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O inferno são os outros 1

Organização e concepção: Janaína Russeff.

PERSONAGENS

PEDRO: PORTEIRO do purgatório CAPETINHA: assistente de Fogo nas ventas

JOÃOZINHO: jovem que morreu ÂNGELO: anjo

FOGO NAS VENTAS: demônio ÁLVARO: anjo

(Música. Purgatório. Luz acende. O porteiro sentado mexe em alguns papéis sobre sua
mesa.)

PORTEIRO (desanimado, para a plateia): Ai, que saco que é a minha vida. Que tédio...
Dias e dias infinitos... sentado aqui... entre o céu e inferno... dando um rumo para esse
monte de alma que aparece por aqui... Que tédio! Eu estou cansado disso tudo aqui!
(pensando) Deus podia arrumar um substituto para mim... (sorri) E aí eu podia curtir minha
aposentadoria...

(Joãozinho entra em cena do outro lado do palco. Olha para todos os lados tentando
reconhecer o lugar)

JOÃOZINHO (confuso): Que lugar é esse? Onde eu estou? Como eu vim parar aqui? Eu
estava...

PORTEIRO (observando Joãozinho): Mais uma alma perdida! (suspira) Céus! (chamando)
Ei, você! (Joãozinho não ouve) Oh gordinho.... psiu... ei... Venha aqui!

JOÃOZINHO: Eu?

PORTEIRO (impaciente): Não... ele atrás de você... (para a plateia) Que inferno!

(Joãozinho olha para trás sem entender)

1 Texto produzido nas aulas de Teatro com alunos do 8º ano. Os jogos e improvisos teatrais são indutores para a
criação coletiva dos esquetes. A criação parte da experiência prática e posteriormente é transcrita e
transformada em texto teatral. A condução e a organização do texto é realizada pela professora Janaína
Russeff.
"É permitida a reprodução sem fins lucrativos, total ou parcial desta obra, desde que citada a fonte." Contato:
janarusseff79@gmail.com
© Todos os direitos são reservados.
PORTEIRO (irritado): É você mesmo... oh, coisa fofa...

JOÃOZINHO: Eu? (sorri) Ah... (aproximando do Porteiro) Que lugar é esse?

PORTEIRO (desanimado): Bem-vindo ao purgatório, aqui... (percebendo que Joãozinho


não está prestando atenção nele, irrita-se.) Ô sua rolha de poço, presta atenção! Bem-
vindo ao purgatório, aqui você vai saber se vai pra o céu ou pra o inferno. E euzinho, sou o
responsável por decidir seu futuro, pós morte!

JOÃOZINHO (confuso): Purgatório? Como assim? Mas eu... eu... eu morri?

PORTEIRO (irônico): Não, não! O que você acha?

JOÃOZINHO (assustado): O quê? Eu morri? (chora) Como assim? Eu estava lá... No


restaurante... era... era meu aniversário... estava toda minha família... (chora ainda mais)
Eu estava tão feliz!! Eu estava com meus amigos...

PORTEIRO (irritado): Você estava na Tijuca?

JOÃOZINHO (soluçando): Sim estava... estava (assoa o nariz de maneira exagerada) Eu...
Eu... (lembrando) Estava na hora de cortar o bolo... Ai... Ah, de repente todo mundo
começou a correr... A gritar... e eu não conseguia correr...

PORTEIRO (sem emoção): Ai você tomou um tiro e morreu... acontece nas melhores
famílias... no Rio de Janeiro sobretudo...

JOÃOZINHO (assustado): Insensível... A violência não pode ser uma coisa normal...

PORTEIRO (suspirando fundo): E não é... realmente é uma pena... a violência é reflexo de
um descaso dos nossos governantes e blábláblá... Vamos ao que interessa... Você ....

JOÃOZINHO (bravo): Não! Não é blábláblá... isso é sério! Quantas vidas estão sendo
perdidas com essa violência que vivemos?

(Porteiro olha entediado)

JOÃOZINHO: Até quando vamos assistir a tudo isso... precisamos nos mobilizar... fazer
alguma coisa...

