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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI

CENTRO DE EDUCAÇÃO DE BIGUAÇU


CURSO DE DIREITO

O DEBATE EM TORNO DO TEMA DA POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO


DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS A PARTIR DE RONALD DWORKIN

ANNA CAROLINA MACHADO DO ESPÍRITO SANTO

Biguaçu (SC)
2008
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE BIGUAÇU
CURSO DE DIREITO

O DEBATE EM TORNO DO TEMA DA POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO


DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS A PARTIR DE RONALD DWORKIN

ANNA CAROLINA MACHADO DO ESPÍRITO SANTO

Monografia apresentada como requisito à


obtenção do grau de Bacharel em Direito na
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI,
sob orientação da Prof. Dra. Daniela
Cademartori.

Biguaçu (SC)
2008
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a
coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a Orientadora de toda e qualquer
responsabilidade acerca do mesmo.

Biguaçu, 16 de junho de 2008.

Anna Carolina Machado do Espírito Santo


Graduanda
PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do


Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Anna Carolina Machado do Espírito Santo,
sob o título “O debate em torno do tema da possibilidade de adoção de políticas de ação
afirmativa nas universidades públicas brasileiras a partir de Ronald Dworkin”, foi submetida
em 16 de junho de 2008 à banca examinadora composta pelas seguintes professoras: Prof.
Dra. Daniela Cademartori, Prof. MSc. Eunice A de Souza Trajano e Prof. Dra. Helena
N.P.Pitsica e aprovada.

Biguaçu, 16 de junho de 2008.

Prof. Dra. Daniela Cademartori


Orientadora e Presidente da Banca
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha mãe Maria da Trindade


Machado e ao meu pai Vicente Francisco do Espírito
Santo, pelo amor incondicional, por todo carinho,
incentivo e apoio em todos os instantes.
AGRADECIMENTO

À minha orientadora Professora Dra. Daniela


Cademartori, por sua delicadeza, compreensão, dedicação
e competência durante todo o trabalho.

À Professora MSc. Caroline Ferri, por toda atenção,


dedicação, disponibilidade, compreensão, competência,
incentivo e acompanhamento, desde a fase de elaboração
do projeto que culminou com a presente monografia.

À Renata Feltrin e Miryan Deyse Zacchi, supervisoras de


estágio não obrigatório, pela amizade, auxílio,
compreensão e aprendizado.

Ao meu namorado, Maykon, pelo amor, carinho,


companheirismo, incentivo e cumplicidade.

Aos meus irmãos, Vicente, Renata, Rafael e André, pelo


incentivo e paciência.

Às minhas queridas amigas, Gio e Gisa, por todo


companheirismo e momentos que passamos juntas durante
a graduação.

À todos que, embora não citados, ajudaram de alguma


forma para a realização deste trabalho.

Muito obrigada!
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela
cor de sua pele, por sua origem ou por sua
religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender e, se podem aprender a odiar,
podem ser ensinadas a amar”.
Nelson Mandela
SUMÁRIO

RESUMO.................................................................................................................................10
ABSTRACT ............................................................................................................................11
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12
1. O PRINCÍPIO JURÍDICO DA IGUALDADE E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
DE 1988....................................................................................................................................14
1.1 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE.................................14
1.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A CONSTITUIÇÃO ...............................................16
1.3 IGUALDADE FORMAL E MATERIAL..........................................................................18
1.4 CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE ........................................21
2 RONALD DWORKIN E AÇÃO AFIRMATIVA.............................................................27
2.1 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE: O DIREITO A IGUAL TRATAMENTO E AO
TRATAMENTO COMO IGUAL - RONALD DWORKIN....................................................28
2.2 SENTIDO UTILITARISTA E SENTIDO IDEAL ............................................................29
2.3 OBJETIVOS E FUNDAMENTOS DOS PROGRAMAS DE AÇÃO AFIRMATIVA ....32
2.3.1 Caso Alan Bakke .............................................................................................................35
2.3.2 Caso Sweatt e DeFunis ....................................................................................................38
3 INTRODUÇÃO AO DEBATE BRASILEIRO SOBRE A POSSIBILIDADE DE
ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS..................................................................................................42
3.1 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE AS AÇÕES AFIRMATIVAS E A EXPERIÊNCIA
AMERICANA ..........................................................................................................................42
3.1.1 A Doutrina “separados mas iguais”.................................................................................43
3.1.2 Os reflexos da segunda guerra mundial na sociedade americana....................................44
3.1.3 Origem da ação afirmativa e primeiras políticas .............................................................46
3.2 CONCEITO DE AÇÃO AFIRMATIVA ...........................................................................48
3.2.1 Justiça Distributiva e Justiça Compensatória ..................................................................51
3.3 O DEBATE BRASILEIRO EM TORNO DO TEMA DA POSSIBILIDADE DE
ADOÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS ....................................................................................................53
3.3.1 A abolição da escravatura e seus reflexos para a população negra na sociedade brasileira
..................................................................................................................................................55
3.3.2 Situação atual em relação à diferença das condições sociais e econômicas entre a
população branca e a população negra .....................................................................................57
3.3.3 ARGUMENTOS SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DA AÇÃO AFIRMATIVA NAS
UNIVERSIDADES BRASILEIRAS .......................................................................................59
3.3.3.1 Violação ao princípio da igualdade .............................................................................59
9

3.3.3.2 Pobreza.........................................................................................................................61
3.3.3.3 Miscigenação................................................................................................................63
3.3.3.4 Mérito ...........................................................................................................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................67
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................71
RESUMO

Este trabalho monográfico aborda a possibilidade de adoção da política de ação afirmativa nas
universidades públicas brasileiras. A ação afirmativa é uma política social que visa a
concretização do princípio constitucional da igualdade. Para uma maior compreensão, o
presente trabalho apresenta a evolução do conceito de igualdade, que teve sua emergência
como princípio jurídico em documentos constitucionais promulgados logo após as revoluções
do final do século XVIII. Essa igualdade era uma igualdade meramente formal. No século
XX, onde, com o advento do Estado Social houve uma releitura do princípio da igualdade, o
conceito de igualdade meramente formal passou a ser questionado. Passa-se a compreender
que o princípio da igualdade possui uma outra dimensão além da igualdade formal, qual seja,
a de igualdade material que nada mais é do que um instrumento para a implementação de uma
igualdade efetiva. A ação afirmativa é uma política social que visa concretizar a igualdade
material, através da proteção e defesa de pessoas e/ou grupos desfavorecidos socialmente,
com o intuito de propiciar um estado de igualdade, no plano fático, que a igualdade formal,
sozinha, não conseguiria implementar. Da análise das teses de Ronald Dworkin, observa-se
que a ação afirmativa compreende o direito ao igual tratamento e ao tratamento como igual.
Os Estados Unidos da América foi o país pioneiro na adoção de ação afirmativa. Neste país
essa política foi instituída com vistas ao combate da marginalização social e econômica do
negro na sociedade americana. No Brasil o debate sobre a implementação de políticas de ação
afirmativa nas universidades públicas brasileiras tem ganhado cada vez mais espaço nos
últimos tempos. É grande a disparidade de condições econômicas e sociais, entre a população
negra e a população branca, reflexo do período escravocrata, tudo isto somado ao preconceito
racial. Por este motivo, para combater as desigualdades raciais são necessárias políticas de
ação afirmativa. A ação afirmativa visa alterar, em longo prazo, o quadro econômico em que
estão os negros. Dentre outros objetivos busca criar modelos de representações e uma
diversidade racial nos cursos das universidades, bem como romper com a reprodução das
desigualdades raciais.

PALAVRAS-CHAVE: igualdade, Ronald Dworkin, direito ao tratamento igual e ao


tratamento como igual, ação afirmativa.
ABSTRACT

This monographic essay approaches the possibility of adopting and affirmative action policy
within the Brazilian public universities. Affirmative action is a social policy which focuses
on concretizing the constitutional principle of equality. In order to better understand it, this
essay presents the evolution of the equality concept, which had its arousal as a juridical
principle in constitutional documents promulgated right after the revolutions in the end of the
18th century. This equality was merely formal. With the advent of the Social State in the 20th
century, there was a rereading of the equality principle where the concept of a merely formal
equality started to be questioned. It is then understood that the principle of equality possesses
a dimension other than that of formal equality, that is, material equality, which is nothing
more than a tool for the implementation of an effective equality. The affirmative action is a
social policy that aims at concretizing material equality, through the protection and defense of
people or groups that are socially less favored, with the objective of enabling a state of
equality in the phatic level, where formal equality alone would not be able to implement.
From the analysis of Ronald Dworkin's theses, we can observe that the affirmative action
englobes the right to equal treatment and treatment as equal. The United States of
America pioneered with the adoption of affirmative action. In that country, this policy was
established in order to fight social and economical marginalization of the black citizens in
American society. In Brazil, the debate on the implementation of affirmative action policies in
public universities has gained more and more space lately. The disparity of economical and
social conditions is large between the black and the white population, a reflex from the
slavery period, all that being added to racial prejudice. Thus, in order to fight racial inequality,
affirmative action policies are necessary. Affirmative action aims at altering, in the long run,
the black population's economical scenario. Among other objetives, it intends to create
representation models and a racial diversity in university courses as well as breaking the
reproduction of racial inequalities.

