderia agradar ao Pai celeste se não
trouxesse em si a viva imagem de Jesus Cristo. Somente em
Jesus Cristo concentrou Deus Pai o seu amor. É por isso que
Jesus Cristo vem a nós e nos transforma gradualmente, para
que vivamos de sua vida e para que a nossa natureza participe
da sua. Esta nova vida, fruto da nossa união com Deus, terá
por termo uma perfeita semelhança com o próprio Jesus Cristo.
Despojemo-nos, pois, de tudo que possa obstar aos
progressos dessa transformação divina. Cooperemos com a
graça, a fim de que Jesus viva e reine em nós.

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QUARTA-FEIRA DA IV SEMANA DO ADVENTO
"Colocarei uma pedra nos alicerces de Sião" (Is 28, 16).
I — Meditemos o pensamento do profeta, que compara o
Messias à pedra fundamental sobre a qual descansa o edifício
da Igreja. As almas regeneradas são as pedras vivas que
entram na estrutura deste admirável edifício e elas
permanecerão sólidas somente enquanto se apoiarem nos
alicerces. É o que fazia clamar são Bernardo: "Levanto-me
sobre a pedra, estou firme sobre a pedra, estou em segurança
sobre a pedra; e como esta pedra está no céu, minha conversa
está no céu, isto é, minha vida e minha esperança estão no
céu". É forçoso, contudo, observar, com são Gregório, que
cada uma das pedras vivas que descansam sobre a pedra
central, ampara igualmente outras pedras; e assim a Igreja,
baseada na fé, não se expande e levanta senão pela caridade.
Desde que a montanha de Sião é o símbolo dessa união cristã,
esforcemo-nos por realizar este símbolo, aperfeiçoando cada
vez mais nossa fé, nossa esperança e nossa caridade fraternal.
II — Nosso Senhor, sendo a única base do edifício dos
eleitos, é, pela mesma razão, seu princípio de santificação e a
fonte da vida que anima todas as partes da Igreja. É a fonte de
águas vivas que buscamos nos sacramentos, e o foco de todas
as virtudes evangélicas. A ele devemos admirar nos santos; a
ele devemos glorificar nas obras de caridade. Ele produz as
maravilhas dos apóstolos, a força e a constância dos mártires,
a dedicação dos confessores, a pureza das virgens. Quanto se-
ríamos poderosos e profundos, se, em vez de contarmos com a
nossa habilidade, nosso talento e nossa competência, o
deixássemos agir só!
"Aqueles que depositam sua confiança no Senhor, são
inabaláveis como a montanha de Sião" — diz o salmista. Como
Abraão, esperam contra toda esperança; triunfam pela
perseverança; dizem com os livros sacros: "In Sion firmata
sum!"

QUINTA-FEIRA DA IV SEMANA DO ADVENTO


"Eis que o tabernáculo de Deus está no meio de vós"
I — A vinda de nosso Senhor Jesus Cristo não é uma
graça transitória; ao contrário, é permanente. O Filho de Deus,
encarnado em nossa natureza, permanece conosco até à
consumação dos séculos. É o Pão vivo descido dos céus,

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augusto mistério que se perpetuará para sempre sobre os
nossos altares. Os templos terrestres podem desaparecer, o
tabernáculo vivo, porém, subsistirá em nossos corações. É aí
que o Deus de amor quer se deliciar. Aí se realiza a inefável
aliança com o seu Deus; aí se encontra o altar dos perfumes
sagrados; aí arde a lâmpada misteriosa que jamais se
extinguira. Somente poderão gozar e compreender as doçuras
dessa íntima união as almas recolhidas, calmas e humildes; e
somente as que fazem violência a si mesmas para se
arrancarem às seduções dos sentidos, é que pressentem as
atrações por esses êxtases divinos. A oração e a meditação
abrem os caminhos do tabernáculo interior e a perseverança aí
nos introduz.
II — O doce Emanuel está conosco, pertence-nos e está
em nós. Se está conosco, quão grande deve ser nossa
confiança! Ele nos vê, nos ouve e nos fala; ele nos protege,
dirige, ilumina e consola! Se ele nos pertence, este dom
supremo nos deve cumular de gratidão. Ele é, na realidade,
nosso pão, nosso vinho, nosso óleo, nosso maná celeste,
nosso tesouro inextinguível. Ele é nosso, sejamos todos dele;
façamos-lhe a doação integral da nossa fé, de nosso amor e de
todo o nosso coração. Ele está em nós: "Vós estais em mim e
eu em vós!", diz a Escritura. Permaneçamos, pois, em sua
dileção. É entregando-nos a Jesus Cristo assim como ele a nós
se deu, deixando-o viver e reinar em nós, que chegaremos a
repetir com são Paulo: "Vivo, mas não sou eu que vivo, é Cristo
que vive em mim!" E acrescentaremos com o mesmo apóstolo:
"Seja que vivamos — é para o Senhor que vivemos; seja que
morramos — é para o Senhor que morremos!".

SEXTA-FEIRA DA IV SEMANA DO ADVENTO


"Saí de meu Pai e vim ao mundo"
I — O Filho de Deus sai de seu Pai, como brota a chama
do fogo e como a palavra ardente surge da plenitude do
coração. Ele veio ao mundo e revestiu-se da natureza humana,
para fazê-la participar dos esplendores da sua divindade.
Tornou a veste do escravo para cobri-lo com o manto real;
desceu do seu trono de glória para até lá elevar o homem
transfigurado. Estas maravilhas do amor infinito devem excitar
em nós profundos sentimentos de gratidão. E que fizemos para
obter estas graças magníficas? Deus nos amou quando está-

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vamos dele bem distantes. Quanto mais nos há de amar
quando, purificados de nossas manchas, o servirmos com
humilde e fiel piedade! Imitemos os santos, cuja vida era uma
união constante com Jesus Cristo.
II — O Pai todo poderoso, como nos amasse com infinito
amor, deu-nos seu Filho, objeto eterno de sua predileção, para
que dele fizéssemos também as nossas delícias; de modo que
em Jesus Cristo encontram-se Deus e o homem em santo
ósculo! Mas, para desfrutarmos deste divino gozo, precisamos
purificar nossos corações pela renúncia de todos os prazeres
passageiros. O sentimento divino não pode desenvolver-se em
nossa alma e não podemos apreciar senão superficialmente as
doçuras da piedade, enquanto nossa alma procura alegria,
consolo e alívio fora de Jesus Cristo. Mas unicamente as almas
generosas, que tudo abandonam para seguir a Jesus, e a si
mesmas renunciam, encontram em nosso Senhor o maná
escondido. Essas é que sabem saborear o Pão dos anjos que
em si contém todas as delícias e sabores divinais!

SÁBADO DA IV SEMANA DO ADVENTO


Maria concorre à formação de Jesus nas almas
I — Se a semente da palavra apostólica, fecundada pelo
espírito de Deus, faz nascer Jesus Cristo nas almas,
compreende-se a parte ativa que deve ter Maria neste mistério.
A divina Mãe que fez nascer a raiz da árvore, faz também
brotar os galhos e as ramagens; e como Jesus vive em nós,
Maria é nossa Mãe como o é de Jesus. Esta verdade nos dá a
chave das relações que existem entre Maria e os filhos da
Igreja, vivas relações de filiação e de maternidade que
explicam ao mesmo tempo a incessante solicitude da mãe e a
devoção ardente e profunda dos filhos.
O Filho de Deus, que se tornou Filho do homem por
intermédio de Maria, não se envergonha de nos chamar seus
irmãos. Diz a são João: "Eis a tua Mãe!" E a Madalena: "Ide
encontrar meus irmãos e anunciai-lhes que subo para meu
Deus e vosso Deus, para meu Pai e vosso Pai". É assim que
se consuma nossa união com Jesus Cristo. O Senhor, fazendo-
se todo nosso, colocou-nos na intimidade que existe entre ele e
sua mãe. Ele entrou em nossa família, e nos introduziu na sua.
Eis os magníficos títulos de nobreza do cristão!

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II — Todo o progresso da Igreja é fruto da fecundidade de
Maria. Esposa do Espírito Santo e Mãe do Filho de Deus,
coopera para o desenvolvimento das gerações espirituais.
Somos incapazes de explicar o mistério desse concurso, mas
todo cristão sente-lhe os efeitos.
Quanto mais nos apegarmos a Maria por filial e fervorosa
devoção, tanto maior será o número de graças que
receberemos por seu intermédio. Ela não só contribui para
nossa santificação, como também para a nossa regeneração.
Porque os sacramentos, que nos transmitem a vida divina,
procedem de Jesus Cristo, seu Filho, fruto de suas entranhas.
Eis por que sua mão repleta de graças exerce tão poderosa
ação sobre a Igreja e seus fiéis. Que faremos para merecer os
desvelos de Maria? Sigamos o seu próprio conselho: Façamos
tudo o que Jesus nos disser.

VÉSPERA DE NATAL
"Derramai, ó céus, lá dessas alturas, o vosso orvalho, e as
nuvens façam chover o Justo; abra-se a terra e brote o
Salvador" (Is 45, 8).
I — Na véspera de celebrar a vinda daquele que é o bem-
amado do céu e da terra, volvamos para ele nosso olhar,
nossos desejos e nossas esperanças. Busquemos nos livros
sagrados as palavras que devem animar nossas orações
jaculatórias. Digamos com a Igreja: Ó sabedoria
incompreensível, que tudo empreendeis com força e sua-
vidade, vinde mostrar-nos o caminho do céu! Ó esplendor do
Pai, vinde e derramai sobre nós a luz do vosso semblante! Ó
sol de justiça, vinde a nós e vivificai todos que vegetam à
sombra da morte! Ó Salvador do mundo, Rei dos reis, Senhor
das nações! Vinde reinar soberanamente sobre nós!
Formulemos estas súplicas ardentes e acrescentemos
nossas próprias aspirações. Só em Jesus Cristo se encontra o
remédio, o bálsamo, a luz, a unção e os alimentos que nos
podem curar, esclarecer, consolar e saciar!
II — Não nos limitemos a responder com passageiro fervor
às atenções de Deus; ofertemos-lhe nossa firme e perene boa
vontade. Repilamos o que lhe ofende, reavivemos as virtudes
que lhe agradam. Nosso Senhor ama as almas humildes e
generosas; desenvolvamos, pois, estes preciosos sentimentos
e lancemos para bem longe as tentações que exaltam, bem

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como as que desanimam. Que desapareça o amor próprio ante
o amor de Deus! Que a celeste caridade dilate nossos
corações!
Vamos, cheios de confiança filial, à Virgem, nossa Mãe! Foi
ela quem preparou o berço do menino Jesus num presépio; ela
também preparará nossa alma à recepção daquele que vem
deliciar-se em nós.

NATAL
"Encontrareis um menino envolto em panos" (Lc 2, 12).
I — Contemplemos com respeitoso carinho o Deus-Menino
e a Virgem, sua mãe! O Evangelho no-los apresenta
inseparáveis, desde o presépio até à cruz. Quer em Belém,
quer no Gólgota, Maria mostra-se calma, humilde e forte. Goza,
no intimo de seu coração, os mistérios do amor de Deus. Vê
germinar sobre a palha o fermento dos eleitos, o grão que deve
morrer para frutificar nas almas regeneradas, contendo a
semente e a substância de todas as virtudes evangélicas; e
assim pode-se admirar a humildade, a doçura, a pobreza, a
confiança, a resignação, a mortificação, e todos os traços da
santidade que fulgem, como auréola, envolvendo a cabeça de
Jesus. Consideremos esta criança como nosso modelo,
amemo-la como nossa vida e lembremo-nos que a ela nos
devemos assemelhar, para sermos herdeiros do céu.
II — Apliquemos nossos sentidos interiores a ouvir a
melodia dos anjos que cantam o nascimento do Salvador dos
homens. É o cântico da caridade; os espíritos bem-aventurados
se regozijam pela graça concedida aos homens e pela glória
que resulta para Deus. O concerto de suas vozes angelicais é
a expressão dos seus sentimentos e é a vibração dos corações
que se querem em Deus. Exultam felizes no seio da luz,
porque a terra se reconcilia com os céus e o homem é
chamado a viver a vida dos anjos.
Apreciemos a nossa felicidade, compreendamos a nossa
dignidade! Com os espíritos angélicos, vivamos de obediência
e de amor!

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FESTA DE SANTO ESTEVÃO
"Vejo os céus abertos e Jesus Cristo à direita de Deus"
(At 6, 55)
I — A Igreja comemora a festa do martírio de santo
Estevão no dia seguinte à do nascimento do Salvador, porque
esses dois atos se correspondem mutuamente. Depois de
Jesus ter nascido na terra, seus discípulos nascem para o céu
e este nascimento se celebra no dia de sua morte. A morte
propriamente não existe para os discípulos fiéis, alimentados
com o Pão da imortalidade. A Escritura diz que, para o justo,
mais lhe vale o dia da morte que o do nascimento. Esta palavra
é aplicável, sobretudo, aos que vivem e morrem em Jesus
Cristo. Assim santo Estevão que, consoante o exemplo do
Mestre, consagrou sua vida às obras evangélicas. Sua cari-
dade expandiu-se com sua morte: sucumbiu intercedendo por
seus algozes e, por sua morte como por sua vida, atraiu sobre
seu povo as misericórdias de Deus.
Ponderemos sobre este nobre exemplo e, se não formos
destinados a derramar nosso sangue pela salvação de nossos
irmãos, dediquemos-lhes, todavia, os nossos trabalhos e
sofrimentos.
II — No momento de expirar, viu santo Estevão o céu
aberto e Jesus Cristo de pé à destra do Pai. Acrescenta a
Escritura que o rosto do mártir resplandecia como o de um
anjo. Sublime esperança para os que morrem no amor de
Jesus! À medida que se desprendem dos laços terrestres, vão
percebendo os esplendores da Pátria e, enquanto o corpo sofre
as humilhações da agonia, a alma exulta jubilosa à vista de
Jesus Cristo. Este sentimento é tão vivaz, tão intenso, tão
inebriante que transparece num sorriso de beleza sobre a face
dos moribundos. Sejamos fiéis a Jesus na vida e na morte,
para no derradeiro momento podermos exclamar: Vejo os céus
abertos e Jesus à direita de meu Deus!

FESTA DE SÃO JOÃO EVANGELISTA


"Um dos discípulos, a quem Jesus amava, estava
recostado sobre o seio de Jesus" (Jo 13 23).
I — São João é o querido de Jesus e Jesus é o bem-
amado de são João. O discípulo ama e é amado. É amado por
amar, e ama por ser amado. Amou-o Jesus primeiramente, e
assim como o fogo tanto mais faz arder e excitar o próprio fogo

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quanto mais combustível encontra, assim o coração do Deus
de amor abrasa o coração de seu predileto, nele ateando
inefável incêndio de amor. As comunicações recíprocas entre
esses dois corações avivam-se; as expansões de um crescem
em proporção às atrações do outro; quanto maior é essa mútua
doação, mais se dão amor por amor. Quão ditosa é a alma
amante que, reclinada sobre o coração de Jesus, aí busca seu
repouso, seu consolo e sua vida! É especialmente nos
colóquios após a comunhão que saboreia esses deliciosos
segredos do céu.
II — Sobre o peito de Jesus é que o apóstolo privilegiado se
alimenta misteriosamente das efusões da caridade; farta-se da
própria essência do amor. E, mergulhado na fonte da vida, é
como esponja embebida nas águas da graça. Seu amor
liquefaz-se, por assim dizer, sobre o coração ardente de Jesus
e transforma-se no próprio Jesus, como em ígnea chama se
transforma o metal colocado ao fogo. É peculiar ao amor unir
aqueles que se estimam e assemelhá-los mutuamente. São
João, que atingiu, em grau supremo, a união íntima com o
Mestre amado, reproduz sua imagem e semelhança; como
Jesus, torna-se o filho querido de Deus e predileto de Maria.
Ponderemos sobre este mistério da vida interior; en-
tendamos que foram manifestados na pessoa de são João, tão
somente para nos dar a compreender o manancial de graças
reservado por Deus à alma fiel.

FESTA DOS SANTOS INOCENTES


"Foram resgatados dentre os homens, para serem
oferecidos como primícias a Deus e ao Cordeiro" (Ap 14, 4).
I — Enquanto no céu os anjos cantam o nascimento do
Salvador, erguem-se da terra clamores desesperados. Jesus
principiou apenas a viver e, nos arredores de Belém, tiram
cruelmente a vida a todas as criancinhas. Como combinar com
essa horrenda carnificina as promessas que anunciam paz e
alegria a todo o universo? É que os frutos da Redenção são
maiores para o céu do que para o mundo. Jesus Cristo nos
abre o céu, mostra-nos o caminho, e inaugura sobre a terra a
vida dos anjos. Ensina-nos a desprezar os prazeres efêmeros,
as vãs alegrias, as satisfações de uma vida curta e breve;
eleva-nos acima dos horizontes deste mundo. Eis por que, já
em seu nascimento, ele recolhe as primícias da Redenção e

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para o céu transplanta as primeiras flores dos bem-
aventurados.
Aqui, as provações, os combates, os sofrimentos; lá, a
Pátria e a recompensa. No céu, portanto, devemos firmar
nossa felicidade verdadeira e eterna.
II — A astúcia e a espada, que Herodes emprega para
atentar contra a vida do menino Jesus, manifestam os
processos de que se utiliza o espírito do século para com os
que entram nas vias da verdadeira piedade. Desde que uma
alma começa a viver para Jesus Cristo, deve dispor-se a sofrer
muitas provações e munir-se de paciência; mas, quer o inimigo
nos ataque sorrateiramente, por insidiosas tentativas, quer nos
faça guerra aberta, saibamos que as perseguições fazem bem
porque nos mantêm alertas, desprendidos da terra, servem de
estímulo às virtudes, provocam a oração e são causas de
triunfo. Bem-aventurados os que sofrem pela justiça: entrarão
no reino de Deus.

QUARTO DIA NA OITAVA DE NATAL


"Nasceu-nos um menino, um filho nos foi dado" (Is 9, 6)
I — O profeta Isaías, ao contemplar em espírito o mistério
do presépio, exclamou em êxtase: "Nasceu-nos um menino!"
Consideremos por nossa vez o divino infante de Belém: esta
criança é o Filho do Altíssimo, é o amor encarnado! Por que
nos veio sob as frágeis aparências de uma criancinha? Para
inspirar amor e não temor. A criança tudo dá, tudo perdoa, tudo
esquece; nada se lhe compara em simpatia e em graça; sorri-
nos reclinada ao colo de sua mãe, cativa nossa confiança,
convida-nos a participar de sua intimidade. Como não nos
sentirmos atraídos pela sua doçura, por sua simplicidade, por
seus carinhos, por suas divinas atenções?
Exclamemos, portanto, com Davi: "Sois o Deus do meu
coração e minha partilha para a eternidade!".
II — Desejamos ser queridos por esse Deus de amor?
Tornemo-nos pequeninos como Jesus, sejamos crianças como
ele foi. "Deixai vir a mim as criancinhas!" Ele encobre seus
segredos aos homens que se reputam grandes sábios, e
revela-os familiarmente aos humildes e mansos. Aquele que é
infinitamente grande fez-se extremamente pequeno. Devemos,
por conseguinte, diminuir, para encontrá-lo; humilhar-nos para
gozá-lo, assemelhar-nos a ele para o amarmos. As virtudes da

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infância evangélica brotam à sombra da humildade. Cultivemos
estas virtudes; aos pés do presépio aprendamos a divina
obediência, a simplicidade, o amor ao silêncio, o gosto pela
vida interior, a indiferença ao bem estar, a paciência nas
privações, o sacrifício pessoal. Então amaremos e seremos
amados.

QUINTO DIA NA OITAVA DE NATAL


"Os pastores disseram uns aos outros: Vamos a Belém!"
(Lc 2, 15).
I — A prontidão dos pastores oferece-nos um tema sublime
para meditação. Esses homens simples e vigilantes, apenas
avisados pela voz do anjo, convidam-se mutuamente a ir ver o
Menino que nascera; e dóceis ao impulso do alto, põem-se
imediatamente a caminho. Este exemplo deve, em todas as
circunstâncias, excitar nossa emulação; pois não somos, nós
também, frequentemente, convidados a procurar o nosso
Salvador? As atenções da graça, as inspirações de nossa
consciência, as advertências particulares e as exortações
públicas têm por finalidade exclusiva atrair-nos a Jesus Cristo.
Os pastores não se demoram em vagas resoluções;
obedecem prontamente e fielmente correspondem; animam-se
e estimulam-se mutuamente, em vez de se entregarem à
dúvida e deixar passar o tempo da graça. Sejamos, como os
pastores, atentos à voz de Deus, prontos à obediência e
zelosos em edificar o próximo.
II — Se os pastores se demorassem em seguir para Belém,
correriam risco de não encontrar mais Jesus. Os adiamentos
no caminho do Senhor estorvam os desígnios da Providência;
porque, às dificuldades que embargam o primeiro impulso,
sobrevêm outros imprevistos e então tudo se complica: a boa
vontade se cansa, o ardor esfria, e a graça, desprezada, se
retira em busca de outras almas mais fiéis. Se ouvirdes hoje a
voz do Senhor, não lhe deixeis a resposta para amanhã.
Respondei com o pequeno Samuel: "Falai, Senhor, que vosso
filho vos ouve!" Dizei com os pastores: "Vamos a Belém!" E
com Maria: "Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo
a vossa palavra!".

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SEXTO DIA NA OITAVA DE NATAL
"Maria conservava todas estas coisas em seu coração" (Lc
2, 51)
I — A santíssima Virgem, atenta às maravilhas que se
operavam ante suas vistas, recolhia-se no íntimo do seu
coração para meditá-las e gravá-las em seu espírito. Eis em
poucas palavras a história de sua vida. Participar dos mistérios
de Jesus Cristo e aderir-lhes por frequentes atos de
submissão; era esta toda a ocupação de Maria. Conquanto
cooperadora dos fatos extraordinários que medita, não se
prevalece de nenhuma prerrogativa, esquece, quase, que é
filha de reis e Mãe de Deus; sua única aspiração é viver
escondida à sombra de sua humildade virginal. Se desejarmos
apreciar, como Maria, o segredo da vida interior, renunciemos
generosamente a nós mesmos e nos entreguemos sem
reserva à glória de Deus e à salvação das almas.
II — O Evangelho nos inicia nos segredos do coração de
Maria, mostrando ser sua perfeição fruto de sua humildade. A
própria Virgem no-lo declara: "O Altíssimo olhou a humildade
de sua serva!" Não é nem o número, nem a grandeza das
ações que operam a santificação do homem. O perfeito cristão
é aquele que, sob a influência do espírito de Deus, vive
humildemente com Jesus e para Jesus. Se aspiramos,
portanto, à santidade, guardemos em nosso coração a palavra
divina e meditemo-la constantemente para encontrarmos nossa
luz e nossa força. Ela santificará nossos deveres quotidianos e
todos os nossos pensamentos futuros. Imitando Maria,
estamos certos de agradar a Deus.

PRIMEIRO DE JANEIRO FESTA DA CIRCUNCISÃO


"Eu disse: Eis que venho, conforme está escrito de mim na
cabeceira do livro, para fazer a tua vontade. Deus meu, eu o
quis e a tua lei está no íntimo do meu coração" (SI 39, 8, 9).
I — Estas palavras proféticas realizaram-se em Jesus
Cristo. O Filho de Deus, encarnado na natureza humana, fez-
se obediente para reparar a insubordinação do primeiro
homem. Desde sua entrada no mundo, aceita, como os outros
filhos de Abraão, a marca da primeira aliança, a fim de, com
seu exemplo, santificar a humilde e perfeita obediência às
observâncias religiosas. Sua vida inteira, desde seu
nascimento até ao supremo momento em que expira sobre a

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cruz, é uma série ininterrupta de generosos atos de obediência,
imolação e sacrifício. Eis como deve ser a vida dos verdadeiros
discípulos de Jesus. É justamente ao iniciar-se um novo ano
que convém recordar esta grande verdade, pois a sabedoria
cristã e a felicidade sólida consistem em imitar nosso divino
Modelo, desde o princípio até ao fim. Deixemos atrás o
passado; demos um novo e vigoroso impulso no serviço de
Deus, para, em progressiva carreira, atingirmos o fim elevado
do nosso glorioso destino.
II — Considerando a brevidade da vida e a fragilidade das
coisas transitórias, despertemos fortemente em nós as
esperanças evangélicas e apeguemo-nos fielmente aos bens
eternos. Volvamos ao passado para recomendá-lo à divina
misericórdia; o futuro confiemo-lo à Providência! Apliquemo-
nos, no entanto, a bem empregar o presente, para que ele nos
conduza a uma feliz eternidade. O Senhor, ao nos conceder
este ano, quiçá o último de nossa peregrinação terrestre, quis
continuar a fertilizar nossa alma com sua palavra, suas graças
e seus sacramentos.
A vontade de Deus é que colhamos muitos frutos. Tra-
balhemos, portanto, com duplo fervor no serviço daquele que é,
unicamente, bom; tomemos corajosamente seu jugo, tão suave
às almas amorosas, e permaneçamos dignos de nossa
vocação.

2 DE JANEIRO
"E ao Menino foi posto o nome de Jesus" (Lc 2, 21).
I — Do santíssimo nome de Jesus, conferido ao Deus
menino no dia da circuncisão, emana inesgotável fonte de
assuntos para meditação. Contém em substância os mistérios
do coração de Deus e os mistérios do coração do homem. É o
objeto da nossa fé, da nossa esperança e do nosso amor;
resume toda a religião. O apóstolo são Paulo nos ensina que
esse nome augusto está acima de todos os outros e que, ao
nome de Jesus, todos os joelhos se dobrem no céu, na terra e
nos infernos. Faz palpitar de júbilo os bem-aventurados e
tremer os pecadores. Mas já que, segundo o apóstolo, a
nenhum ente é dado pronunciar eficazmente este nome
bendito, sem uma graça especial, peçamos esta graça e
atraiamo-la, repetindo frequentemente o nome de Jesus, como

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se fora o objeto de nossas mais vivas aspirações e de nossos
mais fervorosos atos de amor.
II — O adorável nome de Jesus é cheio de vida, de luz e de
virtude. Alimenta a alma, ilumina o pensamento e cura todas as
nossas fraquezas. Por nenhum outro nome poderemos ser
salvos. A este nome único, prendamos todas as perfeições do
nosso coração, todas as potências do nosso espírito, todas as
fibras de nossa vida. Ele é nosso consolo, nossa salvação,
nosso tesouro. Por ele somos resgatados, por ele somos
atendidos, por ele são dominadas as nossas tentações. É
nossa caução perante Deus, nossa glória ante os anjos, nosso
estandarte perante os homens, nossa armadura perante o
mundo.
Apoiados perpetuamente sobre este nome salutar, nada
temamos, mas tenhamos confiança. Juremos viver e morrer
pelo nome de Jesus!

3 DE JANEIRO
Festa de santa Genoveva, padroeira de Paris
I — Consideremos o traço característico da santidade
dessa humilde pastora. Disse o apóstolo: "Que as virgens se
ocupem das coisas de Deus, para serem puras de corpo e de
espírito". E foi esta palavra que Genoveva realizou
generosamente. Prevenida com as bênçãos celestes,
consagrou-se desde criança ao Senhor e, fiel nas mínimas
coisas, seguia firme o caminho que lhe traçara a obediência.
Amava sua pobreza, seu cajado, sua obscuridade; sua única
aspiração era conformar sua vida com a que levaram Jesus e
Maria. E por este caminho é que galgou os cumes da perfeição
evangélica. Tornou-se modelo para as virgens, edificação para
os seus contemporâneos, consolo para toda a Igreja.
II — Ânimo, minha alma! Abre-te às inspirações generosas,
e entrega-te sem reservas àquele que entre mil te escolheu! A
eminente santidade de Genoveva nos demonstra que as
graças maiores brotam no seio da fraqueza e que tudo pode
esperar de Deus quem lhe corresponde à graça. Se aspiramos
gozar a paz de Deus, estimemos a santa obediência,
dominemos a natureza pela mortificação e pela oração;
permaneçamos no amor de Jesus Cristo. Desta forma
progrediremos gradualmente no caminho dos santos e,

46
ascendendo de virtude em virtude, seremos afinal unidos por
laços inefáveis ao celeste Esposo.

4 DE JANEIRO
"Havia uma profetisa por nome Ana, que dele falava a
todos que aguardavam a redenção de Israel" (Lc 2, 36. 38)
I — Sigamos o exemplo da santa mulher do Evangelho. O
que ela fez no templo, façamo-lo na casa de Deus. Permanecia
constantemente na presença do Senhor, servindo-o dia e noite,
em jejuns e orações. A melhor prática do jejum consiste, sem
dúvida, em conceder ao corpo apenas o estritamente
necessário; mas, para que seja eficaz, é forçoso também impor
um rigoroso freio aos apetites desregrados do amor próprio, da
nossa vontade e da natureza corrupta. É o exemplo que nos
oferece esta viúva tão avançada em idade; ao jejum associa a
meditação e a prece, pois estas duas últimas práticas se
completam mutuamente. A meditação nutre a vida da alma,
aumentando-a, enquanto o jejum diminui a vida carnal e a
mortifica. Eis o duplo trabalho da mortificação: destruir o
homem antigo, edificar o novo, morrer quotidianamente a si
próprio, e viver sempre mais na vida de Deus.
II — Diz santo Agostinho que a meditação é o movimento
do coração tendendo para Deus; movimento de atração e de
expansão; porque, por um primeiro ato, atrai o espírito, a luz e
a vida, e depois, por um segundo ato, reage para Deus e lhe dá
amor por amor. É um comércio, diz o mesmo santo, mas esse
comércio ou comunicação recíproca age mais pela efusão do
coração do que pela profusão de palavras. Para falar ao ouvido
do homem, serve-se da boca, mas para falar ao ouvido do
Senhor, faz-se uso do coração. A oração íntima e silenciosa
torna a língua por si mesma eloquente e, como a santa
profetisa Ana, os que perseverarem na piedade fazem
conhecer Jesus Cristo, não somente por suas obras, como pela
sua conduta e seus discursos.

5 DE JANEIRO
"O menino crescia e se fortalecia em espírito" (Lc 2, 40)
I — As condições para o crescimento espiritual são
idênticas às do desenvolvimento corporal. Na ordem da graça
assim como no reino da natureza, os progressos se efetuam
gradualmente. A humanidade de Jesus quis submeter-se a

47
essa lei, e a plenitude da sabedoria, residente no divino infante,
ia se manifestando exteriormente, conforme às condições
ordinárias da vida. Nosso divino Modelo quis atravessar os
diversos graus do crescimento para nos deixar, em todas as
idades, os tipos e as graças da santidade. Ele nos mostra que
na vida espiritual é necessário progredir sempre, sem nunca re-
cuar, e gradualmente, de virtude em virtude, de claridade em
claridade, atingir a madureza da idade perfeita.
II — Já que o próprio Santo dos santos não quis alcançar
de outro modo, a não ser gradualmente, o seu completo
desenvolvimento, não estranhemos, pois, com nos acontecer
da mesma forma na vida espiritual. O progresso, tanto na
ordem da graça quanto na ordem da natureza, segue seu curso
normal, não vai aos pulos e saltos. Ordinariamente são
imperceptíveis e só verificamos os seus frutos após um período
mais ou menos longo. A semente deverá germinar no coração
do homem antes de surgir a árvore da perfeição cristã; e é
somente depois de exercitar seriamente a paciência e prová-la
bastante que, finalmente, a alma se desenvolve e frutifica;
como seu divino Modelo, ela se transforma num jardim de
delícias, em um templo de glória, em um santuário de virtudes
e, por assim dizer, em um céu na terra.

6 DE JANEIRO FESTA DA EPIFANIA1


"Vimos sua estrela no oriente e viemos adorá-lo" (Mt 2,2)
I — A Epifania é o mistério da manifestação de Jesus
Cristo aos Magos do Oriente, representantes das primícias do
paganismo. E, apenas nasceu o Messias, de seu berço jorram
raios de luz e as bênçãos prometidas a Abraão propagam-se
sobre todas as nações da terra. Devemos hoje nos regozijar
com a vocação dos gentios e pedir a Deus que termine sua
obra. Mas o que se aplica pessoalmente a nós é o mistério da
vocação, figurada pela estrela misteriosa. Certamente a luz da
verdade se manifesta a todos os homens para iniciá-los no
conhecimento de Jesus e mostrar a cada um o caminho que
deverá trilhar para chegar a ele. Assim, por um lado, a estrela

1
Depois da reforma do calendário litúrgico de 1969, a Igreja deixou
de fixar a data da festividade da Epifania do Senhor no dia 06 de
janeiro, indicando o segundo domingo depois do Natal para tal
celebração. (N. do revisor)

48
do Oriente ilumina os Magos e os guia; por outro,
compreendem eles a significação da estrela e seguem-na até
aos pés de Jesus. Exemplo sublime de fidelidade para todos os
que ouvem o chamado de Deus e obedecem com ânimo e
retidão.
II — Após a graça do batismo que principia a nossa
salvação e a graça de uma boa morte que a termina, não há
graça mais importante que a da vocação, pois é como o ponto
intermediário que une a primeira graça à última. É ela o
primeiro elo da cadeia de ouro que se desenrola sobre nosso
destino neste mundo e vai se fixar na eternidade. Todo o
mistério do nosso futuro versa sobre este ponto e nele se
encontra a chave da nossa felicidade ou da nossa desdita. A
teologia nos explica sua razão. Deus confere sua graça ao
estado para o qual nos chama; portanto, sair deste estado ou
recusar nele ingressar, é privar-se voluntariamente da graça, é
desmanchar os desígnios de Deus, é seguir rumo contrário às
vistas da Providência. De fato, quantos condenados não
haverá no fundo do inferno que seriam talvez santos, se
houvessem trilhado o caminho traçado por Deus! "Felizes
daqueles que seguem o caminho que o Senhor lhes
manifestou, que o percorrem com constância e dele nunca se
desviam", diz o livro sagrado. Maldição, pelo contrário, aos que,
pela sua culpa, rompem a cadeia de graças que o Senhor lhes
havia preparado para os conduzir à felicidade!
"Ó homem! — exclama são Basílio — quem quer que
sejas! Se amas teu Deus, se temes o inferno, sê fiel à tua
vocação e nela persevera até ao fim".

7 DE JANEIRO NA OITAVA DA EPIFANIA


"Onde está o rei dos judeus que nasceu?" (Mt 2, 2)
II — Os reis do Oriente dão ao mundo um grande es-
petáculo de abnegação. Sendo reis, vão à procura do Rei dos
reis, para a seus pés humildemente se prostrarem e
oferecerem suas adorações e seus presentes. Prosseguem
sempre avante em sua rota, sem lastimar o que deixaram, sem
recear o que poderão sofrer no caminho; e, com os olhos fitos
na estrela que os orienta, seguem fielmente seu guia celeste,
apressando ou retardando a marcha, conforme os diversos
movimentos do astro. Exemplo de dócil correspondência à
graça que imitaremos tomando por movei de nossa conduta a

49
completa submissão à vontade de Deus. Ora, esta vontade
divina a nós se manifesta pela nossa consciência, pela palavra
de nossos superiores, pelos ditames da santa regra, pelos
deveres de nossos encargos. São estes os diversos raios da
estrela que nos guia no caminho de Deus.
II — Os reis magos não esmorecem ante nenhuma
consideração da prudência humana; não desanimam mesmo
quando a estrela se oculta a seus olhares. Privados da luz
visível, apoiam-se unicamente na sua fé e prosseguem
corajosamente em seu caminho, embora privados das celestes
consolações. Eis como deve proceder a alma cristã nas
provações da fé, porque Deus às vezes parece esconder-se,
para experimentar nossa paciência, e nos retira o fervor
sensível para nos arrancar dos sentidos e fortificar nossa
vontade. O perigo nessas privações tão salutares é de estacar
no caminho ou retroceder; o mérito está em continuar o tra-
balho iniciado e em perseverar na confiança que nunca será
desiludida; assim como ela conduziu os reis do Oriente ao
termo feliz de sua peregrinação, nos conduzirá igualmente a
nossos imortais destinos.

8 DE JANEIRO NA OITAVA DA EPIFANIA


“Herodes se perturbou, e toda Jerusalém com ele" (Mt 2, 3)
I — Se esperavam o Messias, por que se perturbaram os
judeus com Herodes, ao ouvir os rumores sobre os
acontecimentos de Belém? Subjugados pelo espírito do mal,
temiam a luz de Deus, como a vista fraca receia a claridade
ofuscante do dia. Assim sucede com todos os que têm má
consciência: fogem às influências que poderiam despertá-los
ou esclarecê-los. A simples face de um ministro do Senhor é
suficiente para perturbar os espíritos tenebrosos; e quanto se
empenharam os Magos em encontrar o caminho da salvação,
tanto esses espíritos frívolos e culposos se apressam em dele
se afastar. Querem permanecer independentes, entregues aos
seus prazeres, viver à sua vontade, subtrair-se a todo jugo e
incômodo; evitam qualquer palavra, encontro ou lembrança que
se refira à sua falsa tranquilidade, e inquietam-se com o que
deveria alegrá-los e edificá-los. É para nos preservar desta
desgraça que a todos previne o Senhor: "Aquele que ama sua
vida, a perderá; e quem aborrece a sua vida neste mundo,
conservá-la-á para a vida eterna" (Jo 12, 25).

50
II — Compreendamos a santa alegria dos reis do Oriente
quando, ao saírem de Jerusalém, encontraram novamente a
estrela bendita que os guia até ao berço do Deus de amor.
Essa luz celeste é para eles, então, ainda mais preciosa, pois
se haviam conservado fiéis a ela, mesmo quando a tinham
perdido de vista. Sua fé obtém a melhor das recompensas: eles
contemplam os semblantes admiráveis de Jesus e de Maria!
Eles transbordam de alegria. Esta consolação suprema é
concedida unicamente àqueles que, como os Magos,
perseveram no caminho de Deus, apesar dos sofrimentos,
obscuridades, combates e fadigas; e que, em meio a tantas
provações, conservam o coração cheio de ânimo e de es-
perança. Felizes os que alcançam a vitória! O Senhor os
alimentará com o maná escondido e os deliciará plenamente!

9 DE JANEIRO NA OITAVA DA EPIFANIA


"Herodes convocou os príncipes dos sacerdotes e os
doutores da lei, a fim de se informar sobre o lugar em que
deveria nascer o Messias"
(Mt 2, 4)
I — As investigações do rei Herodes, em si mesmas nada
tinham de repreensível. Podemos buscar esclarecimentos junto
àqueles que têm a missão de ensinar, contanto que a nossa
consulta seja motivada por uma séria intenção. Tais não eram,
porém, as disposições de Herodes, que dissimulava maus
desígnios. Encontramos, frequentemente, essa dissimulação
em pessoas que vivem a consultar, conservando, todavia, seu
próprio parecer. Buscam de bom modo a luz, admitindo-a,
contudo, somente quando não for de encontro a seu amor pró-
prio, às suas paixões ou aos seus interesses. Tudo camuflam,
com o propósito de achar uma evasiva e assim escapar a
soluções que acarretariam obrigações à sua consciência.
Essas pessoas se iludem a si mesmas, julgando enganar aos
outros, e acabam por se desnortearem num intricado labirinto.
Acautelemo-nos contra esses erros, e façamos presidir, em
nossas pesquisas da verdade, a mais reta intenção, seja
quando buscamos conhecê-la, seja quando, já de posse de seu
conhecimento, procuramos pô-la em prática.
II — Admiremos a solicitude com que a divina Providência
consignou nas sagradas Escrituras o que se refere ao
conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo, e aos problemas

51
que interessam à salvação. Os ensinamentos sagrados brilham
com intensa luz para as almas de boa vontade, e hoje, para
progredirmos no caminho da salvação, não carecemos nem de
novas revelações, nem de estrelas milagrosas. É suficiente
ouvirmos docilmente as instruções ministradas pela Igreja e
transladá-las para a vida prática. Nesta escola infalível,
aprenderemos tudo o que devemos saber, amar e esperar. Aí
aprenderemos que é a humildade que eleva a criatura à ver-
dadeira ciência; a caridade que lhe faz atingir a santidade, e a
pureza de coração que a conduz à visão de Deus.

10 DE JANEIRO NA OITAVA DA EPIFANIA


"Os Magos encontraram o Menino com Maria, sua Mãe, e,
prostrando-se, o adoraram" (Mt 2, 11)
I — Repete o Evangelho, por ocasião da visita doe reis do
Oriente, as mesmas suaves e instrutivas palavras,
anteriormente pronunciadas quando se referiu aos pastores de
Belém: "Encontraram o Menino com Maria, sua Mãe".
Demonstração eloquente de que se deve ir a Jesus por Maria;
que Maria nos apresenta a Jesus e Jesus nos atrai a Maria;
que Jesus nunca está sem Maria, nem Maria sem Jesus. Jesus
e Maria, inseparáveis em todos os atos do Evangelho, desde o
presépio até à cruz, permitem-nos crer que essa união
subsistirá pela continuação dos séculos. Conservemos sempre
enlaçados estes dois nomes, nos nossos pensamentos, em
nossas afeições, em nossas esperanças. Salienta o Evangelho
que os Magos adoraram apenas ao Menino, porque, realmente,
culto de adoração só se presta a Deus. Mas prostraram-se ante
os dois, porque Maria é o trono do Rei dos reis, o santo
candelabro portador da luz. Por Maria é que o Filho de Deus se
manifesta ao mundo; é ela a nova Eva que nos oferece o fruto
da vida.
II — Contemplemos o divino Infante descansando entre os
braços e sobre o coração de sua Mãe, no momento em que
recebe a adoração dos Magos. Nesse coração maternal, como
em um ninho de amor, é que devemos procurar o Senhor, para
adorá-lo profundamente e gozar de sua extrema suavidade.
O coração de Maria abraça o Imã celestial que miste-
riosamente atrai as almas amorosas; é o tabernáculo do Santo
dos santos. Prostremo-nos, como os Magos, aos pés desse
sagrado altar e aí depositemos as nossas afeições, nossos

52
trabalhos, nossos pesares; aí busquemos nosso descanso e o
alimento para o nosso coração. Junto a Maria sentiremos os
irresistíveis atrativos do amor de Jesus e, então, exultaremos
com Davi: "Senhor, vossas consolações encheram de alegria a
minha alma, na proporção das muitas dores que atormentaram
o meu coração" (SI 93, 19).

11 DE JANEIRO NA OITAVA DA EPIFANIA


"Os Magos, tendo aberto seus tesouros, ofereceram-lhe
ouro, incenso e mirra" (Mt 2, 11)
I — Procuremos penetrar o sentido profundo das ofertas
depositadas pelos Magos aos pés do menino Jesus. A fonte de
onde tiraram seus místicos tesouros é o seu próprio coração.
Nele buscam o ouro verdadeiro, aquele que a ferrugem não
consome, e nem podem roubar os ladrões, isto é, a caridade,
moeda preciosa com que se adquire o céu. Se o ouro é o
símbolo da caridade, o incenso representa o suave perfume da
oração. Mas a esses dois elementos da piedade acrescenta-se
a mirra, figura da mortificação e do sofrimento. Esta tríplice ho-
menagem sintetiza todo o culto devido a Deus pela criatura.
Imitemos os reis do Oriente e, abrindo a urna sagrada dos
nossos corações, ofertemos ao divino Salvador o se a precioso
conteúdo, prestando assim homenagem à sua divindade, à sua
humanidade e à sua realeza!
II — Como retribui o Senhor aos Magos? Igualmente: —
ouro, incenso e mirra! — O ouro de Jesus é o preço de seu
sangue, cujo valor ultrapassa qualquer apreciação. O incenso
de Jesus é o bálsamo da sua palavra, cheia de graça e de
verdade. A mirra é a cruz, instrumento bendito da redenção do
mundo. Assim correspondem os dons de Deus às oblações dos
homens; e nesse maravilhoso intercâmbio, domina o Senhor
por sua generosidade! Tudo receberá aquele que inteiramente
se entregar, podendo exclamar com a Esposa do Cântico:
"Pertenço a meu dileto e ele a mim!".

12 DE JANENRO NA OITAVA DA EPIFANIA


"Quando Jesus chegou aos doze anos, seu pai e sua mãe
o levaram a Jerusalém" (Lc 2)
I — Entrava nos secretos planos da Providência que, no
caminho de Jerusalém, José e Maria perdessem de vista o
Menino confiado a seu amor. Mas, como avaliar a extensão de

53
tamanha aflição? Ansiosamente rebuscam por toda parte, sem
se permitirem descanso, dia e noite, até que o encontram no
templo! Proveitosa lição que ensina às almas dos fiéis a não
desanimar nas fugas do Senhor, quando ele as experimenta
com a retirada de sua presença sensível. Esta espécie de
provação produz uma ação purificadora. A alma que, vencendo
as securas e angústias que lhe desolam a piedade, persevera,
contudo, nos seus trabalhos e fadigas, excede-se a si mesma;
aprende a se dominar na paciência; sua vontade torna-se mais
generosa, suas afeições mais sobrenaturais; e, no seu
desprendimento exterior, mais intimamente se une a Deus.
Aprendamos ciosamente esta lição evangélica, para,
quando nos ferir a provação, sabermos dela retirar os devidos
frutos.
II — Atentemos na resposta dada por Jesus a seus pais:
"Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me
com os negócios de meu Pai?" Tal palavra desconcerta os
sentimentos da natureza. Mostra-nos ela, no entanto, que, se é
grande o preceito de obedecer aos pais, bem maior ainda é o
que ordena obediência a Deus; e, apresentando-se em conflito
essas duas autoridades, é nosso dever preferir Deus aos
homens, conforme ensinam as sagradas Escrituras. E o nosso
divino Modelo quis, nesta conjuntura, apoiar sobre seu próprio
exemplo a regra da conduta traçada no Evangelho: "Aquele
que ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno
de mim. Aquele que por mim deixar seu pai, sua mãe, seus
irmãos, suas irmãs e tudo o que lhe pertencer, receberá o
cêntuplo neste mundo e possuirá a vida eterna". Concluamos
com santo Agostinho e com toda a teologia que, quando Deus
nos chama para o seu serviço, não podemos alegar nenhuma
consideração humana que nos dispense de responder a seu
chamado. Em matéria de vocação qualquer resistência
compromete a eterna salvação.

13 DE JANEIRO NA OITAVA DA EPIFANIA


"Jesus desceu, e foi a Nazaré com José e Maria, e era-lhes
submisso" (Lc 2, 51).
I — Este texto evangélico nos desvenda o mistério da vida
interior de Jesus, vida de obediência e de amor. "Era
submisso". Esta palavra resume tudo. "Ele fez-se obediente até
à morte, e morte de cruz!" Por sua perfeita obediência, reparou

54
o Salvador a insubordinação do primeiro homem; foi a condição
da nossa reconciliação com o céu. Um único pensamento
dominava Jesus, em Nazaré, e em qualquer momento de sua
vida: fazer a vontade do Pai celeste. Como discípulos de
Cristo, devemos pautar os nossos atos por pensamento, seja
para trabalhar ou sofrer, para viver ou morrer. A obediência é a
estrada real que conduz ao reino de Deus; que possamos, por
conseguinte, em todas as horas da vida, afirmar com Jesus:
"Faço sempre aquilo que apraz a meu Pai".
II — Representemo-nos a oficina de Nazaré. Nosso
Senhor, bem criança ainda, auxilia são José em suas rudes
tarefas; cumpre a lei primitiva que ordena ao homem ganhar o
pão com o suor do seu rosto. É um menino ativo, cheio de vigor
e de zelo; e ao mesmo tempo conserva-se calmo, paciente,
modesto. Permanece tranquilamente unido à vontade de seu
Pai por seu silêncio, seu recolhimento e sua oração habitual.
Imitemos o nosso supremo Modelo, aprendamos com ele a
santificar as nossas obrigações, até as mais vulgares, pela
oração do coração. Compreendamos que se pode praticar a
mais alta perfeição, executando os mais humildes propósitos, e
que a alma, unida a Deus pelo amor e pela obediência,
ascende, em progressão constante, até atingir a mais eminente
santidade.

14 DE JANEIRO APÓS A OITAVA DA EPIFANIA


"Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça,
diante de Deus e diante dos homens" (Lc 2, 52).
I — O Evangelho insiste sobre o mistério do crescimento
de Jesus. A santa humanidade do Salvador se desenvolve
normalmente, conforme às leis ordinárias, para servir de
modelo nas diversas fases da vida e a fim de, a todas as
idades, deixar o tipo da perfeição celeste. Devemos, a seu
exemplo, crescer em virtudes e aperfeiçoar, sem
esmorecimentos, a nossa vida espiritual; fatalmente se
deteriora aquilo que cessa de melhorar. Se não progredimos,
recuamos; se não subimos, descemos. Tal como acontece à
vida corporal, também a espiritual não pode permanecer
estacionária. Ela adianta-se ou retrocede; deve tender à
perfeição por constantes esforços e por ardentes aspirações; e
se, neste mundo, não chegamos à perfeita conformidade com
Deus, compete-nos trabalhar para dela sempre mais nos

55
aproximarmos. A vontade de Deus é que sejamos santos e o
ideal da santidade é Jesus Cristo.
II — Consideremos que o estado religioso protege e facilita,
de modo singular, o crescimento espiritual dos que foram
agraciados com o chamamento divino; basta-lhes seguir o
caminho traçado pela regra, para escalar com passo firme os
degraus da santificação. Na realidade, a regra da vida religiosa
baseada na prática da abnegação, da obediência e da caridade
é, de certo modo, o vínculo que subordina todos os atos da
vida à vontade de Deus. A regra traça à nossa conduta a linha
reta que leva ao céu; mantém o equilíbrio das disposições da
alma e gradativamente a faz ascender até alcançar a completa
conformidade com o divino Modelo.
Olhos fixos em nosso fim sublime, prossigamos firmes,
sustentados pela graça e estimulados pelas promessas do
Evangelho.

15 DE JANEIRO APÓS A OITAVA DA EPIFANIA


"A vereda dos justos, como a luz que resplandece,
vai adiante, e cresce até ao dia pleno" (Prov 4, 18).
II — A Escritura compara o desenvolvimento da alma
cristã ao progressivo aumento da luz que, fraco e apenas
imperceptível a princípio, avoluma-se até à esplendente
claridade do meio dia. Eis a imagem do crescimento da alma,
que é uma gradativa expansão da caridade e constante
ascensão para o amor. Por este movimento ascendente,
progride o cristão sem cessar, passando do bem ao melhor e
do melhor ao perfeito. As virtudes se atraem mutuamente; cada
progresso atingido prepara o alcance de outro; cada graça
germina outra graça. Unidos a Jesus, como o são os raios ao
sol, com ele cresçamos, e, seguindo seu exemplo, irradiemos,
no âmbito em que vivemos, o calor e a vida.
II — Se nosso aperfeiçoamento contribui para a glória de
Deus e assegura nossa própria felicidade, como devemos
considerar infelizes e culpáveis aqueles que, depois de
haverem dado alguns passos na estrada santa, negligenciam,
param e sucumbem! O Evangelho os premune contra esse
perigo, com estas significativas palavras : "Quem, depois de
haver posto mão à charrua, olhar para trás, não é digno do
reino nos céus". A tentação de retroceder é, realmente, bem
perigosa, pois se desce com maior rapidez do que se sobe, e

56
quem escorregou uma vez, está arriscado a facilmente cair. O
meio seguro de evitar as quedas é cumprir humildemente o re-
gulamento que consagra o tempo da oração e salvaguarda os
deveres quotidianos.

16 DE JANEIRO APÓS A OITAVA DA EPIFANIA


"Deus nos chamou, por uma vocação santa, a sermos
santos"
(2 Tim 1, 9).
II — O destino do cristão, discípulo de Jesus Cristo, é
viver eternamente com o Santo dos santos, na Pátria celestial.
"Onde estou, aí estão os meus" — disse Jesus. A graça que
nos separa do mundo para nos chamar ao serviço de Deus,
eleva-nos acima do mundo para nos unir a Deus e nos santifica
para nos tornar dignos de Deus. Jesus Cristo, ao mesmo
tempo que nos ordena sermos santos, apresenta-nos em sua
pessoa o modelo da santidade e pelos seus sacramentos nos
faculta os meios para nossa santificação. Opera, por sua ação
divina, aquilo que nos ordena sua palavra e que nos manifesta
seu exemplo. Para corresponder à vocação, não basta trazer
ao serviço de Deus as nossas boas intenções, nossos bons
pensamentos, nossos bons desejos: devemos pôr mãos à obra
e perseverar até ao fim.
II — A vida toda de uma alma consagrada ao serviço de
Deus, resume-se em um santo desejo; mas este desejo deve
ser o ato permanente de uma vontade forte e generosa. E para
conseguir isto, cumpre alimentar continuamente aquele desejo,
como se abastece de azeite a lâmpada. O desejo é uma prece
e a prece é uma atração. A prece atrai do céu a graça
correspondente ao desejo. Se Deus difere a sua concessão é
porque visa aumentá-la e, aumentando-a, cria em nós a
capacidade de receber uma graça maior. O grande apóstolo se
excitava constantemente a progredir em perfeição. "Ainda não
me creio perfeito; mas, esquecendo o passado, anseio ardente-
mente pelo que me falta e esforço-me por mais abrilhantar a
coroa que me é destinada!"
A exemplo de são Paulo, conjuremos o Espírito Santo a
nos fazer desejar os dons que nos quer conceder.

57
17 DE JANEIRO APÓS A OITAVA DA EPIFANIA
"Somos um só corpo em Cristo, e cada um de nós,
membros uns dos outros" (Rm 12, 5).
I — A santidade é a irradiação da caridade evangélica. O
Senhor entrelaça as nossas almas ao estreitar-nos em seu
abraço de amor; e é seu desejo que, todos juntos, não façamos
senão uma única e viva unidade: "Sint unum!" O apóstolo
compara esta união àquela existente entre os membros de um
mesmo corpo. Concorrem todos às funções gerais da vida;
mas, sendo entre si subordinados, e prestando-se recíproca
assistência, conserva cada um seu lugar na ordem hierárquica
e exerce seu ofício na respectiva esfera de atividade. Esta
admirável organização é aplicável à Igreja e especialmente às
famílias religiosas; ela mantém a boa ordem, a paz, a saúde
moral. Onde são violadas essas condições de união, desfalece
o corpo, e a vida comum irá em decadência. A fonte dessa
desordem é o amor próprio, que atribui tudo a si e que mais se
preocupa do seu interesse particular, que do bem geral.
Evitemos as singularidades, as distinções, o egoísmo, e
santifiquemo-nos pela caridade largamente compreendida,
generosamente praticada.
II — Quando cada membro contribui com seu quinhão para
o bem estar do corpo ao qual pertence, trabalha em seu próprio
proveito e participa da prosperidade geral. Seja qual for o papel
que desempenhemos na corporação: — sejamos pés ou
braços, olhos ou mãos — seremos tanto mais vivos e felizes
quanto menos nos isolarmos da vida comum, o que supõe
espírito de abnegação e sacrifício dos atrativos particulares. O
grau da bem-aventurança, que Deus nos reserva, não será
medido pelos encargos que houvermos desempenhado no
mundo, mas sim pela fidelidade com que os houvermos
exercido.
Sacrifiquemos, portanto, a Deus os atrativos do nosso
amor próprio; não nos anime outro desejo, outro pensamento,
outra ambição a não ser permanecermos sob a mão divina,
como instrumentos dóceis e fiéis.

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18 DE JANEIRO APÓS A OITAVA DA EPIFANIA
"Peço a Deus que a vossa caridade cresça cada vez mais"
(Fp 1, 9).
I — A caridade é a vida do céu; e, como tem sua origem
em Deus, não se pode demarcar limites à sua expansão. Jesus
Cristo reverteu sobre nós a caridade do Pai celeste e quer que
a exerçamos uns para com os outros. "Amo-vos como meu Pai
me amou. Amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei".
Eis a lei da dileção sobrenatural dos membros do corpo de
Jesus Cristo, dileção que não procede da carne e do sangue;
não provém da natureza, mas desce do alto. Ela foi infundida
em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado. A
perfeição consiste em desenvolver esta divina chama, pois
contém em sua substância todas as virtudes.
Empenhemo-nos em crescer na caridade, lembrando-nos
de que, sem ela, as outras virtudes e as obras mais admiráveis
nenhum valor possuem perante Deus.
II — A caridade é a liga da união evangélica; é igualmente
o bálsamo reparador das faltas e saneador das enfermidades
morais. Afirma a Escritura que ela cobre a multidão dos
pecados. O que nos permite considerá-la como a melhor
condição da santidade e como a mais salutar de todas as
penitências. Muitos foram os pecados perdoados a Madalena,
porque muito amou.
A caridade é também penhor de uma boa morte, de um
julgamento feliz, de uma bem-aventurada eternidade. É indício
de estado de graça; porque, conforme atesta são João, aquele
que permanece na caridade, permanece em Deus. Apreciemos
e louvemos a vida religiosa, que não é outra coisa senão uma
vida de amor e de caridade. Unamo-nos interiormente ao
Coração de Jesus, para nele haurir a unção divina que deve
animar nossos pensamentos, nossas palavras e nossos
sentimentos.

19 DE JANEIRO APÓS A OITAVA DA EPIFANIA


A vida de Maria em Nazaré
I — Contemplemos o interior de Nazaré. Que vemos? Uma
família pobre, humilde, laboriosa. Jesus vive com simplicidade
sob o olhar de seus pais; não deixa perceber o menor traço dos
seus divinos esplendores. Maria, cheia de graça, esconde em
seu coração a majestade de seus títulos de glória. Compraz-se

59
em obscuros trabalhos, e seus braços, que sustêm o Filho de
Deus, entregam-se aos propósitos mais vulgares. Não reclama
distinções nem privilégios; foge às homenagens do mundo, e,
durante sua longa permanência em Nazaré, esmera-se em
cumprir santamente seus deveres quotidianos. Eis os traços da
vida modesta daquela que é filha de reis de Israel, a exaltada
nas Escrituras, a Mãe imaculada do Salvador do mundo. Que
nos ensine este belo modelo a nos aperfeiçoarmos na situação
e nas condições em que estamos colocados. Os elementos
que nos rodeiam devem influir como instrumentos para nossa
santificação.
II — A santidade interior de Maria se revela exteriormente
pelo seu porte modesto, e esta modéstia exterior era, por sua
vez, a salvaguarda de sua vida interior. Existe, efetivamente,
uma estreita ligação e uma ação recíproca entre o corpo e o
espírito, entre o homem exterior e o homem interior; de
maneira que tudo quanto aí se passa, reflui de um para outro.
Quando os movimentos do espírito são bem coordenados e
dirigidos, os do corpo igualmente o são, assim como no interior
ressoam os rumores de fora. É por isto que a modéstia exterior
é ao mesmo tempo o meio e o indício do recolhimento interior,
assim como o ponteiro de um relógio marca o movimento das
rodas escondidas. A suave paciência com que Maria continha
sua alma, garantia a paz celestial que se espelhava em seu
semblante, e esta paz, sob a guarda da modéstia, entretinha
misteriosamente sua união com Deus.
Tais eram a atitude e as disposições da mãe de Jesus.
Amoldemo-nos à sua imagem. Vigiemos e oremos; e, com
humilde abnegação, pratiquemos a virtude.

II DOMINGO DO TEMPO COMUM2


"Celebraram-se umas bodas em Cana da Galileia" (Jo 2, 1)
I — Antes do advento de Jesus, a mais insigne graça com
que Deus favorecia aos homens era a de recebê-los entre seus
servidores. Mas, depois de seu nascimento, conferiu-lhes o

2
Na edição de 1941, ao invés de Tempo Comum havia: “depois da
Epifania”. Tal alteração foi feita para manter maior assimilação com a
nomenclatura do atual calendário litúrgico, embora as leituras bíblicas
não correspondam necessariamente às atuais, conforme explicado nas
Observações da página 7 (confira). (N. do revisor)

60
título de filhos de Deus; e, para esse fim, os fez de tal modo
participantes de suas prerrogativas que não somente assim o
designa, mas os considera realmente e lhes concede todos os
direitos de herdeiros do céu. E não se limitou a isso o adorável
Salvador: no excesso do seu amor, quis escolher almas
consagradas para elevar à categoria de esposas e com elas
contrair uma aliança verdadeiramente nupcial. Este mistério é o
mistério augusto que antecipadamente celebram o salmista e
os profetas; são estas as núpcias celestes que nos representa
a Igreja sob as formas sensíveis das bodas de Caná e que nos
explica pela boca de seus doutores e pelas cerimônias solenes
da profissão religiosa. Espetáculo verdadeiramente
maravilhoso perante os anjos e os homens, ao contemplarem o
mistério em que a alma consagrada a Deus ouve inebriada o
convite: "Vem, esposa de Cristo, e recebe a coroa que te
preparei desde toda a eternidade!".
Este mistério inefável permite-nos avaliar o quanto nos
ama o Coração de Jesus.
II — Nas alianças da terra, a morte de um dos cônjuges
dissolve o matrimônio; acaba-se o compromisso e a aliança. O
mesmo não se dá com as núpcias celestes; seus laços são
imortais, nem a morte os pode romper; pelo contrário, aperta-
os ainda mais e consolida-os eternamente. São Bernardo, em
duas palavras, resume as condições deste contrato: amar e ser
amado. Amar — não somente enquanto fruírem as
consolações, as prosperidades e as delícias, mas em meio às
provações, às tentações, às trevas e à aridez. A coroa real só
será solenemente conferida às esposas do Rei dos reis que
perseverarem até ao fim com amor generoso e fiel.

SEGUNDA-FEIRA DA II SEMANA DO TEMPO


COMUM
Presença da Mãe de Jesus às bodas de Cana
I — É com uma intenção cheia de profundeza e de
sabedoria que o Evangelista menciona a presença de Maria
nas bodas de Caná, porque Maria é o modelo das esposas de
Deus. Ela é sua mãe, protetora e soberana. Pelo exemplo de
suas virtudes, excita a alma religiosa a amar, servir e glorificar
o Senhor. É ela o instrumento de que se serve Deus para a
santificação das virgens candidatas às sagradas núpcias; de tal
modo que estas podem aplicar a Maria as palavras de

61
Salomão, a respeito da Sabedoria: "Todos os bens me vieram
por seu intermédio e de suas mãos recebi riquezas infinitas".
Estas riquezas que, das mãos de Maria, se transmitem a suas
dignas herdeiras, são aquelas de que fala Jesus, quando diz
em seu Evangelho: "Todo aquele que por mim abandonar seus
irmãos ou suas irmãs, seu pai ou sua mãe, sua mulher ou seus
filhos ou seus bens terrestres, receberá o cêntuplo neste
mundo e a vida eterna no século futuro".
II — Ensina um padre da Igreja que o matrimônio celeste
opera uma transformação que muda a vida natural em outra
inteiramente sobrenatural e sobre-humana; de maneira tal,
prossegue o santo doutor, que já prova as alegrias dos bem-
aventurados e antecipa na terra a vida do céu, aquele que,
tendo feito sua profissão religiosa, vive de acordo com sua
regra. Realmente, as esposas de Jesus Cristo, vivendo, como
os anjos, de amor e de obediência, já desde esta vida tomam
posse do reino de Deus, na paz e na alegria do Espírito Santo.
Demos graças à divina Bondade pelo benefício que nos
concedeu de habitarmos na morada santa onde está sempre
presente a Virgem de Sion e mostremo-nos agradecidos por
termos por Mãe aquela que é Mãe de nossa vida, de nossa
esperança e de nosso amor.

TERÇA-FEIRA DA II SEMANA DO TEMPO COMUM


"E faltando o vinho, a Mãe de Jesus disse-lhe: Eles não
têm vinho" (Jo 2, 3).
I — O vinho generoso, que é servido comumente no
princípio das festas, é figura do fervor mais ardente e sensível
que anima as almas no início do serviço de Deus. São então
fervorosas e cheias de zelo; atiram-se com ânimo aos mais
árduos deveres e sentem gosto em todas as práticas religiosas
indistintamente. Mas, no percurso da vida espiritual, há horas
de ansiedade e de provações; o vinho novo do amor se
concentra e acontece que, à mesma mesa onde a alma
amorosa se inebriava de delícias, experimenta, agora, apenas,
uma bebida insípida. É Deus que, por sua misteriosa operação,
extingue, pouco a pouco, todo o prazer sensível, a fim de atrair
a alma no mais profundo de si mesma. E enquanto a
desprende das consolações exteriores, dispõe-na, purificando-
a, a provar um vinho mais fino e saboroso. Em vista disso, não
nos perturbemos ao passar por essas mortificadoras privações;

62
mas permaneçamos tranquilamente sentados na festa das
núpcias: Maria aí está; dela nos há de vir o auxílio.
II — Consideremos as atenções e amabilidades da Virgem
santíssima. Notara a falta de vinho antes que lhe houvessem
avisado. Não espera que recorram à sua intercessão; ela
possui todas as delicadezas e solicitudes de uma mãe
verdadeiramente vigilante e carinhosa. Mal percebeu a
necessidade, imediatamente a expôs a seu Filho. Mas em seu
pedido não mostra nem euforia, nem inquietação. Poucas
palavras pronuncia, confiante na bondade daquele que consola
e atende. É assim que, do alto do céu, Maria continua a se
interessar pelas necessidades da nossa alma. Conhece nossas
fraquezas; previne nossos desejos, ouve nossos lamentos;
identifica com o seu o nosso coração. Seria possível perder-se
o ânimo e a esperança, sabendo que Maria tem seus olhares
constantemente volvidos para as misérias humanas, a fim de
aliviá-las?

QUARTA-FEIRA DA II SEMANA DO TEMPO COMUM


"Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não
chegou a minha hora" (Jo 2, 4).
I — A resposta obscura dada por nosso Senhor à sua Mãe,
nas bodas de Caná, relembra uma frase análoga pronunciada
no templo, quanto adolescente, aos doze anos. Esta palavra
promulga de um modo absoluto a necessidade do desapego
dos laços terrestres, quando se trata das obras de Deus. Ela
exclui as teimosias da natureza sobre o domínio da graça e
demarca a barreira onde devem estacar as solicitudes
humanas. Este total desapego exigido pelas palavras de Jesus
Cristo, cortantes como o gládio do sacrifício, é imposto a todos
que são chamados à vida apostólica. Jesus, entretanto, após
nos ministrar essa importantíssima lição, providenciou para que
ninguém pudesse aplicá-la a Maria e, para isso, satisfez
imediatamente seu desejo, respondendo à sua intercessão por
um assombroso milagre. Como Maria, oremos, confiando
tranquilamente, e saibamos aguardar os momentos de Deus,
sem impaciência e sem desânimo.
II — Este primeiro milagre operado por Jesus, ao dar
entrada em sua vida pública, relaciona-se misteriosamente com
aquele que iria realizar na véspera de sua partida deste mundo.
Então, por outra mudança milagrosa, transformará o pão em

63
sua própria carne e o vinha em seu próprio sangue; e até ao
final dos séculos continuará a operar este prodígio de amor
sobre os sagrados altares. É provável que Maria conhecesse
esse seu intento; quis então apressar sua realização, para nos
dar uma antecipação do pão dos eleitos e do vinho que gera as
virgens. Mas não soara ainda a hora das derradeiras efusões;
esta chegaria somente depois de uma longa série de outros
milagres de ternura e de divinas misericórdias.
Mais felizes do que os convivas de Caná, possuímos uma
bebida e um alimento que não acabará nunca. Por nosso lado,
não consintamos que cessem algum dia as expansões da
nossa gratidão.

QUINTA-FEIRA DA II SEMANA DO TEMPO COMUM


"A Mãe de Jesus disse aos que serviam: Fazei tudo o que
ele vos disser" (Jo 2, 5).
I — Fixemos em nossa memória e em nossa consciência o
conselho que dá a Virgem Maria a todos os que servem ao
Senhor. Ouvir atentamente a voz do Bem-Amado, a fim de
observar o que ele ordenar: esta é, de todas as práticas
religiosas, a mais sólida, a mais essencial, a mais eficaz.
Resume todas as regras da vida espiritual e indica o meio
seguro de chegar à perfeição. Em todas as circunstâncias,
pois, sigamos o conselho de Maria. Ouçamos Jesus, quer seja
ele mesmo a nos falar no íntimo de nossa alma, quer seja sua
divina vontade manifestada pela boca de nossos superiores.
Ouçamo-lo, sem discutir, nem murmurar, nem diferir atos de
obediência. Façamos o que nos manda, ainda mesmo que se
trate de coisas humilhantes, ou que ele surpreendesse a nossa
fé, como fez nas bodas de Caná, prescrevendo-nos o que nos
parecesse incompreensível. O importante é obedecer! A
explicação deve seguir a obediência e não precedê-la. É pelos
seus efeitos e frutos que se justifica a palavra divina. "Se
guardardes a minha palavra, diz o Senhor, ser-vos-á concedido
tudo quanto pedirdes".
II — A melhor prática da perfeição cristã consiste em
conformar nossos atos e nossos sentimentos com a palavra de
Deus. É, por conseguinte, esta regra que nos dá a medida do
nosso progresso na trilha dos santos. Quanto mais nos
despojarmos de nossa vontade própria para obedecermos à
divina, mais nos adiantaremos na virtude e nos fixaremos na

64
paz. Um coração dócil à palavra de Jesus Cristo julga-se
sempre feliz, está sempre tranquilo, porque sua vida se
desenvolve em harmonia com o espírito de Deus. É esta
harmonia que distingue a santíssima Virgem e todos os santos.
Deve igualmente reinar em nós. Declaremos com Davi: "Meu
coração está preparado, ó meu Deus, para vos seguir e fazer
tudo quanto me disserdes".

SEXTA-FEIRA DA II SEMANA DO TEMPO COMUM


"Eis que vem o Esposo, saí ao seu encontro" (Mt 25, 6).
I — O milagre das bodas de Caná merece uma menção
relevante no Evangelho, por nos revelar, sob a figura do
esposo e da esposa, os mistérios da aliança que o Filho de
Deus contraiu com a natureza humana. A água transmudada
em vinho significa a transformação que se opera na alma
quando se une a Jesus Cristo. Então, inteiramente absorvida
pelo Deus de amor, não é senão amor, assim como o carvão,
transformado em brasa pelo fogo. É claro que nada altera de
sua substância, nem de sua natureza; mas tão profundamente
se impregna das qualidades divinas que se torna, por assim
dizer, uma só coisa com Deus. E pode afirmar com são Paulo:
"Vivo, mas não sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim".
II — Tal qual o fogo, o amor produz chamas que para o céu
se elevam como asas ardentes. Assim, quando Jesus penetra
numa alma e a enche de sua vida divina, a faz desdobrar-se
em atos e em obras de santidade; permite-lhe sentir as
primícias de uma bem-aventurança que multiplica
constantemente os desejos do céu. A bem-aventurança é
inseparável do amor, porque o amor infinito de Deus,
possuindo a alma cristã, traz necessariamente consigo o gozo
de Deus. Foi isto que o Salvador declarou aos seus discípulos:
"Disse-vos estas coisas, para que minha alegria permaneça em
vós e para que vossa alegria seja perfeita". Mas esta alegria
divina que o vinho milagroso representa, nem sempre pode ser
saboreada, senão após uma longa vida de fé e de paciência. É
somente ao fim do banquete das núpcias que a alma, inebriada
de verdadeiras delícias, sente em seu íntimo que é realmente
amada, que Deus está todo nela e que ela está toda em Deus.

SÁBADO DA II SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria nas bodas de Caná

65
III — Contemplemos a modesta simplicidade, a calma, a
suave igualdade da Mãe de Jesus na festa de Caná, onde
inteiramente se esquece de si para se ocupar com os outros
unicamente. Não se impressiona seja que o vinho falte ou
reapareça em abundância; mas é a primeira a se compadecer
dos apuros dos convivas. Recebe com a mesma serenidade as
palavras severas do Senhor e a graça milagrosa obtida por sua
intercessão. Fala pouco e bem, quer ao se dirigir ao Filho, quer
ao dar aos servos seus prudentes conselhos. Semelhante às
regiões superiores do firmamento, permanece sempre calma e
tranquila; nem precisa isolar-se para conservar as mesmas
disposições de espírito e de coração, em qualquer tempo e
lugar.
Para nos amoldarmos a este perfeito modelo, precisa-
ríamos conservar em nossa vida ativa as intenções, o espírito
de bondade, as disposições felizes que habitualmente nos
animam por ocasião da meditação e da oração.
IV — O papel de Maria nas bodas de Caná nos mostra
que não quis se furtar a nenhuma das obrigações impostas
pela caridade, para conservar a calma de sua vida interior.
Permanece unida ao Senhor em meio aos convivas que a
rodeiam; e sem se deixar dominar por influência alguma, faz
sempre prevalecer a influência do espírito de Deus que anima
todos os seus atos e palavras, consagrando assim, por seu
exemplo, a regra da conduta cristã.
Se nos conservássemos unidos ao espírito de Jesus, mais
abençoadamente e com maior êxito haveríamos de cumprir os
nossos deveres quotidianos por vezes tão penosos! O Senhor
nos garante no Evangelho: "Aquele que em mim permanecer
produzirá frutos abundantes".

III DOMINGO DO TEMPO COMUM


"E tendo Jesus descido da montanha, uma grande multidão
o seguiu. E eis que, aproximando-se, um leproso o adorava"
(Mt 8, 1, 2).
I— Jesus Cristo, nosso Salvador e nosso Deus, acabava
de instruir o povo sobre os mistérios da outra vida e o caminho
da pátria celestial. Mas não se satisfez em edificar pelos seus
preceitos, seus conselhos e pela santidade de sua vida aqueles
que o seguiam; quis, ainda, vincular às suas palavras uma
graça fecunda, a fim de lhes facilitar a realização. Eram

66
milagres quase todas suas ações, e mesmo esses milagres,
que arrebatavam os sentidos, eram símbolos das operações
ainda mais milagrosas que se produziam invisivelmente nas
almas. Exerceu assim seu poder soberano sobre todas as
espécies de enfermidades corporais, com o objetivo de nos
fazer desejar e esperar a cura de nossas enfermidades
espirituais. Declara-nos ter vindo para os enfermos e os
pecadores; se queremos, por conseguinte, participar dos
benefícios de sua infinita misericórdia, precisamos reconhecer
no fundo da nossa consciência o quanto necessitamos de
remédio e de auxílio. É o que fazia São Paulo dizer: "De boa
vontade me gloriarei nas minhas fraquezas, para que habite em
mim o poder do Cristo" (2 Cr 12, 9).
II — A origem de todas as enfermidades da alma é o
pecado, chaga funesta, cuja imagem nos é representada pelo
leproso do Evangelho. A lepra corporal é a corrupção do
sangue, bem como o pecado é a corrupção da alma. A lepra
cobre o corpo inteiro de uma umidade infecciosa e repugnante;
o pecado desfigura a alma, embota a inteligência e cobre-a de
manchas. A lepra é um mal contagioso que se comunica pelo
convívio com os doentes afetados desse mal; o pecado exala
igualmente uma influência pestilenta. Em conclusão, o pecado
exerce sobre a vida moral todo o estrago que a lepra opera
num corpo: destrói a imagem de Deus, perverte a vontade;
desagrega a alma da sociedade de Deus e dos anjos.
Admiremos a bondade de Jesus, que veio, pelo seu san-
gue, apagar os pecados do mundo, e peçamos-lhe que deles
sempre nos preserve.

SEGUNDA-FEIRA DA III SEMANA DO TEMPO


COMUM
"O leproso, ao ver Jesus, adorou-o e disse-lhe: Senhor, se
quiserdes, podeis curar-me" (Mt 8, 2).
I — Consideremos o pobre leproso que se prostra aos pés
de Jesus, com sentimentos de humildade profunda. Um único
pensamento o domina e pronuncia apenas uma palavra: está
doente e pede sua cura. Tal deve ser a nossa disposição,
mormente no sagrado tribunal; e quando nos faltar, sondemos
profundamente nossa consciência. Examina, antes de tudo, ó
minha alma, se amas a teu Deus acima de tudo; se a ele
nenhuma criatura é preferida em tuas afeições; se é para ele

67
que convergem tuas ações, teus pesares, teus pensamentos.
Examina também teu coração em relação ao próximo. Será a
caridade que lhe regula todos os movimentos? Será essa ca-
ridade leal, fraterna, sincera? Agimos para com os outros
conforme desejaríamos que agissem para conosco? O
conhecimento próprio é condição essencial à salvação, pois
que nele se funda a humildade.
II — Para adquirir um conhecimento exato do nosso estado
interior, devemos aprender, por quotidianas pesquisas, a
verificar nossos defeitos ocultos e as mais sutis imperfeições,
cuja fonte está no amor desordenado de nós mesmos.
Examinemos se nos sentimos envaidecidos com as lisonjas e
os sucessos, ou desanimados e abatidos nas humilhações e ao
sermos admoestados. Examinemos, pois, se somos apegados
aos nossos interesses, às nossas consolações, à nossa própria
glória, mais do que à de Deus e ao que é vantajoso para
nossos irmãos. Quanto às preocupações que nos
acompanham em nossos exercícios espirituais ou aos langores
que nos atormentam no serviço de Deus, procuremos
cuidadosamente a causa. Examinemos se não nos magoa um
secreto pesar ao verificarmos talentos ou virtudes em nosso
próximo ou se não nos atormenta alguma outra espécie de
inveja.
Apesar das repugnâncias do amor próprio, urge sondar as
chagas da natureza corrompida, a fim de expô-las ao médico
de nossa alma.

TERÇA-FEIRA DA III SEMANA DO TEMPO COMUM


"Jesus, estendendo a mão, tocou-o e disse-lhe: Eu o quero,
sê curado" (Mt 8,3).
I — Consideremos a suave bondade com que o Senhor
acolhe o leproso. Nem a mais leve demonstração de horror
ante tão asquerosa enfermidade! Pelo contrário, estende a mão
e não lhe repugna tocar naquelas chagas. Diz ao doente: "Fica
são! Eu o quero!" E incontinenti, só pelo ato de sua vontade, só
pela virtude de sua palavra, restitui ao doente a saúde e a vida.
É a mesma palavra divina que no tribunal da penitência
continua a operar súbitas curas e prodígios de misericórdia.
Mas, para que tão maravilhosos efeitos sejam produzidos em
nós devemos ir a Jesus sinceramente humilhados e com a
confiança do leproso do Evangelho. Que de melhor po-

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deríamos cobiçar que a saúde da alma? É indispensável a todo
o custo ou conservá-la ou reavê-la; manifesta-se ela por sinais
certos: expulsa a tristeza e faz imediatamente renascer a paz e
a alegria.
II — Esta ordem: "Eu o quero, sê curado!" destina-se a
todos os homens, em vista de serem todos afetados de
enfermidades e todos precisarem ser medicados. Jesus veio
exclusivamente para nos salvar; entregou-se por todos; e sua
vontade, formalmente expressa, é que sejamos todos salvos.
Para este fim deixou-nos sua doutrina, seus sacramentos, seu
sacerdócio. A doutrina evangélica ensina as condições da
salvação, os sacramentos nos ministram os remédios, o
sacerdote no-los aplica. Compete a nós haurir nesta plenitude
de graças, para cada vez mais nos purificarmos e
decididamente progredirmos no caminho da perfeição. Pela
parte de Jesus, foi tudo determinado para nossa felicidade;
cumpre-nos, em retorno, querer o que ele quer e cumprir o que
ele ordena!

QUARTA-FEIRA DA III SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E Jesus disse ao leproso: Vê, não o digas a ninguém, mas
vai mostrar-te aos sacerdotes" (Mt 8,4).
I — Depois de haver curado milagrosamente o leproso,
nosso Senhor lhe dá uma lição de discrição e de modéstia que
é aplicável a todos.
Santo Ambrósio diz que, no exercício das boas obras,
devemos evitar tudo quanto possa se converter em ostentação
e vanglória, com receio de que se passe á lepra do doente para
o médico. Quer isto significar que as mais preciosas graças
poderão ser perigosas desde que sirvam de alimento ao amor
próprio e à presunção. Jesus não receava para si os elogios,
mas sim para nós, tão propensos que somos à vaidade! Ele
quer que resguarde mos dos olhares humanos os nossos atos
piedosos, para torná-los meritórios aos olhos de Deus; assim é
que se apraz em abrigar todas as virtudes sob a guarda da
humildade. "Se procurasse ainda os louvores dos homens diz
são Paulo, não seria discípulo de Jesus Cristo".
II — Ao ordenar ao leproso de guardar segredo sobre sua
cura, Jesus lhe recomenda, no entanto, que vá se apresentar
aos sacerdotes; pois aos ministros de Deus é que compete se

69
pronunciar sobre todas as questões referentes à saúde e
enfermidades espirituais; eles têm por missão conhecê-las com
o fim de curá-las. E para evitar qualquer ilusão em matéria tão
delicada, convém submeter a seu juízo, mesmo os favores
diretamente recebidos de Jesus. Cabe ao doente expor-se
inteiramente ao médico da alma, sem rodeios e sem
reticências, pois que a omissão desta lei não somente
impediria a cura, mas agravaria a moléstia.
Repilamos, pois, toda tentação que possa obstar a
expansão do nosso coração. Devemos levar ao tribunal da
penitência uma intenção reta, simples e franca, a fim de que,
separados de toda a consideração humana, nela encontremos
a luz para o espírito e a saúde para a alma.

QUINTA-FEIRA DA III SEMANA DO TEMPO


COMUM
E tendo entrado em Cafarnaum, aproximou-se de Jesus
um centurião, fazendo-lhe uma súplica, e dizendo: Senhor,
meu servo jaz em casa paralítico, e sofre cruelmente. E Jesus
lhe disse: “Eu irei e o curarei" (Mt 8, 5-7).
I — A história do centurião, aproximada à do leproso
deixa-nos entrever os diversos processos da graça. Ora nos
atende o Senhor imediatamente, a fim de dar à alma humilhada
um impulso mais forte e enchê-la de gratidão; ora difere a
concessão do pedido para torná-la mais fervorosa e prová-la
na paciência. Mas, seja qual for o seu modo de agir para
conosco, seu objetivo é sempre a nossa santificação. Assim é
que faz germinar no coração do centurião os admiráveis
sentimentos que devem animar nossa alma, sempre que nos
aproximamos de Jesus. "Senhor, não sou digno de que entreis
em minha morada, mas dizei uma só palavra e meu servo será
salvo". Palavras estas que a Igreja nos faz repetir à santa
Mesa, para nos ensinar que só é digno de comungar aquele
que sente e reconhece sua indignidade. Se de fato nos
julgamos indignos de receber Jesus em nossa morada, por um
sentimento sincero de humildade, como o centurião, teremos a
honra de hospedá-lo em nosso coração.
II — As palavras do centurião não devem exprimir apenas
as disposições que nos devem acompanhar à sagrada Mesa;
aplicam-se a todas as circunstâncias da nossa vida, pois não é
humilde junto ao altar quem não o é sempre e em toda parte.

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Quantas ocasiões não se apresentam em que poderíamos
exclamar com o centurião: Senhor, eu não sou digno! Mas, Oh!
É o contrário que comumente fazemos! E quando se trata de
alguma honra, de um emprego, do desempenho de alguma
missão importante, julgamo-nos de competência superior à dos
outros. Estes pensamentos presunçosos afastam a graça,
enquanto que a verdadeira humildade atrai as bênçãos do alto.
Eis a razão que fazia o apóstolo preferir gloriar-se mais de
suas fraquezas que de seus méritos. "Comprazo-me, dizia ele,
nas minhas enfermidades, nas afrontas, nas necessidades, nas
perseguições, nas angústias por amor de Cristo, pois que
quando me julgo fraco, é então que estou forte" (2 Cr 12, 10).