PORTEIRO (rindo, para a plateia): Precisamos... hahaha... tolinho. (para Joãozinho) Oh,
meu querido... deixa de história, não entendeu ainda que você... morreu ?

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OÃOZINHO (dramático): Então eu morri mesmo? E a minha família? Por que tinha que ser
eu?

PORTEIRO (segurando uma prancheta): Não tenho nada a ver com isso. Só preciso
preencher seu cadastro para decidir se você vai para o céu ou para o inferno...

JOÃOZINHO (desanimado): Céu ou inferno... que diferença isso faz...

ORTEIRO (olhando a ficha): A diferença é como você quer viver daqui pra frente... (voz
infantil) Com os anjinhos ou com os capetinhas... (pega uma caneta, muda o tom) Me
diga o seu nome.

JOÃOZINHO: Joãozinho da Silva... (pensando) anjinhos... esses são os piores... lobo em pele
de cordeiro...

PORTEIRO: Tá certo... também não acredito nos anjos... (conferindo)

PORTEIRO: 26 anos, não é?

JOÃOZINHO: Não, 25. Não deu tempo de completar 26... (chora) morri de tarde, mas eu
nasci de noite...

PORTEIRO (agressivo): Dane-se! (suspirando fundo) Bom, estou vendo aqui na sua ficha,
que você não foi uma pessoa nem muito boa e nem muito ruim. Não fez nada muito
significativo na vida ... não fez o mal, mas também não fez o bem... É, uma pessoa, assim,
assim... (para a plateia) Que preguiça de gente assim... (para Joãozinho) Então eu vou
ouvir os anjos e os demônios para decidir. Quem argumentar melhor leva você!

JOÂOZINHO: Como assim, o meu destino será decidido por eles?

PORTEIRO: Assim é a vida, não decidimos nada! (anunciando) Que entrem os anjos e os
demônios! (Estala os dedos. Entram os anjos pela direita e os demônios pela esquerda.)

PORTEIRO: Demônios, é com vocês? (pega o relógio e marca o tempo) Um minuto!

FOGO NAS VENTAS (para Capetinha): Olha, Capetinha, ele é bem gordinho, hein? Deve
saber cozinhar! Fazer umas comidinhas boas...

(Capetinha pega uma fita métrica e a coloca na barriga de Joãozinho, para medi-la.)

CAPETINHA: É verdade! Aém de bom cozinheiro tem cara de ser alto astral... de não ser
apegado as pequinesas da vida...

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FOGO NAS VENTAS: Verdade... ele parece um pouco sem graça... mas nada como o
choque da realidade infernal para acertar as coisas...

CAPETINHA: Verdade... se bem que as aparências enganam... lembra aquele último?

FOGO NAS VENTAS: Putz, nem me fale... um chato... mesquinho... falso moralista... Mas
eu acredito nas pessoas... Vamos dar uma chance para ele!

CAPETINHA: Sim... afinal é sempre bom gente nova para dar aquela animada...

FOGO NAS VENTAS: Isso.... (para Joãozinho) Venha conosco! Aqui você pode ser quem
você é... comer o quanto quiser, ou queimar essas suas gordurinhas aqui no calorzinho do
inferno.... aumentar as habilidades na cozinha. Ou não... na verdade... aqui você pode ser
você!

CAPETINHA: Isso... não nos preocupamos com nada além disso...

JOÃOZINHO: Ser quem eu quiser? Ninguém vai me chamar de rolha de poço, fofo,
gordinho... e nem me criticar se como ou não muito... e...

PORTEIRO (interrompendo): Pronto! Acabou o tempo de vocês.

(Capetinha e Fogo nas Ventas ficam olhando para o porteiro. O porteiro pega um copo
d’água que estava em cima de sua mesa e oferece a Joãozinho.)

PORTEIRO (anunciando): Anjos, agora é com vocês. (pega o relógio de novo) Um minuto!

ÁLVARO (tom falso, como uma propaganda de televisão): Venha para o céu! Aqui, você
não vai ser gordinho, porque no céu todos somos lindos! Perfeitos! Esbeltos!