KEYWORDS: equality; Ronald Dworkin; right to equal treatment; treatment as equal;


affirmative action.
INTRODUÇÃO

No Brasil o debate que tem ganhado cada vez mais espaço nos últimos tempos diz
respeito à implementação de políticas de ação afirmativa nas universidades públicas
brasileiras, mas precisamente sobre a adoção do sistema de cotas para negros, grupo
considerado excluído na sociedade.

A ação afirmativa consiste em uma política, pública ou privada, que tem como
objetivo aumentar o número de membros de grupos excluídos socialmente, em decorrência
de serem vítimas de discriminação, presente ou passada, de modo a proporcionar a eles a
mesma oportunidade, tratamento e respeito que gozam os demais indivíduos não
contemplados pela política.

Os Estados Unidos da América foi o país pioneiro na adoção de políticas de ação


afirmativa, sendo que as primeiras políticas na área da educação surgiram na década de 60,
com o intuito de promover a inclusão dos negros. Neste país esta política foi instituída com
vista ao combate da discriminação, preconceito e a conseqüente marginalização social e
econômica do negro e outras minorias na sociedade americana.

No Brasil a situação da população negra não é diferente. A população negra vê-se à


margem da sociedade, privada de oportunidades e de uma vida social digna. Esse fato se
faz presente em vários indicadores sociais, que apontam a disparidade de condições sócio-
econômicas entre negros e brancos, motivo pelo qual busca-se a adoção destes tipos de
política com o objetivo de reduzir e até mesmo romper com a desigualdade social e
marginalização decorrente da discriminação racial.

Quando se discute sobre a possibilidade de adoção da política de ação afirmativa,


através da modalidade do sistema de cotas nas universidades públicas brasileiras, os seus
opositores, apresentam vários argumentos contrários a sua adoção.

Porém, o argumento mais utilizado é o de que a ação afirmativa não deve ser
adotada já que ela violaria o princípio da igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição
Federal, que garante que todos devem ser tratados igualmente pela lei.

O presente trabalho tem como objetivo demonstrar que o princípio da igualdade


permite a utilização de políticas de ação afirmativa; trazer as análises de Ronald Dworkin,
13

filósofo contemporâneo de grande destaque no cenário americano, reconhecido por abordar o


tema em algumas de suas obras; bem como proporcionar uma introdução ao debate sobre a
possibilidade de adoção deste tipo de política nas universidades públicas brasileiras. Assim,
para a realização deste trabalho foi utilizado o método de abordagem dedutivo.

Para cumprir o propósito acima, o trabalho foi divido em três capítulos que versam,
respectivamente, sobre o princípio da igualdade; as análises de Ronald Dworkin sobre as
ações afirmativas e, por fim, uma introdução ao debate sobre a possibilidade de
implementação das políticas de ação afirmativa nas universidades públicas brasileiras.

O primeiro capítulo tratará do princípio da igualdade, a evolução de seu conceito, a


possibilidade da criação de leis estabelecendo tratamento diferenciado.

Na seqüência, o segundo capítulo versará sobre as análises de Ronald Dworkin sobre a


concepção de igualdade, a distinção formulada pelo autor entre o direito a igual tratamento e o
direito ao tratamento como igual, bem como sua abordagem sobre dois casos que possuem
grande relevância, como será demonstrado, no que concerne ao histórico da adoção de
políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos, país pioneiro na adoção deste tipo de
política.

Por fim, o terceiro capítulo apresentará a experiência americana, a doutrina “separados


mas iguais”, a origem da ação afirmativa e das primeiras políticas nos Estados Unidos, o
conceito de ação afirmativa e a introdução ao debate brasileiro sobre a possibilidade de
implementação das políticas de ação afirmativa nas universidades públicas brasileiras.

O tema apresenta grande relevância para o país e o direito brasileiro, uma vez que
incide em um dos mais graves problemas sociais, que se encontra enraizado na sociedade, a
qual finge não saber sua existência: a discriminação e a conseqüente exclusão do negro do
processo produtivo e da vida social digna. Não obstante, propicia a discussão sobre uma
temática ainda pouco debatida nas universidades brasileiras.
1. O PRINCÍPIO JURÍDICO DA IGUALDADE E A CONSTITUIÇÃO
BRASILEIRA DE 1988

1.1 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

O reconhecimento da igualdade entre as pessoas e a sua construção enquanto


princípio jurídico sofreu grande mudança de interpretação ao longo da história.

Antes das revoluções liberais do século XVIII (Estados Unidos da América e


França) as pessoas não eram reconhecidas como iguais. Os direitos e deveres de cada uma
“decorriam do pertencimento a um determinado estamento social e não de sua natureza
humana”1, ou seja, os direitos e deveres pertencentes a cada homem eram determinados
pela condição social a que pertenciam, e esta, por sua vez, era fixada de acordo com o
nascimento de cada homem. Assim, a noção de direito estava diretamente atrelada ao
direito de nascença; os direitos de cada homem eram herdados de seus pais.2

Após as revoluções do final do século XVIII3 e a instauração do Estado Liberal, o


princípio da igualdade perante a lei se edificou e passou a integrar os documentos
constitucionais promulgados a partir de então.4

Nesta época, o princípio da igualdade passa a ser compreendido, apenas, como

1
GALUPO, Marcelo. Apud. SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In:
PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR,
2006. p. 65.
2
De acordo com Habermas, a concepção de igualdade prevista nesta época, sob a ótica moderna,
representaria um critério de exclusão social. “Aquilo que seria, por exemplo, um direito para um ateniense,
seria um crime para o escravo. [...] Os direitos, na prática, dependiam do status comunitário de cada
indivíduo. Se fosse mais virtuoso (por sangue ou por conquista própria), possuiria mais direitos. Se menos,
possuiria também menos direitos”. Habermas Apud GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença:
Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. São Paulo: Mandamentos, 2002. p.48-
49.
3
“Apenas a guisa de registro, é na Revolução Francesa que se formaliza a idéia jurídica de igualdade, inserta
no artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Posteriormente, com o movimento
constitucionalista que grassou o mundo, o ideal de igualdade tomou lugar cativo nas constituições
modernas”. SILVA, Fernanda Duarte Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2003. p.33
4
Neste sentido ver GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:
SANTOS, Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as
desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.17.
15

uma construção jurídico-formal segundo a qual, a lei genérica e abstrata, deve


ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador
fazê-la incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os
5
conflitos individuais.

Essa clássica concepção de igualdade tinha como objetivo abolir os privilégios que
gozavam àqueles que pertenciam a um determinado estamento social. Assim, passa-se a
compreender que a lei deve ser igual para todos.

Durante muito tempo o referido princípio foi concebido como garantia para a
efetivação da liberdade e, para alguns pensadores da escola liberal, sua inclusão do rol dos
direitos fundamentais, por si só, representava a garantia de que o princípio da igualdade
estava assegurado. 6

Porém, o que existia até o momento era uma igualdade puramente formal, uma vez
que, embora estivesse prevista em lei, apenas uma elite econômica continuava a ter
privilégios. 7

No século XX, o advento do Estado Social propiciou ao mundo uma releitura do


conceito de igualdade.8 O conceito de igualdade foi questionado com base na constatação
de que a igualdade de direitos não era sinônimo da igualdade de fato, pois a igualdade de
direitos consistia apenas em vedar discriminações, mas não contribuía para que todos

5
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.18.
6
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.18.
7
Sobre o significado da conquista da igualdade passar a ser prevista em lei, Daniel Sarmento tece o seguinte
comentário “Contudo, o avanço foi incompleto. Em primeiro lugar, porque, em profunda contradição com a
afirmação da igualdade, os direitos políticos eram assegurados apenas à burguesia detentora do poder
econômico, através do voto censitário, o que excluía a grande maioria da população da possibilidade de
participar da vida pública e de exercer alguma influência sobre a elaboração das normas a que estaria sujeita.
[...] Naquele cenário, não é de se admirar que a igualdade tenha se tornado um instrumento que beneficiava
apenas uma elite econômica. Tratava-se de uma igualdade apenas formal, que beneficiava apenas uma elite
econômica.” SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN,
Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 65.
8
De acordo com Sarmento, “ao poucos os Estados e as constituições vão reconhecendo novos direitos
voltados para a população mais pobre, que envolviam prestações positivas e demandavam uma atuação mais
ativa dos poderes públicos, voltada para a garantia de condições mínimas de vida para todos. [...] parte-se da
premissa de que a igualdade é um objetivo a ser perseguido através de ações e políticas públicas, e que,
portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveitos dos grupos desfavorecidos. SARMENTO, Daniel.
Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.).
Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 66.
16

tivessem as mesmas oportunidades que daqueles pertencentes a uma posição social


privilegiada. Por este motivo, segundo Guilerme Dray

[...] a concepção de igualdade puramente formal, assente no princípio geral de


igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a
igualdade de direitos não era, por si só suficiente para tornar acessíveis a quem
era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos
socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo
nível de partida.9

A partir de então, ao lado da igualdade formal fez-se necessário consolidar uma


outra dimensão do princípio da igualdade, qual seja a igualdade material, e desde então o
Estado tem a responsabilidade de nivelar as desigualdades sociais, através da garantia, de
forma igualitária, do bem estar social dos indivíduos.

