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psicanalisando a

sabedoria Popular
Temos o costume de achar que grandes ideias só surgem da cabeça de grandes gênios, ou que são
frutos de longas e profundas reflexões. Mas quando paramos pra analisar aqueles ditos populares,
logo percebemos que muitas das grandes ideias são, na verdade, grandes estruturações e
desenvolvimentos de ideias como aquelas, que podemos encontrar em qualquer feira livre de bairro,
ou em qualquer conversa de butiquim. Vejamos alguns fragmentos dessa, muitas vezes milenar,
sabedoria popular.

diga-me com quem andas...

...que te direi quem és. Mas o que será mesmo que isso quer dizer? A ideia central, que não é tão
evidente assim, já que o "tu" (a palavra mesmo), está implícita, é aquela que aponta ao fato dos
iguais andarem juntos, mesmo quando o sujeito em questão não percebe. Nada mais psicanalítico do
que evidenciar a alguém que as pessoas ao seu redor muito tem a dizer sobre ela mesma.

Nossas relações não são simples e estanques: elas são complexas e se modificam ao longo do
tempo, mesmo que minimamente. Mas é fácil notar, após algum tempo de reflexão, que certas
pessoas sempre se relacionam com outros certos tipos, quase como se houvesse alguma
determinação atuante. Os mais sádicos vão preferir os mais masoquistas; os mais dominadores vão
buscar os mais passivos; e os mais melancólicos vão preferir os mais melancólicos. Longe da
simples lógica dos iguais se atraírem, também percebemos que os complementares também se
atraem. A psicanálise corrobora esse fragmento de sabedoria.

quando um não quer...

...dois não brigam. Mais um fragmento corroborado pela psicanálise. Eu mesmo gosto de dizer que
tudo nessa vida é uma via de mão dupla, já que só assim que uma relação pode se estabelecer: não
existe relação a um, somente a partir de dois. Mas o que podemos entender dessa ideia de dois não
brigarem quando um não quer?

Ainda na esteira no fragmento anterior, ao menos em alguma dose, podemos dizer que o
masoquista, quando se cansa desse lugar, abandona a relação, deixando um pouco de ser masoquista
pra ser alguma outra coisa, que não necessariamente o sádico. Assim como pode acontecer ao
sádico, e pelo mesmo processo. Não há como negar que o ditado esteja certo, pois basta que uma
das partes abandone verdadeiramente a relação pra que a briga se interrompa. Mais um ponto à
sabedoria popular.
o lobo perde o pelo...

...mas não perde o vício. Essa deve ser uma das ideias mais profundas da qual a sabedoria popular
não consegue vencer a superfície, já que ela não opera pelo método científico como faz a
psicanálise, por exemplo. Quando aquele mesmo desastre acontece a alguém, quando aquela pessoa
perde o seu pelo mais uma vez, a gente começa a desconfiar se a pessoa, de alguma forma, não
desejou aquilo mesmo. E nenhuma outra ciência que não a psicanálise pra mostrar que esse desejo
de perder o pelo é mais do que plenamente possível.

De forma diametralmente oposta ao que o senso comum consegue apreende, muitas vezes a pessoa
busca mesmo aquele problema, busca mesmo aquele desastre, busca mesmo causar aquela
sabotagem. Claro que seria temerário considerarmos todos os desastres como buscas,
principalmente se tomarmos essa busca como consciente. Um ótimo exemplo da análise
psicanalítica sobre essa questão é a análise das fobias, sobre as quais se explica que daquilo que se
tem medo conscientemente se deseja inconscientemente. Claro que a maioria dessas buscas
inconscientes sejam por substitutos simbólicos do objeto fóbico, mas a dinâmica permanece válida e
a mesma. Mais uma vez o povo está de mãos dadas com a psicanálise.

uma andorinha...

...não faz verão. E dificilmente o faria, já que muito pouco faz um indivíduo sozinho, sendo ele do
tipo que for. Mas deixando de lado este viés mais socialista da questão, assim como uma andorinha
não faz verão, um sintoma não faz neurose. Resta saber quantos sintomas fazem a neurose; ou, se
quisermos ser mais criteriosos ainda: o que define uma neurose?

Não é um questão fácil, mas claramente o ditado está certo. Não podemos nos esquecer de um dos
ensinamentos mas valiosos que o mestre Freud nos deixou: às vezes um charuto é só um charuto. Se
duas amigas se beijam numa festa, seja na juventude, seja na idade adulta, não há garantias de uma
homossexualidade certa; e o mesmo vale pra dois amigos, nas mesmas condições. Ter esquecido
uma data importante pro casal não significa o enfraquecimento do amor. Um episódio de grande
intensificação de qualquer mania, não constrói um maníaco; e assim por diante. Em resumo: nem
100 andorinhas garantem o verão, e nem 100 sintomas garantem uma neurose.

santo de casa...

...não faz milagre. Infelizmente. Mas não poderia ser diferente, já que conhecemos nossos próximos
de um jeito muito mais emocional do que acreditamos e gostaríamos. Sendo essas relações muito
mais profundas, e muito mais profundamente emocionais que as demais, não podemos fazer muito.
Às vezes só o afastamento ajuda.

Esse é o ditado que aponta pros empecilhos de se analisar pessoas próximas, por exemplo, apesar do
próprio Freud ter levado a própria filha, Anna, ao divã. Nas nossas relações mais próximas, por
termos compartilhado e construído várias situações em conjunto, perdemos muito da nossa
objetividade, o que torna o nosso olhar muito mais subjetivo, aproveitando a tão conhecida
dicotomia. Por estarmos envolvidos emocionalmente, perdemos a pessoa como foco e também nos
colocamos nas análises e conselhos; sem falar nos possíveis interesses egoístas que nutrimos em
relação a essa ou aquela situação, sem nem percebermos. Além disso, podemos muito bem sermos
nós mesmos parte do problema, e mais uma vez sem percebermos. O melhor conselheiro mesmo, se
é que existe tal definição, é aquele com o olhar mais fresco, mais afastado, mais objetivo, que vai
conseguir perceber o que poucos perceberiam, e que também será olhado pela pessoa com olhos
igualmente menos subjetivos, apesar de, talvez, mais idealizados. É diz outro ditado: ninguém é
profeta na própria terra.
um bom começo

Por mais que a sabedoria popular não tenha a profundidade científica atual, é impossível
desconsiderá-la como tal. A sabedoria das (e nas) feiras é, muitas vezes, muito mais útil do que o
saber que nos faz pousar sondas em asteróides em órbitas de sabe-se lá qual tipo, estando a uma
distância que ainda nenhum astronauta venceu. Desconfiemos mais dos cientistas do que os
feirantes. Mas não durante uma pandemia...

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