SEXTA-FEIRA DA III SEMANA DO TEMPO COMUM


"Em verdade vos digo: não encontrei tamanha fé em Israel"
(Mt 8, 10).
I – O testemunho que Jesus presta ao centurião constitui a
verdadeira recompensa do cristão e sua verdadeira glória. Os
elogios que mutuamente se dispensam aos homens, não são
consistentes, não perduram, não possuem uma sanção
superior. O homem não leva consigo ao tribunal da verdade a
auréola efêmera dos louvores do mundo; comparece perante
Deus tal qual é, e seu valor real reside unicamente nas obras
de sua fé. Bem-aventurados, pois, aqueles que, menos
apreciados na terra, são conhecidos, amados e louvados por
Deus! Seus nomes estão gravados, não na frágil memória dos
homens, mas na de Deus e, por conseguinte, no livro da vida.
Eis a glória que devemos ambicionar! E consegui-la-emos
se, imitando o exemplo do centurião, praticarmos
humildemente a obediência e servirmos ao Senhor com
piedosa confiança.
II — A confiança nasce da fé e é dela inseparável; porque,
se acreditamos na palavra de Jesus Cristo, temos de confiar
firmemente em seu amor, em sua fidelidade, em seu poder,
tríplice alicerce de nossa confiança. O Senhor nos amou
enquanto ainda jazíamos em sua desgraça. Como poderíamos,
então, duvidar de seu amor, nós que, por tantos títulos, somos
considerados filhos seus? Ele cumpriu fielmente todas as suas
palavras; como deixaria de realizar suas promessas mais
positivas?

71
Jesus venceu o mundo, governou soberanamente toda a
natureza; como seria possível a seu poder divino encontrar
estorvos em relação a nós?
Se o Senhor tanto enaltece a fé do centurião, se nos
concede suas graças na proporção de nossa confiança,
dilatemos nossos corações e lancemos ao seio de Deus o
nosso passado, o nosso futuro e a nossa eternidade.

SÁBADO DA III SEMANA DO TEMPO COMUM


A santíssima Virgem apresenta um medicamento soberano
a todos os enfermos
I — O medicamento salutar que é igualmente aplicável às
enfermidades espirituais quanto às corporais e que Maria
recomenda pelo seu próprio exemplo, é a paciência — virtude
medicinal que levanta a alma combalida pelos sofrimentos e ao
mesmo tempo abranda todas as dores do corpo, pois que a
ambas santifica, unindo-as à paixão de nosso Senhor Jesus
Cristo. Ora, se consideramos Maria como nosso modelo,
podemos observar que no meio das maiores tribulações ela
conserva uma paciência inalterável; e que esta paciência
mantém-na sempre calma e forte. Ela se mostra paciente
desde a mais tenra idade, pois suportou sem queixas a
decadência de sua família; é paciente em grau sublime quando
se resigna ao silêncio ante as perplexidades de São José; é
paciente nas provações de uma vida obscura, durante os trinta
anos que Jesus passa em Nazaré; é paciente em meio aos
delicados conflitos da graça e da natureza, quando procura seu
Filho no templo de Jerusalém. Em uma palavra: é paciente em
todas as fases de sua vida, culminando ao pé da Cruz, onde se
imola voluntariamente com Jesus Cristo.
Eis o remédio heroico que faz brilhar a virtude de Deus no
seio da fraqueza e das enfermidades humanas.
II — Para sofrer, é o bastante ser homem; mas, para sofrer
com paciência meritória, é preciso ser cristão, pois que a
paciência evangélica é uma participação voluntária à Paixão de
Jesus Cristo; daí provém a virtude sobrenatural que muda as
aflições em alegria e firma a alma na paz e em profundo bem
estar. Que há de mais animador do que o exemplo de Maria?
Esta doce mãe, inocente e imaculada, quis sofrer a paixão de
Jesus Cristo; e nós, que tão culpados somos, recusaríamos
carregar uma parcela da cruz?! Maria suportou toda espécie de

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males e de toda categoria de pessoas. Imitaremos, pois, sua
paciência por um contínuo exercício. Como Maria santíssima
procedeu, temos de suportar os homens tais como são, com
seus defeitos e com suas fraquezas; temos de sofrer os
pesares de cada dia com seus constrangimentos e suas
mágoas; precisamos, sobretudo, ter paciência conosco
mesmos, moderando os nossos desejos, abatimentos,
impaciências.
A perseverança neste exercício produz na alma fiel,
admiráveis traços de semelhança com Jesus e com Maria.

IV DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Como entrasse Jesus em uma barca, os discípulos o
seguiram"
(Mt 8, 23).
I — Consideremos com que fidelidade se prendem os
discípulos a Jesus. Seguem-no por toda parte, em terra e no
mar; seguem-no sem indagar aonde vai; por ele afrontam
tormentas e tempestades; nada os pode separar do Mestre
amado. Anima-nos idêntica dedicação, idêntica diligência nos
caminhos por onde nos conduz o Salvador, nós que fomos
cumulados de suas graças? A viagem, que ele nos faz
empreender por entre fadigas e acidentes da vida, não esfria
por vezes nosso ânimo e nosso zelo?
Toda alma que se contrata ao serviço de Deus e embarca
com Jesus, para alcançar as praias da pátria celeste, deve
sempre se recordar do aviso do Evangelho: "Quem quiser vir
após mim, que renuncie a si mesmo, tome sua cruz de cada
dia e siga-me".
II — A renúncia de que fala o Evangelho visa prin-
cipalmente o amor da vida presente; porque, acrescenta o
Senhor, aquele que amar sua vida neste mundo, a perderá, e
aquele que a renunciar, a salvará. Este desprendimento só é
obtido à custa de muitos sofrimentos, cujas particularidades
constituem a cruz que devemos levar cada dia. Mas as próprias
cruzes, por pesadas e numerosas que sejam, seriam inúteis se
não fossem aceitas com amor e levadas após Jesus Cristo.
Ora, seguir Jesus é obedecer; é submeter-lhe nossos
pensamentos e nosso entendimento; é seguir-lhe as pegadas
na estrada em que nos conduz, é querer o que ele quer e fazer
o que nos manda.

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Como ousaríamos crer que o seguimos, quando queremos
o contrário do que ele ordena e recusamos atender ao que nos
pede?
Deixemo-nos, portanto, guiar pelo divino piloto, sem jamais
lhe resistir e por nossa pronta obediência provemos-lhe a
nossa generosa fidelidade. A vereda do sacrifício é difícil, ao
princípio; mas alarga-se depois, à medida que nos adiantamos,
e termina na santa liberdade dos filhos de Deus.

SEGUNDA-FEIRA DA IV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Levantou-se no mar um violento temporal" (Mt 8, 24).
I — Os apóstolos navegavam confiantemente na barca de
Jesus, quando se viram subitamente assaltados por tremenda
tempestade; e, apesar da presença do Mestre divino,
abandonaram-se à dúvida, aos temores, ao abatimento. É bem
comum às almas covardes tomarem as tentações, que
encontram em seu estado, como indícios de que Deus não as
chamara; tentação que a todas excede em perigo, pois culmina
sempre em desânimo e na infidelidade. A experiência que
fizeram os apóstolos na estrada em que seguiam a Jesus
mostra-nos que a vocação de Deus não subtrai o discípulo às
tribulações da vida presente; o contrário é que se dá, já que
foram preditas a todos que seguirem os passos de Jesus. "Meu
filho, diz a Escritura, quando entrares ao serviço de Deus,
prepara tua alma para as provações".
II — Se a presença de Jesus Cristo não preservou os
apóstolos da tempestade, a que perigos terríveis não se
expõem aqueles que sem ele fazem a viagem da vida
terrestre? As tempestades são, sobretudo, frequentes e
perigosas nos caminhos em que não somos dirigidos por
Jesus. Por isto, o discípulo que se afasta do caminho reto, para
seguir sua própria vontade, torna-se joguete de todas as
paixões, como a barca que, ao capricho dos ventos, se
arremessa de recife em recife, até um derradeiro choque, em
que se despedaça e mergulha no abismo. Quanto à alma fiel,
permanece inabalável em meio às vicissitudes, e canta com
Davi: "O Senhor é minha luz e minha salvação; a quem
temerei? Protege-me na estrada da vida; quem me fará
tremer? Aquele que guarda Israel não adormecerá; ele não
dorme; se dorme, seu coração vela".

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Repitamos com o salmista: "Em vós, Senhor, esperei e
sobre-esperei". In te, Domine, supersperavi.

TERÇA-FEIRA DA IV SEMANA DO TEMPO COMUM


"As ondas alagavam a barca" (Mt 8, 24).
I — Esta barca batida pelas ondas é a figura da alma cristã
em luta contra as tentações. Se a tempestade faz salientar a
habilidade do piloto, se o combate põe em evidência o valor do
soldado, se a adversidade põe em relevo a constância das
grandes almas, do mesmo modo a tentação aumenta as
virtudes e os méritos do cristão. As vagas ameaçadoras que o
tentador arremessa contra nós, são quase sempre as nossas
próprias paixões. Urge, portanto, reprimi-las e mortificá-las. "Se
elas se revoltarem contra vós, diz santo Agostinho, revoltai-vos
contra elas; dominai-as pelo ascendente da vossa piedade;
extingui-as pela vigilância e pela oração. Deus as permite para
humilhar a vossa presunção e abater o vosso orgulho". A graça
que nos sustenta é sempre superior à tentação e esta graça
divina, fielmente correspondida, assegura o triunfo.
II — O tentador não ataca as almas já vencidas; não é
preciso derrubar as que já estão prostradas. É contra as almas
valorosas que multiplica seus esforços. Não pensemos que as
tentações sejam faltas ou castigos; são, pelo contrário, indícios
de nossa vitalidade moral. Deus nos ama, não se compraz ante
o espetáculo de nossos tormentos; se consente na tentação, é
para nos associar às santas lutas e vitórias de Jesus.
Deploremos os que, perturbados pelo desânimo, aban-
donam as armas e passam-se para o inimigo. Somente
aqueles que combatem com o Senhor, com ele labutam e
sofrem, é que participarão de sua coroa gloriosa.

QUARTA-FEIRA DA IV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E o Senhor, entretanto, dormia" (Mt 8, 24).
I — O sono de Jesus, enquanto a trovoada ronca, é um
mistério que se relaciona com uma das mais frequentes
operações da graça. É o próprio Salvador que se entrega a um
sono voluntário e parece suspender todos os efeitos sensíveis
de sua presença; e assim fica a alma exposta ao medo, às
privações, às mais amargas tributações. Neste estado de
abandono agrava-se o furor das tempestades, as paixões

75
despertam, e uma multidão de tentações nos ataca com
violência. Mas, durante essa crise, a vida espiritual se dilata e
fortifica; o espírito de oração se reanima e a graça, sempre
vitoriosa, faz prevalecer a paciência, a resignação, o desapego
de si mesmo e o abandono em Deus. Assim é que o Senhor
aperfeiçoa a virtude; assim é que purifica a alma antes de nela
derramar o bálsamo sagrado das consolações; e, se ela não
puser obstáculo a esta misteriosa purificação, não tardará a
serenidade do céu a suceder às angústias e aos tormentos.
II — Nosso Senhor atravessou o caminho do abandono e
das humilhações para entrar em sua glória. Jesus vai à nossa
frente; sigamo-lo. Os sofrimentos desta vida servem de
purgatório à alma regenerada e, esgotado o tempo das dores
transitórias, a tristeza mudar-se-á em alegria. A condição
essencial da purificação é a constância, pois que o desânimo
faz abortar a obra de Deus e o fruto viria a cair da árvore antes
de sua maturação.
Além disso, Jesus está permanentemente conosco, mesmo
quando aparenta estar dormindo; faz-nos sentir sua presença
por uma proteção contínua.

QUINTA-FEIRA DA IV SEMANA DO TEMPO COMUM


"Então Os discípulos o despertaram e disseram: Senhor,
salvai-nos, que perecemos!" (Mt 8, 25).
I — A iminência do perigo apressa os apóstolos e os
impele para o lado de Jesus. Chamam-no e o despertam por
vivos e ardentes apelos. É assim que, por ocasião das
provações, nos volvemos espontaneamente para Deus; e
quando nos falha todo apoio humano, recorremos a ele como a
nosso único recurso.
O brado do coração é a oração que toca o Coração de
Jesus. Mas devemos despertá-lo no começo do perigo e não
contemporizar até ao fim do naufrágio, para somente então nos
lançarmos em seus braços.
II — Admoesta o Senhor a seus discípulos: "Por que
temeis, homens de pouca fé?" Esta repreensão é dirigida a
todos aqueles que deixam desfalecer sua confiança. Os
apóstolos haviam se esquecido das obras do poder e bondade
do divino Mestre. Não é isto o que acontece com frequência
quando somos assaltados pela tentação? Duvidamos de Jesus,
julgamo-lo distante, pensamos que nos abandona, acusamo-lo

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de indiferença ante nossos sofrimentos. E a realidade é que
sua presença é tanto mais certa quanto mais próxima de nós
está a tentação. "Repeliu o Senhor, algum dia, alguém que em
sua aflição o invocasse?".

SEXTA-FEIRA DA IV SEMANA DO TEMPO COMUM


"Ordenou aos ventos e ao mar e fez-se uma grande
bonança"
(Mt 8,26).
I— O coração do homem é um oceano com seu fluxo e
refluxo; é agitado por alternativas de pesares e alegrias, de
privações e fartura. Parece, por vezes, em jogo com todos os
elementos coligados contra ele; bruscamente, muda-se a
situação; e no meio da escuridão da noite, quando pareciam
chegarem as coisas ao extremo, de súbito, um raio de luz
rasga as trevas e surge a claridade no horizonte. É o despertar
de Jesus! Profere uma palavra e as nuvens se dissipam,
acalmam-se os temores e renasce a serenidade no céu e na
terra. "Não vos esqueçais de vossas provações, nos dias de
prosperidade, diz a Escritura; e nos dias infelizes, não
esqueceis as graças passadas. Sofrei as delongas de Deus e
não vos canseis de esperar e de aguardar" (Ecl 11).
"Feliz aquele que sofre com paciência as tentações e os
males desta vida, exclama o apóstolo, porque, depois de haver
sido experimentado, receberá a coroa que Deus prepara aos
que o amam!"
II — Nosso Senhor ordena ao mar e o mar obedece, torna-
se calmo e tranquilo. É também por uma obediência pronta que
nossa alma readquire a segurança. De que calma poderia ela
gozar no meio das subversões da vontade e da revolta da
natureza? As exigências imortificadas produzem tumulto
tempestuoso. A paz é uma harmonia; só pode estabelecer-se
nas almas submissas a Deus. Onde há divergência,
dissonância, não há paz nem felicidade. Quem praticar a
submissão de coração e de espírito fruirá os maravilhosos
efeitos do poder de Jesus e verá por experiência que os males
passageiros da presente vida não podem ser proporcionados
às alegrias que Deus reserva à alma fiel.
Tudo reverte em benefício dos que obedecem por amor e
as coisas mais adversas se lhes tornam vantajosas.

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SÁBADO DA IV SEMANA DO TEMPO COMUM
Recorre a Maria nas tentações e nas provações
I — A Escritura denomina ao tentador: príncipe do orgulho.
Ele reina sobre os espíritos independentes e presunçosos; mas
não tem império algum sobre os mansos e humildes de
coração. Eis por que jamais poderia vencer as almas que se
filiam a Maria como a sua mãe e a tomam por modelo. A
humildade da Virgem imaculada reparou a criminosa exaltação
de Eva. Ela é o contraveneno da falta original. Do mesmo
modo que o fogo faz fundir o gelo — assim se exprime um
doutor da Igreja — a humildade põe em fuga os maus espíritos.
Sua fragrância celeste afugenta as tentações, desfaz as
nuvens e embalsama as feridas. "Deus confundirá a raça dos
soberbos — diz o profeta — e salvará os humildes".
Filhos da santíssima Virgem, refugiemo-nos sob a proteção
de nossa Mãe e sigamos seus exemplos.
II — É um pensamento delicado e frutuoso fazer passar
pela humildade do coração de Maria as orações dirigidas ao
Coração de Deus. Esta mediação as purifica e comunica-lhes
uma virtude que as torna eficazes. O Senhor nunca rejeita um
coração contrito e humilhado. "O que se humilha na oração,
acrescenta o salmista, separará as nuvens do céu". Quanto
mais nos compenetrarmos do espírito e dos sentimentos de
Maria, tanto mais poderosos seremos junto de Deus e
inacessíveis ao nosso inimigo. A humildade é uma égide que
nos põe ao abrigo do mal; e, como o imã, que atrai o ferro, faz
descer em nós a força do alto.
A humildade de nossa divina Mãe será nossa salvaguarda,
se for objeto de nossa imitação. Conservar-nos-á de pé em
meio às tempestades e nos levará ao porto da salvação.

V DOMINGO DO TEMPO COMUM


Parábola do trigo e do joio (Mt 13, 24-30).
I — Nosso Senhor nos ajuda a compreender os mistérios
do mundo sobrenatural, pela consideração das leis que regem
a natureza visível; porque as coisas que se veem, diz São
Paulo, são imagens das realidades que não caem sob os
sentidos. A natureza é, sob este ponto de vista, uma escola de
ciência e de sabedoria cujas lições nos repetem, sob formas
simbólicas, os ensinamentos da palavra de Deus. Esta
admirável concordância nos foi explicada, pelo próprio Senhor,

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na parábola do trigo e do joio. O campo de trigo é o mundo; a
boa semente é a imagem dos filhos de Deus; o joio representa
os frutos do espírito do mal; a colheita é o julgamento de Deus;
os ceifadores são os anjos; o fogo que deve consumir o joio é o
inferno; os celeiros onde são recolhidas as espigas de trigo é o
céu. Observemos os diversos graus de profundeza desta
parábola. Aplica-se ao mundo, que Deus criou puro, e que o
demônio perverteu; aplica-se à Igreja, que Deus formou cheia
de graça e de verdade, e em que o inimigo fomentou
escândalos; aplica-se a cada fiel que Deus santificou, e que o
demônio procura corromper.
Aprendamos a discernir o que, em nós e fora de nós, vem
de Deus ou do demônio, a fim de resistirmos ao mal e
cultivarmos o bem.
II — A semelhança do campo de trigo com a vida do cristão
sobre a terra induz-nos a refletir nas condições dos nossos
eternos destinos. Nossa existência atual é o início de uma vida
que jamais se findará. Aqui estamos no tempo da sementeira,
da cultura e dos primeiros desenvolvimentos; mas a maturação
só é atingida no termo da vida e a perfeição completa somente
se alcançará no mundo de além. Vivemos na esperança; o
campo está semeado; mas quantas ervinhas inúteis, quanto
joio se entremeiam ao trigo! Serão reconhecidos pelo produto.
O dono é paciente: espera. E somente ao fim da colheita,
quando todos os germes houverem atingido seu pleno
desenvolvimento, é que Deus dará a cada um segundo suas
obras.
Que deslumbramento nos inebriará no grande dia da
colheita, se, fiéis à graça e vitoriosos do inimigo, nos virmos
admitidos na sociedade dos santos e dos bem-aventurados!

SEGUNDA-FEIRA DA V SEMANA DO TEMPO


COMUM
"O reino de Deus ê semelhante a um homem que semeou
boa semente em seu campo"
I — Tudo quanto saiu das mãos de Deus era
originariamente puro e perfeito. As desordens que apareceram
no mundo, na Igreja, no coração do homem, não são obras do
Criador; foram suscitadas por mão inimiga. Deus, a Bondade
em essência, não é o autor do mal; não quis a perda nem a
degradação da criatura. Foi o anjo das trevas, o sedutor do

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primeiro homem, quem manchou as obras do Criador, quem
deitou a semente envenenada entre a semente das bênçãos
divinas e, por suas instigações, fez brotar cardos e espinhos,
onde o Senhor semeara os germes das virtudes evangélicas.
Eis a triste causa das complicações da vida atual. O homem
traz em si um misto de elementos incompatíveis; é divino na
parte nobre do seu ser, ao passo que a sua natureza inferior é
infestada pela corrupção. É o trabalho máximo da presente
vida: combater os maus instintos e dominar a natureza
decaída, pelos triunfos da graça.
Cultivemos cuidadosamente os elementos celestiais que
Jesus implantou em nós, a fim de que nossa alma, inundada de
gozo, possa descansar um dia no seio de Deus.
II — Os homens dormiam, anota o Evangelho, enquanto o
inimigo espalhava o joio no campo. Concluímos daí que o
demônio não dorme; espreita as ocasiões em que
adormecemos para por em execução seus planos maléficos.
Quando nos vê negligentes ou sossegadamente entregues a
uma falsa segurança, quando encontra escancaradas e
acessíveis as avenidas dos nossos sentidos, de nossa
imaginação ou de nosso coração, atira-se de chofre sobre nós
e lança as sementes que a seu tempo produzirão os frutos de
morte. Jesus nos previne, aconselha-nos constantemente a
estarmos prevenidos contra perigo tão iminente. "Vigiai, repete
Jesus, pois que o espírito está pronto, mas a carne é fraca. Vi-
giai, pois não sabeis nem o dia nem a hora. Vigiai e orai, para
não sucumbirdes à tentação".
A oração assídua unida à vigilância nos preservará de
qualquer surpresa do inimigo.

TERÇA-FEIRA DA V SEMANA DO TEMPO COMUM


"Como crescesse a boa semente, principiou a aparecer
também o joio"
I — Nem todas as espigas de trigo são da mesma
qualidade; são de diferentes espécies; mas, no começo da
vegetação, não é possível distingui-las. Algumas hastes, finas
e leves, crescem desmedidamente, desperdiçando a seiva num
desenvolvimento estéril; outras, de aparência medíocre a
princípio, vergam mais tarde ao próprio peso. Para apreciá-las,
deve-se aguardar a época da maturação. Assim acontece com
os cristãos. Alguns existem que, vãos e presunçosos,

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produzem unicamente obras mortas. Outros, enriquecidos de
virtudes, curvam-se como espigas carregadas de bons grãos.
Ambos vivem do mesmo suco, fazem parte da mesma cultura e
juntos aguardam o dia da colheita. Ora, nessa mistura de bons
e maus, que parte somos? O que são os outros? Ignoramos!
Eis por que a Escritura nos aconselha a sermos sóbrios em
nossos juízos. Quantas vezes, na fase atual de nossa
existência, tomamos o trigo pelo joio e vice-versa.
A caridade nos veda julgarmos os outros e a humildade
nos proíbe a nossa própria estima.
II — Consideremos que, ao crescer, o joio ameaça abafar o
trigo; fenômeno este igualmente aplicável à ordem moral;
porque, se, de um lado, temos de fugir aos maus exemplos,
cuja influência contamina as melhores sociedades, por outro,
nossos próprios defeitos, nossas más qualidades, nossas
imperfeições descuidadas poderão, aos poucos, estragar o
nosso coração. O mal por muito tempo trabalha às ocultas;
deita suas raízes antes que a flor surja da terra; e é muito de
recear o seu triunfo, pois que no começo pode facilmente
escapar às investigações da nossa consciência.
Compreendamos com que severa vigilância é preciso
reprimir as tentações, venham elas de fora ou surjam do nosso
próprio íntimo. Fracas ao princípio, facilmente poderão ser
dominadas; mas depois, estimuladas pelo progresso, tornam-
se audazes e importunas. O cultivo de nossa alma exige
frequentes exames de consciência, para que, purificada das
menores manchas, produza frutos de penitência e de
santidade.

QUARTA-FEIRA DA V SEMANA DO TEMPO COMUM


"Quereis, Senhor, que arranquemos o joio?"
I — O grande objetivo da educação e da direção espiritual
é de melhorar o terreno das almas, extirpando os elementos
nocivos e cultivando com atenção os germes provenientes do
céu. Mas isto não é trabalho para um dia; exige tempo, ânimo e
constância. Um zelo precipitado comprometeria completamente
a colheita. Quem pretende corrigir outros, tem de começar a
correção em si mesmo. Precisa experimentar a eficácia do
remédio. E obterá êxito neste santo empreendimento, se agir
com zelo discreto, oportuno e submisso ao espírito de Deus.

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II — Os servos, aos quais se refere a parábola, não
possuíam noção alguma do verdadeiro zelo evangélico quando
se propunham suprimir imediatamente o mal e transmudar tudo
em bem. As correções espirituais, mais ainda do que as
corporais, reclamam sábias delongas; e os remédios mais
eficazes, aplicados inoportunamente, poderiam matar em vez
de curar. O zelo que procede de Deus sabe esperar sem
impaciência e agir sem precipitação; nem se deixa abater pelos
fracassos, nem exaltar pelos sucessos. Mas seja que trabalhe
em sua própria santificação ou que se dedique à salvação dos
outros, apoia-se sempre em uma direção superior.
O mais acertado meio para alcançar êxito é auxiliar a graça
e unir as bênçãos da oração ao gênio da caridade.

QUINTA-FEIRA DA V SEMANA DO TEMPO COMUM


"Deixai crescer ambas as sementes até à ceifa"
I — Quando consideramos o conjunto das coisas humanas,
encontramos sempre a mistura do bem e do mal. Um mesmo
campo produz trigo e joio; os bons e os maus vivem em
relações inevitáveis. Uns aumentam seus méritos, os outros
multiplicam seus crimes. Enchem estes à medida de suas
iniquidades; crescem aqueles em graça e amadurecem para o
céu. Deus guarda a uns e a outros, com uma soberana
paciência. Utiliza-se dos pecadores para aperfeiçoar o mérito
dos justos; e serve-se dos justos para convidar os pecadores à
penitência. Todos aparecerão juntamente ao julgamento de
Deus; todos serão julgados conforme as obras que praticarem.
É na eternidade que se fará a separação irrevogável dos
elementos que se desenvolvem no tempo, e esse
discernimento fará resplandecer a justiça divina ante a face de
todo o universo.
Vivamos à espera desse grande dia! E em vez de imi-
tarmos os que se queixam do joio que brota em campo alheio,
apliquemo-nos em arrancá-lo do nosso próprio campo.
II — Por toda parte existem vícios e virtudes, sombras e
luzes; não há horizonte sem nuvens! Aqueles que, julgando
evitar contradições ou pesares, mudam de sítio, de estado ou
de condição, correm ao acaso e geralmente fogem a uma
dificuldade para se enredarem em outras bem maiores. O
cristão aceita a situação tal qual se apresenta e serve-se dela
para o seu aproveitamento. Deixa passar o transitório, à espera

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do dia em que Deus de novo separará a luz das trevas. Então,
diz a Escritura, os obreiros da iniquidade serão para sempre
perversos, enquanto aqueles que houverem perseverado no
bem serão coroados de honras e de glória!

SEXTA-FEIRA DA V SEMANA DO TEMPO COMUM


"Ordenou-lhes o Senhor: Arrancai primeiramente o joio e
atai-o em molhos para ser queimado; o trigo, porém, recolhei-o
em meus celeiros"
I — A alma humana traz em si um princípio de liberdade a
que Deus jamais põe embaraços. O homem dispõe da sua
vontade, governa-se livremente e aquilo que houver escolhido
lhe será dado. Quem trilha a vereda dos justos, eleva-se para o
céu; aquele que desce pelo declive do pecado afunda-se no
abismo. "Que o homem manchado continue a se manchar, que
o justo continue a justificar-se". São Paulo acrescenta, a este
termo do Apocalipse, esta consideração severa: "Quando uma
terra, frequentemente regada pelas águas do céu, produz
frutos agradáveis ao cultivador, recebe as bênçãos de Deus;
mas, quando só produz ervas daninhas, é amaldiçoada,
condenada e finalmente entregue às chamas".
II — Tanto a vida do pecador como a do justo des-
envolvem-se sem intermitências até à morte. Neste termo
inevitável, o homem permanece fixo no estado em que se
encontrar, e, como a árvore, cai do lado para o qual estiver
inclinado. Isto nos mostra a importância de nos firmarmos
agora nas disposições em que desejaríamos estar em nossa
última hora.
"É agora o tempo aceitável", diz o apóstolo (2 Cr 6, 2). É o
tempo dos labores e da penitência. "O Filho do homem virá no
momento em que menos pensarmos" (Lc 12, 40). Decorrido
este tempo, se abrirá a eternidade e recolheremos, então, ao
cêntuplo, os frutos dos nossos trabalhos. Qual será nosso lugar
no último dia? Qual será nosso destino? Nossa vida há de
finalizar-se em uma eternidade de delícias ou em uma
eternidade de suplícios, conforme a orientação que lhe
houvermos dado. Se vivemos para este mundo, os anjos,
ministros da divina Justiça, nos precipitarão no fogo que deverá
consumir este mundo. Se vivemos para Deus, eles nos hão de
transportar, como espigas vivas, aos celeiros do céu.

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SÁBADO DA V SEMANA DO TEMPO COMUM
Maria é a celeste flor dos campos
I — A Escritura enaltece a flor misteriosa em cujo seio
germinou a humanidade do Deus do amor, fruto bendito de
suas entranhas. Nela se formou o trigo dos eleitos, a espiga da
santidade, o pão da imortalidade. Esta flor do céu fora
contemplada pelo patriarca Isaac, quando exclamou: "O bom
odor que se desprende das vestes de meu filho é semelhante
ao aroma de um campo de bênçãos". Maria, ao revestir seu
Filho da beleza humana, ficou impregnada de uma unção que
exala sobre todos os filhos dos homens.
E nós também, que nos alimentamos do fruto desta flor
virginal, conservemos ciosamente em nossa alma a graça da
caridade, e espalhemos o bom odor de Cristo.
II — Herdeira dos patriarcas, dos reis, dos profetas e dos
pontífices, a Virgem concentrou em si o foco de todas as
bênçãos que resgataram a natureza humana. Conforme a
expressão dos livros sagrados, Maria recolheu o orvalho do
céu e a nata da terra; possuiu toda a abundância do trigo e do
vinho; conservou o tesouro que enriqueceu o mundo; nutriu em
seu seio a estirpe da árvore da vida. Eis por que esta flor
virginal foi impenetrável às astúcias do inimigo; nunca o joio ou
outra semente nociva teve com ela o mais leve contato. Pura e
inocente, protege a inocência e deita suas raízes nas almas
puras.
Se queremos produzir frutos de santidade, apeguemo-nos
fielmente a Maria, por quem receberemos a seiva do Santo dos
santos.
As almas consagradas a Maria Santíssima são repre-
sentadas, na Escritura, sob o emblema de um pomar de
variadas flores que reproduzem sua imagem e a ela se
assemelham.

VI DOMINGO DO TEMPO COMUM


Parábola do grão de mostarda (Mt 13, 31-32).
I — O grão de mostarda é a menor dentre as sementes,
mas é cheio de força e de sabor. É mencionado com
frequência, no Evangelho, simbolizando Jesus, que, sob uma
forma humilde e pobre, esconde toda a plenitude da divindade.
"Será como um arbusto e um rebento de terra seca, diz o
profeta Isaías, vimo-lo e não tinha beleza alguma". Este grão

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misterioso deve morrer no sulco; mas do fundo do seu
abatimento se erguerá uma árvore viva da Igreja, cujas almas
regeneradas constituem os ramos. Um mesmo princípio de
vida anima o tronco e os ramos; e quando estas não opõem
obstáculos à circulação da seiva divina, florescem e frutificam
com fecundidade admirável. Todas juntas não formam senão
uma viva unidade. "Aquele que em mim permanece, produzirá
muitos frutos", diz o Senhor.
II — Cada grão confiado à terra produzirá, ao nascer, um
fruto conforme a sua espécie. Esta lei da ordem natural
encontra-se na ordem divina. O Filho de Deus, incorporando-se
na humanidade como um misterioso enxerto, reproduz-se em
seus discípulos e neles forma um novo ser. Conforme a
linguagem dos santos padres da Igreja, o cristão interior é um
novo homem que se desenvolve para o céu à medida que o
antigo decresce e se despoja. O discípulo que é animado da
vida de Jesus Cristo continua a vida de Cristo. São Gregório de
Nazianzo chama-o: "alter Christus" — outro Cristo; donde
provém o sentido profundo do nome de cristão. Significa, diz
santo Ambrósio — caridade, unção, bondade, suavidade,
castidade, paciência, humildade, obediência; exprime tudo
quanto significa o nome de Jesus Cristo. Temos como dever
primordial justificar, pela santidade de nossa vida, a
sublimidade da nossa vocação.
Sejamos humildes e deixemos que o mundo nos calque
aos pés; pois que, depois de sermos homens de dor, como
Jesus, viremos a ser santos e homens de Deus.

SEGUNDA-FEIRA DA VI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"O reino dos céus é semelhante a um grão de mostarda"
I — As analogias do grão de mostarda representam os
inícios pequeninos e o progressivo crescimento das obras de
Deus. A Igreja inteira obedece a esta lei de progressão.
Apenas perceptível em seu germe, ela estende no subsolo as
suas raízes profundas, antes de, bem alto, aos raios do sol,
estender a ramagem aonde virão abrigar-se as aves do céu.
Como um ponto luminoso que se intensifica cada vez mais até
atingir a plenitude da claridade, assim se propaga
gradativamente a fé em todas as regiões do mundo, servindo-
se dos meios mais simples para realizar os maiores empreen-

85
dimentos. É mais por sua marcha suave e perseverante do que
por impetuosos movimentos, que ela se eleva e se dilata
através dos séculos, vitoriosa sempre. E, para executar esta
obra monumental, Deus se serviu dos mais fracos
instrumentos, para confundir os sábios e os poderosos da terra;
escolheu aqueles que o mundo reputava insensatos.
Que ninguém atribua seus sucessos a suas próprias
aptidões! Que ninguém igualmente se valha de sua in-
capacidade para se dispensar do serviço de Deus!
II — O mistério do grão de mostarda não é aplicável
unicamente à Igreja; visa também a alma cristã; pois, assim
como a semente que, confiada à terra, só sucessivamente é
que produz folhas, flores e frutos, do mesmo modo o germe da
vida divina, lançado na alma, desenvolve-se gradualmente até
sua perfeita maturação. O mesmo Jesus, que é nosso modelo
e nossa vida, crescia em graça e em sabedoria; misterioso
crescimento que deverá produzir-se em cada um de nós e nos
elevar, pouco a pouco, a uma sublime santidade. Mas não so-
mos nós que damos crescimento a esta nova vida. A parte que
compete ao homem, nas obras de Deus, é secundar fielmente
o trabalho da graça. A sabedoria não lhe ordena fazer tudo que
é bom; mas aconselha a fazer bem tudo o que fizer, e a
cumprir dignamente sua obrigação de cada dia.

TERÇA-FEIRA DA VI SEMANA DO TEMPO COMUM


"O grão de mostarda é lançado em um campo"
I — É necessário que o grão de mostrada seja deitado à
terra para se despojar de sua casca e sofrer as transformações
de uma nova vida; porque, explica o Evangelho, se o grão não
morrer, não produzirá frutos. Esta é a condição para o
renascimento espiritual do homem. Pela morte é que se entra
na vida; e esta morte não é senão a renúncia de tudo o que o
pecado acrescentou à nossa natureza. Urge, pois, que o
cristão, que aspira à perfeição evangélica, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz e siga o divino Mestre. Quer isto signi-
ficar que tem a atravessar a mesma fase pela qual passou
Jesus Cristo; assim, as mortificações, os sofrimentos e a morte
são as condições da vida, da santidade e da bem-aventurança.
Desde que Jesus só poderá reinar sobre as ruínas do
homem velho, carreguemos com amor a nossa cruz e
suportemos corajosamente os males que a ela estão ligados.

86
II — São Paulo nos ensina que somos predestinados a ser
conformes à imagem de Jesus Cristo; essa imagem somente
poderá aparecer em nós, depois da destruição de nossa
natureza. A cruz é que opera esta renovação; ela nos mortifica
e vivifica. Livra-nos dos laços terrestres, dos revestimentos
heterogêneos, a fim de nos tornar acessíveis à divina luz e
capazes de nos unir ao Santo dos santos. A mortificação cristã
executa voluntária e gradualmente aquilo que a morte forçosa-
mente o fará; faz-nos morrer cada dia ao que não deverá
subsistir, para que possamos atestar com são Paulo "que o
mundo está morto para nós assim como estamos mortos para
ele".
Mas no seio dessa morte vai surgir a vida divina, e então
afirmaremos com o mesmo apóstolo: "Vivo, mas não sou eu
quem vive; é Cristo quem vive em mim!".

QUARTA-FEIRA DA VI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Quando o grão de mostarda cresce, torna-se uma grande
árvore"
I – O homem é sempre grande quando é bom cristão; pois
que a verdadeira grandeza consiste em elevar-se acima do
mundo, até Deus. Mas ninguém atinge as culminâncias da
perfeição logo de um impulso, bem como não é de um salto
que vai aos extremos do vício. Sobe-se ou desce-se por
degraus. A virtude cristã é um germe que se desenvolve, a
princípio, no escuro; começa pela humildade e termina pela
santidade. Se desejardes ser grande, diz santo Agostinho,
começai por serdes pequeno. Sede pequeno diante de Deus,
pela submissão infantil; pequeno ante os homens, por modéstia
sincera; pequeno a vossos próprios olhos, pelo reconhecimento
da vossa fraqueza e de vossa inferioridade.
É neste estado de abatimento que a alma, como o grão de
mostarda, se despoja, se renova diante de Deus como uma
árvore carregada de frutos.
II — Segundo alguns intérpretes, o grão de mostarda
representa ainda as pequenas ações quotidianas que
compõem a trama ordinária da nossa vida. São ações que por
si mesmas nenhum valor possuem; mas, quando praticadas
com o intuito de agradar a Deus, constituem um rico tesouro de
méritos e de boas obras. Raras vezes se nos apresenta

87
ocasião de praticar uma virtude magnânima; mas todos os
dias, a cada instante, temos, ao mesmo tempo, a ocasião e a
missão, tanto de combater o mal, quanto de praticar o bem. Diz
o Evangelho que Jesus fez bem todas as coisas; e depois
deste testemunho, acrescenta que ele deu a vista aos cegos e
desatou a língua aos mudos.
A ordem deste relato nos demonstra que o perfeito
desempenho dos deveres quotidianos é o prelúdio das ações
brilhantes.

QUINTA-FEIRA DA VI SEMANA DO TEMPO COMUM


"O reino dos céus assemelha-se ao fermento" (Mt 13, 33).
I — Após as analogias da mostarda, nosso Senhor
compara as operações divinas da alma cristã à fermentação
que produz o fermento na massa em que foi introduzido.
Realmente, quando a graça se insinua em nossa alma,
penetra-nos pouco a pouco, eleva-nos e comunica-nos
sobrenatural energia. A secreta virtude desse fermento
abençoado assume uma variedade de formas: uma palavra,
uma inspiração, um pensamento generoso, um exemplo
edificante, uma recordação, um sacrifício, um fracasso, uma
enfermidade; todos estes incidentes providenciais ocultam, por
vezes, graças preciosas que exigem de nossa parte a
submissão do coração e uma piedosa cooperação.
II — Assim como o lêvedo faz crescer a massa, a graça
sobrenaturaliza as virtudes. Por isso, o nosso cuidado
constante, se aspiramos a santidade, deve consistir na
fidelidade à graça; quanto mais a ela correspondermos, mais
aumentará, pois que a fidelidade à primeira graça é o elo que
encadeia todas as outras. A alma fiel, cujos bons desejos
começam a fermentar sob a ação divina, sobe de virtude em
virtude, de claridade em claridade e eleva-se
progressivamente, até ao foco da eterna luz.
Reanimemos em nós esse precioso fermento e oremos
com ardor para que em nós a graça não seja estéril; peçamos
para que ela frutifique em nós e no nosso próximo.

SEXTA-FEIRA DA VI SEMANA DO TEMPO COMUM


Continuação da parábola do fermento
I – Se o fermento celestial da graça produz nas almas
dilatação das virtudes, há outra espécie de fermento, ve-

88
nenoso, que avoluma as pretensões do orgulho, fomenta as
murmurações contra a autoridade, e excita a fermentação de
todas as concupiscências. É a este fermento que alude nosso
Senhor, quando adverte seus discípulos para que se acautelem
contra o espírito farisaico: espírito de vaidade, de ostentação
que, sempre cheio de si, facilmente se irrita contra o próximo.
Cerremos nosso coração a esse fermento maligno, como o
denominava são Paulo; pois o mínimo pensamento de orgulho,
quando consentido, pode produzir mortais inflamações e des-
truir os melhores sentimentos.
II — O amor próprio, isto é, o amor desordenado de si
mesmo e que se quer impor às outras criaturas, eis o fermento
sutil que incha aos poucos o coração, invade os pensamentos
e envenena a vida toda. Este mal hediondo concentra-se no
egoísmo, espécie de verme solitário que corrói a substância da
alma. Desejamos preservar-nos do fermento farisaico?
Aprendamos com Jesus a mansidão e humildade de coração.
A caridade, o amor de Deus, os sentimentos nobres e
piedosos, somente poderão se erguer sobre as ruínas do
orgulho: "Aquele que se ama, se perderá; e aquele que se
odiar neste mundo, se salvará", diz Jesus.

SÁBADO DA VI SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria é a mulher evangélica que nos dá o fermento celeste
I — O Evangelho compara os mistérios do reino de Deus
ao lêvedo que uma mulher introduz na farinha. Esta parábola
encerra uma alusão a Maria, a mulher por excelência. Ela, que
o Gênesis denomina de Mãe dos viventes, porque deu à luz o
Autor da vida, é a Mãe de todos que vivem da nova vida. Ela
concorreu para a formação do fermento sagrado que purifica e
dilata toda a massa corrompida da natureza humana. Quando
este fermento do céu se mistura à nossa alma, comunica-nos a
santidade e a imortalidade, torna-a fecunda em boas obras;
eleva-a de virtude em virtude até à mais alta perfeição. Maria é
o vaso imaculado que contém essa divina substância; mas, se
é sua depositária, é igualmente sua dispensadora; a ela é que
devemos recorrer para alcançar as graças de que
necessitamos.
Conjuremo-la a vivificar nossa alma para que amemos a
Deus com perfeito amor.

89
II — O lêvedo que nos regenera e santifica é o sacramento
da carne e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. "Ora, esta
carne é a carne de Maria, este sangue é o sangue de Maria!"
exclama santo Agostinho. Grande verdade, que nos deixa
pressentir a intimidade e sublimidade das relações existentes
entre Maria e a alma cristã. O que Maria fez de modo visível
para nosso Senhor Jesus Cristo, fez invisivelmente para nós
que somos os membros de Jesus Cristo e que recebemos, em
nosso coração, seu espírito e sua vida. Ela zelou por Jesus em
seu crescimento; é igualmente sob o seu olhar maternal que
devemos crescer em graça e em sabedoria. É ela quem
protege e favorece o desenvolvimento do fruto da vida que
recebemos na sagrada mesa. Mas estará esse
desenvolvimento em proporção com as graças que
recebemos? Nosso desenvolvimento já estará alegrando a
nossa Mãe do céu? Somos obedientes? Somos humildes e
pacíficos, mansos e generosos? Quais são os nossos
progressos na prática da renúncia, da pobreza, da dedicação,
da divina caridade? Possa o fermento da divina Eucaristia
levedar todas estas virtudes, pois que só se comunga
dignamente quando se comunga frutuosamente. Imploremos
esta graça a nossa divina Mãe.

VII DOMINGO DO TEMPO COMUM3


Parábola dos vinhateiros (Mt 20)
I — À entrada da Septuagésima a Igreja nos prepara para
a penitência; exorta-nos a sacudir nossa indolência; excita a
energia da nossa boa vontade e instiga-nos â apressar os
passos em demanda dos nossos eternos destinos. A parábola
dos vinhateiros simboliza todos estes ensinamentos; põe em
evidência que o importante negócio da vida presente é
trabalharmos para a nossa salvação eterna. Que nos valeria,
com efeito, ganhar o mundo inteiro, se viéssemos a perder a
nossa alma?

3
Na edição de 1941, aqui se tinha Domingo da Septuagésima, que
inicia um período de quase 70 dias que precede a Páscoa. Com a
reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, esse período foi introduzido
no que chamamos hoje de Tempo Comum (confira Observações, pág.
7). (N. do revisor)

90
Deponhamos nossa confiança naquele que nos assiste, ao
mesmo tempo, e que nos exorta e nos ilumina. Apoiados em
seu auxílio, tudo nos será fácil.
II — Esta parábola da Septuagésima marca as expansões
sucessivas da divina Bondade que se manifesta em diversos
tempos e de formas variadas. O Pai celeste convida todos os
homens a trabalharem em sua vinha, trabalho que deve visar
primeiramente a nossa própria santificação. Nossa alma é uma
vinha de maravilhosa fecundidade; exige um cultivo esmerado;
deve ser cortada, regada, podada, escorada. Este trabalho é
longo, e a vida é curta, diz o Sábio. Perder o nosso tempo seria
perder nossa vida, seria perder o céu e a eternidade.

SEGUNDA-FEIRA DA VII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Saiu o pai de família ao despontar do dia, a contratar
operários".
I — Meditemos sobre o sentido da parábola evangélica. O
pai de família é o Deus de bondade, o único e verdadeiro Pai,
fonte de toda paternidade. Sua família é a Igreja, onde são
oferecidos os tesouros da santificação aos que vivem de
obediência e de amor. Os operários enviados à vinha são os
que são chamados ao serviço de Deus; as diversas horas do
dia são as diferentes condições de vida; e a quantia estipulada
para o trabalho de cada dia é, a um só tempo, o emblema da
graça quotidiana, que basta para cada momento, e da
recompensa eterna que deverá coroá-la. Encontramos, sob
estas figuras, todos os mistérios da vida cristã: Deus nos
previne, convida-nos a meter mãos ao arado; solicita-nos pela
voz dos seus ministros e pelas inspirações que suscita em nós;
quer que correspondamos à sua graça. Tanto o nosso dever
quanto o nosso interesse exigem que acorramos a seu
chamado.
II — Cada pessoa tem seu trabalho assinalado, ao qual se
prende a produção dos frutos de salvação. A vida humana não
tem por finalidade, absolutamente, nascer, chorar, morrer. Bem
outro é o destino do homem e, para consegui-lo, deverá fazer
aqui sua aprendizagem. Firmar a vontade, purificar o coração,
vencer o mal, aperfeiçoar o bem. Eis o magno trabalho da
nossa existência, trabalho de santificação que deve progredir
constantemente até atingir a perfeita madureza.

91
É este o fim visado pelos obreiros evangélicos. E é também
o que são Paulo escreve aos filipenses: "Prossigo em minha
carreira para chegar ao termo a que me chamou Cristo; e,
esquecendo o que ficou atrás, adianto-me, correndo sem
cessar, para alcançar o fim da minha carreira, e obter o prêmio
da felicidade do céu".

TERÇA-FEIRA DA VII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Disse o pai de família aos operários: Ide trabalhar em
minha vinha"
I — A cultura da vinha espiritual exige uma aplicação
conscienciosa e assídua. É por isto que Deus nos chama
desde pela manhã. Felizes os que ainda jovens se habituam ao
jugo do Senhor! A vida atual não é longa e tão segura para que
nos exponhamos a perder a recompensa, deixando o mundo
antes de haver concluído o trabalho. Mas, a qualquer hora em
que ouçamos o apelo de Deus, cumpre-nos corresponder sem
tardança, nele prosseguir sem desânimo e, sobretudo, não o
comprometer pela negligência. Do contrário nos arriscaríamos
a merecer a repreensão que o Salvador fez à sua vinha
querida: "Que poderia ter feito por ti que não tenha feito?
Contava com uma colheita preciosa e abundante em troca dos
meus desvelos, e eis que não produziste senão frutos
selvagens!".
II — A sentença com que a Escritura fulmina toda vinha
ingrata deve fazer tremer as almas indolentes e preguiçosas. A
alma cristã que descura do trabalho de sua santificação,
assemelha-se à vinha que seca e morre; é abafada pelos
espinhos, devorada pelos insetos, e os animais calcam-na aos
pés. A alma negligente, com efeito, obstrui por sua culpa os
canais da graça, perde o espírito de oração e o gosto pelos
exercícios de piedade; arrasta-se mais do que anda na estrada
da dedicação; abre as portas à tentação e abandona-se sem
resistência às flechas envenenadas. Esse desvio funesto tem
um horrível resultado; pois, como está escrito: "Maldito seja
aquele que faz as obras de Deus com negligência!" (Jr 48, 10).
Não nos iludamos. Não tarda a chegar a noite, então não
poderemos mais agir. Utilizemos seriamente esta vida
destinada ao trabalho, lembrando-nos de que o soberano
remédio contra a negligência é a rigorosa fidelidade à
meditação e aos deveres cotidianos.

92
QUARTA-FEIRA DA VII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Por que ficais assim ociosos o dia todo?"
I — Ao considerar a vastidão deste mundo, quantas
pessoas desocupadas nele não encontramos! Quantos cristãos
desperdiçam suas energias, tempo, talento, sua vida inteira em
agitações estéreis! A obra da santificação não consiste
unicamente em se abster do mal, é preciso praticar o bem e
bem o realizar! A atividade que não vem de Jesus e que para
ele não converge, é uma ação morta. A observação sobre a
preguiça recai, por conseguinte, não só sobre aqueles que
nada fazem, mas também sobre os que agem mal e sobre
aqueles que se ocupam em coisas diferentes de sua obrigação.
A mesma sentença os ameaça: "Ligai-lhes os pés e as mãos e
lançai-os às trevas exteriores, onde só haverá lágrimas e
ranger de dentes!".
II — As boas obras cristãs consistem mais em uma vida
santamente ocupada do que na multiplicidade de empresas e
de trabalhos. Há uma série de ações diárias que bastam à
santificação, quando cumpridas regularmente e com reta
intenção. O levantar-se pela manhã, a oração, a meditação, a
tarefa designada a cada hora do dia, o exame de consciência,
as refeições, os recreios os exemplos edificantes, a paciência
em suportar o próximo, os exercícios de piedade aos quais se
prende uma infinidade de ocasiões de praticar o zelo, a
paciência, a caridade, o sacrifício pessoal; eis as comuns
ocupações das almas que aspiram à perfeição; e se
conscienciosamente a elas se aplicam, escapam aos
aborrecimentos causados pela ociosidade, aos assaltos da
tentação e aos perigos de uma vida estéril.

QUINTA-FEIRA DA VII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Como viesse a noite, disse o senhor da vinha ao seu
feitor: Chamai os trabalhadores e pagai-lhes o salário"
I — Após a vocação que nos convida ao trabalho, chega o
dia da prestação de contas. E à tarde, antes de findar o dia,
que se distribui a recompensa; é realmente à última hora da
nossa vida que se fixará o nosso destino. Essa hora se
aproxima sem cessar; cada instante que passa rouba um
pouco do tempo que Deus nos concede para nossa

93
santificação. Quando soar essa hora suprema, nossa alma
será chamada perante o ecônomo do pai de família, Jesus
Cristo, o juiz dos vivos e dos mortos; comparecerá em sua
presença adornada com as virtudes que houver cultivado ou,
então, despojada de frutos e empobrecida por inútil existência.
Uma sentença irrevogável será pronunciada e seremos
eternamente felizes ou eternamente desgraçados, conforme
houvermos procedido no serviço de Deus.
Meditemos sobre estas verdades em todos os dias de
nossa vida; incitar-nos-ão ao trabalho, sustentarão nosso
ânimo e hão de nos preservar de qualquer infidelidade.
II — Consideremos que, na remuneração dos trabalha-
dores, o dono da vinha aprecia menos a duração do trabalho
do que o trabalho em si mesmo; pesa a recompensa, não pela
multiplicidade ou importância do trabalho, mas sim pela sua
perfeição. Ora, para que as obras sejam perfeitas, necessário é
que procedam de uma intenção reta e pura e que tenham a
Deus por alvo. Esta disposição do coração enobrece as ações
mais comuns e imprime-lhes um cunho de subido valor, ao
passo que, na sua falta, por numerosas e brilhantes que
pareçam, serão destituídas de todo o mérito e nada valerão
perante Deus. Valorizemos, pois, as nossas ocupações diárias,
vivificando-as com o espírito de caridade e de amor. Que
nossos atos e nossos pensamentos tenham por objetivo
glorificar a Deus, edificar o nosso próximo e santificar nossa
alma. A recompensa que coroará nossos esforços é superior à
nossa compreensão.

SEXTA-FEIRA DA VII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Os obreiros se aproximaram e receberam um dinheiro
cada um"
I — Tudo o que houvermos feito para servir a Deus, até um
copo d'água dado em seu nome, obterá sua recompensa. Mas
esta, figurada pelo dinheiro, não tem na terra um termo para
sua justa apreciação. Os olhos não viram, os ouvidos não
escutaram, o coração do homem não compreendeu o que
Deus prepara aos que o amam. Os bens desta vida são
apenas aparências fugazes; os verdadeiros tesouros, as
verdadeiras honras, as verdadeiras alegrias, somente serão
encontradas lá onde tudo é estável, imortal, eterno. A grande e
magnífica recompensa do céu é o próprio Deus, fonte das

94
celestiais delícias, foco da caridade, da vida, do amor, da luz e
da beleza. Ele estanca a sede da alma, sacia-lhe todos os
desejos: "Ele a inebria, diz a Escritura, e com uma torrente de
divinas alegrias". Se tal é a recompensa reservada a seus
discípulos, qual não será o quinhão daqueles que tudo
abandonaram para se entregarem ao seu serviço?
II — Embora seja a sublime bem-aventurança a re-
compensa geral conferida às almas fiéis, contudo, não gozarão
todas em grau igual. Cada um receberá a recompensa
proporcional a seu trabalho, diz são Paulo, porque existem
várias moradas no reino do céu e, por conseguinte, vários
graus de glória e de majestade. Assim como os diamantes
expostos aos raios do sol irradiam conforme sua lapidação,
assim como os diversos astros aumentam ou diminuem seu
brilho, conforme sua posição relativamente ao rei dos astros,
assim as almas recompensadas dos seus trabalhos
participarão dos esplendores divinos em graus diversos,
conforme a medida dos seus sofrimentos, dos seus combates,
da sua dedicação, da sua caridade.
"Ó homem!, exclama santo Agostinho, se queres te animar
à paciência e ao trabalho, pondera na recompensa!".

SÁBADO DA VII SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria anima os operários que trabalham na vinha do
Senhor
I — Como se fossem proferidas pela santíssima Virgem, a
Igreja tira do Livro da Sabedoria estas palavras endereçadas à
alma que se consagra a Deus: "Minha filha, quando entrares
para o serviço de Deus, prepara-te para as provações;
humilha-te e espera com paciência; isto é, modera teu zelo e
reprime a atividade impetuosa da natureza; suporta as
delongas de Deus, aceita de bom modo tudo quanto te
acontecer e não desanimes nas horas de tentação. O ouro e a
prata se purificam no fogo e aqueles que aspiram seguir o
Senhor, passam pela provação do sofrimento". Preciosas lições
que não visam exclusivamente os que começam, mas também
os que já fizeram algum progresso no caminho santo. Maria
resume docemente todos esses conselhos de perfeição,
estimulando-nos a praticar em todas as circunstâncias a
palavra de Jesus Cristo. Que viva confiança, que paz e que

95
força hão de nos dar tais disposições de alma, na casa do Se-
nhor!
II — Maria acrescenta seu próprio exemplo às instruções
da divina sabedoria; porque ela fez o que nós devemos fazer e,
como Jesus, pôs em prática as virtudes que nos devem servir
de modelo. Desde os primórdios de sua vida, entregou-se a
Deus sem reserva e permaneceu constante e fiel até seu
derradeiro suspiro. Esta disposição do seu coração foi
permanente; por isso é que Deus, quando lhe manifestou seus
desígnios, a encontrou pronta: "Sou a escrava do Senhor, faça-
se em mim segundo a sua palavra!" Maria tudo aceita, não tem
outra vontade senão a de Deus; submete-se às provações por
mais rigorosas que sejam; cumpre sua vocação dia a dia; e sua
vida inteira, é um sacrifício perpétuo, unido ao sacrifício de
Jesus Cristo. Desse modo tornou-se cooperadora da nossa
salvação, o modelo de todos que, seguindo seu exemplo,
trabalham na salvação das almas.
Felizes os operários evangélicos que na escola de Maria
aprendem a servir o bom Mestre, com ânimo e confiança!

VIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


Parábola do semeador (Lc 8, 5-8)
I — Nosso Senhor mesmo se designa sob a figura do
lavrador que semeia. Ele veio para deitar em nossa alma o
germe da vida celeste. Mas as diversas disposições dos que
recebem a semente da palavra são comparáveis a terrenos de
qualidades diferentes. Recebem todos os ensinamentos do
Evangelho; mas nem todos aproveitam. Existem espíritos
levianos e superficiais, que escutam a palavra sem a
compreender; outros há que escutam com atenção e
compreendem, mas falta-lhes a coragem para pô-la em prática;
outros ainda praticam-na durante algum tempo, mas, por
escassez de paciência, não perseveram até à estação dos
frutos. Enfim, alguns conservam a semente divina no fundo do
seu coração e fazem-na frutificar com maior ou menor
abundância, dependente da fidelidade com que houverem
correspondido à graça.
Examinemo-nos se nos utilizamos bem da palavra de Deus
e se nosso progresso espiritual está em proporção com as
instruções recebidas.

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II — Nada poderemos produzir por nós mesmos. Assim
também todo nosso mérito depende das disposições com que
cultivarmos a semente depositada em nossos corações. Quer a
palavra divina nos instrua interiormente por uma secreta unção,
quer nos seja revelada pelos livros sagrados, quer nos fecunde
pela voz dos ministros da Igreja, devemos conservar a
substância cheia de luz e de virtude.
É uma verdade comprovada que, se os ensinamentos de
Deus não nos melhoram, nos tornam mais culpados e maus.
"Muito será pedido a quem muito recebeu". Não basta ouvir a
palavra com respeito; é preciso dar-lhe franco acesso à nossa
alma e a ela aderir por uma cooperação ativa e perseverante.

SEGUNDA-FEIRA DA VIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
A palavra de Deus é uma semente
I — Assim como as produções da terra saem de uma
semente natural que se continha em substância, também os
frutos da graça provêm de uma semente espiritual; e esta
semente é a palavra de Deus. Tanto em uma como em outra, é
preciso distinguir o acidental e a substância. O acidental
isolado, isto é, a forma exterior, o som ou a letra, de nada
serve; não é senão o meio de comunicação que recebe sua
dignidade do espírito que a transmite. "Minhas palavras são
espírito de vida", diz o Senhor. É, pois, a palavra e a vida de
Jesus Cristo que recolhemos sob as espécies da palavra
evangélica; e, se a assimilarmos à nossa alma, desenvolverá
em nós a vida sobrenatural; produz frutos de fé, de esperança
e de caridade.
II — Segundo a opinião dos santos, podemos comparar a
palavra de Deus ao sacramento da Eucaristia. Realmente, no
mistério do altar, as espécies que vemos são sinais, apenas;
mas a substância que contêm é a vida divina. Assim, no
mistério da palavra de Deus, os sons, que percebem os nossos
sentidos, são sinais, mas a substância que transmitem são o
espírito e a vida de nosso Senhor Jesus Cristo. Foi dito da
palavra evangélica o mesmo que da Eucaristia: quem a receber
não morrerá. Uma e outra depõem na alma cristã a semente da
verdade que não passará, e a semente da vida que não
morrerá. "Achei vossa palavra, exclama um profeta; dela fiz

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minhas delícias e transformou-se em mim numa fonte de água
viva".

TERÇA-FEIRA DA VIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Uma parte da semente caiu ao longo da estrada e foi
calcada aos pés"
I — A comparação das estradas largas nos faz com-
preender o perigoso estado de uma alma que vive em habitual
dissipação e que, sempre distraída com as coisas exteriores,
não penetra o sentido das coisas de Deus. A palavra divina
ressoa-lhe como uma melodia mais ou menos agradável, que é
apreciada, mas logo esquecida, sem deixar impressões. É
como uma estrada larga aberta a todos os pensamentos; ela
abandona a semente da palavra a todos os ventos que a
dispersam; e, por falta de atenção e de vigilância, calca aos
pés o mais precioso dos dons de Deus.
Estejamos atentos para que a rotina não nos precipite
nessa negligência culposa e que a palavra, desprezada ou
perdida por um desleixo nosso, venha a ser causa da nossa
condenação.
II — A semente que se perde no caminho representa
também as verdades que deixamos cair por terra, conforme a
expressão das sagradas Escrituras; há almas cheias de ilusões
e de presunção que nunca a si mesmas aplicam as lições do
Evangelho, mas sim aos outros. Percebem com toda a
clarividência o que pode humilhar ou corrigir seu próximo, mas
não enxergam seus próprios defeitos. Neste número se
incluem as almas que se julgam irrepreensíveis e com despeito
recebem as observações e repreensões. Têm seu amor próprio
suscetibilidades que impedem todas as bênçãos de Deus.
Nossa alma é o campo onde semeamos para a outra vida.
Se recusarmos as condições desta cultura, chegaremos com
as mãos vazias no dia da colheita.

QUARTA-FEIRA DA VIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Outra parte da semente caiu em terreno pedregoso e
secou por não encontrar aí profundidade"
I — A terra pedregosa designa, conforme explica o mesmo
Jesus Cristo, as almas que sentem um certo prazer em ouvir a

98
palavra de Deus; apreciam-lhe a beleza, admiram sua
sublimidade, e, cheias de ansiedade, desenhariam recolher
seus frutos logo no dia seguinte à sementeira. Mas estas
almas, acrescenta o Evangelho, não têm constância, porque a
semente da palavra parou na superfície da imaginação, não
desceu até aos sulcos do coração; despertou os bons desejos,
mas não moveu a vontade; produziu flores, mas estas, devido
à falta de raízes, feneceram antes da época dos frutos. Estas
almas, fecundas em teorias e estéreis em realizações, são pro-
missoras na primavera, mas não resistem aos furacões da
estação tempestuosa, esmorecem e se abatem.
Escaparemos a tais perigos, se unirmos aos nossos es-
forços quotidianos a meditação assídua da palavra de Deus.
II — As pedras que se acumulam no campo da nossa alma,
impedindo a semente divina de deitar suas raízes, são bem
mais perigosas porquanto substituem as realidades por ilusões.
O solo de pouca profundidade faz nascer rapidamente um
mundo de bons pensamentos que passam por virtudes;
confundem-se as veleidades passageiras com atos eficazes da
vontade; alega-se com a multiplicidade dos bons desejos, sem
aproveitar os meios e as ocasiões de pô-los em execução; de
maneira que se vive de uma ilusória segurança e uma
esperança estéril. Compete-nos averiguar quais os obstáculos
que obstruem nossa alma. Os empecilhos mais comuns que a
palavra de Deus encontra são: o parecer pessoal, a atenção
demasiada a nós mesmos, as suscetibilidades do amor próprio,
as preocupações do passado e do futuro, ou as antipatias e
afeições exageradas. São João nos aconselha a nos
premunirmos contra certos ídolos espirituais. A alma piedosa
triunfará neste ponto por generosos sacrifícios e pela oração
perseverante.

QUINTA-FEIRA DA VIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Outra parte da semente caiu entre espinhos e estes
abafaram-na"
I — A semente que cai sobre as urzes e os espinhos, não
tem destino mais feliz do que a que resseca nos terrenos
pedregosos. Não se pode esperar progresso espiritual algum
na alma agitada pelo amor dos prazeres, da vaidade e dos
bens terrestres. São espinhos cuja agudeza contrista o espírito

99
de Deus e intercepta a seiva da graça. As almas afastadas do
mundo se arriscam a sucumbir a essas mordeduras mortais, se
à solidão levam consigo preocupações estranhas à sua
vocação. Como poderia o Evangelho irradiar sua luz, espalhar
a paz e a unção divina, no meio desse emaranhado de urzes
que abafam todas as inspirações do espírito de Deus?
II — O cultivo espiritual exige um trabalho constante; pois
se trata de extirpar instintos viciosos que abundam sob
múltiplas formas na natureza humana. Estes espinhos são
débeis no começo, e basta, para arrancá-los, um pequeno
esforço; mas, se nos descuidarmos e eles crescerem, então se
tornarão vigorosos, resistirão a tudo. Bem felizes seremos se
uma poderosa graça vier em nosso auxílio, para destruir o que
não procuramos arrancar!
Combatamos o mal antes que se degenere em hábito, e
cultivemos o campo de nossa alma com uma conscienciosa
solicitude.

SEXTA-FEIRA DA VIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Uma parte da semente caiu em boa terra e produziu frutos
ao cêntuplo"
I — A terra boa é a alma reta e generosa que, após receber
a palavra de Deus com fé, produz frutos de amor e de
caridade. Estas almas são tão fecundas que, servindo-nos das
palavras do Evangelho, reproduzem trinta, sessenta e cem por
um. Seus frutos são em proporção à qualidade do solo e da
cultura, porque Deus não pede o impossível. Ele só quer colher
o que semeou. Benditas as al nas cuja gratidão cresce na
proporção dos benefícios! Mas não percam ânimo aquelas que
se reconhecerem defeituosas. Se, resolutas, aceitarem as
condições para o trabalho de aperfeiçoamento, poderão me-
lhorar, por sua vez, e produzir ainda frutos de consolação. São
Francisco de Sales afirma não haver terra tão estéril que o
amor do cultivador não consiga tornar fértil.
Empenhemo-nos por sempre mais nos aperfeiçoarmos, a
fim de que nossa alma seja um campo de bênçãos.
II — A fecundidade do coração humano é inesgotável, mas
a semente da palavra de Deus só nele germinará com o tempo
e com muita paciência. Os frutos precoces não são os mais
suculentos; adquirem qualidades mais perfeitas aqueles que

100
são objeto de uma longa e gradual cultura. "Conservo Vossas
palavras ocultas dentro do meu coração!" dizia Davi. Ensina-
nos isto que não devemos arriscadamente exteriorizar as
graças do espírito interior, com receio de que a seiva se esgote
e se dissipe.
Moderemos nossa ansiedade e aguardemos os momentos
de Deus. É a paciência um poderoso instrumento de cultivo
moral; é igualmente a condição da perseverança que coroa
todas as obras e todas as virtudes.

SÁBADO DA VIII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Maria conservava a palavra e meditava-a em seu coração"
I — A Virgem imaculada é a terra de bênçãos que produz o
trigo do céu. Foi em suas entranhas puríssimas que germinou o
próprio amor, semente de toda beleza, de toda bondade, de
toda verdade. Mãe do Verbo de Deus, deu à luz o Autor da
vida, foco de onde se irradiam as perfeições celestes. A
palavra evangélica fulgiu em seu coração antes de se espalhar
pelo mundo; de maneira que este coração pode ser
considerado como o Livro da vida, como Tábua da lei, como o
Evangelho dos evangelistas. Quanto mais unidos estivermos a
Maria, como filhos à sua mãe, tanto mais seremos iniciados
nos mistérios da sabedoria e da ciência dos santos.
II — "Sois bem-aventurada, diz o Espírito de Deus a Maria,
porque crestes". Ela recebeu a palavra divina e guardou-a em
seu coração; assim é que a Virgem fiel reparou a infidelidade
da primeira mulher. Enquanto a insubordinação de Eva introduz
urzes e espinhos na natureza humana, a fé humilde da
santíssima Virgem faz voltar sobre a terra a paz e a santidade.
Quando seguimos o espírito de Eva e procuramos discutir
sobre a palavra, em vez de ouvi-la com submissão, então fatal-
mente cai nossa alma na incredulidade e nas trevas. Mas se,
imitando Maria, fazemos da palavra divina objeto de nossa
meditação e de nossa regra, chegaremos, pela fé, à luz e ao
amor.
A alma crente, conforme a expressão dos livros sagrados,
é como um jardim sempre orvalhado e como uma fonte perene.

101
IX DOMINGO DO TEMPO COMUM
"Eis que vamos para Jerusalém; e tudo aquilo que foi dito
pelos profetas a respeito do Filho do homem, será realizado"
(Lc 18, 31).
I — Penetremos nas intenções da Igreja, que desde hoje
nos convida a meditar mais consideradamente sobre os
sofrimentos de nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de nos afastar
das vaidades e das desordens do mundo. Enquanto Jesus nos
avisa que vai morrer por nós, quantos cristãos só pensam nos
prazeres! Excedendo em culpa aos judeus, que não sabiam o
que faziam, renovam todas as dores de nosso Senhor,
entregam-no às derrisões do mundo; retribuem seus benefícios
por ultrajes, menosprezam o nome de cristãos e vivem como
pagãos; crucificam-no em seus corações, diz são Paulo, pois
que pisam aos pés o preço da redenção.
Prostrados ante o sacrário, peçamos o perdão para eles e
para nós; deploremos a nossa indolência e nossa ingratidão;
imploremos a divina misericórdia e a infinita bondade do
Senhor nosso Deus.
II — Enquanto a multidão permanece fria e indiferente em
face do Salvador que vai operar a redenção do mundo, um
pobre cego, sentado à beira do caminho, comove-se ao rumor
das maravilhas que o impressionam, e brada: "Jesus, Filho de
Davi, compadece-te de mim!" Jesus o atende prontamente e
devolve-lhe a vista. Não será este cego uma figura do povo de
Israel, que jaz tristemente sentado na escuridão? Reconhece
ele seu infortúnio, e sem se deixar intimidar pela multidão que o
comprime, invoca bem alto o Messias. É em sua última hora
que Jesus opera este milagre. O cego recupera a vista no
momento em que outros a perdem; e a fé se acende em seu
espírito quando se extingue na multidão.
Sejamos nós quais formos, repitamos sempre esta salutar
invocação: "Jesus, Filho de Davi, tende piedade de nós!".

SEGUNDA-FEIRA DA IX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Os apóstolos não compreenderam o que lhes predizia
Jesus, a respeito dos seus sofrimentos"
I – Os apóstolos, inspirados pela fé, sabiam que Jesus era
o Messias prometido ao mundo; mas não lhe aplicavam as
profecias concernentes a suas humilhações e imolação

102
sangrenta; prendiam-se de preferência às predições da glória
de seu segundo advento. A esperança que haviam concebido
de uma realeza terrestre não concordavam com as ignomínias
que lhes anunciava o Senhor. Este é ainda o erro dos judeus e
também a causa da incredulidade de muitos cristãos que de
bom modo partilham dos triunfos da Igreja, mas repelem o
mistério da cruz. Ardentes de zelo na prosperidade, desfalecem
à entrada da via dolorosa.
Compreendamos melhor as verdades do cristianismo, e
recordemo-nos que é passando pela morte que chegaremos à
verdadeira vida.
II — Os discípulos não podiam conceber o mistério das
humilhações do seu Mestre, porque geralmente não
compreendemos aquilo que não desejamos compreender. Nós
também, embora sejamos formados na escola de Jesus e
alimentados de sua doutrina, somos falhos de compreensão
nas ocasiões em que se nos mostra necessário tomar uma
parcela da cruz e tragar uma gota do cálice da amargura. A
nossa natureza, que não quer renunciar a si mesma, tem em
horror a mortificação e o sacrifício; e, por uma voluntária ilusão,
olha como práticas supérfluas os atos que contrariam os
gostos, os interesses ou as paixões.
O Espírito de Deus condena esta piedade comodista; e as
almas verdadeiramente cristãs não discutem as condições da
salvação; sabem que o que foi dito do Mestre aplica-se
igualmente aos discípulos e consentem em sofrer com ele, a
fim de, em sua companhia, chegarem à eterna bem-
aventurança.

TERÇA-FEIRA DA IX SEMANA DO TEMPO COMUM


"O Filho do homem será entregue aos tormentos e à morte"
I – Os livros sagrados haviam anunciado que o Filho de
Deus, feito filho do homem por sua encarnação na natureza
humana, se encarregaria das iniquidades do homem e as
expiaria por sua morte voluntária. Ora, esta lei da expiação visa
todos os homens, pois que todos devem sofrer e morrer. Os
sofrimentos de Jesus não nos dispensam de sofrer, bem como
sua morte não nos dispensa de morrer. Mas os seus
sofrimentos tornam os nossos meritórios e sua morte salva os
que morrem em união com a sua. Sem Jesus, os nossos
sofrimentos e a nossa morte seriam apenas frutos estéreis do

103
pecado; com Jesus, são atos expiatórios que saldam os
pecados.
Unamo-nos, pois, por uma viva fé, àquele que tão ge-
nerosamente se adianta para a morte, a fim de nos traçar a
estrada da salvação e de nos aplanar a senda da vida.
II — A sentença de morte a que Jesus se vai submeter, em
Jerusalém, foi também pronunciada contra nós; e havemos de
sofrê-la em chegando a nossa hora. A cada passo, a cada
instante da nossa vida, a cada hora, mais se aproxima o nosso
fim. Este pensamento estava sempre presente a nosso Senhor,
e ele o menciona frequentemente aos apóstolos. Não devemos
também nós jamais esquecê-lo; pois a perspectiva do termo da
nossa carreira contribui para nos mantermos mais moderados
e mais pacientes; ele nos previne contra as ilusões do mundo e
nos estimula a santamente empregarmos o nosso tempo e a
trabalharmos eficazmente para a eternidade.
Exercitemo-nos, com são Paulo, a morrer todos os dias;
isto é, a gradualmente nos libertar dos laços que nos prendem
à terra e dos obstáculos que impedem nossa união com Deus.

QUARTA-FEIRA DE CINZAS
"Fazei soar a trombeta em Sião, e ordenai um jejum
sagrado"
(Joel 2, 15)
I — À entrada dos quarenta dias consagrados à penitência,
a Igreja assume a voz severa dos profetas, para nos exortar à
renovação na graça de Deus. Felizes as almas que respondem
ao solene convite; pois aproxima-se a data em que a trombeta
do arcanjo anunciará o fim das provações terrestres. Ter-se-á,
então, esgotado o tempo da penitência, todo arrependimento
será inútil. Façamos agora e sem dilação o que, no último dia,
desejaríamos ter feito. "Agora é a ocasião propícia, diz o
apóstolo, dias de graça e de salvação". Roguemos a Deus que
em nós excite o arrependimento de nossas faltas e que nos
conceda um coração contrito e humilde.
II — A penitência não consiste unicamente em abstinências
e mortificações corporais; visa, sobretudo, o coração, a
vontade e a conduta. Fazer penitência é afastar nosso amor de
toda afeição viciosa, para amar puramente a Deus; é renunciar
a todas as satisfações passageiras, para obedecer filialmente à
vontade de Deus; é reformar as imperfeições de nossa

104
conduta, para viver santamente segundo a lei de Deus; em
suma, fazer penitência é trabalhar para a destruição do homem
velho, para auxiliar a ressurreição do homem novo. Mas o
espírito de penitência não poderia reanimar os que se julgam
justos e virtuosos, mas tão somente àqueles que têm
consciência de suas enfermidades espirituais e que, a título de
pecadores, imploram a misericórdia do Senhor. Sirvamo-nos
das palavras de Davi para pedir a Deus o espírito de penitência
e se não podemos empregar austeridades voluntárias para nos
castigarmos, ao menos aceitemos de bom grado as aflições,
trabalhos, acidentes e sacrifícios que a Providência nos impõe.

QUINTA-FEIRA DA IX SEMANA DO TEMPO COMUM


"Senhor! Não sou digno de que entreis em minha morada;
mas dizei uma só palavra e meu servo ficará curado!" (Mt 8, 8).
I — A Igreja inicia os ensinamentos da Quaresma, por uma
memorável lição de humildade, para torná-la mais instrutiva,
lembrando-nos o exemplo do centurião do Evangelho. "Esta
personagem tornou-se digna dos favores de Jesus Cristo,
porque se julgou indigna" — diz santo Agostinho. Realmente, a
verdadeira humildade não é a que, sob o pretexto de
indignidade, afasta-nos de Jesus. Mas, ao contrário, é aquela
que nos faz desejar e procurar o Salvador, pois as almas
verdadeiramente humildes recorrem à misericórdia divina que
encobre as misérias do homem; elas fazem sempre prevalecer
a confiança sobre o temor.
II — As palavras do centurião exprimem admirável e
perfeitamente o sentimento de confiança unido ao da
humildade. A Igreja coloca-as em nossa boca no momento da
santa comunhão. Essas palavras que pronunciamos serão
sempre o eco de nossos sentimentos? Estaremos então
convencidos da nossa indignidade, como se dava com o
centurião? Animar-nos-á idêntica confiança, ardente e
completa? Para aumentar e fortificar em nós esses
sentimentos, repitamos sempre a oração de santo Agostinho:
"Fazei, Senhor, que vos conheça e que me conheça.
Conhecer-vos é amar-vos, é contar com vossa misericórdia;
conhecer-me é reconhecer minhas misérias, é destruir meu
amor próprio. Nossa confiança em Deus é proporcionada à
desconfiança em nós mesmos e a medida da nossa humildade
neste mundo será a de nossa elevação na eternidade.

105
SEXTA-FEIRA DA IX SEMANA DO TEMPO COMUM
"Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito" (Mt 5,
48)
I — A perfeição exigida à alma cristã, pelo Evangelho, não
é apenas um conselho: é um preceito. A obra de Jesus Cristo é
de restaurar em nós a imagem de Deus desfigurada pelo
pecado, pois está escrito que ninguém entrará no reino dos
céus sem se ter purificado de suas manchas. Não há pretexto
que dispense do trabalho da santificação. O Santo dos santos,
que nos ordena sermos santos, concede-nos os meios de
realizar o que ordena, e opera em nós o que prescreve. Além
disso, a perfeição evangélica não é mais do que a irradiação do
amor, e este amor dá-se a nós. Amai e sereis perfeito.
II — São Dionísio, o Areopagita, ensina que Deus, na
plenitude de sua luz, nada mais deseja do que espalhar seus
esplendores nas almas e comunicar-se plenamente àquelas
que estão vazias de si mesmas; acrescenta, porém, que essas
comunicações divinas só se fazem, por graus, isto é, na
proporção à fidelidade com a qual são recebidas e aos frutos
de santidade que produzem. Eis por que a alma cristã,
mormente a alma consagrada a Deus, deve esforçar-se, por
ardente desejo e contínuo movimento de coração, a andar no
caminho da perfeição evangélica. A senda do justo, diz a
Escritura, é como uma luz brilhante que aumenta cada vez
mais, até atingir a claridade perfeita. Aspiremos constante-
mente a progredir no caminho da virtude, tendo em mente a
lição de são Bernardo: "Não progredir é retrogradar; não subir é
descer; desprezar as pequenas coisas é arriscar-se a grandes
faltas".

SÁBADO DA IX SEMANA DO TEMPO COMUM


"Quando os discípulos viram nosso Senhor caminhar sobre
as ondas, julgaram que era um fantasma" (Mc 6, 49)
I — Consideremos que os apóstolos, navegando sobre o
mar bravio e revolto pela tempestade, não perderam o ânimo;
esforçavam-se, apesar do furor das vagas, a conduzir seu
barco à praia. Sigamos-lhe o exemplo e não nos deixemos
abater nas horas de tentação; rememos com todas as nossas
forças para superarmos as provações mais duras; triunfemos
dos obstáculos pela oração e pela prática salutar da humildade
e da penitência. O Senhor nunca se afasta dos que sofrem, re-

106
zam e combatem. Vem sempre em auxílio de nossa coragem e
de nossa confiança; mas, quando parece abandonar-nos por
algum tempo a nós mesmos, visa simplesmente fazer-nos
experimentar a nossa fraqueza e manifestar, no auge da nossa
enfermidade, a força divina do seu braço.
II — A ilusão dos apóstolos à vista de Jesus, dá-nos
ocasião de notar os dois excessos opostos em que caem
comumente certos espíritos, quando lhes falta uma direção
esclarecida. Ora tomam Jesus por um fantasma, ora tomam
fantasmas por Jesus. Os primeiros atribuem à sua imaginação
as luzes do Espírito Santo e têm por quimeras os ditames da
sua consciência, de modo que se desviam leviana ou
receosamente das celestes inspirações. Outros caem em erro
não menos perigoso: tomam por santos pensamentos todas as
fantasias sugeridas pelo seu amor próprio; por revelações
celestes, as presunções do seu orgulho. Tais espécies de
tentações são muito comuns, pois os próprios apóstolos delas
foram vítimas na ausência de Jesus. Para evitá-las o único re-
médio é a obediência humilde e fiel.

I DOMINGO DA QUARESMA
Tentações de nosso Senhor no deserto (Mt 4, 1-11).
I — Consideremos o Filho do homem em contato com a
pérfida serpente. Fez-se homem, para combater face a face
com o adversário do homem. A provação do paraíso terrestre
recomeça no deserto. Jesus triunfa onde sucumbiu Adão e sua
vitória é tal que nos proporcionou todos os meios de triunfar.
Adão se deixou seduzir pelo espírito do orgulho; Jesus, por sua
humildade, é inacessível à sedução. Adão entrou em discussão
com o tentador; as objeções deste levaram-no à dúvida, à opo-
sição. Jesus não discute com o inimigo; não transige; limita-se
a opor-lhe estas simples palavras: "Foi dito... Está escrito...". A
exemplo do nosso divino Salvador, anularemos as astúcias do
inimigo, se permanecermos humildemente apegados à palavra
divina, da qual é intérprete a Igreja.
II — A vida do homem na terra é um ininterrupto combate,
assevera a Escritura. O homem, colocado entre o bem e o mal,
deve escolher, e todo o seu mérito, bem como seu destino
futuro, depende do uso que houver dado à sua liberdade.
Quando Deus permite a provação, nunca admite que seja
acima das nossas forças; proporciona sua graça a todas as

107
situações e a cada um dirige o que disse a são Paulo: "Minha
graça te basta". Se a graça nos faltar, é que não a pedimos ou
não a secundamos. Feliz aquele que saiu vitorioso da tentação!
Pois nos diz o apóstolo São Tiago que "após a luta e o triunfo,
receberá a coroa da vida".

SEGUNDA-FEIRA DA I SEMANA DA QUARESMA


"Irão uns para o suplício eterno, e os outros para a vida
eterna"
(Mt 25, 46).
I — Não há verdades mais claramente reveladas, mais
frequentemente repetidas do que as que se referem ao fim do
homem. A Igreja no-las lembra nestes dias de penitência, para
que, ao lembrar-nos da justiça de Deus, apliquemos
santamente as graças da vida presente. No momento da
separação definitiva que se deverá dar entre os bons e os
maus, cada um será recompensando conforme suas obras.
Uns cairão nas trevas, que terão preferido à luz, e "é lá —
acrescenta o Evangelho — que haverá prantos e ranger de
dentes; lá que o verme roedor não morre e o fogo consumidor
não se extingue". Os outros irão para a vida eterna, onde não
há mais lágrimas, nem trabalhos, nem aflições. Ante esses dois
extremos da nossa finalidade, cabe-nos escolher. "A vida e a
morte estão diante de vós — clamava Moisés ao seu povo —
aquilo que escolherdes vos será dado".
II — Pela sentença final, seremos colocados entre os
eleitos ou entre os perversos, segundo a diretriz que
houvermos tomado na terra. Se nos renunciarmos para nos
dedicarmos ao amor de Deus e do próximo, se unimos nossos
pesares à cruz de Jesus Cristo, se, a seu exemplo,
percorrermos a vereda reta da obediência, seremos coroados
com os bem-aventurados. Quanto aos que vivem para o mundo
ou para seu egoísmo, aos que transgridem a lei do amor e da
caridade, aos que se deixam prostrar pelo desalento e não se
levantam, estes serão excluídos dentre os filhos de Deus.
Procedamos de tal forma, sempre fiéis à graça, que nos seja
dado ouvir no último dia estas inebriantes palavras: "Vinde,
benditos de meu Pai, desfrutar a posse do reino que vos foi
preparado desde toda a eternidade!".