1.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A CONSTITUIÇÃO

Já em seu preâmbulo a Constituição Federal de 1988 arrola, dentre outros objetivos


a serem atingidos, o compromisso de assegurar o exercício dos direitos individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Porém, o seu preâmbulo reflete bem mais do que a preocupação em assegurar os


referidos objetivos. Na verdade

[...] a Constituição Federal de 1988 tem, no seu preâmbulo, uma declaração que
apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a idéia de que não se
tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado
10
para que se chegue a tê-los.

Deste modo, ao se interpretar e fazer incidir na realidade o princípio da igualdade


deve-se buscar a concretização de tais objetivos.

9
DRAY, Guilherme. Apud BARBOSA GOMES, Joaquim. O debate constitucional sobre as ações
afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas
contra as desigualdades raciais. p.19.
10
ROCHA, Carmem Lúcia. Apud. SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial.
In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 66.
17

A Constituição Federal vigente estabelece, no caput de seu artigo 5.°, que “todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. O texto contido no referido
dispositivo consubstancia o conceito de igualdade formal.

Porém, este dispositivo não reflete a realidade social, ou seja, não constitui uma
realidade fática e, em virtude disto, esse texto não pode ser interpretado em seu sentido
literal, pois a igualdade jurídica é mera ficção, na medida em que não garante, por si só, a
igualdade entre as pessoas e causa a “ilusão” de que sua previsão é sinônimo de igualdade
real.

Deve-se observar que o simples fato do princípio da igualdade estar disposto na


Constituição, como direito fundamental, não garante que esta igualdade esteja efetivamente
assegurada. O caput do artigo 5.° veda, somente, a desigualdade, o que não pode ser
interpretado como o mesmo que garantir a igualdade social.

Além disso, o texto do referido dispositivo representa apenas a dimensão de


igualdade meramente formal.

Como assevera José Afonso da Silva:

Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade,


como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com
a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos
igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. 11

Contudo, o conteúdo contido no caput do artigo 5° não deve ser compreendido


apenas no sentido de que a lei deve ser igual para todos. É preciso mais:

A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do artigo 5°, caput, não deve
ser assim tão estreita. O interprete há que aferi-lo com outras normas
constitucionais [...] e, especialmente, com as exigências da justiça social,
objetivo da ordem econômica e da ordem social. 12

Para a efetivação da igualdade no plano fático é mister compreendê-la em suas duas


dimensões, como será exposto a partir de então.

11
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p.214.
12
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p.214.
18

1.3 IGUALDADE FORMAL E MATERIAL

A Constituição Federal Brasileira apresenta duas dimensões do princípio da


igualdade: a igualdade formal, representada através da vedação a tratamento desigual/
diferencial, e a igualdade material, através da qual o Estado é chamado a intervir, a atuar
para garantir de forma igualitária a proteção do Bem-Estar Social dos indivíduos.

Conforme já exposto, com o surgimento do Estado Social, a igualdade deixou de


ser concebida como estritamente formal e passou a dar lugar a uma nova interpretação,
qual seja, a de igualdade material. 13

Deste modo, no Estado Social, busca-se consolidar o conceito de igualdade material


ou substancial.

Ao contrário da igualdade formal, onde impera o formalismo e a abstração, na


igualdade material são levadas em consideração as desigualdades existentes na sociedade e
o Estado, após pesá-las, deve promover mecanismos com o intuito de nivelar as situações
desiguais, e, assim, efetivar a justiça social, “evitando-se o aprofundamento e a
perpetuação das desigualdades engendradas pela própria sociedade”.14

O Estado Social tem como característica ser um produtor de igualdade


material/fática, motivo pelo qual ele fica obrigado “se for o caso, a prestações positivas; a
prover meios, se necessário, para concretizar comandos normativos de isonomia”.15

Na busca pela implementação da igualdade material o Estado passa da posição de


“mero espectador” para uma posição atuante, com vista a concretizar a igualdade prevista
na Constituição, de forma a torná-la real. 16

13
De acordo com Paulo Bonavides, “Deixou a igualdade de ser a igualdade jurídica do liberalismo para se
converter na igualdade material da nova forma de Estado”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 341.
14
No que concerne à nova concepção de igualdade, Joaquim B. Gomes diz o seguinte: “Como se vê, em
lugar da concepção ‘estática’ da igualdade extraída das Revoluções Francesa e Americana, cuida-se nos dias
atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e
à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma
noção ‘dinâmica’, ‘militante’ de igualdade, na qual, necessariamente, são devidamente pesadas e avaliadas as
desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de
maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas
pela própria sociedade”. GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:
DOS SANTOS, Emerson; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as
desigualdades raciais. p. 19.
15
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 343.
19

Desta feita, a igualdade material “trata-se de um conceito que deve iluminar sempre
toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de
direitos”.17

A Constituição Federal em alguns de seus dispositivos expressa a preocupação do


legislador com a efetivação da igualdade material e permite, assim, a aplicação de
tratamento diferenciado.

Como exemplo de dispositivos que compreendem a dimensão da igualdade


material, pode-se citar os artigos 3°, I e III; 7°, XX; 37, VIII; 170, VII, IX que preconizam
o seguinte:

Art. 3° - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:


I – constituir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais.
[...]
Art. 7° - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social;
[...]
XX. Proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos
específicos, nos termos da lei.
[...]
Art. 37, VIII – A lei reservará um percentual dos cargos e empregos públicos
para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.
[...]
Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
VII – redução das desigualdades regionais e sociais
[...]
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob
as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

16
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: DOS SANTOS,
Emerson; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais.
p. 21.
17
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 343.
20

Como se pode observar, ao preconizar a igualdade, a Constituição não se preocupa


apenas em vedar discriminações. Seu objetivo é maior, consiste também em assegurar,
através da utilização dos dispositivos colacionados acima, a implementação da igualdade
material.

Tomado apenas em sua dimensão formal, ou seja, a proibição de tratamentos


discriminatórios, o princípio da igualdade se mostra insuficiente para promover a
realização dos objetivos da República expressos na Constituição, uma vez que as leis
elaboradas a partir de então iriam se restringir apenas a impedir o cometimento de ações
discriminatórias e manifestações de preconceito.18 É necessário então utilizar-se também
da aplicação da dimensão material do princípio da igualdade, pois de nada adianta proibir a
discriminação de tratamento em uma sociedade que é desigual e não criar mecanismos
capazes de reverter este quadro de desigualdade, haja visto que isto seria o mesmo que
perpetuar o quadro que se apresenta.

Ao analisar os dispositivos constitucionais já mencionados, Carmem Lúcia Antunes


da Rocha afirma:

Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa - construir,


erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um
comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações
transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando
da elaboração do texto constitucional. 19

Em virtude das desigualdades existentes é que se busca atingir a igualdade real ou


material, para que através de sua concretização seja possível realizar a equalização das
situações desiguais. 20

Assim, a igualdade prevista na Constituição deve ser concebida, de modo a


contemplar em sua aplicação, as duas dimensões do princípio da igualdade: a igualdade
formal e a material. Por igualdade formal, compreende-se aquela prevista na lei,
representada através da vedação a tratamento desigual, pela qual todos os cidadãos devem

18
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: DOS SANTOS,
Emerson; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais.
p. 41.
19
Carmem Lúcia Antunes da Rocha é professora de Direito Constitucional da PUC de Minas. BARBOSA
GOMES, Joaquim. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: DOS SANTOS, Emerson;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p. 41.
20
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 214.
21

ser tratados igualmente. Já a igualdade material é aquela em que cumpre ao Estado intervir,
e a promover, assim que verificar as desigualdades na sociedade, mecanismos com vista a
concretizar a igualdade no plano fático, ou seja, a igualdade real.

Do exposto acima, compreende-se que o princípio da igualdade, tendo em vista a


sua dimensão material, permite que haja o tratamento diferenciado, em determinadas
circunstâncias, onde restem caracterizadas situações de desigualdades, a fim de que estas
não perdurem.

Isto posto, cumpre realizar uma indagação: existe alguma forma de realizar
tratamento diferenciado sem que haja afronta ao princípio da igualdade?

É o que será discutido a seguir.

1.4 CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE21

Conforme já exposto neste capítulo, o princípio da igualdade (artigo 5º, caput)


comporta duas dimensões: uma chamada de igualdade formal e, a outra, de igualdade
material ou substancial. A última permite a utilização de tratamento diferenciado, em busca
da implementação do princípio da igualdade no plano fático, para que as situações
desiguais sejam niveladas.

Ao proclamar o princípio da igualdade o constituinte buscou fazer com que não


houvesse discriminações, de modo que todos os cidadãos fossem tratados de maneira igual,
bem como que a lei não fosse elaborada em desconformidade com a isonomia.

Porém, a igualdade prevista na Constituição não significa que os indivíduos devam


ser tratados de maneira idêntica, uma vez que “seria absurdo impor a todos os indivíduos
exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem
fazer distinção alguma entre eles [...]”.22

Em função disto a lei, em alguns casos, onde sejam reveladas situações de


desigualdade, deve dispensar tratamento diferenciado.

