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O auditório de um grande hotel da capital dos EUA estava lotado por uma platéia ansiosa. Era o
dia quinze de fevereiro de 1978, e a Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS)
promovia um simpósio para a discussão da sociobiologia, nova disciplina da biologia
comportamental que prometia construir uma ponte entre as ciências naturais e sociais, com base
nos princípios evolucionários e darwinistas. Alguns de seus maiores defensores (como o biólogo
evolutivo William D. Hamilton), e de seus críticos (como o paleontólogo e escritor científico
Stephen Jay Gould), estavam presentes.
O clima era tenso. A sociobiologia era um sucesso de público, mas estava sendo tratada, por
amplos setores da academia, como uma forma moderna de eugenia e de ciência reacionária.
Quando chegou a hora da apresentação de seu fundador mais ilustre, Edward O. Wilson (renomado
naturalista e maior autoridade mundial no estudo das formigas), o auditório foi invadido por
manifestantes com palavras de ordem e cartazes, nos quais apareciam os símbolos nazistas. Como
complemento ao protesto, o conteúdo de uma jarra d’água foi despejado na cabeça de Wilson.
As adaptações comportamentais seriam, neste ponto de vista, selecionadas com vista ao “bem-da-
espécie”. Um exemplo disso era a explicação para o fato de que os combates entre indivíduos da
mesma espécie assumem, muitas vezes, uma forma ritualizada, o que impede maiores danos e
ferimentos. Isto era visto como uma adaptação para o benefício da espécie como um todo, sem
nenhuma explicação dos mecanismos através dos quais os indivíduos poderiam retirar algum
benefício desta fidelidade ao conceito (muito humano) de “espécie”.
A partir dos anos sessenta uma série de autores (como George C. Williams, John Maynard Smith,
William D. Hamilton, Robert Trivers) passou a criticar esta perspectiva “holística” em alguns
artigos seminais. A premissa básica desses trabalhos era – ao contrário da teoria do “bem-da-
espécie” – realmente baseada no darwinismo: a seleção natural atua sobre os genes e sobre suas
“máquinas de sobrevivência” que são os organismos individuais, e jamais sobre as espécies, raças
ou classes sociais. Partindo deste princípio, qualquer discussão sobre as sociedades animais –
incluindo as humanas – deveria fazer referência às vantagens auferidas pelos indivíduos.
Um exemplo típico do novo paradigma foi o estudo de John Maynard Smith, revelando que os
combates ritualizados servem para que os indivíduos avaliem a força ou os recursos do oponente e
possam fazer opções estratégicas, como lutar até a desistência do adversário mais fraco ou desistir
perante um mais forte. Baseando-se na Teoria dos Jogos (um instrumento matemático
desenvolvido nas ciências econômicas), Maynard Smith mostrou que os indivíduos buscam
preservar a possibilidade de que seus genes possam ser beneficiados em uma ocasião mais
propícia.
É claro que os animais nada sabem sobre genes: o que acontece é que a seleção natural eliminou
aqueles indivíduos que simplesmente se atiravam ao combate sem uma avaliação de suas
possibilidades de vitória, e que eventualmente acabavam por serem mortos, e aqueles indivíduos
que sempre fugiam, privilegiando assim os genes que levavam os indivíduos a apresentarem um
comportamento estratégico e oportunista. Isto acabou por se tornar um dos pontos básicos do
raciocínio sociobiológico: os animais não agem por “instintos” (termo, aliás, ausente na maioria
dos trabalhos de sociobiologia) imutáveis, mas antes têm a possibilidade de fazer opções dentro de
uma gama herdada de comportamentos possíveis.
A seleção natural favorece aqueles comportamentos que difundem os genes de um indivíduo não
apenas ao aumentar o número de seus próprios descendentes, mas também os de seus parentes
próximos, como irmãos e irmãs, que possuem muitos dos mesmos genes. É isto que explica, em
parte, a existência de indivíduos estéreis em várias espécies (como formigas e cupins): eles ajudam
a reproduzir cópias de seus genes através de indivíduos aparentados férteis, como a rainha em uma
colméia.
Os indivíduos que sempre agiram de forma totalmente egoística, nunca retribuindo os benefícios
recebidos, acabaram por não receber mais benefícios, deixando de produzir novas cópias de seus
próprios genes. Contudo, sempre que houver a possibilidade oportunista de se auferir algum
benefício, sem a devida reciprocidade, é esperado pela teoria sociobiológica que surjam indivíduos
abertamente egoístas. Características humanas como a ética, a religião ou as leis possuem, para a
sociobiologia, uma profunda razão de ser em termos de seleção natural: elas surgiram como
mecanismos de punição aos indivíduos que procuram fugir da reciprocidade, fornecendo uma base
para a vida social em uma espécie cuja principal adaptação é a produção de cultura.
Dentre esses princípios está a constatação de que os homens apresentam óbvias semelhanças de
comportamento no interior dos grupos sociais e diferenças marcantes entre os vários grupos. Estas
diferenças entre os grupos não podem estar associadas a uma suposta diversidade biológica (como
queriam as teorias racio lógicas do século XIX), dados os inúmeros casos conhecidos de rápida
mudança social e de trocas culturais entre grupos bem distintos. Além disso, a biologia
contemporânea demonstrou que a maior parte da diversidade biológica se dá entre indivíduos, e
não entre populações ou “raças”.
Por outro lado, as crianças nascem, em todos os lugares, com as mesmas características e
capacidades, e com as mesmas potencialidades em termos de desenvolvimento. Este é o princípio
conhecido como unidade psíquica da humanidade. Ora, as crianças são semelhantes, mas os
adultos diferem em um alto grau. Como uma “constante” (a unidade biológica) não pode explicar
uma “variável” (as diferenças entre os grupos), as ciências sociais tendem a considerar que a
“natureza humana” não pode ser a causa da organização mental dos humanos adultos, de seus
sistemas sociais, de suas culturas e de suas mudanças históricas. Essas características devem ser
adquiridas culturalmente, pelas crianças, no decorrer do desenvolvimento.
Para muitos cientistas sociais, a nova biologia do comportamento, quando aplicada aos humanos,
desconsiderava a diversidade cultural, naturalizava comportamentos e instituições ocidentais e
confundia processos evolucionários de natureza cultural e histórica com a evolução darwiniana.
Como disse Clifford Geertz, “a sociobiologia é um programa de pesquisa em degeneração, fadado
a se esgotar em suas próprias confusões”.
Desta forma, é certo dizer que os sociobiólogos foram com demasiada sede ao pote, e pagaram um
preço bem alto por isso. A esperança dos fundadores da sociobiologia era a de que seus modelos se
tornassem dominantes também nas ciências sociais, mas a sociobiologia acabou sendo percebida
como mais uma forma de darwinismo social. Os cientistas sociais desconsideraram a revolução
científica no estudo do comportamento, temendo a utilização política da biologia, que trouxe, no
passado, conseqüências terríveis para a humanidade, como a eugenia e o nazismo.
É verdade que a idéia de que somos como uma folha de papel em branco, uma tábula rasa, não
mais se sustenta, tendo em vista a constatação de que muitos comportamentos humanos possuem
uma base biológica. Não obstante, é também verdade que uma efetiva incorporação desse
conhecimento ao estudo do comportamento humano somente ocorrerá quando este puder se
articular com a noção de que o nosso ambiente é a cultura, e de que isso torna o homem uma
espécie necessariamente distinta das outras. O campo continua aberto para o diálogo, mas
precisamos, talvez, de uma nova revolução.
28 de agosto de 2007