108
TERÇA-FEIRA DA I SEMANA DA QUARESMA
Jesus expulsa os vendilhões do templo (Mt 21, 12. 13).
I — Nosso Senhor, que em tantas circunstâncias manifesta
seu poder divino, sua glória e mais frequentemente sua
misericórdia e mansidão, por vezes, terrivelmente severo, deixa
explodir sua justa indignação. Habitualmente manso e pacífico,
e sempre paciente para com os maiores pecadores, é
inexorável para os hipócritas e mercenários. Seu zelo
desconhece o respeito humano; não teme afrontar os inimigos
de Deus. Só, contra muitos, com o olhar chamejante de fogo
celeste, expulsa da casa do Senhor os profanadores das
coisas santas. Exemplo sublime que deve fazer tremer aqueles
que buscam na religião apenas seu próprio interesse! Expul-
semos também de nossos corações os pensamentos profanos
que se poderiam imiscuir com a piedade e lancemos bem
distante as paixões ocultas ou visíveis, que ameaçam invadir
os domínios de Jesus Cristo.
II — O que Jesus fez ostensivamente com os vendedores e
compradores do templo, fará invariavelmente nas almas
cobiçosas e interesseiras. O templo de Jerusalém era a figura
do coração humano. São Paulo exclamava: "Sois vós o templo
do Deus vivo; vossos corações são o templo do Espírito
Santo". Se abandonarmos os tesouros do templo ao demônio,
nos assemelharemos a cavernas de ladrões. Se negociamos
com nosso Senhor, se damos com o fito de receber retribuição,
se nossa piedade não vai além de um comércio exigindo juros,
fazemos jus a que a cólera divina caia sobre nós já neste
mundo e destrua completamente todos os castelos da nossa
falsa devoção. Retiremos de nossa alma tudo que possa
desagradar a Deus, para que seja ela uma casa de oração, um
santuário puro e tranquilo, uma cidade de paz, uma morada
digna de nosso Senhor Jesus Cristo.

QUARTA-FEIRA DA I SEMANA DA QUARESMA


Os fariseus desejavam ver um milagre (Mt 12, 38).
I — A história do povo de Deus é a figura profética da
história dos cristãos. As instruções que dela retiramos, nos
devem prevenir, sobretudo, contra o espírito de incredulidade
daquele povo, para não corrermos o risco de merecermos
também idêntica reprovação. Há, no entanto, muitos cristãos
que exigem milagres para justificar a sua fé em Jesus Cristo.

109
Exigem-nos, sem querer ver que em volta deles tudo é milagre!
E, se não crêem, são verdadeiros milagres de incredulidade,
exclama santo Agostinho. Sempre a razão humana quer
ostentar-se acima da palavra de Deus, para interpretá-la a seu
bel prazer e apresentar-se como árbitro dos mistérios divinos,
confunde-se em seus próprios juízos, perde o sentido das
coisas sobrenaturais e cai pouco a pouco em incurável
cegueira.
II — Nosso Senhor responde aos judeus que conseguirão
apenas o milagre do profeta Jonas: milagre que era o símbolo
da sua ressurreição. Esta resposta adapta-se também aos
cristãos incrédulos; pois a ressurreição do Salvador é o milagre
permanente que há de assombrar por todos os séculos. Jesus
saiu do túmulo, pois que vive entre nós e manifesta sua
vitalidade por atos visíveis e palpáveis. Vive, pois exerce
atrativos tão poderosos sobre as almas e arrebanha-as em tão
grande número para o seu serviço! Vive, pois mantém a sua
Igreja inabalável em meio às vicissitudes e às ruínas do tempo.
Só este milagre, por si, já é bastante suficiente para confirmar
os ensinamentos católicos; não exige mais para justificar a fé e
a esperança dos fiéis.
Instruídos como somos pela unção do Espírito Santo e
pelos testemunhos da história, andemos à luz da palavra de
Deus e aguardemos com firmeza a realização das promessas
de Jesus.

QUINTA-FEIRA DA I SEMANA DA QUARESMA


Súplica da cananeia (Mt 15, 22 ss).
I — A mulher que, suplicante, segue os passos de Jesus,
pedindo com insistência a saúde para sua filha, sem se deixar
abater pelas recusas de que parece ser objeto, deve servir-nos
de modelo. Aspiramos como essa fervorosa cananeia obter
graças em favor de outros? Oremos como essa mulher: com
humildade, com confiança, com perseverança. Estas três
condições reunidas tornam a oração eficaz. Falta comumente
um destes três requisitos e é esta a razão pela qual não
obtemos sempre as graças almejadas. A oração feita em nome
de nosso Senhor Jesus Cristo é sempre atendida, se for
humilde, confiante e perseverante.
II — O exemplo da mulher cananeia ensina-nos ainda a
esperar pacientemente o momento determinado por Deus em

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nos enviar o seu auxílio. Clamamos por ele do abismo de
nossa miséria; no entanto, parece, por vezes, não nos escutar,
não nos querer ouvir. São estas provações que não devem nos
desanimar. Deus concede frequentemente no final da oração
aquilo que ao princípio parece recusar; essas delongas
experimentam nossa paciência e fazem-nos reconhecer o
nosso nada. Ora, o profundo conhecimento de nossa:
indignidade nos torna humildes e a humildade é uma
disposição que atrai todas as graças. Por isso a cananeia
encontra em suas próprias humilhações novos incentivos para
esperar. Humilhemo-nos, pois, por nossa vez, e
permaneçamos prostrados silenciosamente na presença de
Deus, até que ele ouça a voz dos nossos desejos.

SEXTA-FEIRA DA I SEMANA DA QUARESMA


A piscina de Betsaida (Jo 5)
I — A piscina a que se refere o Evangelho deste dia, figura
o sacramento da penitência. Assim como em uma se
encontrava a cura de todos os males corporais, na outra está o
remédio para todas as enfermidades espirituais. Ora, a
multidão e a variedade dos enfermos que iam se banhar nas
águas salutares de Betsaida, despertam em nós a ilimitada
confiança com que os maiores pecadores devem se aproximar
do sacramento que lhes restitui a saúde à alma. No entanto, o
paralítico, enfermo havia trinta e oito anos, carecendo de
qualquer auxílio, e incapaz de descer à piscina, representa-nos
o povo de Israel, paralisado em todos os seus membros e
aguardando a caridosa ajuda de alguém para, por seu turno,
poder participar das águas vivas da graça. Meditemos sobre o
mistério tão consolador desta passagem do Evangelho e
dediquemo-nos às almas que, por si mesmas, são incapazes
de se chegar a Deus.
II — As enfermidades da alma são incuráveis, apenas
quando a sua cura não é sinceramente desejada. Nosso
Senhor indaga do paralítico: "Queres te curar?" Para sarar é,
pois, necessária a vontade; e poucos sabem querer. É a
própria vontade que se acha enferma na maioria dos
pecadores. Crêem ter boa vontade, mas a sua crença não
passa de mera veleidade. Querem alcançar os fins sem
atender aos meios. Querem todos chegar ao céu, mas não
querem deixar a terra; temem as provações, as fadigas, as

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cruzes, os combates. Se nossa vontade esmorecer, imitemos o
paralítico, imploremos uma caridosa mão que nos estimule a
coragem, excite nossa energia, ative nossas resoluções e
venha em auxílio de nossos esforços.

SÁBADO DA I SEMANA DA QUARESMA


Transfiguração de nosso Senhor
I — A Igreja convida-nos hoje a meditar sobre a trans-
figuração de nosso Senhor no monte Tabor. É sua intenção
que consideremos primeiramente o fato em si mesmo e que
depois o apliquemos ao nosso próprio destino. Contemplemos,
pois, nosso Senhor em todo o seu esplendor! A luz divina que
ele encobrira até então, sob o véu de impenetrável humildade,
jorra através do seu corpo e o inunda inteiramente; seu rosto
resplandece como o sol, sua atitude é cheia de majestade.
Pedro não pôde conter um brado de santo entusiasmo:
"Senhor, como é bom aqui!" A cena do Tabor era, com efeito, a
antecipação da indizível felicidade reservada aos eleitos. Esta
felicidade será nossa. Se neste mundo não nos é dado
contemplar Cristo glorioso, podemos, no entanto, desfrutar as
delícias da sua presença misteriosa aos pés do sagrado altar!
Existem almas privilegiadas que, após longa fidelidade à
oração, são premiadas já neste mundo com a contemplação do
céu; fruem das primícias da divina beatitude e repetem ante o
tabernáculo esta exclamação ardente: "Senhor, como é bom
estar aqui!".
II -— Jesus é o modelo do homem em todos os estágios de
sua vida e pode-se dizer dele o que Pilatos proferiu, ao
apresentá-lo coroado de espinhos: "Eis aí o homem!" Assim, a
gloriosa transfiguração do homem-Deus permite-nos antever a
beleza inefável do cristão glorificado. Relata-nos São João,
que, no dia da manifestação de Jesus Cristo, seremos
semelhantes a ele, e, por assim dizer, um só espírito com ele.
Mas não nos esqueçamos do que nos ensina são Paulo, que
só chegaremos à glória, depois de atravessarmos, como Jesus,
as fases do sofrimento e que, para sermos com Jesus
coroados, precisamos com ele morrer. Um caminho somente
conduz ao céu: o caminho da cruz!

112
II DOMINGO DA QUARESMA
A Transfiguração (Mt 17)
I — A auréola deslumbrante em que Jesus aparece aos
três discípulos, na sua transfiguração no monte Tabor,
descobre-nos a sublime beleza do homem regenerado. Assim
como Moisés devia construir o tabernáculo no deserto,
conforme o modelo que lhe fora mostrado na montanha, deve o
cristão, tabernáculo vivo de Deus, transformar-se na imagem
de Jesus Cristo. É a tarefa máxima desta vida, tender, por
transfigurações sucessivas, à augusta semelhança que fará de
um mísero mortal um ser celestial. O mistério do Tabor não nos
revela somente a nossa glória futura, mas visa também a
santificação da vida atual, mostrando-nos os seus mara-
vilhosos efeitos. Eia, pois, ó minha alma! Olha para o alto,
contempla com a mais viva esperança, a bem-aventurança
imortal prometida à criatura fiel!
II — No dia da transfiguração, nosso Senhor afasta-se com
seus discípulos e põe-se a orar. Duplo ato, que tantos
ensinamentos contêm: é no retiro e na oração que Deus se
manifesta às almas e lhes concede os mais insignes favores.
"Conduzi-las-ei à solidão — diz-nos Deus pela boca de um dos
profetas — e falar-lhes-ei ao coração". É realmente, durante a
oração que a alma se purifica e se livra dos obstáculos
terrenos; eleva-se gradualmente nas asas da oração, até à
contemplação da luz divina, cujos resplendores irradiam sobre
sua face e alvejam a roupagem dos seus pensamentos.
"Enquanto eu meditava, abrasou-se-me em fogo a alma!" —
exclamava Davi. Felizes, pois, aqueles que, prevenidos pela
graça de Jesus, afastaram-se das vaidades do mundo! Felizes
os que fruem a secreta unção do seu amor! Felizes os que
aceitam as torturas do Calvário e tornam-se dignos de gozar
eternamente a glória do Tabor!

SEGUNDA-FEIRA DA II SEMANA DA QUARESMA


“Morrereis em vosso pecado" (Jo 8, 21)
I — A sentença tão cruel proferida por Jesus contra os
judeus infiéis aplica-se igualmente aos cristãos mundanos. Diz
o Senhor tanto a uns como a outros: "Sois deste mundo, ao
passo que eu não sou deste mundo". Ser deste mundo é viver
exclusivamente para a vida atual e preferi-la à futura; é ir no
encalço das coisas transitórias e negligenciar os bens imortais;

113
é obedecer ao espírito do mundo e resistir ao espírito de Deus.
Os que transitam por esse caminho desgarrado, seguem em
sentido oposto ao do seu destino; descem, retrocedem, em vez
de subir. Morrerão em seu pecado, afirma o Evangelho, porque
se morre como se viveu. Mas, acrescenta são Bernardo, sua
morte será lamentável e sua eternidade horrível.
II — De nada servirá separar-se corporalmente do mundo,
se se conserva no fundo do coração pensamentos mundanos e
o apego às coisas da terra; porque, diz a Escritura, o amor
deste mundo é uma inimizade ao respeito devido a Deus.
Pertencer a Deus é seguir sempre o exemplo do divino Mestre,
cumprir o que apraz a Deus. "Quanto a mim, diz Jesus Cristo,
faço constantemente o que é agradável ao Pai". Isto é
evidente. Quando se ama, faz-se todo o possível para não
desagradar o ente amado; e eis por que tanto afirmou santo
Agostinho: "Amai e fazei o que quiserdes". É preciso que todas
as nossas intenções e trabalhos, nossos pensamentos e
desejos, nossos passos, bem como nossos sofrimentos íntimos
ou externos, toda nossa vida, enfim, se desenrole à claridade
da luz divina; e que, perseverando nessa prática até ao
derradeiro instante da nossa vida, possamos, confiantes,
repetir na hora da nossa morte: "Esforcei-me sempre por fazer
aquilo que era agradável a meu Deus".

TERÇA-FEIRA DA II SEMANA DA QUARESMA


"Fazei tudo o que eles vos disserem; mas não imiteis as
suas ações" (Mt 23, 3).
I — Pela ordem imperiosa que nos dá Jesus Cristo, se
obedecermos aos nossos superiores, ainda que indignos do
seu posto, verificaremos quão alta é a importância que atribui à
obediência, à autoridade. Manda que respeitemos a autoridade
de que estão revestidos, sempre que a exercerem de acordo
com as suas leis. É de grande vantagem para nós, e preceito
formal, submetermo-nos a seu ministério, sem atentarmos nas
suas qualidades pessoais ou em seus defeitos. Diz-nos o
príncipe dos apóstolos: "Obedecei a vossos superiores, não so-
mente enquanto forem pacientes e indulgentes, mas também
quando forem desagradáveis e rudes". O grande valor da
obediência consiste no sacrifício da nossa própria vontade; faz-
nos imitar a vida de nosso Senhor, que se fez obediente até à
morte.

114
II — Jesus, consagrando a santa obediência por sua
doutrina e exemplo, no-la recomenda como a mais perfeita
prática da humildade. Ela exclui realmente todo pensamento de
presunção ou de saliência. “Tal a razão pela qual nosso Senhor
ensina que só há um Senhor a quem pertence o nome de Pai;
o que não deve ser interpretado no sentido rigoroso da palavra,
pois a religião consagra a paternidade natural e espiritual",
explica são João Crisóstomo. Mas o Altíssimo é o foco do qual
emana toda a paternidade, toda a autoridade; é o termo subli-
me ao qual vai ter toda obediência. A ele é que nos sub-
metemos quando nos subordinamos aos que governam em seu
nome; é contra ele que nos sublevamos quando lhes
recusamos obediência.
O divino Salvador, o Senhor universal, não se limitou a
servir de modelo aos que obedecem, deu também uma lição
aos mandatários; ajoelhou-se aos pés dos seus discípulos e
declarou-lhes que veio para servir e não para ser servido.

QUARTA-FEIRA DA II SEMANA DA QUARESMA


A mãe dos Zebedeus solicita os primeiros lugares para
seus filhos (Mt 20, 20 ss).
I — Quando Jesus discorria abertamente sobre as suas
humilhações, dois dos seus discípulos, por intermédio de sua
mãe, pedem distinções e honras. "Fazei com que em vosso
reino tomem assento os meus filhos, um à vossa esquerda e
outro à vossa destra". O Evangelho acrescenta que tal pedido
causou geral indignação entre os outros discípulos. A ambição
de uns provocou a inveja em outros; são duas paixões tão
inerentes à natureza humana, que delas não foram isentos os
próprios apóstolos, antes de receberem o Espírito Santo. A
graça divina produz essas transformações nas almas que lhe
são fiéis; pois não há criatura, por mais perfeita que seja, que,
auxiliada pelo Espírito Santo, não seja capaz de vencer suas
paixões e converter-se em grande santo.
II — A inveja, amargo fruto do amor próprio, é o vício
capital em oposição à caridade evangélica. Esta se dedica
totalmente ao próximo, enquanto a inveja concentra tudo em si.
A caridade é um sentimento expansivo, que se regozija com a
felicidade alheia; a inveja, pelo contrário, é uma paixão que
retrai o coração e o endurece. Pela caridade, permanecemos
em Deus, e Deus em nós; pela inveja, afastamo-nos de Deus e

115
isolamo-nos de nossos irmãos. Para triunfarmos das tentações
da inveja, devemos ser generosamente abnegados. A
humildade unida à oração assídua é que alcança essa vitória,
porque atrai o Espírito de Deus. Vencerão o mal pelo bem e
crescerão para o céu, aqueles que preferirem os últimos
lugares na terra.

QUINTA-FEIRA DA II SEMANA DA QUARESMA


O mau rico e o pobre Lázaro (Lc 16, 19 ss).
I — Nosso Senhor nos desvenda o futuro do rico e do
pobre. Rico, porém, não é somente aquele possuidor de bens
materiais; é o homem satisfeito consigo mesmo, que procura
nas coisas da terra seu consolo e sua glória. E o pobre,
segundo o Evangelho, é, ao contrário, o cristão desprendido de
tudo que é transitório; que, o olhar fixo na eternidade, resigna-
se às provações e aos sofrimentos.
A morte não tarda a por termo a ambas as situações. Que
se passa então? Jesus no-lo afirma em termos categóricos: O
rico, deixando a terra, precipita-se nos abismos e o pobre, ao
morrer, é transportado à pátria celeste.
Convenhamos, portanto, que bem melhor é sofrer algum
tempo com Lázaro e com ele recolher uma herança eterna, a
fruir com o rico dos gozos fugazes que finalizam na perdição.
V — Declara-nos a Escritura que Deus conhece os que lhe
pertencem. Eis o que explica a razão de se achar assinalado
no Evangelho o nome de Lázaro, ao passo que o do rico jaz
esquecido. "Foi paciente em suas aflições e humilde em sua
paciência", eis em que se resume toda a história de Lázaro.
Nenhuma ação de relevo lhe é atribuída... Do mesmo modo,
não se diz que o rico tenha cometido crimes; apenas preferiu a
terra ao céu e o amor próprio ao amor do próximo. Quanto
mais justos, resignados e generosos seriam os homens, se re-
fletissem seriamente sobre tão memoráveis exemplos! Não
precisamos fazer grandes coisas para ir para o céu; basta
praticar a humildade e a paciência, viver e morrer sobre a cruz:
eis a trilha da salvação!

SEXTA-FEIRA DA II SEMANA DA QUARESMA


Parábola dos vinhateiros homicidas (Lc 20,9 ss)
I — A revolta dos vinhateiros contra o pai de família mostra
a ingratidão dos judeus para com seu divino Benfeitor;

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ingratidão que avulta à medida que se multiplicam os
benefícios. Antes de condenarmos esse monstruoso
procedimento, recolhamo-nos num sério exame: os favores de
que eram cumulados os judeus não eram nem a sombra das
graças preciosíssimas, tão fartamente oferecidas aos cristãos.
Como nos utilizamos de tais graças? De que modo
respondemos à voz de Deus e aos secretos apelos da nossa
consciência? Quais os frutos da atenciosa solicitude de que
somos objeto pela divina Providência? Se não temos de nos
penitenciar de revoltas abertas contra Deus; se não temos
usurpado, utilizando em nosso favor, os dons da sua generosa
liberalidade, talvez nos reconheçamos réus de mais de uma
resistência às suas graças; talvez que a palavra de Deus, por
mais de uma vez, encontrasse, em nós, apenas a ingratidão e
o murmúrio!
Reflete, ó minha alma, que Deus abandona aqueles que
dele se afastam; e que transfere suas graças a outros mais
dignos!
II — Quando o Senhor ameaça os vinhateiros infiéis de
confiar a outros os cuidados de sua vinha, refere-se não
somente aos judeus, mas a cada cristão em particular; pois que
a vinha de cujo cultivo estamos encarregados, é primeiramente
a nossa alma; devemos fazê-la frutificar, para que se torne
fecunda em méritos, virtudes e boas obras. Maldita a alma
negligente, anatematiza a Escritura, pois que perderá a sua
coroa. Vigiemos zelosamente para não a deixar rastejar por ter-
ra, mas cuidemos de conservá-la sempre voltada para o céu,
orvalhada pelas águas da oração e livre de qualquer saliência
árida ou perigosa. Sejam nossas almas como ramos
verdejantes, alimentados pela seiva de nosso Senhor Jesus
Cristo!

SÁBADO DA II SEMANA DA QUARESMA


Parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-32).
I — Bem ditosa a criatura que, por sua própria ex-
periência, reconheceu quão profundamente horrível é a miséria
da alma que se afastou de seu Deus! Basta deitar os olhos a
estas páginas do Evangelho, para compreender que, longe de
Deus, só existem decepções, indigência e tristezas. Quando a
alma cristã, levada pelas miragens da independência, sacode o
jugo do mais carinhoso dos pais, não tarda a se prender à

117
cauda de um outro senhor, desapiedado e sem amor. Tal foi a
sorte do filho pródigo e será de todo aquele que buscar fora de
Deus a sua felicidade. Dissipa sua saúde e suas forças, perde
sua dignidade e acaba em tão completa nudez que, esgotado e
faminto, partilha da alimentação dos porcos. Ao considerarmos
as deploráveis consequências desta liberdade ilusória,
bendigamos os laços que nos prendem ao Salvador e
apertemo-los tanto, que seja impossível desfazê-los.
II — Admiremos a bondade desse pai, cujo coração se
emociona vivamente ante a presença do filho humilhado e
arrependido! As lágrimas desse filho desgarrado o perturbam;
nem lhe dá tempo de chegar a seus pés; adianta-se, lança-se
ao pescoço, cobre-o de beijos, esquece seus justos
ressentimentos, perdoa-lhe todas as culpas! Eis o
procedimento do incompreensível carinho de nosso Pai
celeste, para com todos os desgraçados que imploram sua
misericórdia. O arrependimento dá início à obra da
reconciliação, a confissão a continua e a reparação a finaliza.
Após tão tocante figura da misericórdia divina, não pode
haver alma, por culpada e fraca que se sinta, que receie não
receber o perdão, se, à imitação do filho pródigo, voltar a Deus
sinceramente contrito e humilhado.

III DOMINGO DA QUARESMA


Jesus expulsa um demônio mudo (Lc 11, 14).
I — As ciladas do espírito infernal visam principalmente
dificultar nossas relações com Deus e reduzir-nos à nossa
própria fraqueza, para mais facilmente nos subjugar. Seu fim é
interceptar todas as graças e, para isso obter, fere-nos de
mudez. Paralisando a língua, depois de fechar o coração, mata
o espírito de oração, impede a comunhão e desfaz aos poucos
os laços da caridade. A alma torna-se, então, triste, inquieta,
taciturna; procura a solidão sob pretexto de virtude mais
austera, toma sua obstinação por resignação e, em conclusão,
concentra-se cada vez mais em si mesma, esquece-se de se
dirigir a Deus e, menos ainda, de o compreender. Não fala com
ninguém; permanece surda e muda. Tal estado pode vir a ser
mortal se não for energicamente combatido pela oração e pelas
expansões da alma.
II – Quando Satanás não consegue conquistar logo do
primeiro golpe uma alma titubeante, experimenta dividi-la,

118
como a falsa mãe, cuja astúcia foi desvendada por Salomão.
Decide, como a maldosa mulher: "Que não pertença nem a
Deus nem a mim, mas que seja dividida!” Tal a sorte das almas
que, sem serem do mundo, não pertencem a Deus ou que,
apesar de se darem a Deus, não querem abandonar seu
egoísmo. Ora seguem a vontade de Deus, ora a sua própria,
procurando um meio termo conciliador entre seus deveres e
seus interesses, seu trabalho e seus gostos, as ordens da
graça e as exigências da natureza; e assim esperam chegar à
felicidade da outra vida, sem se privarem dos gozos da vida
presente. Nosso Senhor opõe a essas almas fracas uma frase
decisiva: "Quem não está comigo, está contra mim, e quem
comigo não junta, dissipa". Concluamos, pois, que não
pertence a Jesus Cristo quem não se lhe entrega totalmente; e
quem não for de Jesus Cristo se verá, no último dia, no campo
dos estranhos e dos inimigos.
Demo-nos inteira e exclusivamente a Deus; e já que somos
vivificados por Jesus Cristo, vivamos unicamente para ele.

SEGUNDA-FEIRA DA III SEMANA DA QUARESMA


"Médico, curai-vos a vós mesmo" (Lc 4, 23).
I — Consideremos a cegueira dos habitantes de Nazaré,
onde Jesus passara trinta anos da sua vida. Olham o divino
Salvador como um homem vulgar, isto é, como criatura falível e
enfermiça, e aplicam-lhe o provérbio: — "Médico, curai-vos a
vós mesmo". Fosse o Messias um homem como outro
qualquer, teria efetivamente necessidade de ser curado; pois
todos trazem, ao nascer, germes da enfermidade e de morte e
é por isto que homem algum pode justificar outro homem. Mas
o Filho de Deus se fez carne; e um novo homem veio cobrir de
santidade o homem depravado; veio, por sua pureza, curar o
homem manchado e criminoso. Ora, Nazaré, para rejeitar o
médico que lhe trazia o remédio, declara-o doente. É esse o
procedimento do espírito de orgulho. Para se furtar à luz que
lhe descobre as faltas, acusa os outros; pensa justificar suas
fraquezas, assinalando as mesmas fraquezas aos que lhas
advertem. A experiência nos mostra sobejamente que, por uma
caridosa admoestação, perdemos, não raro, uma amizade.
Se uma franqueza nos melindra, se uma observação nos
irrita, temamos que o Senhor nos abandone, como abandonou
os habitantes de Nazaré.

119
II — A humildade cristã obriga-nos a receber sem repulsa
as admoestações, venham de onde vierem. Mas, em
compensação, prescreve-nos a caridade usarmos de
indulgência e sobriedade ao repreendermos o próximo. Nas
enfermidades e nos sofrimentos corporais, concentramos em
nós toda a atenção; mas, quando se trata de enfermidades
espirituais, descuidamo-nos de bom grado das nossas
próprias, para nos preocuparmos com as fraquezas alheias.
Seja por inveja, por malícia ou por falso zelo, o fato é que
pomos muito mais empenho em pesquisar os defeitos do nosso
próximo, do que em nos corrigir; esmiuçamos até suas mais
recônditas intenções, procurando encontrar matéria para
censura ou condenação; e sempre tão clarividentes para com
os outros, não consentimos em ser esclarecidos. Aproveitemos
em nosso próprio interesse o talento que possuímos para
descobrir as fragilidades da natureza e as subtilezas do amor
próprio. Emendemo-nos das faltas que notamos nos outros.
Tem merecida aplicação a cada um de nós o provérbio do
Evangelho: Médico, cura-te a ti mesmo.

TERÇA-FEIRA DA III SEMANA DA QUARESMA


"Onde dois ou três se reunirem em meu nome, aí estarei no
meio deles" (Mt 18, 20).
I — A obra de Jesus Cristo é unir as almas entre si, por tal
forma que não haja mais do que uma unidade viva, cujo foco
central é Jesus. Este corpo tão admiravelmente constituído é a
Igreja, imensa família de irmãos, que participam do mesmo
espírito e da mesma vida. Mas, assim como os membros do
corpo humano não estão igualmente colocados uns em relação
aos outros, nem em relação ao coração que os vivifica; como
no corpo as relações simpáticas existentes entre os dois olhos,
as orelhas, entre os dedos da mão são evidentemente mais
íntimas do que as observadas entre os outros órgãos que não
produzem seus atos concordes, nem se correspondem
diretamente uns aos outros, o mesmo acontece em relação aos
diversos graus de união que podem existir entre as almas. Qual
um imenso círculo, a Igreja abrange uma infinidade de outros
círculos participantes do movimento geral; mas, da distância
que os aproxima ou afasta da circunferência central, depende a
força de seu impulso ou a energia da vida. Entre os membros
de uma comunidade deve reinar a mais perfeita união e essa

120
será mais estreita entre aqueles que haurirem nas fontes
vivificantes da caridade.
II — Consideremos as preciosas vantagens de que fruem
os membros da Igreja. São unidos a Jesus Cristo como os
galhos ao cepo da vinha e dessa divina raiz recebem, sem
cessar, a seiva da graça vivificante. Depois, unidos entre si,
como ramos da mesma árvore, participa cada um das orações,
dos sofrimentos, das boas obras, dos méritos de todos, e a
mais insignificante criança lucra dos tesouros espirituais dos
maiores santos. Quando, pois, os membros de uma corporação
religiosa estão unidos por laços de perfeita caridade, a vida ce-
lestial superabunda em maior plenitude, visto que Jesus Cristo,
o centro de toda graça, aí vive, e manifesta sua presença por
contínuas efusões de paz e de alegria celestial. Estreitemos
cada vez mais essa união santa, extirpando tudo que possa
perturbá-la ou diminuí-la. Assim realizaremos a última vontade
de Jesus e seu mais ardente anseio: "Que sejam todos um!".

QUARTA-FEIRA DA III SEMANA DA QUARESMA


"Este povo me louva com os lábios, mas seu coração está
distante" (Mt 15, 8).
I — A recriminação que os profetas dirigiam aos judeus, e
que Jesus repete aos fariseus, aplica-se, infelizmente, a muitos
cristãos. Devemos proceder de maneira a nunca merecê-la,
pois é um sintoma certo do enfraquecimento da piedade em
uma alma, o eximir-se das práticas interiores, limitando-se
exclusivamente às exteriores, sendo aquelas as principais. O
amor de Deus não passa então de palavras; não é mais uma
ação e uma verdade; a consciência alimenta-se apenas de
ilusões; não se acusa senão de escrúpulos e de bagatelas e
acresce ainda que essa acusação a persuade que é delicada,
pura e timorata. Mas, se a sonda mergulhasse até ao fundo da
alma, em vez de se limitar à superfície, talvez aí encontrasse
somente orgulho, inveja, moleza, egoísmo...
Ora, a devoção que não tende a extirpar o vício, a
aperfeiçoar a virtude, é uma devoção estéril e falsa, sem honra
para Deus e sem proveito para as almas.
II — A piedade cristã, diz santo Agostinho, é o trabalho, a
missão do coração. É o coração que precisa ser purificado e
organizado, de modo a harmonizar suas fibras com o Espírito
de Deus. Se temos o coração puro, tudo que dele parte,

121
pensamentos e palavras, sentimentos ou preces, ações e
sofrimentos, sobe aos céus, e prestamos a Deus um culto real.
Três coisas, diz São Bernardo, são necessárias para dar à
consciência as qualidades que a acrescenta o mesmo santo —
como é que os homens se ocupam com tanto esmero em
ornamentar a fachada vivificam: a reta intenção e integridade
de ação e a tranquilidade de consciência. "Ó, loucura terrível!
— acrescenta o mesmo santo — como é que os homens se
ocupam com tanto esmero em ornamentar a fachada do
edifício, e tão pouco se preocupam em adornar o santuário?"
"Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus".

QUINTA-FEIRA DA III SEMANA DA QUARESMA


Jesus cura a sogra de são Pedro (Lc 4,38. 39).
I — Relata-nos o Evangelho que essa mulher, apenas se
viu curada, levantou-se para servir ao Senhor. Dá-nos aí um
exemplo edificante. Quando Jesus se digna baixar até nós e
que um sopro de sua boca faz estremecer a nossa alma;
quando um abalo feliz nos eleva da terra e ilumina a nossa
consciência, não demoremos em volver para o Senhor os
esforços da nossa vontade. As graças descidas do céu devem
a ele reverter em ações de graças. Não há ato que mais atraia
os favores divinos do que a gratidão com que os recebemos.
Haverá algo de mais justo e digno do que consagrarmos nossa
vida inteira àquele que no-la deu?
II — Lemos que o Senhor, depois de curar a sogra de são
Pedro, impôs suas mãos sobre uma multidão de enfermos que
ali se apertava, porque curava toda espécie de enfermidades e
não recusava sua assistência a ninguém. Esta abundante
manifestação da caridade divina oferece-nos um espetáculo
cheio de ensinamentos.
Imploremos em nosso favor o socorro de nosso médico
celeste e peçamos com Davi: "Senhor, curai-me e ficarei são!"
Mas só isto não basta! Devemos também orar pelos outros e
implorar a cura para eles. De todos os perfumes que sobem ao
céu, a caridade é o mais penetrante e precioso.

SEXTA-FEIRA DA III SEMANA DA QUARESMA


A samaritana (Jo 4).
I — A samaritana, ao deixar sua casa em demanda do
poço de Jacó, desconhecia o feliz encontro que a aguardava.

122
Jesus, no entanto, o sabia, e esperava-a para lhe oferecer as
águas vivas da graça. Assim é que, no decorrer da vida, há
lugares, momentos, sítios, ocasiões em que a voz divina se faz
ouvir subitamente em nossa alma; ela nos desperta e ilumina; a
graça nos aparece sob a forma mais adequada à disposição de
nosso espírito; e, por um movimento imperceptível, inclina
nossa vontade. A samaritana não compreende imediatamente
o valor dos dons divinos; mas vai gradativamente saboreando-
os, à medida que sua atenção se fixa nos ensinamentos
sagrados; e sua fé cresce por tal forma que, animada da
chama evangélica, arrebanha para Jesus Cristo uma multidão
de discípulos.
Procuremos apreciar a importância de não deixar escapar
as ocasiões em que a graça se nos oferece; pois, se as
negligenciamos, fogem e talvez não voltem mais.
II — "Ah! se conhecesses o dom de Deus!" diz Jesus à
samaritana. Mostrara-lhe a fonte das águas vivas, mas não a
obriga a beber. A graça, gratuitamente oferecida, deve ser
espontaneamente aceita. Quantas almas, no entanto, a
rejeitam por desconhecer-lhe o valor e os salutares efeitos!
Como são lastimáveis! São desgraçadas e desconhecem o
segredo da consolação; sucumbem ao peso do fardo e rejeitam
a mão que se lhes estende em auxílio. Sedentas e famintas,
procuram por toda parte forças para lhes reparar os
desfalecimentos; mas, em sua cegueira, não percebem o
Salvador que é o único capaz de saciá-las, e não alçam seus
olhares para o monte onde lhes vem o socorro.
Somente após inumeráveis e amargas decepções, é que
vêm a compreender que todos os tesouros da graça se
encontram em Jesus Cristo e que fora dele não existe nem
paz, nem consolo, nem felicidade.

SÁBADO DA III SEMANA DA QUARESMA


"Aquele de vós que está sem pecado, seja o primeiro que
lhe atire a pedra" (Jo 8, 7).
I — Jesus Cristo, repreendendo os fariseus pela sua
dura severidade, proíbe aos pecadores condenar as faltas
alheias; admoestação que merecemos todas as vezes em que
julgamos nosso próximo. O espírito farisaico é inexorável; e o
espírito evangélico, pelo contrário, é misericordioso e
magnânimo; quer que usemos de severidade para conosco e

123
que envolvamos os defeitos do próximo com o manto da
caridade. "Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia", diz o Evangelho.
II — O Senhor, o único isento de pecado, absolve a
pecadora e diz-lhe: "Vai e não peques mais". Queremos ouvir
também uma palavra de perdão? Prostremo-nos confiantes aos
pés daquele que não quer a perdição de uma alma. Uma vez
entrados em graça, nada teremos a recear do passado, desde
que estejamos resolvidos a não mais pecar para o futuro. Esta
última recomendação tem uma alta significação: de que nos
esquecemos com demasiada frequência ao sairmos do
confessionário. A absolvição sacramental é uma graça
inapreciável, mas só produz efeito quando acrescida da firme
resolução de não se renovarem as faltas perdoadas.
Tenhamos sempre em mente que a melhor de todas as
penitências é a prática generosa da caridade.

IV DOMINGO DA QUARESMA
Multiplicação dos pães no deserto
I — Consideremos o prodígio da onipotência e da bondade
divinas, operadas por Jesus em favor dos milhares de criaturas
que tudo abandonaram para segui-lo no deserto. Essa
multidão, fascinada pelos encantos da palavra evangélica, quer
gozar de Jesus; não ambiciona outra satisfação e nem sequer
se lembra do alimento corporal. Mas o Senhor vela sobre os
que o seguem e lhe permanecem fiéis. Ele próprio se
encarrega de prover às necessidades para a vida do corpo,
quando cumprimos as condições para a vida da alma; e é
assim que se realiza em todas as circunstâncias a promessa
do Evangelho: "Procurai antes de tudo o reino de Deus e sua
justiça; o resto vos será dado por acréscimo".
Se pertencemos totalmente a Deus, podemos viver sem
cuidados, dia a dia, pedindo quotidianamente a graça para hoje
e abandonando ao Senhor o cuidado do dia seguinte.
II — O Evangelho acrescenta que os milhares de dis-
cípulos, que comeram do pão milagroso, sentiram-se ple-
namente satisfeitos; verdade que só pode ser compreendida
pelas almas que saboreiam profundamente os dons de Deus.
As coisas terrestres não satisfazem ao coração; quem delas se
alimenta conserva-se faminto; os apetites que satisfaz excitam
novos apetites; as paixões que alimenta acendem novas

124
paixões; e a saciedade, então, transforma-se em enfado. O
oposto se dá com a alma alimentada por Deus: vive de amor e
de luz; tudo possui quando bebe nas fontes vivificantes da gra-
ça. É rica, opulenta, plenamente farta, quando a unção de
Jesus Cristo estanca sua sede e satisfaz sua fome de amor.
Assim, enquanto para as criaturas terrenas não passa tudo de
vaidade e aflição de espírito, para as almas piedosas tudo é
paz e alegria no Espírito Santo.
Em vista do feliz quinhão que escolhemos, esperemos
confiantes a realização das promessas divinas e entoemos
com o salmista: "Um só dia na casa do Senhor, vale mais do
que séculos nos palácios dos pecadores!"

SEGUNDA-FEIRA DA IV SEMANA DA QUARESMA


"Jesus não se fiava neles porque a todos conhecia e não
necessitava testemunho de ninguém" (Jo 2, 24).
I — O Senhor nos conhece a todos; o Evangelho de hoje
no-lo confirma. Conhece cada um em particular; sabe o que há
em nós; lê em nossa consciência e perscruta até ao mais
recôndito do nosso coração; terrível verdade para os que não
possuem o coração reto, pois que, forçando o Senhor a
desconfiar deles, perdem sua graça. Verdade bem doce e
animadora, no entanto, para os homens de boa vontade, que
andam lealmente no caminho de Deus, pois têm a certeza de
que Deus os conhece e por isso vivem em segurança sob o
olhar da Providência. Davi não se limita a admirar o Senhor
cujos olhares estão constantemente voltados para os homens,
e exclama: "Por mim, terei sempre os meus olhos fixos no Se-
nhor!" Dificilmente cairá em negligência aquele que, sabendo
ser objeto da atenção divina, prende também em Deus,
constantemente, o seu olhar. Assemelha-se ao nauta que não
desvia seus olhos da bússola. E o ponto sublime que nos
dirige, nos atrai e nos protege, é Jesus Cristo, e seguir Jesus é
caminhar na luz.
II — "Ensinar-vos-ei aquilo que vos é útil e que o Senhor
exige de vós", diz o profeta Miqueias. “Ele quer que andeis em
sua presença com atenção respeitosa e vigilante". Estas
palavras tão santas resumem as regras da sabedoria. Assim se
expressara também o Senhor a Abraão, o patriarca de todos os
santos. "Andai em minha presença e sede perfeitos". É
evidente que Deus considera tudo o que existe sob os céus,

125
conforme se depreende da sagrada Escritura. Ele observa
nossos caminhos, conta nossos passos, sonda nossos
pensamentos, ilumina todos os atos da nossa vida. Seus olhos,
exclama Jó, são mais luminosos do que o sol; penetra as
coisas mais profundas e os abismos mais insondáveis.
"Porque, acrescenta São Paulo, Deus não está longe de nós;
nele vivemos, nele nos movemos e nele subsistimos. Ditoso
aquele que vive em união com Deus; não se perderá jamais,
porque o próprio Senhor o conduz; nunca se enfraquecerá,
porque Deus o fortifica; nunca morrerá, porque seu coração
está com Deus e Deus está em seu coração.

TERÇA-FEIRA DA IV SEMANA DA QUARESMA


"Quem deseja cumprir a vontade de Deus, reconhecerá
que a minha doutrina procede de Deus" (Jo 7, 17).
I — A condição básica da ciência cristã consiste na prática
dos mandamentos. É preciso primeiramente agir, depois vem a
compreensão e pode-se então ensinar. Quem ainda não
saboreou as doçuras da doutrina não poderá compreendê-las
depois de tê-la experimentado no fundo da alma, tornamo-nos
verdadeiramente sábios e não haverá força capaz de abalar
nossas convicções. Para podermos avaliar o quanto é suave e
leve o jugo do Senhor, é preciso que comecemos por carregá-
lo, assim como, para apreciar devidamente as delícias do
serviço de Deus, é necessário tê-las experimentado. A teoria,
sem a prática, projeta apenas uma luz tênue e fraca. Também
os que se dão a Deus com parcimônia, os que do Evangelho
só retiram aquilo que não contraria a sua natureza, os que
procuram aliar as satisfações terrenas ao consolo celestial,
jamais possuirão a ciência dos santos.
II — O espírito do século não pode absolutamente
compreender as doçuras da piedade. Esse conhecimento não
é adquirido pelo trabalho do espírito; tem de passar pelas
chamas do coração para se incandescer. Se aspiramos a ser
iniciados na ciência dos santos, precisamos, antes de mais
nada, purificar o nosso coração. A verdade escapa às
investigações dos sábios do século e revela-se aos pequenos e
humildes, assim como os raios do sol fecundam as florzinhas
do vale ao passo que deixam áridos os cumes das montanhas.
Queremos que a luz jorre do braseiro da nossa fé? Sejamos
dóceis e obedientes ao que nos ordena o Senhor. Este é o

126
conselho que nos dá a santíssima Virgem: "Fazei tudo o que
ele vos disser". A obediência à palavra de nosso Senhor Jesus
Cristo desenvolverá em nós o sentimento da verdade e o gosto
do bem; iluminará nosso espírito, aperfeiçoando nosso
coração.
Imploremos, estudemos, cultivemos a ciência dos santos;
para esse fim pratiquemos santamente todos os exercícios da
vida religiosa.

QUARTA-FEIRA DA IV SEMANA DA QUARESMA


Cura do cego de nascença (Jo 9).
I — Se o Evangelho nos relata com tanta minuciosidade a
cura do cego de nascença, enquanto a outros milagres apenas
por alto se refere, é porque este prodígio encerra misteriosas
instruções. Os doutores interpretam que este cego representa
todo o gênero humano. Sabemos que este é o nosso filho e
que nasceu cego". Este testemunho se aplica a todos os
homens. A culpa original nos faz nascer em completa
escuridão em relação à luz divina, de maneira que o mundo
sobrenatural é para nós um mundo invisível, do qual não
podemos fazer ideia. São João explica que a fé substitui o
sentido que perdemos e que a ela nos devemos apegar como a
uma lâmpada que brilha nas trevas, até que os olhos no nosso
coração se abram à mão de Jesus Cristo.
Animados por esta esperança, repitamos frequentemente a
invocação do cego: "Senhor, fazei que eu veja!" E com são
Pedro supliquemos: "Dignai-vos, Senhor, aumentar a nossa
fé!".
II — O cego de nascença não figura somente a hu-
manidade; representa também o estado de cada ente em
particular; pois há diversas espécies de cegueira espiritual. Há
os que conservam os olhos cerrados por receio de ver bem;
preferem mirar-se nas trevas ilusórias da escuridão a conhecer
claro sob os raios da verdade; a luz os incomoda e importuna.
Outros há que desprezam a verdade quando não lhes é
apresentada por lábios eloquentes; repelem os instrumentos
humildes, exigem luzeiros brilhantes, ofuscantes. Esquecem-se
estes de que o Senhor por vezes se compraz em se utilizar de
um pouco de lama para curar cegos; e não compreendem que
a luz é a auréola da humildade.

127
Se somos, portanto, luzeiros em relação aos que ins-
truímos, tenhamos em mente de que não passamos de um
pouco de barro entre as mãos de Deus. E, se somos cegos,
consideremos como luzernas os que nos ensinam, muito
embora neles não avistemos mais do que barro. A humildade
atrai do alto os raios luminosos, assim como o espelho côncavo
recebe e reflete os raios do sol.

QUINTA-FEIRA DA IV SEMANA DA QUARESMA


Jesus ressuscita o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11-16).
I — O pensamento da morte apresenta-se em toda idade,
por toda parte e por uma infinidade de acidentes. Pensamento
salutar, que não inspira, porém, mais do que passageira
emoção, seja por nos parecer importuno ou por julgarmos a
morte em futuro ainda longínquo. O fato é que os mortais são
na maior parte surpreendidos quando menos nela pensam.
Aconselha-nos, pois, a prudência a ela nos apresentarmos com
antecipada providência. "Estai sempre prontos, diz o
Evangelho, pois não sabeis o dia nem a hora". A presente vida
é um peregrinar constante para a morte e esta é a passagem
condutora para a vida. Mas, do berço ao túmulo, é o percurso
atulhado de perigos. Eis a primeira lição que tiramos do enterro
do filho da viúva de Naim. Deus é o Senhor absoluto da vida e
da morte e por ele devemos viver e morrer.
II — A ressurreição do filho da viúva de Naim mostra-nos,
juntamente, o poder das palavras de nosso Senhor Jesus
Cristo, que operou o milagre, e o das lágrimas da mulher que o
provocou. A viúva de Naim mostrava-se submissa às
determinações da Providência, gemia sem se revoltar; chorava,
sim, mas sem se desesperar e corajosamente acompanhava o
esquife do filho à última morada. As lágrimas santificadas pela
resignação e pela fortaleza comovem o Coração divino e
conseguem maravilhas; ao passo que as que são vertidas por
uma secreta oposição à vontade de Deus ou por um
sentimento egoísta de amor próprio ofendido, são inúteis e
estéreis.
Não separemos nosso luto das esperanças futuras e não
desesperemos nunca pelos mortos pelos quais rezamos;
porque a caridade do homem, unida ao poder de Deus,
desconhece o impossível.

128
SEXTA-FEIRA DA IV SEMANA DA QUARESMA
Ressurreição de Lázaro (Jo 11).
I — Podemos considerar, no milagre da ressurreição de
Lázaro, os misteriosos destinos do povo de Israel. Lázaro é
atingido pela enfermidade enquanto está longe de Jesus; morre
e há quatro dias que se corrompe no sepulcro. Mas o Senhor o
amava. Diz aos discípulos: "Voltemos à Judeia!" Chora sobre o
amigo, assim como chorara outrora José sobre seus irmãos.
Depois, em profundo silêncio, cheio de ansiedade, encaminha-
se para onde jazia o defunto: "Lázaro, sai!" Realizaram-se
então as palavras do profeta: "Bradou Sião em seu luto: O
Senhor me abandonou, o Senhor me esqueceu! E enquanto
isto, preparava-lhe o Senhor maravilhas de graças". E Isaías
acrescenta: "Todo Israel se há de salvar!" Eis a ação
estupenda da misericórdia divina que excitou a exclamação do
apóstolo: "Ó, profundo abismo da sabedoria de Deus! Como
são impenetráveis os teus caminhos e imperscrutáveis os teus
juízos!".
II — As irmãs de Lázaro, Marta e Maria, representam as
filhas de Sião que, por sua fé, sua ardente caridade e sua
dolorosa compaixão, obtêm a ressurreição de seu irmão. Unem
suas orações e suas lágrimas às de Jesus; repetem sua última
súplica: "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem!", e,
confiantes nas promessas de nosso Senhor Jesus Cristo,
antecipam suas ações de graças ao Senhor, pronunciando com
o divino Mestre, antes mesmo de sair Lázaro do sepulcro: "Meu
Pai, agradeço-vos por me haverdes atendido!".
Compenetremo-nos dos sentimentos de Marta e de Maria,
e perseveremos em uma santa esperança; testemunhemos
nosso amor a Jesus por nossa caridade para com os mortos de
Israel, na firme certeza do cumprimento das promessas
divinas.

SÁBADO DA IV SEMANA DA QUARESMA


"Ninguém pôs a mão em Jesus, porque ainda não era
chegada a sua hora (Jo 8, 20).
I — Os filhos de Deus estão sujeitos à especial proteção da
Providência e nada lhes acontece sem seu consentimento. Se
servirmos fielmente ao Senhor, no espírito de obediência,
permaneceremos em santa segurança. Se nos vierem
provações, se nos surgirem obstáculos imprevistos, o próprio

129
Senhor nos assistirá e fará redundar em benefício nosso as
maiores adversidades. A cada hora, a cada momento,
deparam-se a nós as graças necessárias a qualquer situação.
Muito raramente as preocupações sobre o futuro, as previsões
humanas, atingem o almejado objetivo. Provam, sobretudo,
uma certa falta de fé e frequentemente estorvam os desígnios
de Deus em vez de os auxiliar. Nossa atividade própria segue
um movimento que nem sempre é o da Providência: "Confiai
em Deus e deixai-o agir".
II — Se nosso Senhor houvesse escutado os conselhos da
prudência humana, não se teria exposto no templo à má
vontade de seus inimigos; mas sua linha de conduta, traçada
pela Sabedoria divina, não se preocupava absolutamente com
os vãos projetos humanos. Sabia que seus contendores não
teriam sobre ele nenhum poder, enquanto Deus não lhes
permitisse para dar cumprimento aos seus eternos desígnios.
Para os discípulos, bem como para o Mestre, há horas de
provações; e seria covardia perigosa entretê-los com ilusões.
Aqueles que pretendem satisfazer a Deus e ao mundo, ao
mesmo tempo, caem comumente no desagrado de ambos.
Desejando salvaguardar seus interesses, prejudicam-nos e,
fugindo à cruz, caem nas emboscadas que os perdem.
Disse Jesus: "Não receeis os que podem matar o corpo,
mas sim aquele que tem o poder de precipitar no inferno o
corpo e a alma".

DOMINGO DA PAIXÃO4
"Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus" (Jo 8, 47).
I — A espontânea simpatia com que é recebida a palavra
de Deus, pela alma reta, é um dos sinais reconhecíveis dos
filhos de Deus. Ora, a palavra divina recomenda a caridade;
retira-nos das vaidades; aconselha a paciência, a brandura, a
renúncia ao amor profano, eleva nossos desejos e esperanças
ao céu. Se estas prescrições evangélicas são realmente a
diretriz da nossa conduta, podemos supor-nos verdadeiros
filhos de Deus. Com efeito, não basta ouvir a palavra como
objeto de fé especulativa; deve a palavra admitida em nosso
coração exteriorizar-se em prática e em obras. Estão todas as

4
Hoje, equivale ao V Domingo da Quaresma.

130
árvores expostas à luz solar, e, no entanto, só têm vida as que
florescem e frutificam; as outras desfalecem e secam.
II — Não há quem não ame a verdade, afirma santo
Agostinho. É ela tão cheia de encantos que os mesmos que
laboram em erro querem que ali exista a verdade. Mas esta
verdade tão gentilmente aceita quando nos lisonjeia ou nos
consola, é por vezes repelida quando nos esclarece, nos
censura ou nos humilha. Por isto é que o jovem a quem se
refere o Evangelho, já decidido a seguir alegremente o Mestre,
enquanto só encarara as prerrogativas do apostolado, recua
bruscamente e afasta-se quando a verdade lhe impõe
sacrifícios.
Seremos verdadeiros filhos de Deus se, recebida sua
palavra em nosso coração, a fizermos frutificar por uma vida
cristã e fervorosa.

SEGUNDA-FEIRA DA SEMANA DA PAIXÃO


"Rios de água viva jorrarão do coração daquele que crê em
mim"
(Jo 7, 38).
I — Crer em Jesus Cristo não é apenas uma simples
crença, um ato de submissão do nosso espírito; é um profundo
consentimento do nosso coração, é a adesão íntima de nossa
vontade e de todas as nossas faculdades àquele que é objeto
de nossa fé; de maneira que, pela fé viva, comunicamos com
Deus a fim de nele haurirmos a vida. Crer de maneira cristã é,
portanto, beber a vida divina, é orar em espírito, é comungar, é
gozar a unção da verdade; é amar o amor; é viver de Deus, em
Deus e para Deus. Os verdadeiros discípulos são os homens
da intimidade de Jesus; com ele andam; agem de confor-
midade com o seu espírito; nutrem-se de sua substância;
estancam a sua sede no transbordamento do seu Coração;
movem-se unicamente nele e por ele; dele participam de tal
modo que podem exclamar: "Já não sou eu que vivo, é Jesus
quem vive em mim". Ora, os que recebem efusão desta fonte
de água viva, transformam-se em canais condutores do espírito
de Deus.
II — Diz o Evangelho que das profundezas da alma crente
jorram rios de água viva; não um rio, mas rios; rios de paz, de
luz, de sabedoria, rios de amor e de caridade. E esses rios
inesgotáveis não partem do coração para se perder;

131
comunicam-se a outros corações; descem de degrau em
degrau como uma exuberante cascata que, tendo sua fonte no
céu, se despenha em torrentes de graças sobre a terra,
tornando-a fértil e bela.
Se bebemos, pois, a vida divina, se nos alimentamos do
pão do amor, transformamo-nos em mediadoras de Jesus
Cristo, em membros do seu corpo, em cooperadores de suas
obras, em instrumentos de sua vontade, em dispensadores de
seu espírito e de suas graças. Assiste-nos, pois, o dever de,
como os anjos, espalhar no âmbito em que vivemos a benção,
a edificação e o bom odor de Jesus Cristo.

TERÇA-FEIRA DA SEMANA DA PAIXÃO


"Disseram-lhe seus parentes: Já que fazes tão grandes coi-
sas, faze-te conhecer do mundo" (Jo 7, 4)
I — Este conselho dos parentes de nosso Senhor Jesus
Cristo é a expressão muda ou declarada das afeições naturais
que, sempre preocupadas com a vida presente, têm em tanto
horror as humilhações e os sofrimentos quanto são ávidas de
louvores e de glória humana! Parece-lhes que os mais gratuitos
dons sejam destinados apenas para conquistarmos a estima do
mundo; e, se escutássemos a voz da carne, nosso talento,
nossas qualidades, nossas virtudes e nossas ações mais
santas seriam sacrificadas à vaidade e ao amor próprio. De
todas as tentações que nos assaltam, é esta a mais sutil e
perigosa, pois que nos apresenta Deus como escabelo da
ambição. Jesus, com suas palavras e exemplos, inspira-nos
outras vistas; ensina-nos a render glória a Deus e quer que em
todos os nossos trabalhos, modestos ou brilhantes, somente a
Deus seja atribuído todo sucesso e louvor.
II — Enquanto os parentes de Jesus lhe aconselham
apresentar-se em público para fazer brilhar sua doutrina e suas
obras maravilhosas, Jesus foge aos homens e permanece
oculto. Sublime lição, que nos faz compreender as vantagens
da vida obscura. Realmente, o afastamento do mundo, os
exercícios calmos e regulares do retiro, a aplicação séria à
oração, a constante prática do amor e da caridade, são ao
mesmo tempo as condições fecundantes dos trabalhos da vida
pública e os meios mais eficazes para atrair do alto as graças
de salvação para o próximo. O nosso zelo precisa, por assim
dizer, amadurecer antes de se exteriorizar. Antecipemos, pois,

132
as obras exteriores, pelos atos humildes e ocultos da vida
interior; preparemo-nos para os grandes empreendimentos
pela fidelidade nas pequenas coisas. Como Jesus,
glorifiquemos Deus, pelos nossos sacrifícios quotidianos e de
todas as horas do dia.

QUARTA-FEIRA DA SEMANA DA PAIXÃO


"Se não credes em minhas palavras, crede em minhas
obras"
(Jo 10, 38).
VI — Tanto as palavras de Jesus Cristo quanto suas
obras atestam sua divindade. Conhecem-se os homens pelos
seus atos; pois às palavras se poderá dar interpretação
errônea, mas aos atos não. Certamente que a hipocrisia
poderá imitar até certo ponto os atos exteriores da religião,
assim como os mágicos egípcios imitaram os milagres de
Moisés. Um ponto existe, no entanto, que jamais poderá ser
falseado: a caridade evangélica. Esta virtude, por assim dizer,
caracteriza todas as obras de nosso Senhor Jesus Cristo; por
este sinal reconhecemos em Jesus o Deus de amor e, por ele,
Jesus reconhecerá seus discípulos.
II — O ministério da edificação que devemos exercer no
serviço de Deus requer mais ações do que palavras. A alma
consagrada a Deus muito recebe; está, pois, na obrigação de
dar muito, e muito lhe será pedido.
Se a Providência nos concede a graça de em tão larga
escala participarmos de seus dons admiráveis, cumpre-nos
igualmente, de nosso lado, formar uma escola de bons
exemplos. Nossa prédica ao mundo será, mormente, pela
caridade. Nossas ações caridosas é que irão confirmar e
justificar o nosso título de filhos de Deus.

QUINTA-FEIRA DA SEMANA DA PAIXÃO


"Muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou"
(Lc 7, 47).
I — Consideremos o triunfo da graça no coração de uma
pecadora! Madalena muito havia amado, mas amara a criatura
em lugar do Criador; eis por que muito pecara, pois a adoração
à criatura é o pecado da idolatria. Arrancando o seu coração às
coisas transitórias para restituí-lo ao seu Deus, reparou ela o
amor profano por um amor sagrado, e foi esta a sua perfeita

133
penitência. Afirma a sagrada Escritura que o verdadeiro amor
cobre a multidão dos pecados. Assim Madalena, doando seu
coração a Jesus, não cessou de amar, mudou apenas o
objetivo do seu amor e, em lugar de um sentimento falso e
passageiro, que traz sempre decepções, dores e abor-
recimentos, fixou-se no eterno amor, fonte de dignidade, paz e
santidade.
Meu Deus! exclama um ilustre penitente, o coração
humano foi feito para vós, e suas agitações não hão de cessar
enquanto não se fixar em vós, seu centro e seu repouso!
II — A alma cristã, que menos pecou do que Madalena, não
se julgue menos devedora à misericórdia divina; porque, se o
Senhor muito perdoou a quem muito pecou, preservou
igualmente a quem poucas vezes o ofendeu.
A uma deu o remédio; à outra, a prevenção. Susteve quem
estava em pé e levantou o que caíra. Conclui-se que tanto
deverão ser agradecidas a Deus a alma inocente quanto a
pecadora. Hajam elas sucumbido à tentação ou saído
vitoriosas, a gratidão, bem como a penitência, impõe o dever
de amar a Jesus Cristo, antes e acima de tudo.
Jesus Cristo é nossa justificação; é o amor e a vida. E a
quem havíamos de amar, se não amamos Jesus?

SEXTA-FEIRA DA SEMANA DA PAIXÃO


Compaixão da santíssima Virgem
I— O amor nos une por tal forma ao ente amado que
identifica os sentimentos, as emoções, os pensamentos.
Quanto mais se ama, mais fortemente se ressentem os
sofrimentos das pessoas queridas; e é o grau do amor que dá
a medida da compaixão. E observemos ainda que a dor de que
participamos é tão intensa quanto a nossa própria. Podemos
então avaliar a intensidade do sofrimento de Maria santíssima.
A sua compaixão é a paixão inteira de Jesus reproduzida em
sua alma, assim como um espelho que absorve e reflete os
ardores do sol. Maria associara-se a todos os atos da vida
oculta e da vida pública de Jesus. Partilhou igualmente suas
humilhações, sua agonia, seus suplícios; e seu coração
transpassado conservou as impressões dos cravos, do martelo,
da lança e todas as chagas sangrentas do Calvário. Perma-
neceu de pé, junto à cruz, porque é a atitude do sofrimento
voluntário, aceito em união com a vontade de Deus.

134
II — Maria conservava-se forte e calma em sua dor. O
sentimento que a domina não é uma piedade natural; pois que
esta é o horror instintivo do sofrimento que se expande em
lamentos e queixas. A compaixão de Maria é sobrenatural e
resignada; procede de um sentimento cheio de força que aceita
o sofrimento e dele compartilha. Digna filha de Abraão, une sua
obediência à da augusta Vítima e oferece a imolação do seu
Filho, do qual fora Isaac apenas a figura. O suplício de sua
compaixão é uma participação ao sacrifício, uma cooperação
voluntária à grande obra da redenção.
Em torno à Virgem, no Calvário, agrupam-se as filhas de
Sião, misturando suas lágrimas ao pranto de Maria e ao
sangue de Jesus; recolhem, como o discípulo amado, as
últimas palavras que descem da cruz: "Ecce Mater tua!".

SÁBADO DA SEMANA DA PAIXÃO


“Quem ama sua vida, a perderá; e quem aborrece sua vida
neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna" (Jo 12, 25).
I — Possuímos neste mundo duas vidas distintas. Uma é a
natureza viciada pelo pecado que tem sua raiz no egoísmo da
vontade própria; é a vida da carne e do sangue a que
denominamos: o velho homem. A segunda, implantou-a em
nós o batismo; vida sobrenatural, da qual Jesus é o princípio e
o germe; é o homem novo que se desenvolve nas condições
dos seus sublimes destinos. Estas duas vidas seguem direções
opostas: uma prende o seu amor às coisas da terra; a outra
dirige suas esperanças para o céu.
A nossa salvação ou a nossa perdição depende da escolha
que houvermos feito entre aquilo que passa e o que é eterno;
viveremos onde houvermos colocado o nosso amor.
II — Perderá fatalmente sua alma aquele que ama sua vida
tal qual se apresenta neste mundo, com suas paixões, seus
instintos, suas concupiscências. O Evangelho nos ensina a
odiá-la para nos salvarmos; quer dizer que é preciso combatê-
la, a fim de submetermos a carne ao espírito e o amor egoísta
ao amor divino. A santidade do homem novo só pode
desenvolver-se sobre as ruínas do antigo.
Peçamos a Deus que nos conceda a inteligência deste ódio
salutar, para que, cheios de ânimo, imolemos o que deve
morrer e desde já amemos o que teremos de amar
eternamente.

135
DOMINGO DE RAMOS
"Dizei à filha de Sião: Eis que o vosso rei vem a vós cheio
de doçura" (Mt 21, 5)
I — Contemplemos o augusto Rei em sua entrada solene
em Jerusalém. É o Messias, o rei de Israel, o Deus do amor, o
Salvador do mundo, o Cordeiro destinado ao sacrifício, o
celestial esposo da filha de Sião. Ele é grande por si mesmo e
não necessita, como os príncipes da terra, servir-se das
pompas mundanas para ostentar sua grandeza aos olhos do
mundo. Domina os povos unicamente por sua doçura, e por
sua humildade encantadora triunfa de todos os corações. Cena
imensamente profética e consoladora! Antes de cair no abismo,
Jerusalém projeta um último clarão; faz-nos entrever, como
rápido luzir do relâmpago, a imagem do seu futuro destino,
quando, então, seus filhos já voltados para Deus, animados por
santo ardor, acorrerão a Jesus Cristo, a proclamar
unanimemente o Rei de Israel que vem em nome do Senhor.
Busquem nossas almas com presteza a nosso Senhor e
peçamos a breve vinda do seu reino em nós e fora de nós:
Adveniat regnum tuum!
II — O mesmo povo que hoje exalta Jesus, dentro em
poucos dias o há de renegar e a esse entusiasmo fremente
sucederá frieza glacial e ódio sem limites. Tal a inconstância do
coração humano. Sondemos as nossas disposições;
interroguemos nossas recordações. Fomos sempre animados
dos mesmos sentimentos para com Jesus? Não cedemos, e
com bastante frequência, a influências que subitamente
derrubam todas as nossas promessas de fidelidade? Quantas
almas, tão generosas enquanto contemplam o Senhor em sua
glória, afastam-se precipitadamente à aproximação da cruz!
Quantas parecem resolutas a segui-lo até ao sacrifício e
acham-se entre os que o crucificam!
Sobranceira a essas tristes realidades aparece a filha de
Sião; é ela o protótipo da fidelidade. Por isso é a ela que o
profeta anuncia o reino glorioso de Jesus Cristo; pois, assim
como toma parte nas humilhações do Calvário, há também de
participar dos triunfos do céu!

136
SEGUNDA-FEIRA DA SEMANA SANTA
Amarguras de Jesus no jardim das Oliveiras
I — Nosso divino Salvador, revestindo-se, nos extremos do
seu amor por nós, da nossa natureza mortal, quis em tudo se
assemelhar ao homem pecador. Eis por que às aproximações
do supremo sacrifício vê-se presa de temores e de terríveis
angústias. Contemplemos esta vítima tão dócil, que
voluntariamente se entrega aos algozes que a vão torturar!
Pelo terror que sente, reconhecem-se os desfalecimentos da
natureza humana. Jesus estremece e encara o caminho que
vai percorrer: o trajeto do horto ao Calvário será uma
sequência de ultrajes, insultos e torturas inauditas; os
preparativos para a imolação igualam em crueldade e em
amargor a própria imolação.
Compenetremo-nos dos sentimentos de Jesus e com ele
exclamemos: "Pai! Que seja feita a vossa vontade e não a
minha!".
II – O Cordeiro de Deus prepara-se para o sacrifício na
solidão e no recolhimento e, para que este exemplo nos fique
sempre presente, repete por várias vezes estas duas palavras:
"Vigiai e orai!" A solicitude que Jesus esbanja a seus apóstolos,
esquecendo suas próprias dores, mostra-nos a predominância
de sua caridade. Benditas as almas que participam juntamente
do cálice e da abnegação do Senhor! As cenas misteriosas do
Getsêmani nos ensinam como devemos nos imolar por Deus e
pelos nossos irmãos; ao cristão moribundo legam também o
exemplo da sublime resignação.

TERÇA-FEIRA DA SEMANA SANTA


Desânimo dos discípulos
I — Devemos considerar por entre as inumeráveis e
incisivas dores que amarguraram o Coração do divino
Salvador, aquelas produzidas pela covardia dos discípulos e
pelo desânimo dos apóstolos! Na ocasião do perigo, todos
abandonam Jesus; todos se escandalizam, e esquecem suas
promessas de fidelidade! Dor tão pungente que já os profetas a
haviam predito: "O Pastor será ferido e o rebanho será
dispersado" — diz um deles. "Olhei em volta e não achei quem
me consolasse". Amigos, parentes, discípulos, todos os seus
íntimos deixaram-no só, entregue às suas humilhações e às
suas tristezas. . .

137
Humilhemo-nos aos pés de Jesus, por havermos tantas
vezes faltado em confiança nas provações da vida cristã e
reparemos nossos desfalecimentos no serviço de Deus,
lembrando-nos de que as filhas de Sião não desanimaram; elas
acompanharam a Jesus e Maria no caminho da cruz.
II — Antes da provação, os apóstolos, cheios de confiança
em si próprios, reputavam-se invencíveis. Mas, ao chegar a
tentação, pensaram estar tudo perdido. No intervalo de duas
horas chocam-se dois excessos contrários: a presunção e,
depois, a incredulidade. O primeiro gera o segundo, pois que
as faltas se atraem mutuamente e a demasiada confiança em
si traz sempre decepções como consequência. A verdadeira
coragem é apanágio das almas realmente humildes; e quanto
mais de si mesmas desconfiam para unicamente em Deus
apoiar sua confiança, mais fortes se tornam, não de sua própria
força, mas da força de Deus.

QUARTA-FEIRA DA SEMANA SANTA


Jesus crucificado implora o perdão para os seus algozes
I — Contemplemos o Calvário e alcemos o olhar para o alto
da montanha donde nos vem todo o socorro. Que espetáculo
medonho! Jesus, com os pés e as mãos transpassados, a
cabeça cheia de contusões e o corpo inteiro coberto de lama e
de feridas, está suspenso na cruz! Tem o olhar e os braços
voltados para Jerusalém; sua cabeça inclinada respira doçura e
caridade; toda a sua atitude exprime a divina sede que o
consome: a divina sede de amor. A seus pés agita-se, furiosa,
a multidão. Algozes ou espectadores curiosos, judeus e
pagãos, sacerdotes e plebeus, príncipes, magistrados e
soldados, todos fazem estremecer o Calvário com seus brados
de ódio e de blasfêmia. As convulsões da natureza unem-se às
vociferações do inferno. É quando o sangue jorra das veias
rompidas da Vítima que se ouve a voz da divina misericórdia:
"Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!" Esta
súplica divina, cujo eco é repetido pelas filhas de Sião, contém
todas as esperanças de Israel.
II — O Cordeiro de Deus, imolado em expiação dos
pecados do mundo, não se limita apenas a implorar o perdão
para os seus inimigos; desculpa-os, releva a sua crueldade sob
pretexto de ignorância. Realmente, conforme nos ensina são
Pedro, se os judeus houvessem reconhecido Jesus como Filho

138
de Deus, como o Autor da vida, não o teriam crucificado; e,
conquanto fosse a sua cegueira consequência do orgulho,
pecado gravíssimo, não compreenderam eles a
monstruosidade da sua ingratidão. E por isto, como explica
santo Tomás, não sabiam realmente o que faziam. É esta
justificação que Jesus confirma na cruz. Sua prece
misericordiosa ecoará perpetuamente no seio do amor infinito
do Eterno e não cessará de impetrar no céu em favor dos
pobres pecadores.
Supliquemos ao divino Redentor que aplique também a nós
o fruto dessa oração sublime; e, por nosso lado, perdoemos de
coração aos que nos ofenderem.

QUINTA-FEIRA SANTA
A santa Ceia
I — Contemplemos sobre os nossos altares os mistérios
que reproduzem e perpetuam a obra da nossa redenção. O
Cordeiro de Deus se oferece em sacrifício por uma imolação
não sangrenta; dá-se em alimento do sacramento do amor.
"Assim como amou aos seus que estavam no mundo, amou-os
até ao fim". É a explicação dada pelo evangelista que
descansou a cabeça sobre o coração de Jesus. O amor divino
ultrapassou as raias do amor comum; transborda pelo infinito!
A fonte das graças divinas parecia esgotada: Jesus tudo dera...
por fim, deu-se a si mesmo. Do mesmo modo que a mãe ali-
menta o seu filhinho com a própria substância, assim faz Jesus
de sua carne e de seu sangue um alimento e uma bebida, a fim
de que, por essa misteriosa refeição, permaneçamos sempre
unidos a ele, como membros de seu corpo, como osso de seus
ossos, como carne de sua carne. "Tomai e comei, porque isto é
meu Corpo!" É o alimento que gera as virgens, os mártires e os
santos. Quem comer deste pão descido do céu, vive em Jesus
Cristo e Jesus Cristo nele.
Que as esposas do Cordeiro reconheçam o divino Esposo
sob os véus do sacramento! Que exclamem: "Sois meu Senhor
e meu Deus! Sois minha vida, meu amor e meu tudo!"
II — Nos sagrados mistérios do altar subsiste realmente a
paixão de Jesus com todas as suas virtudes e todos os seus
frutos; mistérios cheios de vida, de força e de eficácia que nos
aplicam o sangue do Cordeiro para nos regenerar e nos
inebriar do néctar da imortalidade. Este sangue é o penhor da

139
nossa redenção. A carne do divino Cordeiro é a semente de
todas as perfeições, o penhor de nossa ressurreição, o germe
de nossa vida futura. O fogo que invisivelmente arde sobre o
altar é o amor divino reduzido a alimento e a bebida. É sacra-
mento e sacrifício a um só tempo. Pelo sacramento, Jesus
Cristo permanece conosco até à consumação dos séculos e
alimenta-nos com a substância do seu Coração. Pelo sacrifício,
renova incessantemente os mistérios da sua paixão, da sua
ressurreição e da sua ascensão gloriosa. É o Cordeiro pascal
que nos faz passar das trevas à luz, da escravidão à liberdade,
da morte à vida, da terra ao céu. Subsistem assim eternamente
na Igreja, de modo inefável, a santa ceia, o Calvário e o
mistério da ressurreição.
Excitemos nossos sentimentos de gratidão para celebrar os
dons magníficos do altar. "Ó Sião, canta teu Deus! exclama o
salmista; louva teu Deus por haver estabelecido a paz em tuas
fronteiras, e te alimenta do mais puro trigo!" (SI 147).

SEXTA-FEIRA SANTA
Jesus exala o último suspiro
I — Pregado à cruz como em leito de dores, em extremos
de amargura e de tristeza, nosso Senhor esquece-se, por
assim dizer, dos seus sofrimentos, para multiplicar as provas
da sua inesgotável caridade! Seu Coração, qual sarça ardente,
queima sem se consumir. Suas derradeiras palavras,
pronunciadas em tom forte, impregnado de lágrimas, são
provas de sua divina solicitude, e fontes de consolação, para
toda criatura de boa vontade. Lega-nos sua Mãe, único tesouro
que possui sobre a terra! Tesouro que encerra em si a
totalidade dos bens celestiais e terrenos. Abre o céu ao
pecador arrependido e, crescendo seu amor à proporção que
se conclui o sacrifício, levanta Jesus ao céu seu divino rosto e
depõe no seio de Deus todas as almas unidas à sua: "Pai! Em
vossas mãos entrego o meu espírito!" Palavras que devem ser
repetidas por todo cristão à hora da morte, em união com
Jesus Cristo.
II — O Salvador do mundo, após sorver até ao último trago
o cálice de todas as dores humanas, inclina a cabeça; seu
rosto cobre-se de palidez; seu olhar se extingue; solta um
brado de angústia; tudo está consumado: Jesus expira! O
demônio é vencido nesse momento supremo; está resgatada a

140
dívida do gênero humano; é revogada a sentença de
condenação contra o gênero humano; a morte já não é um
castigo... é uma libertação. É firmada a reconciliação; reabre-se
o céu, a Pátria é reconquistada! Doravante quem vive e morre
com Jesus Cristo, parte deste mundo como o exilado que
regressa a seu lar, como a criança que se atira nos braços de
seu Pai, como a esposa que corre ao encontro do esposo.
Assim destrói o mistério da cruz o aguilhão da morte. A morte
torna-se uma páscoa, isto é, uma passagem, um suave
despertar, uma redenção realizada.
Prostremo-nos aos pés da cruz e, cheios de viva contrição,
adoremos agradecidos à divina Vítima que por nós se imolou.

SÁBADO DE ALELUIA
Jesus é sepultado
I — Contemplemos o Cordeiro de Deus sacrificado, a
Vítima imolada, o Amor crucificado! Do seu Coração ferido, de
suas chagas abertas, jorra o sangue que apaga os pecados do
mundo. O Calvário, entretanto, muda de aspecto; cessa o
tumulto... a multidão, tomada de terror, dispersa-se; muitas
vozes proclamam a divindade do Messias. Em breve cercam a
cruz unicamente algumas almas fiéis. Maria, transpassada pelo
gládio da dor, conserva sua atitude calma e sublime; levanta o
ânimo de são João, enxuga as lágrimas de Madalena, reanima
a esperança das outras Marias; excita a fé do centurião, de
Nicodemos, de José de Arimateia. Estes desprendem,
cuidadosamente, da cruz, o sacrossanto corpo de Jesus e,
depois de embalsamá-lo com os perfumes e essências
aromáticas trazidos pelas santas mulheres, depõem-no no
sepulcro.
E nós também, façamos parte desta pequena guarda e
misturemos o bálsamo de nosso amor às consolações que as
filhas de Jerusalém derramam sobre as chagas do Coração de
Jesus.
II — Consoante os ensinamentos dos apóstolos, é a se-
pultura de nosso Senhor Jesus Cristo a imagem da vida cristã
neste mundo, vida que pode ser considerada como morte
quando comparada à vida futura. Daí estas palavras de são
Paulo: "Jazeis agora na morte e vossa vida está escondida
com Cristo em Deus. Mas, quando aparecer Cristo, que é
vossa vida, com ele aparecereis na glória" (Col 3, 3. 4). O

141
cristão, regenerado pelo batismo, crucifica sua carne com seus
apetites, morre para o que é terreno e conserva a semente de
sua imortalidade na perfeita solidão do espírito e do coração.
Espera, confia, forma-se para a eternidade; morre com Jesus
Cristo, para com ele ressuscitar. "Bem-aventurados os mortos
que morrem no Senhor!" (Ap 14, 13). Descansarão dos seus
trabalhos e suas boas obras os acompanharão diante de Deus.

DOMINGO DE PÁSCOA
"Ele ressuscitou!" (Mc 16, 6)
I — Quem nos levantará a pedra colocada à entrada do
sepulcro? Tal era a preocupação das santas mulheres que,
desde o alvorecer, aprestavam-se para oferecer ao corpo de
Jesus os perfumes de sua piedade e o bálsamo do seu amor.
Peçamos também que a pedra seja retirada de nossos
corações, para que, aliviados de todo fardo, dureza ou
empecilho, contemplemos jubilosamente a ressurreição de
nosso Salvador. Silencie nossa razão estupefata; ouçamos
somente a voz dos anjos: "Ele ressuscitou!" Este brado do céu,
saído das profundezas do sepulcro, é levado por Madalena e
suas companheiras a são Pedro e aos apóstolos. Estes o
repetem em Jerusalém e de Jerusalém se propaga como
formidável eco através o mundo e os séculos. "Ressurrexit!"
Cumpriram-se as promessas de Deus; realizaram-se as profe-
cias; é vencido o demônio; a morte restitui seus despojos; o
Libertador dos homens triunfa! Rejubilemos com a Igreja e
dilatemos nossos corações com as imortais esperanças.
II — A ressurreição de Jesus é o início da glorificação do
homem e o penhor de todas as esperanças futuras. Jesus
Cristo é a vinha e nós somos seus ramos. Se a raiz tomar nova
seiva, os ramos, por sua vez, reflorescerão; se a cabeça da
humanidade resgatada saiu gloriosa do túmulo, os membros do
seu corpo místico triunfarão igualmente da morte. Precede-os
Jesus na Galileia, nome que significa: região da luz. Aí a ele
nos reuniremos. As primeiras mensageiras da boa nova são as
corajosas filhas de Sião, que em toda a carreira evangélica de
Jesus o haviam acompanhado, amado e servido. Foram elas
os "apóstolos dos apóstolos, os evangelistas dos evangelistas",
como diz são Bernardo; recompensa da inviolável fidelidade
apresentada ao Senhor, mesmo quando os próprios apóstolos
tinham perdido a confiança e a coragem. Admiremos o divino

142
plano da sabedoria, que escolhe os fracos para confundir os
poderosos e faz surgir do seio da tímida humildade uma força
de alma cheia de virtudes!
Desejamos palmilhar suas pegadas? Apeguemo-nos às
palavras das Escrituras, e afirmemos com Jó: "Sei que o meu
Redentor vive e que no último dia ressurgirei da terra; vê-lo-ei
com meus próprios olhos, eu mesmo e não outro. Esta
esperança repousa em meu coração" (Jó 19, 25. 27).

SEGUNDA-FEIRA DE PÁSCOA
Os discípulos de Emaús (Lc 24, 13 ss)
I — Enquanto os dois discípulos discorriam tristemente
sobre a morte de Jesus, receosos de verem frustradas as suas
esperanças, aparece-lhes subitamente o Senhor e, sem se lhes
dar a conhecer, os instrui, conforta e consola. Confirma-se
assim a promessa divina consignada no Evangelho: "Onde
duas ou mais pessoas se reunirem em meu nome, aí estarei".
Este mistério, visivelmente verificado na estrada de Emaús,
demonstra o que se passa invisivelmente em todos os
caminhos da vida. Quantas vezes está o Senhor bem próximo
de nós quando nos une a caridade fraterna em uma mesma
prece e em um mesmo pensamento! Não o percebem nossos
olhos, mas é evidente a sua presença pelas suaves inspirações
que iluminam nossa fé e dilatam nossa confiança. Sentiremos
certamente os efeitos desta presença se procurarmos andar
sempre sob o olhar de Deus e se, em nossos entretenimentos,
puder tomar parte nosso Senhor.
II — Como nos faz observar são Gregório, notemos que os
discípulos não haviam reconhecido o Senhor enquanto lhes
explicava as profecias, mas sim na fração do pão; mistério
muitas vezes experimentado pelas almas piedosas. As
palavras de Jesus, cheias de luz e de vida, encerram o fogo
que incendeia os corações. Mas a fração do pão no banquete
eucarístico dá uma evidência mais íntima e mais completa.
Então não é mais a harmonia da palavra que nos seduz, é o
próprio Jesus Cristo que nos toca, nos ilumina e nos abrasa!
Senhor se manifesta às almas crentes que apreciam a sua
palavra, alimentam-se de sua vida e deliciam-se com seu amor.
Se levarmos estas disposições à sagrada Mesa,
reconheceremos Jesus à fração do pão e um dia havemos de

143
contemplar na majestade da glória aquele que adoramos nos
mistérios da fé.

TERÇA-FEIRA DA PÁSCOA
"A paz esteja convosco" (Jo 20, 19)
I — Como estivessem reunidos os discípulos, a portas
fechadas, apareceu-lhes Jesus e disse-lhes: "Pax vobis!".
É a saudação de nosso Senhor; transmite o mais precioso
dos seus dons. A paz celeste é um sopro da eternidade que
desce à terra como um aroma de alegria e de satisfação. Em
nada se assemelha à paz inconstante e fugaz do mundo; é
serena, profunda e estável como a fonte de onde provém. Este
dom sagrado é superior a todos os outros, por ser uma efusão
do próprio Jesus Cristo, o "Príncipe da paz", como o chama o
profeta Isaías; Jesus o comunica às almas de boa vontade. Eis
por que os que vivem sob seu cetro são chamados: filhos de
Deus. Felizes os que recebem a paz de nosso Senhor e a
difundem aos seus irmãos na casa do Senhor! Participam da
missão dos anjos que cantam as glórias de Deus: "Eles hão de
vos louvar, ó Senhor, pelos séculos dos séculos!" (SI 83, 5).
Cerremos as portas do nosso interior; conservemo-nos em
recolhimento e silêncio, a fim de participarmos deste dom
celeste, distintivo dos filhos de Deus.
II — Notemos que o divino Salvador, sempre que se
aproximava dos discípulos, quer antes, quer depois da
ressurreição, saudava-os com palavras de paz. É que, para
comportar a plenitude da paz divina, precisamos possuir antes
as suas primícias, e a torrente das efusões celestes só pode
correr sobre as almas calmas e tranquilas. O espírito de Deus,
sendo um espírito de paz, não pode habitar em corações
inquietos, agitados e tormentosos; ele procura o sossego e
foge do tumulto e da confusão. Eis por que estabeleceu na paz
os seus discípulos, antes da sua ressurreição, a fim de poder
completar a medida após sua ressurreição.
Procuremos tudo o que possa manter em nós a paz
interior, principiando por afastar de nós todo pensamento capaz
de amesquinhar o coração, enfraquecer a confiança ou abater
o ânimo; entreguemo-nos às influências que nos acalmam e
tranquilizam. Estas influências são índices certos da presença
de Jesus Cristo.