21
Com o objetivo de fundamentar este tópico, será utilizada a obra: MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 48p
22
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 11.
22

Aliás, cumpre observar que

Sem embargo, [...] o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e
precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada
mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas
em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a
algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a
outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de
obrigações e direitos.23

É certo que a constituição veda discriminações, motivo pelo qual as pessoas não
podem ser discriminadas em função da raça, sexo e convicção religiosa.

Contudo, “descabe, totalmente, buscar aí a barreira insuperável ditada pelo


princípio da igualdade, pois “há hipóteses em que estes caracteres são determinantes do
discrímen”, mas “[...] em nada se choca com a isonomia”. 24

A respeito deste assunto, a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª


Região tem se manifestado no seguinte sentido:

É simplismo alegar que a Constituição proíbe discrimen fundado em raça ou em


cor. O que, a partir da Declaração dos Direitos Humanos, buscou-se proibir foi a
intolerância em relação às diferenças, o tratamento desfavorável a determinadas
raças, a sonegação de oportunidades a determinadas etnias. 25

Ao vedar a discriminação com base na raça, sexo e convicção religiosa, por


exemplo, a Constituição “nada mais faz do que colocar em evidência certos traços que não
podem, por razões preconceituosas mais comuns em certa época ou meio, ser tomadas
gratuitamente como ratio fundamentadora de discrimen”. 26

23
Bandeira de Mello cita em sua obra os seguintes exemplos: “[...] cabe observar que às sociedades
comerciais quadram, por lei, prerrogativas e deveres diferentes dos que pertinem às sociedades civil; aos
maiores é dispensado tratamento inequiparável àquele outorgado aos menores; aos advogados se deferem
certos direitos e encargos distintos do que calham aos economistas ou aos médicos [...] As mulheres se
aposentam aos trinta anos, os homens aos trinta e cinco. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo
Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 12.
24
Bandeira de Mello Utiliza o seguinte exemplo: “Pode-se (...) supor que grassando em certa região uma
epidemia, a que se revelem resistentes os indivíduos de certa raça, a lei estabeleça que só poderão candidatar-
se a cargos de enfermeiro, naquela área, os indivíduos pertencentes à raça refratária à contratação da doença
que se queira debelar. É óbvio, do mesmo modo, que, ainda aqui as pessoas terão sido discriminadas em
razão da raça, sem, todavia, ocorrer por tal circunstância, qualquer hostilidade ao preceito igualitário que a
Lei Magna desejou prestigiar”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade. p. 15 - 16.
25
Brasil. Tribunal Regional Federal 4ª Região. Agravo de Instrumento n° 2008.04.00.003151-2/SC, 3ª
Turma, Relator Desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, 31 de janeiro de 2008. Disponível
em: http://www.trf4.gov.br>. Acesso em 12 fev. 2008.
26
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, “o artigo 5°, caput, ao exemplificar com as hipóteses
referidas, apenas pretendeu encarecê-las como insuscetíveis de gerarem, só por só, uma discriminação. Vale
23

Quanto ao termo discriminação, de acordo com César Sell, é importante fazer uma
ressalva:
O entendimento doutrinário dominante enfatiza que quando na Constituição são
utilizados os comandos vedantes de discriminação a partir do sexo, raça e cor,
se está tomando o termo discriminação no seu sentido usual, de domínio
popular. Discriminação neste sentido é sempre discriminação negativa. É nessa
acepção que há a vedação constitucional quanto às discriminações em sentido
técnico-jurídico estas podem ser feitas se favoráveis aos grupos marginalizados
e com vista a conceder-lhes uma relativa aproximação aos grupos dominantes.27

Com base no fundamento de concretização da igualdade material, a doutrina tem


reconhecido28 que o princípio da igualdade é compatível com o tratamento diferenciado,
desigual.

Importa, contudo, realizar um questionamento: em que situações é possível


dispensar tratamentos jurídicos diversos de forma legítima?

De acordo com Bandeira de Mello, para que uma lei atribua tratamentos diversos
sem violar o princípio da igualdade é mister que ela preencha alguns requisitos29, a saber:

1) A lei não pode voltar-se a apenas um indivíduo. Não pode haver individualização
prévia e definitiva do destinatário da lei, de modo que impossibilite que esta incida
futuramente sobre outros destinatários, sob pena de violar o princípio da igualdade. Em sua
obra Celso Antônio Bandeira de Melo utiliza o seguinte exemplo:

uma lei que concedesse determinado benefício ao Presidente da República


empossado com tantos anos de idade, portador de tal título universitário,
agraciado com comendas tais e quais e que ao longo de sua trajetória política
houvesse exercido os cargos X e Y.30

No caso da suposta lei, é clara a violação ao princípio da igualdade, haja vista que a
lei individualizou o indivíduo de tal forma que é impossível a sua reprodução.

dizer: recolheu na realidade social elementos que reputou serem possíveis fontes de desequiparações odiosas
e explicitou a impossibilidade de virem a ser destarte utilizados”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 18.
27
SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. uma
introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p.55.
28
Neste sentido ver as obras de Ronald Dworkin, Joaquim Barbosa Gomes, Celso Antônio Bandeira de
Mello, Daniel Sarmento, José Afonso da Silva, Paulo Bonavides, Marcelo Campos Gallupo.
29
Tais requisitos foram extraídos da obra “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, de Celso Antônio
Bandeira de Mello. Para um entendimento mais aprofundado sobre a matéria ver MELLO, Celso Antônio
Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
30
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 25.
24

2) O critério adotado como fator de discriminação deve residir nos fatos, situações
ou pessoas que estejam sendo desequiparadas. As pessoas e situações desequiparadas pela
regra de direito devem ser efetivamente distintas entre si,31 o fator adotado como
discriminação não pode ser justificado com base em diferenças que não estejam presentes
nas situações em análise. Só pode ser tomado como fator de discriminação aquilo que for
desigual. As diferenças de tratamento só podem ser justificadas diante de pessoas e/ou
situações diferentes, justamente porque pelo princípio da igualdade compreende-se que as
situações que se apresentam iguais devem ser tratadas de maneira igual e de forma desigual
as que se afiguram de modo desigual.

3) O fator de discriminação adotado tem que guardar pertinência lógica com a


32
disparidade de regimes outorgados. Como exemplo pode-se supor que uma lei permita
que funcionários gordos tenham afastamento remunerado para assistir a congresso
religioso, e que esta mesma lei proibisse tal benefício aos magros. Neste caso, a gordura e
a magreza são tomadas como fator discriminatório. Note que no caso em tela, na referida
lei o fator de discriminação (magreza ou gordura) não guarda pertinência lógica com a
disparidade de regimes outorgados, pois não há nexo algum permitir que os funcionários
obesos faltem o serviço para participar de congresso religioso. Uma coisa não tem relação
com a outra.33

4) Deve existir consonância da correlação lógica com os interesses e valores


absorvidos no sistema constitucional. 34 Ou seja, o tratamento diferenciado tem que possuir
como objetivo concretizar os valores previstos na Constituição, tem de estar de acordo com
os valores e ditames nela prestigiados.

Deste modo, o tratamento jurídico diverso é legítimo, desde que se apresente uma
justificativa razoável e um fundamento lógico para ele, de modo que a discriminação deve
ser decorrente de uma análise lógica entre a discriminação e a diferença de regimes
outorgados. Assim, se não houver conexão lógica entre o fator adotado como

31
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 25-27.
32
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 38.
33
Exemplo extraído da obra MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade. p. 38.
34
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 21.
25

discriminação e o tratamento diferenciado, a distinção incorrerá em afronta ao princípio da


igualdade.35

O que deve ser avaliado é se políticas discriminatórias, como esta, criam ou não
desigualdades no caso concreto, ou seja, se permitem maior ou menor inclusão. 36

A discriminação não deve ser entendida como sinônimo de desigualdade. Ao


contrário do que algumas pessoas possam afirmar, o tratamento diferenciado é compatível
com a igualdade, desde que seja justificado racionalmente.

Em função disto, a discriminação não importa necessariamente em violação ao


princípio da igualdade.

Na verdade, a discriminação pode ser compreendida como produtora de igualdade,


sempre que ela contribuir para que haja uma maior inclusão dos cidadãos37, pois ao se
incluir àqueles que até então não gozavam de determinadas oportunidades, de modo a
colocá-los no mesmo patamar que os demais, estar-se-á produzindo igualdade, uma vez
que o princípio da igualdade estará sendo efetivado no plano real.

