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Marco de Bari
Uma característica brasileira – que sob vários aspectos pode ser considerada positiva –
é a irreverência em relação aos ídolos. O brasileiro riu das amantes de dom Pedro I,
riu dos porres de Tom Jobim e da mania do rei do futebol de referir-se a si próprio na
terceira pessoa, "o Pelé". A exceção é Ayrton Senna. Sua morte a 300 quilômetros por
hora na curva Tamburello, em Ímola, na Itália, no dia 1º de maio de 1994, solidificou-
o no imaginário popular brasileiro como um herói especial.
Os brasileiros reverenciam Ayrton Senna quase da mesma
maneira que a Argentina cultua Carlos Gardel ou Evita
Perón, ídolos envoltos em uma certa aura de santidade.
Investigar a vida deles, humanizando-os, equivale a uma Em Profundidade:
Ayrton Senna
quase profanação. Talvez seja por isso que só agora, dez
anos depois da tragédia da Tamburello, tenha sido
publicada uma biografia à altura do personagem: Ayrton, o Herói Revelado,
Rodrigues, que chega às livrarias nesta semana. O autor foi chefe do escritório da TV
Globo em Londres e dedicou dois anos ao projeto de dar uma roupagem humana à
imagem deificada do herói do automobilismo. Rodrigues entrevistou 213 pessoas em
sete países – Brasil, Argentina, Inglaterra, Itália, França, Portugal e Japão. O resultado
é um livro que mostra pela primeira vez um Ayrton Senna humano, contraditório e,
portanto, mais real do que o mito voador das pistas.
A maior parte das biografias disponíveis no mercado, como as escritas pelo inglês
Christopher Hilton e pelo jornalista brasileiro Lemyr Martins, enfatiza a vida
profissional do piloto. Já o forte de O Herói Revelado é o lado pessoal. Senna, o mito,
é descrito como um gênio, um fanático, uma vítima e um mártir. Gênio porque
ninguém pilotava como ele. Fanático por sua dedicação quase integral ao esporte.
Vítima, pelos golpes baixos que sofreu de seus principais rivais, Alain Prost e Nelson
Piquet. Mártir por ter morrido num momento em que lutava para melhorar as
condições de segurança do automobilismo. A biografia se debruça sobre essas e outras
facetas e mostra que Ayrton, o homem, era muito mais complexo do que se deixou
conhecer em vida. O fanático que só pensava em automobilismo encontrava tempo
para uma vida amorosa movimentada. A vítima de Nelson Piquet e Alain Prost –
responsáveis por espalhar o boato que marcou a vida de Senna, segundo o qual o
piloto seria homossexual – também não era tão vítima assim. Nos dois tiroteios,
lembra o livro, foi Senna quem disparou o primeiro projétil. O mártir da curva
Tamburello, que realmente iniciava um movimento para aumentar a segurança das
pistas, era dono de um estilo de pilotagem em que a ousadia e a ânsia de superação
dos limites pessoais o colocavam perto de ser desleal. O livro mostra como a batida na
qual ele tirou Alain Prost da corrida decisiva do campeonato mundial de 1990, em
Suzuka, no Japão, foi premeditada. Mais do que isso, uma manobra arriscadíssima,
realizada a 250 quilômetros por hora, que poderia ter ferido gravemente ou até
matado o francês – ou ambos. No quesito genialidade, a biografia alinha fatos que
corroboram o que todo mundo sabe: ninguém pilotava um Fórmula 1 tão
perfeitamente quanto Ayrton Senna.
O primeiro fim de semana que Ayrton passou ao lado de Xuxa foi no final de 1988, ano
em que o piloto ganhou seu primeiro título mundial. Na segunda-feira subseqüente,
Ayrton chegou à casa de Galvão Bueno, locutor da Globo, com ares de colegial
apaixonado. Segundo outro amigo do piloto, Alfredo Popesco, a apresentadora teria
sido um marco na vida de Senna. "Xuxa veio no momento certo", avalia o empresário
Marcos José Magalhães Pinto, também amigo de Ayrton. "Após ser campeão mundial,
ele tirou um peso dos ombros, o que abriu espaço para um relacionamento."