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QUARTA-FEIRA DE PÁSCOA
Jesus aparece novamente a seus discípulos na praia (Jo
21)
I — Nosso Senhor, continuando a se manifestar
corporalmente aos que deveriam servir de testemunha de sua
ressurreição, apareceu-lhes às margens do lago de Tiberíades;
os apóstolos não o reconheceram, no entanto, logo à primeira
vista, porque se mostrava sob formas diversas. Esta
diversidade de aspectos nos prova que o Senhor não pretende
basear a nossa fé sob o testemunho dos sentidos, assim como
não a estabeleceu sob as argumentações da razão humana.
Quer que se firme sobre a verdade da sua palavra; longe de
satisfazer nossos sentidos, ele os mortifica; porque, explica-nos
são João Crisóstomo, seu fim é desprender-nos dos objetos
exteriores, para, de uma maneira mais segura e profunda, nos
iniciar nos mistérios da ordem divina.
Elogia o Evangelho os que, sem terem visto Jesus,
prendem-se fielmente à sua doutrina. "Vós credes, diz o
príncipe dos apóstolos, sem o ver. E crendo, exultais com uma
alegria inefável e cheia de glória, conquistareis o prêmio de
vossa fé, que é a salvação de vossas almas" (1 Pd 1, 8. 9).
II — Os apóstolos que não haviam reconhecido o Senhor,
vendo-o, reconheceram-no pela pesca maravilhosa. As visões
são graças excepcionais, mas são muito sujeitas a ilusões; não
devemos, por conseguinte, nelas nos fiar, senão quando
justificadas por atos dignos de nosso Senhor Jesus Cristo.
Nem sempre as consolações sensíveis, os favores
extraordinários provam a ação puríssima do Espírito de
verdade. Para nos certificar de que se trata realmente do
espírito de Jesus Cristo, precisamos considerar seus efeitos,
que consistem sempre no aumento da humildade, do amor e
da piedade. Tais são os frutos que atestam a presença e a
intervenção de Jesus.

QUINTA-FEIRA DA PÁSCOA
Aparição de Jesus a santa Madalena (Jo 20, 11 ss).
I — Maria Madalena permanece junto ao sepulcro, ansiosa,
debulhada em lágrimas. Tem o coração preso ao seu tesouro,
dele não se pode afastar... Arrebatada pelo amor divino, não se
pertence mais, é toda de Deus; só nele pensa e fala! É um
efeito do verdadeiro amor produzir na alma que traz cativa um

145
esquecimento de si mesma; e esta completa abnegação
produz, por sua vez, virtudes das mais heróicas. Quando se
ama, prossegue-se sem detenção no caminho do Senhor, sem
cuidar em si, afrontando os perigos, dominando todo
sofrimento, tendo unicamente em mira Jesus — amor dos
nossos corações.
No entanto, um anjo, ofuscante de beleza, surge ante
Madalena e pergunta-lhe com doçura: "Por que choras,
mulher?" Ao que lhe respondeu: "Roubaram o meu Senhor;
não sei onde o puseram!".
E nós, quando choramos, será por semelhante causa? À
alma piedosa, somente um motivo deverá afligir, somente um
alegrá-la. Achar Jesus é a felicidade; perdê-lo, desolação e
morte. Quando não se compreende bem esta verdade, muitas
vezes se deplora o que deveria ser causa de alegria, e alegra-
se com o que deveria causar lágrimas.
II — O Senhor se manifesta gradualmente a Madalena;
delicada precaução para com a alma amorosíssima que, após
tanto sofrimento, não suportaria de chofre tão intensa alegria.
Jesus chama-a pelo nome: "Maria!".
A imensa ternura do Salvador externou-se nesta simples
palavra; e a feliz serva do Senhor responde-lhe com emoção
não menos expressiva: "Rabboni!" Ó meu Senhor! O coração
de Madalena neste instante, semelhante ao vaso de alabastro
que partira aos pés do Mestre, prorrompeu em explosões de
amor! Eram exalações do mais precioso perfume... As almas
santas, unidas pelo laço da caridade, não requerem muitas
palavras para se compreenderem; basta-lhes uma, e suas
comunicações com o Deus de amor realizam-se mais
facilmente no silêncio do que por expressões do pensamento e
da linguagem. Estas aspirações curtas, fervorosas e profundas,
oferecem-nos um modelo de oração e demonstram quão fáceis
e singelas são as expansões mútuas entre Deus e a alma fiel.

SEXTA-FEIRA DA PÁSCOA
Jesus aparece aos apóstolos na Galileia (Mt 28, 16-20)
I — Os apóstolos reunidos na Galileia sobre o monte que
lhes fora designado, viram novamente o Senhor e receberam
de sua boca o ministério da predicação evangélica: "Ide,
ensinai a todas as nações, batizai-as em nome do Padre e do
Filho e do Espírito Santo, e ensinai-lhes a observar tudo o que

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vos ordenei!" Vão eles se espalhar por todas as regiões do
globo e, como o sol, irradiar a palavra da vida. Não quer isto
significar que, antes de Jesus Cristo, Deus não ensinara ao
mundo, mas é que a revelação, confiada aos patriarcas e
transmitida pelos profetas aos pontífices de Israel, não
transpusera ainda os limites da Judeia. "Deus falará a nossos
pais em diversas circunstâncias e por diversos modos: Ultima-
mente falou-nos por seu próprio Filho" (Hb 1, 1. 2). A doutrina
da salvação rompeu então os obstáculos e alastrou-se como
um caudaloso rio, a fim de congregar todos os povos e uma só
unidade.
Esta unidade, objetivo máximo do cristianismo, só pode
estabelecer-se e subsistir, lá, onde a palavra divina cativa a
submissão do espírito e a adesão do coração.
II — Os doze apóstolos são os patriarcas do povo de Deus.
Recebem e transmitem a seus sucessores a missão de
fecundar as almas pela palavra e regenerá-las pelo batismo. O
Senhor apoia a missão apostólica sobre uma poderosa
promessa: "Eis que estarei convosco até à consumação dos
séculos". A presença de nosso Senhor em sua Igreja não será
mais visível após a sua ascensão; mas é real e permanente no
santíssimo Sacramento do Altar, no mistério da infalibilidade da
santa Sé e nas funções sacramentais do sacerdócio católico.
Jesus continua a dirigir realmente a sua Igreja e a manifestar
nela a sua assistência quer em meio de combates, humi-
lhações e adversidades, quer em meio de conquistas, triunfos e
obras divinas. Eis o motivo da inquebrantável confiança cristã;
ela é inacessível ao temor e à dúvida; firma-se no rochedo da
promessa de Deus; é sólida como a montanha de Sião, diz o
salmista real.

SÁBADO DA PÁSCOA
Pedro e João acorreram ao sepulcro (Jo 20, 3).
I — Simão Pedro e o outro discípulo amado por Jesus
apressaram-se, desde o alvorecer, em ir ao santo sepulcro.
Corriam ambos com o coração a saltar de ansiedade e de
esperanças. João foi o primeiro a chegar, mas só entrou no
sepulcro depois de são Pedro. Este pormenor, que encerra a
narração evangélica, foi conservado certamente para nos dar
uma importante instrução: mostrar-nos a deferência respeitosa
com que todos os apóstolos tratavam aquele que fora instituído

147
para ser o chefe de todos, Este espírito de submissão
perpetuou-se na Igreja para com o pontífice romano, sucessor
de são Pedro, encontrando-se esse mesmo espírito em todos
os graus da hierarquia. Por toda parte onde reina Jesus Cristo,
os superiores ou aqueles que, por qualquer forma, participam
da sua autoridade, são tratados com religiosa deferência.
II — É fácil deduzirmos que as santas mulheres e os
apóstolos, que davam voltas ao redor do sepulcro, não
tardariam em ir transmitir a Nossa Senhora as suas im-
pressões; porque Maria é o centro das almas fiéis; é ela que
lhes dirige os movimentos e compreende seu mistério. Na
misteriosa carreira dos apóstolos, segundo interpretam os
santos padres, são João representa a Sinagoga e são Pedro a
Igreja. A Sinagoga é a primeira a se aproximar do sepulcro,
mas não entra; somente aí penetrará depois que a fé em nosso
Senhor Jesus Cristo se houver espalhado por todas as nações.
São Paulo explica a razão deste mistério. Aqueles que
procuravam a salvação em seus próprios méritos, não a
encontraram, mas sim os que a procuraram nos méritos infini-
tos de nosso Senhor Jesus Cristo. O apóstolo acrescenta estas
palavras de Isaías: "Mesmo que sejam os filhos de Israel
numerosos como as areias do mar, só os seus restos serão
salvos".
O coração de Maria conserva preciosamente essa sagrada
profecia e sua alegria só será completa, quando seu povo vier,
após todos os outros, trazer suas adorações ao Salvador
ressuscitado. Oremos com Maria e trabalhemos com os
apóstolos, para apressar a realização dessas divinas
esperanças.

DOMINGO IN ALBIS
Incredulidade de são Tomé
I — Notemos que são Tomé privara-se das consolações da
presença de Jesus Cristo, afastando-se da companhia de seus
irmãos. Não há, com efeito, nada mais prejudicial à alma cristã
do que se isolar e seguir caminho particular. Deus derrama
suas melhores bênçãos sobre os mínimos exercícios feitos em
comum; ao passo que recusa seus favores a quem se
singulariza e anda à margem da vida comum. São Tomé
cometeu outra falta negando o testemunho dos apóstolos. "Se
não vir as chagas dos cravos em suas mãos e se não introduzir

148
o meu dedo na abertura do lado, não acreditarei". Admirável
incredulidade de um apóstolo que tantos prodígios presenciara!
Mas verificamos tal cegueira em muitas almas que exigem
milagres para vencer suas tentações e preocupações de
espírito. Nossa fé se apoia sobre a palavra de Deus que, por
sua unção luminosa, confirma em nosso íntimo a verdade
revelada. É o que nos ensina o apóstolo são João (3, 27), e
são Paulo acrescenta em outros termos: "Não contemplamos
as coisas visíveis, mas as que não o são; pois as visíveis são
efêmeras e as invisíveis são eternas". O próprio Jesus disse a
são Tomé: "Por me teres visto, Tomé, acreditaste; bem-aven-
turados os que acreditaram sem ter visto!".
Possamos nós, advertidos pelas faltas de são Tomé, tirar
proveito de nossos erros, tornando-nos mais humildes e
praticando as outras virtudes evangélicas!
II — A incredulidade de são Tomé converteu-se em
manifestações ardentes de fé, quando o Senhor lhe mostrou as
chagas de seu corpo ressuscitado; e por este meio a verdade
da ressurreição veio a ser, no decorrer dos séculos, o mais
evidente de todos os dogmas sagrados. Exclama, pois, o
apóstolo, num arroubo de fé: "Sois meu Senhor e meu Deus!"
Confuso por sua incredulidade e fascinado pela luz da sua fé,
sua felicidade em acreditar iguala seu desgosto por não haver
crido. A adesão íntima e confiante na palavra de Deus produz
uma certeza mais evidente do que poderiam dar as de-
monstrações humanas; e nossa fé só permanece sólida
enquanto se firma sobre esse alicerce.
Se formos assediados, pois, pela dúvida ou pelo desânimo,
deitemos um olhar às chagas de Jesus e confessemos de boca
e de coração: "Sois meu Senhor e meu Deus!".

SEGUNDA-FEIRA DA OITAVA DE PÁSCOA


Os apóstolos encheram-se de alegria ao avistar o Senhor
(Jo 20, 20)
VII — Nosso Senhor não permitiu que subsistisse dúvida
alguma sobre sua ressurreição. Em suas diversas aparições,
deixa-se tocar por seus apóstolos; fala-lhes, escuta-os, come
com eles, para que possam publicar no mundo o grande
testemunho de são João: "O que ouvimos, o que vimos, que
com os nossos olhos contemplamos, e apalparam as nossas
mãos, nós vos anunciamos e vos atestamos" (1 Jo 1, 1. 2).

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Intraduzível foi a alegria sentida pelos apóstolos quando a fé
dissipou as últimas dúvidas. É a expressão da confiança que
sucede ao aperto do coração, é a luz divina que triunfa das
obscuridades do espírito humano. Fora da fé não há repouso
nem segurança.
O homem sente invencível necessidade de amar e de crer;
somente pode gozar a paz e a felicidade quando está de posse
da verdade.
II — Devemos seguir o exemplo dos apóstolos, alegrando-
nos em Jesus Cristo; e é o que o grande são Paulo não cessa
de no-lo recomendar: "Alegrai-vos incessantemente no Senhor;
outra vez digo, alegrai-vos" (Fp 4, 4). Mas é necessário
desprezar as alegrias deste mundo para desfrutar as que
nascem do contato íntimo da alma com nosso Senhor.
"Deleitai-vos no Senhor", diz o salmista; porque veio nos trazer
a alegria e quer que a gozemos abundantemente. As
verdadeiras alegrias são chamas produzidas pelo amor. "Deus
é amor", diz são João; ele é luz, é o soberano Bem.
Quanto mais nos aproximamos de Deus, tanto mais o
amamos, mais gozamos, mais seremos felizes.

TERÇA-FEIRA APÓS A OITAVA DA PASCOA


Jesus volta a aparecer aos seus apóstolos e ainda uma vez
lhes diz: Pax vobis (Jo 20).
I — Aparecendo novamente a seus discípulos, dá-lhes o
Senhor a paz. Renova por diversas vezes a saudação
evangélica, que será transmitida de século em século, até ao
derradeiro dia. A paz é o fruto supremo da redenção. Enquanto
reinasse o pecado na terra, não poderia ela existir nem no
homem, nem em suas relações mútuas, nem em suas
comunicações com o céu. Porque a obra do pecado é de
interceptar a graça que prende o homem a seu Deus, de
perturbar as relações dos homens entre si e de levar a
desordem até ao próprio coração humano. Por sua paixão e
por sua ressurreição, Jesus Cristo rompeu as cadeias do
pecado; restabeleceu a harmonia no amor e na caridade e
reconciliou o homem com o céu e a terra.
II — Jesus Cristo, restituindo a Deus toda a glória e
obediência, fez voltar à terra a justiça e a verdade. Venceu o
egoísmo, fonte da ambição que provoca a divisão entre os
homens; e por esta vitória, deixou-nos a graça de nos

150
dominarmos, de maneira a submetermos os sentidos à razão, a
razão à vontade e a vontade humana à vontade de Deus.
Jesus promete os tesouros da paz divina aos que exe-
cutarem esses preceitos evangélicos. "Sereis meus amigos, diz
o Senhor, se fizerdes o que vos ordenei" (Jo 15, 14). “Tomai
meu jugo; sede mansos e humildes de coração e encontrareis
a paz de vossas almas".

QUARTA-FEIRA APÓS A OITAVA DA PÁSCOA


Jesus confere o poder de perdoar os pecados (Jo 20, 22.
23)
I —- Nosso Senhor, depois de lhes dar a paz, insuflou
com sua boca divina sobre os apóstolos, dizendo-lhes:
"Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os
pecados, ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os
retiverdes, ser-lhes-ão retidos". Estas palavras consagram o
poder que o Salvador depositou em sua Igreja, por seu
misterioso sopro; poder este que passou dos apóstolos aos
bispos, dos bispos aos sacerdotes, para propagar, por meio
dos sacramentos, a reconciliação oferecida aos pecadores.
Jesus Cristo veio para apagar os pecados do mundo. O que fez
durante sua vida mortal, continua a fazer pelo sacerdócio
católico e continuará ainda até à consumação dos tempos. O
sangue do Cordeiro contém o antídoto do pecado; foi
derramado pela salvação universal e sua ação purificadora
emana das chagas do Salvador como de uma fonte
inextinguível.
II — Nosso Senhor Jesus Cristo morreu por todos, mas os
méritos de sua morte devem ser aplicados com discernimento,
a cada pecador em particular. São Paulo, em sua segunda
epístola aos Coríntios (5, 18), escreve: "Deus nos confiou o
ministério da reconciliação". Ele quis conferir, a homens
pecadores, o poder de absolver os pecados do homem.
Ministério sublime, pois que atinge às prerrogativas divinas;
mas ao mesmo tempo temível, visto que o poder de ligar e de
desligar confere o arbítrio das consciências. Se bastasse crer
na virtude do sangue de Jesus Cristo para receber o perdão e
a justificação, conforme ensinam certos heréticos, não teria o
Salvador concedido tal poder aos apóstolos. A justificação é,
em relação à alma, o que é a saúde para o corpo. O pecador é
o doente que expõe sua enfermidade ao médico, para dele

151
receber as prescrições; ao doente compete seguir o regime e
abster-se do que lhe for proibido.

QUINTA-FEIRA APÓS A OITAVA DA PÁSCOA


"Jesus operou ainda muitos outros milagres que não foram
escritos neste livro" (Jo 20, 30).
I — É impossível enumerar as maravilhas operadas pelo
Salvador do mundo, bem como relatar todas as suas palavras;
ambas perpetuam-se na Igreja. Os milagres não cessaram e a
palavra evangélica ecoa, como no tempo em que Jesus estava
no mundo, pelo ministério sacerdotal, sempre ativo e vigilante.
Mas os frutos deste ministério germinam no silêncio e jazem
comumente esquecidos. Será somente no desfecho da história
humana que se poderá abraçar o plano geral da Providência e
que se há de admirar o conjunto das obras de Deus. Por isso o
homem prudente não se apressa em julgar; ele reflete e
espera; sabe que as coisas obscuras se tornarão luminosas, e
que as ações praticadas no segredo serão promulgadas à luz
do dia.
II — Ao declarar que o Senhor disse e operou muitas
coisas que não estão escritas em seu livro, quis o Evangelista
consagrar pelo seu testemunho a tradição viva da Igreja. Esta
tradição é, bem como as Escrituras, objeto de nossa fé e de
nossa obediência. Chegam-nos ambas incorruptíveis por meio
da Igreja que nos transmite, com os preceitos e conselhos
evangélicos, as recomendações verbais, as instituições e
observâncias dos tempos apostólicos. O respeito com que à
Igreja conserva a herança do divino Mestre, serve de exemplo
às comunidades religiosas que, por sua vez, devem venerar
suas tradições sob o mesmo título que suas constituições
escritas. A veneração filial não se prende exclusivamente ao
testamento do chefe da família; recolhe com idêntico respeito
suas intenções e pensamentos ainda não formulados. É,
sobretudo a tradição verbal que protege e distingue o espírito e
salvaguarda seu fervor primitivo e todas as condições de
prosperidade.

SEXTA-FEIRA APÓS A OITAVA DA PÁSCOA


"Filhinhos, guardai-vos dos ídolos" (1 Jo 5, 21)
I — O discípulo amado de Jesus fecha sua epístola por
uma recomendação breve, mas significativa. Notemos a doçura

152
de suas palavras: "Meus filhinhos!" Estas palavras manifestam
os sentimentos do pastor para com os verdadeiros fiéis;
exprimem as relações de paternidade formadas entre as
gerações espirituais da Igreja. Os santos dos tempos
apostólicos não eram somente filhos, mas filhinhos, realizando
o que dissera o divino Mestre: "Em verdade, em verdade vos
digo: se não fordes semelhantes a esta criancinha, não
entrareis no reino dos céus". Este espírito infantil é o germe de
todas as virtudes celestiais; porque uma criancinha não trata
nem se preocupa de si; de modo que as crianças evangélicas
descansam sob a proteção de Deus, vivendo só de amor e de
obediência.
Desejai, pois, aconselha-nos a Igreja, repetindo as palavras
do príncipe dos apóstolos, desejai ardentemente, como
criancinhas recém-nascidas, o leite espiritual e puro; para que
vos faça crescer para a salvação, se experimentastes quão
suave é o Senhor.
II — O apóstolo exorta seus filhos a se precaverem contra
os ídolos. Esses ídolos são as criaturas que preferiríamos a
Deus e que, por este desvio dos nossos sentimentos, tomariam
o lugar de Deus no santuário do nosso coração. Esta falta
somente poderia ser ultrapassada pela odienta pretensão de
um homem que se impusesse como ídolo ou deus de outro.
Não é bruscamente que se chega a esse excesso de orgulho;
mas arrisca-se a cair aos poucos quem age ou fala de modo a
se tornar, para o próximo, objeto de suas preocupações ou
culto particular. Para evitar a idolatria espiritual, precisamos
vigiar constantemente todos os recantos do nosso coração.
Esta rigorosa vigilância nos auxiliará a desprender-nos do
nosso eu, a dominarmos o amor próprio e a nos entregarmos
totalmente ao amor de nosso Senhor Jesus Cristo.

SÁBADO APÓS A OITAVA DE PÁSCOA


"Regina caeli, Iaetare, alleluia!"
I — Sofreu Maria seu dia de provação; teve também seu
dia de triunfo. Passaram-se as amarguras e o triunfo será
eterno. A Igreja hoje só encontra Maria no mais alto dos céus,
invoca-a por esta ardente saudação: "Rainha dos céus, alegrai-
vos!" À compaixão aos pés da cruz sucede a participação nas
eternas alegrias. Deus proporciona consolo aos sofrimentos, e,
se o Senhor se apressou, por carinhosa deferência, em

153
aparecer às santas companheiras de sua mãe, nada mais
natural do que acreditarmos que fosse ela a primeira
contemplada com sua aparição, logo ao sair do túmulo. As
tradições da Igreja excluem toda dúvida a esse respeito e, se o
Evangelho cala sobre isto, é que Maria está acima de toda
menção. Seus êxtases e suas lágrimas não poderiam ser ex-
pressos, mesmo na linguagem evangélica, e devemos admirar
seu silêncio no sepulcro como no Calvário, no Calvário como
no presépio. As grandes emoções do coração somente no céu
serão desvendadas.
Aprendamos com Maria a dominar nossa alma, pois que a
verdadeira humildade tanto modera as alegrias como suaviza
as dores.
II — A Virgem imaculada, tão estreitamente unida a Jesus
em todos os seus íntimos estágios, deveria em supremo grau
participar da graça da sua ressurreição. Depois de haver
chorado e sofrido com seu divino Filho, com ele deveria ter
saído do túmulo de dores, para com ele e como ele viver de
uma vida toda nova. Os anos passados por Maria sobre a terra,
após o prodígio do santo sepulcro, a fim de desempenhar seu
ministério maternal no berço da Igreja, haviam sido
simbolizados pelos quarenta dias que Jesus passara na Judeia
antes de ascender aos céus. O Senhor conversava e se
alimentava com seus discípulos; mas nada o retinha à terra.
Assim Maria, depois da ressurreição, estava, por assim dizer,
morta e ressuscitada; permanecia no mundo, mas seu coração
estava no céu. Poderia dizer com o grande apóstolo são Paulo:
"Para nós que, com a face iluminada, contemplamos a glória do
Senhor, somos transformados em sua semelhança, indo de
claridade em claridade no espírito do Senhor" (2 Cr 3, 18).
Milhares de almas consagradas a nosso Senhor e pal-
milhando os passos de Maria, distinguem-se por esta
ressurreição antecipada; com Davi, assim suspiram seus trenós
de amor: "Que desejarei no céu e sobre a terra a não ser vós, ó
meu Deus, que sois o Deus do meu coração e minha partilha
para a eternidade?" (SI 72, 25. 26).

II DOMINGO DEPOIS DA PÁSCOA


"Eu sou o bom Pastor" (J. 10, 11).
I — Os textos sagrados de Isaías nos apresentam o
Salvador como o Deus dos exércitos, o Deus forte, o Pai do

154
século futuro, o Príncipe da paz (9, 6). Ezequiel acrescenta que
é o Rei dos reis e o dominador dos mundos; e Davi — que é o
Juiz dos vivos e dos mortos. Mas, em vez de recapitular todos
estes nomes pomposos, a Igreja nos lembra os traços pelos
quais Jesus preferia designar-se: "Eu sou o bom Pastor!" Que
palavras cheias de encanto! Pois o sentimento pastoral, em
sua completa acepção, traduz a imensa ternura de uma mãe,
as solicitudes de um pai, as dileções de um irmão, todas as
sublimes dedicações de um amigo. No Coração de Jesus
encontram-se chamas de amor correspondentes a cada fibra
do coração humano e, para colocá-las ao nosso alcance,
despoja-se dos esplendores da divina majestade, e se
apresenta sob a figura de um amável pastor.
Amemos este verdadeiro pastor de nossas almas;
apeguemo-nos a seus passos e descansemos confiantes sob
seu divino cajado.
II — O salmista profetizou os benefícios que o bom Pastor
esbanjaria às almas fiéis. "O próprio Deus será meu Pastor e
nada me faltará. Colocou-me no meio de férteis pastagens;
conduziu-me próximo a uma fonte pura e tranquila; retempera
as forças de minha alma e me faz andar na senda da justiça.
Então, mesmo que fosse envolta pelas sombras da morte,
nenhum mal recearia, porque estais comigo, vosso cajado me
garante e mesmo a vossa vara me consola. Derramais sobre
minha cabeça o óleo dos celestiais perfumes e o cálice de
vosso amor transborda de delícias". As comunidades religiosas
possuem abundantemente estas graças; são os campos férteis
da Igreja. A unção do Coração de Jesus Cristo flui com
plenitude na alma amorosa; aí o espírito evangélico espalha
seu perfume de paz e de alegria, aí as ovelhas queridas
alimentam-se da estrutura do amor.
O bom Pastor nos chama: "Segui-me!" Respondamos-lhe
com são Pedro: "Senhor, a quem iríamos? Vós tendes palavras
de vida eterna!" (Jo 6, 69).

SEGUNDA-FEIRA DA II SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"O bom Pastor dá sua vida por suas ovelhas" (Jo 10, 11)
I — O Príncipe dos pastores nos declara que conhece suas
ovelhas, as distingue por sua docilidade, por sua
correspondência à graça, por seu abandono, por sua sim-

155
plicidade. Tais são realmente as qualidades das almas que
seguem o divino Mestre no caminho da eterna salvação. São
por Deus conhecidas por se empenharem em conhecê-lo; e
neste conhecimento, isto é, nestas relações recíprocas,
encontram a paz, a alegria e as santas esperanças. Deliciam-
se em executar a vontade de Deus, que é uma lei de amor e é
esta lei a única norma de seus atos e de seus pensamentos; de
maneira que não vivem mais para si, mas para Deus; não
buscam mais o próprio interesse, mas aspiram unicamente à
glória de Deus.
Bem-aventuradas as ovelhas conhecidas no céu por suas
virtudes evangélicas! A elas é que se referia o divino Pastor:
"Dar-lhes-ei a vida eterna e ninguém a arrancará de minhas
mãos!".
II — As ovelhas fiéis entregam-se totalmente à direção do
divino Pastor; escutam sua voz que lhes fala ao coração e
mostram-lhe seu amor, por confiante submissão. Ora, esta voz
divina aconselha principalmente a caridade. Eis por que nos
assevera o Evangelho que é pela caridade que o divino Pastor
reconhece suas ovelhas verdadeiras. Queremos pertencer ao
número dessas privilegiadas almas? Queremos obter uma
parte farta nas pastorais solicitudes, nas celestiais predileções,
nas promessas imortais? Ouçamos a voz do bom Pastor e po-
nhamo-la em prática com perseverança. Não é difícil o que
ordena; manda que nos amemos mutuamente e que
permaneçamos unidos em seu Coração.

TERÇA-FEIRA DA II SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


"Eu vim para que minhas ovelhas tenham a vida e estejam
na abundância" (Jo 10, 10).
I — O bom Pastor, semelhante à mais terna das mães,
alimenta suas ovelhas com sua própria substância. Como o
pelicano, abre suas veias e, com seu sangue, deixa escorrer
sua vida no coração das ovelhas fiéis. Assim é que as ondas
vivificantes da graça nos transmitem, abundante e
inesgotavelmente, o misterioso alimento do amor e da
imortalidade. Ó infinita caridade do Pastor que dá sua carne e
seu sangue para alimentar as almas diletas! Mas quão triste é
a ingratidão destas ovelhas que, divinamente alimentadas, não
querem se divinizar! E, no entanto, tornam-se rés dessa
enorme falta todas as vezes que seguirem seu próprio espírito,

156
em vez de obedecerem a Jesus Cristo, e se dirigirem a si
mesmas em vez de se submeterem à autoridade da Igreja.
Lembremo-nos de que, se nosso Senhor tomou a figura de
um cordeiro, é para que nós também, depois de a termos
recebido, tomemos a semelhança com nosso Senhor Jesus
Cristo.
II — A ovelha, que procura sua vida fora do aprisco, está
sempre triste e sequiosa; porque o verdadeiro alimento da alma
é somente encontrado no rebanho católico. Aí é que Jesus
estendeu sua mesa, onde comemos e bebemos a graça. É aí
que se ergue o altar santo onde ele depôs o pão do amor. Este
pão encerra em si todas as celestiais virtudes; comunica-nos a
força do alto, a unção do céu e os dons misteriosos
correspondentes às necessidades mais íntimas de nossa alma.
Depois de tantas provas, poderíamos ainda duvidar do
imenso amor daquele que é o Verdadeiro bom Pastor?
Digamos com Davi que nós queremos segui-lo passo a passo,
todos os dias de nossa vida, e que habitaremos a casa do
Senhor por todos os séculos dos séculos.

QUARTA-FEIRA DA II SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"Conheço minhas ovelhas e minhas ovelhas me
conhecem"
(Jo 10, 14).
I — O Nosso Senhor se compraz em nos repetir várias
vezes que nos conhece; a cada uma de suas ovelhas chama
por seu próprio nome; vê tudo o que existe em nós, o bem e o
mal, os bons desejos e os desfalecimentos, nossas lutas,
nossos pesares, nossas derrotas e nossas vitórias; atende a
nossa súplica, vem ao encontro de nossas necessidades e de
nossas orações. Oh! quão grande seria nossa segurança, se,
como humildes e confiantes ovelhas, abandonássemos a Deus
o cuidado de tudo que nos diz respeito, sem nos preocuparmos
inutilmente! Embaraçamos frequentemente a ação divina pela
atividade irregular dos nossos próprios esforços. Duvidamos de
Deus por não estarmos bem compenetrados de sua palavra
que tão positivamente nos afirma que nos ama, nos conhece e
nos protege. Apeguemo-nos ao necessário; o resto não nos
faltará.

157
II — Se o bom Pastor conhece suas ovelhas, estas tam-
bém o conhecem. E quanto mais o conhecem, tanto mais o
amam; e quanto mais o amam, tanto mais o conhecem. Pelo
coração é que se aprende a conhecê-lo e a amá-lo. Conhecê-lo
é amá-lo e servi-lo; porque servir é obedecer, e facilmente
obedecemos a quem amamos. As ovelhas do rebanho celeste
vivem só de amor e de obediência. "Senhor — exclamava
santo Agostinho — ocupai-vos de mim, como se, abandonando
todos os outros, só em mim pensásseis. Estais sempre próximo
dos que a vós recorrem e me ofereceis vossa assistência
desde que eu esteja disposto a recebê-la. Nunca me
abandoneis; só se eu primeiramente o fizer. E vossas
consolações ultrapassam nossas esperanças. Oh! que
felicidade viver sob tal cajado e com um tal Pastor! Em vós
descansarei, Senhor, e dormirei em segurança".

QUINTA-FEIRA DA II SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


"As ovelhas fiéis não seguem o estranho e o mercenário"
(Jo 10, 5)
I — O estranho é o espírito do mundo, que nada tem de
comum com o espírito de Jesus Cristo. O mercenário é a
natureza humana, viciada pelo egoísmo, que não procura, na
direção das almas, senão suas próprias luzes e seus
interesses. O espírito do mundo é o antagonista do Espírito de
Deus; porque contradiz abertamente a palavra de Deus e tende
a nos tornar estranhos ao céu, arraigando-nos à vida terrena. A
vida terrena é sempre mercenária, pois tudo atribui a si e não
admite o sobrenatural.
O verdadeiro Pastor nos previne contra essas duas pe-
rigosas influências, para que, renunciando a essas vistas
mundanas e carnais, nós o acompanhemos, como ovelhas
fiéis, às regiões da graça e da verdade.
II — Relata-nos o Evangelho que o estrangeiro e o
mercenário vêm unicamente para roubar, degolar e perder.
Roubam os dons de Deus, fazendo-os servir à vaidade;
enforcam as ovelhas, imolando-as às exigências da natureza e
às seduções do mundo; perdem as almas, arrastando-as à
descrença, ao desânimo, ao desespero. Assim, estes dois
adversários de Deus trabalham na ruína da obra do bom
Pastor; querem perder o que estava salvo, enquanto que Jesus
veio para salvar o que estava perdido.

158
Desgraçada a alma que se desgarra do seu rebanho para
seguir vozes estranhas às do bom Pastor! Mas feliz, e
eternamente bem-aventurada a ovelha fiel que persevera até
ao fim!

SEXTA-FEIRA DA II SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


"Possuo ainda outras ovelhas que não pertencem a este
aprisco; é preciso que eu as traga, e elas ouvirão a minha voz,
e haverá um só rebanho e um só pastor" (Jo 10, 16).
I — O bom Pastor não se esquece das ovelhas afastadas;
inquieta-se por elas; envolve-as com seu pensamento e as
solicitudes do seu coração. Deu sua vida pela salvação de
todos os homens, e não exclui de sua graça senão aqueles que
por si mesmos se excluem, quando recusam a graça, preferem
a vida presente aos bens imortais. Mas, como o sol brilha para
todos, assim a redenção foi oferecida por todos; devemos, por
conseguinte, segundo o exemplo de Jesus, interessar-nos pela
salvação de todos e a isso cooperarmos por nossas orações,
nossa dedicação e nossos sacrifícios.
Deixemo-nos penetrar dos desígnios da misericórdia divina
e lembremo-nos da particular recomendação dirigida por Jesus
a seus apóstolos: "Ide primeiramente às ovelhas perdidas da
casa de Israel".
II — Jesus avisa que haverá um só rebanho e um só
Pastor. Esta divina profecia se realizará quando a pregação
apostólica estiver espalhada por todos os recantos da terra e a
Igreja, vencedora das provações, consolidada na caridade para
sempre. As comunidades religiosas, que formam as diversas
partes deste imenso rebanho, devem antecipar esse importante
acontecimento: as ovelhas de elite que as compõem não estão
somente reunidas na mesma fé, na mesma esperança e no
mesmo amor; mas, desembaraçadas de toda posse particular,
de todo interesse pessoal, de toda vida própria, escapam às
causas mais ordinárias que desunem as ovelhas do mundo.
Possuem a liga evangélica que une indissoluvelmente as
almas; e, unidas por laços sobrenaturais, formam um só
coração e uma só unidade. Esta era a união característica da
Igreja primitiva; união que se deve reproduzir e perpetuar em
cada comunidade; tal será a Igreja católica inteira, nos últimos
tempos e na eternidade.

159
Contribuamos por nossa parte para a realização das
promessas divinas, por nossas fervorosas orações, por nossos
trabalhos, nossa abnegação e nossa caridade.

SÁBADO DA II SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


O cajado de Maria
I — A Igreja confere a Maria títulos correspondentes aos do
próprio Jesus Cristo; e estes títulos não são apenas honorários;
designam cargos ativos, missões reais. A vida de Maria foi
sempre um suave reflexo da vida de Jesus. Constantemente
associada a todos os atos da redenção, estreitamente ligada a
todos os desígnios da misericórdia divina, ela trabalhou, sofreu,
chorou com Jesus, recolheu todas as suas palavras, conservou
todos os seus pensamentos, partilhou de todas as suas
solicitudes; participou dos ternos e misericordiosos sentimentos
oferecidos pelo Salvador às almas. Mãe do Rei dos reis, é
Rainha; e, sob este título, governa os anjos. Mãe do bom
Pastor, é também Pastora; e nesta qualidade governa as
ovelhas. O sinal do seu poder é, a um só tempo, um cetro e um
báculo pastoral, já que é Rainha dos anjos e Protetora dos
pastores e das ovelhas.
Que havemos de fazer para lhe testemunhar o nosso
amor? Vivendo, como ela, unicamente para Deus.
II — Conquanto seja Maria a Soberana de toda a Igreja e a
Mãe de todos os fiéis, é, de modo especial, a pastora das
almas que lhe são particularmente consagradas. É ela seu
guia, sua protetora e seu modelo. Guia-as por sua vigilância
maternal e incessante solicitude; protege-as pela predileção
com que lhes reserva as pastagens mais férteis e pela vitória
que nelas alcança sobre o inimigo. Serve-lhes de modelo pelo
exemplo de sua doçura, de sua humildade, de sua fidelidade e
das outras virtudes evangélicas. A sua missão é conduzir as
ovelhas dóceis à sumidade da glória, conforme as palavras do
profeta: "Muitas virgens serão apresentadas em seu
seguimento, no trono do Rei dos reis. Elas formarão seu
esplêndido cortejo; acompanhá-lo-ão às altas regiões da luz;
inebriar-se-ão de felicidade às núpcias do Cordeiro".
Que estas divinas verdades repousem em nossos corações
e nos incitem a viver santamente sob o cajado da Virgem de
Sion!

160
III DOMINGO DEPOIS DA PÁSCOA
"Dentro em pouco não me vereis mais, e dentro em pouco
tomareis a ver-me" (Jo 16,16).
I — O pouco tempo, a que se refere Jesus, é a vida
presente, que na realidade não passa de um momento fugaz,
em relação à eternidade. "Mil anos diante de Deus são como o
dia de ontem", diz o profeta. Este momento passageiro deve,
no entanto, decidir do nosso futuro. O que é capaz de mais
fortemente estimular nossa esperança e desprender-nos das
coisas terrenas? Nosso Senhor nos consola, afirmando que
dentro em pouco o tornaremos a ver, promessa divina que
reanima os que trabalham, levanta os que caem e abrasa os
que suspiram por ver Jesus na glória.
Meditemos sobre a brevidade e a fragilidade da vida, para
nos desprendermos das sombras fugazes e nos apegarmos
aos bens eternos.
II — A vida deste mundo é uma viagem rápida. Eis por que
o apóstolo nos exorta a nos abstermos dos desejos carnais que
combatem contra o espírito, considerando-nos como estranhos
e viajantes (1 Pd 2, 11). Como estrangeiros, conservemo-nos
afastados do mundo, precavendo-nos contra o espírito de suas
máximas e de suas vaidades. Como viajantes, não nos
prendamos ao comboio que nos transporta e não
estabeleçamos nossa morada na estalagem por onde apenas
transitamos. Deixemos atrás o caminho já percorrido e
esforcemo-nos por constantemente avançar, até atingir o alvo
para o qual tendemos.
A graça nos atrai para o alto; não nos emaranhemos em
interesses mesquinhos que rebaixam o espírito, apegando-o à
terra.

SEGUNDA-FEIRA DA III SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"Os discípulos se interrogavam: Que significa isto: ainda
um pouco de tempo?" (Jo 16, 17)
I — A vida espiritual se aperfeiçoa na provação da
tribulação. Daí resultam as alternativas da ausência e da
presença de nosso Senhor Jesus Cristo, a que se refere, por
vezes diversas, o Evangelho; aplica-se aos diferentes estágios
da alma e às provações que a devem purificar. Ora a assiste o
Senhor de uma maneira sensível e permanece então em

161
alegria; ora a deixa na escuridão e ela não sente a mão que a
sustém; Jesus não diz que se afasta de nós, pois que nunca
priva as almas da graça necessária; mas retira seu apoio
visível, para espiritualizar nossa fé e excitar o fervor em nossas
orações. Quando Jesus está presente, tudo é suave, tudo fácil;
mas quando parece ausente, a virtude exige mais esforços e
adquire mais méritos.
Nessas diversas circunstâncias, a alma cristã,
conformando-se à vontade divina, encontra doce paz. Sua
constância, em meio às vicissitudes passageiras, prepara-a
para a estabilidade da futura bem-aventurança.
II — Os discípulos não compreendiam essas palavras:
"Dentro em pouco não me vereis mais e dentro em pouco me
vereis novamente". O Senhor não lhes explicou a significação
desse mistério. É pela prática e não pela teoria que as almas
humildes chegam à compreensão da verdade. Na escola do
Evangelho, a ciência se justifica pelos seus frutos; e a
disposição requerida para se adiantar na luz é a humilde
submissão do espírito. Quando se experimentam os efeitos da
presença ou da ausência de nosso Senhor, evitam-se os ex-
cessos de alegria e, ao mesmo tempo, os desfalecimentos do
desânimo.
Quer Jesus nos console ou nos mortifique, a nossa
confiança em seu amor há de ser firme e inabalável.

TERÇA-FEIRA DA III SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


"Dentro em pouco me vereis novamente, porque vou a meu
Pai"
(Jo 16, 16).
I — O Senhor consola seus apóstolos, garantindo-lhes que
dentro em breve tornarão a vê-lo, pois vai a seu Pai. Não há,
com efeito, separação para os que regressam ao lar paterno.
Onde estiver o Mestre, aí estarão os discípulos e, se
permanecermos fiéis ao seu espírito, se nos conservarmos
unidos, como membros ao seu chefe, encontrá-lo-emos na
pátria e nossa reunião será perpétua. Devemos, pois, ir ao
nosso Pai com Jesus e escalar essa estrada ascendente,
seguindo a linha por ele mesmo traçada.
II — Quem não envereda pelo caminho da pátria celeste,
extravia-se pelas sendas duvidosas deste mundo, e arrisca-se
a não encontrar nunca o Senhor. Viver sobre a terra sem

162
aspirar ao céu, é viver inutilmente e falhar ao fim para o qual
fomos criados. Não bastam as boas intenções; precisamos
unir-nos a Jesus Cristo, por uma vontade firme e perseverante.
Cada passo e cada ação nossa deverá confirmar a verdade
destas palavras: "Vou a meu Pai". Eis o que torna reta a
direção, sólida a conduta, e inspira segurança e consolo à
aproximação da morte.

QUARTA-FEIRA DA III SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"Haveis de chorar e gemer e o mundo folgará na alegria"
(Jo 16, 20)
I — As aflições desta vida são inevitáveis; trazemos em
nós sua origem e encontramo-la exteriormente no que nos
cerca, nas inimizades e nas adversidades deste mundo. O
caminho que temos a percorrer, do berço ao túmulo, é uma
série ininterrupta de sofrimentos, provenientes das separações
e rompimentos que nos levam à morte. Esta condição da
existência subjuga a raça humana inteira e ninguém a ela pode
se esquivar. Mas o traço característico dos filhos de Deus e
dos chamados filhos do século, é que os primeiros aceitam os
sofrimentos, como salutar reparação, ao passo que os outros
procuram afugentá-los o mais possível, com as distrações das
alegrias mundanas.
II — Sofrer e morrer é a partilha da humanidade. Mas esta
lei não é suficiente para adquirir direitos às recompensas
futuras. Por si só, o sofrimento é estéril, não possui virtude,
nem mérito; transformou-se em remédio e meio de salvação,
somente porque Jesus o santificou sobre a cruz e dele fez
expiação salutar. Por isto, aceito com este espírito, o
sofrimento, para o cristão, muda de nome e chama-se cruz;
une-nos a Jesus Cristo e, associando-nos à sua paixão e à sua
morte, nos fará igualmente participar de sua divina bem-
aventurança. O apóstolo prediz sofrimentos a todos os que
seguem a Jesus Cristo; mas acrescenta que as aflições
presentes não se comparam aos gozos futuros. O mundo, pelo
contrário, sacrifica as alegrias da eternidade aos fugazes
prazeres que se extinguirão com a morte e deixarão a alma em
noite eterna.

163
QUINTA-FEIRA DA III SEMANA DEPOIS DA
PÁSCOA
"Estareis em tristeza" (Jo 16, 20).
I — Há duas espécies de tristeza: uma procede do amor de
Deus, a outra do amor próprio. A primeira é um sentimento
sobrenatural que invade a alma amorosa; tristeza calma e
santa que excita as lágrimas da compunção e da prece. A outra
esconde o veneno da oposição à vontade de Deus ou de
agastamento contra o próximo ou de egoísta susceptibilidade.
É denominada na sagrada Escritura: má tristeza, porque
descolora a piedade, enerva o ânimo e desseca a vida interior.
Observa são Bernardo que a má tristeza devora a substância
da alma, como o cupim corrói a madeira.
II — Os espíritos elevados não se deixam atingir pelas
nuvens da sombria tristeza. A oração fervorosa e perseverante,
o sacramento da penitência e, sobretudo, a sagrada
comunhão, preservam-nos e livram-nos dessa tentação mortal.
Mas o melhor antídoto contra a má tristeza é a tristeza
provocada pelo amor de Deus. Com efeito, quando deploramos
nossas faltas, deixamos de nos lastimar e nossos próprios
pesares anulam-se, ao compará-los aos de Jesus Cristo.
Quando nos assaltarem pensamentos de má tristeza,
contemplemos Jesus Crucificado e peçamos-lhe que nos livre
da tentação.

SEXTA-FEIRA DA III SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


"Estareis em tristeza, mas a vossa tristeza se há de
converter em alegria" (Jo 16, 20)
I — Há uma tristeza que produz alegria e uma alegria que
germina tristeza. A alma cristã que se julga como estrangeira
neste mundo, é como que presa de misteriosa saudade.
Pressente uma felicidade que não encontra nos elementos que
a cercam; devora-a uma sede que consolo humano algum
pode satisfazer. Nestas disposições de celestial melancolia,
entristece-se pelo prolongado exílio e na oração procura a paz
que lhe traz o gozo antecipado das coisas sobrenaturais. A
alma mundana não conhece essas emoções da vida interior; os
prazeres que cobiça poderão atordoá-la, mas terão somente
como consequência amargas decepções.
II — Nosso Senhor não nos diz que nossa tristeza será
substituída pela alegria, mas sim que se transformará em

164
alegria; porque, efetivamente, contém os germes da verdadeira
felicidade, assim como a nuvem encobre o raio luminoso, como
o cálice da flor contém o perfume. Mas é preciso que a nuvem
se rasgue para que jorre a luz; que o botão se rompa para que
desabroche a flor. Da mesma forma, sobrevém a alegria à tris-
teza após as provações pelos sofrimentos e pela paciência.
A árvore da cruz destila um bálsamo que, com o tempo,
troca em doçuras todas as amarguras.

SÁBADO DA III SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


Maria é a causa da nossa alegria
I — Em Maria encontramos, no mais elevado grau,
tristezas e alegrias; pois que ela participou de todas as dores
de Jesus Cristo e partilha atualmente de toda a sua bem-
aventurança. Para devidamente calcularmos sua inefável
felicidade, nos seria necessário conhecer a medida dos seus
aniquilamentos e de suas tristezas. É, sobretudo sumamente
feliz, pela sua missão de espalhar a felicidade. Consoante as
palavras do Cântico, é seu gozo transmitir de geração em
geração as graças de que recebeu a plenitude. O salmista real
Davi contemplava-a rodeada dos filhos, sob a figura de fecunda
vinha, em meio de viçosa plantação de rebentos de oliveira (SI
127, 3).
II — A Virgem santíssima é realmente a causa de nossa
alegria, pois, por sua mediação, é que nos veio a salvação e
por suas mãos se propagam as bênçãos divinas, de geração
em geração. O Altíssimo depôs em seu coração virginal aquele
que faz as delícias dos anjos e dos bem-aventurados; paraíso
do divino amor, de onde fluem os mananciais de água viva,
onde estancam sua sede as almas sedentas de amor. É a
depositária e a dispensadora dos tesouros celestiais.
Se, portanto, nos ligarmos a Maria por laços de fervorosa
piedade, permaneceremos em sua mansão, como junto a uma
mãe que diverte os seus filhos (SI 112), e veremos realizadas
essas palavras do profeta: “Uma alegria imortal fulgirá sobre
suas cabeças e exultarão nas alegrias da eternidade” (Is 51,
11).

165
IV DOMINGO DA PÁSCOA
"Vou agora para aquele que me enviou" (Jo 16, 5).
I — Nosso divino Salvador, na ocasião de voltar ao céu,
quer dirigir nosso pensamento e nossos desejos para aquele
que é o nosso princípio e o nosso fim último. Pois é do Pai,
como de fonte única, que procede todo dom perfeito. É
igualmente ao seio do Pai que se devem lançar nossas
esperanças e ações de graças. Jesus Cristo reatou os laços de
religião, rompidos pelo pecado. Por seu intermédio prestamos
ao Pai celeste o culto de amor e adoração em espírito e em
verdade.
II — Meditemos sobre as inefáveis perfeições de Deus três
vezes santo, que não se limitou a ser nosso Criador, mas quis
ainda ser nosso Pai. Seu poder nos foi manifestado pelas
maravilhas da criação; triunfa o seu amor nos atos da nossa
redenção; sua bondade, sua misericórdia, sua providência se
revelam no encadeamento da nossa vida. Mas para fazermos
dele uma ideia justa, é preciso olhar Jesus, é preciso ouvir
Jesus Cristo: "Quem me vê, vê meu Pai".

SEGUNDA-FEIRA DA IV SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"Porque eu vos disse estas coisas, vosso coração se
encheu de tristeza" (Jo 16, 6).
I — Predissera o Senhor a seus apóstolos que passariam
por grandes tributações no mundo. Essa predição abrange
todos os cristãos; por isso não devem as tribulações espantar a
nossa fé, nem as provações diminuir a nossa confiança. Aos
pesares exteriores, no entanto, acrescem por vezes outros
mais dolorosos, que se prendem aos sacrifícios que Jesus
Cristo mesmo nos impõe, e então vemo-nos sem consolo
exterior, nem interior. Estas espécies de penas produzem,
evidentemente, efeitos salutares. Desprendem-nos, purificam-
nos e inclinam-nos mais às coisas do céu. As tribulações são
preciosos instrumentos de santificação quando aceitas de
maneira cristã, com ânimo e paciência.
II — O Deus do nosso coração se afasta ou se aproxima de
nós, conforme for preciso ao nosso aperfeiçoamento; e, em
ambas as alternativas, proporciona suas graças à nossa
fidelidade. Muitas vezes, somos nós que afastamos Jesus, e
nós que o fazemos voltar. A sagrada Escritura afirma que a

166
graça foge dos presunçosos e repousa nos humildes.
Queremos atrair Jesus e desfrutar as delícias da sua
presença? Expulsemos do nosso espírito tudo que lhe
desagrada e arranquemos do nosso coração tudo que possa
ofendê-lo. Tomemos, pois, a resolução de, quer sejamos
consolados por graças sensíveis, quer nos vejamos
molestados por privações e sacrifícios, sujeitar-nos
humildemente à vontade divina e não cessar jamais de amar,
louvar a Deus, sempre a ele implorando e nele confiando.

TERÇA-FEIRA DA IV SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


"A vós convém que eu vá, porque, se eu não for, não virá a
vós o Consolador" (Jo 16, 7).
I — O sabor do sobrenatural não pode ser apreciado por
quem ainda conserva gosto pelas coisas sensíveis e carnais. O
mesmo Jesus quis subtrair-se aos sentidos, a fim de purificar a
atração, aliás, muito natural, que por ele sentiam seus
discípulos. Eis por que a perfeição cristã tem por base a
mortificação. A carne é um prisma que decompõe a luz divina;
as miragens da natureza mesclam de ilusões perigosas as
contemplações da verdade.
Se aspiramos, pois, à visão de nosso Senhor em sua
glória, é preciso que nos apliquemos antes com afinco em
purificar nossa alma. Os corações puros, ensina-nos o
Evangelho, contemplarão as magnificências de Deus.
II — A ausência de Jesus produz na alma um sofrimento
salutar, pois este pesar traduz o desejo de sua presença. As
privações nos fazem melhor apreciar as consolações; excitam
a oração e provocam as expansões de amor. Cerremos as
portas de nossos sentidos e, concentrados nas profundezas da
nossa alma, atraiamos por fervorosos desejos os raios do
Espírito Santo, que ateiam o fogo no braseiro da piedade.

QUARTA-FEIRA DA IV SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"Enviar-vos-ei o Consolador"
I — Dá o Evangelho o nome de Consolador ao Espírito
Santo, que é uno com o Pai e o Filho na Santíssima Trindade.
Este Espírito de amor, de luz e de bondade, é o supremo
consolo da alma piedosa. Excita a sede do amor e, para
estancá-la, ensina-nos a orar como se ora no céu, a amar

167
como se ama no céu, a viver como se vive no céu. Fecunda a
semente das virtudes sobrenaturais dispostas por Jesus nos
corações, enriquecendo-os de dons celestiais. É de per si o
dom por excelência, a fonte de toda graça e consolação. Mas,
para recebê-lo e gozá-lo, cumpre que a alma se eleve acima
das atrações e das vãs alegrias deste mundo.
II — Nos desígnios da sabedoria eterna, deveria Jesus
subir para junto do Pai celeste, para descer o Espírito Santo à
terra. Não busquemos penetrar os arcanos deste insondável
mistério! Basta-nos saber que os dons do Espírito Santo
formam como que a coroação dos atos sublimes da Redenção.
Estando tudo consumado e a humanidade regenerada, podia o
Espírito Santo encher a medida do amor. O coração humano
não estará apto para receber as divinas efusões do céu, senão
depois de purificado inteiramente, pelo sagrado sangue de
nosso Senhor Jesus Cristo.

QUINTA-FEIRA DA IV SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"O Espírito Santo convencerá o mundo acerca do pecado,
acerca da justiça e acerca do juízo" (Jo 16, 8).
I — O Espírito Santo tranquiliza a alma fiel quanto ao
pecado, por tê-lo Jesus Cristo já apagado; quanto à justiça, por
havê-la Jesus satisfeito; e quanto ao juízo, por nos ter Jesus
absolvido. O pecado foi lavado pela efusão de seu sangue, a
justiça foi restabelecida pela obediência que reparou a
insubordinação primitiva; o juízo recebeu sua execução pela
sentença que Jesus quis cumprir por nós. Por uma fé viva e
confiante, retiremos um proveito eficaz dos méritos de nosso
Senhor, para que o amor vença o receio e nossa esperança se
firme inabalável na paz.
II — O mesmo Espírito convencerá a alma infiel quanto ao
pecado, pois preferiu os prazeres do mundo às expiações da
penitência; quanto à justiça, pois se apoiou em si mesma e não
participou da justificação de Jesus Cristo; e quanto ao juízo,
pois será julgada segundo suas obras e sofrerá a sentença
proferida contra o príncipe deste mundo que já foi julgado.
Sob o olhar de Deus, reflitamos sobre os motivos que
devem assegurar a alma verdadeiramente cristã e sobre os
que devem aterrorizar a alma mundana e ingrata.

168
SEXTA-FEIRA DA IV SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA
"Tenho ainda muitas coisas a vos dizer; mas não podeis
compreendê-las agora" (Jo 16, 12).
I — A divina Verdade não se faz inacessível; nosso
espírito, porém, ainda muito envolto nas brumas da terra, não
pode contemplá-la em sua plenitude. Ela se revela
gradualmente, como o sol que só é um mistério para quem
conserva os olhos fechados. Quando os próprios apóstolos só
aos poucos podiam ser iniciados nos ensinamentos do Mestre,
não seria tola presunção de nossa parte querermos desvendá-
los somente com o trabalho do nosso próprio espírito? Os
sábios da escola de Jesus não são aqueles que procuram
apenas satisfazer sua curiosidade; meditam, lêem e estudam
com o propósito de alimentar a sua fé e de aumentar o seu
amor; oram e, à medida que se tornam mais dóceis e simples,
mais se eleva seu espírito iluminado pelas luzes do alto.
II — Nosso Senhor se põe ao alcance de seus discípulos,
ensina-lhes aquilo que eles podem compreender e deixa para
mais tarde as lições que exigem mais maturidade. Este
processo interessa àqueles que têm por missão instruir e
formar almas: missão esta que requer tato, prudência e
paciência. As aptidões são várias; o que importa é conhecer-
lhes a medida para não as ultrapassar. As mesmas luzes que a
uns iluminam, a outros ofuscam. São Paulo, o grande preceptor
do Evangelho, nos ensina como se fazia "todo para todos",
imitando nosso Senhor. Com os fracos era fraco, com os
pequenos, pequeno. Às crianças alimentava com leite e aos
adultos distribuía o pão dos fortes.
Empreguemos, no serviço de Deus, idêntico discernimento
e igual condescendência.

SÁBADO DA IV SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


Maria é bem-aventurada porque creu
I — A Virgem santíssima ouviu, tomada de emoção, as
revelações sublimes trazidas pelo arcanjo são Gabriel. Mas,
por mais incompreensíveis que lhe parecessem os mistérios
anunciados, não julgou, não exigiu demonstrações, nem
razões, nem provas. Sua fé, dócil e humilde, contrasta com as
discussões travadas entre a mulher orgulhosa e o tentador. A
incredulidade de Eva trouxe à terra a insubordinação e a morte.
Maria, por sua submissão, reatou os laços de confiança e de

169
dependência do homem para com Deus. Foi proclamada bem-
aventurada, e duplamente bem-aventurada, pois da felicidade e
da glória, que encontrou em sua fé, tornou participantes todos
os que a seguem pela vereda humilde e submissa que
inaugurou.
II — Se encontramos pontos obscuros nos ensinamentos
da religião, fiquemos certos de que a falta de luz provém do
nosso espírito ou das explicações insuficientes que recebemos,
mas nunca da religião, onde tudo é claro e sem nuvens.
Quando sucumbir nossa razão, sob a majestade dos mistérios
divinos, refugiemo-nos, como Maria, na adesão confiante e
total da nossa fé, unindo nosso espírito ao de Deus e nossa
vontade à vontade de Deus. Então a fé depõe em nós os
princípios da verdadeira ciência e o Espírito Santo, fecundando
a palavra conservada no fundo do coração, faz daí jorrar a luz
em fluxos de paz, de santidade e de ventura.

V DOMINGO DEPOIS DA PÁSCOA


"Se pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu nome, ele
vo-la dará" (Jo 16, 23).
I — A oração é a completa efusão do nosso coração no
Coração de Deus; ela deve prender todas as potências de
nossa alma ao amor eterno. É, sob este ponto de vista, uma
comunhão contínua, perpétua. Mas não basta pronunciar o
nome de Jesus para se obter o que se requer, é preciso que
nossa vontade esteja tão identificada com a de nosso Senhor
que, sob o olhar do Pai celeste, e ante o trono da graça, nosso
nome de cristão se confunda, por assim dizer, com o nome de
Jesus Cristo. Então oramos realmente em seu nome e as ora-
ções sugeridas pelo Espírito de Deus alcançam as graças.
II — O Mestre divino, ao unir nossas orações às suas,
conferiu-lhes uma espécie de onipotência; pois nada é
impossível à alma crente. Ela possui a chave do céu, abre os
tesouros do Coração de Deus, bebe na fonte da graça.
Observemos que, ao orarmos em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo, não pedimos senão o que pede o Filho de Deus;
nossas orações teriam por único objetivo a glória de Deus e o
bem das almas.
A graça mais digna de ambição é a da realização dos de-
sejos de Jesus. Esta graça encerra todas as outras; se
pedirmos, seremos atendidos.

170
SEGUNDA-FEIRA DA V SEMANA DEPOIS DA
PÁSCOA
"Pedi e recebereis" (Jo 16, 24).
I — A primeira disposição para bem orarmos é nos
comunicarmos interiormente com aquele que nos ouve e nos
atende. Animados da mais humilde confiança e sem
abundância de termos, exponhamos nossas necessidades,
desejos e sentimentos, tais como ele os vê e conhece. Se a
expansão provoca palavras, o recolhimento exige silêncio.
Convém alternar estes dois movimentos. Depois de abrir a
boca para pedir, deve-se abrir o coração para receber; depois
de falar, deve-se escutar; e o melhor meio para ser atendido é
executar fielmente o que Deus quer de nós.
Santa Teresa compara a oração "à respiração do coração
que aspira a graça e exala a gratidão". Foi assim a oração do
discípulo amado, quando, reclinado sobre o peito do Salvador,
sorvia a vida divina.
II — A segunda condição para orar com eficácia é
harmonizar de antemão a nossa vontade com a vontade do Pai
que, por vezes, atende de modo diverso ao que havíamos
desejado. Sua sabedoria divina retifica os nossos desejos
imprudentes; transmuda, com vantagem para nós, a esperança
diferida, e concede-nos em tempo oportuno àquilo que
havíamos implorado em ocasião imprópria.
Não pretendamos conformar a vontade de Deus à nossa,
mas conformemo-nos à sua e concluamos nossas orações com
estas palavras de Jesus: "Seja feita a vossa vontade e não a
minha".

TERÇA-FEIRA DA V SEMANA DEPOIS DA PÁSCOA


"Pedi e recebereis, para que vossa alegria seja perfeita"
(Jo 16, 24).
I — A alegria perfeita consiste no gozo de Jesus, pois ele é
o foco do amor e da luz; ele faz a delícia dos anjos; nele reside
a plenitude da vida. Mas essa alegria pura e suave, que emana
do seu Coração, não tolera a promiscuidade com os grosseiros
prazeres da terra; só apraz derramar-se nas almas delicadas
que pairam acima das concupiscências da carne e do sangue.
Devemos nos fazer violência e energicamente romper com as
cadeias do mundo, para podermos comunicar-nos intimamente
com Deus e nele fruirmos as alegrias do céu.

171
II — O reino de Deus está dentro de nós, e é em nosso
coração que estabelecemos uma viva relação com aquele que
se intitula: o Deus do nosso coração. À proporção que essa
relação se torna mais íntima, aumentam e dilatam-se as
alegrias. Pois, assim como mais fortemente se experimenta o
calor e a luz do sol quanto mais aos seus raios nos expomos,
estreitando-se as nossas relações com Jesus Cristo, havemos
de sentir uma felicidade tal que ultrapassa toda palavra, todo
pensamento. "Que poderei desejar no céu e sobre a terra, se-
não vós, ó meu Deus, que sois o Deus do meu coração e
minha partilha para a eternidade?"

QUARTA-FEIRA DA V SEMANA DEPOIS DA


PÁSCOA
"Glorifiquei-vos na terra; cumpri a missão que me
confiastes"
(Jo 17, 4).
I — A missão de Jesus foi anunciada pelos anjos, desde o
seu nascimento. "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos
homens de boa vontade". Glória e paz! Eis, pois, dois frutos do
Evangelho. Como Filho de Deus, concedeu nosso Salvador
aos homens a paz do céu; como Filho do homem, rendeu a
Deus a glória da terra. Glorificou a Deus, resgatando a dívida
humana; pacificou o homem, restituindo-lhe a graça de Deus.
Por sua vida e sua morte, por sua ressurreição e sua
ascensão, restabeleceu a harmonia entre o céu e a terra. Qual
o cristão que, ao recapitular tais maravilhas, não se sentiria
enlevado de admiração e de gratidão?
II — Os discípulos de Jesus são chamados a continuar
neste mundo a obra do divino Mestre. Viver e morrer pela glória
de Deus e pela salvação das almas, eis a nossa missão. Se
fosse chegada a hora da prestação de contas da nossa vida ao
Pai celestial, poderíamos, em consciência, responder-lhe:
"Cumpri a missão que me confiastes"? Oh! Como são dignos
de lástima os que, de mãos vazias, se apresentam ante o
Senhor!
Estamos na terra para nos santificar, a fim de concor-
rermos com Jesus Cristo em glorificar a Deus e em salvar as
almas. É sob esta exclusiva condição que o cristão atravessa
pacificamente a morte para seguir o Salvador em sua celestial
ascensão.

172
QUINTA-FEIRA ASCENSÃO DO SENHOR5
"O Senhor Jesus, após dirigir suas últimas instruções aos
seus apóstolos, elevou-se ao céu" (Mc 16, 19).
I — Contemplemos em espírito tão maravilhoso espetáculo!
O Filho de Deus, que se fez filho do homem, sobe ao mais alto
do céu e leva a natureza humana aos esplendores da glória!
Mistério cheio de sublimes consolações! Pois, onde está o
Mestre, aí estarão seus membros; onde estiver o nosso
tesouro, aí estarão os nossos corações. Jesus Cristo mesmo
nos afirma que prepara nosso lugar na celestial mansão.
Bendigamos a cruz que nos abriu tão magníficas perspectivas!
Purifiquemo-nos, santifiquemo-nos sobre a terra, para que,
com o olhar e as asas da águia, possamos chegar ao termo
inefável do nosso destino, subir até ao sol do amor, onde
viveremos eternamente.
II — Jesus se abateu ao nível dos pecadores; por isto se
elevou acima de todos os tronos e hierarquias dos anjos. Sua
cruz tornou-se um cetro de glória; sua coroa de espinhos, uma
auréola de luz; sua vestimenta de ignomínia, um manto real e a
amargura que inundou sua alma, transformou-se em torrentes
de delícias. Todas essas transformações hão de se reproduzir
nos discípulos que seguirem o Mestre.
Ó minha alma! Pensa que és estrangeira neste mundo, que
o céu é tua pátria e que, se carregares tua cruz com Jesus
Cristo, participarás de sua ascensão e de seu triunfo pelos
séculos sem fim!

SEXTA-FEIRA DEPOIS DA ASCENSÃO


"Não vos demoreis mais a olhar para o céu! Jesus voltará
como o vistes subir" (At 1, 11).
I — Aqueles que são chamados à vida ativa devem
renunciar às delícias da contemplação, todas as vezes que as
funções do seu ministério o exijam. O céu será a recompensa
dos seus sacrifícios. O inflexível dever, o trabalho, os desvelos
da caridade, devem passar sobre as delícias do descanso. O
Senhor avisa que voltará à terra para recolher os frutos das
nossas obras; seu julgamento fixará nosso lugar na eternidade.

5
No atual calendário litúrgico, a celebração da Ascensão do Senhor
acontece no domingo que antecede o domingo de Pentecostes (confira
Observações, pág. 7).

173
Este é o pensamento que nos deve ocupar, ainda nas mais
favoráveis circunstâncias, pois o nosso futuro depende do atual
emprego dado à graça e aos dons de Deus.
II — Após a ascensão do divino Mestre, os discípulos não
se apressam em publicar as maravilhas de que foram
espectadores; retiram-se à solidão, e se preparam para seus
trabalhos apostólicos. Compreendem a necessidade do
recolhimento e da oração para se fortificarem na graça que a
vida ativa reclama. Mas, antes de se separarem, estreitam
ainda mais os laços fraternos que os unem na divina caridade.
Unamo-nos a nossos pais na fé e peçamos com Davi:
"Enviai-me, Senhor, o vosso Espírito Santo; criai em mim um
coração puro e tornar-me-ei um novo homem, pois sois vós
que renovais toda a face da terra".

SÁBADO DEPOIS DA ASCENSÃO


Maria no dia da Ascensão
I — Representemo-nos os discípulos, inebriados de gozo,
acorrendo onde está a Virgem e rodeando-a como criancinhas
à mãe querida. Fazem a narração da cena maravilhosa da
ascensão. Maria, cercada de suas companheiras, sente-se
tomada por indizível gozo. Ela conhecia esse glorioso mistério
pela revelação dos profetas e, sem dúvida, contemplara-o com
seus próprios olhos. Mas sua alegria é calma, domina-se; e em
suas maiores venturas, como nos abismos de dor, conserva-se
serena, humilde e tranquila.
Que glória! Que felicidade termos por Mãe aquela cujo
Filho reina no céu!
II — Dupla é a causa da alegria da santíssima Virgem:
Jesus está no céu e o céu está aberto para o homem.
Transportes de amor divino! Transportes da divina caridade!
Maria, com uma das mãos, toca o trono de Deus; com a outra,
chama, atrai, anima os filhos que Deus lhe confiou. Seu
coração tornou-se a porta do céu. Quão vivas deviam ser as
expansões das filhas de Sião, que haviam antes tão
profundamente partilhado as tristezas e as lágrimas de Maria!
Um dia teremos também parte nessas transbordantes
alegrias, se nos sacrificarmos na casa do Senhor, onde nos
exercitamos na paciência e na esperança. Permaneçamos,
pois, firmes nas contrariedades, humildes na prosperidade,
calmos e submissos em todas as provações da vida.

174
DOMINGO NA OITAVA DA ASCENSÃO
"Quando vier o Espírito da verdade, ele dará testemunho
de mim"
(Jo 15, 26).
I — O Espírito Santo, que é o amor eterno procedendo do
Pai e do Filho, desperta em nós a compreensão da verdade.
Ilumina nossa fé, revela Jesus Cristo no fundo do nosso
coração e faz-nos saborear, com particular unção, a doutrina
das coisas sobrenaturais. Essa luz interior ilumina todos os
ensinamentos da Igreja; dá ao espírito profundas convicções e
à vontade, forças vitoriosas. O testemunho do Espírito Santo
não se apoia sobre demonstrações humanas; fala com divina
autoridade; mas instrui somente as almas humildes e retas.
II — O Espírito Santo fala dentro em nós, mas dá também
testemunho exterior de si, pela pregação evangélica; e ambos
esses testemunhos — interior e exterior — ensinam as
mesmas verdades. São duas harpas cujas cordas sagradas
vibram ao mesmo sopro e modulam a mesma melodia.
Sejamos dóceis a essas divinas lições, quer nos
emocionem interiormente o coração, quer impressionem o
nosso espírito por evidentes demonstrações. A teologia que
aprendemos nesta alta escola inicia-nos no conhecimento de
Jesus Cristo e na prática do seu amor.

SEGUNDA-FEIRA NA OITAVA DA ASCENSÃO


"E vós também dareis testemunho de mim, pois que
estivestes comigo desde o começo" (Jo 15, 27).
I — Os apóstolos, assim como os astros, receberam a
missão de iluminar o mundo; mas, conquanto houvessem sido
testemunhas de todos os atos da vida pública de Jesus,
somente manifestaram seu testemunho depois de
transformados pelo Espírito Santo. As obras de Deus não são
operadas nem pelo zelo, nem pela ciência, nem pelos surtos da
eloquência. A fecundidade vem do alto; e todo trabalho
permanece estéril, se a virtude de Deus não o fizer frutificar. O
nosso ministério, seja ele qual for, não poderá ser
desempenhado com êxito, se deixarmos de atrair, com
profunda humildade, as graças do Espírito Santo.
Confessemos nossa nulidade, mas digamos logo com são
Paulo: tudo posso naquele que me conforta.

175
II — Os obreiros apostólicos não se devem limitar à missão
de ensinar a doutrina da salvação; têm, sobretudo de tornar
Jesus Cristo conhecido e amado. Para conseguir tal fim, seu
ministério os obriga a confirmar pelas obras o testemunho de
suas palavras. Necessário fosse o testemunho do sangue, era
preciso lembrar-se que o martírio é a gloriosa confissão da
verdade e a prova suprema do amor. Os discípulos do
Evangelho, ardendo nas chamas do Espírito Santo, devem
estar dispostos a sofrer e morrer por Jesus Cristo, pela glória
de Deus e pela salvação de seus irmãos.

TERÇA-FEIRA NA OITAVA DA ASCENSÃO


"Expulsar-vos-ão das sinagogas" (Jo 16, 2).
I — Ao iniciar seu ministério, deveriam os apóstolos
recordar-se das palavras de Jesus, no tocante às contradições
e sofrimentos que haveriam de encontrar. Certamente que os
discípulos não seriam tratados de modo diverso do Mestre;
seriam vítimas do ódio inexorável do espírito do mundo.
Devemos estar preparados para o combate. E são Pedro
acrescenta ainda que as tribulações devem ser para nós
motivos de verdadeira alegria. "Não desanimeis, nos diz,
quando fordes provados pelas aflições, como se vos
acontecesse algo de extraordinário; mas alegrai-vos por
participardes dos sofrimentos de Jesus Cristo, a fim de
compartilhardes da sua beatitude no dia da manifestação da
sua glória".
II — Eram os apóstolos homens tímidos e covardes; mas,
desde que receberam o Espírito Santo, mostraram-se cheios
de força sobrenatural. Que a evidência da nossa fraqueza e
incapacidade não sirva de pretexto para nos recusarmos ao
trabalho; somos discípulos de Jesus Cristo, e sob este título
temos por missão edificar nosso próximo e santificarmo-nos. A
graça de Deus será sempre proporcionada à nossa fidelidade;
havemos de hauri-la com fartura na oração e nos sacramentos.
Amparados pelas mãos de Deus que nos sustém e guia,
venceremos os obstáculos, suportaremos as fadigas,
glorificaremos nosso Pai celeste por nossa vida e por nossa
morte.

176
QUARTA-FEIRA NA OITAVA DA ASCENSÃO
"E vos farão isto porque não conheceram nem o Pai, nem a
mim"
(Jo 16, 3).
I — Consideremos compassivamente a cegueira dos que
não conhecem nem o Pai que está no céu, nem o Salvador que
lhes veio trazer a paz. Esta cegueira é a causa mais comum
das oposições e ingratidões que os operários evangélicos
encontram entre os homens. Mas enquanto estes pagam o
bem com o mal, nosso Senhor nos ordena o contrário: pagar o
mal com o bem. Suas perseguições injustas exercitam nossa
paciência, e sua malícia excita nossa caridade. É óbvio que a
caridade não nega o mal; lastima apenas aqueles que lhe
servem de instrumento; penaliza-se ao pensar nos castigos
que os aguardam, e ora pela sua conversão.
A oração pelos pecadores é um apostolado; está no
pensamento do divino Salvador, que não quer a condenação
de nenhuma alma e que, assaz frequentemente, transforma
grandes pecadores em santos e mártires.
II — As perseguições, as humilhações e os sofrimentos são
infinitamente mais vantajosos para a santificação do que os
sucessos e a prosperidade. É mais para recear o espírito do
século, quando nos ama e exalta, do que quando nos repele e
obriga a desprezá-lo. Trabalhamos mais pura e generosamente
sob o olhar de Deus unicamente, do que quando procuramos
satisfazer os homens. As consolações divinas crescem à
proporção que recuam as humanas.
Saibamos retirar frutuoso proveito das tribulações
quotidianas e disponhamo-nos a sofrê-las ainda maiores, se
tais forem os desígnios da Providência.

QUINTA-FEIRA NA OITAVA DA ASCENSÃO


"Ora, eu vos disse estas coisas, para que, quando chegar
esse tempo, vos lembreis que vo-las disse" (Jo, 16, 4).
I — O divino Salvador quis que seus apóstolos conhe-
cessem de antemão os sofrimentos inerentes à sua missão;
estes avisos são igualmente dirigidos a todos que se dedicam à
edificação das almas. São todos chamados a carregar a cruz e
devem, portanto, se preparar para a vida de abnegação e de
sacrifícios. Encaremos seriamente nossa vocação para cumprir
todos os seus deveres. Não é apenas nossa salvação que está

177
em jogo, mas igualmente a daqueles que estão sob nossa
responsabilidade. Ninguém se salva sozinho, pois as almas for-
mam uma cadeia entre si. A nossa influência poderá ser boa ou
nefasta, segundo o espírito a que obedecemos.
II — A missão sempre eficaz, em qualquer circunstância e
em qualquer situação, é a do bom exemplo. O apóstolo quer
que utilizemos em benefício de nosso próximo o dom com o
qual fomos favorecidos, e que unanimemente concorramos
para fazer prevalecer o espírito de Deus. "Quando falardes,
seja como se Deus falasse por vossa boca. Quando
cumprirdes vossa obrigação, seja como se a virtude de Deus
agisse por vosso intermédio", assim fala o apóstolo. Se tiverdes
que sofrer, sofrei como membros de Cristo. Assim a vossa
missão se tornará santa para vós, salutar para o próximo e
gloriosa para Deus.

SEXTA-FEIRA APÓS A OITAVA DA ASCENSÃO


"Os apóstolos, animados por um mesmo espírito,
perseveraram em oração, com Maria, a Mãe de Jesus" (At 1,
14).
I – Escoavam-se os dias de retiro no Cenáculo e, no
entanto, não se realizavam as promessas de Jesus e nem uma
graça extraordinária se manifestava. Apesar de tudo,
perseveravam os apóstolos em oração; esperavam sem
esmorecimentos e sem impaciência.
Imitemos tão grande exemplo; não pretendamos recolher já
no princípio da oração e dos trabalhos o consolo que, as mais
das vezes, nos está reservado para o fim.
II — Se se prolongam as nossas provações, se é árida
nossa oração, se vemos retardadas as nossas esperanças,
recorramos a Maria, como à estrela que cintila em meio das
nuvens. Não poderá sua assistência falhar àquele que com
humilde submissão a invocar. As palavras de Jesus hão de se
cumprir fatalmente; mas assim como a terra precisa ser bem
arada antes de receber a semente, do mesmo modo a cruz
deve alegrar profundamente as almas, para torná-las frutuosas
e fecundas.
Recorramos à poderosa intercessão de Maria, a fim de
obter a graça de aguardar em silêncio a salvação. Somente os
que perseverarem até ao fim é que serão atendidos e
coroados.

178
SÁBADO, VÉSPERA DE PENTECOSTES
A Virgem Maria em retiro no monte Sião
I — Transportemo-nos em espírito a essa casa abençoada,
onde, cercada pelos discípulos, se encontrava Maria, sua Mãe
e Soberana. Fora nesse monte que Jesus lavara os pés a seus
apóstolos; aí tinham comido o cordeiro pascal; aí fora instituído
o sacramento da Eucaristia; aí formou-se o berço da Igreja;
sobre esse monte Sião desceu o Espírito Santo sob a forma de
línguas de fogo, sobre os primeiros cristãos. Frisa o
Evangelista que os discípulos perseveravam unanimemente
em oração, com as santas mulheres e com Maria. Este texto,
onde, em último lugar, se lê o nome de Maria, é um tes-
temunho de sua incomparável humildade. A primeira quis ser a
última. No declínio de sua vida terrestre, quando já reina seu
Filho no céu, assim como no início de sua carreira, quando em
seu casto seio concebeu o Filho de Deus, ela se compraz em
ser a humilde escrava do Senhor!
II — Consideremos o purificado amor de Maria santíssima,
a sua extraordinária dedicação aos discípulos de Jesus! Mas,
também, que sentimentos de filial ternura, que veneração não
deveriam eles tributar à Mãe do seu amado Salvador! Ora, o
que Maria foi para eles, é igualmente para nós; e nós devemos
ser para Maria o mesmo que eles foram. As relações são as
mesmas; subsistem na Igreja e perpetuam-se para renovar
sempre e por toda parte os mesmos frutos de piedade.
Poderia alguma filha de Sião deixar de ser humilde,
fervorosa e de se julgar feliz sob o teto de Maria?

DOMINGO DE PENTECOSTES
"Viremos a ele e faremos nele nossa morada" (Jo 14,23).
I — Consideremos a analogia existente entre o
Pentecostes cristão e o do antigo Testamento. Cinquenta dias
após a ceia do Cordeiro pascal, Moisés promulgou sobre o
monte Sinai a lei que ordena ao homem amar a Deus. Esta lei,
gravada em tábuas de pedra, era apenas a fórmula da lei viva,
inscrita no coração do homem. Cinquenta dias após a Páscoa
cristã, o Amor se manifesta não em figura, mas em substância
e verdade. Penetrou em nossos corações para acender dentro
de nós o amor que a lei escrita ordenara e promulgara.

179
Transportemo-nos em espírito ao Cenáculo, no Monte
Sião, e mendiguemos algumas fagulhas daquelas chamas
divinas que abrasaram o coração dos discípulos.
II — O Espírito de Deus, sendo um espírito puríssimo, dá-
se somente às almas purificadas, isto é, que se despem da
natureza sensível e vivem unicamente para “o céu”. Ali não
poderia haver contato do espírito da verdade com o da mentira,
entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal. Eis por que o
mundo não pode conceber, nem compreender, nem apreciar as
coisas de Deus.
Se aspiramos receber as delicadas efusões do Espírito
Santo, renunciemos ao amor próprio, ao espírito do século;
amemos o que é do céu e busquemos o que é eterno.

SEGUNDA-FEIRA DA X SEMANA DO TEMPO


COMUM6
"Aquele que me ama guarda a minha palavra e será amado
por meu Pai" (Jo 14, 21).
I — O Salvador de nossas almas nos pede uma prova de
amor. E esta prova única é a homenagem de nossa
obediência. Acolher a palavra divina, realizar o que ela
prescreve, eis como atestar a união do nosso coração com o
de Jesus. As demonstrações exteriores não bastam; o fervor
sensível não passa, frequentemente, de mera exaltação da
natureza ou da imaginação; mesmo as consolações espirituais
são tantas vezes ilusórias! Mas o cumprimento da vontade de
Deus, a pronta obediência... eis a grande, a irrefutável prova de
amor!
Não nos limitemos a amar somente de boca e de palavras,
nos diz são João; mas amemos em ações e em verdade.
II — Jesus Cristo dá uma consoladora certeza ao que
guarda a sua palavra: "Meu Pai o amará". Daí, concluímos que
nossa obediência não prova apenas que amamos, mas
também que somos amados. E vivendo assim de amor e de

6
Na edição original de 1941, aqui se encontrava: Segunda-feira de
Pentecostes. Adaptando ao novo calendário litúrgico, colocamos tal
período como sendo do Tempo Comum, e a numeração da semana
segue a sequência da última semana anterior à Quaresma. (Vide
Observações, pág. 7)

180
obediência, teremos direito a nos considerar verdadeiros filhos
de Deus, herdeiros do céu e co-herdeiros de Jesus Cristo.
Só à alma obediente será permitido afirmar: Amo e sou
amada.

TERÇA-FEIRA DA X SEMANA DO TEMPO COMUM


"Dar-vos-ei um coração novo e colocarei um novo espírito
no meio de vós" (Ez 11, 19).
I — O Espírito Santo, que instantaneamente transformou
os apóstolos, produz nas almas cristãs, gradualmente,
transformação análoga. Renova, por assim dizer, a substância
do coração, sobrenaturaliza os afetos e todas as potências do
pensamento. A vida celestial, que se inflama sob a ação desse
fogo sagrado, aperfeiçoa os sentimentos naturais, desenvolve-
se no amor de Deus e dilata-se na caridade fraterna. O rei-
profeta suplicava essa renovação quando exclamava: "Senhor,
criai em mim um coração novo e concedei-me um espírito
reto!".
II — Quando o coração é renovado pelo espírito de Deus,
todos os sentimentos se elevam, todas as faculdades da
inteligência assumem uma diretriz superior. Porque um coração
amoroso é uma vista que vê; e quando é puro, contempla a luz
da verdade ao mesmo tempo em que se abre à chama do
amor. Ensina-nos o Evangelho que Deus jamais recusa o bom
espírito à nossa humilde oração.
Imploremos insistentemente esse espírito de sabedoria;
atraiamo-lo ao íntimo da nossa alma, para que nos purifique,
aqueça e ilumine. Alcançaremos infalivelmente esse dom, se,
com vontade sincera e firme, nos apegarmos à palavra de
Jesus Cristo.

QUARTA-FEIRA DA X SEMANA DO TEMPO COMUM


"Os apóstolos se puseram a falar em diversas línguas,
conforme o Espírito os fazia falar" (cf. At 2).
I — Encarregados de ensinar o Evangelho a todas as
nações da terra, receberam os apóstolos, com o dom das
línguas, todas as outras graças necessárias ao desempenho
de sua missão divina. Ora, aquilo que operou o Espírito Santo
em favor dos primeiros discípulos, reproduz constantemente,
sob formas diversas, nos que trabalham na edificação das
almas. Há graças especiais ligadas a todos os estados, a todos

181
os ofícios; se, pois, a obediência nos conferir um cargo na casa
de Deus, podemos contar com a assistência divina e o nosso
êxito será em proporção à nossa fidelidade.
VIII — Os apóstolos principiam sua missão cheios de
confiança e valor. Ensinam as verdades do Evangelho sem a
menor atenção ao espírito do século, nem à própria segurança.
Anunciam Jesus crucificado, sem temor e sem respeito
humano, de todo indiferentes quer às censuras, quer aos
louvores humanos. Têm unicamente em vista o mandato do
Mestre e a salvação dos seus irmãos. Eis como a caridade
executa as obras de Deus; e, por nosso lado, contribuiremos
para esse fim, se trabalharmos na obediência como dóceis
instrumentos sob a direção do Espírito Santo.
Encaremos de um lado os deveres da nossa vocação e, de
outro, as graças que nos são dispensadas para, zelosa e
abençoadamente, servirmos ao Senhor.