Assim, a igualdade não deve ser definida pura e simplesmente como tratar os
indivíduos igualmente. Aliás, “É mais adequado definir a igualdade como tratar os
indivíduos como iguais, do que tratar os indivíduos igualmente”. 38

35
Cumpre fazer uma observação, de acordo com Celso Bandeira de Mello a correlação lógica nem sempre se
apresentará de maneira absoluta, ou seja, “[...] isenta de penetração de ingredientes próprios das concepções
da época, absorvidos na intelecção das coisas”. Assim, segundo o autor, em determinadas épocas, de acordo
com o período histórico, determinada diferenças são consideradas como justificativa para atribuir regimes
jurídicos diversos. E o autor utiliza como exemplo: “em determinado momento histórico parecerá
completamente lógico vedar às mulheres o acesso a certas funções públicas, e, em outras épocas, pelo
contrário, entender-se-á inexistir motivo racionalmente subsistente que convalide a vedação. MELLO, Celso
Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 38-39.
36
Importa trazer o seguinte exemplo apresentado por Gallupo: “Poder-se-ia perguntar se a alocação de verbas
para a construção de benfeitorias que garantam a acessibilidade de portadores de deficientes físicos não
produziria desigualdade, uma vez que estaria tratando esta parcela da sociedade, numericamente pequena, de
forma desigual”. E o autor conclui: “A resposta só poderia ser que não, pois esse procedimento não restringe
a inclusão de ninguém, mas amplia a inclusão dos deficientes físicos: uma política que exige a construção de
rampas de acesso a portadores de deficiência física em prédios públicos não está criando uma desigualdade,
mas reduzindo uma desigualdade. GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado
Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. p.214.
37
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir do
pensamento de Habermas. p.216.
38
GODÓI, Marciano. Apud. GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de
Direito a partir do pensamento de Habermas. p.213.
26

Neste sentido, cumpre iniciar uma abordagem sobre a tese de Ronald Dworkin, para
quem o princípio da igualdade comporta dois tipos de direito à igualdade: o direito a igual
tratamento e ao tratamento como igual.
2 RONALD DWORKIN E AÇÃO AFIRMATIVA

No capítulo anterior foi demonstrado que o princípio da igualdade compreende dois


tipos de dimensões, uma denominada de formal e a outra de material. A última permite a
realização de tratamento diferenciado, nos casos em que sejam encontradas situações
desiguais, com o objetivo de que elas sejam niveladas, bem como para dar
operacionalidade ao princípio da igualdade, de modo a garantir que ele seja implementado
no plano fático.

Deste modo, a discriminação/ tratamento diferenciado seria compreendida como


produção da igualdade, na medida em que contribuiria para uma maior inclusão dos
cidadãos, ao promover a igualdade de condições e tratamento.

Afirmou-se que o princípio da igualdade não deve ser compreendido, somente,


como tratar os indivíduos de forma igual, mas sim tratá-los como iguais, ou seja, com a
mesma consideração e respeito.

O entendimento de que o princípio da igualdade compreende a idéia de que os


indivíduos devem ser tratados como iguais é defendido por Ronald Dworkin39, que ao
formular reflexões acerca dos programas de ação afirmativa40, mais precisamente do
sistema de cotas adotados em universidades dos Estados Unidos41, utiliza tal argumento
como fundamento para defender a implementação do referido programa de admissão nas
universidades.

Feitas tais considerações, cumpre dar início à abordagem de algumas teses


formuladas por Ronald Dworkin, inicialmente sobre o direito a igual tratamento e ao
direito ao tratamento como igual.

39
Ronald Dworkin é um filósofo contemporâneo de grande destaque no cenário americano, reconhecido por
abordar o tema das ações afirmativas em suas obras, como: “Levando os Direitos a Sério”, “Uma questão de
Princípio”, “A virtude Soberana” e “O império do direito”.
40
O conceito de ação afirmativa é apresentado no Capítulo 3.
41
Os primeiros programas de ação afirmativa na área da educação surgiram no início dos anos 60, após um
decreto em que o Presidente Kennedy determinou a implementação de medidas positivas com o intuito de
promover a inserção dos negros no “sistema educacional de qualidade”, que historicamente era destinado à
população branca. GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da
Igualdade: O Direito Como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. São Paulo:
Renovar, 2001. p.103
28

2.1 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE: O DIREITO A IGUAL TRATAMENTO E AO


TRATAMENTO COMO IGUAL - RONALD DWORKIN

Ao discorrer em uma de suas obras sobre a ação afirmativa e sua implicação sobre
o princípio da igualdade, Ronald Dworkin afirma que a ação afirmativa não afronta o
princípio da igualdade, pois este compreende o direito a igual tratamento e ao tratamento
como igual.42

De acordo com Dworkin, o direito ao igual tratamento “é o direito a uma igual


distribuição de alguma oportunidade, recurso ou encargo”, já o direito ao tratamento como
igual corresponde ao direito “não de receber a mesma distribuição de algum encargo ou
benefício, mas de ser tratado com o mesmo respeito e consideração que qualquer outra
pessoa”.43

Para esclarecer o entendimento a respeito do direito ao tratamento como igual o


autor utiliza o seguinte exemplo: “Se tenho dois filhos, e um deles está morrendo de uma
doença que está causando desconforto ao outro, não demonstrarei igual atenção se jogar
cara ou coroa para decidir qual deles deve receber a última dose de um medicamento”. 44

Neste caso, se a decisão sobre quais dos dois filhos deveria receber a última dose do
medicamento fosse tomada de acordo com a sorte (cara ou coroa) os dois receberiam
“igual tratamento”. Entretanto, esta hipótese não se figura como a mais correta, pois existe
uma situação de desigualdade entre os dois, motivo pelo qual se faz necessário que haja um
tratamento diferenciado, ou seja, um “tratamento como igual”, para que ocorra uma
igualdade efetiva.

Com este exemplo Dworkin objetiva demonstrar a relevância do “direito ao


tratamento como igual” que, segundo ele, “é fundamental”, enquanto o “direito a igual
tratamento é derivado” para a aplicação de uma igualdade efetiva. 45

Dworkin explica que critérios de admissão para a universidade sempre colocarão


alguns candidatos em situação de desvantagem em relação aos outros. Contudo, o fato de

42
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 349
43
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 350.
44
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 350
45
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 350.
29

promover tais desvantagens não é motivo autorizador de se proibir a institucionalização de


tais políticas de admissão, como o sistema de cotas, pois, é preciso observar o ganho que
estas políticas representam para a sociedade em termos gerais.

Assim, as desvantagens decorrentes da utilização de políticas de ação afirmativa


podem ser justificadas nos casos em que o ganho da sociedade ultrapasse a perda daqueles
que “sofreram desvantagens”, bem como se inexistir outra política que promova resultados
com o mesmo ganho. 46

Nestes casos, deve-se observar que a perda individual de alguns candidatos foi
compensada por um ganho maior, na medida em que foi beneficiada a “sociedade como
um todo”.

Ronald Dworkin explica que “qualquer instituição que recorra a essa idéia para
justificar uma política discriminatória vê-se diante de uma série de dificuldades teóricas e
práticas”. De acordo com ele, isto ocorre em virtude de existir dois sentidos para se afirmar
se uma sociedade está ou não melhor como um todo: sentido utilitarista e sentido ideal.

2.2 SENTIDO UTILITARISTA E SENTIDO IDEAL

Afirmar que uma sociedade está melhor em um sentido utilitarista quer dizer que “o
nível médio ou coletivo do bem-estar comunitário aumentou, apesar de o bem-estar de
alguns indivíduos ter diminuído”.47 Em contrapartida, afirmar que uma sociedade está
melhor em um sentido ideal significa afirmar que ela é mais justa ou que, de alguma outra
forma, está mais próxima de uma sociedade ideal, independente do bem-estar médio ter ou
não aumentado.48

Dworkin ressalva que os argumentos utilitaristas esbarram em uma dificuldade


especial que não se deparam os argumentos de ideal. Tal dificuldade consiste em definir o
que quer dizer bem-estar médio ou coletivo. Em saber se existe algum modo de avaliar o
bem-estar de um indivíduo, bem como avaliar como o aumento do bem-estar de diferentes

46
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 351.
47
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 358
48
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 358
30

indivíduos podem ser somados e, posteriormente, comparados às perdas, para justificar o


argumento de que, no todo, os ganhos superam as perdas. 49

O que significaria dizer que uma política torna uma sociedade melhor em um
sentido utilitarista?

O autor explica que “[...] uma política torna uma comunidade melhor, em sentido
utilitarista, se satisfaz o conjunto de preferências melhor do que o fariam as políticas
alternativas, ainda que ela não satisfaça as preferências de alguns”.50

Em um primeiro momento, pode-se acreditar que o argumento utilitarista, de que o


uso de determinada política se justifica a partir do momento em que ela satisfaz um maior
número de preferências em termos gerais, seja um argumento igualitário. 51

Porém, o caráter igualitário de um argumento utilitarista pode se apresentar, por


vezes, enganoso, uma vez que na preferência geral dos indivíduos pela implantação de
determinada política podem estar sendo contabilizadas preferências pessoais “[...] pela sua
própria fruição de certos bens ou certas oportunidades”, juntamente com preferências
externas “pela atribuição de bens e oportunidades a outros, ou a ambas as coisas”. 52

A distinção entre os dois tipos de preferências possui suma importância, pelo fato
de que ao contar as preferências externas juntamente com as preferências pessoais o caráter
igualitário de um argumento utilitarista poderá ser corrompido. Isto porque,

[...] a probabilidade de que as preferências de qualquer pessoa venham a ser


bem-sucedidas dependerá não apenas das exigências que as preferências
pessoais de outros impuserem aos recursos escassos, mas do respeito ou da
afeição que outros tiverem por ele ou por seu estilo de vida. 53

Com o objetivo de elucidar a questão da corrupção que pode estar engendrada do


utilitarismo, o autor traz o seguinte exemplo:

Suponhamos que muitos cidadãos que não estão doentes defendam uma teoria
política racista e que prefiram, portanto, que um medicamento escasso seja
ministrado a um branco que dele precisa do que a um negro que precisa dele
ainda mais. Se o utilitarismo contar essas preferências políticas pelo que elas
parecem ser, provocará o seu próprio fracasso do ponto de vista das preferências

49
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 358
50
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 359
51
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 359
52
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 361
53
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 362
31

pessoais porque desse ângulo, a distribuição não será igualitária no sentido


definido. Os negros sofrerão, em um grau que dependerá da força da preferência
racista, devido ao fato de serem vistos pelos outros como menos dignos de
respeito e consideração. 54

Entretanto, infelizmente, muitas vezes não é possível realizar um argumento


utilitarista com base, apenas, em preferências pessoais, haja visto que existem casos em
que os dois tipos de preferências (pessoais e externas) encontram-se muito ligadas e
dependentes, de modo a não permitir que se distinga, dentro da preferência global, quais se
constituem em preferências pessoais e quais são externas.