Acostumado a ter as namoradas a seus pés, Ayrton logo se irritou com a agenda cheia
de Xuxa e, principalmente, com o poder da empresária Marlene Mattos sobre ela. No
início de 1989, o casal estava no Aeroporto do Galeão embarcando para Mônaco
quando Marlene apareceu para dizer que Xuxa não viajaria. A empresária e o
namorado tiveram uma briga cômica pela posse das malas. Xuxa acabou indo. No
Natal de 1989, chateado com a perda do bicampeonato para Prost e estremecido com
a namorada, Senna resolveu fazer uma surpresa para Xuxa visitando-a em Nova York.
Chegou à casa onde ela estava hospedada vestido de Papai Noel. Ela o mandou
embora. Depois do fora humilhante, Senna voltou para o Brasil. Até o fim da vida dele,
Xuxa lhe telefonava periodicamente. Rodrigues não descobriu o que conversavam,
mas, segundo amigos, o piloto costumava ficar deprimido depois de receber essas
Senna não fazia questão de ser amado pelos colegas de pista. O profissionalismo e o
espírito competitivo muitas vezes eram percebidos apenas como grosseria. A histórica
briga com Alain Prost, o também lendário tetracampeão francês, foi iniciada por
Senna. Em 1989, os dois pilotos tinham um pacto na McLaren, a equipe de ambos.
Para evitar acidentes, um não ultrapassaria o outro na primeira volta. Na segunda
corrida após o pacto, no malfadado circuito de Ímola, na Itália, Ayrton ultrapassou
Prost e manteve a liderança até o fim. O bom relacionamento dos dois acabou aí.
Senna era bom e sabia disso. Pela consciência que tinha de seu valor, era muitas
vezes considerado arrogante. Era um titã para negociar contratos. No início de 1988,
não havia ainda ganho nenhum título, mas fechou com a McLaren por um valor
superior ao que recebia o tricampeão Nelson Piquet. Em 1993, quando já era de longe
o piloto mais bem pago de todos, pediu ainda mais, 1 milhão de dólares por grande
prêmio. Para conseguir captar tal valor, simulou uma briga com Ron Dennis. Ele
ameaçava parar de correr, os dois trocavam farpas pelos jornais, e o patrocinador
comparecia com o dinheiro, que era depositado em sua conta corrida a corrida, às
vésperas dos treinos classificatórios. Ayrton, na época, gostava de repetir o mantra
"no money, no race" – sem dinheiro, nada de corrida.
O trecho do livro que narra a morte de Senna acrescenta ainda mais drama aos atos
finais de sua vida. O autor tenta explicar os motivos pelos quais o piloto tinha o rosto
crispado naquele histórico momento em que uma câmera da TV Globo captou sua
imagem, com o olhar perdido, apoiado sobre o aerofólio da Williams azul e branca
pouco antes da largada da corrida. Na sexta-feira 29 de abril, Senna vira o carro de
Rubens Barrichello se espatifar em Ímola. Ele gostava de Rubinho. Meses antes, no
Japão, eles foram juntos a um parque da Disney. Comeram cachorro-quente em uma
barraquinha e deram início ao que seria um convívio bem mais pacífico do que tivera
com Nelson Piquet. No sábado, véspera da própria morte, Senna viu pela primeira vez
a morte de um piloto na Fórmula 1 – a do austríaco Roland Ratzenberger.
Na véspera da corrida fatídica, revela o livro, Senna teve um dissabor de outra ordem.
Seu irmão, Leonardo, levou para ele uma fita cassete no quarto do hotel. Nela, havia a
gravação de uma conversa telefônica de Adriane Galisteu com um antigo namorado. A
quinta e última mulher da vida de Senna foi, segundo seus amigos, a que mais lhe fez
bem. Com Adriane, o piloto começou a aproveitar a vida como nunca antes havia feito,
além de se tornar mais afável e bem-humorado. Ele pensava em se casar com
Adriane. "O Ayrton era muito sério, ele sempre namorava para casar", diz o amigo de
infância Alfredo Popesco, hoje trabalhando numa concessionária da família Senna. No
grampo feito no apartamento de Senna em São Paulo, o antigo namorado de Adriane
zombava do piloto, dizendo que era melhor do que Ayrton na cama. Uma besteira.