QUINTA-FEIRA DA X SEMANA DO TEMPO COMUM


"Os fiéis viviam juntos em perfeita união e possuíam tudo
em comum" (cf. At 2, 44 ss).
I — Consideremos a vida dos israelitas fiéis que com-
punham o núcleo primitivo da Igreja. Unidos pela caridade
divina, abraçam todas as regras da perfeição evangélica e,
desprendidos da terra, nada temem, nem as perseguições,
nem os sofrimentos, nem a morte. Sua travessia por este
mundo é apenas para se prepararem para a eterna felicidade.
Para atingirmos esta eminente santidade, precisamos pôr em
prática a condição imposta por nosso Senhor: "Quem quiser
ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e
siga-me". E acrescenta o Evangelho: "Aquele que não
renunciar a tudo quanto possui, não poderá ser discípulo de
Jesus Cristo".
II — A caridade evangélica, unindo todos os fiéis em um só
coração, não se baseia sobre a simpatia e as atrações da
natureza, pois une entre si, num só coração, todos os fiéis. A
multidão dos primeiros cristãos compunha-se de homens e
mulheres de idades diversas, de vários climas e
nacionalidades, de condições diferentes; tinham a animá-los o
mesmo espírito de amor descido do alto, que os prendiam uns
aos outros e todos juntos a Jesus Cristo, como centro de sua
vida. Entre eles tudo era em comum: ninguém vivia

182
exclusivamente para si; desconhecia-se o — meu e o teu —
funesta causa das divergências que dilaceram as sociedades
humanas. Cada indivíduo participava do bem-estar de todos e
todos contribuíam para a felicidade de cada um.
Compreendamos esta vida sobrenatural, para oferecermos
aos anjos e aos homens o espetáculo de uma comunidade
santa e perfeita.

SEXTA-FEIRA DA X SEMANA DO TEMPO COMUM


"Disse-lhes Pedro: Recebereis o dom do Espírito Santo" (At
2, 38).
I — O Espírito Santo, que desceu sobre os apóstolos no
dia de Pentecostes, dá-se às almas fiéis pelo sacramento da
confirmação; e conquanto os dons celestiais lhes sejam
comunicados com menor brilho, não subsistem com menos
realidade. Recebemos as graças do espírito de inteligência e
de sabedoria, do espírito de conselho e de fortaleza, do espírito
de ciência, de piedade e de temor de Deus.
O grande trabalho, bem como a honra da vida cristã,
consiste em desenvolver estas centelhas ocultas sob a cinza e
delas fazer surgir o facho das virtudes.
II — A principal virtude que o Espírito Santo faz
desabrochar nas almas é a caridade. Segundo interpreta santo
Agostinho, é ela o fruto a que se refere o Salvador quando fala
aos seus discípulos: "Eu vos escolhi e vos enviei para que
produzísseis o fruto e que o vosso fruto subsista eternamente".
Este fruto é o amor celestial que nos faz amar a Deus e a
nossos irmãos; contém a semente de todas as virtudes
evangélicas, entre as quais, cita são Paulo: a alegria, a paz, a
longanimidade, a benevolência, a mansidão, a bondade, a
confiança, a continência, a castidade.
Tais são as flores da caridade sobrenatural que
desabrocham nos corações fecundados pelo Espírito Santo.

SÁBADO DA X SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria no Cenáculo
I — Se o Espírito Santo, ao descer ao Cenáculo, confirmou
os discípulos em sua vocação, conferindo-lhes graças
apropriadas a seu ministério apostólico, é justo que haja
operado na Virgem as maravilhas que a tornaram capaz de
preencher sua missão maternal. Tendo sido divinamente

183
estabelecida como Mãe dos fiéis, recebeu em dia de
Pentecostes a plenitude dos dons que caracterizam uma Mãe
divina; e desde esse momento transformou-se o seu coração,
cheio de graça, em inextinguível fonte de caridade, de
misericórdia e de ternura. Suas solicitudes são as mesmas do
próprio Jesus; com ele delas participa; e nós também nelas
teremos nossa parte, no grau da nossa união com Jesus
Cristo.
Quanto mais ligados estivermos a nosso Senhor como
membros a seu chefe, maior direito possuiremos de dar a
Maria o nome de Mãe; e ela, mais ainda, nos há de envolver no
carinho com que uma Mãe ama seus filhos.
II — Diz a Escritura que o sol cercou a mulher; isto significa
que o amor divino possuiu Maria inteiramente; de modo que, se
os apóstolos iniciaram sua missão pregando com línguas
inflamadas, Maria cumpriu a sua amando-nos com um coração
de fogo, dando exemplo às filhas de Sião que com ela estavam
no Cenáculo, tendo igualmente recebido o Espírito Santo, para
exercerem o apostolado da caridade e da oração.
Vinde, Espírito Santo! Baixai sobre aqueles que pregam a
vossa palavra, sobre aqueles que a escutam e sobre aqueles
que a praticam, para que todos aprendam cada vez melhor a
conhecer, a amar e a servir a nosso Senhor Jesus Cristo!

DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE


"Ouve, Israel! O Senhor teu Deus, é um Deus único" (Dt 6,
4)
I — Penetremos no pensamento profundo da Igreja que
coloca o mistério augusto da Trindade em seguida a todas as
solenidades do ano cristão. É com este dogma que se encerra
a série de festas, como última finalidade. Deus é o princípio e o
fim de todas as coisas, é o autor da criação, da redenção e da
santificação do homem. Para ele convergem todos os atos de
adoração e de gratidão. Não procuremos sondar a majestade
do mistério divino; mas, na qualidade de criaturas de Deus, de
filhos de Deus, de servos e servas de Deus, prestemos à
santíssima Trindade a tríplice homenagem: de amor, de
sacrifício e de obediência.
II – Alcemos nosso olhar acima das coisas visíveis, para
contemplarmos, no mistério da santíssima Trindade, o Deus
único e três vezes santo: "Deus é amor!" Amou desde toda a

184
eternidade: por conseguinte, antes da criação, não poderia ter
amado senão a si próprio. Deus amando e Deus amado são,
pois, os dois primeiros termos desse inefável mistério. Mas a
esses dois termos unem-se o terceiro, o Espírito Santo, amor
substancial procedendo eternamente de um e de outro, como a
viva e mútua comunicação do Pai e do Filho; três termos
distintos na unidade da natureza divina, fonte de toda vida,
causa inicial do que existe.
Amemos e adoremos nosso Deus, de toda nossa alma, de
todo nosso espírito, e de todas as nossas forças, repetindo
com a Igreja: "Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo nos
séculos dos séculos!".

SEGUNDA-FEIRA DA XI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Todo poder me foi dado no céu e na terra" (Mt 28, 18).
I — O Filho de Deus, fazendo-se filho do homem, possui a
plenitude do poder no céu e na terra; e associa os apóstolos a
esse poder, para propagarem no mundo a obra da redenção.
Envia-os a todas as nações da terra, para, em seu nome,
levarem a graça da remissão dos pecados e os dons do céu.
Admiremos a magnânima bondade do Salvador! Não se serve
da sua onipotência para castigar os crimes dos homens e
forçá-los a satisfazer à justiça divina: chama-os à penitência e
oferece-lhes o perdão.
Não nos limitemos a guardar somente para nós esses
imensos benefícios; concorramos para que outros também os
gozem e imitemos a liberalidade de nosso Senhor,
consagrando nossa vida à felicidade alheia.
II — O Altíssimo possui, só, um poder infinito. Diz uma
palavra e tudo é criado; ordena, e tudo se cumpre. Mas quando
escolhe homens para trabalhar em sua obra, delega-lhes, em
graus diversos, uma participação ao seu poder, o que provocou
esta exclamação de são Paulo: "Tudo posso naquele que me
conforta!" A mais fraca e tímida criatura, quando unida a Jesus
Cristo, participa, por assim dizer, do poder criador. O Senhor se
compraz, mesmo, em demonstrar a força do seu braço,
servindo-se de débeis instrumentos, a fim de, com maior brilho,
manifestar as maravilhas do seu poder.

185
Jesus Cristo venceu satanás e o mundo; nele apoiados,
seremos maiores do que o mundo, mais fortes do que satanás
e triunfaremos de todos os poderes do inferno.

TERÇA-FEIRA DA XI SEMANA DO TEMPO COMUM


"Sede misericordiosos, assim como vosso Pai celeste é
misericordioso" (Lc 6, 36).
I — O primeiro efeito da bondade infinita, quando aliada ao
supremo poder, é a misericórdia; pois o característico da
bondade é sofrer com aqueles que sofrem; e é próprio da
onipotência socorrer os fracos. A misericórdia é, portanto, um
misto de amor compadecente do coração sobre a miséria
humana. Ora, esse sentimento de ternura que existe em Deus
como uma divina perfeição é a causa de todas as maravilhas
da graça que se manifestam entre os homens. Canta Davi que
as misericórdias de Deus pairam sobre todas as suas obras e a
tal ponto que despertam no céu a admiração dos anjos e
provocam na terra as ações de graças das criaturas!
"Louvemos a Deus porque ele é bom, louvemos ao Senhor,
porque é eterna a sua misericórdia!"
II — Filhos do Pai das misericórdias, sejamos mise-
ricordiosos como ele; sejamos indulgentes e bons, para
podermos afirmar com Jesus Cristo: "Quem vê a mim, vê a
meu Pai". Não se limitou o Senhor a chorar sobre nós, fez-se
semelhante a nós; colocou-se em nosso lugar; quis sentir
nossos penares e experimentá-los, para os aliviar. Na
realidade, conhecemos bem somente as dores que já sentimos
e nos compadecemos vivamente das fraquezas que
experimentamos.
Tenhamos continuamente ante os olhos este grande
modelo; suportemos as imperfeições dos que convivem
conosco; ponhamo-nos em seu lugar, compreendamos seus
sofrimentos; busquemos no Coração de Jesus os sentimentos
de bondade, de misericórdia e de caridade; que nossa
felicidade consista em fazer bem a todos.
QUARTA-FEIRA DA XI SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Não julgueis e não sereis julgados" (Lc 6, 37).
I — Para salvaguardar a dileção fraterna, nosso Senhor
destrói pela raiz a causa que com maior frequência perturba a
serenidade dessa divina virtude. Proíbe-nos julgar-nos uns aos

186
outros; e, para dar à sua palavra a mais alta consagração,
prende-lhe a mais consoladora das promessas: "Se não
julgardes, não sereis julgados". Temos em nossas mãos,
portanto, o nosso futuro destino.
É indubitável que havemos de comparecer ante aquele que
há de julgar os vivos e os mortos; seremos absolvidos se
tivermos sido misericordiosos; seremos condenados, se
houvermos sido implacáveis. O soberano Juiz se utiliza da
mesma balança de que nos servimos.
Perscrutemos nossos sentimentos e nossos pensamentos
habituais. Gostaríamos de ser julgados no tribunal divino como
julgamos nossos irmãos?
II — Se a humildade nos obriga a abrir os olhos sobre os
nossos defeitos, a caridade, pelo contrário, pede que os
tenhamos fechados para as fraquezas alheias. A humildade
não vê o mal, busca somente descobrir o bem; não suspeita,
não critica, não condena: deixa a Deus o cuidado de exercer a
justiça e para o próximo espera a misericórdia que também a
ele é necessária.
Habituemo-nos a empregar em nosso proveito a seve-
ridade com que julgamos o próximo e em seu favor aplicar o
conceito benévolo que a nós mesmos nos reservamos.

QUINTA-FEIRA FESTA DO SANTÍSSIMO


SACRAMENTO
"Jesus, tendo amado os seus, amou-os até ao fim" (Jó 13,
1).
I — O nosso amantíssimo Salvador, após haver repartido
com seus discípulos todos os dons do céu, deu-se finalmente a
si mesmo e quis reunir em um único mistério toda a plenitude
das graças. Tal um generoso benfeitor que, depois de haver
distribuído todos os seus tesouros, entrega ainda o vaso que
os encerrava, dá-se Jesus totalmente, abre seu Coração e
deixa transbordar sua vida como uma bebida de amor; não
quer que, entre ele e nós, haja o menor constrangimento, a
menor distância; oferece-nos seu amor e pede o nosso; elege
em nós sua morada e conosco habita até à consumação dos
séculos.
Que ação de graças lhe daremos? Elevemos até ele
nossos corações, como sagrados turíbulos cheios dos
perfumes da nossa mais viva gratidão.

187
II – O profeta, ao contemplar Jesus na santa Eucaristia
chama-o Emanuel — Deus conosco. Este nome inefável revela
a glória e a felicidade do cristão. Possuir em nossos
tabernáculos o Deus escondido, que somente respira doçura e
delícias! Circundar esse trono de graças, como os anjos o trono
celestial! Viver dos seus olhares, à sombra do santuário, para o
amar e o servir... que honra insigne! Que permanente
consolo... que antecipação do paraíso! "Ó Sião, ó Sião! —
exclama o profeta — rejubilai-vos e entoai hinos de alegria!
Porque o Altíssimo, o Santo de Israel, está no meio de vós!" (Is
12, 6).

SEXTA-FEIRA DA XI SEMANA DO TEMPO COMUM


"Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco" (Lc
22, 15).
I — As pessoas que amam sentem a necessidade de se
unirem indissoluvelmente ao objeto amado; pois, como diz são
Dionísio, o Areopagita: "O amor é uma força atrativa e
conciliadora que, de dois ou mais corações, só forma um". Esta
verdade deixa transparecer o pensamento do Deus de amor,
na instituição da sagrada Eucaristia. Jesus Cristo não se
satisfaz apenas com nossas adorações e com nossas
homenagens; dá-se a nós e nos atrai; quer associar-nos à sua
natureza, como se incorporou à nossa, para que não
formássemos senão um com ele. Eis o desejo que tão
ardentemente exprimiu, antes de se entregar à morte por nós.
Corresponder ao desejo de Jesus, pelo nosso próprio desejo;
entrar no segredo do seu pensamento, querer o que ele quer,
retribuir-lhe amor por amor; esta é a disposição da alma que
aspira a comungar santamente.
II — O divino Salvador não vem a nós como em passageira
habitação. Assim como a verdade penetra em nosso espírito
pelo sopro sonoro da palavra, e nele se fixa, assim a vida de
Jesus Cristo, que nos vem sob as espécies sacramentais,
habita em nossa alma. A comunhão constitui uma perpétua
aliança: une-nos a Jesus Cristo, como à árvore são unidos os
ramos e como ao corpo, de que fazem parte, são unidos os
membros. O mistério da sagrada Mesa não é uma simples
visita; é um dom permanente, uma nutrição, uma refeição, pela
qual assimilamos a vida de Jesus Cristo. Pela santa comunhão
Jesus vive em nós e nós vivemos nele. "Aquele que come a

188
minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim e eu
nele".
Ó dileto de minha alma! “Transformai-me todo em vós, para
que não seja mais eu quem viva, mas sejais vós a viver em
mim!".

SÁBADO DA XI SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria é o tabernáculo do sacramento do amor
I — Enquanto a primeira mulher, para sua e nossa des-
graça, apresentou ao homem o fruto da morte, Maria, a bendita
entre todas as mulheres, apresenta-nos o fruto da vida; visto
que em seu seio é que foi gerado este fruto divino. Maria
forneceu ao Filho de Deus a sagrada carne que é nosso
alimento e o sangue que é nossa bebida. É, portanto, a Virgem
a Mãe da Eucaristia; nela se formou o sacramento de amor; é
ela o vaso insigne que primeiro conteve a divina Hóstia! É ela o
santuário vivo, onde o poder de Deus preparou o Pão que
fortifica o coração do homem, o fermento dos eleitos e o vinho
que gera as virgens! É ela a dispensadora da santa comunhão,
o meio transmissor da graça e da vida, a Rainha do celestial
banquete!
Contemplemos sob este prisma a nossa gloriosa Mãe e
reflitamos que a sagrada Eucaristia deve operar em nós o que
nela operou o Autor da graça.
II — Como a santa Eucaristia nos transmite juntamente a
divindade e a humanidade de Jesus Cristo, ela nos une ao
mesmo tempo ao Pai que está no céu e à Mãe que nos foi
dada na terra; e por sua mediação tornamos verdadeiramente
filhos de Deus e filhos de Maria. Estes laços íntimos e
sagrados são a base do culto de amor que prestamos a nossa
Mãe; e o direito que possuímos de recorrer ao seu coração
maternal será tanto maior quanto mais estreitamente unidos
estivermos a seu Filho, cuja vida é nossa vida.
Estreitemos cada vez mais a união que contraímos com a
Virgem imaculada na sagrada Mesa e supliquemos-lhe que
abençoe nossas comunhões, para que a vida de Jesus Cristo
cresça e frutifique em nós.

189
XII DOMINGO DO TEMPO COMUM
"Fazei isto em memória de mim" (Lc 22, 19).
I — Depois de instituir o mistério da imolação e do alimento
do seu Corpo sagrado, Jesus confere a seus apóstolos o poder
de reproduzi-lo; poder divino que, por sua vez, transmitiram os
apóstolos ao sacerdócio católico. É assim que o sacramento da
santa Ceia, bem como o sacrifício da cruz, subsiste para
sempre na Igreja. O mistério da missa não é um novo sacrifício
acrescentado ao do Calvário; ele é identicamente o mesmo e
não cessará de renovar-se misteriosamente até ao final nos
séculos. Assim como o espírito e a vida de nosso Senhor Jesus
Cristo se propagam nos fiéis, pelo sacramento da sagrada
Mesa, do mesmo modo sua paixão e sua morte se perpetuam
no sacrifício do santo altar.
A alma cristã participa eficazmente da missa quando se
une ao mesmo tempo à vida e à morte de Jesus; é somente
satisfazendo essa condição que dela se retiram os frutos de
bênçãos e de salvação.
II —-O sacrifício é, geralmente, um ato pelo qual a criatura
se aniquila ante o seu Criador, para só por ele viver. Não quer
mais se pertencer, imola-se para testemunhar que somente a
Deus pertencem a soberania, a glória e o poder. Eis o mistério
que foi realizado pela Vítima que se fez obediente até à morte;
mistério este que é incessantemente celebrado sobre os
altares, sob a forma incruenta, em favor dos vivos e dos
mortos.
Enquanto por nós se imola o Cordeiro divino, que devemos
fazer? Fixar a Cruz e seguir o exemplo que nos é dado!

SEGUNDA-FEIRA DA XII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Meu Pai, eis que venho para cumprir a tua vontade" (SI
39, 8).
I — Consideremos que o altar é, como a cruz, o ins-
trumento da redenção dos homens; pois, conforme ensina o
Concilio de Trento, a oblação do Corpo e do Sangue de nosso
Senhor Jesus Cristo, que se renova todos os dias na missa, faz
Deus propício e favorável a nós, atrai-nos as graças do alto,
penetra-nos de um salutar espírito de penitência e purifica-nos
de todos os nossos pecados. Para retirarmos, no entanto,
esses preciosos frutos do santo Sacrifício, precisamos nos unir

190
a ele por uma fiel correspondência; significa isto que, sendo
Jesus ao mesmo tempo Sacrificador e Vítima, precisamos ser
também sacrificadores, oferecendo a Deus nossa vida nossas
afeições, nossos desejos e nossos pensamentos; e vítimas —
imolando nossa vontade e fazendo-nos obedientes até à morte.
Penetremo-nos destas disposições e, sob este ponto de
vista, encaremos as provações que o Senhor nos manda.
II — A santa missa é a reprodução mística do sacrifício de
Jesus Cristo. Podemos assistir a ele transportando-nos em
espírito ao Calvário, para, desta maneira, dele participarmos
mais eficazmente. Ora, notamos aos pés da cruz várias
espécies de pessoas, animadas por disposições bem
diferentes. As almas fiéis e fervorosas são representadas por
Maria, são José e as filhas de Sião; as almas contritas e
penitentes, por Madalena, o centurião e o bom ladrão; os
incrédulos e os pecadores, pelos carrascos; os ímpios, pelo
ladrão que expira blasfemando.
Que lugar nos assinala nossa atitude durante a santa
missa? É aos pés do altar e no íntimo do coração que nos
cumpre buscar os sentimentos de devoção que devemos
alimentar. A cruz se apresenta aos nossos olhos; é ela o livro
de orações que nos ensina a obediência, o sofrimento, a
paciência da santa Vítima. Que poderia haver de mais salutar
do que meditar sobre esses mistérios de amor? Maior
capacidade do que o espírito possui o nosso coração para os
compreender e apreciar. É também nosso coração que, ao se
retirar da santa Missa, deve dizer a nosso Senhor: "Pai, eis-me
aqui para cumprir a vossa vontade!".

TERÇA-FEIRA DA XII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Assim como eu vivo por meu Pai, aquele, que me come a
mim vive por mim" (Jo 6, 58).
I — Quem recebe dignamente nosso Senhor, participa em
graus diversos das perfeições de nosso Senhor; pensa, age,
ama como Jesus; tudo sente, vê, aprecia como Jesus; torna-se
um mesmo espírito e um mesmo coração com Jesus; pode
exclamar com o apóstolo: "Jesus é minha vida!" (Fp 1, 21). Ora,
esta transformação maravilhosa se opera gradualmente e com
tanto mais facilidade quanto maior for o zelo empregado em
desfazer os obstáculos que se opõem às operações da graça.

191
Ó meu Jesus amado! Entrai triunfalmente em minha alma!
Desprendei-me totalmente de mim mesmo; fazei que eu em
vós inteiramente me perca, para que a vós fique unido para
sempre!
II — Viver por Jesus e para Jesus, como ele vive por seu
Pai e para seu Pai, é amá-lo com ilimitado amor; é a ele nos
prendermos como a única razão de ser da nossa existência; é
dele receber o impulso para todos os nossos atos, todos os
nossos desejos, para todas as pulsações do nosso coração; é
reverter-lhe tudo como ao fim ao qual devemos tender; é viver,
como Jesus, de uma vida toda celeste, sobrenatural e sobre-
humana. O Senhor no-lo disse: "Aquele que comer a mim,
viverá por mim". A alma amorosa inicia sobre a terra uma
comunhão que se perpetua, pelo correr dos séculos, no céu.
Ó Jesus, pão dos anjos! Fartai-me desta vida de amor,
para que não viva mais por mim e para mim, mas unicamente
por vós e para vós, para a glória de Deus e salvação de meus
irmãos!

QUARTA-FEIRA DA XII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Eu o possuo e não o abandonarei jamais!" (Cânt. 3, 4).
I — O sacramento do Altar é o sumário de todas as
maravilhas de Deus; é o veículo de que se serve para espalhar
suas graças em maior profusão. O Senhor, vindo habitar em
nossas almas, em nós estabelece o céu onde faz suas delícias.
É, sobretudo após a sagrada comunhão que devemos penetrar
nesse santuário e, como são João, reclinarmo-nos sobre o
Coração do Deus de amor. A oração é como que a infiltração
do orvalho divino nas profundezas da alma. Esta oração exige
recolhimento, uma calma serenidade, um tranquilo abandono
de si mesmo e uma gratidão inflamada de amor.
Consumamo-nos, pois, em santos desejos, como os pa-
triarcas, a fim de o atrairmos aos nossos corações; e quando o
possuirmos, conservemos cuidadosamente o tesouro que
encerra todos os tesouros. Repassemos em nosso espírito o
que ele é para nós e o que devemos ser para ele, e repitamos
com a Esposa dos Cânticos: "Eu o possuo e não o abandonarei
jamais!".
II — Para prender Jesus é preciso se abster daquilo que
afasta Jesus; importa praticar o bem e fugir do mal; amar a paz

192
e repelir a discórdia; amar a vontade de Deus e guardar sua
palavra. Para nunca o abandonar, coisa alguma lhe deve ser
preferida, amor algum lhe ser oposto, nenhum calor profano
misturar à chama divina do seu Coração. Em uma palavra,
para conservar Jesus e permanecer-lhe fiel, deve a criatura
agradar-lhe sem cessar; e lhe seremos agradáveis, se formos
firmes na fé, caritativos em nossos atos, humildes de
sentimentos, reservados em palavras, metódicos na conduta,
incapazes de ofender o próximo, se bem que dispostos a sofrer
qualquer ofensa; apegados à verdade sem nunca faltar à
caridade; conscienciosamente cumprindo nossos deveres para
com todos; tendo por objetivo a glória de nosso Pai celestial!
É a fidelidade a disposição que devemos levar à sagrada
Mesa e é também o fruto que dela devemos trazer.

QUINTA-FEIRA DA XII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Quem come deste pão viverá eternamente" (Jo 6, 59)
I — O divino sacramento do altar é a árvore da vida
plantada por Deus na Igreja, para que aqueles que, de seu
fruto se alimentarem, adquiram a feliz imortalidade. A
substância do fruto celestial é a carne de Jesus Cristo; e esta
carne, tendo sido imolada, é inacessível à morte. Os que dela
se alimentam não morrerão, visto possuírem em si um germe
ressuscitador; ser-lhes-á a morte apenas uma libertação, um
abandono, uma transformação; ela será vencida pela vida.
Assim, o cristão fiel não cerra os olhos à luz terrestre, senão
para se alar com o vigor da águia às regiões divinas, e deixa o
cárcere estreito deste mundo, para entrar na pátria
incomensurável.
Se hoje, tal qual nos primeiros dias da criação, o orgulho
humano dá preferência à árvore da ciência do bem e do mal,
sobre a árvore da vida eterna, nós, os filhos de Deus, saibamos
escolher a melhor parte!
II — A santa comunhão não é apenas para nós um penhor
da glória futura; é, já nesta vida, para a alma piedosa e amante,
fonte copiosa de inenarráveis consolações. Ela é o remédio
para todos os nossos males e o meio mais eficaz para a cura
de nossas moléstias espirituais. Ela enfraquece a
concupiscência, subjuga as paixões, resiste às tentações,
desfaz as tempestades e afugenta as nuvens. Aviva a vontade,

193
sustenta a consciência, garante a vitória; aumenta a nossa fé,
dilata nossa esperança, vivifica nossa caridade. "Deveríamos
sair deste banquete celeste, diz são João Crisóstomo, como
leões intrépidos, não respirando senão chamas de amor". Para
se acercar da Mesa santa, é necessário, sem dúvida alguma,
dar para receber; mas recebemos infinitamente mais do que
damos; e o grão de incenso que oferecemos ao Senhor nos é
devolvido em uma nuvem de bênçãos.
Oh! Sim! Quanto são venturosas e ricas as almas que
sorvem o amor em sua fonte! Cheias de ardor, só respiram
caridade! Antecipam já nesta vida as solenidades futuras e,
gradualmente, em ascensões sublimes, elevam-se até à
contemplação de Deus, na celeste Sião! (cf. SI 83).

SEXTA-FEIRA FESTA DO SAGRADO CORAÇÃO DE


JESUS
"Meus olhos e meu coração estão no meio de vós" (3 Rs 9,
3).
I — Os mistérios da religião, todos de amor e caridade, não
poderiam ser simbolizados mais expressivamente do que pelo
coração. A contemplação do sagrado Coração de Jesus dá-nos
luz para compreendermos os segredos do céu; inteligência
para entrarmos nos mais íntimos pensamentos do divino
Mestre; força para bem suportarmos as agruras da presente
vida; graças para sermos humildes e dóceis; esperança para
firmemente confiarmos no auxílio do alto. É neste Coração de
amor que encontramos o bálsamo tonificante para as chagas
da nossa alma; só ele sacia os que têm fome e sede de amor.
Abeiremo-nos desta fonte de água viva, cuja plenitude
transborda em nossos corações.
II — Só o Coração de Jesus sabe responder às invencíveis
aspirações de nossa vida; pois, se sentimos necessidade de
sermos amados, é ele quem nos ama e, se precisarmos amar,
é a ele que devemos amar. Ele é todo nosso quando lhe
pertencemos totalmente; e faz em nós suas delícias quando
somente dele constituímos as nossas. Ele se dá a nós quando
nós nos damos a ele; enche-nos de sua unção quando só nele
buscamos consolo.
Imitemos são João; descansemos sobre o Coração de
Jesus, onde se aprendem os segredos do amor e da oração. É

194
lá que a alma verdadeiramente piedosa saboreia as primícias
da bem-aventurança.

SÁBADO DA XII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Que cada um se examine antes de comer deste pão" (1 Cr
11,28).
I — São João Crisóstomo diz que as melhores coisas só
aproveitam aos que delas sabem fazer bom uso, sendo
funestas aos que delas abusam. Ora, sendo a Eucaristia o
sacramento da união com Deus e com os nossos irmãos, a
condição para bem recebê-la é estar em paz com Deus pela
pureza de consciência e em paz com os irmãos pela caridade.
Beber no cálice do Sangue do Cordeiro de Deus e, ao mesmo
tempo, na taça dos prazeres do mundo; unir a bondade divina
à maldade humana; a caridade celestial ao egoísmo, à inveja, à
vaidade, à mentira; misturar as virtudes de Deus com as
paixões humanas... seria profanar o Santo dos santos e
renovar a falta de Judas!
Supliquemos ao Senhor que nos preserve de comunhões
indignas e à Virgem santíssima de nos alcançar a graça de
receber o Dom supremo em um coração bem preparado.
II — "Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes
deste cálice, diz são Paulo, anunciareis a morte do Senhor até
que ele venha". E logo acrescenta: "Pelo que, todo aquele que
comer este pão e beber este sangue indignamente, bebe e
come sua própria condenação, não distinguindo o Corpo do
Senhor" (1 Cr 11, 26. 29). Da aproximação desses dois textos,
resulta que comunga indignamente aquele que não anuncia a
morte do Senhor; o que não implica para todos os cristãos a
obrigação de pregar esta morte em palavras, mas sim a de ma-
nifestá-la em si próprios, pela mortificação das paixões
terrestres. Isto significa que os membros de Jesus Cristo,
alimentados da substância de Jesus Cristo, são obrigados a
manifestar pela sua conduta que não pertencem mais a este
mundo e que têm sua conversação no céu. Seria, portanto,
desviar a santa Eucaristia do fim para o qual foi instituída, se
comêssemos o Pão dos anjos sem querermos viver a vida dos
anjos; se recebêssemos o Sacramento sem nos unirmos ao
espírito de Jesus Cristo. Eis por que, para comungar
dignamente, precisamos crucificar a carne com seus apetites.

195
Passemos em revista a nossa alma; mortifiquemo-nos;
tornemos nossas comunhões dignas, eficazes e frutuosas pela
prática constante das virtudes cristãs.

XIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Ora, os publicanos e os pecadores chegaram-se a Jesus
para o ouvirem" (Lc 15, 1).
I — O Evangelho nos demonstra a misericordiosa bondade
de Jesus para com os pecadores que dele se acercam. Ele os
previne, chama, acolhe; percorre cidades e burgos,
derramando suas graças e sua caridade sobre todos que a ele
recorrem. Levanta os corações abatidos, enxuga as lágrimas,
atende às súplicas. Ora, a atividade santa, exercida pelo
Senhor em sua vida mortal, não esfriou, seu braço não
descansou. Como era, quando visível na terra, assim o é ainda:
acessível a todos, sempre pronto para nos sustentar, para nos
esclarecer, para nos salvar. “Jesus Cristo era ontem, é hoje e
será nos séculos dos séculos".
Esforcemo-nos por nos aproximar de nosso Senhor tanto
quanto aqueles que, com ele, conviveram na terra. Vinde, pois,
ó Jesus de minha alma; santificai-me pela vossa visita; trazei-
me a paz e a salvação!
II — Admiremos, com o profeta, quão bondoso é o Senhor
para com todos! Mas seus favores mais particulares se
inclinam para aqueles que, deplorando suas faltas, dele se
aproximam como pobres que nada possuem, como enfermos
aos quais tudo falta, como pecadores que humildemente
descobrem suas chagas, como cegos e ignorantes, desejosos
de saber o que é preciso fazer para adquirir o reino dos céus. É
um sinal de predestinação ter gosto em ouvir a palavra de
Deus para pô-la em prática; e é sinal de reprovação não
receber essa palavra ou ouvi-la desatentamente ou sem a
praticar.
Não imitemos os pecadores orgulhosos que se julgam
dispensados de remédios; mas aproximemo-nos, humilde-
mente compungidos, daquele que tem as palavras de vida
eterna.

196
SEGUNDA-FEIRA DA XIII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Os fariseus e os doutores da lei murmuravam" (Lc 15, 2).
I — Consideremos em que consiste o espírito dos fariseus
e dos doutores da lei, para deles nos afastarmos com horror.
Uns e outros põem sua perfeição na regularidade exterior e nas
ações aparentes; satisfeitos consigo mesmos, só estão atentos
aos defeitos alheios, prontos para julgá-los e condená-los,
olhando-se a si como superiores a qualquer crítica e
observação. Seja qual for a forma de que revistam sua
piedade, não passam, no entanto, de "sepulcros caiados",
como os chama a sagrada Escritura, pois conservam em seu
coração os germes da inveja, do orgulho e das paixões carnais.
O espírito farisaico não desapareceu do mundo e a alma
piedosa, que deseja premunir-se contra seus ataques, exerça
severa vigilância sobre sua natureza, exercitando-a na prática
da indulgência para com o próximo.
II — Quem pactua com o espírito farisaico, acha sempre o
que criticar naqueles que possuem o espírito de Jesus Cristo,
mormente contra os que ocupam postos de autoridade.
Submetem-se exteriormente à lei, mas no seu íntimo guardam
sua própria opinião e alimentam, no fundo do seu coração, um
espírito de oposição que contradiz ao Espírito de Deus.
Mostram escrúpulo no cumprimento de uma rubrica e não
temem transgredir a palavra do Evangelho. "A verdadeira
piedade procede do coração", afirma santo Agostinho. Res
cordis.
A alma impregnada dos sentimentos de Jesus gosta de sua
regra e a pratica conscienciosamente; mas, acima de tudo, é
paciente com os fracos e os atrai pela caridade; ao passo que
a piedade farisaica os espanta e compromete a religião.

TERÇA-FEIRA DA XIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Qual de vós, tendo cem ovelhas, se perde uma delas, não
deixa as noventa e nove no deserto e não sai em busca
daquela que havia perdido, até encontrá-la?" (Lc 15, 4).
I — Para nos fazer compreender a sua solicitude Dara com
as almas transviadas, Jesus apela para nossos próprios
sentimentos. Se vemos homens, mesmo frios e indiferentes,
arriscarem sua vida para salvar a de outro ente; se deixamos,

197
por vezes, os que estão seguros, à margem de um rio, e nos
atiramos às ondas, em socorro de um infeliz, cuja vida corre
perigo; com bem mais justo motivo o Senhor, não pondo limites
à sua magnanimidade, não poupará sua própria vida com o fim
de reconduzir ao aprisco as ovelhas desgarradas. Busca-as por
todas as delicadezas de sua graça e as reconduza sob o seu
cajado pelos atrativos da caridade.
Bem felizes são aquelas que ouvem sua voz, atendem a
seu chamado e perseveram no seu amor!
II — Tenhamos presente em nosso espírito tudo o que fez
o Salvador para nos salvar e reconheçamo-nos na ovelhinha
perdida e reencontrada. Como ensina a teologia, Jesus não
sofreu somente pela humanidade em geral; mas cada criatura
deve se aplicar em particular o que Jesus Cristo fez por todos.
Cada fiel pode afirmar com são Paulo: "O Filho de Deus me
amou e se entregou por mim".
Alma desgraçada, que seria feito de ti, se o teu Salvador
não tivesse ido no teu encalço, em meio aos teus desvarios e à
tua frouxa vontade? Ó caridoso Pastor! Conservai-me para
sempre no vosso redil!

QUARTA-FEIRA DA XIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E, depois de encontrá-la, coloca-a satisfeito aos ombros"
(Lc 15, 5).
I — A alegoria do pastor reconduzindo a ovelhinha que se
separara, e apertando-a ao coração, é a graciosa imagem do
Salvador, vindo em busca do que se perdera. Ao se revestir da
natureza humana, tomou sobre si os pecados de todos os
homens. Pois, como diz o profeta Isaías, éramos todos quais
ovelhas desgarradas: e cada um de nós se transviara do bom
caminho, querendo seguir sua vereda particular. Jesus
assumiu sozinho o fardo da iniquidade de todos. Desceu até às
profundezas em que nos íamos abismar, para nos reconduzir à
luz. Ele nos salvou, expiando sobre a cruz os nossos pecados.
Que excesso de amor e de compaixão! Não se limita a nos
repor no caminho das pastagens celestiais; é em seus divinos
ombros que nos leva para lá. Toma sobre si todo trabalho, a
fim de nos poupar perigos e fadigas; encarrega-se de nossas
fraquezas e nos empresta sua força divina, para que seu jugo
nos seja suave e seu fardo leve.

198
II — Depois de sermos objeto das infinitas misericórdias do
Salvador, devemos também por nossa vez dar ao nosso
próximo incessantes provas de uma caridade sem esfriamento.
É esta a constante recomendação do apóstolo: Se algum de
vós cair em alguma falta, vós que sois espirituais, isto é, mais
adiantados na virtude, tende o cuidado de reerguê-lo com
brandura. Sede para com ele cheios de paciência, de
indulgência, de cordialidade. Quando, por vossas orações ou
por vossas obras de zelo, conseguirdes edificar uma alma,
gozareis de uma alegria sobremaneira profunda, a própria
alegria de Jesus Cristo!
Ó divino Salvador de minha alma! Como não hei de relevar
os defeitos de meu próximo, se vos vejo suportar a mim, a
quem trazeis em vossos ombros, com todo o peso das minhas
misérias?

QUINTA-FEIRA DA XIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Em verdade, em verdade vos digo: Haverá maior júbilo no
céu por um pecador que fizer penitência, do que por noventa e
nove justos que não têm necessidade de penitência" (Lc 15, 7).
I — Entende-se pelo número de cem justos, segundo
explicam os intérpretes, a totalidade das almas bem-
aventuradas; de maneira que a defecção de uma delas produz
entre as outras um vácuo que diminui sua felicidade; o
sofrimento de um membro transmite-se a todos, assim como o
restabelecimento de um membro enfermo alegra o corpo
inteiro. Eis por que a conversão do pecador amplia o bem-estar
dos justos, aumenta a satisfação de todos e eleva ao auge a
alegria universal.
Serão nossos sentimentos baseados nesses princípios?
Interessamo-nos pelo que alegra ou entristece os anjos de
Deus? Ou nos mostramos sensíveis unicamente ao que
diretamente nos afeta? Dilatemos os nossos corações,
elevemos os nossos pensamentos; empenhemo-nos em
proporcionar um pouco de alegria aos céus, trabalhando em
nossa própria santificação e na santificação dos nossos irmãos.
II — Como é a humildade que faz germinar a santidade e
que nada nos humilha tanto como verificar as nossas faltas,
acontece haver com frequência mais humildade no pecador
arrependido do que no justo; daí resulta que, tornando-se mais

199
santo, causa maior alegria no céu. Desde que se desapegou
das coisas terrenas e se voltou para Deus, pode apreciar
melhor a graça divina que o preveniu. A gratidão alimenta seu
amor. Penitencia-se em reparação dos seus desvarios. Aceita
todas as provações e adversidades; busca sempre o último
lugar. Trabalha, sofre, obedece e ora com sentimentos de
compunção que comovem o Coração divino, fazendo com que
superabunde a graça onde abundara o pecado.
Peçamos ao Senhor um coração contrito e humilhado, a
fim de que, por nossa vida penitente, possamos alegrar os
anjos do céu.

SEXTA-FEIRA DA XIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que tinha
perdido"
(Lc 15, 9).
I — A dracma procurada com tamanha ansiedade, e cujo
encontro tanta satisfação produziu, figura nossa alma criada à
imagem de Deus. O mundo todo nada é em comparação ao
seu valor intrínseco; porque, como diz o Evangelho: "De que
serviria ao homem ganhar o mundo todo, se viesse a perder a
sua alma?" Sua dignidade é tão sublime que ela foi resgatada
ao preço do sangue de Jesus Cristo. Ela é um trono de
santidade, uma sede de delícias, um espelho da divina Luz,
uma imagem da beleza e da majestade de Deus, um vivo re-
flexo das celestiais perfeições. Se o pecado obscureceu essa
alma imortal, urge, como a mulher do Evangelho, acender a
lâmpada da consciência, entrar em si mesmo, purificar o seu
interior, orar perseverantemente, procurar, gemer, até que se
possa exclamar com Davi: "Meu Deus, vosso servo encontrou
novamente seu coração!".
II — O inapreciável valor da nossa alma deve excitar em
nós ardente zelo pela alma do nosso próximo. A exemplo da
mulher do Evangelho, precisamos, sem delongas e sem nos
pouparmos, por nossas orações e por nossos trabalhos,
encontrar a dracma perdida. Era o que são Paulo escrevia aos
coríntios: "De boa mente me desfaria de tudo quanto possuo e
a mim próprio me daria, pela salvação de vossas almas" (2 Cr
12, 15). E aos romanos: "Quereria ser anátema pelos meus
irmãos, aos quais estou ligado pelos laços do sangue, os israe-

200
litas que provêm dos patriarcas e dos quais nasceu Jesus
Cristo, nosso Deus acima de tudo" (Rm 9, 3. 4). Eis qual deve
ser nosso zelo pela salvação dos pecadores, principalmente
para com aqueles que são mais culpados e mais infelizes; zelo
este que receberá belíssima recompensa, conforme o seguinte
texto do apóstolo são Tiago: "Aquele que reconduzir um
pecador dos seus extravios, salvará sua alma da morte e
cobrirá toda a multidão dos seus pecados" (Tg 5, 20).
Supliquemos ao Senhor nos conceder, pela intercessão de
são Pedro e são Paulo, o zelo da caridade apostólica.

SÁBADO DA XIII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Poderá, porventura, uma mãe esquecer seus filhos?" (Cf.
Is 49, 15).
I — A mulher referida pelo Evangelho, que com tanto
empenho procura a dracma perdida e que tão satisfeita se
mostra ao encontrá-la, representa Maria santíssima, a celestial
Mãe dos homens. Ela não se cansa em ir em busca dos seus
filhos transviados e em chamá-los. Mãe daquele que veio para
salvar todos, deseja ardentemente, como seu Filho, que todos
se salvem. Roga pelos pecadores, intercede especialmente
pelos que a invocam; protege-os, assiste-os; dispõe em seu
favor de todo seu valimento junto de Deus e obtêm-lhes as
graças da conversão, da penitência e da perseverança.
Ó minha alma! Exclama são Bernardo, se tremes ao
pensamento dos juízos de Deus, lembra-te que possuis uma
mãe para te defender e lança-te confiante nos braços de sua
misericórdia!
II — O coração de Maria, como um lago límpido e
transparente, reflete os fulgores do Coração de Jesus. Se o
apóstolo recomenda aos simples fiéis reproduzirem os
sentimentos do divino Salvador, como deve a alma santíssima
de Maria ser impregnada da terna compaixão de Jesus pelos
pobres pecadores! A aflição desta divina Mãe é extrema
quando uma alma se afasta do verdadeiro caminho; mas
também com que transportes de alegria festeja a volta dos
míseros transviados, ao santo aprisco!
"Poderá por acaso uma mãe se esquecer do seu filhinho?"
pergunta o profeta. Mesmo que assim se dê, Maria, a Mãe das
mães, jamais abandonará os filhos do seu coração.

201
XIV DOMINGO DO TEMPO COMUM
"Nosso Senhor viu duas barcas que estacionavam à borda
do lago de Genesaré; e os pescadores tinham saído e lavavam
as redes"
(Lc 5, 2).
I — Os pescadores de Tiberíades, depois de uma noite de
trabalhos improfícuos, lavavam e concertavam suas redes,
quando o Senhor entrou em uma de suas barcas. Foram estes
pescadores os primeiros apóstolos de Jesus: Pedro, André,
Tiago e João. A grandeza de sua vocação não faz brotar em
seus espíritos vastas pretensões; não desprezam sua vida
simples e laboriosa; não apressam os momentos de Deus por
um zelo intempestivo; preparam-se ao seu sublime ministério,
pelos modestos trabalhos de cada dia.
Meditemos sobre esse inicio da vida apostólica e com-
preendamos a necessidade e as vantagens de aperfeiçoar as
virtudes da vida comum, antes de aspirarmos às grandes
coisas.
II — Os primeiros discípulos de Jesus, apesar da es-
terilidade do longo trabalho, conservam os mesmos lugares, as
mesmas ocupações. Não se afastam das margens do lago; não
lamentam sua inútil fadiga; não choram o tempo gasto; não
exprimem nenhum pensamento de desânimo. Mas, à espera
de melhor pesca, consertam e lavam suas redes. Significativa
instrução que nos deve inspirar ânimo e perseverança; pois, se
nossos esforços são infrutíferos, limitemo-nos a entrar em
nosso íntimo, a fim de repararmos nossas forças, corrigir
nossos defeitos, purificar nossas intenções e nossa
consciência; e desta forma estaremos mais aptos a trabalhar
com sucesso na conquista das almas, em tempo oportuno.
Somos fiéis ao nosso exame de consciência quotidiano?
Empenhamo-nos seriamente na correção dos nossos defeitos?
Sejamos vigilantes conosco e não descuidemos as nossas
redes.

SEGUNDA-FEIRA DA XIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Nosso Senhor entrou na barca de são Pedro e pediu-lhe
que se afastasse um pouco da terra" (Lc 5, 3).
I — A barca de Simão, na qual entrou o Senhor, para
instruir seu povo, representava a cátedra de são Pedro, centro

202
da unidade católica, foco da verdade, elo da caridade divina.
Apreciemos a graça imensa de pertencermos a esta barca
sagrada que resiste às mais violentas tempestades e ao
embate dos vagalhões do mar. Aos que nela se abrigam,
oferece-se o descanso do espírito, a segurança da consciência
e consoladora certeza de atingir o porto da salvação. É da
barca de são Pedro que nos fala o Senhor. É aí e não alhures
que a alma fiel recebe os ensinamentos divinos e envereda
pelo itinerário do céu.
II — Refere o Evangelho que Jesus se sentou na barca de
Pedro e pediu-lhe que se afastasse das margens. Pede,
quando poderia mandar. Exemplo de brandura para aqueles
que exercem autoridade. Pede que a barca seja um pouco
afastada da terra, para mostrar a situação das pessoas
consagradas a Deus, em relação às que vivem no século. Não
se devem aproximar demasiado, mas nem tão pouco se afastar
totalmente, com o fim de poderem edificá-las, sem se exporem;
isto é, que, embora evitando o contato com o espírito do
mundo, devem se comunicar com as almas que nele vivem,
para esclarecê-las, consolá-las e instruí-las.
Conservemo-nos, com Jesus, distanciados do mundo; mas
não recusemos nossa dedicação aos que a nós recorrem.

TERÇA-FEIRA DA XIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Quando o Senhor cessou de falar, disse a Simão:
Adiantai-vos ao alto mar e lançai as redes!" (Lc 5, 4).
I — Consideremos, no mistério desta pesca, qual deverá
ser nossa conduta com as almas que desejamos conduzir a
Deus. Nada podemos por nós mesmos. Nosso trabalho será
estéril, nossas tentativas inúteis, enquanto nosso Senhor não
falar. Não é, por conseguinte, nem são Pedro, nem os
apóstolos, quem, por sua habilidade, eloquência ou zelo,
converte os pecadores. É a graça divina que deve preceder,
acompanhar e coroar o ministério apostólico, sem a qual vãos
serão todos os esforços. Eis por que nos diz são Paulo: Quem
planta nada é; quem rega nada é; mas é Deus quem dá o
crescimento, isto é, a benção, a fecundidade e a vida. É
necessário, portanto, que os obreiros evangélicos supliquem ao
Autor da graça, para que ele principie, aperfeiçoe e conclua as
suas boas obras.

203
Unamo-nos ao espírito de Jesus Cristo para tudo fazermos
com ele e sem ele nada empreendermos.
II — Jesus, depois de falar às turbas, recomendou aos
apóstolos que deitassem suas redes; e a pesca foi abundante.
O êxito depende, já se vê, de duas condições: que a graça
previna aos que ouvem e que a autoridade dê missão aos que
falam e agem; de onde vemos a necessidade da oração para
atrair a graça e a necessidade da obediência para executar as
obras de Deus. A oração assídua, unida à humilde obediência,
são as redes que capturam as almas.
Que os exemplos dos apóstolos e dos santos nos ensinem
a sermos, nas mãos do Senhor, instrumentos de benção e de
salvação.

QUARTA-FEIRA DA XIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Mestre, trabalhamos a noite toda e nada apanhamos;
contudo sobre tua palavra, lançarei a rede" (Lc 5, 5).
I — Reflitamos sobre as disposições de espírito de são
Pedro, no serviço da pesca, para dele nos compenetrarmos. O
apóstolo declara, sem falsa vergonha, sem murmúrio, sem
desânimo, que gastou toda a noite sem nada pescar. Vemos
por esta circunstância que Deus, para nos mostrar a nossa
incapacidade e para nos despojar de nossa presunção, deixa-
nos, por vezes, entregues a nós mesmos, em meio às
obscuridades de uma noite prolongada; de maneira que nosso
trabalho não produz resultado; nossas vigílias permanecem
isentas de consolo e nossos cansaços sem recompensa. Em
tais provas tão penosas, as almas covardes e orgulhosas
abandonam o serviço de Deus; as almas fiéis, pelo contrário,
combatem as tristezas do amor próprio, as recriminações da
vaidade, as dúvidas do desânimo. Reconhecem, como são
Pedro, que por suas próprias forças de nada são capazes; e
assim se adquire e aperfeiçoa a verdadeira humildade,
condição dos futuros êxitos.
II — São Pedro, deixando de confiar em si mesmo,
deposita sua confiança na palavra do Senhor; o que nos
mostra que a humildade é a condição de uma fé viva, obe-
diente e corajosa. Desde que falou o Mestre, adianta-se o
apóstolo ao alto mar e lança sua rede. Não faz perguntas nem
objeções; não duvida, não difere, não hesita; sabe que a Deus

204
tudo é possível e obedece. Também permanece tão humilde
quanto antes do milagre; nada se atribui, tendo presente
apenas a sua indignidade; e em sua confusão exclama:
"Senhor! Afastai-vos de mim que sou um pecador!".
Tais devem ser os nossos sentimentos, tanto em nossos
sucessos quanto nos fracassos. No entanto, quantas vezes
não nos gloriamos! Quantas vezes desanimamos! A humildade
nos preserva de um e de outro extremo.

QUINTA-FEIRA DA XIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Os apóstolos fizeram sinal aos seus companheiros que
estavam em outra barca, para virem ajudá-los" (Lc 5, 7).
I — Para chamar em seu auxílio os companheiros, bastou
aos apóstolos um pequeno sinal; à caridade não era preciso
mais. Os servos de um mesmo Senhor, unidos em um mesmo
espírito, não necessitam muitas palavras para se
compreenderem. Ocupam, em verdade, barcos diferentes, mas
não estão ali encerrados como em esferas fechadas, nem tão
pouco integralmente absortos em seus afazeres que não se
interessem com simpatia pelos trabalhos alheios. Antes, pelo
contrário, comprazem-se até em se prestarem mutuamente
seus serviços, e trocarem provas de amizade fraternal. Esta
união cordial, tão recomendada pelo Senhor, deve servir de
modelo às diversas congregações religiosas, cujo espírito de
corporação não deve ser exclusivista, mas sim de expansão e
de recíproca assistência. Com maior razão ainda, este modelo
de união deve existir entre os membros de uma mesma
comunidade.
II — Notemos ainda que são Pedro chama seus com-
panheiros para com eles repartir sua fartura e suas alegrias,
enquanto, nas horas exaustivas da noite, nenhum auxílio
implorou. Não ambicionou igualmente a glória de ser, sozinho,
o instrumento da milagrosa pesca. O consolo sem par de
possuir Jesus em sua barca não o fizera esquecer seus irmãos;
apressa-se em fazê-los participantes de sua felicidade. Quanto
esse proceder da dileção apostólica diverge do das afeições
naturais que se reservam egoisticamente todo gozo!
Tenhamos cuidado em poupar dissabores ao próximo,
procurando aliviá-lo pelas medidas ao nosso alcance.

205
SEXTA-FEIRA DA XIV SEMANA DO TEMPO
COMUM
"E, conduzidas as barcas para terra, deixando tudo,
seguiram-no"
(Lc 5, 11).
I — O Evangelho enumera três coisas que os apóstolos
abandonaram para seguir Jesus Cristo. Deixaram suas barcas,
suas redes e seu pai. As embarcações representam os bens
instáveis do mundo; as redes, as indústrias empregadas para
conquistar os favores ou as riquezas; o pai, a família. Tais os
sacrifícios que se impuseram os que eram pescadores de
peixes, para se transformarem em pescadores de homens.
Idênticas renúncias são exigidas aos que desejam seguir as
pegadas dos apóstolos. Se, seguindo-lhes o exemplo, fizermos
generosamente esse sacrifício, o Senhor nos dirigirá estas
mesmas palavras: "Aquele que por mim deixar sua casa, seus
irmãos ou suas irmãs, seu pai ou sua mãe, ou seus filhos,
receberá o cêntuplo nesta vida e possuirá a vida eterna". E
Jesus acrescenta: "Quem ama seu pai ou sua mãe mais do
que a mim, não é digno de mim".
II — O sacrifício dos apóstolos se distingue por sua
prontidão e plenitude. Seguem o Mestre divino sem hesitação e
sem tardança. São João Crisóstomo comenta que eles não
pensaram em voltar para as despedidas da família, nem para
terminar seus negócios, porque se recordam das palavras de
Jesus: "Aquele que, depois de pôr a mão no arado, olhar para
trás, não é digno do céu". Entregam-se totalmente, sem
conservar apego algum ao mundo ou a si mesmos, sem reter
escondido nas dobras do seu coração ídolo algum. Sua doação
não é somente completa, total, é irrevogável. Acompanham
Jesus sempre e por toda parte, não se deixando abalar nem
pelas seduções, nem pelas tribulações, nem pelas ameaças,
nem pela morte, contando firmemente com a assistência
daquele que prometeu: "Se fordes perseverantes até ao fim,
recebereis a coroa da vida".

SÁBADO DA XIV SEMANA DO TEMPO COMUM


A rede de Maria
I — Se os apóstolos receberam o poder de retirar as almas
do mar tempestuoso deste mundo para conduzi-las ao caminho
da salvação e se realmente estenderam suas redes até aos

206
confins do universo, devemos crer que Maria, a Rainha dos
apóstolos, não deixou de ser revestida de poder não menos
prodigioso. Ela possui uma rede que se estende como uma
cadeia de graças, do céu à terra e da terra até ao céu. E esta
rede é o seu amor; atração poderosa que prende as almas,
atraindo-as para Deus e levando-as maravilhosamente para a
luz. Mais ainda, sem Maria, não obteriam os apóstolos triunfo
algum; pois se foi Maria o meio de que se serviu Deus para vir
até nós, necessariamente é o mesmo de que nos devemos
servir para irmos até ele; é, por conseguinte, a Virgem a rede
celestial que nos conduz ao céu.
Entreguemo-nos inteira e ilimitadamente confiantes, nos
braços daquela que é a Mãe da graça e do amor.
II — A intervenção da santíssima Virgem na pesca das
almas se exerce simultaneamente por dupla ação: atua sobre o
Coração de Deus e sobre o coração do homem. Sua ação
sobre o Coração de Deus é sempre vitoriosa, porque possui o
poder da fé, do amor e da oração; poder irresistível quando se
pensa que é uma Mãe que se dirige ao Coração daquele que é
conjuntamente seu Filho e seu Deus! Também os doutores da
Igreja não hesitam em ver a intervenção de Maria como uma
espécie de onipotência. Pode, no entanto, fracassar, ao se
exercer sobre o coração do homem, pois ele, o homem, é livre
em aceitar ou rejeitar a graça e pode esquivar-se aos
benefícios de Deus.
Sejamos dóceis às inspirações da graça, da qual Maria é a
generosa dispensadora e permaneçamos com os filhos de
Deus, presos aos nós da rede de Maria.

XV DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Se vossa justiça não foi mais abundante que a dos
escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus" (Mt 5,
20).
I — Refere-se o Evangelho ao grupo dos israelitas que
julgavam cumprir a lei mosaica, obedecendo literalmente às
prescrições e abstendo-se dos atos proibidos. Eram, pois,
justos conforme à letra da lei; mas esta justiça exterior não
poderia justificá-los perante o Senhor, porque não lhes mudava
o coração, nem lhes purificava a intenção. O homem,
manchado pela falta original, não poderia justificar-se por si
mesmo e por suas próprias virtudes; necessitava de Jesus

207
Cristo, o único justo que, comunicando-nos seus méritos
juntamente com sua vida, refaz nossos corações e neles depõe
os germes das obras de justiça e de caridade.
Unamo-nos a nosso Senhor Jesus Cristo por uma fé viva
que nos torne capazes de fazer o que a lei ordena e nos torne
justos, aplicando-nos a sua própria justiça.
II — A lei antiga regulava os atos e a conduta exterior; a
nova lei regula a vontade e os atos interiores. A primeira foi
escrita sobre a pedra; a segunda é gravada pelo Espírito Santo
em nossas almas, conforme anuncia o profeta Jeremias (31,
33): "Chegará o tempo em que farei uma nova aliança com a
casa de Israel. Imprimirei em suas almas a minha lei e gravá-la-
ei em seus corações". O justo da lei antiga se vangloriava de
suas virtudes; o justo da nova lei só tira sua glória de Jesus
Cristo. Obedece por amor, ao passo que o fariseu o fazia por
medo. Ora, o medo é estéril; só o amor é fecundo em obras de
graça, e eis por que a justiça, procedendo do amor, deve ser
mais abundante do que aquela exercida pelo medo.
Exercitemo-nos em amar. E como não amaríamos aquele
que é o Amor? O verdadeiro amor observa a lei e se manifesta
pela santidade de vida.

SEGUNDA-FEIRA DA XV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Porque a letra mata, enquanto o espírito vivifica" (2 Cr 3,
6).
I — A ordem, a regularidade exterior só é edificante quando
exprime a conformidade de nosso espírito com a letra da regra.
É ilusória quando toma por virtude as aparências de virtude; é
perigosa e mortal quando entorpece a consciência e nos faz
crer que somos irrepreensíveis, quando estamos em desacordo
com Deus, que vê os corações. Os fariseus limpavam o exterior
da taça e despreocupavam-se do interior; temiam engolir um
mosquito e tragavam camelos; apegavam-se aos atos os-
tensivos que lhes atraíam a estima dos homens, mas não
cultivavam as virtudes ocultas que frutificam unicamente sob os
olhos de Deus. A observância literal, desprovida do espírito
interior, nem produz consolo, nem santificação, e verificamos,
com frequência, nada mais ser do que um amargo
revestimento que furta à piedade o aroma e o fruto suculento.

208
Peçamos ao Senhor que nos preserve do espírito farisaico
que se contenta só em observar literalmente a regra e nos
conceder o espírito interior que santifica não somente os atos,
mas as intenções, os afetos e os pensamentos.
II — Da piedade cristã deve ser banida toda a ilusão;
convém, portanto, examinar detidamente quais os motivos que
dirigem nossas obras. É o amor de Deus que nos instiga? É a
caridade que nos move? Ou serão nossas boas ações ditadas
pelo amor próprio, pelo interesse pessoal ou por outros
pensamentos humanos? Se visamos a estima das criaturas,
talvez a conseguiremos; mas assim já teremos obtido a nossa
recompensa neste mundo e nada mais teremos a esperar no
céu.
Procuremos edificar o próximo, não para sermos por ele
elogiados e glorificados, mas para fazermos reverter ao Pai
celestial toda a nossa gratidão e toda a glória.

TERÇA-FEIRA DA XV SEMANA DO TEMPO COMUM


"Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás! Pois eu
vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão, será
condenado em juízo"
(Mt 5, 21. 22).
I — Consideremos a divina autoridade de Jesus Cristo e a
perfeição da nova lei. Sua autoridade se eleva acima da de
Moisés e dos profetas; aqueles falavam em nome do Senhor
seu Deus, ao passo que Jesus doutrina como legislador e
Mestre. Emprega estes termos: "E eu vos digo". Daí vemos que
sua palavra não veio abolir a li antiga, mas imprimir-lhe uma
nova perfeição; não se limita a proibir ações más, vai além,
proíbe até os maus sentimentos; atinge a raiz do mal no mais
profundo do coração humano: condena o pensamento e o
movimento interior que levam ao crime, como ao próprio crime.
Poderíamos deixar impunemente o mal em nosso coração,
quando nos é recomendada pelo divino Mestre tão delicada
pureza e tão perfeita santidade?
II — Quando o Senhor condena a cólera como o mesmo
homicídio, não se refere aos impulsos irrefletidos por nós
mesmos dominados, nem às tentações repelidas; pois que não
há pecado onde não existe consentimento. Mas ameaça com a
justiça divina os atos voluntários que ofendem o amor fraterno.
Assim, pois, de um lado considera Jesus como seus discípulos

209
e amigos os que amam seus irmãos; de outro, olha como seus
próprios inimigos e como homicidas os que, por seus
ressentimentos, violam a caridade fraterna.
Quão magníficas serão as recompensas prometidas à
caridade, tão severos serão os castigos reservados à ini-
mizade. "Quem não ama seu irmão, diz são João, permanece
na morte, mas aquele que o ama, passa da morte à vida e das
trevas à luz" (1 Jo 3, 14; 2, 10).

QUARTA-FEIRA DA XV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Aquele que chamar seu irmão de idiota, será réu diante do
conselho e o que lhe chamar louco será réu do fogo da geena"
(Mt 5, 22).
I — As misteriosas expressões do presente texto indicam
os diversos atos do espírito de hostilidade, que conduzem
gradualmente ao ódio e ao homicídio; porque o vício, tal qual a
virtude, tem os seus progressos e leva muito tempo a germinar
no coração antes de se manifestar por seus frutos de morte.
Não é sem transição que se atingem as últimas profundezas da
iniquidade; mas a virtude que se negligencia cai pouco a
pouco. Tem seu início no pensamento; este se expande em
palavras amargas e ofensivas; depois, às queixas e aos res-
sentimentos, sucedem-se os ultrajes. Nosso Senhor nos
premune contra esses diversos atos criminosos, declarando-
nos que tratará como homicidas aqueles que odiarem o
próximo.
Estejamos vigilantes sobre todos os movimentos do nosso
coração e, para melhor evitarmos sentimentos de aversão e de
antipatias, não consintamos nunca um pensamento
desfavorável a respeito de nossos irmãos.
II — Se, por um lado, nosso Senhor não pôs limites à
misericórdia e às recompensas prometidas aos que praticarem
a caridade fraternal, por outro, anuncia pavorosos castigos aos
que faltarem à caridade. Pois assim como existem no céu
mansões correspondentes aos diferentes graus da virtude
evangélica, também no inferno há abismos vários, de
conformidade com a diversidade dos vícios e das paixões. O
suplício mais horrendo, o da geena, é reservado aos que
odiarem a seus irmãos. O Evangelho condena-os como a
homicidas e os homicidas não são contados entre os filhos de

210
Deus. Eis por que o apóstolo são Paulo, o suave intérprete do
Coração de Jesus, não se cansava de repetir esta frase que
resume todo o Evangelho: "Meus filhinhos, amai-vos uns aos
outros, como o Senhor vos amou" (Cf. 1 Jo 3).

QUINTA-FEIRA DA XV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Quando apresentardes vossa oferenda ao altar, se vos
lembrardes que vosso irmão tem alguma coisa contra vós,
deixai lá vossa oferenda e ide primeiramente reconciliar-vos
com ele" (Mt 5, 23. 24).
I — O nosso misericordioso Senhor, ao entregar-se à morte
por nós, teve por escopo abolir o pecado, que é a causa das
inimizades humanas, e cimentar entre as criaturas uma
indissolúvel e santa união. Eis por que todas as suas palavras
tendem a esse duplo fim. Por um lado, condenam o espírito de
hostilidade e de discórdia; e, em oposição, recomendam e
abençoam o espírito de paz e de caridade. Nosso Senhor quer
que nos estimemos tanto, que motivo algum possa alterar a
cordialidade dos nossos sentimentos; e ele nos garante não
haver sacrifício mais do seu agrado do que aquele que lhe é
oferecido para conservar ou readquirir a caridade. O último
desejo, manifestado pouco antes de expirar, foi: "Sint unum!" A
religião não consiste unicamente em amar a Deus, mas
também em amar o próximo.
Harmonizemos nossa devoção com esta regra evangélica
e pratiquemos a caridade conforme ao espírito de Jesus Cristo.
II — A caridade fraterna não é uma parte do culto de Deus,
mas sua essência; é o primeiro dos holocaustos e passa à
frente de todas as outras oferendas. Ausente ela, ato algum de
religião terá valor; com ela, adquirirão mérito os mínimos
sacrifícios. Antes de oferecermos nossas orações, trabalhos e
sofrimentos, apressemo-nos, portanto, em restabelecer a
concórdia fraternal, se esta sofreu qualquer agravo, e
ofereçamos uma oblação agradável a Deus, perfumando-a com
o bálsamo da caridade.

211
SEXTA-FEIRA DA XV SEMANA DO TEMPO COMUM
"Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, e depois vem
fazer a tua oblação" (Mt 5, 24).
I — Todos os atos da vida e da morte de nosso Senhor
Jesus Cristo têm por fruto: a paz dos corações. No excesso do
seu amor para com os homens, quis, por assim dizer, antepor
os deveres da caridade fraterna ao cumprimento dos deveres
para com Deus. Existe, entre a lei que nos ordena amar nosso
Pai celestial e a que nos manda amar nossos irmãos, tão
profunda conexão, que é impossível cumprir uma sem a outra.
Esta ligação tem seu laço em Jesus Cristo que, sendo Deus,
fez-se homem, tornou-se, por esse modo, nosso próximo. Foi,
com este título, o primeiro observante da lei do amor e da
caridade; e, por suas palavras e por seu exemplo, exorta-nos a
observá-la, seguindo-lhe o exemplo. As sagradas Escrituras
nos ensinam que Deus reina na paz e o demônio na discórdia.
Viveremos sob um ou sob outro cetro, conforme praticarmos a
caridade.
II — O amor do próximo não é uma virtude diferente do
amor de Deus. Estes dois amores brotam da mesma fonte,
como dois riachos, dos quais um sobe até Deus e o outro
desce até à criatura, sua imagem. Um dos riachos, cessando
de correr, logo seca o outro; o nível de um determina
precisamente o do outro. Podemos conhecer que grau
atingimos no amor de Deus, pela medida do amor que
consagramos ao nosso próximo. Muito se engana quem julga
amar a Deus, e em seu coração alimenta frieza para com o
próximo.
"Ó caridade — exclama são Bernardo — lei de todas as
leis, regra de todas as regras! Vida do céu ensinada à terra!
Sede para sempre o objeto de nossa observância e de nossas
meditações!"

SÁBADO DA XV SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria é o livro vivo da lei evangélica
I — A divina caridade tendo se encarnado e, por alguma
forma, se gravado em fortes caracteres no coração de Maria, é
deste coração que decorrem todos os preceitos da lei
evangélica; ao mesmo tempo, foi este coração que primeiro os
pôs em prática. Como o jato d'água sobe até à altura de onde
jorrou, assim a água viva da caridade, antes de se expandir do

212
seio de Maria a se derramar sobre a terra, volve novamente a
Maria, que será a eterna depositária da palavra evangélica. É o
que nos ensina a sagrada Escritura quando, por duas vezes,
repete que Maria conservava tudo em seu coração. Maria é,
portanto, em sua vida íntima, o santuário do fogo da caridade;
e, em sua vida exterior, é o modelo da caridade evangélica.
Temos a aprender, na escola de Maria, como se ama a Deus e
a nossos semelhantes.
II — "Vinde e escutai, exclama o profeta, vinde, ó vós todos
que temeis a Deus, e eu vos contarei quão grandes coisas ele
fez à minha alma!" (SI 65, 16). A substância de todas as graças
é a divina caridade. Antes de ser o Evangelho pregado ao
mundo, já Maria era impregnada dessa virtude e praticava com
perfeição os preceitos evangélicos. Em seu coração lemos as
recomendações, cujo sumário nos é traçado por são Paulo, na
epístola correspondente ao Evangelho desta semana.
Recomenda-nos possuirmos um mesmo coração e um mesmo
sentimento, amarmos a fraternidade, exercermos a compaixão,
conservarmos a caridade sob a guarda da modéstia e da
humildade. Proíbe-nos retribuir o mal com o mal, mas, ao
contrário, devemos pagar o mal com o bem. "Deste modo,
acrescenta o apóstolo, santificaremos Jesus Cristo em nossos
corações".
Imploremos à nossa divina Mãe o espírito evangélico, a fim
de que, pelo coração de Maria, unidos ao Coração de Jesus,
possamos sempre respirar só amor e caridade.

XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Havendo novamente grande multidão, e não tendo o que
comer, Jesus chamou os discípulos" (Mc 8, 1).
I — Consideremos atentamente os atrativos da pessoa de
Jesus, o divino encanto de sua palavra, o brilho de seus
milagres, as manifestações tão simpáticas do seu amor, os
prodígios de sua infinita bondade e compreenderemos a
ousadia com que as multidões acorriam, tudo deixando: casa e
afazeres, para o seguirem, já pelos morros pedregosos, pelas
estradas poeirentas, pelos desertos ressequidos. Cativadas
pelo pensamento do céu, esquecem os interesses terrenos e
de bom grado sofrem privações, fome, fadiga, contanto que
possam contemplar o divino Salvador e gozar as delícias da
pátria celestial.

213
Sejamos do número dessas almas famintas da palavra
divina e deixemo-nos atrair à solidão interior, para, dentro em
nós, escutarmos a doce voz do bem amado.
II — A palavra de Jesus alimenta, a um só tempo, a alma e
a inteligência; mas quando a recebemos com humildade e
escutamos o que ela ensina, o Senhor igualmente provê às
necessidades temporais. É o que se verifica no milagre da
multiplicação dos pães; este milagre confirma a consoladora
promessa do Evangelho: "Buscai primeiramente o reino de
Deus e sua justiça e o resto vos será dado por acréscimo". Os
cristãos que procuram o acessório antes do necessário
arriscam-se a ficar sem um e outro; ao passo que os que vão
direito a Jesus Cristo e entregam-lhe os cuidados do presente
e do futuro, jamais verão faltar-lhes o necessário. Assiste-lhes
a Providência e justifica-lhes a confiança, mesmo que para tal
fim fosse preciso operar maravilhas.
O Senhor se compraz, por vezes, em experimentar a
paciência dos seus discípulos; permite as provações e as
privações, mas não tolera as perturbações e proporciona o seu
socorro à nossa fé.

SEGUNDA-FEIRA DA XVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Não havendo o que comer, chamou Jesus seus
discípulos" (Mc 8, 1).
I — O Evangelho apresenta aos nossos olhos a pobreza
extrema de Jesus e dos apóstolos. Em pleno deserto, a única
provisão de que dispõem são alguns pães, e, apesar disto,
prontificam-se, ao primeiro apelo do Mestre, a se desfazerem
desse alimento em prol dos que nada possuíam. Tal
desprendimento dos bens terrenos lhes fora ensinado pela
palavra e pelo exemplo daquele que não possuía uma pedra
em que repousasse a cabeça. "Sou pobre e vivo do meu
trabalho desde a minha juventude", já de Jesus predissera um
profeta. Quis que seus discípulos fossem como ele,
desapegados do mundo; enobreceu a pobreza a tal ponto que
ela se tornou uma condição do apostolado e privilégio de todos
os que se santificam na escola do Evangelho.
Quando o Senhor concede bens ao rico, é para constituí-lo
instrumento de sua providência para com os pobres, como

214
reservatórios nos quais é depositada a água destinada a
fertilizar os campos e os vales.
II — O Senhor escolheu os seus discípulos entre os pobres
ou entre aqueles que voluntariamente tal se fazem; ordenou-
lhes que pregassem o Evangelho aos pobres. Sua predileção
pela pobreza e as prerrogativas a ela concedidas dão-nos
ensejo de apreciar as vantagens desta virtude evangélica.
Jesus ordena que tudo abandonemos; mas não há termo
comparativo entre o que deixamos e entre o que dele
recebemos. A alma religiosa, à qual Deus não basta, será
eternamente indigente; mas a que se satisfaz só com a posse
de Jesus, é imensamente rica e comunicará a outras sua
riqueza. É o tesouro que devemos ambicionar, procurar e
conservar com o mais extremoso cuidado. Dele gozaremos
plenamente se formos desprendidos dos bens do mundo e do
espírito de propriedade.

TERÇA-FEIRA DA XVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Tenho pena deste povo, porque já há três dias que não se
afasta de mim e não têm o que comer" (Mc 8, 2).
I — Nosso Senhor, cuja bondade é inefável, manifesta uma
terna e previdente compaixão, à vista do povo que o
acompanhou ao deserto. Ele conhece suas necessidades;
conta os dias dos seus sofrimentos e com eles sofre:
"Compadeço-me deste povo", diz aos apóstolos. Não se
apressa, no entanto, em socorrê-los e deixa decorrer vários
dias sem providenciar o pão para eles. Profunda lição para as
almas que se conservam fiéis em suas provações! Devem
suportar as dilações de Deus e confiar firmemente em seu
auxílio. Assim se exprime são João Crisóstomo: "Aquele que
purifica o ouro, bem conhece o tempo necessário para a
purificação das almas".
Bem-aventurados os que sofrem pacientemente as de-
longas de Deus! Bem-aventurados os que, por sua humilde
resignação, excitam a compaixão do Senhor! Suas esperanças
não serão inúteis.
IX — O povo que outrora murmurara, no deserto, contra
Moisés, não pôde pisar a terra da promissão; mas ao que
segue fielmente a Jesus, sem se deixar desanimar pela fome e
pela fadiga, lhe serão abertas as portas da pátria celestial. A

215
que povo nos assemelhamos nos momentos da tribulação?
Quais as nossas disposições nas horas de aridez, de tristeza e
de sacrifícios? Quais os nossos sentimentos em relação ao
guia de nossa alma quando prova a nossa humildade e nossa
obediência?
Em todas as circunstâncias procedamos como dóceis
criancinhas que descansam confiantes nos amorosos braços
paternais.

QUARTA-FEIRA DA XVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E se os despedir em jejum para suas casas, desfalecerão
em caminho, porque alguns deles vieram de longe" (Mc 8, 3).
I — O divino Salvador não se contenta em providenciar
a nossas necessidades atuais; prevê também as necessidades
do caminho e este caminho compreende toda a nossa
peregrinação terrestre. Sua clarividente solicitude deve
garantir-nos o futuro: ela nos assistiu até ao presente e saberá
proteger-nos até ao fim. Pode contar com o auxílio da
Providência quem anda retamente nos caminhos de Deus. O
Senhor, que nos dá o pão do céu, não nos deixará faltar o pão
da terra e, se fielmente guardamos sua palavra como diretriz
de nossos passos, não desfaleceremos em caminho.
II — O Evangelho faz notar que alguns dos que seguiam o
Senhor vinham de longe; isto significa, conforme os intérpretes,
que eles haviam encontrado Jesus depois de longos extravios.
Eles excitam particularmente a compaixão do Salvador, pois
deles faz menção especial. Por conseguinte, se nossos
pecados foram numerosos, lembremo-nos que mais
numerosas ainda são as misericórdias do Senhor e que nada
justifica o enfraquecimento da esperança cristã.
Animemo-nos de sentimentos dignos da bondade infinita
de Deus que, longe de repudiar os pecadores, mostra piedade
para com sua fraqueza e faz superabundar a graça, onde em
abundância existia o pecado.

216
QUINTA FEIRA DA XVI SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Jesus, dando graças, partiu os pães e deu-os a seus
discípulos, para que os distribuíssem ao povo" (Mc 8, 6).
I — Admiremos a onipotência de nosso Senhor que, por
uma única palavra, multiplica os pães, para alimentar a
multidão que o seguira no deserto. Mas este milagre, cercado
de circunstâncias materiais, não era senão a figura do
sacramento do Altar, que é o milagre dos milagres e o mistério
fundamental da religião. O Evangelho relata estes dois
prodígios nos mesmos termos. Jesus alça primeiramente o
olhar ao céu, para nos mostrar a fonte de onde descem os
dons de Deus. Rende graças, para fazer subir ao céu nosso
amor e nossa gratidão. Benze o pão, a fim de que saibamos
que é sua mão divina que opera todas as maravilhas. Rompe o
pão e o multiplica, para nos ensinar que há um só Pão descido
do céu que a todos se dá, para que todos tenham uma mesma
vida; e finalmente, encarrega seus discípulos de distribuírem o
misterioso alimento, para prefigurar o poder dos apóstolos e a
missão sacerdotal.
Todos esses atos são cheios de ensinamentos e o Evan-
gelho no-los revelou, para nos iniciar nos segredos da pátria
divina.
II — Assim como o pão do deserto só foi dado aos que
seguiram Jesus Cristo, o pão eucarístico só é oferecido às
almas que se prendem ao Senhor e guardam a sua palavra. E
assim como o pão corporal os preservava de desfalecerem no
caminho, assim o alimento celestial conserva as almas. Ele é o
sustento que nos dá a força para passarmos da terra ao céu.
Jesus não é tão somente a Verdade e a vida; é também o
caminho e, se com ele andarmos, atingiremos, seguros, a luz
da imortalidade.

SEXTA-FEIRA DA XVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Comeram e ficaram fartos" (Mc 8, 8).
I — O coração do homem é feito para Deus; por conse-
guinte, tudo que é inferior a Deus não pode cumular seus
desejos; daí provém a fome e a sede que torturam o coração
dos que buscam sua felicidade fora de Deus. Quanto mais
acumulam, tanto mais vazios se encontram; e depois de

217
esgotarem todos os prazeres da terra, confessam, com
Salomão, que tudo não era mais do que vaidade e aflição de
espírito. A saciedade, isto é, o cúmulo da paz e da alegria
encontra-se unicamente na plenitude do amor; e este amor é o
próprio Jesus Cristo, que veio para dar sua vida, e quer que a
desfrutemos fartamente.
Comparemos a alegria de uma alma divinamente saciada
com as agitações da que busca os prazeres do mundo, e
sejamos agradecidos ao Senhor, que nos concedeu o melhor
quinhão, que nunca nos será retirado.
II — Nenhum alimento, por mais saboroso e espiritual que
seja, poderia satisfazer-nos enquanto não saciasse nosso
coração. Ora, uma só coisa pode encher a profundidade do
coração humano. Esta coisa única é o amor infinito; e este
amor é Deus. "Deus é amor", lemos no Evangelho, e "o Amor
fez-se carne". O amor encarnado é Jesus Cristo e Jesus Cristo
tornou-se nosso pão, nosso alimento e nossa bebida. Só ele,
por conseguinte, responde às mais íntimas necessidades da
nossa alma. Somente ele cumula nossos desejos, aplaca
nossa fome, estanca nossa sede e enche totalmente a capaci-
dade do nosso coração. Se temos o coração farto de amor, que
nos resta mais a desejar? Declaremos com santo Agostinho:
"Vós me tocastes, meu Deus; apreciei vossa graça e comecei a
sentir a incomparável suavidade dos vossos perfumes; e me
consumi de ardor no gozo das celestiais delícias".

SÁBADO DA XVI SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria no deserto
I — Consideremos que o deserto, onde o divino Mestre
conduziu seu povo, não era senão a imagem da solidão interior
a que Jesus atrai incessantemente as almas fervorosas, para
alimentá-las com sua graça e comunicar-lhes seus secretos
favores. Maria Santíssima conservava-se sempre unida a
Deus, quer em sua vida ativa quer na contemplativa; não se
afastava do sagrado retiro da sua alma, se bem que
participasse dos labores e dos trabalhos ativos do apostolado.
Tal deverá ser a nossa norma habitual e, se aspiramos a viver
santamente com Jesus e Maria, preciso é que nos habituemos
a procurar Deus em nosso coração, visto que o reino de Deus
está em nós e só em Deus encontramos o descanso, a luz e a
paz.

218
II — Entre as virtudes que caracterizam a santíssima
Virgem, e que devemos com fervor imitar, distingue-se o seu
especial amor pela solidão. Nada, realmente, pode ser mais
prejudicial à santidade da alma do que a diversidade de
influências que se entrechocam no mundo; os elementos
terrenos são como nuvens escuras que impedem a alma de
ver, escutar, sentir e saborear as coisas do céu. Deus fala ao
nosso coração no retiro: é lá que nos ensina a orar, que nos
instrui e nos consola; no nosso íntimo, e longe das dissipações
do espírito, é que alimenta e fortifica misteriosamente a nossa
alma, para que não venha a sucumbir ao peso das provações e
dos combates.
Ativemos em nós a vida interior; unamo-nos a Deus pela
prece e sejamos vigilantes na oração, sem a qual não há força,
nem coragem, nem perseverança.

XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vás revestidos
com peles de carneiros e por dentro são lobos rapaces"
(Mt 7, 15).
I — Nosso Senhor Jesus Cristo, depois de haver confiado a
seus apóstolos o cuidado de apascentar suas ovelhas, previne
o rebanho contra os falsos profetas, isto é, contra os falsos
apóstolos e os falsos pastores que submetem o espírito de
Deus ao seu próprio e ao espírito do mundo. Sob a capa de
zelo apostólico, privados da verdadeira caridade e da solicitude
desinteressada, colocam-se no lugar do único Pastor e
escravizam ao seu jugo as ovelhas do Senhor.
Estejamos alerta contra essa espécie de profetas, pois
entravam os caminhos de Deus. Eles exaltam a presunção e
lisonjeiam as almas, que se arriscam a ser com eles arrastadas
à perdição. Os corações retos, humildes e dóceis, escapam a
esse perigo; nunca lhes falta uma direção segundo o espírito
de Deus.
II — A sagrada Escritura nos adverte que o próprio satanás
se transforma em espírito de luz, para seduzir as almas;
concluamos, pois, que não é para admirar que se utilize de
toda espécie de obreiros enganadores, para embaraçar os
caminhos de Deus. A vigilância cristã deve evitar, como sendo
falso profeta, todo espírito que, por suas palavras e seus
exemplos, contradisser a autoridade da Igreja, perturbar a

219
união evangélica, propagar as divergências, o murmúrio e
dificultar os caminhos da obediência.
Lembremo-nos de que poderemos ser, em relação ao
próximo, ou anjos de salvação ou falsos profetas. Façamos por
edificar aos que nos cercam por nossa boa conduta, e Deus
nos concederá em recompensa uma direção esclarecida, firme
e prudente, que nos há de abrir as portas do céu.