ÂNGELO: Sim, sarados, malhados! Estamos acima do bem e do mal... fazemos o bem
sempre!

ÁLVARO: Trabalhamos para sermos os melhores! Os mais eficientes!

ÂLVARO: Assim que você entrar no céu vai emagrecer instantaneamente. Você será
magro e perfeito, como nós.

JOÃOZINHO: Como assim? Perfeito? Eu não sou...mas eu gosto de ser como eu sou... eu...
eu... que horror... vocês deviam pensar sobre isso que estão falando...

ÂNGELO: Ah, claro ... temos que gostar de quem somos... nos aceitar... ( para Álvaro)
Mais um gordinho com alta estima, o que andam fazendo lá em baixo, hein?

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ALVARO (para Angelo): Putz nem me fale... trabalhando a empatia... af ( para Joaõzinho)
Mas não vamos nos apegar ao pequenos detalhes... o que importa é você será ainda
mais...

ALVÁRO e ANGELO: Lindo! Venha para o céu! Venha já! (sorriem falsamente)

PORTEIRO: Tempo acabado! (desanimado) Pronto. Discursos finalizados. (para Joãozinho)


Eu ainda não decidi o seu destino porque não prestei atenção no que eles falaram.
Porque não estou nem aí. (ri) Porque para mim tanto faz... porque eu quero é me
aposentar! Então vou deixar você mesmo decidir para onde você que ir.

(Anjos e demônios olham Joãozinho)

JOÃOZINHO: Eu acho que eu vou para.... o inferno.

ALVÁRO e ANGELO (chocados): O quê? Como assim? Ninguém escolhe o inferno!

JOÃOZINHO: Mas eu escolho!

ÂNGELO: Como você recusa a beleza eterna? A perfeição... morar no paraíso??

JOÃOZINHO (decidido): Cansei de querer agradar aos outros! Eu quero poder ser quem
eu sou! Não me acho feio... e nem acho que preciso emagrecer para ser feliz! Sou o que
sou. Não quero continuar sofrendo para agradar aos outros! Eu vou para o inferno mesmo.
Não sei é melhor ou pior... mas pelo menos me permitiram ser eu mesmo.

FOGO NAS VENTAS (para os anjos): É, aqui é melhor!

CAPETINHA: Otários!

ÂNGELO (para os diabos): Ridículos! (para Joãozinho) Você tem noção que você está
escolhendo ir para o inferno?? Lugar sombrio... quente...

JOÃOZINHO: Af, para com isso... De que adianta um lugar lindo, fresco... com pessoas
como vocês? O inferno são os outros! (para os anjos e o porteiro) To decidido! Vou para o
inferno...

(Demônios cumprimentam Álvaro)

ÁLVARO: Quem esse gordinho pensa que é? Nunca fomos rejeitados!

(Joãozinho e demônios vão saindo, mas Ângelo o para com o poder de sua mente.)

ÂNGELO (indignado, gritando): Como assim, você vai para o inferno por escolha própria?

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ÁLVARO (irritado, gritando): Você não pode querer ir para o inferno e continuar a ser
gordo! Isso é absurdo!

JOÃOZINHO: Quer saber, procurem outro para fazer parte dessa existência vazia... fútil e
sem sentido!

CAPETINHA (rindo):Ih áááá!

PORTEIRO (irritado, gritando) Chega! (para os anjos) O que vocês pensam que estão
fazendo? Ele pode sim ir para o inferno, se ele quiser! (calmo, para Joãozinho.) Vai... se
adianta!

PÉ DE VENTO (para os anjinhos): Valeu, losers! (ri)

(Os demônios e Joãozinho saem felizes e fazendo planos)

ANJOS (gritando): Nãooo!!! Não somos perdedores! Somos os melhores!!!

PORTEIRO (irritado, gritando): Ah!! Chega! Vaza daqui!

(Os anjos dão um chilique e saem. O porteiro senta novamente)

PORTEIRO (para a plateia): Af, preciso me aposentar!

(Música final. Luz apaga)

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