Nada na fita sugeria que Adriane estivesse traindo Senna ou mesmo que tivesse
concordado com o comentário machista do ex-namorado. Mas, para quem conhecia
Ayrton, a demonstração de intimidade entre a namorada e um outro homem na
conversa gravada já seria motivo de crise. Na noite anterior a sua morte, Senna
telefonou para Adriane, que estava em Portugal. Alertou-a de que depois da corrida
em Ímola queria ter com ela uma conversa séria. Procurada por VEJA, Adriane
informou, por meio de sua assessoria, que só se manifestaria depois de ler o livro.
Senna poderia ter vários focos de preocupação quando entrou, naquele 1º de maio, no
cockpit de seu carro – mas não foi isso que o matou. O autor da biografia endossa a
tese de que o acidente se deu por falha mecânica. Senna tentou fazer a curva
Tamburello, mas o carro, por uma quebra na coluna de direção, não obedeceu a seu
comando, espatifando-se a 300 quilômetros por hora. Não há no livro novas
evidências sobre o caso, provavelmente o acidente mais investigado da história do
esporte. A biografia narra, no entanto, um episódio envolvendo Frank Williams, o dono
da equipe pela qual Ayrton corria quando morreu, que joga novas luzes sobre a
discussão. Em março de 1995, Williams teria procurado a família Senna em São Paulo
para dizer que concordava com a tese da falha mecânica. Trata-se de um fato crucial,
pois na mesma época os advogados de Williams insistiam na teoria oposta – a da falha
humana – para defender a equipe no processo que se arrastava na Itália.
A leitura do livro permite reviver a emoção das vitórias marcantes de Ayrton Senna. A
Fórmula 1 atual tem como característica a hegemonia indisputada do alemão Michael
Schumacher e de sua Ferrari. A superioridade de ambos é tão flagrante que eles
parecem pertencer a uma outra categoria do automobilismo, acima da Fórmula 1. A
era Senna, em contraste, foi marcada por encarniçadas rivalidades pessoais,
literalmente turbinadas pelo fato de que as diferenças tecnológicas entre as equipes
eram menores. Quando Senna começou a correr na categoria máxima do
automobilismo, os carros eram movidos a motores cuja força era potencializada por
uma turbina. Esse dispositivo, hoje proibido na Fórmula 1, permitia injetar nos
motores uma quantidade maior da mistura ar-gasolina, o que lhes conferia força
descomunal. Nesse período, a aerodinâmica contava menos. Freios bons e pilotos
ousados faziam maior diferença. Senna sentiu-se à vontade nesse meio.
Entre os melhores se contavam Alain Prost, com sua maneira cartesiana de dirigir, e
Nelson Piquet, com sua mistura de ímpeto e malandragem. Havia também o inglês
Nigel Mansell, o menos técnico e mais agressivo dos pilotos do primeiro time. Senna, o
homem que descobria pontos de ultrapassagem onde ninguém ousava e varejava os
circuitos à caça dos milésimos de segundo que faziam a diferença, era o melhor de
todos. Não por acaso. A Fórmula 1 era sua vida. Senna não gostava de ler – irritava-o
ficar muito tempo sentado, a não ser que fosse dentro do cockpit de um carro. Quando
viajava, não visitava exposições nem ia a concertos. Não apreciava vinhos – bebia
apenas para ficar de porre, quando estava eufórico ou deprimido. Senna nasceu para
pilotar – e fez isso tão bem quanto os legendários Juan Manuel Fangio e Jim Clark, aos
quais era freqüentemente comparado. Ao lado deles, Ayrton Senna forma a tríade dos
que, nesse esporte, merecem ser chamados de gênios.
O boato ferino
Acidente premeditado
Namorada virgem
O telefonema grampeado
O plano teatral
A razão da morte