Isso é especialmente verdadeiro quando as preferências são afetadas pelo


preconceito. Consideremos, por exemplo, a preferência de um estudante de direito
branco por associar-se a colegas de classe igualmente brancos. É possível se
afirmar que se trata de uma preferência pessoal por uma associação com um tipo
de colega, e não com outro. Mas trata-se de uma preferência pessoal que é
parasitária de preferências externas: a não ser em casos muito raros, um estudante
branco prefere a companhia de outros brancos porque tem convicções sociais e
políticas racistas, ou porque despreza os negros enquanto grupo. Se essas
preferências associativas forem levadas em conta em um argumento usado para
justificar a segregação, o caráter igualitário do argumento será destruído
exatamente como seria o caso se as preferências externas subjacentes fossem
diretamente consideradas. Nesse caso, os negros veriam negado o seu direito de
serem tratados como iguais, uma vez que a probabilidade de que suas preferências
prevalecessem no desenho das políticas de admissão seria frustrada pela baixa
estima que outros têm por eles. 55

O que se quer demonstrar é que o critério utilitarista, ao levar em conta apenas a


preferência de um maior número de pessoas, ignora o fato de que as pessoas possam ter
feito determinadas escolhas não para defender seus interesses, mas para prejudicar os
interesses de outras pessoas das quais desprezam ou tem preconceito, violando, assim, seu
direito de ser tratado como igual. Deste modo, o critério utilitarista estaria sendo utilizado
para encobrir preconceitos, prejudicando o direito dos que são vítima do preconceito de
serem tratados como igual.

Em qualquer comunidade na qual o preconceito contra uma determinada minoria é


forte, as preferências pessoais sobre as quais um argumento utilitarista deve fixar
sua atenção estarão saturadas de preconceito; daí se segue que, em tal comunidade,
nenhum argumento utilitarista que pretenda justificar uma desvantagem dessa
minoria pode ser considerado equânime. 56

54
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 362
55
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 364
56
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 365
32

De acordo com o autor, todo argumento utilitarista que apresentar uma


desvantagem para indivíduos de uma raça contra a qual existe preconceito será injusto, ao
menos que haja como comprovar que tais desvantagens seriam justificáveis ainda que não
houvesse preconceito.

Sendo assim, os argumentos favoráveis à adoção de programas de ação afirmativa


que discriminem em favor dos negros se enquadraram em que tipo de argumento?

Para Dworkin, os argumentos favoráveis à programas de ação afirmativa que


discriminem em favor dos negros são tanto argumentos do tipo utilitaristas como de ideal.

Os argumentos favoráveis a um programa de admissão que discrimine em favor


dos negros são ao mesmo tempo utilitaristas e de ideal. Alguns dos argumentos
utilitaristas baseiam-se, ao menos indiretamente, em preferências externas,
como a preferência de certos negros por advogados de sua própria raça; mas os
argumentos utilitaristas que não se baseiam em tais preferências são fortes e
podem ser suficientes. Os argumentos de ideal não se baseiam em preferências,
mas sim no argumento independente de que uma sociedade mais igualitária será
uma sociedade melhor, mesmo se seus cidadãos preferirem a desigualdade. Este
argumento não nega a ninguém o direito de ser tratado como igual. 57

2.3 OBJETIVOS E FUNDAMENTOS DOS PROGRAMAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

De acordo com Dworkin, os programas de ação afirmativa “têm como objetivo


aumentar a matrícula de estudantes negros e de outras minorias admitindo que o critério
racial conte afirmativamente como parte das razões para admiti-los”. 58

Os opositores aos programas de ação afirmativa argumentam que tais programas


contribuirão para que haja uma sociedade “racialmente” consciente, dividida em grupos
raciais e étnicos.

Para Dworkin, a sociedade já é racialmente consciente e tal consciência racial é


corolário de uma história de escravidão e preconceito, que faz com que, ainda hoje

Homens e mulheres, meninos e meninas negros não [sejam] livres para escolher
por si mesmo em que papéis – ou como membros de quais grupos sociais –
outros irão caracterizá-los. Eles são negros, e nenhum outro atributo de

57
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 368
58
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 438
33

personalidade, lealdade ou ambição irá influenciar tanto o modo como os outros


irão vê-los ou tratá-los, e que tipo e dimensão de vida estarão abertos a eles. 59

Os programas de ação afirmativa têm como objetivo diminuir e não aumentar a


importância da raça. É certo que tais programas utilizam critérios raciais explícitos, mas o
utilizam porque, segundo o autor, outros métodos “mais suaves” fracassarão. Porém seu
objetivo imediato é reduzir e não aumentar a importância da raça.

Os programas de ação afirmativa tomam por base dois juízos: o primeiro juízo,
segundo Dworkin, está relacionado à teoria social: entende que a sociedade continuará
impregnada de divisões raciais “[...] enquanto as carreiras mais lucrativas, gratificantes e
importantes continuarem a ser prerrogativa de membros da raça branca, ao passo que
outros se vêem sistematicamente excluídos de uma elite profissional e social”. O segundo
juízo, leva em conta um cálculo estratégico: “aumentar o número de negros atuando nas
várias profissões irá, a longo prazo, reduzir o sentimento de frustração, injustiça e
constrangimento racial na comunidade negra [...]”.60

A respeito do segundo juízo, Dworkin tece a seguinte afirmação:

Os programas de ação afirmativa pretendem prover mais médicos negros para


atender pacientes negros. E não é porque é desejável que negros tratem negros e
brancos tratem brancos, mas porque agora é improvável que os negros, e isso
não é culpa deles, sejam bem atendidos por brancos, e porque a omissão em
oferecer-lhes médicos em que confiem irá antes exacerbar que reduzir o
ressentimento que hoje os leva a confiar apenas nos seus.
A ação afirmativa tenta colocar mais negros nas salas de aula junto com
médicos brancos, não porque seja desejável que uma escola de medicina reflita
a constituição racial da comunidade como um todo, mas porque a associação
profissional entre negros e brancos diminuirá entre os brancos a atitude de
considerar os negros como raça e não como indivíduos, e, assim, a atitude dos
negros de pensar em si próprios da mesma maneira. Ela tenta oferecer ‘modelos
de papéis’ para futuros médicos negros, não porque seja desejável que um
menino ou menina negros encontrem modelos apenas entre negros, mas porque
nossa história tornou-os tão conscientes de sua raça que é provável que o
sucesso de brancos, por enquanto, signifique pouca coisa ou nada para eles.61

O autor afirma que, embora se argumente que a condição de membro de um


determinado grupo não deve ser utilizada para fins de inclusão ou exclusão de benefícios,
em uma sociedade pluralista, se observada a realidade social, pode-se verificar que tal

59
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 438
60
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 438-439
61
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 439-440.
34

condição (membro de um determinado grupo) é o que determina a inclusão ou a exclusão


de cada cidadão.

Argumenta-se que tais programas podem prejudicar ou agravar ainda mais a


situação de preconceito e desigualdade entre brancos e negros. Segundo Dworkin, esse
risco existe, mas não pode servir de argumento para que programas de admissão, como os
que utilizam critérios raciais explícitos, deixem de ser implementados.

Até mesmo porque, em alguns casos, os ganhos da implementação de tais políticas


podem ser superiores às perdas, e apenas as experiências é que permitirão fazer o
julgamento de se a utilização de tais critérios é ou não correta.