SEGUNDA-FEIRA DA XVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Pelos frutos os conhecereis" (Mt 7, 16).
I — O Senhor nos indica o meio seguro de reconhecer os
falsos profetas. Não está nem no aspecto, nem nas palavras,
nem em seus traços exteriores o sinal que os dará a conhecer,
mas sim em seus frutos, isto é, pelas obras e pela boa ou
funesta influência que exercem. Só Deus perscruta o fundo dos
corações, somente ele é juiz das intenções e dos
pensamentos. Exige, no entanto, que estejamos de sobreaviso,
para não confiarmos levianamente e sofrermos a influência de
qualquer espírito.
Apliquemos esta medida em nosso próprio proveito. Que
somos para os nossos semelhantes? Que frutos produzimos?
Que influência exercemos?
II — Os frutos que fazem conhecer os pastores segundo o
coração de Deus são os que o Espírito Santo faz germinar na
alma e que o apóstolo são Paulo enumera em sua epístola aos
coríntios: caridade, alegria, paz, paciência, confiança e
perseverança. Se tais frutos se revelam em nossa conduta, se
contribuímos para o seu desenvolvimento nos outros, seremos
reconhecidos por instrumentos de Deus, por profetas
conformes ao Senhor, E, inversamente, é instrumento do
espírito do mal aquele que diminui a confiança, excita as
paixões, perturba a paz das almas e faz com que a tristeza
substitua a alegria, a irritação suceda à submissão, e o
desânimo vença a paciência. Imensa desgraça é sofrermos a
influência de um espírito maldoso; mas bem maior ainda será a
de lhe servir de mediador e de cúmplice. Deus nos pedirá
contas da alma de nosso irmão. Zelemos para que não venha
nosso próximo sofrer de nós a nefasta influência que receamos
para nós mesmos.

220
TERÇA-FEIRA DA XVII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Toda árvore boa dá bons frutos e toda árvore má dá maus
frutos" (Mt 7, 17).
I — O homem mais criminoso é capaz de uma boa ação e
o homem mais santo poderá cometer faltas. Por isto é que não
se pode avaliar o valor de um homem unicamente por suas
obras exteriores. Não é o fruto que comunica suas qualidades
à árvore, mas sim a árvore que as transmite ao fruto. Uma
árvore só pode ser verdadeiramente boa quando sua raiz é
boa; e verdadeiramente ruim quando está corrupta sua raiz.
Ora, duas espécies de árvores há: uma que produz sempre
bons frutos e a outra, frutos ruins; uma tem por raiz o amor de
Deus, a outra, o amor próprio. O amor de Deus, que nos faz
preferir Deus e nosso próximo a nós mesmos, produz frutos de
caridade, de dedicação, de santidade. O amor próprio, em
sentido oposto, antepõe-se a Deus e ao próximo, é a raiz do
egoísmo, da ambição, da inveja e de todos os outros vícios.
Passemos em revista o nosso íntimo e examinemos que
espécie de frutos produzimos, para que assim possamos nos
conhecer. Se verificamos que os produzimos mais, deitemos o
machado à raiz e trabalhemos por melhorar a árvore.
II — Enquanto a caridade for senhora de um coração, a
árvore estará sã e com um pequeno cultivo dará frutos
saborosos; mas, não existindo a caridade, péssima é a árvore
e seus frutos semelhantes aos que crescem às margens do
mar Morto; podem parecer brilhantes, mas são ocos. As ações
mais insignificantes, se baseadas na caridade, são aos olhos
do Senhor como frutos preciosos; ao passo que jazem estéreis,
por deslumbrantes que pareçam, as obras destituídas de
caridade. É o que lemos na magistral epístola de são Paulo aos
coríntios. "Quando mesmo houvéssemos distribuído os nossos
haveres aos pobres, e entregue o corpo para ser queimado, se
não tivermos caridade, nada disto nos aproveitará" (1 Cr 13, 3).

QUARTA-FEIRA DA XVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"A boa árvore não pode produzir maus frutos, nem a árvore
má dar bons frutos" (Mt 7, 18).
I — Só Deus é bom, assegura o Evangelho. É bom em si
mesmo, em sua essência, em sua natureza; e o homem só é

221
bom pela sua participação a essa bondade inicial. O homem se
assemelha ao que ama: reflete os traços da bondade divina
quando ama a seu Deus; reproduz a imagem do espírito das
trevas quando ama o mal. "Assemelham-se aos objetos que
amaram", diz a Escritura.
Se queremos, pois, nos tornar bons e produzir bons frutos,
amemos com todo o coração o Deus de bondade e sejamos
humildes; a humildade conserva os frutos já sazonados e
produz continuamente novos frutos; convém à glória de nosso
Pai celeste que produzamos frutos em abundância. Trabalhai
em vossa santificação com afã sempre maior, aconselha o
apóstolo, e sabei que o vosso labor não ficará sem
recompensa em nosso Senhor.
II — Examinemos o que estimamos, o que procuramos, o
que desejamos; o resultado nos dará o conhecimento do que
somos. Mas não seja motivo de desânimo a consideração de
imperfeição ou ruindade das nossas obras; as árvores más,
pelo cultivo, poderão tornar-se boas e, para isto conseguir, não
basta a poda das folhas e dos galhos; devem melhorar-se as
condições do terreno, da atmosfera e da temperatura. Deus
nosso Senhor não quer a perda de alma alguma; pelo
contrário, convida com insistência os maiores pecadores a se
reintegrarem em sua graça. Mas, para operar esse regresso
feliz, urge uma mudança radical. As modificações da conduta
exterior não reanimam a vida espiritual. É o coração que deve
mudar e se levantar, como a árvore que ergue para o céu os
seus galhos refloridos.
Por mais fracos que sejamos, por mais culpados que
possamos ser, não desesperemos nunca do coração do
homem, nem do Coração de Deus!

QUINTA-FEIRA DA XVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Toda árvore que não produzir bom fruto, será cortada e
lançada ao fogo” (Mt 7, 19).
I — O Senhor não limita sua condenação somente à árvore
que produz maus frutos, mas igualmente àquela que não os
produz bons; significa o ente inútil que permanece neutro entre
o bem e o mal e vive unicamente para si. Quantos há, mesmo
entre os servos de Deus, que abandonam à incúria a sua boa
terra e não fazem germinar nem seus talentos, nem os dons do

222
alto! E, no entanto, mostram-se contentes consigo mesmos e
protestam, como o fariseu, não serem nem ladrões, nem in-
justos, nem adúlteros. Mas serão humildes, generosos,
dedicados? Conquistaram talvez glória, honra, dinheiro; mas
que fizeram para sua justificação, para o bem de seus irmãos,
para a glória de Deus? São árvores em que o madeiro é árido,
sustenta apenas uma tênue folhagem. Serão lançadas ao fogo.
Santo Agostinho diz: "O homem foi feito para o fogo; se não
aspirar ao fogo do amor, cairá no fogo do inferno".
II — As árvores mais férteis não são geralmente as da
estrada real. As melhores árvores frutíferas são as que
crescem nos jardins, banhadas pelos riachos e fecundadas
pelo sol. São as almas cumpridoras dos preceitos evangélicos,
cuja caridade é sincera, que têm horror ao mal, amam o bem e
dedicam a seus irmãos um afeto verdadeiramente fraternal,
cumprem com energia seus deveres, são firmes na virtude,
pacientes nas provações, perseverantes na oração, que não se
deixam vencer pelo mal, mas o superam pela prática do bem.
As comunidades religiosas, sobretudo, são jardins abençoados
onde abundam todas as graças celestes, pois a cultura
espiritual é organizada de modo a aumentar a fecundidade das
plantas do céu e a aperfeiçoar suas qualidades. Quão culpadas
seriam as almas relaxadas na obra da sua santificação!
Preparemo-nos com fervor para a estação da colheita, a
fim de apresentarmos a Deus uma rica braçada de frutos
evangélicos!

SEXTA-FEIRA DA XVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Nem todos os que me dizem: Senhor, Senhor! entrarão no
reino dos céus; mas somente entrará aquele que faz a vontade
de meu Pai” (Mt 7, 21).
I — O texto que se apresenta à nossa meditação prova que
é vã toda devoção, seja qual for seu caráter, que não tenda a
conformar nossa vontade com a vontade de Deus; pois o
Senhor pede o sacrifício de nossa própria vontade e é somente
pela obediência que executamos este sacrifício. A verdadeira
piedade não consiste nos jejuns, nem nas mortificações, nem
nas consolações, mas exclusivamente na conformidade de
todos os nossos atos com a vontade divina. A mais perigosa
ilusão nos caminhos de Deus consiste na prática da virtude

223
fora da obediência; em tomarmos nosso próprio parecer por
árbitro de nossa conduta; considerarmos nossas aspirações
como provas de perfeição; encobrirmos nossas próprias
vontades com o véu da vontade de Deus e termos a pretensão
de obedecer ao Senhor, quando, na realidade, não cumprimos
mais do que a nossa própria vontade.
Os que se entregam a essa falsa devoção têm sempre
sobre os lábios o nome do Senhor, mas não entrarão no reino
do céu.
II — O maior obstáculo que detém a graça e impede a
nossa união com Deus, é a nossa vontade própria; não poderá
haver, por conseguinte, santidade, enquanto não for derrubada
essa barreira, pela prática da obediência. Santo Agostinho
adverte aos que clamam: Senhor, Senhor! Que isto não lhes
basta, mas que precisam agir. O verdadeiro amor não se limita
a invocações, protestos, promessas: cumpre fielmente a
vontade daquele a quem ama. Jesus abrirá o céu à prática e
não à teoria.
Se queremos, portanto, produzir frutos para a eternidade,
apeguemo-nos com todo o coração a este fundamento: a
execução da vontade de Deus. É esta a regra da perfeição
imposta por Jesus e que ele mesmo seguiu. Ele veio para
cumprir a vontade de seu Pai e obedecer-lhe por toda a vida,
até à morte de cruz.

SÁBADO DA XVII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Maria é a árvore que produz o fruto da vida"
I — Se aplicarmos em sua justa medida, à santíssima
Virgem, a apreciação que lhe consagra o Evangelho, que ideia
formaremos de sua santidade? Jesus é o fruto de suas
entranhas. Ela é a Mãe do Santo dos santos! Mas,
contrariamente às leis ordinárias da vida, não foi a árvore que
comunicou ao fruto a perfeição de suas qualidades; o fruto é
que divinizou a árvore. Maria é cheia de graça: ela é amorosa e
amável, porque Jesus é o foco do amor; é misericordiosa, terna
e magnânima, porque Jesus Cristo, a Bondade encarnada,
descansou em seu seio; ela é toda pura e perfeita, porque o sol
de justiça levantou-se no céu de sua alma. Toda a beleza de
Maria é um reflexo do Filho de Deus unido ao seu coração.
Mas nós, que somos seus filhos, não participaremos desta
inefável aliança? Então Jesus Cristo não habita igualmente em

224
nós? Admitidos à sagrada Mesa, seguindo o exemplo de nossa
santa Mãe, devemos produzir abundantes frutos de santidade.
II — O apóstolo são Paulo escreve aos Efésios que o
Senhor nos elegeu para que fôssemos santos e sem mácula
ante seus olhos. Ora, se a santidade deve ser o quinhão de
todos os discípulos fiéis, seria possível compreender a
eminente santidade de Maria, que é ao mesmo tempo a Mãe
dos santos e a Mãe do Santo dos santos? Ela é o espelho sem
mancha da majestade de Deus e a imagem de sua bondade.
Para que a contemplação das magnificências de Maria produza
em nós efeitos salutares, precisamos de nos lembrar que cada
um de nós, com a cooperação do Espírito Santo, deve formar
Jesus Cristo em sua alma e, seguindo o exemplo de Maria,
devemos produzir frutos de todas as virtudes.
Deixemos atuar em nós a graça da santa comunhão e
correspondamos a essa graça poderosa pela humildade e pela
obediência, a fim de que só Jesus Cristo viva e reine em
nossos corações.

XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Havia um homem rico que tinha um feitor e este foi
acusado perante ele de ter dissipado os seu bens" (Lc 16, 1).
I — A parábola do ecônomo infiel nos mostra, em chocante
contraste, de um lado a bondade infinita de Deus, e de outro, a
perfídia do homem. Deus, o soberano Senhor das coisas
visíveis e invisíveis, confiou ao homem o governo dos bens
terrestres; o homem não é, por conseguinte, seu proprietário,
mas, sim, o seu administrador ou ecônomo, e deles terá de
prestar contas. É, pois, bem culpado quando desvia em seu
proveito os tesouros da graça e da natureza. Quantos
ecônomos existem desta espécie, que dão à sua vida inteira
uma aplicação oposta ao seu fim! E nós, que utilidade fazemos
do nosso tempo, das nossas forças, dos nossos talentos, das
potências da nossa alma? Lembremo-nos das contas que
teremos a prestar, para não temermos o juízo de Deus!
II — O ecônomo é fortemente acusado de dissipar os bens
de seu senhor. Ora, o Evangelho esclarece que não é somente
dissipador aquele que abusa das graças ou as faz reverter em
seu próprio interesse; mas também o que negligencia de as
fazer valer. "Quem comigo não ajunta, dissipa", afirma nosso
Senhor. É uma depravação trabalhar para a ostentação, para

225
os prazeres, para os interesses deste mundo, excluindo a
preocupação de Deus e da eternidade. E peca-se igualmente
quando, sem abusar formalmente das graças, deixam-se estas
infrutíferas.
Exige a justiça que a Jesus Cristo consagremos tudo o que
possuímos e tudo o que somos; pois tudo lhe pertence e é a
ele destinado. Quando se desconhece esta verdade, fica-se
exposto a passar aos olhos de Deus por um ecônomo infiel.

SEGUNDA-FEIRA DA XVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Dá contas da tua administração, porque já não poderás
ser meu feitor" (Lc 16, 2).
I — Avaliemos o desespero do ecônomo infiel! Destituído
de seu cargo, acusado por sua própria consciência, vê-se
coagido a comparecer ante seu senhor para lhe prestar contas
da sua administração. Este exemplo nos mostra o desfecho de
uma vida mal empregada; pois todo mortal, na ocasião em que
menos o esperar, ouvirá esta palavra da justiça divina: Dá-me
contas da tua vida! Contas rigorosas que não terão por objeto
somente o mal que houvermos praticado, mas ainda o bem que
houvermos omitido ou mal feito! Qual será, pois, o espanto e a
confusão de uma alma que, por sua negligência no serviço de
Deus, se verá degradada ante os anjos, banida do céu e
privada da sua coroa!
Esquadrinhemos severamente nossa consciência, aceite-
mos de boa mente as advertências e repreensões, a fim de nos
corrigirmos de tudo quanto possa desagradar a Deus.
II — É uma verdade de fé que toda criatura comparecerá
ante o tribunal de Jesus Cristo para prestar contas do que
houver praticado em sua vida, seja de bem, seja de mal. Ora,
este julgamento se dará imediatamente após a morte,
conforme nos diz são Paulo: "Foi estabelecido que todos os
homens morrerão e que após sua morte serão julgados". O
juízo, portanto, é verdade tão positiva quanto a morte. Por isto
é que o homem prudente se esforça em empregar santamente
o tempo tão curto da vida atual; está sempre pronto, receando
ser colhido de surpresa. O fruto a retirar da presente meditação
é uma duplicada vigilância, para fazermos desde o presente
aquilo que desejaríamos ter feito na hora da nossa morte.

226
TERÇA-FEIRA DA XVIII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Que farei, visto que o meu senhor me retira a admi-
nistração? Lavrar a terra não posso, de mendigar tenho
vergonha" (Lc 16, 3).
I — Ao entrever a sorte que o espera, o ecônomo infiel,
receoso, exclama: "Que farei?" É o despertar da consciência;
rápido instante, do qual poderá depender a reabilitação ou a
queda irreparável. Se, ante a visão de suas faltas, o pecador se
persuade de que nada mais há a fazer e que inúteis serão seus
esforços, cai no desânimo e no desespero. Mas se encara
seriamente o mal que causou a si e aos outros, pode a graça
reerguê-lo; porque lhe dá a inspiração e a força para reparar
suas faltas. Reanimando então sua confiança, conta com a
misericórdia do Salvador. Jamais falecem os avisos do alto;
indicam-nos o que temos de fazer para abandonarmos os
desvios perigosos e reentrarmos na graça de Deus.
II — O mau ecônomo procura mais furtar-se ao castigo do
que reparar suas faltas; deplora menos as injustiças de que se
tornou culpado, do que a confusão que resultará em sua
consequência. Assemelham-se nisto às almas que
excessivamente se afligem pelos sofrimentos provenientes de
seus desvarios, sem buscar conhecer a causa. Pouco se lhes
importa o faltarem à caridade e ofenderem a Deus;
compadecem-se exclusivamente de si mesmas. Tal contrição é
ilusória; não produz reparação, nem propósito de emenda.
Exclama, pois, amarguradamente o ecônomo: "Não posso
lavrar a terra, envergonho-me de mendigar". Olha unicamente
para o seu pesar, sem compreender as vantagens da humilha-
ção e da penitência. Não digamos nunca: Envergonho-me e
não posso! A confusão humilde atrai a graça do alto e, com a
graça, tudo é possível!

QUARTA-FEIRA DA XVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Sei o que hei de fazer, diz o ecônomo, para que, quando
for demitido da administração, ache quem me receba em sua
casa" (Lc 16, 4).
I — Os bens são purificados, passando pelo fogo da
caridade. Este não era certamente o pensamento do infiel
ecônomo quando, para se assegurar recursos no futuro,

227
pensou em favorecer os devedores estranhos, em prejuízo de
seu senhor. Demonstra, no entanto, um espírito de previdência
que nos pode servir de modelo: "Cultivais amigos com as
riquezas da iniquidade, a fim de que, quando vierdes a
precisar, vos recebam nos tabernáculos eternos!" As atenções
delicadas e inteligentes, os atos de deferência e de caridade,
conquistam os corações e, no derradeiro dia, nos sentiremos
felizes por deixar amigos que defenderão nossa causa e por
nós hão de orar. Esforcemo-nos por não menosprezar as
ocasiões de prestar algum auxílio e de fazer o bem, não
somente aos que nos são caros, mas igualmente àqueles pelos
quais não nutrimos muita simpatia.
II — Com o espírito do Evangelho, apreciemos o talento do
ecônomo que tão resolutamente se assegura os meios de
escapar à desgraça que o ameaça. Despoja-se
voluntariamente de uma parte de seus bens para se garantir a
posse de outros; serve-se de sua habilidade, para adquirir
amigos que hão de sustentá-lo na ocasião da sua desgraça.
Tais processos simulavam em suas aparências uma generosa
caridade. A verdadeira caridade, quando integralmente
exercida, cobre realmente muitas faltas; atrai a misericórdia, e
as mínimas esmolas, dadas em nome de Jesus Cristo, terão a
sua recompensa. Conclui-se quão imensa deve ser a
esperança das almas que reparam suas faltas oferecendo a
Jesus Cristo não somente os seus bens terrestres, mas uma
vida inteiramente consagrada às obras de caridade!
Sejamos dignos ecônomos de nosso Deus e sirvamo-lo
com amor e consciência.

QUINTA-FEIRA DA XVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E louvou o senhor o feitor infiel por ter procedido com
prudência; porque os filhos deste século são mais hábeis para
com os da sua casta, do que os filhos da luz" (Lc 16, 8).
I — O ecônomo chama, um após outro, todos os credores
do seu senhor; os faz se sentarem, informa-se dos seus títulos
e de seus direitos; concede-lhes quantidades consideráveis de
azeite e de trigo. Este modo de proceder, mais hábil do que
lícito, dá-nos, no entanto, uma lição capaz de nos confundir;
pois não é raro mostrarmos grande habilidade na gerência dos
interesses temporais, enquanto nos falecem o zelo, o ânimo e

228
a prudência nos negócios concernentes ao nosso bem espiri-
tual.
Nossa alma é a nossa parte principal; deve ser, por
conseguinte, o objeto principal de toda a nossa solicitude e de
nossa previdência!
II — O óleo e o trigo representam as graças espirituais e
temporais que nos são dispensadas durante nossa vida, o que
nos proporciona a ocasião de refletirmos nos bens de toda
espécie que a bondade divina põe à nossa disposição. Mas
estes bens constituem uma dívida sagrada, e não podemos
empregá-los senão no serviço daquele a quem pertencem e, a
não sermos falhos, precisamos fazê-los reverter ao Senhor que
no-los confiou.
Guardemo-nos de entregar ao mundo o que a Deus
pertence; e, retirando bom proveito da lição de prudência que
nos dá o ecônomo infiel, não lhe sigamos o exemplo,
sacrificando às vaidades humanas e aos favores do mundo os
eternos interesses.

SEXTA-FEIRA DA XVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Cultivais amigos com as riquezas da iniquidade, para que,
quando vierdes a precisar, vos recebam nos tabernáculos
eternos" (Lc 16, 9).
I — Seremos obrigados a considerar, em relação aos bens
que possuímos, qual a sua origem e o seu emprego? Ora, sem
nos determos nos bens materiais, cuja origem ilegítima deverá
ser reparada por compensadoras e salutares esmolas,
volvamos nossa atenção para os nossos dons espirituais; para
os motivos por vezes tão culposos, de que nos servimos para
os adquirir; porque, se cultivamos os nossos talentos, tendo
apenas em mira satisfazer nossa vaidade, se praticamos a
virtude unicamente para cativar a estima do mundo, se
exercemos nossas funções com o único propósito de contentar
nossa atividade e nossos pendores naturais, possuímos
riquezas mal adquiridas. Sendo assim, carece desfazer as
manchas de sua origem, pela caridade que tudo purifica, e
santificar as riquezas injustas, dando-lhes santa e
desinteressada aplicação.
II — Quando consagramos nossos bens espirituais e
materiais às obras de caridade evangélica, conquistamos

229
amigos no céu. Mas, longe de nós visar, ao praticarmos o bem,
a aquisição de amigos na terra; ou de angariar para nós os
sentimentos de gratidão que devem ser referidos
exclusivamente a Deus. É Jesus quem se considera obrigado
quando a alguém favorecemos e é ele o verdadeiro amigo ao
qual devemos recorrer. As nossas boas obras mais meritórias
são aquelas que, retribuídas pela ingratidão, encontrarão no
céu a sua recompensa.

SÁBADO DA XVIII SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria acalma o temor dos juízos divinos
I — A consideração do julgamento divino a todos inspira
um justo temor e este se baseia em três causas: nossos
pecados, nossos acusadores e nosso Juiz. Mas a cada causa
corresponde um motivo de confiança que tranquiliza a alma
cristã. O pecado foi apagado pelo Sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo; os acusadores somem ante os divinos méritos
que nos justificam; e mesmo quanto ao nosso Juiz, escutemos
são Paulo: "Será Jesus Cristo que me há de condenar?
Certamente que não, pois que morreu por mim; ressuscitou
para minha justificação e está à destra de Deus, onde intercede
por mim". E são Bernardo acrescenta: "No entanto, se, apesar
destes poderosos motivos de nossa confiança, recearmos
ainda os juízos de Deus, lembremo-nos que temos por mãe e
por advogada a própria mãe do nosso Juiz".
Refugiemo-nos no coração de Maria e supliquemo-la de
nos preservar dos rigores da justiça divina.
II — "O amor, diz são João, exclui o temor". Ora, foi Maria
quem inaugurou o reino do amor; e se a ideia de Deus,
separada da ideia de Maria, nos deixa apreensivos pela
lembrança de nossas faltas, o pensamento de Maria, junto ao
de Deus, faz nascer o amor de Jesus que impede o temor. Foi
em Maria que a divina justiça encontrou a misericórdia; por
Maria derrama-se, de geração em geração, em profusão
inesgotável, a fonte das misericórdias. E como é Maria o laço
que une a divindade à humanidade, tem o poder de comunicar
ao homem os tesouros adquiridos em Deus, de aplicar a
superabundância dos seus méritos aos que destes carecem e
de fazer prevalecer, pelo seu prestígio, a indulgência sobre a
severidade, o perdão sobre a condenação, a misericórdia sobre
a justiça.

230
Saibamos apreciar este privilégio de sermos filhos da
santíssima Virgem e não nos fartemos nunca de louvá-la e
bendizê-la.
XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM
"E quando chegou perto de Jerusalém, ao avistar a cidade,
Jesus chorou sobre ela" (Lc 19, 41).
I — Um doutor da Igreja qualificou as lágrimas de "sangue
da alma". Ora, o sangue é a vida e a vida da alma é o amor. É,
pois, o amor que distila as lágrimas. Mas assim como há duas
espécies de amor: o amor de Deus e o amor de si mesmo, há
igualmente duas espécies de lágrimas: lágrimas divinas e
lágrimas humanas. As lágrimas de amor, vertidas por Jesus
sobre Jerusalém, eram lágrimas divinas; não chorou ante a
visão dos tormentos que iria padecer, mas chorou em face das
pavorosas desgraças que mergulhariam em ruínas e trevas os
que rejeitam a paz e a luz.
Choremos com Jesus sobre Jerusalém e penetremos nos
seus sentimentos de compaixão, a fim de que, impulsionados
por uma caridade desinteressada, e esquecendo nossos
próprios pesares, compartilhemos as dores do nosso próximo.
II — As lágrimas de Jesus demonstram que a santidade,
que eleva o cristão acima das emoções da natureza, não
consiste na indiferença e na insensibilidade. É-nos, portanto,
permitido chorar e é mesmo vantajoso fazê-lo, desde que
Jesus chorou e prometeu consolações aos que choram. Mas
as lágrimas doces e salutares são somente aquelas que
brotam da fonte pura da caridade; não se mesclam às lágrimas
amargas e estéreis do amor próprio. São dois rios que se
repelem. A complacência, enternecida por si mesma, põe
barreira às límpidas efusões das águas do céu e opõe
obstáculos ao dom das lágrimas.
"Por que choras?" perguntou o anjo a Madalena. Res-
pondamos também a essa pergunta, cada vez que choramos;
examinemo-nos sobre o princípio e sobre o objeto das nossas
lágrimas.

231
SEGUNDA-FEIRA DA XIX SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Se ao menos neste dia, que te é dado, tu conhecesses o
que te pode trazer a paz!" (Lc 19, 42)
I — O Coração de Jesus transborda e, em sua imensa
caridade, exala uma última queixa, um último anseio a respeito
de seu povo, cego e infeliz. Esta divina compaixão não era
apenas uma emoção passageira, provocada pelo amor que
consagrava ao seu povo, pois se perpetuou na Igreja com
todos os outros sentimentos de Jesus Cristo. E o apóstolo são
Paulo estava deles impregnado quando endereçava aos
romanos estas memoráveis palavras: "Sinto em meu coração
uma imensa tristeza e uma dor contínua, a ponto de desejar
ser anátema pelos meus irmãos, os israelitas, que me são uni-
dos pelos laços de sangue, dos quais são os patriarcas, e dos
quais nasceu o Cristo, o bendito em todos os séculos" (Rm 9,
2-5). Se tão viva foi a caridade do discípulo, quão intensa não
seria a do coração do Mestre?
É por suas lágrimas ardentes, mais do que por suas
orações, que o divino Redentor pede a salvação de Israel.
II — Jerusalém, embriagada de glória e cega de orgulho,
não reconhecia sua degradação moral e, em vista disto, não
podia admitir a hipótese de uma reabilitação. Confiada em si,
rejeitava a luz e a paz. Ora, a Jerusalém culpada não figura
somente o povo judeu; mas igualmente todo ser que se rebela
contra Deus. Não existe enfermo mais desgraçado do que
aquele que desconhece sua moléstia e recusa, ao mesmo
tempo, médico e remédio. A mais incurável das misérias é a do
pecador que se julga justo e que, em sua louca presunção,
despreza a graça da salvação e o próprio Salvador.
Não cerremos os olhos de nossa consciência e levemos
em apreço toda luz que nos faz ver o que somos.

TERÇA-FEIRA DA XIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Virão dias para ti em que teus inimigos te cercarão de
trincheiras e te sitiarão e te apertarão por todos os lados... e
não deixarão em ti pedra sobre pedra" (Lc 19, 43. 34).
I — Aos dias da misericórdia seguem dias de castigos,
porque a graça desprezada provoca sempre os rigores da
justiça. Os judeus, que haviam recusado os dons de Jesus

232
Cristo, viram realizarem-se, literalmente, as catástrofes
anunciadas. Sua história é a profecia da nossa, e os severos
golpes que puniram a ingratidão, a presunção e a infidelidade
suas, representam calamidades análogas, mais terríveis ainda,
que ameaçam o cristão. As palavras de Jesus cumprem-se no
tempo e na eternidade; elas são confortadoras para os
corações contritos e humilhados, e fulminantes para o pecador
orgulhoso.
II — Os termos empregados por Jesus, para descrever a
ruína de Jerusalém, aplicam-se ao estado funesto das almas
que abandonam seu Deus. No momento em que estas rejeitam
as últimas graças, o demônio cerca-as de trincheiras, isto é, em
redor delas se levantam ciladas e muros de separação,
tornando-as inacessíveis à claridade do alto. Completamente
enclausuradas e comprimidas, não percebe a consciência uma
brecha sequer, e a vontade endurecida cai sob seu próprio
peso. Não fica pedra sobre pedra, isto é: obras e esperanças
se esvaem e o edifício espiritual desmorona inteiro no pó da
perdição.
A reflexão de tais perigos desperte em nós uma terna
compaixão para com as almas que se desgarram e peçamos
ao Senhor que opere em nós uma verdadeira conversão.

QUARTA-FEIRA DA XIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Não conheceste o tempo da tua visita" (Lc 19, 44).
I — O Salvador do mundo, ao lamentar a ruína dos judeus,
dá por única razão de sua infelicidade a cegueira que lhes fez
desconhecer o tempo da sua visita. Concluímos deste fato que
há épocas preciosas em que o Senhor visita as almas; que há
dias de graças, horas e ocasiões de salvação, oferecidas aos
maiores pecadores. Discernir esse tempo é corresponder
imediatamente à graça, é abrir incontinenti nosso coração às
inspirações do alto, é cumprir hoje mesmo aquilo que talvez
não nos seja dado fazer amanhã; é aproveitar o momento
atual, prontamente, sem tardança; pois, se deixarmos passar
essa oportunidade, arriscamo-nos a desconhecer a visita de
Deus. A magna infelicidade da alma é, por conseguinte, não
somente pecar, mas negligenciar as ocasiões de reparar o
pecado e os meios que lhe são oferecidos para apagá-los.

233
II — Se Jerusalém houvera compreendido a visita do
Senhor, se teria humilhado e teria evitado o desastre do
castigo. Porque o Senhor veio para nos salvar e não para nos
perder. É o que dizia o profeta Isaías: "Volvei-vos para mim,
filhos infiéis, e curar-vos-ei do mal que fizestes, afastando-vos
de mim". Se ouvirdes hoje a voz de Deus, precavei-vos de
fechar o vosso coração.
Procuremos reconhecer as visitas do Senhor; são fre-
quentes, são suaves e calmas e nos trazem a tranquilidade, a
luz e a segurança.

QUINTA-FEIRA DA XIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E tendo entrado no templo, começou a expulsar os que
vendiam e compravam nele" (Lc 19, 45).
I — Consideremos nosso Senhor sob os dois aspectos em
que nos aparece em ação no mesmo mistério. Primeiramente,
movido de compaixão, chora sobre a culpada Jerusalém;
depois, de súbito, explode na mais viva indignação do seu zelo
divino. Castiga e expulsa do templo aqueles que profanam a
habitação de Deus e espalha, em volta, o espanto e o terror.
Mas de onde vem tão súbita transformação? Por que o
Cordeiro de Deus tão suave, tão indulgente, tão magnânimo,
se mostra inesperadamente terrível como um leão? Aqui
compreendemos o mistério da justiça e da misericórdia de
Deus. Sua misericórdia é inesgotável em se tratando de pobres
almas que caem por fraqueza ou por cegueira; mas sua justiça
é implacável para os que, conhecendo o bem, fazem o mal;
para os que abusam voluntariamente da graça e fazem servir
às suas paixões até as próprias coisas santas.
II — Se não entra aqui em consideração o crime daqueles
que exploram a religião em proveito de seus interesses,
devemos, no entanto, estar prevenidos contra corrupções
análogas, mais sutis, que poderão infiltrar-se na vida espiritual.
Dar somente com o propósito de ser retribuído, servir a Deus
para agradar ao mundo, agradar o próximo para cativar sua
estima ou sua gratidão, cultivar as boas obras para delas retirar
glória ou vantagens, é também um comércio, um cálculo, e
que, por ser menos sórdido, não deixa de ofender a delicadeza
da piedade e a majestade de Deus.

234
Afastemos para bem longe qualquer traço de interesse
pessoal e evitemos assemelhar-nos aos mercenários que neste
mundo buscam sua recompensa. Os corações retos servem
generosamente ao mais generoso dos senhores.

SEXTA-FEIRA DA XIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Está escrito: a minha casa é casa de oração; e vós
fizestes dela um covil de ladrões. E todos os dias Jesus
ensinava no templo"
(Lc 19, 46. 47).
I — O templo de Jerusalém era, ao mesmo tempo, a
imagem do nosso coração e a figura das nossas igrejas
materiais. Mas, sob qualquer sentido em que o encaremos,
devemos considerar que o templo é a casa que a Divindade
habita corporalmente entre nós. É lá que a oração sobe e
aonde desce a graça. É o lugar dos entretenimentos sagrados
com o Santo dos santos; o lugar das elevações do coração do
homem e das efusões do coração de Deus; é o incenso do
amor a arder sobre o altar dos perfumes; e o perfume do divino
amor é a oração.
Mas, se o fogo do amor se extingue, se as oblações
cessam e se as comunicações com o céu são interrompidas no
lugar santo, o templo se torna mais vazio do que um deserto,
um corpo sem alma, e não tardará a abrir suas portas ao
espírito do mundo, que dele fará uma caverna de ladrões. Deus
reside na paz, ensina a Escritura, não habita entre as paixões e
as agitações terrestres.
II — O Evangelho acrescenta que Jesus ensinava todos os
dias no templo. Ora, o que o divino Mestre fazia visivelmente
em Jerusalém, continua a fazer nos corações, que são os
templos vivos de Deus. Aí é que o Espírito da verdade nos fala,
esclarece e fortifica; aí está o Deus de amor que nos ama e
nos ensina a amar. Precisamos adquirir o hábito de nos
recolhermos dentro em nosso coração e orarmos no nosso
íntimo ao Pai celestial que nos ouve e nos atende.
Como é feliz a alma que segue as doces inspirações do
Espírito Santo! Mais feliz ainda aquela que é ensinada pelo
próprio Jesus Cristo! Ela será ilustrada na ciência dos santos e
santificada na escola do Santo dos santos!

235
SÁBADO DA XIX SEMANA DO TEMPO COMUM
As lágrimas de Maria
I — Se Jesus chorou e se é um sentimento inspirado pela
caridade o chorar com os que choram, não resta dúvida de que
a Virgem santíssima tenha vertido muitas lágrimas. Mas estas,
como as de Jesus, eram lágrimas de amor. Quanto mais
estimamos alguém, mais intensamente participamos dos seus
sofrimentos. E que coração mais amoroso poderá existir do
que o de Maria! Será preciso reunir em um mesmo
pensamento o amor da mãe pelo filho único, o amor de uma
filha por seu pai e o amor da irmã para com seus irmãos, sua
família, sua nação e sua pátria, para poder compreender quão
ardentes, vivas e dolorosas foram as lágrimas derramadas por
Maria sobre Jesus, sobre Israel, sobre Jerusalém e sobre os
pecados do mundo. O profeta Jeremias chorava dia e noite
sobre as ruínas do templo; por motivo muito mais justo chora
Maria a perda das almas.
Supliquemos-lhe que nos obtenha o dom das lágrimas,
para chorarmos nossas próprias faltas e os desvarios dos
nossos irmãos.
II — As lágrimas de Maria contêm misteriosas virtudes que
sanam as chagas da alma e acalmam todas as dores. Santo
Ambrósio chama-as de lágrimas redentoras devido à fonte de
onde jorram, e por sua afinidade com o sangue divino.
Excedendo em preciosidade as pérolas, em fecundidade, o
orvalho; mais salutares do que o bálsamo, mais eficazes do
que todos os méritos dos bem-aventurados, essas lágrimas
são preces que comovem o coração de Deus e o coração do
homem.
Se as lágrimas nos faltam, unamo-nos às filhas de Sião, às
companheiras da santíssima Virgem que choravam no
Calvário; com elas intercedamos pela salvação de Israel e pela
conversão dos pecadores.

XX DOMINGO DO TEMPO COMUM


Parábola do fariseu e do publicano (Lc 18, 10-14).
I — Da narrativa desta parábola concluímos que Deus
prefere o pecador humilde ao justo presunçoso. Altíssima lição
que nos faz claramente compreender o preço da humildade,
companheira inseparável de todas as virtudes evangélicas.
Sem ela, estas virtudes degeneram em vícios. Está escrito que

236
Deus resiste aos soberbos e concede sua graça aos humildes.
Os raios do sol deixam áridos os cumes das montanhas, ao
passo que aquecem e fecundam os vales. O que dá ao homem
a glória e a nobreza não são nem o ouro, nem a ciência, nem
os títulos; é na humildade cristã que se encerra o germe da
verdadeira grandeza. Conforme a opinião de são Gregório, é a
humildade o sinal mais certo de predestinação.
II — A verdadeira humildade se forma em uma alma que
sente conjuntamente uma justa desconfiança de si mesma e
profunda confiança em Deus. A reunião indissolúvel destes
dois elementos constitui a humildade cristã; pois a
desconfiança em si, privada da confiança em Deus, produz
unicamente covardia e desânimo; e a confiança em Deus sem
a desconfiança em si próprio finaliza em funesta presunção.
Esses dois elementos devem, portanto, desenvolver-se
simultaneamente nos corações e se manter em equilíbrio, para
salvaguardarem o verdadeiro caráter da humildade.
Seja o principal objetivo de nossas meditações procurar
adquirir a convicção de nossa incapacidade, para evitar uma
demasiada confiança em nós e assim nos apoiarmos
exclusivamente em Deus.

SEGUNDA-FEIRA DA XX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E propôs Jesus também esta parábola a uns que
confiavam em si mesmos como se fossem justos e
desprezavam os outros" (Lc 18, 9).
I — Como nosso Senhor nos quer ensinar pelo seu próprio
exemplo e pelos seus ensinamentos a sermos mansos e
humildes de coração, nos previne com frequência contra o
orgulho, raiz de todos os pecados e de todas as desordens. Foi
o orgulho que introduziu no mundo a corrupção e a morte; o
orgulho repele a graça e a verdade. A ideia de sua excelência e
de sua superioridade domina todos os sentimentos do homem
orgulhoso. Quer ser o primeiro em toda parte; o único a ser
estimado, honrado, respeitado; só em sua pessoa concentra
toda a sua estima, depreciando o próximo e, em seus conceitos
presunçosos, imita a perversidade do anjo rebelde que
ambiciona as homenagens e adorações do universo.
Participará também do seu desgraçado destino: "porque,

237
explica são Gregório, se a humildade é um sinal de
predestinação, o orgulho é estigma de condenação eterna".
II — A mais prejudicial espécie de orgulho é a vaidade
espiritual, sentimento muito sutil de própria satisfação que,
como substância venenosa, se mistura à virtude, aos atos de
piedade e às obras da religião; temos, então, a própria graça
transformada em veneno para os que dela abusam. Tal é o
orgulho do fariseu; ele mesmo se comprazia em suas boas
obras; engrandecia-se, comparando-se aos outros; olhava com
desdém para os pecadores para pôr em relevo sua santidade
e, pretendendo dar graças a Deus, na realidade, era a si
mesmo que tributava suas homenagens.
Sejamos vigilantes contra o espírito farisaico e para tal fim
comparemo-nos, não aos pecadores, o que poderia nos
autorizar a nos julgarmos justos, mas sim aos santos, a fim de
verificarmos o quanto somos fracos e imperfeitos.

TERÇA-FEIRA DA XX SEMANA DO TEMPO COMUM


"Dois homens subiram ao templo para fazer sua oração;
um era fariseu e o outro publicano" (Lc 18, 10).
I — Os dois personagens, tão diferentes, que se en-
contraram no templo, provam que a casa de Deus é acessível
a todos; tanto abre suas portas aos justos como aos
pecadores. Uns e outros necessitam orar, pois a graça lhes é
necessária, seja para superar o mal, seja para progredir e
perseverar no bem. Mas a graça somente é concedida à
oração humilde; afasta-se dos que a pedem unicamente para
dela se prevalecerem ou se glorificarem.
"A oração da alma humilde atravessa as nuvens; atrai o
olhar de Deus e alcança o consolo e a misericórdia", afirma a
Escritura.
II — Ao enumerar seus méritos perante Deus, afasta-se o
fariseu da verdadeira justiça; porque a justiça cristã não é fruto
de nossas próprias ações, mas provém de Jesus Cristo, que é
o único justo e nos aplica o fruto de sua justiça. Se
pretendemos ser justificados e se queremos orar como justos,
devemos, antes de tudo, reconhecer e confessar o nosso nada,
que por nós mesmos nada possuímos e nada somos; que
temos, por conseguinte, necessidade de um Salvador, e que
toda a nossa confiança repousa naquele que cura os enfermos,
consola os pobres, fortifica os fracos, dá vista aos cegos e res-

238
suscita os mortos. Eis a fé que justifica, pois Jesus não veio
para os que se julgam justos por si mesmos: veio para os
doentes e os pecadores.
Compenetremo-nos de sentimentos de humildade cristã,
para que nossas orações sejam eficazes, confiantes e
meritórias.

QUARTA-FEIRA DA XX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"O fariseu, de pé, orava consigo mesmo" (Lc 18, 11).
I — Notemos a atitude do fariseu: mantém-se de pé. É
verdade que não há uma postura prescrita para orar. Deus olha
somente o coração. Mas a conduta exterior traduz
ordinariamente as disposições do espírito: o olhar, o gesto, as
mãos, refletem nossos sentimentos. O fariseu, todo
envaidecido com sua pessoa, não se lembra de se inclinar ante
a majestade de Deus: alardeia sua fartura perante os homens e
preocupa-se, sobretudo com a opinião daqueles cujos olhares
deseja atrair. Estas demonstrações exteriores do espírito de
orgulho não se apresentam sempre sob a mesma forma: são
mais ou menos sutis.
Investiguemos nossa consciência e havemos de verificar
quão frequentemente procuramos a estima dos homens, de
preferência à aprovação de Deus.
II — O fariseu dá começo à sua oração por uma
recapitulação das virtudes que se atribui: jejua, paga os dí-
zimos, é rigoroso observante da letra da lei. E, para dar mais
valor à boa opinião que de si mesmo faz, compara-se ao pobre
publicano inteiramente desprovido de qualquer mérito! É
próprio do orgulho estabelecer tais paralelos. É pronto em
observar os defeitos alheios, evitando reconhecer-lhes as
qualidades boas, que poderiam condenar sua mediocridade. As
almas humildes procedem de modo bem diverso: descobrem,
de bom grado, o bem nos outros e em si somente veem a
fraqueza e a indigência. Eis por que alcançam as graças que
imploram.
Jesus Cristo oferece os benefícios do Evangelho, prin-
cipalmente aos pobres; é que ele veio para os pecadores e não
para os justos.

239
QUINTA-FEIRA DA XX SEMANA DO TEMPO
COMUM
"E o publicano, conservando-se a distância, batia no peito,
dizendo: Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!" (Lc 18,
13).
I — A prece do publicano encerra todos os caracteres da
verdadeira humildade. Esse pecador não se prevalece de
vantagem alguma; mal ousa erguer os olhos ao céu. Domina-o
realmente o sentimento de sua indignidade, conservando-se no
último lugar na casa de Deus; bate no peito sem receio de ser
reputado pecador. Sua oração é curta; não põe sua confiança
na multiplicidade de palavras; tem fé naquele que as ouve e
defere. Somente repete: "Senhor, tende compaixão de mim,
pobre pecador!" Estas poucas palavras, brotadas de um
coração contrito e humilhado, exprimem tudo o que ele sente,
tudo o que pensa, tudo o que deseja.
Pronunciemos frequentemente a oração do publicano. Ela
tocou o Senhor e ainda uma vez há de fazê-lo inclinar-se para
nós.
II — Em sua humilde simplicidade, o publicano confessa
ser pecador; arrepende-se, espera, invoca a divina
misericórdia. Tais são os atos de verdadeira penitência. Podem
ser traduzidos em pouquíssimas palavras, e serão sempre
eficazes, se forem profundamente sinceros. Nós, que talvez
não sejamos menos culpados do que o publicano, nos
apresentaremos sempre ao tribunal da penitência levando as
disposições que atraem a graça de Deus? Estaremos
santamente confundidos por nossas faltas? Quais as
disposições que tomamos para repará-las?

SEXTA-FEIRA DA XX SEMANA DO TEMPO COMUM


"Digo-vos que este voltou justificado para casa e não o
outro" (Lc 18, 14).
I — A sentença de Jesus, fulminando o fariseu e ab-
solvendo o publicano, deve despertar nossa atenção sobre as
consequências opostas da falsa e da verdadeira devoção. A
falsa devoção, isto é, o farisaísmo, é o orgulho na religião,
profanação funesta que torna a piedade, as boas obras e a
própria virtude pretextos de vanglória. No palco do mundo é o
orgulho um vício, mas aí está em seu lugar e é uma loucura
que geralmente agrada aos homens. Mas o orgulho na religião,

240
o orgulho na casa de Deus, o orgulho que se ostenta no
serviço de um Senhor que é manso e humilde de coração, é,
entre todos os vícios, o mais monstruoso, o mais imperdoável,
o mais revoltante perante Deus e perante os homens. Jejuns,
esmolas, cuidados aos enfermos e outros atos de caridade não
impedem a condenação quando fomentados pelo amor próprio
e pela vaidade.
I I — A verdadeira devoção é, antes de tudo, desin-
teressada; isto significa que, visando unicamente Deus, não se
busca a si e, como a Deus tudo reverte, nada sobra para a
vanglória. Por conseguinte, não ambiciona nem as
homenagens, nem os louvores humanos. É humilde, antes de
tudo; e, em vista disto, é-lhe preferível um defeito que a
humilhe, a uma qualidade que a enalteça. E, sendo humilde, é
também caridosa. A humildade não admite nem interpretações
maliciosas, nem comparações desfavoráveis; ela não julga,
não murmura, não se lamenta, não nutre pretensões; logo, não
sofre decepções.
Que a nossa piedade se abrigue sob o manto da humil-
dade, a fim de alcançarmos de Deus nosso Senhor o perdão e
a misericórdia, como o publicano do Evangelho.

SÁBADO DA XX SEMANA DO TEMPO COMUM


A humildade de Maria — causa de sua grandeza
I — O Evangelho, depois de enunciar a sentença que abate
o orgulhoso e perdoa o humilde pecador, conclui nestes
termos: "Aquele que se eleva será humilhado e aquele que se
humilha será exaltado". Palavras estas que tiveram perfeita
realização na santíssima Virgem: foi sua elevação proporcional
ao seu profundo abatimento. Na humildade de Maria há um
mérito singular que em parte alguma poderá ser encontrado.
Os filhos dos homens têm justos motivos para se conservarem
humildes, porque podem todos confessar com Davi: "Fui
concebido na iniquidade e nasci no pecado". Nenhum dentre
eles é sem mácula e sem defeito. Unicamente a Virgem santís-
sima é imaculada em sua conceição e em toda a sua vida. O
arcanjo achou-a cheia de graça; e na presença mesmo de
Jesus, foi proclamada bem-aventurada: Mãe do Rei dos reis e
do Santo dos santos, permanece, apesar de todos estes títulos
grandiosos, a humilde escrava do Senhor. Tão prodigiosa
humildade, aliada a tão incomparável grandeza, é mais que

241
suficiente para confundir os homens, que a tantas misérias
aliam tantas pretensões!
II — "Se me perguntardes, diz santo Agostinho, qual a
primeira coisa que devemos aprender na escola de Jesus
Cristo, responder-vos-ei que é a humildade. E a segunda?
Responderei: a humildade. E a terceira? Ainda a humildade".
Assim, a única coisa essencialmente necessária, conforme o
mais sábio doutor da Igreja, ou antes, conforme o próprio Jesus
Cristo, é a humildade. É ela, realmente, a base de todo o
edifício da perfeição evangélica. Maria declarou em seu
cântico: "O Altíssimo olhou a humildade de sua serva, eis por
que todas as gerações me chamarão bem-aventurada! Depôs
os poderosos do seu trono e exaltou os humildes; cumulou de
bens aos indigentes, e aos ricos, que vivem na opulência,
despediu vazios; conforme ao que dissera aos nossos pais, a
Abraão e à sua posteridade em todos os séculos". Este hino é
a glorificação da humildade cristã.
Quanto mais humildes forem as servas do Senhor, se-
guindo o exemplo de Maria, mais belo e magnífico será seu
futuro na eternidade.

XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM


Cura milagrosa do surdo-mudo (Mc 7, 32 ss).
I — Consideremos nesta cura, como, aliás, em todos os
outros milagres do Senhor, a brilhante manifestação do seu
poder e de sua divina sabedoria; pois cada um de seus
milagres é um símbolo e contém um ensinamento; revela de
modo visível algum mistério que se opera invisivelmente nas
almas. As numerosas enfermidades corporais, curadas pelo
Senhor, representam a multidão e a diversidade das curas
espirituais. Existe uma misteriosa analogia entre as
enfermidades da alma e as do corpo. Jesus veio para os
pecadores e para os enfermos; é o médico que nos traz os
remédios do céu. Somente ele pode nos curar e salvar.
II — Segundo a opinião de alguns intérpretes, o surdo-
mudo do país de Decápoles personifica os povos gentios que
jaziam espiritualmente privados da audição e da palavra, como
os ídolos que eles adoravam; pois o homem acaba sempre por
se assemelhar ao que ama e adora. Estavam surdos por não
escutarem a voz de Deus, e mudos, porque, visto estarem
separados da graça e da verdade, não podiam reagir pela

242
verdade, nem corresponder à graça. Jesus oferece a salvação
a todos os homens; mas, triste realidade! Quantos a recebem?
A palavra evangélica soa-lhes aos ouvidos, mas não lhes
impressiona a vontade, e a alma, persistindo fechada, não
admite mais nenhum som para Deus.
Sejamos dóceis em ouvir e perseverantes em orar, evi-
tando, assim, contrair a moléstia do surdo-mudo.

SEGUNDA-FEIRA DA XXI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Apresentaram a Jesus um surdo-mudo" (Mc 7, 32).
I — O surdo-mudo não figura somente os povos que
desconhecem a Jesus Cristo; representa igualmente o estado
do cristão que cessou de se comunicar com Deus. Assim como
os surdos corporais não podem ouvir os sons que vibram em
torno de si, na vida espiritual, os corações fechados tornam-se
inacessíveis às influências da palavra de Deus. Resulta daí a
mudez. A língua fica privada de vida desde o momento em que
o ouvido não pode perceber, assim como desfalece o peito
desde que lhe falte o ar vivificador. O cristão que despreza a
graça não sabe mais agradecer. Quando não atende mais ao
espírito de Deus, perde consequentemente o espírito de
oração; e, ficando interrompido o comércio com o céu, a alma
cai em trevas e se desseca.
Despertemos nossa vigilância; a infidelidade nas pequenas
coisas conduz, aos poucos, ao endurecimento de coração.
II — A mudez, assim como a surdez espiritual, é um mal
que tem sua sede na vontade. "Eles não querem escutar
porque não querem fazer o bem e ouvem mal porque querem
fazer o mal", diz o profeta. Em tão amaldiçoado estado, a alma,
concentrada em si, torna-se surda aos brados da consciência e
esquiva-se às advertências do alto. Não pode mais
compreender nem as lições da verdade, nem as delicadezas
da graça e, pouco a pouco, cai em mortal abatimento. É mais
fácil prevenir do que curar tal enfermidade. Para preveni-la,
basta uma humilde docilidade; mas, para se obter sua cura,
serão precisos milagres de graças!

243
TERÇA-FEIRA DA XXI SEMANA DO TEMPO
COMUM
"E suplicavam a Jesus que lhe impusesse as mãos" (Mc 7,
32).
I — Impossibilitado de ouvir a palavra de Jesus ou de lhe
endereçar sua súplica, o mísero surdo-mudo não obteria sua
cura, se almas compassivas não o tivessem apresentado
àquele que tão bondosamente acolhe os enfermos e os
pecadores. A eles deve, portanto, a sua cura. Quão animador é
este episódio, para o zelo apostólico! A caridade é atenciosa;
conquista as almas pelos seus bons ofícios quando as não
pode ganhar pelas instruções da verdade; atrai-as pela oração
e, assim cativas, as conduz aos pés de Jesus.
II — Quais são os que imploram ao Senhor para impor suas
mãos sobre o surdo-mudo? São os membros vivos da Igreja,
movidos de compaixão pelos membros sofredores. As criaturas
insensíveis ao sofrer dos seus irmãos não vivem. "Estão
mortos, afirma são Bernardo, e não são contados entre os
filhos de Deus”. A Igreja é um corpo cujos membros recebem
todos um mesmo sopro de vida; e este sopro de vida é um
espírito de amor e de caridade. Não possuem, portanto, um
espírito de vida os que não se compadecem da desdita dos
seus irmãos; e são animados da vida de Jesus Cristo os que
sentem as dores e os pesares de seus semelhantes; conhe-
cerão o grau de sua vitalidade pela medida da sua caridade.
Serão filhos de Deus unicamente se amarem seus irmãos.
A caridade compassiva é uma benção para quem a pratica.
"Porque Deus se mostrará propício aos pedidos daqueles que
fizerem o que lhe for agradável" (Cf. 1 Jo 3, 22).

QUARTA-FEIRA DA XXI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus tomou-o de parte longe da multidão" (Mc 7, 33).
I — Nosso Senhor emprega processos misteriosos e
significativos, nesta cura do surdo-mudo. Principia por conduzi-
lo à parte, longe da multidão. Toda criatura que aspira
sinceramente a ser divinamente curada, deve se retirar à
solidão, onde a voz de Deus se faça ouvir ao coração; pois, no
mundo, o espírito se distrai, a atenção se dispersa e influências
contrárias solicitam a vontade; a alma se sente empolgada pelo

244
que a rodeia. Ao passo que, isolada e recolhida à solidão, pode
concentrar suas forças espirituais; eleva-se e arroja-se até ao
céu. A voz de Deus, suave e pacífico sopro, não se mistura ao
rumor das agitações humanas; faz-se perceber unicamente
quando as outras vozes se calam; compraz-se no silêncio e no
mistério, como o pássaro harmonioso que só à noite desprende
sua voz. Excitemos em nós o amor à solidão, já que é uma
condição exigida para a nossa santificação.
II — São Jerônimo interpreta que a multidão, da qual Jesus
afasta o surdo-mudo, representa a quantidade de pensamentos
e devaneios que comumente povoam nosso espírito. Urge dele
se libertar para poder saborear a delicada graça da solidão. A
verdadeira solidão consiste mais no recolhimento do que no
isolamento. Procuraríamos em vão encontrar o repouso no
deserto, se para lá levássemos as recordações e os ecos do
mundo. Habitar com nosso Senhor no alto da montanha é, sem
dúvida alguma, a mais bela e feliz das vocações; mas, para
usufruí-la, saborear-lhe a doçura e a vida, é preciso aí guardar
o recolhimento do coração.
"Quem me dera as asas da pomba, para poder voar a ti e
em ti me repousar, Senhor!", assim suspirava Davi (SI 54, 7).

QUINTA-FEIRA DA XXI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus meteu-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe a
língua com sua saliva. E levantando os olhos aos céus,
suspirou e disse-lhe: Efeta!" (Mc 7, 33, 34).
I — O Salvador onipotente, que com uma só palavra
ressuscitava os mortos, aplacava as tempestades e tantos
outros prodígios operava, não houvera recorrido a sinais
exteriores para esta cura do surdo-mudo, se não tivesse em
mira consagrar tais sinais e a eles prender uma virtude divina.
Realmente, essas ações misteriosas prefiguram os
sacramentos que são os sinais visíveis, pelos quais Jesus nos
comunica sua graça e seu espírito. Mete seu dedo nas orelhas
do surdo-mudo e põe sua saliva sobre a língua, pois que o
contato divino predispõe-nos à fé e a substância de Deus
misturada à nossa é semente de vida nova. Levanta o olhar ao
céu e pronuncia uma palavra imperativa, para abrir nossas al-
mas à virtude do alto. Estes diferentes atos são,

245
conjuntamente, figuras das operações de Deus e os meios de
que se utiliza para os produzir.
Perante mistérios tão vivificantes, adoremos, amemos, e,
reverentes, agradeçamos àquele que é a fonte de todo dom
perfeito.
II — O milagre do surdo-mudo renova-se no sacramento do
batismo. O ministro de Jesus Cristo, com sua mão e sua voz,
reproduz as operações do Espírito divino: toca nos ouvidos, faz
unções com a saliva, coloca o sal na língua, ordena: Efeta! —
abri-vos! E tais sinais operam o que significam. É assim que
Jesus Cristo restaura a natureza humana que ficara surda-
muda pela mancha do pecado original. O divino Salvador, apa-
gando o pecado, destrói o obstáculo que nos separa de Deus e
restabelece os laços de sua primitiva aliança. Ao pensar nos
benefícios do Senhor, exclama Davi: "Vinde e ouvi, escutai vós
todos que possuis o temor de Deus e eu vos contarei quantas
graças concedeu à minha alma!".

SEXTA-FEIRA DA XXI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Todos se admiravam, dizendo: Tudo tem feito bem: faz
ouvir os surdos e falar os mudos" (Mc 7, 37).
I — Nosso divino Mestre nos ordena sermos perfeitos
como nosso Pai celeste é perfeito. Eis por que não se satisfez
em nos abastar as graças destinadas a produzir a mais alta
santificação; ao preceito acrescentou o exemplo e quis nos
servir de modelo em tudo. Dá-nos ao mesmo tempo a ordem
de sermos santos, os meios para a consecução desse fim e a
prática da perfeição na vida comum, prática contida nestes
poucos termos: Fez tudo bem.
II — Se tais palavras servissem de norma à nossa vida,
conseguiríamos em cada dia um precioso rosário de méritos. O
Senhor não nos pede que façamos tudo que ele fez; mas quer
que façamos bem tudo o que fizermos. Ora, agir bem é fazer o
bem; e fazer o bem é agir de acordo com a vontade daquele
que é o soberano Bem. Resulta dessa reflexão que a santidade
não consiste nas ações brilhantes, mas no espírito de
obediência que anima as intenções. Uma alma piedosa, fiel à
graça, que cumpre escrupulosamente seus deveres e suas
obrigações, conforme a ordem, o regulamento e o tempo
prescrito, fará tudo bem, como o fez Jesus; e sua vida, embora

246
oculta e pequenina, será uma benção para a Igreja, uma edifi-
cação para o mundo e para os próprios incrédulos, objeto de
admiração que tocará aos surdos e fará falar aos mudos. Nada
melhor para a glória de Deus e mais capaz de atrair as almas
para a religião, do que um cristão do qual se possa dizer: fez
bem todas as coisas.
Como exortação a essa prática, são Bernardo diariamente
perguntava a si mesmo: "Para que estou aqui? Por que
abandonei o mundo? Não é para me santificar e edificar meus
irmãos na casa do Senhor?".

SÁBADO DA XXI SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria é a salvação dos enfermos
I — Quando a caridade dos habitantes de Decápole obteve
a cura milagrosa de um surdo-mudo, que poderemos esperar
da intervenção de Maria em prol dos enfermos, dos pecadores,
dos aflitos de qualquer espécie? É a Mãe do Médico; é
igualmente a Mãe dos enfermos. Sob estes dois títulos, solicita
os remédios divinos e apresenta-os aos que lhos imploram. Vai
ainda além: compadece-se dos surdos que não escutam,
empresta sua voz aos que não falam. Seu coração supre o que
falta ao nosso e, por sua caridade poderosa e ativa, concorre
para reerguer as almas abatidas.
Lembremos à nossa divina Mãe que, segundo a linguagem
das Escrituras, foi em Israel que ela deitou profundas raízes; e
supliquemos os favores de sua intercessão em benefício dos
descendentes do seu povo que permanecem surdos e mudos.
II — A Virgem complacente e misericordiosa não se limita a
ouvir os gemidos dos fiéis; ela intercede pelos que não oram.
Como poderia assistir impassível à desgraça das almas que
sofrem e se perdem, sendo a Mãe daquele que derramou todo
o seu sangue para obter-lhe a cura e a salvação? Seus
desvelos são os mesmos de Jesus; deles partilhou na terra,
consigo levou-os ao céu, conserva-os na eternidade. Os
corações que se despojam dos elementos terrestres para se
dilatarem na pátria celeste, não empalidecem no seio da divina
luz e o seu manto de glória não os separa das recordações e
das santas afeições. A Igreja é uma família que pode confiar
em sua Mãe. Dispensadora dos dons divinos, compraz-se, so-
bretudo em nos transmitir as graças que interessam à nossa
salvação; mas nos obtém também curas corporais quando

247
estas podem contribuir para a santificação e a verdadeira
felicidade.

XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Felizes os vossos olhos porque veem" (Mt 13, 16).
I — Eram realmente bem felizes os que contemplavam o
Deus de majestade, presente na carne, exclama são Bernardo;
o Criador do mundo, vivo entre os homens, resplandecente de
luz, ressuscitando os mortos, triunfando dos demônios,
curando os enfermos, multiplicando prodígios; o Cordeiro de
Deus, manso e humilde de coração, transbordando de caridade
e de misericórdia, cujos lábios cheios de graça pregavam a
doutrina celestial e que, isento de pecado, carregou sozinho os
pecados do mundo! Viram-no e escutaram-no! E, no entanto,
sua felicidade consistia menos neste privilégio do que na graça
de reconhecer em Jesus Cristo o Filho de Deus, o Salvador do
mundo. Os judeus também viram e ouviram a Jesus, mas não
apreciaram essa ventura e o desconheceram.
O mesmo acontece em nossos dias. Enquanto as almas
piedosas somente em nosso Senhor encontram seu consolo,
as outras buscam-no fora e permanecem cegas e
desgraçadas.
II — Podemos desfrutar igual felicidade à dos apóstolos,
não pelos sentidos corporais, mas de modo bem mais íntimo e
verdadeiro: pela fé, que é o novo sentido concedido por Deus,
para o conhecermos e amarmos. Quando, pois, consideramos
nosso Senhor permanecendo perpetuamente no meio de nós,
nós o admiramos no altar, onde se imola pela nossa salvação;
a sagrada Mesa, onde saboreamos as delícias de sua carne
divina; no tribunal da penitência, onde exerce sua inextinguível
misericórdia; ouvimos sua palavra nos livros sagrados, na
cátedra católica e no fundo da nossa consciência; nós
contemplamos em sua ação providencial, nas virtudes dos
santos e nas maravilhas de sua graça. Eis a razão da nossa fe-
licidade! Não temos, pois, a invejar os contemporâneos de
Jesus, mas, sim, a aspirar a sua fé, sua generosidade, sua
coragem e a fidelidade com que cumpriram a sua missão.

248
SEGUNDA-FEIRA DA XXII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Então, um doutor da lei disse a Jesus, para o tentar:
Mestre, que devo fazer para conseguir a vida eterna?" (Lc 10,
25).
II — A pergunta do doutor da lei, em si, nada continha de
mal; tornou-se repreensível na boca de quem se dirigiu a nosso
Senhor, em vista de não ser feita com intenção reta. Existem
muitos espíritos falsos e sem lealdade, que, semelhantes ao
doutor da lei, sabem perfeitamente o que têm a fazer; mas
fingem ignorá-lo para escaparem às repreensões da
consciência. Esgotam sua vida a expor dúvidas, a procurar
luzes e não admitem solução contrária ao seu parecer. Andam
sempre à cata da verdade, sem a encontrarem jamais, porque
não os anima absolutamente a vontade de executá-la. Vão de
diretor em diretor com o intuito de conhecerem a vontade de
Deus; e, afinal, é unicamente a sua vontade que se dispõem a
seguir. A sagrada Escritura declara que o Senhor abomina os
espíritos assim falsos; acautelemo-nos contra suas subtilezas.
II — A criatura de boa vontade, que sinceramente procura
conhecer o que tem que fazer para alcançar a vida eterna,
jamais faltarão luzes. A resposta está na lei e a lei é a regra da
nossa vida. Ao traçar-nos os nossos deveres quotidianos, ela
exclui logo as incertezas, aplana as dificuldades, reverte a
Deus todas as nossas ações e todos os nossos pensamentos.
Esta lei não é difícil; ela nos ordena cumprir com amor
nosso dever atual, sem nos preocuparmos com o passado,
nem com o futuro. Se fielmente a observarmos, chegaremos à
feliz imortalidade.

TERÇA-FEIRA DA XXII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E tendo-lhe Jesus perguntado: O que é que está escrito na
lei?, ele respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, e com todas as tuas forças, e o
teu próximo como a ti mesmo" (Lc 10, 26-27).
I — O amor de Deus e do próximo é o sumário da lei. Deus
é amor; ama-nos e manda-nos amar. Esta lei rege o céu e
deve necessariamente reinar sobre a terra. Constitui a
felicidade dos que a observam e é o tormento dos que a
transgridem. Amai e tereis a vida eterna; mas amai de todo o

249
vosso coração, derramando no seio de Deus todas as vossas
afeições e todas as efusões do vosso amor. Amai com toda a
vossa alma, consagrando ao Senhor vossa vida, integralmente.
Amai com todas as vossas forças, utilizando no serviço de
Deus as energias da vossa vontade com todas as vossas
faculdades espirituais e corporais. "A razão de se amar a Deus,
explica são Bernardo, é o próprio Deus; e a medida do seu
amor é amá-lo sem medida". — "Meu Deus, exclama, vós me
ordenais que vos ame! Que suave mandamento e que fácil
obediência! O que me seria difícil e totalmente impossível, seria
não vos amar! Mil infernos eu havia de preferir à renúncia ao
vosso amor!"
II — Criados para Deus, somente para ele devemos viver;
em amar e servir a Deus resume-se, por conseguinte, todo o
homem, e, em faltando isso, o homem nada é. Ora, "quem me
ama, diz o Senhor, guarda a minha palavra". E o que nos
prescreve essa palavra? Amar-nos uns aos outros. "Nisto
conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns
aos outros", prossegue Jesus (Jo 13, 35). Donde concluímos
que o amor do próximo, que realiza a lei evangélica, é a prova
certa do amor de Deus. Ilusão nesta matéria é impossível; não
saberá amar a Deus quem não amar seus irmãos.
Dignai-vos acender em nós o fogo que viestes trazer à
terra, a fim de que, transformados à imagem do vosso
Coração, vivamos de amor e de caridade.

QUARTA-FEIRA DA XXII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E amareis vosso próximo como a vós mesmos"
I — A lei eterna, que nos manda amar a Deus como a
nosso Pai, ordena também amarmos o próximo como nosso
irmão. Vai além, pois exige que o amemos como a nós
mesmos; ele é homem e, em vista deste título, somos membros
de uma mesma família. Este sentimento natural foi elevado
pelo Evangelho a uma potência mais alta. O Espírito Santo
derramou em nossos corações o amor de Deus e de nossos
irmãos. Estes dois amores, decorrentes da mesma fonte,
devem entrelaçar-se e nunca se separar. Não somos filhos de
nosso Pai, senão na medida em que formos irmãos do nosso
próximo.

250
A prática deste preceito consiste em não fazer a outrem o
que não desejaríamos que nos fizessem.
II — É preciso não confundir a caridade evangélica com as
amizades humanas contraídas pelo sangue ou pelas simpatias
da natureza; pois sensibilidade não é caridade. Se vos
limitardes a amar a quem vos ama, diz Jesus, não fazeis mais
do que os pagãos e os publicanos; e, se amardes somente
aqueles que vos são unidos pelos laços do sangue, não
amareis senão a vós mesmos; e é este um instinto encontrado
até nos animais. A verdadeira caridade, transbordante do
Coração de Jesus, não se limita à família e à pátria; olha como
a irmãos a todos os homens e ama-os como Jesus os amou.
Aperfeiçoemo-nos na caridade e convençamo-nos de que,
sem ela, nenhuma virtude valerá perante Deus.

QUINTA-FEIRA DA XXII SEMANA DO TEMPO


COMUM
Parábola do bom samaritano (Lc 10, 30 ss).
I — Nosso Senhor, para nos fazer compreender que não é
somente nosso próximo aquele que nos for unido pelos
vínculos do sangue ou da amizade, mas todo homem que em
nosso caminho encontramos, explica-nos os deveres da
caridade cristã, na parábola do bom samaritano. Esse homem
que desce de Jerusalém a Jerico, despojado, coberto de
ferimentos e deixado semimorto pelos salteadores, representa,
segundo a opinião dos intérpretes, Adão caído às mãos do
demônio, despojado dos seus bens espirituais, desfigurado
pela queda e abandonado, quase morto sobre a terra; porque,
embora conservando sua vida natural, perdera a de sua alma e
achava-se incapaz de reerguer-se sozinho. Eis, em sua reali-
dade, o estado de todo homem ao vir ao mundo: concebido no
pecado, nascido na iniquidade, manchado pela concupiscência.
II — O sacerdote e o levita, que passam sem atender ao
infeliz prestes a expirar, mostram a impotência da lei antiga e
dos profetas; pois, conforme no-lo diz o apóstolo, a lei nos faz
conhecer o pecado, mas não nos faculta o remédio para o
apagar. Os profetas apontaram o mal e o deploraram, mas não
o sararam. Passa por seu turno o samaritano, chega-se ao
desgraçado e, movido de compaixão, derrama-lhe sobre as
chagas óleo e vinho. Transporta-o, em seguida, a uma
estalagem, provê às primeiras necessidades e responsabiliza-

251
se por todas as despesas exigidas para seu restabelecimento.
Vemos neste caridoso samaritano o próprio Jesus que, cheio
de compaixão pela nossa natureza decaída, lavou nossas
chagas no seu sangue, acalmou nossas dores, derramando
sobre elas o unguento da sua misericórdia e sobrecarregou-se
dos pecados dos homens, tornando-se o seu resgate.
Lembremo-nos do nosso divino Benfeitor para lhe dedi-
carmos um amor fiel e lhe mostrarmos nossa gratidão, fazendo
por nosso próximo o que ele fez em favor de cada um de nós.

SEXTA-FEIRA DA XXII SEMANA DO TEMPO


COMUM
Continuação da parábola do samaritano
I — O infeliz que jaz à beira da estrada, vítima dos
salteadores, não representa somente a humanidade, mas
também o cristão enobrecido pelo batismo ou regenerado pela
penitência. Desce de Jerusalém a Jerico. Isto significa que
abandona as alturas das divinas esperanças e as graças da
cidade santa, para, longe da Igreja, transviar-se pelos atalhos
da perdição. Descia — assim se expressa o Evangelho —
porque fatalmente cai a alma que desliza pelos declives do
pecado. As infidelidades encadeiam-se umas às outras; um
abismo atrai outro abismo, e é deste modo que o pobre
peregrino deste mundo fica semimorto na estrada, sem
movimento e sem sentidos. Todo pecado é uma queda da
alma. Expõem-se aos máximos perigos aqueles que
negligenciam a oração e a vigilância sobre seu coração.
II — A obra primordial da caridade cristã consiste em
erguer a alma prostrada, proteger sua fraqueza, atenuar-lhe os
sofrimentos e reconduzi-la ao bom caminho. É conhecido o
sentimento de ódio existente entre os judeus e os samaritanos.
É, no entanto, um judeu o objeto das delicadas atenções e do
zelo compassivo do samaritano. Serve-nos de exemplo este
fato de que, na prática da caridade, ninguém deve ser excluído
e que, em se tratando de obras de salvação, nada nos deve
intimidar.
Benditos os que se dedicam generosamente ao serviço do
Mestre divino! Promete-lhes o Senhor, no mesmo Evangelho:
Pagar-vos-ei tudo ao regressar.

252
SÁBADO DA XXII SEMANA DO TEMPO COMUM
Maria é o auxilio dos cristãos
I — A Virgem cheia de graça possui, em sua plenitude, o
amor e a caridade. Ela envolveu com sua carne virginal o fogo
do céu que acende as virtudes sobrenaturais. Seu coração
contém e destila o bálsamo que sana, fortalece e santifica as
almas. Maria, como o samaritano descrito no Evangelho,
assiste o viajante, sustenta-o nas investidas, o reconduz
quando se desgarra e o levanta nas quedas. Oferece-lhe óleo e
vinho, emblemas da suavidade e da força do seu auxílio. Qual
a alma cristã que não é devedora de finezas a nossa Senhora?
Extraordinária deve ser a gratidão daquelas que, libertadas das
seduções do mundo, estão a coberto dos perigos, em uma
humilde estalagem, na estrada do paraíso!
II — A palavra divina, que instituiu e consagrou a ma-
ternidade de Maria, concedeu ao seu ministério maternal todas
as graças que deveriam torná-lo fecundo e poderoso. A
solicitude ativa exercida pela Mãe dos homens no seio da
Igreja é uma providência que justifica a fé dos cristãos. Esta
solicitude é confirmada por todos os que foram beneficiados
por provas evidentes de seu socorro. Em todos os séculos, foi
Maria que fez irromper exclamações de reconhecimento e
admiração de inúmeros corações agradecidos. E quantas
vezes não experimentamos nós mesmos os prodigiosos efeitos
da caridade de Maria santíssima!
Demonstremos que somos filhos seus, e sempre que se
nos oferecer ocasião, procuremos assistir, consolar, edificar as
almas.

XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


Cura dos dez leprosos (Lc 17, 11 ss).
I — A reunião dos dez leprosos citados pelo Evangelho
mostra a veracidade do ditado: "Os que se assemelham se
atraem". E se vemos almas piedosas e bem formadas
sentirem-se atraídas por outras animadas de idêntico espírito,
procurando-lhes a companhia, o mesmo se dá em condições
opostas; veem-se almas orgulhosas e descontentes comunicar-
se mutuamente o contágio dos seus maléficos arrazoados e
murmurações.

253
Ante o exposto, podemos facilmente ajuizar sobre nós
mesmos. Quais as amizades que procuramos? Quais as
nossas preferências? Qual a nossa sociedade predileta?
II — A lei antiga proscrevia da sociedade os entes atingidos
pela lepra corporal. A lei evangélica, com o fim de preservar as
almas do contágio da lepra espiritual, afasta-as do mundo. Não
que seja possível cortar todas as relações com os pecadores e
os infiéis; para isto, diz são Paulo, seria preciso sair desta vida.
Mas a alma verdadeiramente cristã e fiel aos compromissos
firmados em seu batismo tem obrigação de renunciar ao
espírito do século, para não se enredar nas seduções
oferecidas pela vaidade e pelos sentidos. Como poderá
conservar-se imune a criatura voluntariamente exposta à
atmosfera pestilenta dos vícios e das paixões?
Quanto é feliz a alma que, prevenida pela graça, sacudiu o
jugo das máximas mundanas! Bem-aventurada a que escolheu
por morada a arca onde se abrigam as prediletas do Senhor!

SEGUNDA-FEIRA DA XXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Os leprosos levantaram a voz" (Lc 17, 13).
I — A reunião dos dez leprosos nos apresentou o quadro
das más ligações; mas pode ser encarado sob outro ponto de
vista. Todos esses desgraçados, infelicitados por idêntica
moléstia, aproximaram-se pela analogia do sofrimento. Pois os
males comuns estabelecem entre os homens laços
espontâneos de simpatia. Melhor compreende o padecer alheio
aquele que pelo mesmo já passou. Quem não sofreu é pouco
acessível à compaixão, não conhece o sentimento da dor e
isola-se na sua insensibilidade. Mas os pobres, os aflitos, os
enfermos de corpo e de espírito, sentem-se mutuamente
atraídos e, em sua comum aflição, encontram o ânimo e o
conforto.
Em presença do sofrimento dos nossos irmãos, recordemo-
nos dos que já passamos; coloquemo-nos em seu lugar e a
eles demos o consolo que nos julgaríamos felizes em receber.
II — Os dez leprosos, clamando em conjunto, permitem-
nos apreciar o benefício da oração em comum. Seu coro de
gemidos emocionou o Coração divino. Nessas associações de
fé e de piedade, o fervor de uns supre a fraqueza de outros e a
desigualdade dos méritos desaparece sob a ação da bondade

254
divina que a todos oferece sua graça. Onde alguns se reúnem
em nome de Jesus Cristo, encontra-se a base da caridade, e a
oração é mais seguramente atendida.
As almas que empregam todo o zelo e confiança na oração
em comum compenetram-se do espírito do Evangelho e podem
contar com a realização dos seus votos.

TERÇA-FEIRA DA XXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Juntos levantaram a voz, bradando: Jesus, Mestre, tem
compaixão de nós!" (Lc 17, 13).
I — Os leprosos, em uníssono, imploram ao médico que do
céu baixou só para nos curar e salvar. Chamam-no Jesus, isto
é: Salvador e Mestre. A palavra Salvador encerra uma ideia de
misericórdia que excita a confiança; Mestre ou Senhor desperta
o pensamento de um poder inspirador de humilde sujeição.
Ora, a submissão e a confiança são qualidades que devem
animar nossas orações e lhes comunicar uma virtude eficaz. A
confiança torna-as ardentes, a submissão as faz humildes. A
humildade sustentada pela confiança é sempre atendida; e a
confiança apoiada sobre a humildade jamais fracassará.
Clamemos, pois, com a. mesma confiança que animava
esses leprosos: Jesus, nosso Salvador e nosso Senhor!
X — A súplica dos leprosos não era somente confiante e
submissa: movia-a também a caridade, e eis o que lhe deu
subido valor! Nenhum deles pedia por si somente, mas por
todos juntamente, exclamando: Tende compaixão de nós!
Jesus nos ensina esta mútua solicitude, na oração dominical.
Não admite egoísmo na oração; somos membros do mesmo
corpo; os sofrimentos de um refletem-se sobre todos que lhe
são unidos e o bem comum constitui o bem estar de cada em
particular.
Quanto mais estreita for nossa união fraternal, tanto
maiores serão as garantias em favor de nossas orações.

255
QUARTA-FEIRA DA XXIII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"E Jesus, tanto que os viu, disse: Ide, mostrai-vos aos
sacerdotes. E aconteceu que, enquanto iam, ficaram limpos"
(Lc 17, 14).
I — A misericórdia do divino Salvador manifesta-se no
mesmo momento em que os leprosos lhe mostram sua desdita.
Apenas o brado doloroso lhe chegou aos ouvidos, respondeu-
lhes incontinenti, atendendo a suas súplicas. Mas, neste
milagre de graça, quis consagrar as condições das curas
espirituais. Ordena aos leprosos que vão apresentar-se aos
sacerdotes; condição humilhante, mas, por isso mesmo, eficaz
e salutar. A lepra da alma é o pecado que está arraigado no
orgulho. Ora, para extirpar tal raiz, urge a humilhação.
Se não nos sentimos confundidos em cometer o pecado,
aceitemos pelo menos a confusão que causa a confissão da
falta.
II — "Ide mostrar-vos aos sacerdotes" é a ordem que
recebem de Jesus. Mostrar-se aos sacerdotes é descobrir-lhes
as chagas da alma. Esta revelação da consciência é feita pela
confissão humilde que expulsa o veneno escondido. Então a
alma libertada se levanta e readquire a saúde moral. Notemos
que os dez leprosos aceitam com simplicidade as condições
impostas para sua cura. Não objetam, como os hereges, que
lhes basta Deus e que não lhes é preciso recorrer a seus
ministros. O Evangelho já condenou de antemão esse erro do
espírito de orgulho. Os leprosos se conformam com a palavra
do Senhor, sem protestos, sem réplicas. Aprestam-se em
executar as ordens e retiram-se completamente curados.
Eis as disposições com que devemos apresentar-nos no
tribunal da penitência.

QUINTA-FEIRA DA XXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E um deles, quando viu que tinha ficado limpo, voltou
atrás, glorificando a Deus em alta voz" (Lc 17, 15).
I — A gratidão é a reação da alma para aquele de quem
recebe o benefício: pois, ensinam os santos padres, as graças
que descem do céu ao céu devem volver. E, no entanto, esta
virtude, que um dever de justiça e uma necessidade do
coração juntamente requerem, é raríssima entre as criaturas.

256
Salienta o Evangelho que, dos dez leprosos restituídos à
saúde, um somente voltou para agradecer ao Senhor. Os
outros, tão ardorosos ao pedirem a cura, não souberam
encontrar uma palavra de gratidão.
Quanto a nós, objeto de tantas provas de amor e de
misericórdia por parte de Deus, seremos, por acaso, agra-
decidos? Não terá nossa consciência numerosas ingratidões a
nos recriminar?
II — O leproso que voltou com tanta presteza e alegria,
para manifestar sua gratidão, glorificava a Deus em altos
brados. É realmente ao Pai das misericórdias, ao Deus de toda
a consolação, que devemos dirigir nossas bênçãos e louvores.
Os ministros de Deus, pelos quais nos vêm os dons celestiais,
são apenas meios de transmissão; devem, portanto, ser os
intérpretes e não o termo dos nossos sentimentos. Em todo
acontecimento feliz que nos sobrevier, seja qual for a sua
procedência, devemos pensar em Deus, a ele tudo atribuir,
para ele fazer convergir nossos sentimentos de gratidão e de
amor!
Que jamais se arrefeça em nós o reconhecimento devido a
Deus! Sejam nossas ações de graças permanentes e
imperecíveis!

SEXTA-FEIRA DA XXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Então disse Jesus: Não foram dez os curados? E os
outros nove, onde estão?" (Lc 17, 17).
I — Com esta pergunta sobre o paradeiro dos leprosos
ingratos, Jesus dá-nos a compreender que perde de vista as
criaturas que dele se afastam; tão pouco lhe interessa saber a
morada dos que lhe desconhecem os benefícios. Realmente,
não pode haver defeito mais desprezível do que a ingratidão; e
se nós mesmos, que tantas vezes nos mostramos ingratos
para com nosso Senhor, custamos a suportar uma ingratidão;
se não há nada que mais nos crucie do que vermos esquecido
um benefício oferecido a alguém... Quanto mais criminoso deve
ser o procedimento do ingrato que não sabe corresponder ao
Benfeitor a quem tudo deve! O Evangelho nos demonstra que
as graças divinas caem inutilmente sobre as almas ingratas. Só
o leproso agradecido ouviu estas palavras vivificadoras: "Vai,
tua fé te salvou!”.

257
II — É peculiar às almas generosas e amantes recordar-se
com frequência das graças recebidas do Senhor. Estas graças
visam o tempo e a eternidade, espalham-se sobre o mundo em
geral e sobre cada ente em particular. De quantas provas não é
testemunha nossa memória! Eis um assunto inesgotável de
meditação. Nosso Senhor quase sempre, ao iniciar suas
maravilhosas obras, alçava ao céu o olhar, para dar graças ao
Autor de todo dom perfeito.
Imitemo-lo; precedamos nossos pedidos de um ato de
agradecimento e agradeçamos ainda após havermos sido
atendidos; transformemos todos os nossos atos em ações de
graças.

SÁBADO DA XXIII SEMANA DO TEMPO COMUM


A gratidão de Maria
II — A Virgem cheia de graça expande divinamente seu
amor e suas ações de graças no cântico sublime, cujo texto
sagrado o Evangelho recolheu. Cada palavra deste hino traduz
um sentimento de gratidão profunda. A Filha real de Sião
arranca de sua alma e não só de sua boca as palavras com
que canta as glórias do Senhor; humildemente proclama nada
haver feito para merecer os favores de Deus; que o Senhor
olhou unicamente a pequenez de sua serva e que os prodígios
nela operados manifestam a grandeza e o poder daquele que é
o único grande e poderoso. Faz reverter toda a glória ao Deus
três vezes santo; e é para exaltar sua bondade infinita que
desenrola a corrente de misericórdias, da qual é o primeiro elo.
Seja-nos permitido confessar com a doce Virgem Maria, no
seu Magnificat, que Deus olhou a nossa humildade! Este
testemunho aumentará nossa gratidão; nos fará apreciar
melhor o benefício, e mais claramente sentir o que devemos ao
celeste Benfeitor.
II — Se a todo homem assiste o dever de ser grato ao
Senhor, como não deverá ser forte, profunda e ardente a
gratidão daqueles que à sua incansável misericórdia devem o
terem passado do estado de pecado ao estado de graça e que,
de leprosos que eram, obtiveram o insigne favor de voltarem
sãos à cidade de Deus! A gratidão é uma dívida, e toda dívida
deve ser proporcional aos dons recebidos. Ora, de todos os
dons, o mais precioso é o da vocação que nos eleva acima do

258
mundo e que, sob o olhar de Jesus e de Maria, nos permite
antegozar nesta vida as primícias das eternas alegrias.
Esta graça de predestinação exige mais do que simples
expansões de gratidão: devemos corresponder, como Maria,
pela total oblação de nossa vida.

XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Disse Jesus a seus discípulos: Ninguém pode servir a dois
senhores" (Mt 6, 24).
I — Consideremos que o homem, sendo feito para amar, e
não podendo viver sem amor, nunca está sem senhor; pois que
o senhor do homem é o objeto amado, o objeto que cativa,
domina e se torna senhor do seu coração. Por conseguinte, se
o coração humano não se prende ao seu verdadeiro Senhor,
que é o Deus do amor, inclina-se a outros objetos, dos quais
faz seus deuses e senhores, submete-se a suas leis e torna-se
escravo de tudo quanto adora. A idolatria não é mais do que a
inversão do amor, e tal desordem é causa frequente de muitos
males. "Para vós é que nos criastes, ó Senhor! E nosso
coração geme numa agitação incessante, enquanto não
encontra em vós seu alimento e seu repouso", exclama santo
Agostinho.
II — Se o coração não pode viver sem amor e se é
forçosamente sujeito ao objeto amado, deduz-se claramente
não lhe ser possível amar dois objetos opostos entre si. Não
pode obedecer a dois senhores incompatíveis que o solicitam
para campos diversos. Quem pode olhar ao mesmo tempo
para cima e para baixo? Ou identificar num mesmo sabor o
amargo e o doce? Fundir no mesmo sentimento o positivo e o
negativo? Assim é de todo impossível, com um só coração,
amar o bem e o mal, a verdade e a mentira, a luz e as trevas!
Seja Deus o nosso Mestre e o único objeto do nosso amor!
Digamos com Davi: "Vós sois o Deus do meu coração e a
minha partilha para a eternidade!".

259
SEGUNDA-FEIRA DA XXIV SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de
amar a um e odiar o outro, ou há de apegar-se a este e
desprezar aquele" (Mt 6, 24).
I — Se é Jesus o nosso Mestre, é evidente que só por ele
pulsará nosso coração, somente seu serviço excitará nosso
zelo, estaremos alerta unicamente para executar a sua
vontade, e só nos poderão seduzir as obras que lhe disserem
respeito. Em resumo: estimaremos o que lhe apraz e
odiaremos o que lhe for odioso. Mas, se tivermos a desventura
de apegar nosso coração a um senhor cujo espírito difere do
de Jesus, é lógico que amaremos o que traz o cunho desse
outro espírito; só apreciaremos suas máximas, obedeceremos
a seus impulsos, faremos por satisfazer seus gostos e assim
desprezaremos a autoridade divina do verdadeiro Senhor,
violando suas leis para servirmos a um seu adversário. Entre
estes dois extremos não há meio termo; pertence-se a um ou a
outro. Deus não admite partilha e não somos de Deus quando
não lhe pertencemos totalmente.
II — A mais perigosa ilusão é procurar um meio termo
entre esses dois senhores, procurando servir a um sem
ofender o outro. Não existe conciliação possível entre o espírito
de Deus e o espírito do mundo. Como acomodar a abnegação
com o egoísmo, a mortificação com a sensualidade, a
compunção com a vaidade, a vida de obediência com o espírito
de independência, as alegrias celestiais com os deleites do
mundo? "Quem não é por mim é contra mim; quem não junta
comigo, dissipa", afirma categoricamente Jesus Cristo. E
acrescenta o apocalipse: "Sede frios ou quentes, pois que a
tepidez faz vomitar".
É imprescindível que já neste mundo determinemos a qual
dos dois senhores pertenceremos na eternidade. Foi este
pensamento que arrancou de Moisés, o condutor de Israel,
estas palavras: "A vida e a morte estão diante de vós; o que
escolherdes vos será dado".

260
TERÇA-FEIRA DA XXIV SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Não podeis servir conjuntamente a Deus e a Mamon"
I — Jesus Cristo resume na palavra Mamon a pluralidade
dos espíritos que disputam o coração do homem com o intuito
de se apoderar dele. Mamon significa riqueza. O ouro e a prata
são realmente os moveis que excitam, alimentam e favorecem
as vis paixões. O dinheiro é o ídolo do mundo e os seus
vassalos lhe prestam um culto real, pois que nele concentram
sua fé, seu amor e sua esperança; sacrificam-lhe o corpo e a
alma. Loucura inconcebível o viver-se para um objeto efêmero
que sumirá à hora da morte! Poder-se-á admitir que uma alma
cristã, cujo destino é tão nobre, prenda seu coração a bens
transitórios que não passam de passatempos infantis, em
comparação aos bens eternos? Quantos cristãos não
despendem sua vida a procurar gozos onde só podem achar
ilusões e desventuras! "Meus filhinhos, acautelai-vos dos
ídolos!", costumava repetir são João Evangelista. E são Paulo,
em tom mais severo, adverte que "não será dado a nenhum
idolatra entrar no reino de Deus".
II — O verdadeiro cristão, que aspira ao reino celestial,
despreza as riquezas da terra. Se a Providência lhe confiou
bens terrenos, considera-se com seu administrador e não como
seu proprietário. Tem posses, como se não as possuísse, e
usa deste mundo como se dele não usasse. Conforme a
linguagem dos profetas, "assemelha-se à roda que gira sem
parar", e apenas roça seu pé em terra, no caminho para o céu.
É bem feliz a alma desprendida dos interesses materiais;
ela paira acima deste mundo e só visa agradar a Deus. A
pobreza religiosa não é somente penhor de uma vida santa; é
já neste mundo um verdadeiro tesouro, uma bem-aventurança
e a ela é que foi prometido o céu por herança.

QUARTA-FEIRA DA XXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Por isso vos digo: não andeis inquietos" (Mt 7, 25).
I — A paz da alma atrai o espírito de Deus; a agitação e o
desassossego afastam-no. O principal esforço do tentador
consiste, portanto, em nos perturbar. Ora deita em nosso
pensamento a dúvida e o escrúpulo; ora altera a serenidade da
confiança; e a cilada mais ardilosa que comumente nos arma é

261
a inquietação sobre as coisas temporais. O cristão não ignora
que se deve prover do necessário com o fruto do seu trabalho;
mas confia mais na benção de Deus do que no êxito da sua ati-
vidade. O Pai bondoso, que nos concedeu a vida, é bastante
poderoso para entretê-la e conservá-la; ele, que reveste as
flores dos campos, que alimenta os passarinhos e que,
diariamente, oferece farto banquete a todas as criaturas que se
movem no universo. Só o homem seria esquecido? "Não vos
inquieteis e confiai na Providência!" Declarai com o salmista: "O
Senhor me guia e vela sobre mim e não permitirá que eu
desfaleça no caminho".
II — O cristão confiante na divina Providência possui sua
alma em paz constante. Com filial submissão, recebe tudo das
mãos de Deus, tudo, seja prosperidade, seja adversidade. De
ambas saberá tirar proveito, porque ama; e o amor contém o
segredo de tudo reverter para o bem. Soe a hora da tribulação,
rujam tempestades, estremeça-lhe a terra sob os pés... O
cristão permanece de pé, firme, apoiado no rochedo da
confiança!
Como recear que lhe falte o pão da terra, se recebe
diariamente em seu peito o Pão do céu? Como temer privações
e sofrimentos, se carrega sua cruz para viver e morrer com
Cristo?

QUINTA-FEIRA DA XXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade de todas
elas" (Mt 6, 32).
I — Nosso Senhor multiplica suas divinas instruções para
firmar a confiança em nossos corações. Depois de haver
representado as maravilhas do Criador provendo tão
admiravelmente o necessário para todas as existências deste
mundo, leva ao cúmulo nossas consolações, lembrando que
este Criador poderoso é nosso Pai; que, sob este título, vela
sobre nós e nos esbanja solicitudes tanto mais ternas quanto
mais lhe retribuirmos com um abandono vivo, com fé em sua
paternal providência. Depositemos, pois, em seu seio todas as
nossas preocupações espirituais e temporais, é o conselho que
nos dá o santo profeta Davi, acrescentando ainda estas pala-
vras: "Fui moço e sou velho, mas nunca vi o justo des-

262
amparado, nem a sua descendência mendigando o pão" (SI 36,
25).
II — Se há uma providência visível a dirigir todo homem
que anda no caminho da justiça e da verdade, com razão bem
maior há de ela se manifestar favorável àqueles que tudo
abandonaram para se consagrar ao serviço de Jesus. Essas
almas felizes são alvo de solicitudes tais que, com frequência,
atestam verdadeiros milagres de graça. Quando, interrogados
pelo Senhor, se lhes havia faltado alguma coisa ao serem
enviados por ele, sem bolsa e sem provisões, responderam-lhe
os discípulos negativamente. Idêntica resposta poderia ser
dada pela turba que seguira a Jesus no deserto. Em
transportes de verdadeira fé e confiança deve a alma fiel
associar-se ao real profeta: "O Senhor me conduz, por isto
nada me faltará; conduziu-me a férteis pastagens, junto a uma
fonte de água viva. Em seu bordão está minha segurança e
minha consolação" (SI 22).

SEXTA-FEIRA DA XXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Buscai primeiramente o reino de Deus e sua justiça e tudo
vos será dado dor acréscimo" (Mt 6, 33).
I — Quem desconhece a dignidade humana preocupa-se
demasiadamente com o corpo e pouquíssimo com a alma;
busca avidamente os bens da vida presente e negligencia os
futuros; vive a sonhar com o seu futuro temporal e esquece-se
da eternidade. Mas o cristão atento a seu verdadeiro destino
procura, antes de tudo, o reino de Deus; isto significa que o
cuidado com sua alma supera a todos os demais e este
trabalho essencial atrai bênçãos sobre as coisas acessórias.
Que aproveita juntar bens no celeiro, se um dia deveremos
tudo deixar? De que vos serviria ganhar o mundo inteiro, se
viésseis a perder vossa alma?
II — Se qualquer cristão deve se considerar na terra como
viajante e estranho, é claro que à alma religiosa, consagrada a
Deus, compete exclusivamente tudo orientar para o céu, sua
verdadeira pátria. Neste desejo deve consistir toda a sua
virtude; ele deve absorver todas as suas faculdades, animar
todos os seus sentimentos, regular sua conduta e conservá-la
constantemente elevada acima da terra. Seu pensamento
dominante é de aproximar-se de Deus pela ruptura dos laços

263
que a prendem à terra e de consumar na eternidade sua união
com Jesus Cristo. Quem quiser possuir sua vida presente, a
perderá, diz o Senhor, e quem por meu amor a ela renunciar, a
salvará.

SÁBADO DA XXIV SEMANA DO TEMPO COMUM


Confiança filial em Maria
I — Ao nos fazer participantes de sua natureza divina,
conferiu-nos Jesus Cristo, juntamente com o título de filhos de
Deus, o direito de contarmos com o amor de seu Pai; e ao
associar sua divindade à natureza humana, por sua
encarnação no seio da Virgem, conferiu-nos, com o título de
filhos de Maria, o direito de contarmos com o amor de sua Mãe.
Pois, unidos e incorporados a nosso Senhor Jesus Cristo, seu
Pai tornou-se nosso Pai e sua Mãe, nossa Mãe; de modo que a
confiança cristã se apoia sobre duplo fundamento: sobre o
coração de Deus que nos ama como amou seu único Filho e
sobre o coração de Maria, que nos dedica a mesma afeição
maternal que votava a seu Jesus, fruto bendito de suas
entranhas. Concluamos que a devoção a Maria santíssima é
elemento inseparável de nossa confiança em Deus; e, como
canta o salmista: "Aqueles que se firmam nestes sentimentos,
tornam-se fortes e inabaláveis, como a montanha de Sião".
II — Nosso amado Salvador, prendendo-nos ao coração de
sua Mãe, uniu um elemento de doçura e suavidade à confiança
cristã. A indulgência de uma mãe atenua em nosso espírito o
pensamento da justiça de Deus; acalma nossos temores, torna
nosso abandono mais fácil e mais filial. Os desvelos de Maria
abrangem todos os homens. Iniciada nas predileções de Deus,
ela dedica uma proteção mais terna às almas que lhe são
consagradas, pois que nessas almas é que Jesus faz suas
delícias.
Vivamos confiantes e alegres sob o manto de Maria. Uma
mãe jamais abandona seus filhos; e mesmo quando fosse isto
possível, Maria nunca nos haveria de esquecer!

XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM


Jesus ressuscita o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11 ss)
I — Nosso Senhor, ao aproximar-se da cidade de Naim,
encontrou-se com o cortejo fúnebre de um jovem que
conduziam à última morada. Nós também temos encontros

264
semelhantes! Mas quais as impressões, as reflexões que
despertam em nosso espírito? A maior parte das criaturas evita
pensar em seu último fim, como se o afastamento desta ideia
pudesse preservá-los da morte ou retardar o momento fatal. E,
no entanto, quanto mais dela desviarmos o olhar, mais temível
se tornará; porque se é ela suave e consoladora para os que
se preparam, é apavorante, quando vem de improviso! Eis por
que com frequência adverte o Evangelho: "Vigiai e orai, pois
não conheceis o dia nem a hora".
II — A meditação sobre a morte é um abundante manancial
de instruções e de encorajamento; tanto o justo quanto o
pecador nela encontram substanciosas lições. A consideração
da corrupção do corpo será um protesto contra os cuidados
supérfluos que lhe dedicamos; e a perspectiva dos imortais
destinos da alma avivará o fervor na prática da religião. Que
poderá mais facilmente nos induzir ao desprendimento das
coisas do mundo, do que a certeza de um dia tudo deixarmos?
E, inversamente, haverá motivo mais poderoso para nos incitar
à paciência, à prática das boas obras, às virtudes evangélicas,
do que a brevidade e a fugacidade da vida presente?
Encaremos calma e serenamente o termo da nossa pe-
regrinação; sigamos o conselho de são Paulo, aprendendo a
morrer cada dia. Apeguemo-nos unicamente às divinas
promessas, cuja realização nos aguarda no além.

SEGUNDA-FEIRA DA XXV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E quando Jesus chegou perto das portas da cidade, eis
que levavam um defunto à sepultura" (Lc 7, 12).
I — A morte nos surpreende em qualquer idade. O cristão
nunca deverá desviar a vista das portas da eternidade, abertas
à extremidade do caminho. Sua vida terrestre não passa de
uma preparação para essa temível passagem: preparação esta
que consiste, sobretudo, no crescente desapego de tudo o que
deveremos deixar então. É o que fazia são Paulo dizer: "Morro
cada dia". Ele se exercitava a morrer todos os dias. Pois, à
medida que se rompem os laços, o coração mais facilmente se
volta para o lado do céu, para onde subirá. Que receie a morte
quem não aspira entrar na Pátria! Quanto ao cristão fiel, nada
lhe resta a temer; a fé, que o sustentou durante a vida, no
momento supremo se dilatará nas sublimes esperanças da

265
imortalidade! Poderá exclamar com Simeão: "Podeis agora
deixar partir vosso servo, pois meus olhos viram a luz e a glória
de Israel!”.
II — Consideremos as vias misteriosas da Providência na
morte sobrevinda à juventude. A Escritura nos explica que
Deus, por vezes, abrevia a existência dos que lhe são caros,
para livrá-los do contágio impuro do mundo, capaz de lhes
depravar o espírito e corromper a alma. O verdadeiro discípulo
de Jesus Cristo desfaz os laços que o prendem à terra antes
que a própria morte o faça. Eis por que o apóstolo são João,
animando-nos a esse rompimento, escreveu: "Acautelai-vos de
amar ao mundo e o que está no mundo". E, em verdade, não
pode haver algo de mais salutar para nos preparar a um trân-
sito suave e a uma eternidade feliz, do que o desprendimento
das coisas efêmeras deste mundo.
"Este mundo é a terra dos moribundos", assim fala santo
Agostinho. Mas esta terra de moribundos nos avisa que existe
uma terra de vivos e que, para viver da verdadeira vida, é
preciso estar sempre unido a Jesus. "Se quiserdes possuir um
tesouro no céu, segui-me!", diz o Salvador.

TERÇA-FEIRA DA XXV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus, ao avistar a viúva de Naim, compadeceu-se dela e
disse-lhe: Não chores!"(Lc 7, 13).
I — O Senhor é compassivo porque é bom. A emoção que
sente ante as lágrimas da viúva demonstra quanto se associa a
nossos pesares. Dir-se-ia que nossas dores se tornaram suas
e que sua onipotência não se ocupa mais do que em aliviar-
nos. Este exemplo é ao mesmo tempo uma condenação dos
corações insensíveis aos sofrimentos alheios e um consolo
para os que choram com os aflitos. São Gregório assim se
expressa: "A verdadeira compaixão é uma esmola mais
preciosa perante Deus, do que o ouro e a prata; porque,
concedendo nossos bens, damos o que é nosso; mas, ao
darmos nossa compaixão, damo-nos a nós mesmos".
II — As solicitudes da caridade tão vivamente reco-
mendadas pelo Evangelho, devem ser afetuosas, ativas e
generosas. Não basta lamentar as almas aflitas: precisamos
acompanhá-las em seu sofrer e oferecer-lhes os cuidados que
desejaríamos receber, se estivéssemos em idênticas

266
circunstâncias. A caridade cristã se identifica com quem sofre.
Só então será ela capaz de entender a dor e de enxugar as
lágrimas.
Este delicado sentimento, que transborda do Coração de
Jesus, enche nosso coração quando perseveramos na oração
e na comunhão.

QUARTA-FEIRA DA XXV SEMANA DO TEMPO


COMUM
“Jesus, aproximando-se, tocou no esquife” (Lc 7, 14).
I — O milagre de Naim é considerado pelos intérpretes
como figura da morte e da ressurreição espiritual do pecador.
"Tal homem se julga vivo e está morto", declara o apocalipse.
"Com efeito, acrescenta são João Crisóstomo, conquanto não
tenha seus olhos fechados, não esteja gelado em seu esquife,
nem corroído por vermes no sepulcro, garanto-vos que está
morto e em pior estado do que os mortos". O pecado causa na
alma uma devastação mais desastrosa do que a que exerce
nos cadáveres: empalidece, desfigura a beleza moral;
obscurece a inteligência, endurece o coração e rebaixa o
homem ao nível dos brutos. Os pecadores merecem tanto mais
a nossa compaixão, por não se compadecerem eles próprios
de si. "Estava reduzido a nada e ignorava-o!", confessa um
santo penitente.
Se tanto horror nos causa a vista da corrupção corporal,
qual não seria o nosso pavor se pudéssemos contemplar a
corrupção de uma alma manchada pelo pecado!
II — Santo Ambrósio atribui a ressurreição do jovem de
Naim às súplicas de sua mãe. Às lágrimas de santa Mônica
santo Agostinho deveu a sua conversão. "Esta piedosa mãe
chorava por mim, com dor mais intensa do que chora uma mãe
a morte de um filho; porque ela me considerava morto perante
Deus e este espetáculo a fazia derramar torrentes de lágrimas",
escreve o santo bispo de Hipona. O mundo em que vivemos
está repleto de tais mortos; mas o seu número, em vez de nos
inspirar compaixão, parece, ao contrário, extingui-la. É a
predição do Evangelho: "Esfriou a caridade à medida que a
iniquidade aumentou". E, no entanto, não existe obra mais
digna aos olhos de Deus, nem mais útil a nós mesmos do que
contribuir para a salvação das almas perdidas!

267
Estimulados pelo triunfo das orações da viúva de Naim,
nunca desesperemos de uma conversão; a oração confiante,
humilde e perseverante, obtém estupendos milagres da graça!

QUINTA-FEIRA DA XXV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus lhe ordenou: Jovem, levanta-te!" (Lc 7, 14).
I — Santo Agostinho explica que, "assim como morre o
corpo quando a alma o deixa, cai a própria alma, quando
abandona seu Deus". E, se admiramos o poder divino na
ressurreição dos corpos, mais ainda devemos admirá-lo na
ressurreição das almas; o milagre visível e corporal faz-nos
conhecer os atos e as operações invisíveis da mão divina;
porque o Salvador se aproxima da alma como se abeirou do
jovem de Naim: toca-a pela graça, faz com que escute sua voz,
ora por secretas inspirações, ora por advertências ruidosas, e
ordena-lhe que se levante, isto é, se desprenda do mundo e
volva para o céu o seu olhar, as suas esperanças e seus
pensamentos.
Habituemo-nos a escutar com docilidade a voz de Deus; e
peçamos-lhe que nos preserve de toda queda mortal.
II — A ressurreição do corpo não requer cooperação
alguma da parte do homem; mas a ressurreição da alma não
pode efetuar-se sem o concurso da nossa vontade. Deus não
força o livre arbítrio; oferece sua graça, mas não a impõe.
Quando, pois, o coração é objeto do toque da graça, deve
abrir-se e reagir e, então, apoiar o homem a sua mão na mão
de Deus. Reanima-se a alma; ergue-se do túmulo de suas
paixões e recomeça uma nova vida. Mas, entre as almas
ressuscitadas, quantas há que depois de terem aberto os olhos
à contemplação da luz e levantado sua cabeça para o céu,
mergulham novamente nas espessas trevas do túmulo!
Não basta ressurgir, é preciso perseverar nas práticas da
nova vida! Ouçamos Jesus: "Perseverai no meu amor!" —
"Salvar-se-á aquele que perseverar até ao fim!".

268
SEXTA-FEIRA DA XXV SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Ergueu-se o morto e começou a falar. E Jesus entregou-o
novamente à sua mãe" (Lc 7, 15).
I — Apenas ressuscitado, livrou-se o moço de sua mortalha
e começou a falar. Estes dois atos são sinais de vida. O
primeiro movimento da alma, ao retornar à luz, é despojar-se
de seus obstáculos; sacode o jugo das falsas doutrinas, das
paixões, das prevenções, dos hábitos inveterados. E aos
vigorosos impulsos da sua vontade, ela se abre, sente a
necessidade de prestar um testemunho à verdade. Quando a
vida é abundante, transborda, e a boca fala pela exuberância
do coração. Mas será mais por suas obras do que por suas
palavras que a alma ressuscitada provará a sua vitalidade; e
entremeando suas ações com a suave salmodia de sua gra-
tidão, canta com Davi as divinas misericórdias!
II — Com o gesto de entregar o jovem à sua mãe, o
Salvador quis nos fazer compreender que, ao ressuscitarmos à
vida da graça, voltamos a ser filhos queridos da Igreja. Porque
a Igreja é a mãe dos vivos, gera as almas, alimenta-as e
educa-as; fortalece-as pelos sacramentos, edifica-as pelos
exemplos dos santos, dirige-as pelos caminhos da salvação e
guia-as até à entrada no céu. Foi à Igreja que Jesus confiou as
chaves do reino de Deus, cujas portas ela tem o poder de abrir
ou fechar. Tranca-as aos pecadores obstinados, que preferem
as trevas à luz, e abre-as às almas que desejam livrar-se do
mal e praticar o bem.
Viveremos felizes sob a proteção divina, se permane-
cermos fiéis à grande família dos filhos de Deus.

SÁBADO DA XXV SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria figurada pela viúva de Naim
I — A pobre viúva que, em prantos, acompanha o corpo
inanimado do seu filho, representa a divina Mãe dos cristãos a
derramar lágrimas sobre a perda dos seus filhos. Que
lancinante dor a sua ao ver tantas almas, resgatadas por tão
custoso preço, ainda emaranhadas nas redes do pecado e da
morte! Ah! Como não lastimar essas almas rebeldes! Elas
rompem sua aliança com Deus, recusam seu amor e atiram-se
voluntariamente ao tenebroso abismo de onde as retirara
Jesus. Mortas para a graça, morrem de uma segunda morte,

269
diz o apóstolo, e arriscam-se à perdição irremediável. Maria
olha-as compadecida; chama-as, renova os chamados; suplica,
espera mesmo contra toda esperança.
Nós que, por tantas vezes, fomos causa de suas lágrimas,
rezemos, por nossa vez, e com constância, pela conversão das
almas transviadas.
II — Se Jesus se emocionou com as lágrimas de uma
mulher estranha, se, para a consolar, ressuscita um morto, que
prodígios não há de operar para as filhas de Sião, às quais deu
a incumbência formal de orar pelos mortos de Israel? Esta
reflexão nos permite avaliar qual o valor da intercessão de
Maria santíssima, qual a virtude de suas lágrimas, a força dos
seus desejos, a onipotência de suas petições.
Contemos firmemente com sua assistência e mereçamo-la
pela nossa piedade e perseverança. A Igreja, animada da mais
viva confiança, jamais se cansa de lhe recomendar os vivos e
os mortos, com o intuito de obter-lhes uma participação aos
méritos infinitos de Jesus Cristo.

XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Jesus toma refeição em casa de um fariseu e cura um
hidrópico"
(Lc 14).
I — A divina caridade do Redentor manifesta-se pela
benevolência com que aceita comer em casa de homens cujos
sentimentos secretos de inveja conhecia. Não ignorava que os
fariseus somente o convidavam para mais facilmente espiarem
seus atos e suas palavras. No entanto, não lhes foge à
companhia, nem recusa sentar-se à sua mesa. Este fato
encerra uma lição eloquente: que não devemos limitar-nos a
procurar unicamente as pessoas simpáticas ou agradáveis;
mas, como nos manda a caridade, dar-nos bem com todos e
mesmo consentirmos em viver com inimigos nossos, se assim
houver possibilidade de conquistá-los para Deus.
II — Consideremos a bondosa tolerância de Jesus para
com os fariseus. Tolerância esta aplicada somente às pessoas
e nunca à doutrina. Condescendente, nosso Senhor suporta
criaturas atacadas de cegueira e chega-se a elas para as
instruir e edificar; quanto a seus erros, combate-os e fulmina-
os. É este o espírito da Igreja católica: combater sem tréguas o
pecado e a heresia, demonstrando, ao mesmo tempo,

270
indulgência caridosa para com os pecadores e hereges. Ao
passo que, no campo adversário, sucede justamente o
contrário; os hereges toleram todas as doutrinas errôneas,
guardando sua intolerância apenas para os que professam a
verdade.
Imitemos o exemplo de Jesus; em nossas relações com o
próximo proponhamo-nos sempre um objetivo útil. Deste modo
terão proveito até os nossos momentos de recreio, onde basta
a presença de uma alma de critério e de piedade, para servir a
todas de edificação.

SEGUNDA-FEIRA DA XXVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E os fariseus o observavam" (Lc 14, 1).
I — Consideremos o espírito que animava os fariseus,
enquanto Jesus, todo doçura e suavidade, assentava-se no
meio deles. — "Observavam-no" — é o que diz o Evangelho;
não com o propósito de colherem instruções e se edificarem,
mas sim para o julgarem, e criticarem seus defeitos. Encontra-
se esta disposição farisaica, em graus diversos, em todos que
aliam à devoção sentimentos de orgulho e de vaidade.
Esquadrinham com secreto prazer as fraquezas do próximo,
para se darem algum realce; vivem a atribular os outros com
sua crítica e suas advertências, sem admitir, porém, que sua
excessiva susceptibilidade sofra a menor observação ou
repreensão. Gabam-se de clarividentes e nos olhos alheios en-
xergam qualquer palhinha, ao passo que não percebem a trave
que lhes cega a vista.
Não nos deixemos invadir por esse espírito mesquinho, tão
contrário à caridade e aniquilador de todas as fontes da
piedade cristã!
II — O homem justo observa-se a si próprio. Em vez de
rebuscar os defeitos do próximo e de se julgar deles isento,
cerra os olhos às fraquezas alheias, reservando sua
perspicácia exclusivamente para o seu próprio conhecimento.
Aprender a se conhecer, é a condição da ciência dos santos;
ciência raríssima, pois que o amor próprio é uma barreira difícil
de transpor que nos impede de perceber nossas imperfeições,
fazendo-nos, muitas vezes, apreciá-las como virtudes.

271
Somente a nossa observação não basta para progredirmos
no caminho da santidade; precisamos aceitar as advertências
dos outros e delas retirar útil proveito.

TERÇA-FEIRA DA XXVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Apresentaram-lhe um hidrópico" (Lc 14, 2).
I — A hidropisia, que consiste na inchação do corpo, é
figura da não menos monstruosa inflamação do espírito,
enfermidade mortal que tem sua raiz no amor próprio e produz
todas as desordens do orgulho. O característico da hidropisia
espiritual é exteriorizar toda a substância vital com a intenção
de se salientar e de se pôr, cada vez mais, acima dos outros. O
orgulhoso não suporta, a seu lado, uma superioridade
qualquer; ele quer a todo custo concentrar em si toda atenção
e estima e exigir as homenagens que julga lhe serem devidas.
Também, para alcançar tal objetivo, não poupa meio algum;
alardeia suas virtudes, seus talentos e até seus vícios;
envaidece-se mesmo de seus atos de humildade. Esta paixão
de si mesmo é uma moléstia que conduz à morte, declara são
Gregório.
II — Como o alimento do orgulho é a contemplação do
nosso eu e das qualidades que o distinguem, a cura desta
enfermidade exige que afastemos nossa atenção de nós
mesmos e a dirijamos para Deus; que, prostrados ante o
Senhor como o hidrópico, humildemente consideremos as
virtudes e as perfeições divinas. Esta contemplação, longe de
nos envaidecer, nos fará compreender a nossa pobreza, as
nossas misérias, o nosso nada. A lembrança de Deus, de sua
presença em nós e acima de nós; de sua bondade infinita, de
sua onipotência, de sua justiça e de suas misericórdias, esta
recordação constante e vivaz é o meio garantido para abater o
orgulho e para nos inspirar os verdadeiros sentimentos que
devemos alimentar a nosso respeito.

QUARTA-FEIRA DA XXVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Perguntou nosso Senhor aos fariseus: É lícito curar em dia
de sábado?" (Lc 14, 3).
I — Consideremos o nobre procedimento de Jesus com os
homens que o haviam convidado. Estes dissimulavam sua má

272
vontade e suas críticas, sob o exterior das honras que lhe
dispensavam; mas Jesus, conhecedor de todos os seus
pensamentos, não os quer, no entanto, confundir em público.
Propõe-lhe perguntas, como se desejasse instruir-se; fala-lhes
com brandura. Jesus tem por fim esclarecê-los e cativá-los,
sem os ofender. Apela para sua consciência, a fim de retificar
seus juízos errôneos. Por sua moderação e paciência, procura
reconduzir aqueles espíritos prevenidos e transviados. Vê-se
que é pela sua humildade que deseja curar-lhes o orgulho; e,
com o intuito de imprimir à sua lição um traço brilhante e
instrutivo, realiza a cura do hidrópico, ante os seus olhares de
céticos.
II — O Senhor triunfa mais pela brandura do que pelo
poder, conforme estas palavras da Escritura: "O homem manso
e paciente é mais forte do que o que subjuga cidades". Grande
verdade que nos ensina como se desarma a má vontade. Por
estas palavras condena-se, por conseguinte, a teimosia
exaltada com que, muitas vezes, queremos impor a outros
nossa opinião. Apliquemo-nos, pois, em suportar, com calma,
as contradições humanas; não consintamos que em nós seja
vencedor o amor próprio, cujas suscetibilidades se formalizam
à mais leve desatenção, à menor ofensa; e, não raro, supõe
intenções inexistentes. "Tocai essas montanhas e elas
fumegarão", diz Davi. O Senhor só exala palavras humildes
para desfazer as nuvens do espírito do orgulho. E nós quantas
vezes não aumentamos os nossos ressentimentos, pela
inflexibilidade das nossas exigências? São Paulo opõe a esses
conceitos os conselhos do Evangelho: "Preveni-vos
mutuamente com provas de consideração e de atenções. Que
cada um julgue os outros acima de si! Que, no meio de vós,
tudo seja empreendido com espírito de caridade e de
humildade!" — "Bem- aventurados os mansos porque
possuirão a terra".

QUINTA-FEIRA DA XXVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Quem de vós, se o seu jumento ou seu boi cair em um
poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado?" (Lc 14, 5).
I — Nosso Senhor, ao apelar para o bom senso dos
fariseus, procura despertar-lhes no espírito as mais simples
noções da verdade; porque, quando as más paixões falsearem

273
a consciência e a razão, as questões mais elementares se
complicam; e acham a própria religião uma fonte de
contradições e de minuciosidades. Assim é que os fariseus,
pretextando regularidade, julgam-se autorizados a salvar em
dia de sábado o animal caído no poço, ao passo que receiam
transgredir a lei divina se socorrerem a um irmão. Mostram-se
escrupulosos em engolir uma mosca e, no entanto, diz o
Evangelho, tragam um camelo. Purificam cuidadosamente as
mãos e conservam nos corações sentimentos de ódio e de
orgulho. Desconfiemos de nós mesmos; porque, desde que o
orgulho se intromete em nossa razão, deixamos de perceber os
objetos claramente como são; vemo-los como através de vidros
de cores e de espessuras diferentes.
II — Quando o orgulho consegue infiltrar-se nos sen-
timentos religiosos, começa por obscurecer o espírito, depois
torna seco o coração, pois que não há caridade onde falta
humildade. Demonstração evidente desta verdade está na
conduta dos fariseus que permitem, de bom grado, o
salvamento, em dia de sábado, de um boi caído no fosso,
enquanto ao Salvador contestam o direito de curar um
hidrópico. São cheios de cuidados por um vil animal e nem se
preocupam de salvar um homem. Esta falta de verdadeira
caridade se observa em muitos cristãos, que vivamente se
interessam pelos animais e permanecem indiferentes, não
somente no que respeita à alma do próximo, mas ainda quanto
à sua própria salvação. Seu zelo se limita à vida terrena; e
quando uma alma cai no abismo, não prestam atenção, nem se
comovem.
Saibamos melhor avaliar o preço de uma alma! Em-
preguemos todos os meios ao nosso alcance para lhes obter a
salvação.

SEXTA-FEIRA DA XXVI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Aquele que se exaltar será humilhado e aquele que se
humilhar será exaltado" (Lc 14, 11).
I — Nosso Senhor nos representa, sob todas as formas, as
consequências funestas do orgulho e as inapreciáveis
vantagens da humildade. Comprazer-se em si próprio, atrair a
si louvores e glórias, exaltar-se por vãs pretensões acima dos
outros é renovar, em graus diversos, a corrupção dos anjos

274
caídos; é perpetuar na terra a injustiça, a desordem e a
mentira; é colocar-se como um ídolo no lugar de Deus. Os que
andam por esse caminho de exaltação serão profundamente
rebaixados, pois que Deus, que dá sua graça aos humildes,
resiste aos soberbos e aos orgulhosos, e precipita-os no
abismo.
Se queres ser grande perante Deus, conserva-te pequeno
a teus próprios olhos e tem para contigo sentimentos de
inferioridade, diz a Escritura.
II — O contraste entre a majestade do Criador e a nossa
extrema fraqueza deveria bastar para nos conservar humildes;
mas temos ainda a considerar que de Deus é que recebemos
tudo o que possuímos e tudo o que somos. Sejam, portanto, as
virtudes, as qualidades, os talentos, todas as vantagens
espirituais ou temporais de que sejamos favorecidos,
consagrados ao Senhor; a ele é que devemos prestar
homenagens por todos os dons. A humildade, que regula
nossas relações para com Deus, deve igualmente dominar nas
relações que entretemos com o próximo, eximindo-nos de
qualquer sentimento de desprezo ou superioridade. A
humildade nos incita a colocar nos outros a estima que
retiramos de nós e a não reputarmos ninguém abaixo de nós.
A alma, fiel imitadora de Jesus Cristo, que pratica a
humildade sincera, alcançará uma coroa de honra e de glória.

SÁBADO DA XXVI SEMANA DO TEMPO COMUM


A Virgem santíssima, modelo de humildade.
I — É realmente a Mãe de Jesus o modelo da humildade.
Tal era o Filho, tal a Mãe; é pelo fruto que se reconhece a
árvore. Maria já era humilde antes de ser saudada pelo
arcanjo, como se depreende de suas palavras, e foi sua
humildade que atraiu os olhares do Todo-poderoso. Mas quão
aperfeiçoada não foi esta divina virtude sob o olhar de Jesus!
Quantos exemplos, quantas lições evangélicas não foram
recebidas e ministradas, quando era ela a única depositária
das palavras do divino Mestre! Já então praticava a doutrina da
santidade, antes de Jesus a ter revelado aos apóstolos; e
quando Jesus disse aos seus discípulos: "Aprendei de mim que
sou manso e humilde de coração", já ela atingira a extrema
perfeição na humildade.

275
II — Consideremos com que precaução e simplicidade a
divina Virgem se subtrai aos olhos do mundo e oculta a todos
os olhares os dons e as prerrogativas de que tão
maravilhosamente era dotada. Compraz-se na obscuridade e
no silêncio, evitando os feitos de aparato, embora, sob títulos
mais justificáveis do que os apóstolos e os outros santos, fosse
capaz de operar milagres. Mas a humildade é toda a sua vida;
e para conservá-la intacta, guarda em seu coração os tesouros
da graça e oculta em seu íntimo, como convém à Filha de Sião,
todas as belezas de sua virtude e todos os segredos do seu
amor. E, se alguma vez permite ser contemplada na atitude da
força e da majestade, é no Calvário, junto da cruz, onde
permanece de pé, em meio às humilhações e aos opróbrios.
Formemo-nos à imagem de Maria e sejamos humildes, a
fim de atrair sobre nós os olhares misericordiosos de nosso
Deus.

XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Um doutor da lei aproximou-se de Jesus, para lhe fazer
esta pergunta: Mestre, qual é o maior mandamento da lei?"
(Mt 22, 35. 36).
I — Os doutores da lei não viam na religião senão as
cerimônias exteriores do culto; e, satisfeitos com sua
escrupulosa observância, deixavam de vivificá-la pelo espírito
da caridade e do amor. Nosso Senhor condena em qualquer
circunstância esta funesta cegueira; mas tal condenação se
dirige igualmente a todo cristão que professe doutrinas
análogas. Estes cristãos possuem todas as aparências
edificantes; têm na realidade a ciência e os elementos da
santificação, mas carecem do fogo sagrado sem o qual tudo é
morto. "Vim trazer o fogo à terra, diz-nos o Salvador, e qual é o
meu desejo senão que arda?".
II — As dúvidas dos fariseus a respeito do principal
mandamento de Deus provam que, quando o coração não é
reto, a fé vacila e a ciência é vã. Então, erigem em sistemas as
falsas luzes que favorecem as paixões e tranquilizam a
consciência. Procuram na razão humana argumentos para
desculpar ou dissimular as faltas; interpretam a lei de modo a
excluir o remorso; chegam à força de discutirem consigo
mesmos, a acharem justo o que é injusto, e bem o que é mal. A
retidão do raciocínio se perde, como se perdeu a sinceridade

276
do coração, e então a alma adormece nas ilusões de uma
consciência que não vê mais a verdade. "Bem-aventurados os
que têm o coração puro, porque verão a Deus".

SEGUNDA-FEIRA DA XXVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com
toda a tua alma e com todo o teu espírito" (Mt 22, 37).
I — O amor de Deus é o grande mandamento que resume
toda a religião; é o fim do homem, pois que o homem só foi
criado para amar a Deus; é o fim dos outros mandamentos e
de todos os ensinamentos sagrados, pois que todos tendem
unicamente a ligar o homem a Deus. É o amor o laço dessa
união, a condição da vida imortal, o caminho da felicidade, a
chave do céu. Amar a Deus é nele convergir toda a substância
do nosso coração; é referir-lhe todos os atos da nossa vontade,
todos os pensamentos do nosso espírito, todas as obras da
nossa vida; é nele derramar toda a nossa alma.
A alma fiel tira de si mesma as vítimas que oferece a Deus:
arde a se consumir, como o círio pascal, ante o altar do amor.
II — Como o fogo se manifesta pelas chamas, prova- se o
amor pelas obras. "Aquele que me ama guarda as minhas
palavras", diz Jesus. Ora, guardar a palavra é torná-la
realidade nos atos e na prática. Se guardarmos, pois, o
primeiro mandamento, praticaremos todos os outros preceitos
e provaremos o nosso amor por uma obediência fiel. A vida
cristã pode ser fecunda ou estéril, conforme a dose de energia
com que é realizada a sublime lei do amor.

TERÇA-FEIRA DA XXVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Este é o primeiro e o maior mandamento" (Mt 22, 38)
I — O amor de Deus, que é o primeiro mandamento, deve
também ser o objeto principal de nossas meditações e de
nossa vida prática. Ordena formalmente a entrega total do
nosso coração; significa, portanto, uma violação à lei divina
oferecer a Deus apenas uma parte do nosso coração,
conservando outra; ou, o que bem mais funesto seria, retomar
o coração depois de lho haver dado. Por isto esse grande
mandamento obriga essencialmente a amar a Deus sem
reservas e sem medida; a amá-lo sem retorno e sem fim; quer

277
isso dizer que é preciso crescer sempre no amor, aproximar-se
sem cessar do eterno e divino foco. É o que nos ensina são
Paulo: "Não creio haver ainda atingido o termo a que tendo;
mas tudo o que sei agora é que, esquecendo o que deixo atrás
e adiantando-me para o que tenho à frente de mim, corro sem
cessar para o fim da minha carreira".
II — O primeiro mandamento é também o mais suave e o
mais fácil de todos, porque os homens são naturalmente
inclinados a amar, e o mandamento divino tem por finalidade
prendê-los ao eterno objeto do amor. Ora, para amar este Deus
de amor é preciso conhecê-lo e senti-lo, é preciso penetrar no
íntimo do nosso coração; aí é que ele se revela, que faz suas
delícias; é aí que o amor se faz amar. A alma amorosa e
perseverante que saboreou, dentro em seu ser, a divina unção
do amor, não necessita mais que lhe ordenem amar; possui um
tesouro contendo todos os tesouros e uma felicidade que
encerra tudo que possa fazer feliz. Sob a ação desta chama
divina, toda afeição humana empalidece e se apaga, como as
estrelas ao despontar do sol.
Santo Agostinho exclama: "Dizei às criaturas que, se
possuem alguma beleza e encanto, estes dons provêm
daquele que, mais do que elas, é belo, excelente, amável e,
por conseguinte, mais soberanamente digno de ser amado!" E
assim se exprime um outro doutor: "Não me indagueis por que
amo meu Deus. Amo-o, porque o amo! Amo-o, por amar!".

QUARTA-FEIRA DA XXVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"E o segundo mandamento é semelhante ao primeiro:
Amarás a teu próximo como a ti mesmo" (Lc 22, 39).
I — Consideremos que procedem de um único amor, como
de uma só raiz, o sentimento de dileção que dedicamos ao
próximo e o de predileção que dedicamos a Deus. Esses dois
ramos se produzem simultaneamente, mutuamente se
abraçam e separados não logram desenvolver-se. Eis por que
o segundo mandamento é semelhante ao primeiro. Amar a
Deus é guardar sua palavra; e guardar sua palavra é amar o
próximo. Como seria possível, na realidade, amar a Deus sem
amar aqueles aos quais ele ama, aos quais nos manda amar?
E como amar nosso próximo, sem amar a Deus, do qual é

278
imagem? São palavras de Jesus: "Reconhecer-se-á que sois
meus discípulos, se vos amardes mutuamente".
II — O divino Salvador, que nos amou até dar por nós a
sua vida, mostrou-nos, em sua morte, o tipo da caridade
perfeita; pois que o sacrifício de si mesmo é o mais alto grau do
amor. É mui raro se apresentar a ocasião de morrermos pelos
nossos irmãos; mas a de lhes prestar auxílio, de edificá-los, de
servi-los, se nos oferece cada dia. A verdadeira caridade não
calcula seus serviços; não conta as privações e os pesares;
vence as repugnâncias e a todos inteiramente se dedica.
Elevada a tais alturas, confunde-se a caridade com o amor de
Deus, pois que serve a Deus amando a seu próximo e a seu
próximo serve para testemunhar a Deus o seu amor: "Tudo que
fizerdes a algum dos meus, a mim o fareis", declara o Salvador.
Seja este mandamento por nós praticado de maneira a
poderem dizer de nós o que diziam dos primeiros cristãos:
"Vede como se amam!".

QUINTA-FEIRA DA XXVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Toda a lei e os profetas estão contidos nestes
mandamentos"
I — A vida do céu consiste em amar eternamente e em ser
eternamente amado. Os bem-aventurados na eternidade
recebem com plenitude as efusões do amor e as transmitem
mutuamente. Só uma lei rege o céu: a do amor e da caridade.
Esta lei trouxe-a Jesus ao mundo, para iniciar e formar os
cristãos à vida celestial. Tanto os preceitos quanto as
proibições visam unicamente auxiliar a sua execução. Daí
podemos concluir que o cristão fiel ao amor de Deus e do
próximo observa integralmente a lei; ao passo que aquele que
transgride o preceito da caridade viola todos os outros
mandamentos. O apóstolo nos declara que, excluindo a
caridade, todas as outras virtudes, mesmo as mais sublimes,
de nada serviriam.
II — Visto significar a caridade o conjunto de todos os
deveres, a plenitude de todas as virtudes, a essência e a
substância da religião, conclui-se que, do nosso adiantamento
no caminho da caridade, dependerá o nosso progresso
espiritual; que a santidade não é senão a perfeição da
caridade. Conforme o grau da nossa caridade, estaremos mais

279
próximos ou mais distantes de Deus. Esta virtude valoriza as
obras, dá mérito ao sacrifício, êxito ao zelo, frutos ao
sofrimento, recompensa aos mínimos atos; purifica e coroa a
vida cristã. Por sua força atrativa e sua unção unificante nos
atrai ao céu e nos une a Deus.
Apliquemo-nos santamente a nos aperfeiçoar nesse ca-
minho real, para assim podermos afirmar com são Paulo que
nada nos poderá separar do amor de Deus em nosso Senhor
Jesus Cristo.

SEXTA-FEIRA DA XXVII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus lhes disse: Se a Cristo é Filho de Davi, como lhe
chamava Davi seu Senhor?" (Mt 22, 45).
I — Consideremos que o texto do salmo, citado por Jesus,
prediz claramente que o Messias deveria ser ao mesmo tempo
filho de Davi e Filho de Deus; mas estas palavras proféticas
não projetaram luz alguma nesses espíritos voluntariamente
fechados aos testemunhos da verdade. Permaneceram em
silêncio e não compreenderam que em seu meio estava aquele
que viera dar plena observância à lei, cumprir todas as
promessas e realizar todas as profecias. Tal é a razão que
obsta aos homens cheios de si e presos a suas opiniões, o
entendimento das coisas de Deus; e, ao passo que se revelam
os divinos mistérios aos humildes, ocultam-se aos espíritos
orgulhosos e escapam à percepção dos que preferem as trevas
à luz.
Guardemos ciosamente a nossa fé e conservemo-la sob a
guarda da humildade.
II — No texto sagrado mencionado por Jesus, Davi
profetiza a glória de seu Filho e adora-o, ao mesmo tempo,
como seu Senhor e seu Deus. É a misteriosa revelação da
dupla natureza de Jesus Cristo. Por sua geração eterna, é ele
o Filho de Deus bendito em todos os séculos; por sua
encarnação no seio de Maria, é o filho do homem saído da raça
de Davi. Ora, a aproximação deste texto com o dos dois
mandamentos de Deus, que Jesus cita juntamente, demonstra-
nos que precisamos aplicar ao divino Salvador o mandamento
de amar a Deus e o de amar o nosso próximo; isto é que,
sendo Jesus nosso Deus, devemos amá-lo com toda nossa
alma, com todo nosso coração e com todas as nossas forças; e

280
que, ao fazer-se homem, tornou-se nosso próximo e, sob este
novo título, exige que o amemos como a um dos nossos
semelhantes.
Amemos, pois, a Jesus, com duplo amor e nele con-
centremos os sentimentos que nos inspiram o Criador e as
criaturas.

SÁBADO DA XXVII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Maria é a origem dos caminhos de Deus"
I — A Igreja coloca na boca da Virgem estas palavras do
livro da Sabedoria: "Sou a origem dos caminhos de Deus".
Com Maria, evidentemente, inicia-se a era da regeneração. Ela
concebeu o Verbo de Deus em seu seio virginal; deu ao mundo
o Messias; apresentou-o à adoração dos pastores e dos
magos, dos reis e dos povos. Por sua mediação, o espírito de
profecia santificou, no seio de Isabel, o maior de todos os
homens; por sua intercessão nas bodas de Caná, os milagres
de Jesus pela primeira vez deslumbraram o mundo. Maria pos-
suía o espírito evangélico bem antes da vocação dos após-
tolos. É mais do que um evangelista, já que em si trazia todas
as palavras de vida. Foi por Maria que o sacerdócio católico foi
misteriosamente inaugurado; porque, como um pontífice,
ofereceu a santa Vítima. São estes, apenas, os grandes traços
do seu papel na Igreja. Mas quem poderia relatar as
inumeráveis obras de caridade, de piedade e misericórdia,
iniciadas por Maria?
II — Maria é o Evangelho vivo, em que os discípulos de
Jesus Cristo estudam os mistérios do amor e da caridade;
teologia divina, que contém em luminosa claridade o
conhecimento de Deus e a ciência dos santos. "Maria é o
começo, o meio e o fim de todas as obras divinas", diz são
João Damasceno. Como Jesus, cumpriu o primeiro
mandamento, conservando a palavra em seu coração e pondo
em prática a obediência até à morte.
Como Jesus amou seu povo até se devotar ao sacrifício,
para cooperar com Jesus Cristo na salvação das almas.
Sigamos seu exemplo; demo-nos inteiramente a Deus e a
nossos irmãos. E então repetiremos com Maria estas palavras

281
de Jacó e de Davi: "Senhor, trazei-me em vossos braços; sois
minha herança, minha esperança e minha coroa".

XXVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


Cura de um paralítico (Mt 9).
I — As várias enfermidades corporais, cuja cura nos relata
o Evangelho, são figuras visíveis das enfermidades espirituais.
A paralisia representa o estado de uma alma que permanece
estacionária no caminho da salvação. Não está morta, mas não
se move, não anda mais, não sabe mais agir, nem sofrer, nem
lutar; toda a sua boa vontade se esvai; a prática de suas
resoluções é retardada; começa sempre, sem jamais terminar;
sua vida é um sonho, seu despertar será uma decepção. Quais
as causas desta funesta imobilidade? "Meu coração secou,
porque deixei de comer meu pão", confessa Davi.
A negligência na oração, na comunhão, nos deveres
quotidianos, produzirá aos poucos graves desordens morais. A
alma, como o corpo, se entorpece quando privada de alimento
e de exercício.
II — A vida do homem sobre a terra é um perpétuo lutar.
Daí as alternativas de saúde e enfermidade, de fervor e
esmorecimento. A graça de nosso Senhor responde
superabundantemente às necessidades desses vários estados;
mantém ou restabelece o equilíbrio de nossa boa vontade e
não há enfermidade que não encontre seu remédio nos
sacramentos. No entanto, se a graça nunca se esgota, nem por
isso produz sempre os seus efeitos. Muitos cristãos,
semelhantes aos judeus do Evangelho, não se valem da
medicina quando mais necessitam ou dela abusam quando de
nada lhes aproveita. A alma que não melhora, deteriora-se; a
que não quer progredir, arrisca-se a ficar paralisada. O salmista
exclama: "Iluminai meus olhos para que não adormeça do sono
da morte".

SEGUNDA-FEIRA DA XXVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus, tendo entrado em uma barca, voltou para a sua
cidade" (Mt 9, 1).
I — Qual é a cidade de Jesus de que fala o evangelista?
Pois não possuía nem pedra onde repousar a cabeça! A cidade
de Jesus Cristo, explicam os intérpretes, é o símbolo do

282
coração humano, onde o Salvador fixa sua morada
permanente. Ele não desceu do céu para ficar nas habitações
terrestres; e se permanece nos templos a ele consagrados, aí
fica somente de passagem, transitoriamente, como em um
lugar de repouso, onde nos espera. O vasto mundo é um
templo onde refulgem as maravilhas de sua onipotência; mas o
coração humano é o lugar sagrado onde se realiza o mistério
do seu amor. Aí é que faz suas delícias... "Uma só coisa pedi
ao Senhor e esta solicitarei: é habitar na casa do Senhor todos
os dias da minha vida" (SI 26, 4).
II — Ensina-nos o Evangelho que o reino de Deus está
dentro de nós e que precisamos entrar em nosso coração para
ficarmos unidos ao Deus do amor. Como o Senhor é o Santo
dos santos, não é admissível que coabite com os ídolos e, por
conseguinte, não poderemos possuí-lo na cidade da nossa
alma, a não ser sob a condição de a purificarmos e de lha
consagrarmos inteiramente, a fim de que, a exemplo de Sião,
seja ela uma cidade forte, santa, onde reinem a paz, a ordem e
a concórdia. Jesus Cristo é o príncipe da paz e entrega-se às
almas pacíficas. "Estais em nós, ó Senhor, e vosso santo nome
foi sobre nós invocado", dizia o profeta Jeremias. Sussurrou a
voz à Esposa: "Prepara tua alma, porque eis que vem o
Esposo! Abre tuas portas; eis o Deus das virtudes!".

TERÇA-FEIRA DA XXVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Apresentaram-lhe um paralítico, estendido em um leito"
(Mt 9, 2).
I — As caridosas criaturas, que conduziram em um leito o
paralítico, até ao sítio onde se achava o Salvador, oferecem-
nos um exemplo de zelo evangélico. Nada as detém, nem a
multidão que se aglomera em torno de Jesus, nem o respeito
humano, nem as inventivas dos escribas e dos fariseus. Não
desanimam ante as contradições e veem sua perseverança
recompensada por um milagre.
Este fato demonstra a eficácia dos serviços que os homens
se prestam mutuamente. São sempre abençoados; pois, em
virtude da troca desses procedimentos louváveis, os pecadores
participam dos méritos dos santos e os santos têm parte nas
graças que alcançam para os pecadores. A medida da alegria
é, no entanto, maior para quem dá do que para quem recebe.

283
II — Afirma um dos padres da Igreja não existir nada de
mais divino do que o zelo com que nos empenhamos na
edificação das almas. Este zelo é sempre fecundo e meritório,
mesmo quando não produza frutos imediatos. Quando a graça
é desprezada por uns, vai ter a outros corações ou reverte
sobre nós; assim sendo, ao cooperarmos para a salvação de
nossos irmãos, contribuímos para a nossa própria felicidade.
Assegura-nos o apóstolo que, se, por nossas orações, nossas
obras e sofrimentos, atrairmos uma alma ao menos, para o
caminho da salvação, obteremos em recompensa a remissão
dos nossos pecados e a vida eterna.
Demos ao Salvador uma prova de amor, edificando as
ovelhas fiéis e ganhando as infiéis.

QUARTA-FEIRA DA XXVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus, vendo sua fé, disse ao paralítico: Meu filho, tem
confiança, teus pecados te são perdoados" (Mt 9, 2).
I — A bondade com que o Senhor acolhe o paralítico, as
consoladoras palavras que lhe dirige, são uma animação para
todos os aflitos e enfermos. Os padecimentos de corpo e de
espírito são, aliás, poderosos meios de salvação, quando
utilizados, seja para aperfeiçoar a paciência, seja para se
exercitar a mortificação, seja para expiar as faltas, unindo estas
expiações à Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Como o
fogo consome a ferrugem aderida ao metal, assim as
provações dolorosas libertam a alma de suas manchas e
aumentam-lhe o brilho e esplendor. Mas, para que produzam
esses preciosos benefícios, os males da vida terrestre devem
ser aceitos com submissão e santificados pela fé. A cruz nos
imprime traços de semelhança com o Salvador crucificado.
II — Para efetuar a cura da alma e do corpo, só uma coisa
o divino Salvador pede ao paralítico e aos que lho trazem: a
confiança. E, para excitar esse sentimento, chama de — filho
— ao doente, apelo que exclui qualquer temor e hesitação. Se
ao Senhor nos achegarmos com confiança, não teremos
razões para desesperar; pois nos declara Deus na sagrada
Escritura que o pecador sinceramente convertido será salvo e
que, onde abundasse o pecado, haveria superabundância de
graça.

284
Meditemos sobre a inefável bondade de nosso Senhor. Ele
veio para os pecadores e não para os justos; para os enfermos
e não para os sãos.

QUINTA-FEIRA DA XXVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus, conhecendo seus pensamentos, lhes disse: Por
que formais maus juízos em vossos corações?" (Mt 9, 4).
I — Na ocasião de operar a dupla cura do paralítico, nosso
Senhor faz ainda outro milagre não menos instrutivo. Lê no
coração dos fariseus e desvenda seus secretos pensamentos.
Deus enxerga até o mais recôndito da consciência humana; vê
as ações, ouve as palavras; mas, sobretudo, sonda as
intenções. Este olhar de Deus não causa receio aos corações
retos; estes sentem consolo em andar na presença daquele
que não julga pelas aparências e sim conforme a justiça e a
verdade. Só Deus é nosso juiz; as criaturas veem somente o
exterior, e o Evangelho proíbe julgarem-se mutuamente. É
atributo da caridade não ajuizar mal do próximo.
II — Já que o nosso Juiz percebe o mal em seu germe
interior e condena a ação maldosa concebida no pensamento,
devemos andar alerta, vigiar o nosso espírito e governá-lo de
tal modo que em nosso íntimo nada se passe capaz de
desgostá-lo. Não é, todavia, o pensamento fugaz que é
condenável, mas o pensamento voluntariamente admitido, pois
não existe pecado quando a vontade não der o seu formal
consentimento. O mal apresentado ao espírito é uma tentação,
apenas, e a tentação pode ser uma ocasião de mérito, se
repelida, ou de pecado, se consentida.

SEXTA-FEIRA DA XXVIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Disse Jesus ao paralítico: Levanta-te, toma teu catre e
volta para tua casa" (Mt 9, 6).
I — Consideremos os três misteriosos atos prescritos pelo
Senhor ao paralítico. Primeiro, ordena-lhe que se levante. O
primeiro movimento da alma, ao recobrar a saúde, é aprumar-
se, pôr-se em pé, em atitude de ânimo e de confiança. O
segundo é figurado pelo leito de que se deve encarregar o
próprio paralítico. Quando a alma se restabelece, é-lhe
necessário tomar a cruz sobre a qual jazia e carregar seu leito

285
de dores e misérias, até transpor o limiar de sua casa. Ora,
esta não está na terra e sim no céu. Não procuremos a cruz
longe de nós; tomemos nosso próprio fardo e, por pesado que
nos pareça, conservemo-lo como instrumento de salvação. São
os trabalhos, as fadigas, os suores quotidianos que nos hão de
conduzir à morada da nossa eternidade.
III — O Evangelho acrescenta ainda que a multidão,
presente ao milagre e impressionada pelas palavras de Jesus,
bendizia a Deus que tal poder dera aos homens. O divino
Salvador, que veio ao mundo para apagar os pecados e salvar
o que estava perdido, depositou em sua Igreja o poder que na
terra exercera. Comunicou aos homens consagrados ao santo
ministério o poder de curar, de desligar e perdoar os pecados;
e, pelo sacramento da penitência, perpetuou até ao final dos
séculos as efusões da sua inesgotável misericórdia. E como
essa fonte jamais se estanca, não consintamos também que se
extingam os sentimentos da nossa gratidão.

SÁBADO DA XXVIII SEMANA DO TEMPO COMUM


"Maria tem em suas mãos a chave das misericórdias
divinas"
I — Jesus é a misteriosa chave do céu. Ele abre e ninguém
pode fechar, e, quando fecha, ninguém mais poderá abrir. Seu
Coração é o tesouro de todas as graças; o sangue que corre
deste Coração sagrado é o preço da nossa redenção, o penhor
da nossa salvação. Mas esta chave da eterna felicidade não se
encontra nas mãos de Maria? Não foi no seio de Maria que o
Filho de Deus tomou o sangue que apaga os pecados do
mundo? Não foi a Maria que Jesus prestou obediência e
submissão nos primeiros trinta anos de sua vida? Não foi a
Maria que legou sua ternura pelos filhos dos homens?
Aprofundemos esta verdade para compreendermos com
que poder nossa Mãe divina fala ao Coração de Jesus! Ela
intercede em favor dos doentes, dos pecadores e dos aflitos.
Ela fala e uma palavra de sua boca faz jorrar sobre nós as
misericórdias do Todo-poderoso!
II — Jesus Cristo instituiu os sacramentos como canais que
transmitem às almas as efusões da vida celestial. Mas
consagrou a maternidade de sua Mãe como um outro canal por
onde nos venha o bálsamo das vivificadoras consolações.
Maria é, por assim dizer, o sacramento da ternura maternal.

286
Oferece-nos os dons da bondade, da misericórdia e do amor.
Ela é mais do que um sacramento, pois que forneceu os
elementos que nos comunicam o fogo sagrado da Divindade.
Como seria possível uma alma cristã não amar Maria? Este
amor filial, afirmam os doutores da Igreja, é um sinal de
predestinação. É um culto vivo que ofereço à Mãe de Jesus um
tributo perpétuo de honra, de obras santas e de ações de
graças.

XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM


"O reino dos céus é semelhante a um rei que quis celebrar
as núpcias de seu filho" (Mt 22, 2).
I — As núpcias reais, para as quais somos convidados, são
as festas da aliança que o Filho de Deus contraiu com a
natureza humana; aliança repleta de mistério. Começou neste
mundo no momento da encarnação e consumar-se-á no céu. A
totalidade das almas regeneradas pode aspirar à união divina,
mas só aquelas especialmente consagradas ao Senhor é que
recebem com solenidade o título augusto de esposas de Cristo.
As magnificências de Salomão, descritas nos livros sagrados,
esboçam pálidas imagens do mistério das núpcias espirituais; e
não é dado ao homem imaginar, pois que os olhos não viram,
os ouvidos não escutaram, o coração não compreendeu o que
Deus preparou aos seus eleitos. A vida religiosa, com seus
labores e suas alegrias, não é mais do que uma preparação
para essas festas eternas.
Caridade imensa de Deus! Como não se sentir trans-
portado de alegria, ao considerar tantos extremos de amor?
II — A alma que aspira às divinas núpcias deve começar
por se humilhar, para se tornar santa, pois que tem por
prometido ao Santo dos santos. Ora, segundo a opinião de são
Bernardo, somente as almas religiosas podem levar uma vida
perfeitamente santa. Afastadas do convívio do mundo, praticam
as regras da santidade evangélica; e, preservadas do espírito
do século, são mais humildes, mais recolhidas e mais fortes.
Noviciados do céu! — assim qualifica as comunidades o gran-
de são Gregório de Nazianzo. São os abrigos sagrados onde o
Senhor reúne as suas escolhidas, com o intuito de prepará-las
para o dia das núpcias. Para esse fim, alimenta-as de amor,
enriquece-as de virtudes e exercita-as na vida dos anjos. Santo

287
Agostinho aconselha-as a levarem uma vida divina, já que têm
por Esposo um Deus.
Alma religiosa! Reconhece tua excelsa dignidade! Purifica-
te pela penitência; embalsama-te com todos os perfumes da
virtude e, por uma incorruptível fidelidade, faze-te digna de
ostentar a coroa nupcial na festa do Esposo.

SEGUNDA-FEIRA DA XXIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Enviou seus servos a chamar às núpcias aqueles que
convidara"
I — Pelo astro imenso, desde o oriente até ao ocidente,
estende o Senhor uma mesa santa, onde as almas escolhidas
comem o pão do amor e tomam a bebida da imortalidade. A
festa é comparada aos regozijos nupciais, porque esse mistério
nos une ao Senhor e permite-nos sentir o grande amor de
Deus pela sua criatura, feita à sua imagem.
Possa esse amor excitar o nosso! Meditemos com fre-
quência sobre os benefícios de Deus e recorramos ao estro do
salmista real, para, em uníssono, celebrar as eternas
misericórdias.
II — É a fé que primeiramente deve responder ao convite
divino. Sem ela, ninguém poderá apresentar-se entre os
convivas da Mesa santa. A vocação à fé precede todas as
graças e é o princípio de todas as vocações particulares. São
Paulo, discorrendo sobre a fé e as obrigações que ela impõe,
resume seus ensinamentos numa exortação: que procedamos
de modo digno da nossa vocação.
Peçamos ao Senhor que nos aumente esta fé, que a
fortaleça e vivifique, a fim de que ela sirva de alicerce a todas
as graças que o Senhor nos destina e que produza os frutos
com que devemos contribuir para a sua glória!

TERÇA-FEIRA DA XXIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Os convidados recusaram atender ao convite"
I — O primeiro convidado às bodas do Cordeiro foi o povo
de Israel. Deus lhe enviara sucessivamente Moisés e os
profetas, os apóstolos e os discípulos. Mas, à medida que o

288
Senhor multiplicava as provas do seu amor, esse povo ingrato
com maior teimosia ainda os repelia; e, em sua inconcebível
cegueira, recusava o dom que lhes oferecia a mão divina. "As
trevas não compreenderam a luz", diz o Evangelho. Ante a
consideração desta luta entre a bondade de Deus e a
insensibilidade dos homens, duas coisas apresentam-se
inexplicáveis: de um lado, a paciência divina, que jamais se
cansa de fazer o bem; e de outro, a perversidade daqueles que
persistem em desconhecer seu Benfeitor. Este contraste se
perpetua no mundo, entre a graça e a natureza.
No decurso de nossa vida passada e em nossos atos
quotidianos, não encontrará, em nós, por ventura, o Espírito de
Deus mais de uma resistência, mais de um murmúrio, mais de
uma ingratidão?
III — A história dos judeus é a profecia da história da
Igreja: deve servir de exemplo e de instrução aos cristãos. Ora,
se os judeus preferiram os bens da terra aos do céu e se
somente com ultrajes responderam aos enviados de Deus, que
lhes ofereciam as graças do alto, quão culpável não será a
alma cristã que despreza benefícios bem mais preciosos! A
todos diz o Senhor: "Vinde a mim, vós que estais
sobrecarregados e acabrunhados e eu vos aliviarei!" A todos
dirige este convite: "Se alguém tem sede, que venha a mim e
beba!".
De que modo correspondemos a essas divinas atenções?
É junto ao Senhor que procuramos estancar nossa sede? É a
ele que imploramos o consolo para nossos corações? É nele
que encontramos nossa paz e nosso repouso?

QUARTA-FEIRA DA XXIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Mas eles desprezaram o convite; e se foram, um para sua
casa de campo e outro para o seu negócio"
I — A negligência mantém uma multidão de criaturas
afastadas da festa nupcial e priva-as de uma felicidade que não
apreciam. Já não seria desculpável tal negligência em cristãos
envolvidos nos negócios do mundo; quanto mais imperdoável é
isso em pessoas votadas ao serviço de Deus! Tudo, em redor
deles, lhes fala das núpcias do Cordeiro: a voz de Deus, a voz
dos superiores, a voz da regra, a voz dos bons exemplos;
todos os exercícios religiosos, todas as práticas quotidianas

289
são outras tantas vozes a convidar suas almas para o
banquete do amor e guiá-las para as coisas do céu. Negligen-
ciar estas graças ou recebê-las com descaso é arriscar-se a
ser anátema, merecendo a fulminante sentença da Escritura:
"Maldito seja aquele que faz a obra de Deus com negligência".
II — A negligência na vida espiritual assemelha-se a essas
chagas mortíferas que, a princípio imperceptíveis, alastram-se
pouco a pouco pelo corpo todo, tornando-o irreconhecível. Não
é de uma feita que se cai em faltas graves: começa-se por
negligenciar a oração, a meditação, os exames; vem em
seguida o relaxamento da regra, das obrigações, dos ofícios;
acaba-se por negligenciar a comunhão; e, então, não se
atende mais nem às advertências, nem aos mais sagrados
compromissos da consciência. A faísca, que por descuido se
deixou cair, causou um incêndio capaz de tudo arruinar.
"Vigiai e orai!" Estas duas palavras, tantas vezes repetidas
pelo Senhor, podem atalhar tais perigos e resumem todas as
recomendações evangélicas.

QUINTA-FEIRA DA XXIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Os outros, porém, prenderam os servos que enviara, e,
depois de os cobrirem de ultrajes, lhes deram a morte"
I — Os judeus infiéis não se limitaram a rejeitar a graça;
levantaram-se contra os que haviam sido encarregados de
trazê-la e os cumularam de injúrias. É sempre assim. As
consciências que receiam a luz irritam-se contra os que têm a
missão de os esclarecer; não querem ouvir conselhos, nem
advertências, nem observações; afastam toda palavra de
verdade, temendo nelas encontrar sua condenação. Os
partidários das trevas deste mundo são os inimigos
irreconciliáveis de Deus e da Igreja. Eis por que disse Jesus:
"Não oro por este mundo". E o apóstolo são João acrescenta:
"Não estimeis o mundo; porque tudo que há no mundo é
concupiscência da carne e concupiscência dos olhos, e
soberba da vida".
II — Além das perseguições abertas que o espírito do
século suscita contra os servos de Deus, uma espécie de
perseguição existe mais sutil, que se esconde e se encobre de
aparências enganosas: é a da inveja. Nós a vemos
transparecer na conduta dos fariseus. O aspecto de uma alma

290
piedosa, que costuma fazer o bem aos que a cercam, em
certos espíritos tem o dom de excitar sentimentos de irritação e
de inveja. Discutem os predicados que não possuem,
depreciam as virtudes que não sabem imitar e levam a má
paixão até ao ultraje. Daí resultam sofrimentos íntimos pelos
quais bem devem esperar os que aspiram a uma vida santa. O
apóstolo no-lo adverte em sua segunda epístola (3, 12) a
Timóteo: "Todos os que querem viver piedosamente em Jesus
Cristo, serão perseguidos".

SEXTA-FEIRA DA XXIX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"O rei, tomado de cólera, exterminou os assassinos e
queimou sua cidade"
I — Quando a Escritura atribui a Deus a vingança e a
cólera, não pretende induzir-nos a tomá-las no sentido
ordinariamente aceito; pois em Deus não seria admissível
suporem-se paixões irascíveis que ele próprio condena nos
homens. Tais expressões, adaptadas à linguagem humana,
são simplesmente analogias que designam os tremendos atos
da indignação de Deus. Os castigos que feriram os judeus
ingratos e infiéis são figuras dos que ameaçam de um modo
mais terrível ainda o cristão degenerado.
A bondade divina se transforma em justiça perante as
almas que desprezam o amor e negligenciam a graça. O
profeta-rei, no salmo 131, assim se exprime: "O Senhor cobrirá
seus inimigos de uma eterna confusão".
II — O Senhor, que atrai as almas com os enlevos do seu
amor, rejeita-as e condena-as quando vê seu amor
desprezado. E daí resulta a temível sentença que ameaça o
pecador: "Ligai-lhe os pés e as mãos e atirai-o às trevas
exteriores, onde só haverá prantos e ranger de dentes". Duplo
suplício! Pois que, ao remorso irremediável de haver perdido a
felicidade desconhecida, acrescentam-se tormentos sem
tréguas, sem consolo e sem esperança, que principiam no
instante em que desaparecem todas as ilusões, para nunca
mais cessar. Tal pensamento, que tanto aterroriza os santos,
infelizmente não causa nenhuma impressão nos que bem o
deveriam temer. Os pecadores estão como que suspensos
sobre um abismo de fogo; um leve acidente nele os poderá

291
precipitar; e, não raro, dormitam em falsa segurança, sem
suspeitarem o horrível despertar.
Quanto a nós, atendamos humildemente às severas
advertências do Evangelho e receemos o mal neste mundo, a
fim de não termos a temê-lo na eternidade.

SÁBADO DA XXIX SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria preside, como Rainha, às bodas do filho do rei.
I — Maria compareceu com Jesus à festa das bodas de
Caná. E que outro lugar para a imaculada Mãe de Jesus,
senão a lado do seu Filho? Na eternidade, ocupa ela também o
lugar de honra. É o que canta o salmista: "A Rainha está
sentada à direita do Rei dos reis, no esplendor de sua veste de
luz, cercada da imensa corte dos eleitos"; mistério prefigurado
pela magnificência do palácio de Salomão. O rei de Israel, no
apogeu da glória, colocara o trono de sua mãe ao lado do seu.
Tal é a grandeza da Virgem de quem somos os afortunados
filhos! Ao contemplar tão prodigiosa elevação, sente-se a alma
cristã justamente envaidecida; e goza ao mesmo tempo as
inebriantes alegrias da piedade filial. Pois, se a majestade da
Soberana se reflete na fronte de seus filhos, a ternura da Mãe
é para eles um perpétuo motivo de confiança e de esperança.
II — Os verdadeiros filhos da santíssima Virgem parti-
ciparão das honras de sua Mãe se, seguindo-lhe o exemplo,
corresponderem às graças do alto e se imitarem sua constante
fidelidade. Neste particular, nunca poderíamos meditar
suficientemente sobre os exemplos que nos dá. Ela amou a
vida oculta, insensível às lisonjas do mundo. Sua única
ambição foi acompanhar Jesus, viver com ele, com ele sofrer.
Tão profunda foi sua humildade que desejou colocar-se no
número dos pecadores no templo, conquanto sua vida fosse
ilibada e santa. Vemo-la cada vez mais se apagar, à medida
que o Senhor nela realiza as maiores maravilhas; vemo-la
reaparecer no Evangelho, somente para tomar parte nas
ignomínias da cruz.
Se, com as Filhas de Jerusalém, acompanharmos a san-
tíssima Virgem ao Calvário, havemos de fazer parte de sua
corte também na Jerusalém celestial, nas solenidades das
núpcias reais.

292
XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM
"Em Cafarnaum havia um oficial da corte, cujo filho estava
enfermo" (Jo 4, 46).
I — O Evangelho, ao se referir ao personagem de Ca-
farnaum, não o nomeia, pelo que são Gregório comenta que
existem na terra muitos nomes ilustres que no céu são pouco
conhecidos. O que aproveita ter o seu nome inscrito no bronze
ou gravado no mármore, se não estiver escrito no livro da vida?
A repercussão de nossa passagem neste mundo não perdura
muito; e não vivem longamente os que vivem na memória dos
homens; a nossa imortalidade não será aqui na terra.
Lastimemos os cristãos que empregam seus talentos e suas
forças à procura de uma popularidade efêmera ou de uma
prosperidade sem consistência. Ambição mais nobre deve ani-
mar seus esforços. Para o céu é que faremos convergir nossos
desejos e nossas esperanças. Almejamos conquistar um nome
imortal? Apeguemo-nos a Jesus Cristo, que nos deu uma vida
imperecível. "Quem come o Pão do céu viverá eternamente".
II — Consideremos que o Senhor escolheu aqueles que
estavam doentes e pobres segundo o mundo, a fim de os
enriquecer conforme a fé e chamá-los à herança celeste. Se a
Providência, por conseguinte, nos deixa na obscuridade,
folguemos por ser desconhecidos pelos homens, contanto que
não o sejamos de Deus; porque está escrito que Deus conhece
os seus e que o bom Pastor conhece cada uma de suas
ovelhas. A verdadeira glória não consiste nas riquezas, nem no
talento, nem nos louvores do mundo. É a santidade que
envolve a alma fiel numa auréola de luz; e são as boas obras
que formam a coroa da imortalidade.
"Se alguém é vitorioso, diz o Apocalipse, nele imprimirei o
nome de meu Deus e nele gravarei um nome novo" (Ap 3).

SEGUNDA-FEIRA DA XXX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"O oficial, tendo sabido que Jesus vinha da Judeia paia a
Galileia, foi procurá-lo"
I — Observemos que foi a aflição que conduziu o oficial a
Jesus; pois não fora ver o filho realmente enfermo, e não se
lembraria de procurar o divino Salvador. Deus permitiu a
enfermidade em um, para que fosse facultada ao outro a

293
salvação. Eis o modo com que havemos de encarar os pesares
da vida presente; se soubermos bem aproveitá-los, hão de
produzir frutos ótimos. E o profeta, referindo-se aos israelitas,
anuncia que, no excesso de sua aflição, hão de eles um dia,
humilhados e contritos, voltar ao Senhor seu Deus. "Eles vos
procurarão, diz Isaías, em seus extremos males; e,
impulsionados pela adversidade, vos dirigirão suas humildes
súplicas". Realmente Deus castiga os que ama e os fere para
curar.
II — Devemos notar que Deus costuma nos ferir nos que
são objeto de nossas mais caras afeições e a dor se faz sentir
na proporção do afeto que lhes dedicamos. Ora, este amor
precisa ser purificado pelo sofrimento, bem como o metal é
purificado pelo fogo. Mas se, em vez de recorrermos a Jesus,
buscamos consolo humano, permanece estéril nosso sofrer,
resultando então a tristeza das almas que carecem de fé e de
confiança. Consentem elas em sofrer, mas querem cruzes por
elas mesmas escolhidas; prefeririam sempre outra cruz à que
lhe foi imposta e impacientam-se quando as aflições não são
conforme seu cálculo e sua vontade.
Entremos com a maior submissão nos planos divinos e
aceitemos com paciência as provações que nos purificam e
nos unem a Jesus Cristo.

TERÇA-FEIRA DA XXX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Implorou a Jesus que chegasse em sua casa, a fim de
curar seu filho que morria".
I — O pai do doente de Cafarnaum, que sai de casa e
empreende uma viagem a fim de implorar a misericórdia de
Jesus, mostra que, para obtermos as graças que solicitamos,
devemos unir a ação à oração. O Senhor nos incita a orar,
quando diz: "Pedi e recebereis!" — Mas quer que cooperemos
e procedamos de acordo com ele. Aqueles que se fiam
unicamente em si e não oram, são uns presunçosos; mas
também os que rezam sem agir, sem fazer esforços, sem se
dar ao incômodo de um trabalho, de um movimento, estes são
preguiçosos; é o que afirma santo Agostinho. E nem uns nem
outros verão seus desejos realizados. O meio mais seguro de
obtermos o que pedimos é mostrar-nos, por nossa conduta,
dignos de ser atendidos.

294
II — São palavras de são João Crisóstomo: "Não há
criatura mais poderosa sobre a terra do que a que ora, pois que
tem em suas mãos as chaves do céu". A oração humilde e
perseverante comove o coração de Deus. A virtude da oração
não reside na multiplicidade de palavras; poucas foram
proferidas pelo funcionário real de Cafarnaum; e são simples,
sem arte, sem protestos verbosos e supérfluos. Quando o
coração sofre ou ama, seus gemidos desferem ais que
comovem o coração de Deus e dele fazem jorrar as graças. É o
que declara Davi: "Amei e o Senhor ouviu a voz da minha
oração". E acrescenta: "Sede cheios de confiança, vós todos
que esperais em Deus".

QUARTA-FEIRA DA XXX SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Disse-lhe Jesus: Se não virdes prodígios e milagres, não
crereis".
I — Antes de atender às súplicas desse pai aflito, dirige-lhe
o Senhor uma palavra severa que deve aumentar sua dolorosa
ansiedade. Censura-o por sua falta de fé; interessa-lhe a
salvação dessa alma e deseja curá-la antes de restituir a saúde
ao filho. É um processo de que se serve com frequência o
Médico celeste para com as almas abatidas; em vez de
atender-lhes logo, parece prolongar-lhes as penas. E, assim
agindo, administra-lhes o remédio necessário; pois que o nosso
coração, duro e insensível às vezes, precisa de um abalo para
se expandir com maior exuberância, como a pedra necessita
de um choque para desprender a faísca.
As delongas de Deus produzem um redobrar de instâncias;
e, consumado o tempo das provações, virá o consolo que
ultrapassa todo penar.
II — O exemplo do personagem de Cafarnaum nos
esclarece que a dor é uma das condições mais eficazes para o
triunfo da graça e o despertar da fé. Enquanto as
prosperidades da terra aniquilam a vida espiritual, enervam o
sentido das coisas de Deus e produzem uma satisfação fictícia
que afasta o homem dos bens verdadeiros, o oposto se dá com
a adversidade que relembra Deus, destruindo as ilusões e as
quimeras que entorpeciam a consciência. Sob este ponto de
vista, os sofrimentos, as decepções, a privação de objetos
caros, os golpes da desventura, são outros tantos meios de

295
que se serve Deus para fazer luzir, através das chagas do
coração humano, um raio de sua graça. Compenetrado desta
verdade, declara Davi que a tribulação dilatou sua esperança e
o induz a receber cada adversidade como uma visita do
Senhor. E ele exclama: "Senhor, vossa vara e vosso cajado me
consolaram".
QUINTA-FEIRA DA XXX SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Insistiu o oficial, dizendo: Senhor, vinde antes que meu
filho morra. — Vai, respondeu Jesus, o teu filho vive!"
I — Consideremos que, se bem que severa fosse a aco-
lhida de Jesus, não menos persistente se mostrou o oficial em
sua petição, sem lhe esmorecer a esperança de se ver
atendido. Esta perseverança deve nos servir de modelo; pois
não é a importunação, mas sim o desânimo que desagrada a
Deus. Por conseguinte, por numerosas e graves que sejam
suas infidelidades, não será confundido o pecador, desde que
ore com confiança; as suas misérias e enfermidades espirituais
constituirão os títulos de direito à misericórdia divina; e desde
que persevere, alcançará indubitavelmente a graça desejada.
Digamos com o profeta: "Não é em vista de nossos
próprios méritos que apresentamos nossas preces ao Senhor;
mas nossa esperança se firma na bondade infinita de Deus".
II — Notemos o efeito instantâneo da palavra de Jesus.
Apenas as profere: "Teu filho está salvo!" E já esta palavra
eficaz e vivificadora, pela sua força divina, opera o que significa
e ordena: milagre, que é a figura sensível da graça invisível dos
sacramentos. Ela regenera a alma nas fontes batismais;
restaura a graça no tribunal da penitência; no santo altar,
renova os sacrossantos mistérios da Paixão e da Ceia; abre
aos cristãos reconciliados as portas do céu! Diversamente, mas
com virtude não menos admirável, age na predicação evan-
gélica; e tanto que santo Agostinho chega a comparar o pão da
palavra divina ao Pão da sagrada Mesa, declarando que tão
culpado será o cristão que desdenhar os ensinamentos de
nosso Senhor, quanto àquele que, por negligência, deixa cair
no chão as parcelas da Eucaristia.
"Quem escuta minhas palavras e as pratica, diz Jesus, é
semelhante ao homem sensato que constrói sua casa sobre a
rocha".