Aos que fundamentam que os programas de ação afirmativa não devem ser
implementados porque as classificações raciais foram, bem como podem continuar a ser,
utilizadas com “propósitos malignos”, Dworkin rebate dizendo que este é “[...] o conhecido
recurso à preguiçosa virtude da simplicidade. Supõe que se é difícil traçar uma linha ou
que, se traçada, ela seria difícil de administrar, é prudente não traçá-la”. 62

Em alguns casos esse argumento, ainda que simplista e preguiçoso, pode se mostrar
como o mais adequado. Entretanto, somente o será nos casos em que não se perde “[...]
nada de grande valor como conseqüência”. 63

Deste modo, o argumento não se aplica às políticas de ação afirmativa, pois ao


deixar de implementá-las

[...] estaríamos renunciando a uma chance de combater certa injustiça presente


para obter proteção, da qual talvez não precisemos, contra abusos especulativos
que temos outros meios de evitar. E tais abusos não podem, de qualquer modo,
ser piores que a injustiça à qual nos estaríamos rendendo. 64

Para Dworkin a incerteza que circunda os possíveis resultados das políticas de ação
afirmativa não é hábil para justificar uma decisão judicial que as torne ilegais. Contudo,
poderia se argumentar que ainda que fossem eficazes, no que concerne ao objetivo de
diminuir a importância da raça, as políticas de ação afirmativa são inconstitucionais.

Com o objetivo de esclarecer este, bem como outros argumentos contra as ações
afirmativas, dar-se-á início a explanação de alguns casos abordados por Ronald Dworkin

62
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450.
63
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450.
64
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450.
35

em suas obras “Levando os direitos a sério” e “Uma Questão de Princípio”, são eles: o
Caso Alan Bakke e a confrontação do Caso DeFunis x Sweatt.

2.3.1 Caso Alan Bakke

Em 1978, Allan Bakke65 promoveu ação judicial em face da Universidade da


Califórnia, em virtude de ter se candidatado a uma das vagas e ter sido rejeitado. A referida
universidade contava com um programa de ação afirmativa, com o objetivo de admitir
mais alunos negros e de outras minorias. Bakke, candidato branco, sentiu-se injustiçado e
argumentou que o programa de ação afirmativa havia violado seus direitos
constitucionais.66

Quando questionado pelo juiz do caso se considerava os objetivos dos programas


de ação afirmativa importantes, o advogado de Bakke afirmou que sim, mas sustentou que
ainda que tornem a sociedade mais justa e menos dominada pela raça os programas de ação
afirmativa são inconstitucionais, uma vez que violam o direito de Bakke.

Mas, será que Bakke possui um direito tão importante que, mesmo com objetivos
tão urgentes, a ação afirmativa deva ceder?

Dworkin responde à questão afirmando que, tendo em vista que a Constituição não
contém nenhum texto que expressamente proíba a ação afirmativa, se Bakke está certo é
porque deve possuir um importante direito moral. Mas qual seria esse direito?67

O argumento comumente utilizado é o de que Bakke possui o direito de ser


avaliado de acordo com seu mérito, que tem direito de ser avaliado enquanto indivíduo e

65
“Pano de fundo para uma grande quantidade de análises e ensaios jurídicos e filosóficos, Bakke talvez seja
a mais discutida, comentada e criticada decisão da Corte Suprema dos EUA nas últimas duas décadas. Por
dois motivos: em primeiro lugar, porque se trata da primeira oportunidade que a Corte teve de examinar em
profundidade a constitucionalidade de um plano de ação afirmativa. Em segundo, porque o caso veio a se
constituir em uma espécie de roteiro e guia para as ações governamentais e não governamentais levadas a
cabo nas décadas seguintes em matéria de direito de minorias”. GOMES, Joaquim Barbosa. Ação
Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: O Direito Como Instrumento de Transformação
Social. A Experiência dos EUA. p. 104
66
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 437
67
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 445
36

não grupo social e de que possui o direito, assim como qualquer cidadão negro, de não ter
uma oportunidade excluída em virtude de sua raça.

Para Dworkin todos estes argumentos não passam de “expressões capciosas”, haja
visto que não descrevem outro argumento senão o de que “ninguém deve sofrer com o
preconceito ou o desprezo do outro”. O autor passa então a rebater cada uma das três
expressões, formuladas por Bakke, as quais ele chama de “capciosas”.

No que concerne à questão do mérito intelectual como critério de admissão na


universidade, Dworkin afirma que não há motivo justificador para que se impeça que
outros critérios sejam admitidos como mérito, pois segundo ele não existe nenhuma
definição do que constitua realmente o “mérito”.

Não há nenhuma combinação de capacidades, méritos e traços que constituam o


‘mérito’ no sentido abstrato; se mãos ágeis contam como “mérito” no caso de
um possível cirurgião, é somente porque mãos ágeis irão capacitá-lo a atender
melhor o público. Se uma pele negra, infelizmente, capacita outro médico a
fazer melhor um outro trabalho médico, a pele negra, em prova do que digo,
também é um mérito. Para alguns, esse argumento pode parecer perigoso, mas
apenas porque confundem sua conclusão - que a pele negra pode ser uma
característica socialmente útil em dadas circunstâncias – com a idéia muito
diferente e desprezível de que uma raça pode ter inerentemente mais valor que
outra. 68

Desta feita, é completamente cabível utilizar classificações raciais como critério


para admissão nas universidades.

Sobre a segunda expressão capciosa, Dworkin afirma que não tem fundamento o
argumento de Bakke de que seu direito está sendo violado em função de ser avaliado
enquanto membro de um grupo e não individualmente. Isto porque, qualquer processo de
admissão utiliza-se de generalizações sobre grupos.

Mesmo os testes padrão de aptidão para a faculdade de medicina como parte do


processo de admissão exige que se avaliem as pessoas como parte de grupos,
pois supõe que as notas dos testes são um guia para a inteligência médica que,
por sua vez, é um guia para a capacidade médica. 69

Em algumas universidades os testes de admissão levam em conta a idade dos


candidatos como critério de admissão, e o próprio Bakke foi recusado em outras duas
faculdades de medicina em virtude de sua idade. Neste caso, as faculdades de medicina não

68
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 446
69
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 446
37

violaram o direito de Bakke de ser avaliado individualmente, enquanto foi avaliado como
membro de um grupo?

O autor conclui então afirmando que se tais critérios não negam o direito de Bakke
de ser avaliado como indivíduo, os critérios raciais, em prova do exemplo acima, também
não negam este direito. 70

O terceiro argumento formulado por Bakke foi o de que ele possui o direito de não
ter sua vaga rejeitada por conta de sua raça. Sobre esta que é a terceira das expressões
capciosas Dworkin afirma que ela, como formulação de um direito constitucional, até soa
plausível, pois sugere o princípio de que

Todo cidadão tem o direito constitucional de não sofrer desvantagem, pelo


menos na competição por algum benefício público, porque a raça, religião ou
seita, região ou grupo natural ou artificial ao qual pertença é objeto de
preconceito e desprezo. 71

Dworkin salienta que este direito constitucional, de suma importância, foi violado
durante décadas, por políticas racistas. Historicamente, as exclusões formuladas com base
na raça tiveram como motivação o desprezo que determinadas sociedades sentiam por
determinados grupos.

Feitas tais considerações o autor conclui que a afirmação de Bakke de que foi
excluído ou teve sua oportunidade sacrificada por causa de sua raça é absurda, pois em seu
caso “a raça não se distingue pelo caráter especial de insulto público” 72, como ocorre com
os negros.

No passado fazia sentido dizer que um estudante negro ou judeu excluído estava
sendo sacrificado por causa de sua raça ou religião; isso significava que sua
exclusão, por si só, era tida como desejável, não porque contribuísse para algum
objetivo do qual ele e o resto da sociedade poderiam orgulhar-se. 73

No caso de Bakke, ele foi “sacrificado” em função do critério de admissão que é


favorável, ou seja, foi excluído em virtude do nível de inteligência que possui, uma vez que
teria sido aceito pela universidade caso seu nível de inteligência fosse superior do que é.
De qualquer modo, é importante que se tenha claro que ele não foi excluído em função de

70
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 447
71
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 448
72
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 448
73
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 449
38

preconceito, “mas por causa de um cálculo racional do uso socialmente mais benéfico de
recursos limitados para a educação médica”. 74

2.3.2 Caso Sweatt e DeFunis

Em 1945, um negro chamado Sweatt teve seu ingresso recusado pela Faculdade de
Direito da Universidade do Texas, em virtude de uma lei estadual que estipulava que
apenas brancos poderiam freqüentar a Universidade. Sweatt conseguiu ingressar na
Universidade, porque a Suprema Corte entendeu que a lei estadual violava os direitos de
Sweatt, previstos na Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que
prescreve que nenhum Estado pode negar a uma pessoa igual proteção diante de suas leis.

Em 1971, um judeu chamado DeFunis75 teve recusada sua candidatura a uma vaga
pela Universidade de Washington, muito embora possuísse notas altas o suficiente para ser
admitido caso fosse membro de uma minoria. DeFunis requereu à Suprema Corte a
declaração de que o sistema de admissão realizado pela Universidade de
Washington violava os direitos que lhe garantia a Décima Quarta Emenda. DeFunis
também obteve êxito em seu pleito.

Mas o que haveria de diferente nos dois casos?

O caso DeFunis, ao contrário de Sweatt, dividiu a opinião de grupos de ação


política que defendiam causas liberais.