296
SEXTA-FEIRA DA XXX SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Ele acreditou e toda a sua família"
I — A fé do funcionário real de Cafarnaum propaga-se
sucessivamente por toda a parentela. Confortador alento para
as almas zelosas que, após haverem desfrutado as doçuras da
piedade, procuram espalhar entre os seus a influência do bom
exemplo. Assim como o mal, o bem é contagioso, e com maior
vantagem ainda; e tanto como um espírito maldoso tem
capacidade para escandalizar outros muitos, poderá uma
simples influência benéfica concorrer para a edificação e
salvação de uma casa inteira. A questão magna da caridade
cristã é contribuir em toda circunstância para a santificação do
próximo. São Paulo diz ser preciso que os membros de um
corpo se auxiliem mutuamente e que cada um, de per si, con-
corra para a felicidade de todos. Esta regra caracteriza a vida
de comunidade. São Gregório assim se refere a esse respeito:
"Quantos bons exemplos tiverdes dado, tantas coroas de honra
vos serão conferidas".
II — Consideremos que, para edificar o próximo, bem mais
vantajoso é um exemplo do que torrentes de palavras. O
grande apóstolo incita seus ouvintes a serem seus imitadores;
e para indicar a seu discípulo como trabalhar eficazmente para
a salvação das almas, aconselha-o a pôr primeiramente em
prática aquilo que ensina aos outros e a se conduzir de
maneira a servir de modelo e de regra a seus irmãos. Esta
recomendação visa em particular os que se consagraram ao
serviço de Deus.
"Grandes serão no céu, diz são Gregório, aqueles que,
pelos seus edificantes exemplos, conquistam os corações e os
levam à piedade, à virtude, ao amor de Deus".

SÁBADO DA XXX SEMANA DO TEMPO COMUM


A intercessão de Maria
I — A súplica ardente do funcionário real de Cafarnaum era
a de um pai em favor de seu filho; e suas instâncias foram
atendidas. Quanto maior eficácia não deve possuir a
intercessão da divina Mãe de nossas almas! O amor que nos
dedica está incomparavelmente acima do amor natural; dele
difere tanto quanto a graça difere da carne e do sangue. As
afeições de família nem sempre, aliás, são totalmente puras e

297
destituídas de interesse; trazem o estigma da concupiscência;
são afetadas de amor próprio e com o tempo esfriam. Também
quando não têm a religião a consagrar-lhe os laços, o decorrer
do tempo os desfaz e a morte os destrói. Os laços do espírito e
da graça, pelo contrário, constituem uma paternidade, uma
maternidade, uma fraternidade e uma filiação que não estão
sujeitas nem ao tempo, nem ao espaço, nem à morte;
perpetuam-se no céu, pois que têm seu centro e sua raiz
imortal no amor de Jesus e de Maria.
II — A santíssima Virgem, digna Mãe daquele que veio
principalmente para os enfermos e os pecadores, vela com
maternal ternura pelos membros sofredores da Igreja. Mas sua
solicitude se manifesta conforme o espírito e não conforme a
carne; isto significa que, conhecendo o proveito do sofrimento,
não procura deles nos isentar; e que, tendo ela própria
acompanhado seu Filho ao Calvário, não desejaria subtrair-nos
à cruz. Sua intervenção, contudo, faz-se sentir pelas graças
que suavizam as chagas espirituais e corporais; roga a fim de
nos obter a força para sofrer, para que nossa virtude se
aperfeiçoe nas enfermidades, para que nosso coração se
purifique nas provações, para que os frutos da santidade sejam
experimentados na paciência, e que as nossas dores se
confundam com as dores de Jesus Cristo e aumentem os
tesouros da Igreja.
Recorramos a Maria em todas as necessidades temporais
e espirituais; mas o que, sobretudo lhe devemos é a cura e
santificação de nossa alma.

XXXI DOMINGO DO TEMPO COMUM


"O reino do céu é comparado a um rei que quis fazer as
contas com os seus servos" (Mt 18, 32).
I — O rei figurado nesta parábola é nosso Senhor Jesus
Cristo, o Salvador do mundo, Filho de Deus e Filho de Davi;
aquele a quem se referia o profeta ao dizer que o divino
Messias seria estabelecido rei em Sião. Seus servos na terra
são todos os filhos dos homens; todos lhe devem a vida e
terão, por conseguinte, de lhe prestar contas do uso que dela
tiverem feito. Qual a consciência que poderia destemidamente
encarar o dia da prestação de contas? Os próprios santos
tremiam apavorados ante esta perspectiva! Se não fora animar-
nos a esperança cristã, a vista de nossa miséria, dos nossos

298
pecados, de nossas infidelidades, nos lançaria no desespero.
Só nos é dado repetir com Davi: "Senhor, não entreis em juízo
com vosso servo, pois que mortal algum será achado justo
perante vós!".
II — Os dez mil talentos devidos pelo servo a seu rei
representam a imensa dívida do homem. Mas os cem dinheiros
que a esse mesmo servo devia um companheiro, faz-nos
compreender que não existe proporção entre o que se devem
mutuamente os homens e o que estes devem a Deus. Se
examinarmos seriamente a nossa dívida, reconheceremos
nada possuir de nós mesmos e que ao Senhor somos
devedores de tudo quanto possuímos e de tudo o que somos.
E ainda teremos a descontar os bens de que por nossa falta
nos privamos. Quantas graças perdidas, quantas inspirações
desprezadas! Quantos sacramentos ficaram inúteis e estéreis!
Quantas luzes se extinguiram! Quantas faltas, quantas
ingratidões!
Este golpe de vista nos ajudará a pressentir a enormidade
da nossa dívida e a providenciar os meios para saldá-la.

SEGUNDA-FEIRA DA XXXI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Apresentaram-lhe um servo que lhe era devedor de dez
mil talentos"
I — O servo insolvente, reduzido a ser vendido com os
seus, representa o estado de uma alma que se encontra na
impossibilidade de satisfazer à justiça de Deus. Gemia nessa
situação a totalidade do gênero humano quando veio o
Salvador à terra, para saldar a dívida do homem. "Encarregou-
se ele próprio de preencher as condições que nos haviam de
trazer a paz e a segurança", diz Isaías. É de fato sem dúvida o
discípulo de Cristo que, depois de ser resgatado por alto preço,
contrai novas dívidas e torna inúteis as graças recebidas! Que
destino o espera? "É uma coisa terrível, declara o apóstolo, cair
nas mãos do Deus vivo!".
II — Por maior que fosse sua dívida, não desanimou o
servo culpado. Conhecia a magnanimidade do Rei seu senhor;
foi então prostrar-se a seu pés, a implorar sua clemência. Este
triunfo da confiança sobre o desespero dá uma lição instrutiva
a todos os homens. Todos pecaram, todos são insolventes,
todos precisam de misericórdia. O único recurso é implorar a

299
bondade do Mestre e conjurá-lo a ter paciência, prometendo-
lhe empregar a vida, doravante, em reparar o tempo perdido.
Com estas disposições se porá a alma perante Deus,
dizendo-lhe: Ó Deus de bondade, vós que suportais com tanta
longanimidade os maiores pecadores, concedei-me o tempo,
os meios e as graças de reparar minha vida passada e produzir
dignos frutos de penitência!

TERÇA-FEIRA DA XXXI SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Então o rei, movido de compaixão, perdoou-lhe a dívida"
I — Admiremos a generosidade do Rei do céu. Concede ao
servo insolvente além do que esperava. Este pedira apenas
uma prorrogação para saldar a dívida, e obtém a remissão
total. Esta passagem inspira ao apóstolo são Paulo o seguinte
testemunho: "Onde abundava o pecado, superabunda a graça".
O benefício divino é tanto mais insigne, pois que o pecador
toma dos próprios tesouros de Jesus Cristo todos os bens que
lhe faltam e vê-se subitamente rico, após haver confessado
humildemente sua miséria. Este mistério de graça renova-se
para cada um de nós no sacramento da Penitência. A
absolvição sacerdotal apaga o pecado, salda a dívida e nos
livra de toda apreensão.
Esse perdão magnânimo não nos impressiona? Res-
pondemos sempre pelo fervor da gratidão à grandeza da
misericórdia?
II — A infinita bondade do nosso Salvador deve inspirar-
nos sentimentos de admiração e de reconhecimento. Mas não
basta; é necessário que haja correspondência à graça para que
esta seja frutuosa; pois ela permaneceria estéril, se o pecador
continuasse, depois de absolvido, a ofender a Deus. Ora, a
condição essencial do sacramento da Penitência é a firme
resolução de não recair no pecado, é a determinação de fugir
das ocasiões do mal, de reprimir as más paixões, de combater
as tentações e de trilhar com perseverança os caminhos de
Deus.
Sem a graça, nada nos é possível; mas esta graça nunca
nos falta, e, com ela, tudo podemos!

300
QUARTA-FEIRA DA XXXI SEMANA DO TEMPO
COMUM
"O servo, encontrando-se com um dos seus companheiros
que lhe devia cem dinheiros, disse-lhe, encolerizado: Paga o
que me deves!"
I — Estabeleçamos um paralelo entre as misericórdias
infinitas de Deus em relação ao homem e os rigores do homem
para com o seu próximo. O servo, que acabara de obter a
inteira remissão de uma dívida de dez mil talentos, reclama
com implacável dureza o pagamento de cem dinheiros que
emprestara ao companheiro. Se esse contraste nos
impressiona, façamos em nós mesmos um exame
retrospectivo. Fomos igualmente objeto de grandes
misericórdias; mas, somos sempre indulgentes para com
nossos irmãos? Quantas vezes não se formaliza nossa
suscetibilidade, nada querendo desculpar, nada perdoar?
Quantas vezes mesmo, ao nos retirarmos do tribunal da
Penitência, não nos mostramos inflexíveis na reclamação dos
nossos direitos! E, sem contemplações, condenamos aqueles
que julgamos faltarem às atenções que nos são devidas! Tal
procedimento nos escandaliza nos outros; acautelemo-nos, a
fim de não cairmos, por nossa vez, em idênticas faltas.
II — Impossível justificar a inconsequência do cristão que
implora o perdão de Deus e depois se nega a perdoar a seus
irmãos. Se o perdão das injúrias não fosse mais do que um
conselho evangélico, mereceria todo o nosso acatamento;
quanto mais o devemos acatar, sabendo que é um preceito
formal, que não admite desculpas, nem exceção. É a lei da
caridade aplicada a todos os que nos ofenderam. Não é
somente aos que nos estimam que devemos dedicar nosso
amor, já que também assim procedem os pagãos; mas sim
nele envolver mesmo os que não nos amam; devemos fazer
bem aos que nos fazem mal e abençoar os que nos
amaldiçoam. Perdoar sinceramente a um cruel inimigo é um
ato que pode custar muito à natureza; mas, como diz são Ber-
nardo, é também esse ato uma coisa sobrenatural e toda divina
e não teremos nós a capacidade para exercê-lo, seguindo o
exemplo de Jesus Cristo, senão enquanto tivermos a nos
animar e a vencer nossa natureza o espírito de nosso Senhor.
Atendei ao conselho do apóstolo e "não deixeis o sol se pôr
sem perdoardes aos que vos ofenderam".

301
QUINTA-FEIRA DA XXXI SEMANA DO TEMPO
COMUM
"O rei, indignado, entregou-o aos executores da justiça, até
que houvesse pago totalmente sua dívida"
I — A sentença que condena o servo insolvente a per-
manecer sob as mãos da justiça até à completa extinção de
sua dívida, prova tanto os tormentos quanto a duração do
purgatório. Esses tormentos ultrapassam o que de mais terrível
possamos conceber em sofrimentos; porque, conforme
ensinam os teólogos, são os mesmos que os do inferno, salvo
o desespero eterno. E, quanto à sua duração, se prolongará
até ao resgate integral da dívida, isto é, a completa purificação
da alma cativa. Se os sofrimentos deste mundo são, às vezes,
exaustivos, conquanto suavizados por consolações; e se a vida
atual, apesar de sua brevidade, parece insuportável aos
desgraçados privados de auxílio, quão pavorosas não deverão
ser as torturas das sombrias regiões! A sabedoria nos
aconselha a fazermos neste mundo o nosso purgatório, e, para
tanto, exorta-nos à penitência.
Saibamos carregar de maneira cristã nossa cruz quotidiana
e trabalhemos, animados, em nossa santificação.
II — As almas detidas nas trevas do purgatório podem ser
aliviadas e resgatadas por orações e obras pias. O bem que se
lhes proporciona possui imenso valor perante Deus; porque,
conforme opinião de santo Tomás, é a caridade exercida pelas
almas superior à que mitiga as enfermidades corporais. Isto
nos faz compreender que não pode haver nada de mais
recomendável do que a compaixão para com os defuntos.
Façamos por eles o que desejaríamos fizessem por nós.
Concorramos para o resgate de suas dívidas, aplicando-lhes as
indulgências, as esmolas, os frutos do santo sacrifício.
Dilatemos nossos corações e demos aos nossos senti-
mentos cristãos todas as dimensões da catolicidade! Suba
nossa caridade às sublimes alturas para honrar nossos irmãos
glorificados! Desça aos abismos expiatórios, a fim de assistir os
que sofrem! Que se estenda também em largura, para abraçar
na mesma generosa solicitude todos os membros da Igreja
militante!

302
SEXTA-FEIRA DA XXXI SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Assim é que vos há de tratar meu Pai que está no céu, se
não perdoardes do íntimo dos vossos corações cada um a seu
irmão" (Mt 18, 35).
I — O Rei do céu, após haver perdoado, sem obser-
vação alguma, a soma que lhe era devida, mostra-se rigoroso
para com o mesmo servo que, rigoroso, exige do seu
companheiro o pagamento de uma dívida insignificante.
Podemos disto concluir ser o divino Mestre mais sensível aos
pesares que causamos a nossos irmãos do que aos que lhe
causamos diretamente; e que de melhor grado perdoa ofensas
graves feitas diretamente a ele, do que faltas leves cometidas
contra nosso próximo. Por outro lado, aceita, como feitos a si
próprio, o mínimo ato de caridade que pratiquemos para com
um dos nossos irmãos. E quando lhe indagamos com Davi:
"Senhor, que faremos para agradecer os benefícios que nos
ofereceis?" — Responde: — "Tudo aquilo que fizerdes a um
dos meus, a mim mesmo o tereis feito!".
II — Ensinou-nos o Senhor esta oração: "Perdoai-nos
assim como nós perdoamos!" Oração suave e cheia de
esperanças, quando animada de caridade sincera; mas
opressora, se não exprimir o verdadeiro sentimento do
coração; pois que se transformaria então em maldições contra
nós mesmos e se tornaria, em nossa boca, como sentença de
nossa condenação. "Sereis tratados como houverdes tratado
os outros". Será, por conseguinte, réu de severo juízo aquele
que for duro para com o próximo.
Sereis tratados com indulgência, se fordes indulgentes;
encontrareis em Deus uma infinita misericórdia, se fordes bons
e misericordiosos.

SÁBADO
DA XXXI SEMANA DO TEMPO COMUM
Maria é a Mãe das misericórdias
I — Deus, diz a Escritura, é o Pai da misericórdia, isto é, a
fonte inesgotável de toda beleza e de toda caridade. Ora, esta
fonte divina vazou-se no seio de Maria; e, por entre as
perfeições aí depositadas, brilha, com peculiar fulgor, a
misericórdia. A Mãe de Deus é, portanto, a Mãe das
misericórdias, não somente por haver dado a vida à Caridade,

303
mas porque, sob este título, dispõe das misericórdias divinas e
profusamente as dispensa a todo o gênero humano. Cobre o
filho pródigo de sua proteção; dá caução para os servos
insolventes; faz prevalecer a indulgência sobre o rigor, a
misericórdia sobre a justiça, e, para os pecadores, obtém o
perdão.
Mas, porque é a mais terna das mães, como seríamos
filhos seus, se não fôssemos também ternos e mi-
sericordiosos?
I I — A recordação de nossas infidelidades, longe de nos
afastar de Maria, deve até redobrar nossa confiança; pois que
são os pecadores e não os justos que necessitam de
misericórdia. As almas cristãs se comprazem em retribuir o mal
com o bem. Que fará então a generosidade de Maria? O
patriarca José, do Antigo Testamento, pagou a ingratidão de
seus irmãos com uma multidão de benefícios; Moisés
intercedia fervorosamente pelo seu povo cego e rebelde; o
apóstolo são Paulo desejava ser anátema pelos judeus que o
perseguiam; santo Estevão implorava o perdão de Deus em
favor daqueles que o lapidavam. Avaliemos a grandeza da
indulgência de Maria Virgem, que em seu Coração reúne a
compaixão de uma mãe à misericórdia de um Deus!
Ah! Nunca duvidemos de Maria, e seja qual for o peso de
nossas faltas, despertemos nossa fé, humilhemo-nos e
respiremos sob sua proteção onipotente.

XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Os fariseus se reuniram em conselho para decidir sobre os
meios de surpreender Jesus em suas palavras" (Mt 22, 15).
I — Um dos estratagemas dos adversários da verdade é
impedir ou comprometer a palavra que a transmite. Procuram
maliciosamente motivos de criticá-la ou meios de obscurecê-la.
Buscam nela contradições, a fim de justificar ante os olhos da
consciência os pensamentos de incredulidade e de
desobediência. Idêntico é o processo empregado pelos
espíritos invisíveis que, segundo são Paulo, dão voltas em
redor de nós, a tentar os que lhes prestam ouvidos. Inspiram
sentimentos de desconfiança a respeito dos sagrados
ensinamentos; criticam a autoridade com o fim de empanar a
verdade; excitam uma secreta revolta contra a doutrina e con-
tra aqueles que a ensinam. São sutis essas tentações; mas são

304
reconhecíveis pelas vitórias que dão à natureza sobre a graça
e têm por termo fatal o endurecimento do orgulho. Ouçamos
são Pedro, que nos exorta a uma fé inabalável, a fim de
repelirmos as sugestões dos inimigos visíveis e invisíveis.
II — Os fariseus procuravam surpreender alguma con-
tradição visível nas palavras de Jesus. Sabiam pelas Escrituras
que o verdadeiro sábio não peca pela língua; e queriam
submetê-lo a tal prova. Apliquemos a nós mesmos esta regra
de apreciação. Quantas faltas se prendem a palavras
irrefletidas! Importa muita delicadeza e bondade, para evitar a
tagarelice que perturba e a mudez soturna que revela orgulho
ou dissimulação. Se, graças a um prolongado exercício de
vigilância e de paciência, conseguiu alguém o domínio sobre
sua língua, não receará ver-se surpreendido em suas palavras;
não terá a lastimar comprometedoras indiscrições ou impru-
dências tantas vezes irreparáveis! Aprenderá a regular seus
atos, a dirigir sua vida toda com critério e sucesso.

SEGUNDA-FEIRA DA XXXII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Enviaram-lhe os fariseus alguns de seus discípulos,
juntamente com os herodianos"
I — As duas principais seitas de Jerusalém, a dos fariseus
e dos herodianos, opostas entre si, ligam-se com o objetivo de
armar ciladas ao Senhor. Eis a estratégia comum dos inimigos
de Cristo. Divididos perenemente entre si, põe-se de acordo
em se tratando de combater a doutrina da Igreja e os fiéis que
a professam. "A luz divina fulgiu nas trevas e as trevas não a
compreenderam". O homem carnal, diz o apóstolo, não possui
o senso das coisas de Deus. Não nos surpreendamos, pois,
ante as oposições que no mundo encontra a piedade cristã. As
perseguições que afligiram o Mestre encarniçam-se igualmente
contra os discípulos. E todos os que vivem conforme ao
espírito de Jesus Cristo devem contar com as contradições, os
ódios, os sofrimentos.
II — A longanimidade do divino Mestre em meio a
obstáculos que lhe atiravam no caminho, serve-nos de modelo.
Possuiremos nossas almas pela paciência. As perseguições
são inseparáveis da vida cristã. Mas se, conforme a opinião de
vários doutores, elas são, para as vítimas, sinais de
predestinação, aqueles, entretanto, que pactuam com os

305
perseguidores, expõem-se à condenação. O Evangelho nos
ensina que nosso Senhor se identificou com os seus; a ele,
portanto, é que se aplica o bem ou o mal que lhes fizermos.
Em face dos maus que se ligam para saciar de amarguras
o Coração de Jesus, devem os filhos de Deus se reunir em
redobrada caridade, a fim de consolar este divino Coração,
pela fidelidade do seu amor.

TERÇA-FEIRA DA XXXII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Mestre, sabemos que falais a verdade e que não fazeis
acepção de pessoas"
I — Os fariseus, vendo fracassar várias tentativas às
acusações feitas contra Jesus, recorrem a outros subterfúgios
e dirigem-lhes palavras de lisonja. Foi deste mesmo
estratagema que se serviu o demônio, no intuito de seduzir o
pai dos homens; e é ainda este o meio sutil empregado pelos
inimigos da nossa alma, para perdê-la. O cristão verdadeiro,
zeloso da glória de Deus, sente repugnância ao ouvir algum
elogio que se lhe dirija; e, fiel à sua consciência, é do mesmo
modo indiferente ao incenso que exalta, ou à maledicência que
desanima. Teme somente ver-se apreciado além dos limites da
verdade. Confessa com são Paulo: "É pela graça que sou o
que sou e em mim a graça não é estéril".
II — As almas acessíveis às tentações do amor próprio não
só mentem e recebem com prazer as homenagens elogiosas,
mas ainda as provocam. Estão persuadidas de que as
merecem e, em faltando, amuam-se; e, como para suprir a
omissão desses louvores, elas mesmas se incensam.
Semelhantes a esses animais aparvalhados que vivem no
fundo das águas e que só aparecem à superfície para morder o
anzol, essas almas denominadas pelo Evangelho — virgens
loucas — deixam-se enredar pela vaidade. As almas
verdadeiramente humildes escapam a essas ciladas funestas;
conhecem-se muito bem, para que se atribuam méritos que
não possuem; desconfiam demasiado do espírito do mundo,
para se exporem a suas adulações. Estão, acima de tudo, por
demais compenetradas do sentimento de suas imperfeições,
para aspirarem às honrarias que os homens mutuamente se
outorgam. Quando se reconhecem realmente enriquecidas
pelos dons da graça e da natureza, sabem tudo atribuir a Deus,

306
que é a fonte desses dons e a quem unicamente são devidos:
louvores, bênçãos e glória!

QUARTA-FEIRA DA XXXII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Senhor, é permitido pagar o tributo a César?"
I — Esta capciosa pergunta foi dirigida ao Mestre, não com
o propósito de obter instruções, mas sim ver se pegavam Jesus
em contradição. Realizam assim, sem o saberem, este texto
profético: "Suas palavras são de paz e seus corações cheios
de artifícios". Insensatos e cegos! Encontram-se em presença
da própria Verdade e, em vez de prestar humildemente fé aos
ensinamentos sagrados, não fazem mais do que se preocupar
com suas opiniões, suas prevenções e seus interesses.
Quantas consciências viciadas não levam idênticas disposições
de espírito ao estudo da religião! Levantam nuvens para
encobrir a luz; agarram-se a dificuldades que só existem na
imaginação humana, com o fim de justificarem sua negação à
verdade. Os espíritos simples não procuram investigar os
mistérios; lembram-se desta palavra proferida por Jesus aos
apóstolos: "Tenho ainda muita coisa a vos dizer; mas agora
não as podeis compreender". A ciência cristã não é concedida
aos que nela somente procuram satisfazer a curiosidade. É no
decurso da vida prática, e não nas teorias, que os problemas
irão, em tempo oportuno, claramente se solucionando.
II — Encontramos, reproduzidas sob diversas formas,
essas vãs sutilezas dos fariseus, nas devoções mal
compreendidas. Mesmo entre pessoas que aspiram à per-
feição, veem-se espíritos que se prendem mais às
minuciosidades da moral do que aos pontos fundamentais da
piedade. Mostram-se de uma consciência escrupulosa nas mí-
nimas coisas e descuram deveres essenciais. Como diz
Bossuet, pesquisam aflitamente a delimitação dos pecados
veniais ou mortais e não pensam em aperfeiçoar a fé, a
esperança, a caridade e as outras virtudes evangélicas.
Deixemos aos fariseus essas frívolas questões e sirvamos
o nosso querido Mestre com largueza de coração, com uma
consciência reta e, sobretudo, com um amor generoso!

307
QUINTA-FEIRA DA XXXII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Reconhecendo-lhes a malícia, apostrofou-os Jesus:
Hipócritas, por que me tentais?"
I — São Gregório define o homem hipócrita como um
coração duplo, que oculta o que é e faz constar o que não é. E
são Jerônimo acrescenta: "O hipócrita é aquele cujas palavras
estão em desacordo com seus sentimentos". E são Clemente
completa, dizendo que o hipócrita compõe seu exterior de
maneira oposta ao seu interior. Por odiosa que seja a
hipocrisia, é um vício que reina no mundo; é assunto de um
perpétuo estudo, pois que o espírito do mundo é uma
dissimulação aperfeiçoada. Reveste das mais sedutoras
formas a mais perniciosa astúcia. Adota por processo o
subterfúgio, a fraude e as artimanhas; faz consistir sua
esperteza em saber mentir. Ora, se a hipocrisia desvirtua o
caráter do homem do mundo, quanto mais deveremos reputá-la
monstruosa nos cristãos que professam a piedade? Nosso
Senhor, tão misericordioso para com os maiores pecadores, é
inflexível com os hipócritas.
II — Qual é o homem que permanecerá nos tabernáculos
do Senhor? É aquele que tem o coração puro, responde o
profeta real, aquele cuja língua não profere a iniquidade. A
simplicidade é a virtude oposta à hipocrisia: é a linha reta da
consciência. Quer em seus entretenimentos com Deus, quer
em suas relações com os homens, não admite nem afetação,
nem exageros, nem aparências enganadoras. A simplicidade é
amável, porque naturalmente se estimam as almas francas e
leais. O próprio Jesus demonstrava sua predileção pela
simplicidade e, por isto, recomenda que nos assemelhemos às
criancinhas.
Imploremos ao Senhor que nos conceda a santa infância
espiritual que nos proporcionará suas bênçãos divinas e suas
mais ternas carícias.

308
SEXTA FEIRA DA XXXII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus"
I — Nestas poucas palavras Jesus delimita os deveres do
homem para com Deus e para com a sociedade. A observância
de uns não impede o cumprimento dos outros; e o cristão
deverá fielmente cumpri-los todos, para ser justo. Como filhos
de Deus, temos nossos deveres traçados pela Igreja. Obedecer
à Igreja é, por conseguinte, dar a Deus o que é de Deus. Como
membros da sociedade, nossos deveres estão indicados pela
lei civil. Obedecer a essa lei é, pois, dar a César o que é de
César.
O perigo a evitar é de transtornar a hierarquia dos deveres;
porque dar a César o que pertence a Deus seria sacrificar a
consciência aos interesses humanos e antepor as coisas do
tempo às da eternidade.
II — “De quem é esta imagem?”, pergunta Jesus. A efígie
gravada na moeda dos soberanos da terra indica o tributo que
se lhes deve. Mas a alma humana é a imagem de Deus. Ela foi
desfigurada pelo pecado e sepultada na carne; não aparenta
mais beleza; mas esta se revela à luz divina, assim como o
carvão lançado ao braseiro assume os fulgores da chama.
Resplandecerá no dia da manifestação de Jesus Cristo e
reproduzirá em si os traços divinos. Deve, portanto, retribuir a
Deus tudo o que é e tudo quanto possui. Tal é o dever pri-
mordial ao qual todos os outros são subordinados.

SÁBADO DA XXXII SEMANA DO TEMPO COMUM


Maria é o espelho da santidade de Deus
I — O Criador disse: "Façamos o homem à nossa imagem
e semelhança". Mas o homem não soube conservar a marca
dessa augusta origem. Entregando-se ao mal, cessou de
reproduzir os traços de seu Deus; e a alma humana,
degradando-se cada vez mais, tornou-se semelhante aos
brutos, conforme a expressão do profeta. Por um privilégio
único, penhor da redenção do mundo, conservou, no entanto, a
Virgem de Sion, intacta e imaculada, a beleza primitiva. Nela
subsistiram todos os tipos da perfeição. Unida perenemente ao
Santo doa santos, que é a bondade por excelência, era boa,
santa. Já anteriormente à predicação evangélica, punha em

309
prática este preceito do Senhor: "Sede perfeitos, corno é
perfeito vosso Pai dos céus".
Graças a esse espelho sem mancha, é-nos dado contem-
plar as magnificências de Deus, na Virgem, sua fiel imagem.
II — Se Maria, a filha imaculada do homem, representa a
imagem de Deus, Jesus, o Filho de Deus, representa, em sua
humanidade, a imagem de Maria; pois a natureza humana de
que se revestiu foi tomada unicamente no seio de Maria. "Sua
carne, diz santo Agostinho, é a carne de Maria; seu sangue é o
sangue de Maria". Seu corpo sagrado é, por conseguinte, a
expressão substancial de sua Mãe, como é sua divindade a
substância de Deus, seu Pai.
Incorporados que somos também a Jesus Cristo e, con-
forme são Paulo, tornados a carne de sua carne, os ossos de
seus ossos, devemos nos assemelhar a Jesus, reproduzindo
em nós, conjuntamente, os traços de Deus e os traços de
Maria!
Quanto é sublime o destino do cristão! Como não há de
amar Jesus, se em cada um de nós reconhecer os traços de
Maria! E Maria... Quanto nos há de amar ao encontrar em nós
a viva imagem de Jesus!

XXXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


"Nosso Senhor cura uma mulher enferma e ressuscita a
filha de um chefe da Sinagoga" (Mt 9, 18-26).
I — Meditemos sobre a misteriosa significação contida
neste duplo milagre. Jesus encaminhava-se para ressuscitar a
filha de um chefe da Sinagoga. Mas, antes de operar este
prodígio, no meio da estrada, restitui a saúde a uma mulher
que havia doze anos se via enferma. Esta mulher, tão
profundamente humilhada, segundo o ver dos intérpretes,
representa os povos pagãos, cuja conversão precederá a
conversão dos judeus. Estes, que eram os primeiros, virão a
ser os últimos e os últimos serão os primeiros. "Assim é que,
comenta são Jerônimo, terá cumprimento a profecia da
Escritura: Quando a plenitude das nações houver entrado,
então Israel será salvo!".
Adoremos aqui os altos juízos de Deus, embora não os
compreendamos, por impenetráveis ao espírito humano. E,
deplorando com são Paulo o orgulho que desgraçou os judeus,
com todo o fervor impetremos o milagre de sua ressurreição.

310
II — A filha do chefe da Sinagoga tinha a idade de doze
anos; a mulher citada no Evangelho já havia doze anos que
estava enferma quando Jesus a curou. A morte de uma
coincide com a cura da outra; a enfermidade da mulher teve
início na época do nascimento da menina. Esta aproximação,
segundo ainda a interpretação de são Jerônimo, motiva a
observação de que o paganismo fenecia enquanto Israel
estava no vigor da mocidade e da vida; ao passo que, ao
morrer Israel, renasce o paganismo. Ora, exclama são Paulo, a
misericórdia concedida a uns deverá servir à salvação dos
outros, para que todos sejam salvos.
Quando vemos as nações infiéis precederem o povo de
Deus no seio de Abraão, torna-se visível que não há títulos,
nem direitos adquiridos, que nos autorizem a salientar-nos aos
demais. Somente à fé humilde é dado o poder de abrir à alma
o reino dos céus.

SEGUNDA-FEIRA DA XXXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Aproximou-se de Jesus o chefe da Sinagoga e disse-lhe:
Senhor, a minha filha acaba de morrer"
I — Há duas vidas: a do corpo e a da alma, e ambas estão
expostas às contingências da morte. Geralmente, causa-nos
impressão mais profunda a morte corporal do que a espiritual.
E prova evidente temos na dor demonstrada pelo chefe da
Sinagoga. A morte da alma é, no entanto, bem mais temível do
que a do corpo, pois que, em se perdendo a vida celeste, tudo
se perde, não restando proveito algum.
Concluamos que, se é obra bastante meritória o salvarmos
a existência do nosso próximo, bem mais excelente e
proveitosa é a salvação de uma alma. Quer se trate de nós ou
de um irmão, visemos primeiramente as necessidades
espirituais e oremos com fervor até nos vermos atendidos.
II — Se, com a mesma intensidade sofrida pelo chefe da
Sinagoga, compreendêssemos os prejuízos que afetam as
almas e assim sentíssemos nossas enfermidades espirituais,
seriam nossas orações, necessariamente, bem mais vivas e
suplicantes. Mas, geralmente, mostramo-nos insensíveis às
chagas da alma, excedendo-nos, todavia, nos sentimentos de
compaixão ante os males corporais.

311
Aprendamos a orientar nossos desvelos com a inteligência
da caridade evangélica e, em toda circunstância, façamos
prevalecer o pensamento da fé. Oremos, soframos,
trabalhemos sob os influxos do Espírito Santo. O rei salmista
instantemente no-lo exorta: "Espera firmemente, trabalha
animadamente, fortalece teu coração e conta com o auxílio de
Deus" (SI 26, 14).

TERÇA-FEIRA DA XXXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Vinde, Senhor, impor-lhe as mãos, e ela viverá"
I — A dor do chefe da Sinagoga o impele para o Salvador,
e dá a seu pedido um vivo ardor; efeito benéfico causado pelas
grandes aflições. "Minha alma dilatou-se no meio dos meus
pesares", exclama Davi em um dos salmos. A adversidade
sacode do torpor a criatura, abre-lhe os olhos à luz e dá
acesso à graça. Quando, desiludida pela infidelidade do
mundo, pela ausência do socorro humano e pela inutilidade
das circunstâncias, a alma desamparada volve ao céu o seu
olhar e sua oração, não precisa ser estimulada. Abstenhamo-
nos, pois, de murmurar ou de gemer quando Deus nos prova
ou nos castiga. Os castigos são penitências curativas,
penhores de misericórdia, e, muitas vezes, o fator da
felicidade.
II — A alma, conforme a linguagem das Escrituras, é uma
pedra bruta que aqui deve ser talhada, para bem se encaixar
no edifício imortal. O escultor divino lapida essa pedra; maneja
sabiamente seu cinzel, desprendendo o que encontrar de
defeituoso ou supérfluo; ele a alisa, amolda e transfigura. Estas
operações são dolorosas; o coração sofre e sangra com
sensibilidade proporcional à aderência com que se lhe prende
o objeto a arrancar. Mas são salutares essas dores;
desapegam-nos dós elementos terrenos, purificam-nos e
favorecem os atrativos do céu.
É o que ensina a Escritura quando nos adverte que, para
entrarmos no céu, temos de passar, como Jesus Cristo, pelas
tribulações do mundo. "Bem-aventurado aquele que sofre com
paciência os males da presente vida, diz o apóstolo são Tiago,
pois que, depois de ter sido experimentado, receberá a coroa
da vida, reservada por Deus aos que o amam".

312
QUARTA-FEIRA DA XXXIII SEMANA DO TEMPO
COMUM
"Levanta-se Jesus e, com seus discípulos, dirige-se à casa
do chefe da Sinagoga"
I — Comparemos a divina condescendência de Jesus tão
pronto em atender ao chefe da Sinagoga, com o proceder
inverso demonstrado à cananeia. Também esta recorrera ao
Senhor em favor de sua filha e Jesus parecia surdo à sua
súplica, deferindo, no entanto, com presteza, o pedido do chefe
da sinagoga. Esse contraste na conduta de Jesus explica-se
pela diversidade da situação dos suplicantes. Jesus Cristo é
misericordioso para com todos, mas dá sua graça de acordo
com o estado e a necessidade de cada indivíduo. A uns acolhe
com expressões severas, a outros dispensa particulares
atenções. Tem sempre em mira o mesmo objetivo: nossa
felicidade, nosso bem. Quer experimente o Senhor a nossa
paciência, humilhando-nos, quer anime a nossa fraqueza,
enlevando-nos, perseveremos confiantes em suas mãos.
Pesares e consolações, tudo contribuirá para nosso
adiantamento e nossa felicidade.
II – Jesus se levanta; responde incontinenti ao apelo do
chefe da sinagoga. Esta prontidão nos revela a caridade
evangélica sob uma de suas faces mais amáveis. É ela
caracterizada pela atividade, dedicação, solicitude; não deixa
definhar à escassez aquele que sofre; não retarda o concurso
dos seus préstimos; adquire asas e voa, desde que se trate de
acudir, assistir ou aliviar alguém. O exemplo de Jesus Cristo
condena a piedade fria que ao bem-estar alheio prefere a
própria comodidade. Mostremo-nos agradáveis e caridosos
tanto nas grandes como nas pequenas coisas e, como nosso
divino Mestre, aprendamos a preterir os nossos interesses em
benefício do próximo.

QUINTA-FEIRA DA XXXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Ao mesmo tempo, uma mulher enferma se lhe aproximou
por detrás, dizendo: Basta-me tocar a orla de suas vestes e
ficarei curada".
I — A mulher enferma que Jesus encontrou em seu
caminho distingue-se por uma fé mais humilde e mais
confiante do que a do pai da donzela extinta. Não ousa

313
apresentar-se ante Jesus; nem sequer se anima a falar;
timidamente se conserva por detrás, no meio do povo, e tem
por única ambição tocar-lhe a orla das vestes. É um edificante
exemplo de confiança na bondade de Deus. Davi repete sem
cessar: "O Senhor é bom para com os que nele esperam; é
bom para os que o procuram com coração reto; e chega-se
aos que o invocam em seus pesares. Bendito o homem que
nele põe sua confiança". Quando recorrermos ao nosso Sal-
vador, nós, enfermos ou pecadores, impregnemo-nos dos
sentimentos da humilde mulher do Evangelho, implorando com
o salmista: "Senhor, curai-me e ficarei são! Salvai-me e serei
salvo!".
II — Entre tantos enfermos que se lhe aglomeram em
torno, distinguiu Jesus a mulher que lhe tocara nas vestes; e
somente esta obtém a cura. Instrutiva circunstância, cuja
significação merece ser meditada. Não basta acorrer a Jesus,
é preciso comovê-lo. Quer isto significar que não é bastante
rodear os santos altares, prolongar nossas orações, multiplicar
nossas práticas de devoção: devemos tocar o Coração de
Jesus... E o que o comove, que dele faz jorrar as graças, é
nossa fé humilde e confiante.
Animados por esse espírito, aproximemo-nos de Jesus
como a mulher do Evangelho e havemos de sentir os
maravilhosos efeitos destas palavras: "Minha filha, sossega;
vai em paz, tua fé te salvou!".

SEXTA-FEIRA DA XXXIII SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Jesus, despedindo a multidão, entrou em casa; tomou a
mão da jovem e ressuscitou-a"
I — Ao entrar na casa do chefe da sinagoga, Jesus aí
encontrou um turbulento grupo de músicos; costume adotado
do paganismo pelos judeus, e que denota uma estranha
aberração do sentimento religioso. Mas este hábito, sob outras
formas, se perpetuou entre os cristãos atacados de morte
espiritual. A fim de abafar a voz da consciência, procuram
atordoar-se procurando barulho e divertimentos. Também o
primeiro ato do Salvador, para despertar a jovem à vida, foi
afastar a música tumultuosa. Ensina-nos assim o divino Mestre
a estrita necessidade, para conservar ou readquirir a vida da
graça, de arrancar do coração uma infinidade de preocupações

314
que habitualmente o perturbam; e que, para receber as visitas
do Senhor, não só é necessário o afastamento do mundo, mas
também seriamente impedir a relação com este.
A Escritura diz que Deus não se compraz do tumulto, nem
da confusão; ama a paz, pois que é o Deus da paz, e seus
filhos são chamados filhos da paz.
II — Relata o Evangelho que Jesus Cristo, ao dar à defunta
a ordem de se levantar, estendeu-lhe a mão. Este fenômeno
dá ensejo a que melhor compreendamos a fraqueza das almas
convalescentes. Voltaram à vida; mas, embora já livres do mal,
não possuem ainda a força suficiente para praticar o bem.
Começam a caminhar, mas vacilam e não vão para diante;
estão animadas de bons desejos; sua vontade, no entanto, não
sabe ainda agir.
A estas almas, não basta exortá-las, é preciso dar-lhes a
mão, sustentá-las, tratá-las com indulgência. "Feliz aquele que
tem a compreensão da caridade! O Senhor o consolará no
último dia".

SÁBADO DA XXXIII SEMANA DO TEMPO COMUM


As vestes de Jesus são uma figura simbólica de Maria
I — Entrevemos um mistério consolador no gesto desta
mulher do Evangelho que, para obter a sua cura, nada mais
aspira do que roçar a orla das vestes de Jesus. Ao encarnar-
se, o Filho de Deus tomou, efetivamente, a roupagem da
natureza humana, e Maria foi quem o revestiu; ela forneceu a
substância dessa veste sagrada. Ora, se os enfermos
recuperam a saúde apenas tocando a túnica figurativa, que
enormes graças não hão de receber os que enternecem o
coração de Maria! Seu seio virginal abrigou, como sob as
dobras de misteriosa vestimenta, o Deus de amor, o centro das
misericórdias, a fonte de todas as virtudes, a raiz e a plenitude
de todas as graças. Tocar o coração de Maria é comover o
Coração de Jesus; é excitar as chamas do divino amor; é
provocar um transbordamento de graças; é fazer irradiar os
fulgores da caridade. Sim, fale nosso coração ao Coração da
Virgem Mãe e ela se sentirá comovida; porque, para ganhar
um coração de mãe, é preciso um coração de criança!
II — Em sua puríssima essência, era a Divindade in-
acessível à pequenez do homem. A Virgem imaculada
colocou-a a nosso alcance; deu-nos Jesus. Envolveu-a nas

315
faixas da humanidade, a fim de apresentá-la aos nossos
olhares. Depositária do preço da nossa redenção, derrama
tesouros de graças sobre aqueles que a invocam. É o traço
visível que une a terra ao céu. É por sua mediação que sobem
ao céu as nossas preces e que até nós descem as virtudes do
alto. Maria nos conduz a Deus e traz Deus a nós. É opinião
dos doutores da Igreja que a alma dedicada à Virgem não se
pode perder.
Subam até seu trono as nossas vozes suplicantes; prati-
quemos com todo amor atos que lhe sejam agradáveis.
Peçamos ao Senhor que nos impregne dos sentimentos que
ele mesmo dedicava e eternamente dedicará a sua divina Mãe.

XXXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM


"E então todos os povos da terra chorarão, e verão o Filho
do homem vir sobre as nuvens do céu, com grande poder e
majestade" (Mt 24, 15-35).
I — O Evangelho encerra o ciclo do ano litúrgico com a
predição dos dois magnos acontecimentos, dos quais um
prefigura o outro. A primeira profecia se refere à destruição de
Jerusalém, e esta se cumpriu integralmente. A segunda, que
diz respeito ao fim do mundo, há de se verificar com idêntica
exatidão. A experiência do passado assegura a realização da
profecia futura. A nós pertence a aproximação das analogias
entre essas duas calamidades. As ruínas de Jerusalém farão
compreender os trágicos feitos dos últimos dias. Peçamos a
inteligência destes mistérios e procuremos, em nossos
pensamentos, dar-lhes o justo lugar. Sabemos que este mundo
será um dia vítima de um incêndio universal. Logo, nele não
fixemos nem as nossas esperanças, nem os nossos corações.
II — Guerras, pestes, fome, tremores de terra, tais foram
os presságios da destruição de Jerusalém. E tais flagelos hão
de se reproduzir de um modo bem mais pavoroso ainda, ao
aproximar-se o final dos tempos. Acrescenta ainda o
Evangelho: “E isto não será senão o começo das dores". Quais
serão, pois, os últimos golpes da divina justiça, se tão
calamitosos incidentes representam apenas o prenúncio?
Nosso Senhor prossegue aconselhando seus discípulos a não
desanimarem, visto não serem os males físicos, nem a sorte
corporal que devem inspirar receios: "Temei antes, diz Jesus,
aquele que pode precipitar no inferno o corpo e a alma".

316
Os prognósticos do juízo universal apavoram somente os
partidários do mundo, mas às almas piedosas servirão para
despertar uma salutar vigilância.

SEGUNDA-FEIRA DA XXXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"A desolação deste dia será tão grande como jamais terá
havido semelhante".
I — A divina misericórdia manifestou-se plenamente no
primeiro advento de Jesus Cristo; no segundo, será a
majestosa revelação da sua Justiça. O sol, a lua e as estrelas
perderão seu brilho; a terra será sacudida até às profundezas e
todos os monumentos do orgulho se desfarão em pó. Em meio
desse caos apavorante, executarão os anjos as ordens do Juiz
supremo e separarão os bons dos maus. A humanidade em
peso assistirá às últimas cenas do mundo: nós mesmos aí
estaremos presentes. Seríamos, por acaso, tão desprovidos de
prudência para descurarmos de pensar nesta verdade e prepa-
rar nossa alma?
II — As ilusões da terra se dissiparão ante os clarões da
eterna Verdade e todas as consciências serão postas a
descoberto. O homem aparecerá na presença de Deus tal qual
é, com suas obras boas e más, com os frutos dos seus
pensamentos, dos seus desejos e dos seus labores. Sua vida
inteira será desvendada aos olhos de todos e pesada na
balança da justiça. A luz divina porá em relevo as intenções, os
atos, as palavras. Deus, que outrora espancou as trevas do
abismo, com sua onipotência, dissipará a escuridão do coração
humano, onde se escondem, às vezes, tantos ídolos de
vaidade. Será revelado ao universo tudo que era secreto.
Qual será então a nossa situação? Sejamos hoje o que
desejaríamos ser no último dia.

TERÇA-FEIRA DA XXXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
I — Serão separados uns dos outros, prediz o Evangelho.
O que ainda retém nesta vida a força da divina justiça é
justamente a mistura dos bons e dos maus. O tempo atual é de
provações e de paciência. Mas ao aproximar-se o juízo,
principiará a colheita e será separado o trigo da palha. Os
escravos do pecado, os homens entregues ao prazer, os

317
servos inúteis, as virgens infiéis, todos aqueles que houverem
sujeitado o espírito à carne, a graça à natureza, os dons de
Deus à vaidade, se acharão, súbita e irrevogavelmente,
separados de Deus, da Igreja e dos eleitos. Terrível ameaça!
Ver-se para sempre banido de todo amor, de toda luz, para cair
no esquecimento profundo, no eterno desespero! Oh! Como
deveria este pensamento impressionar as consciências,
despertá-las do seu torpor!
II — "Que aquele que estiver em seu campo não volte
atrás!", acrescenta o Evangelho. Dizeres que foram explicados
pelo próprio Jesus Cristo. "Aquele que, depois de haver posto
a mão à charrua, olhar para trás, não é digno de mim". Por
outro lado o apóstolo são Pedro diz que melhor fora não
conhecer as delícias do serviço de Deus, do que abandoná-lo
após havê-las gozado. Se começamos, procuremos prosseguir
com perseverança, sem recuar um só passo. Não pensemos
mais no que deixamos; não choremos as cadeias que
quebramos.
O meio seguro de não retroceder é seguir sempre avante!
É preciso imitar são Paulo: "Aplico-me em esquecer o que jaz
atrás de mim, para me aproximar cada vez mais do fim a que
tendo; corro até ao fim da carreira, a fim de alcançar a pátria
celeste".

QUARTA-FEIRA DA XXXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Animai, Senhor, vo-lo suplicamos, a vontade de vossos
fiéis"
I — Almas há inúmeras que, transbordantes de bons
desejos, de piedosos pensamentos e grandiosos projetos, não
chegam, no entanto, a convertê-los em realidade. Têm a
linguagem brilhante; prometem muito e aspiram a uma alta
perfeição; mas, ao apresentar-se a ocasião do sacrifício,
recuam desanimadas. Graça alguma lhes falta; elas é que não
correspondem às graças. Hão de pasmar, surpresas, ao se
verem de mãos vazias no derradeiro dia. Então, ao
contemplarem suas companheiras coroadas de glória, hão de
clamar: "Quão insensatas fomos! Aquelas que olhávamos
como inferiores a nós, elevam-se agora entre os bem-
aventurados; enquanto nós, cobertas de confusão, vemo-nos
riscadas do livro da vida".

318
II — Uma das grandes vantagens da alma chamada ao
estado religioso é estar desembaraçada das exigências do
mundo. Seus compromissos sagrados formam uma barreira
protetora e, livres dos laços terrenos, encontram-se sempre
prontas para acompanhar o Cordeiro divino por toda parte.
Estas almas possuem a melhor parte; não se agitam em
atividade estéril, já que se empenham todas nos mesmos
labores. Vivem de amor e de obediência e um único objetivo as
move: agradar a Deus.
Para se perder, vivendo em comunidade, é preciso querer
positivamente. O caminho de sua santificação está traçado
pela regra; basta segui-la, com fidelidade, para gradualmente
levar-se aos cumes da perfeição.

QUINTA-FEIRA DA XXXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Os homens secarão de pavor ante a expectativa do que
deverá acontecer".
I — Nosso Senhor insiste tanto sobre as calamidades dos
últimos tempos que não nos compenetrarmos de suas
advertências seria uma falta imperdoável. O espírito do século,
no entanto, desvia nossa atenção destes sérios pensamentos.
Como aconteceu nos dias de Noé, quando o dilúvio submergiu
a terra, e como no tempo de Ló, em que o fogo do céu destruiu
as cidades culpadas, os homens, seduzidos pelos prazeres e
negócios, não ligam importância aos avisos do Altíssimo.
Vivem como se nunca devera findar a vida presente, dando
assim por sua conduta, senão por suas palavras, um
desmentido ao Evangelho. Qualificaríamos de louco um
condenado à pena última, se desperdiçasse em diversões o
tempo que lhe fosse concedido para obter o seu perdão.
Procuremos penetrar mais nos pensamentos da fé; vivamos de
maneira tal que possamos declarar com o nosso divino Mestre:
"Não sou deste mundo!", minha pátria é o céu.
II — Se consideramos ainda em horizontes muito lon-
gínquos os quadros do fim do mundo, convenhamos que o
nosso fim está bem próximo. Temos por morada uma
habitação de lodo, cujo próprio peso a desfaz dia a dia e a que
o mínimo incidente pode subitamente reduzir a pó. A queda da
frágil barreira, que nos separa da eternidade, produzirá para
nós efeitos análogos aos que, para a terra, causará a

319
destruição do mundo. E, então, que nos importa subsistir tudo
o que nos rodeia, quando nós mesmos não sobreviveremos a
nada? A morte será o fim dos tempos para cada um de nós e
esse termo será o início de uma eternidade feliz ou
desgraçada.
O cristão que fica indiferente a esta verdade expõe-se a
cruéis surpresas e a remorsos irremediáveis!

SEXTA-FEIRA DA XXXIV SEMANA DO TEMPO


COMUM
"Quando tais coisas começarem a suceder, levantai os
olhos e olhai para o alto".
I — Depois de predizer o terror dos pecadores no dia da
sentença solene, refere-se também às almas dos fiéis que,
nesse mesmo dia, recolherão o fruto da redenção.
É a expressão adotada pelo Evangelho para nos ensinar
que a redenção, iniciada na cruz, não estará completa e
terminada senão na consumação dos séculos. Mas os
perversos não participarão dela. Recusaram a graça quando
esta lhes foi oferecida; desconheceram-na ou repeliram-na;
dela serão privados eternamente. E enquanto estes abaixam a
cabeça para o abismo que se abre para os engolir, os bem-
aventurados olham para o alto, contemplam deslumbrados a
luz que os atrai às regiões celestiais. Para estas almas passou
a fase das provações; envolve-as vivificadora atmosfera e sem
fim é a alegria que as inunda!
II — O dogma do juízo final não deverá ser somente o
objeto de nossa fé, mas igualmente o movei do nosso
proceder. O próprio Jesus aponta-nos as conclusões práticas,
recomendando-nos a vigilância e a oração. Pela vigilância,
evitaremos as surpresas do juízo e, pela oração,
desarmaremos o braço do soberano Juiz. Se formos fiéis,
longe de recear o juízo final, ansiaremos até pela sua hora e
confiantes o aguardaremos como o momento triunfal!
Que o pensamento do reinado de Jesus Cristo se apodere
do nosso coração, do nosso espírito, de todas as nossas
faculdades! Que nos siga sempre e por toda parte! Ele nos há
de alentar nas tentações, confortar nos reveses, fazer-nos
executar com perseverança os nossos deveres de estado;
colocará em nossos lábios a prece ardente de são João:
"Vinde, Senhor Jesus, vinde!".

320
SÁBADO DA XXXIV SEMANA DO TEMPO COMUM
Maria é o nosso derradeiro refúgio
I — A lei antiga consagrava cidades de refúgio, onde os
criminosos encontravam abrigo contra as perseguições da
justiça. Quanto a nós, discípulos de Jesus Cristo, é nos braços
de Maria que nos refugiamos quando nossa consciência
alarmada receia os juízos divinos. A Mãe do Redentor do
mundo compadece-se dos pecadores; cobre com seu amparo
os desventurados que apelam para o seu amor. Conhece o
quanto custamos a seu divino Filho e não desvia seus olhares
de nossas enfermidades. Movida por extrema compaixão,
estende sua mão aos filhos que desejam reerguer-se de suas
quedas. Maria santíssima, como Jesus, deseja ardentemente
que todas as almas sejam salvas. Se o temor da justiça nos
oprime o coração, não tardemos, pois, em recorrer à Mãe que
nos foi concedida. A lembrança de Maria é um pensamento de
amor que deve excluir todo receio e reanimar a esperança!
II — Somos os filhos da Mãe de Jesus e é por nós que
Maria intercede no céu. É para nós que é Mãe poderosa, Mãe
indulgente, Mãe generosa! Mãe poderosa — advoga
vitoriosamente nossa causa! Mãe indulgente — compadece-se
de nossas fraquezas; e Mãe generosa — perdoa as nossas
faltas, esquece os nossos erros. É com o bem que retribui o
mal! Assiste-nos em todas as nossas vicissitudes, levanta-nos
e nos consola! Comparecerá ao nosso momento derradeiro,
estenderá suas mãos aos que a consideram como Mãe, abrirá
seu coração àquelas almas que lhe foram autenticamente
consagradas.
 Que suma alegria nos invadirá ao terminarmos nossa
peregrinação terrestre, se a bendita Mãe do Salvador se dignar
conceder-nos a ventura de eternamente habitarmos com os
anjos e bem-aventurados na Sião celestial!

321
PRÓPRIO DOS SANTOS

2 DE FEVEREIRO PURIFICAÇÃO DA SANTÍSSIMA


VIRGEM E APRESENTAÇÃO DE JESUS NO TEMPLO
"E quando se completou o tempo da purificação, conforme
a lei de Moisés, levaram Jesus a Jerusalém, para ser
apresentado ao Senhor" (Lc 2, 22).
I — Contemplemos o maravilhoso espetáculo que se nos
oferece hoje no templo de Jerusalém. O Filho de Deus, sob os
delicados tragos de uma criancinha, apresenta-se aí pela
primeira vez. Em volta de Jesus estão Maria, José, Simeão e
Ana, a profetisa. O conjunto de tão augustas figuras comoveu
sempre a piedade cristã, a ponto de serem chamados esses
mistérios: festa do bom encontro. Gesto admirável da
Providência! Todos os que andam ante o Senhor com reto
coração encontram em seu caminho um facho luminoso que os
conduz, por atalhos diversos, a um mesmo alvo, para se
unirem no amor de Deus. Existe entre as almas piedosas uma
secreta atração que as aproxima; e seja qual for sua idade ou
condição ou a distância que as separe, reúnem-se aos pés de
Jesus para nunca mais se separarem. Se, por vezes, é áspero
o caminho; se, como sucedeu a Simeão e a Ana, é a paciência
longamente experimentada, não se deverá desanimar; é no
final da jornada que a perseverança recebe seu prêmio e sua
recompensa!
II — O mistério da Encarnação mostra-nos o quanto estão
identificadas a missão de Maria e a de Jesus. De um lado,
Jesus Cristo, o Santo dos santos, cumpre a lei prescrita ao
homem pecador. Do outro, a Virgem imaculada submete-se
igualmente às prescrições legais que não atingiam às virgens.
Estes dois exemplos memoráveis reúnem-se para consagrar a
obediência religiosa e o respeito às santas regras. As almas
verdadeiramente humildes, seja qual for sua perfeição, não
procuram jamais subtrair-se à sua observância; para elas, a
prática da obediência passa por cima de toda consideração.
Foi após esses atos de humildade que Simeão entoou o hino
em que celebrou conjuntamente as grandezas de Maria e as
magnificências daquele que é a luz das nações e a glória do
povo de Israel.

322
19 DE MARÇO SÃO JOSÉ
"Eis o servo fiel e prudente que o Senhor estabeleceu
sobre sua família" (Lc 12, 14).
I — José é o homem entre todos escolhido para des-
empenhar o papel de pai junto ao menino Jesus e de esposo
junto à Virgem imaculada. Esta incomparável missão encerra
todos os títulos de sua grandeza. São José concorreu para a
realização do plano da Providência, encobrindo ao inimigo do
gênero humano o segredo da Encarnação do Filho de Deus.
Graças ao matrimônio legal contraído entre José e Maria, a
velha serpente não conheceu o cumprimento da profecia de
Isaías: "Uma Virgem conceberá e dará à luz um Filho que será
chamado: Deus conosco, Emanuel". Não existe vocação que
se lhe assemelhe; fez de José um homem excepcional. Ele
velou sobre a criança e sobre a Mãe, subtraiu-as a todos os
perigos, guiou-as em terra estranha e reconduziu-as a Israel.
Depositário da confiança de Deus, é o anjo visível da santa
Família. Quão poderoso deve ser ante o trono do Altíssimo o
servo fiel ao qual confiou Deus este tesouro do céu e da terra!
II — A missão angélica, desempenhada por são José junto
à santa Família, perpetua-se na Igreja; pois as vocações são
irrevogáveis: o que foram na terra, serão eternamente no céu.
José será sempre o mandatário de Deus, o instrumento da
Providência. Vela sobre os filhos da Igreja, assim como velou
sobre o berço de Belém; preserva-os das ciladas dos inimigos,
prove a suas necessidades espirituais e temporais, consola as
dores do exílio e conduz à pátria celeste os peregrinos deste
mundo. São José é, sobretudo o modelo e o guia das almas
interiores. Dirijamo-nos a ele para implorar o amor à vida
oculta, a ciência da oração e do culto de Deus. Seria muito
pouco honrar são José com nossas homenagens, se não
procurássemos merecer sua proteção paternal.

25 DE MARÇO
ANUNCIAÇÃO DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA
"Ave, cheia de graça!" (Lc 1, 28).
I — A festa da anunciação recorda-nos os abatimentos do
Filho de Deus feito homem e as grandezas inefáveis da Virgem
que se tornou Mãe de Deus. Não há palavra que possa narrar
os segredos da divina Encarnação! "O Verbo se fez carne e
habitou entre nós!" A carne, divinizada em seu seio virginal, se

323
transformará em alimento e em bebida, para depositar em
nossas almas a semente da imortalidade. O Evangelho relata
tão somente o anúncio deste augusto mistério, anunciação
bendita que o mundo aguardava havia quatro milênios e que,
realizando as antigas profecias, estreia a era nova do
cristianismo. A culpada mãe dos homens, diz santo Irineu,
seduzida pela falácia do anjo decaído, gerou a morte. Maria,
saudada pelo anjo Gabriel e fecundada pelo Espírito Santo,
gera a vida divina que triunfará da morte. A criança, que
nascerá de Maria, vem renovar-nos o título de filhos de Deus.
Que alegria! Que dignidade! Os cristãos estão acima dos
príncipes, dos filhos dos reis; são filhos do Altíssimo!
II — Todos os santos da terra persistiram em cantar as
glórias de Maria; a mais ardente devoção ocupou-se em
celebrar as magnificências da sua vocação. Louvor algum, no
entanto, pôde ser comparado ao de Gabriel: "Deus vos salve,
cheia de graça; o Senhor é convosco, bendita sois entre as
mulheres!" Estas estranhas palavras perturbaram a delicada
modéstia da Virgem e, longe de lisonjeá-la, provocam a
resposta que exala o perfume da mais suave humildade: "Eis a
serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!"
Assim, ante os esplendores que a envolvem, Maria só vê sua
pequenez; e, enquanto ante ela se inclina o arcanjo, como
perante a Mãe de Deus, Maria oferece ao Senhor a humilde
homenagem de uma simples serva! Lição sublime que deve
prestar-se a ser objeto de nossas meditações! Queremos
glorificar a Deus, aspiramos progredir? Imitemos Maria...
Sejamos humildes!

24 DE JUNHO SÃO JOÃO BATISTA


"Irá adiante do Senhor para lhe preparar o caminho" (Lc 7,
27).
I — Consoante o próprio testemunho do Senhor, são João
Batista superou, pela eminência de sua santidade, a todos os
filhos dos homens. Não era sua vida a de uma criatura, mas
sim a de um anjo. Dele não se relata um milagre sequer; era
ele próprio um milagre suficiente para dar crédito à sua
palavra. O Evangelho resume seu caráter em duas palavras:
"Era uma lâmpada ardente e luminosa" (Jo 5, 35). Os
comentadores frisam que o evangelista não diz que são João
era uma lâmpada que ilumina e arde, mas uma lâmpada que

324
arde e brilha. Não é a luz que produz o fogo, e sim o fogo que
produz a luz. Queremos esclarecer nosso próximo?
Comecemos por abrasar-nos primeiramente. Pois, como
comenta são Bernardo, aqueles que pretendem instruir os
outros antes de se haverem exercitado na prática do que
ensinam, não conseguirão resultado algum (Sermão da
Natividade de são João Batista). A palavra de são João Batista
foi luminosa por jorrar de um coração ardente de amor e de
caridade.
II — São João Batista é o patriarca da vida religiosa. Não
escreveu as regras da pobreza, da castidade e da obediência,
mas delas deu o exemplo. Viveu pobre no deserto, onde
conservou intacto o tesouro da sua pureza virginal; e seu
pensamento predominante, sua única preocupação, era bem
cumprir a vontade de Deus. Conquanto fossem suas
austeridades corporais as mais rigorosas possíveis, foram
ainda ultrapassadas pelas mortificações espirituais, pois que
durante trinta anos viu-se privado do inefável consolo de ver o
Cordeiro de Deus, do qual era o precursor. Sua perfeita
humildade é efeito de sua total abnegação; e atinge tal ponto
que, enquanto a Judeia o considera como o Messias, ele faz
timbre em proclamar bem alto, ante as multidões, que era
apenas a voz do que clama no deserto. Em sua escola
formaram-se os primeiros discípulos de Jesus; foi para eles o
guia e o modelo. Instruamo-nos nessa mesma escola e apren-
damos com são João Batista o santo preparo que nos é
necessário adquirir para o apostolado evangélico e para as
visitas do nosso Deus.

29 DE JUNHO SÃO PEDRO E SÃO PAULO


"Vós os estabelecestes príncipes sobre toda a terra" (SI
44, 17).
I — Homenageamos hoje os dois príncipes dos apóstolos
que, tão estreitamente unidos na vida, não foram separados na
morte. É a expressão da Igreja; e os doutores acrescentam
que estes dois grandes luminares do mundo são como os
olhos do corpo místico de Jesus Cristo. Ambos selaram com
seu sangue o seu glorioso apostolado; juntos reinam no céu
para onde transportaram suas solicitudes. São Pedro,
conforme sua epístola aos Gálatas, é mais particularmente o
apóstolo dos judeus; e são Paulo, o apóstolo das nações.

325
Pedro é o alicerce do edifício e Paulo é como que a argamassa
que liga todos os povos a esse rochedo imutável. São Pedro é
o regulador da fé; são Paulo é o pregador da obediência. São
Pedro é o centro do imenso círculo da catolicidade; são Paulo
é o raio que lhe marca a circunferência. São Pedro personifica
a divina autoridade de Jesus Cristo e são Paulo representa a
cooperação do episcopado. A missão de são Pedro é única;
mas quis o Senhor lhe dar são Paulo como auxiliar, a fim de
que fosse a cátedra da verdade igualmente cátedra da
caridade.
II — Quis o Senhor colocar dois apóstolos à base do
edifício, para consagrar o princípio divino da caridade fraternal.
É são Pedro unicamente, no entanto, a pedra fundamental da
Igreja. Só a ele dirigiu Jesus estas palavras: "Tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei a minha Igreja". Só são Pedro
recebeu as chaves do reino de Deus; foi o único a ser investido
da missão de confirmar na fé a seus irmãos. E para dar à sua
autoridade uma consagração que faça participar algo da
estabilidade das coisas eternas, Jesus Cristo orou para que a
fé de são Pedro jamais desfalecesse. Essa augusta missão,
com todas as prerrogativas a ela inerentes, transmitiu-se e
perpetua-se nos pontífices romanos. O papa, sucessor do
príncipe dos apóstolos, representa visivelmente, na Igreja,
aquele que disse: "Todo o poder me foi dado no céu e na
terra". No momento de conferir a são Pedro a magistratura
soberana, perguntou-lhe por três vezes o Senhor: "Pedro, tu
me amas?" E reclama como única prova do seu amor que
apascente as suas ovelhas e seu rebanho.
Meditemos sobre este mistério de caridade que nos faz
compreender de que modo quer o Senhor ser amado e
servido.

2 DE JULHO VISITAÇÃO DE NOSSA SENHORA


"De onde me vem esta ventura de ser visitada pela mãe do
meu Senhor?" (Lc 1, 43).
I — "Há maior felicidade em dar do que em receber". Esta
bela palavra de nosso Senhor verificou-se de maneira
surpreendente nos mistérios da Visitação. A santíssima Virgem
recebera a plenitude das graças e o próprio Deus se lhe dera
em toda a profusão do seu amor. A Virgem, no entanto, no
apogeu da glória e enriquecida dos tesouros celestiais, goza

326
com calma sua inefável felicidade; e na resposta que dá ao
arcanjo não se observa expansão alguma da sua ventura: "Eis
a serva do Senhor; faça-se em mim conforme a tua palavra".
Mas quando, obrigada a partilhar suas emoções com santa
Isabel, reconhece os maravilhosos efeitos de sua visita;
quando, por sua presença, a casa inteira de Zacarias é
inundada de paz e alegria divinas, sente então que já não é a
única a desfrutar a sua ventura; traz a outrem a felicidade;
tornou-se medianeira dos dons de Deus, dispensadora das
graças; e seu coração transborda de gratidão, desfaz-se nos
ardentes acordes do Cântico: "De hoje era diante todas as
nações me chamarão bem-aventurada".
II — Abençoadas as almas que atraem as visitas de Maria
e por seu intermédio recebem as provas do divino amor. Mais
felizes ainda as que, imitando Maria, tornam-se, por sua vez,
anjos de benemerência e de consolação! A santíssima Virgem,
cheia de Deus que a vivifica, derrama profusamente sobre
todas as montanhas da Judeia graças a mãos-cheias. Também
a nós cabe, depois de fortalecidos pelo Pão dos anjos,
espalhar ao redor de nós, por nosso exemplo, nossas palavras
e ações, os perfumes da fé, da piedade, da caridade. A
edificação que a nossa conduta produzir nos outros redundará
em benefício próprio, e o bem que proporcionarmos aos outros
contribuirá para a nossa felicidade presente e futura.

15 DE AGOSTO ASSUNÇÃO DA SANTÍSSIMA


VIRGEM
"Fez em mim grandes coisas aquele que é onipotente"
(Lc 1, 49).
I —- Era justo e conveniente — assim se exprime um
doutor da Igreja — que o Filho de Deus recebesse no mais alto
dos céus a Virgem que o havia concebido e lhe havia dado o
ser sobre a terra. Os profetas viam-na subir como aurora que
desponta. Atravessa os espaços, os céus, os coros dos anjos e
dos santos e vai sentar-se sobre o trono real na celeste
Jerusalém. Quanta imponência! Quanta majestade! Ide, filhas
de Sião, contemplar a vossa Rainha coroada! Se não é dado
ao homem compreender na terra a felicidade preparada por
Deus às almas santas, como poderemos fazer um juízo das
grandezas de Maria? Limitemo-nos a meditar esta verdade: lá
onde estiver a Mãe, aí estarão as companheiras e filhas que

327
lhe são consagradas. As esposas de Cristo reunir-se-ão à sua
Soberana, se lhe seguirem as pegadas no caminho da
obediência e da humildade.
II — A bem-aventurada Virgem mesma nos revela o motivo
da sua exaltação: "O Altíssimo olhou a humildade da sua
serva". Permaneceu humilde em meio às homenagens
insignes que lhe eram tributadas pelos anjos e pelos homens.
Este prodigioso aniquilamento foi a medida da sua grandeza.
As almas humildes tanto mais se aproximam da Deus quanto
mais perfeitamente se desprendem de si próprias, como o
prato de uma balança que se eleva à medida que o outro
desce. No céu nos aguardam alegrias e delícias indescritíveis,
cujo penhor recebemos ainda nesta vida, na mesa sagrada.
Mas, para merecê-las, devemos ser humildes; e, para obter
esta virtude, celebremos as festas de nossa Senhora com uma
renovação do fervor no serviço de Deus.

8 DE SETEMBRO NATIVIDADE DE NOSSA


SENHORA
"Uma rebento brotará da raiz de Jessé" (Is 11, 1).
I — Saudemos com alegria a festa da Natividade da
Virgem Mãe, que é o primeiro elo da cadeia de todas as festas
cristãs. Somente Deus conhecia a proeminência do futuro
reservado a essa criatura abençoada. Descendente dos
patriarcas, dos profetas e dos reis de Israel, era, no entanto,
mais ilustre pela sua nobreza interior do que pelos títulos dos
seus antepassados. Seu nascimento traz mais alegria ao
mundo, tal como a aurora desfaz a noite e anuncia os
esplendores do sol, alegra a terra porque faz descer do alto as
águas vivas que fertilizam os vales e as colinas; enche de
júbilo o céu, que goza em contemplar a sua Rainha no berço
de Sião; alegra, sobretudo, a Igreja que, toda impregnada dos
sentimentos de Jesus Cristo, oferece hoje à Mãe do Senhor as
mais carinhosas homenagens do seu culto filial.
Reconheçamos, com santo Agostinho, não haver palavras
bastante expressivas para louvar dignamente a Virgem cheia
de graças; e, em carência de termos, consagremos-lhe os
nossos corações transbordantes das efusões do nosso amor.
II — A Natividade de Maria será sempre uma data de
alegria. Por Maria, brota a fonte de todas as graças e é ela que
as esparge sobre nós. Supliquemos que nos alcance aumento

328
da paz de Deus, expansão nas alegrias da caridade, progresso
no caminho do amor, inviolável fidelidade em nossos
compromissos religiosos. Peçamos, sobretudo a Maria que
presida ao nosso nascimento futuro, pois que, no dia em que
nos libertarmos da vida corporal, renasceremos para uma nova
vida; e se morrermos na graça de Deus, com Maria
ressurgiremos na celeste Sião. Animados por esta esperança é
que imploramos todos os dias a nossa divina Mãe: "Rogai por
nós agora e na hora da nossa morte".

2 DE OUTUBRO OS SANTOS ANJOS DA GUARDA


"Os anjos são enviados para exercerem seu ministério em
favor dos herdeiros da salvação" (Hb 1, 14).
I — Os livros sacros do Antigo e do Novo Testamento
atestam as relações dos anjos com os homens, relações tão
frequentes que fariam crer prender-se sua felicidade à nossa
salvação. Unem suas vozes aos nossos cantos e às nossas
ações de graças; consolam-nos e esclarecem-nos; sanam
nossas enfermidades espirituais e corporais, acusam perante
Deus os que escandalizam as criancinhas; transportam o
pobre Lázaro ao seio de Abraão. Vemo-los intervir em todos os
atos da Redenção. Um arcanjo é enviado a Maria; outros
celebram as alegrias de Belém; aparecem a são José; cercam
o divino Salvador na montanha da tentação; adoram-no em
Getsêmani; anunciam sua ressurreição e reaparecerão com
Jesus Cristo no último dia. "Mil milhões o assistem e dez mil
milhões conservam-se ante seu trono" — afirma Daniel (7, 10).
Conta-nos o Evangelho a libertação de são Pedro por in-
termédio de um anjo. Conquanto cada um possua o seu anjo
custódio que o acompanha e protege, só poderá discorrer
sobre eles com autoridade aquele que se lhes assemelha, e
que mereceu suas comunicações sensíveis.
Quanto amor devemos devotar e de quanta honra cercar
esses admiráveis mensageiros divinos!
II — Os anjos existem exclusivamente para a glória de
Deus e para a salvação dos homens. Quanto mais nos
abrasarmos de seus ardores, tanto maiores serão nossos
traços de semelhança. Ã força de ouvir os anjos, de os imitar e
de se alimentar do Pão dos anjos, transforma-se o cristão em
anjo e, no âmbito da sua ação, exerce influência
verdadeiramente angélica. Querida e abençoada é a alma que

329
espalha em torno de si celeste edificação. Nas comunidades
religiosas que sobre a terra representam as moradas celestes,
todas as almas devem ser angélicas. Circundam o trono da
graça, antecipam as solenidades futuras; e, imitando os bem-
aventurados, oferecem noite e dia ao Altíssimo o incenso dos
sacrifícios e da oração.

1º DE NOVEMBRO FESTA DE TODOS OS SANTOS


"Deus é admirável em seus santos" (SI 67, 36).
I — A Igreja militante comemora hoje as glórias da Igreja
triunfante. É a festa da grande família católica. Junto ao trono
de Deus chegam sucessivamente as almas felizes que
terminaram sua purificação e reúnem-se na mansão
abençoada, preparada por Jesus. A morte não desfez os laços
que a nós as prendiam; pelo contrário, sua afeição aumenta à
proporção que se dilatam nas regiões do amor. E quanto mais
ardentes e amorosas se tornam, mais por nós se interessam e
se compadecem à vista dos sofrimentos do nosso exílio. Os
bem-aventurados nos associam a seus méritos, protegem-nos
por seu crédito e por suas orações; esperam-nos e atraem-
nos, pois que não se julgarão inteiramente felizes enquanto
não nos virem participar de sua beatitude. Procuremos imitá-
los em tudo, mas, sobretudo, em sua coragem e sua fidelidade.
II — Os santos atualmente coroados na glória transitaram
por este mundo em circunstâncias idênticas às nossas;
sofreram as vicissitudes da idade, da sociedade, tal como nós.
Lutaram, padeceram e choraram; mas, apoiados na palavra de
Cristo, fiéis à graça, perseveraram até ao fim e, triunfantes,
penetraram na Sião celestial. Agradeçamos ao Senhor por nos
haver concedido sua herança, e, resolutos, sigamos suas
pegadas. A fonte das graças corre para nós como correu para
eles; e o que puderam fazer, nós o podemos igualmente.
Unidos a eles, ofereçamo-nos ao Altíssimo, como vítimas
voluntárias do amor e da caridade.

2 DE NOVEMBRO COMEMORAÇÃO DOS FIÉIS


DEFUNTOS
"Minha alma tem sede do Deus vivo. Quando me será
dado comparecer ante a face do meu Deus?" (SI 41, 3).
I — "É um santo e salutar pensamento orar pelos defuntos
para que sejam livres de seus pecados", são palavras da

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sagrada Escritura (2 Mac 12, 46); pois que são devedores da
justiça divina e, segundo diz o Evangelho, só poderão ser
libertados de suas torturas, depois de saldarem totalmente
suas dívidas. Mas de onde virá o socorro a essas regiões
sombrias, onde não há mais boas obras e nem merecimentos?
Seus olhares se voltam para nós, já que nos é concedido sobre
a terra comunicar-nos com o céu e com o purgatório. É certo
que lhes proporcionamos alívio e apressamos sua libertação
por nossas orações e atos de caridade, pelo santo sacrifício da
missa e pelas indulgências ofertadas em suas intenções.
Procedamos para com olas como desejaríamos que
procedessem conosco e avivemos hoje nossos sentimentos de
compaixão.
II — Desfrutamos na terra da abundância dos bens espiri-
tuais e necessitamos, no entanto, de auxílio e assistência.
Apesar dos sacramentos que nos fortalecem e das conso-
lações que nos confortam, sucumbimos, por vezes, sob o peso
da dor. Se tais são as condições da vida atual, quanto maiores
não devem ser as precisões das almas que, com assistência
infinitamente mais escassa, padecem sofrimentos
incomparavelmente mais atrozes! Afastadas de Deus,
separadas dos que amam, essas almas, diz são Gregório de
Nissa, estão encerradas em uma fornalha onde reparam suas
faltas e concluem a purificação que haviam negligenciado na
terra. Extrema seria nossa comoção, se nos fosse possível
perceber, no meio desses inenarráveis tormentos, as almas
dos entes amados e conhecidos. E esse espetáculo nos levaria
também a fazer um exame retrospectivo íntimo e, nesta vida,
ainda, ultimar o trabalho da penitência e da santificação. Implo-
remos com santo Agostinho: "Meu Deus, fazei-me expiar aqui
as minhas faltas, a fim de evitar as chamas do purgatório!".

21 DE NOVEMBRO APRESENTAÇÃO DA
SANTÍSSIMA VIRGEM
"Felicitai-me, vós, que amais o Senhor, pois que enquanto
ainda era jovem fui agradável ao Altíssimo" (Ofício da Igreja)
I — A consagração da santíssima Virgem no Templo abre
o caminho das vocações religiosas. Davi contemplara esse
mistério e em seu inspirado salmo 44 canta a aliança nupcial
contraída pelas almas eleitas com o Deus de amor: "Ó Rei!
Superais em beleza a todos os filhos dos homens; a graça se

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expande em vossos lábios e vossas vestes exalam o perfume
da mirra, do âmbar e do aloés. As filhas dos príncipes foram
deles perfumadas e inebriadas, buscaram a honra da vossa
aliança. A Rainha conservou-se à vossa destra, adornada com
um manto de ouro e de uma variedade infinita de riquezas.
Ouve, filha minha, e sê atenta a minhas palavras; esquece o
teu povo e a tua parentela, e o Rei do céu te cumulará de
amor; pois que ele é o Senhor teu Deus, poderoso e adorável.
A glória da filha do Rei está em si mesma e seu fulgor apaga
os esplendores de suas vestimentas. Outras virgens virão após
e consagrar-se-ão ao Rei dos reis; serão apresentadas no
templo com transportes de júbilo!".
II — Sob o véu das palavras simbólicas do salmista,
entrevemos o glorioso destino das almas que seguem as
pegadas de Maria e formam o cortejo sagrado do Cordeiro de
Deus. Apresentam-se no templo para, à sombra do santuário,
prepararem-se às bodas divinas. Vocação sublime que eleva
as mais humildes criaturas ao próprio trono de Deus! Nessa
trajetória ascendente, a noiva do Rei dos anjos deixa parentes,
família, fortuna, pátria: tudo abandona para receber o cêntuplo.
Um só pensamento a domina, uma única aspiração a impulsio-
na: satisfazer ao celeste Esposo. Deve estar morta em meio a
todas as coisas do mundo; seus entretenimentos estão no céu,
enquanto aguarda o dia de sua apresentação no templo da
glória.

8 DE DEZEMBRO
IMACULADA CONCEIÇÃO DA SANTÍSSIMA
VIRGEM
"T u és a glória de Jerusalém, a alegria de Israel e a honra
do nosso povo!" (Jdt 15, 10).
I — A vitória alcançada por Judite sobre os inimigos do
povo de Deus era a figura profética do triunfo de Maria. Foi a
Virgem quem, por sua conceição imaculada, lançou a confusão
entre as legiões do inferno. Somente ela escapou ao contágio
do pecado original, e realizou esta predição do Gênesis, que
abre a história da humanidade: "Uma mulher esmagará a
cabeça da serpente". Os profetas são unânimes em proclamar
as maravilhas dessa mulher, na qual não há mácula; a ela é
que se aplicam as aclamações gloriosas feitas à ilustre Judite.
Mas a Virgem imaculada acresceu de mérito pessoal sua inata

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perfeição; conservou-se humilde em meio a suas excelsas
prerrogativas; mostrou-se vigilante, embora fosse inacessível
aos perigos do pecado; aliou, finalmente, a penitência à sua
inocência, porque participou voluntariamente de todas as
humilhações da cruz. Nós, que tão distanciados estamos da
santidade de Maria, quanta razão temos para sermos humildes
e vigilantes!
II — O batismo, chamado por são Jerônimo: sacramento
de concepção espiritual, produz na alma um renascimento
imaculado. Apaga o pecado e restaura a primitiva pureza.
Conservando essa graça ou readquirindo-a, mediante uma
penitência salutar, é que dignamente ostentaremos o título de
filhos de Deus e da Virgem. Cultivemos em nós a vida nova,
pela mortificação, separemo-la dos obstáculos que impedem
seu progresso; alimentemo-la com o suco divino da oração e
da comunhão, e fortifiquemo-la pelo exercício das virtudes
evangélicas. Então o mistério da Imaculada Conceição pro-
duzirá em nós seu fruto, fruto de vida santa e celestial!

20 DE JANEIRO
FESTA DO CORAÇÃO IMACULADO DE MARIA
"Refúgio dos pecadores"
I — Um coração de mãe evoca ao nosso espírito o que de
mais terno, compassivo e amável existe na natureza humana.
Mas o Coração de Maria! Que ideia poderemos fazer dele?
Este coração imaculado é a obra prima da criação
sobrenatural. Foi destinado a ser o reservatório da plenitude
das graças: "gratia plena". É o tabernáculo vivo da divindade:
"requievit in tabernaculo meo". Nele foi haurido o Sangue que
apaga os pecados do mundo. Concebida na justiça e na
santidade originais, Maria foi fecundada pelo Espírito Santo,
para ser a Mãe do Santo dos santos. Como um vaso
impregnado da mais preciosa essência, conservou seu virginal
coração o aroma da bondade e de todas as perfeições divinas;
daí podemos concluir o que é em relação a nós. O Coração de
Maria ama os que Jesus amou; sofre e sacrifica-se por aqueles
aos quais Jesus quer salvar. Conforme o exemplo de Jesus,
inclina-se de preferência às almas enfermas ou que, cegas,
correm para a perdição. É especialmente por esses infelizes
que devemos recorrer ao coração puríssimo de Maria, unindo-
nos à súplica da Igreja: "Ora pro nobis peccatoribus!" Ao rogar

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por eles, rogamos também por nós, pois ninguém está isento
do pecado, e todos os filhos dos homens, sem exceção, ne-
cessitam daquele que veio salvar os pecadores.
Oremos, portanto, com fé, com confiança, com perse-
verança! Alegraremos os anjos e sua Rainha, se implorarmos a
misericórdia divina em favor das pobres almas que, por sua
infelicidade, privam-se das graças da Redenção.
II — A Igreja adapta a fervorosa prece do Eclesiástico, no
ofício deste dia, a fim de impetrar a conversão dos pecadores.
Pode-se aplicar esta oração às ovelhas desgarradas da casa
de Israel. Alcemos, pois, o nosso olhar ao coração imaculado
de Maria e, com a Igreja, supliquemos: "Ó Deus, Senhor de
todas as coisas, tende piedade de nós; deitai sobre nós um
olhar favorável e fazei-nos ver a luz de vossas misericórdias!
Reuni todas as tribos de Jacó, a fim de que reconheçam não
existir outro Deus senão vós; e proclamem as grandezas de
vossas maravilhas e venham a ser a vossa herança, como o
foram desde o início. Tende compaixão do povo que foi
chamado do vosso Nome e de Israel, ao qual tratastes como
filho primogênito! Apiedai-vos de Jerusalém, dessa cidade que
santificastes, onde estabelecestes vosso repouso! Enchei Sião
da verdade de vossas palavras inefáveis e vosso povo, de
vossa glória! Dai testemunho em favor daqueles que foram
vossos desde o princípio e confirmai as predições que os
antigos profetas pronunciaram em vosso nome. Recompensai
aqueles que por tanto tempo esperaram em vós, a fim de que
os vossos profetas sejam achados fiéis; ouvi as súplicas dos
vossos servos, conforme as bênçãos dadas por Aarão ao
vosso povo. E conduzi-nos pelas veredas da justiça"
(Eclesiástico, Cap. 36).

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