No caso Sweatt, não restavam dúvidas: “[...] a discriminação racial contra as


76
minorias era algo que deveria terminar” . Já o caso DeFunis apresentava um ponto
controvertido e complexo, “[...] pois DeFunis não apelou a um espúrio ‘direito da maioria’
ou de ‘superioridade racial’, ou qualquer argumento jurídica e eticamente fácil de ser
descartado. Apelou em nome da igualdade”.77

74
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450
75
O caso DeFunis foi o primeiro caso de ação afirmativa em matéria educacional a subir em grau de recurso
à Suprema Corte americana. GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da
Igualdade: O Direito Como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p.70
76
SELL, César Sandro. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 24
77
SELL, César Sandro. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 24
39

Deste modo, os liberais americanos viram-se diante de um problema: Poderia o


Estado negar direito à igualdade individual com o objetivo de criar políticas com vista a
privilegiar a igualdade global? Poderia o Estado considerar seus cidadãos como raça, para
fins de contar positivamente como beneficiário de uma política, ao invés de indivíduos?78

DeFunis utilizou também o argumento de que as distinções que tomam por conta a
raça são injustas, independente da contribuição positiva que possam propiciar a sociedade,
e que, por isso, ele possui o direito de que elas não sejam utilizadas; bem como no
argumento de que a universidade deveria levar em conta para a admissão de seus alunos
apenas o mérito de cada um.

DeFunis argumenta que ainda que a ação afirmativa possa contribuir positivamente
para a promoção de bem-estar geral ou para a diminuição da desigualdade social e
econômica ele tem o direito de que a raça não seja utilizada como critério de admissão.
Sustenta seus argumentos, em suma, com base na Décima Quarta Emenda.

Para Dworkin os argumentos de DeFunis não merecem prosperar, pois eles


decorrem do direito mais abstrato à igualdade, o que por si só não torna as classificações
raciais inconstitucionais, haja visto que a Constituição não condena diretamente a
classificação racial, como o faz, por exemplo, com a censura.

Segundo Dworkin
A cláusula faz do conceito de igualdade um teste de legislação, mas não estipula
nenhuma concepção particular desse conceito. Os que redigiram a Cláusula
pretendiam atacar certas conseqüências da escravidão e do preconceito racial,
mas é improvável que pretendessem excluir todas as classificações raciais, ou
que esperassem que uma tal proibição resultasse do que escreveram. Tornaram
ilegais quaisquer políticas que violassem a igualdade, mas deixaram que outros
decidissem, de tempos em tempos, o que isso significava. 79

DeFunis defende a idéia de que programas que levam em conta classificações


raciais como critério são injustos e, por isto, não devem ser usados. Entende que o mais
adequado é que sejam utilizados critérios intelectuais para admissão na universidade.

Mas se critérios de admissão que levam em conta classificações raciais são injustos,
DeFunis não tem o direito de exigir que apenas critérios intelectuais sejam utilizados como
critério de admissão, uma vez que estes também podem ser injustos. Isto porque, segundo

78
SELL, César Sandro. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 24
79
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.348
40

o autor, os critérios intelectuais são utilizados não porque DeFunis ou qualquer outra
pessoa tenha o direito de ser avaliado deste modo, bem como não com o propósito de
premiar os mais inteligentes, mas sim “[...] porque parecem servir a uma política social
útil”. 80

Ou seja, critérios intelectuais são utilizados pelas conseqüências que podem


propiciar a comunidade como um todo, e não porque simplesmente pessoas mais
inteligentes tenham o direito a vagas nas universidades.

Deste modo, caso fossem eleitos outros objetivos como prioritários, com vista a
melhorar a sociedade como um todo, os critérios de admissão teriam que ser modificados,
talvez, até mesmo com a utilização de políticas de ação afirmativa. 81

Importante realizar um questionamento: no caso de utilização de políticas de ação


afirmativa os candidatos individualmente prejudicados teriam direito a reclamar de tal
modificação de critério?82 A resposta a tal pergunta é formulada por Peter Singer, autor
que possui opiniões convergentes com a de Dworkin.

Se uma universidade admite alunos de maior inteligência, ela não o faz em


consideração ao maior interesse que eles têm em ser admitidos, nem em
reconhecimento ao seu direito de ser admitido, mas porque, com isso, favorece
objetivos que acredita, serão propiciados por esse processo de admissão.
Portanto, se essa mesma universidade resolver adotar novos objetivos e usar a
ação afirmativa para fomentá-los, os candidatos que teriam sido admitidos pelo
processo anterior não poderão reclamar que a nova maneira de agir viola os seus
direitos a ser admitidos, ou dispensa-lhes menos respeito do que aos outros.
Para começar, não tinham nenhum reclamo especial para ser admitidos; eram os
felizes beneficiários da velha política da universidade. Agora que essa política
mudou, outros se beneficiam, não eles. Se isso parece injusto, é só porque
estávamos habituados à velha política. 83

Assim, o que define a utilização de um ou outro critério de admissão é o objetivo


que se quer alcançar, motivo pelo qual os critérios de admissão poderiam ser modificados
sempre que mostrarem-se inapropriados para atingir os objetivos que se almeja. No caso
específico da política de ação afirmativa um de seus objetivos é tornar “a sociedade melhor
como um todo”, mais igual em termos gerais.

80
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 347
81
SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 22
82
SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 22
83
SINGER, Peter Apud SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao
debate no Brasil. p 23
41

Conforme já abordado, há dois sentidos para se afirmar que a sociedade está ou


não melhor como um todo: sentido utilitarista e sentido ideal. 84

Porém, os argumentos utilitaristas esbarram em uma dificuldade especial que não se


deparam os argumentos de ideal, que consiste em definir o que quer dizer bem-estar médio
ou coletivo, bem como se existe alguma forma de avaliá-lo. Além disso, o caráter
igualitário de um argumento utilitarista pode ser corrompido, uma vez que na preferência
geral dos indivíduos pela implantação de determinada política podem estar sendo
contabilizadas preferências pessoais juntamente com preferências externas, sendo que nas
últimas encontram-se embutidos preconceitos.

Com base na distinção destes dois modos de se afirmar que uma sociedade está
melhor ou não em termos gerais Dworkin afirma ter encontrado as diferenças entre os o
Caso DeFunis (judeu que teve seu ingresso recusado na Universidade de Washington) e o
Caso Sweatt (negro teve seu ingresso recusado pela Faculdade de Direito da Universidade
do Texas).

De acordo com Dworkin, quaisquer argumentos utilizados por programas de


admissão que discriminem candidatos negros, como no caso da Faculdade de Direito da
Universidade do Texas, serão argumentos utilitaristas baseados em preferências externas.
Como visto, as preferências externas são eivadas de preconceito, “[...] de uma maneira tal
que infringem o direito constitucional dos negros de serem tratados como iguais”. 85

Já os argumentos utilizados para justificar programas de admissão que “[...]


86
discrimine em favor dos negros são ao mesmo tempo utilitaristas e de ideal”. Assim,
tendo em vista que “os argumentos de ideal não se baseiam em preferências, mas sim no
argumento independente de que uma sociedade mais igualitária será melhor, mesmo se
seus cidadãos preferirem a desigualdade”87, contrariamente aos programas utilizados pela
universidade do Washington, os programas de admissão que discriminam em favor dos
negros não negam a “ninguém o direito de ser tratado como igual”, ou seja, “com o mesmo
respeito e consideração que qualquer outra pessoa”.88

84
Ver item 2.2 deste capítulo.
85
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
86
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
87
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
88
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
3 INTRODUÇÃO AO DEBATE BRASILEIRO SOBRE A POSSIBILIDADE DE
ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS

3.1 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE AS AÇÕES AFIRMATIVAS E A EXPERIÊNCIA


AMERICANA89

Até a Guerra Civil não havia nos Estados Unidos leis que protegessem os
indivíduos das discriminações raciais, uma vez que o regime vigente legitimava a
escravidão. De acordo com a legislação em vigor, os escravos eram concebidos como
mercadorias. 90

Com o passar dos anos o número de escravos libertos aumentou. Embora tivessem
sido libertados, os indivíduos negros, ex-escravos, não contavam com os mesmos direitos
que eram assegurados aos seus antigos senhores. Ou seja, “a liberdade alcançada pelos
antigos escravos não assegurava uma posição igualitária com os cidadãos brancos”. 91

Com o fim da Guerra Civil, ocorrem alterações importantes na estrutura social e


política do país, refletidas, na esfera jurídica, na criação e implementação de três emendas
constitucionais: a Décima Terceira, a Décima Quarta e a Décima Quinta Emenda, que
versavam, respectivamente, sobre: a proibição da escravidão e do trabalho involuntário
para todos os cidadãos que estivessem submetidos à jurisdição dos Estados Unidos (foi
proposta e ratificada em 1865); igualdade perante a lei (proposta em 1866 e ratificada em
1868); proibição dos Estados do Governo Federal em negar ou cercear o direito de voto a
qualquer cidadão por motivo de raça, cor ou prévio estado de servidão. 92

89
Para elaborar o item 3.1, bem como seus subitens, será utilizado como base a obra MENEZES, Paulo
Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.173p
90
Embora o ordenamento jurídico se referisse aos escravos como mercadorias, este entendimento não era
utilizado no que se refere à responsabilidade dos mesmos na esfera criminal, tendo em vista que nesses casos
eles “[...]quase sempre recebiam um tratamento mais rigoroso do aquele conferido aos indivíduos brancos”.
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 67
91
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano p. 68-
69
92
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 71
43

Em 20 de abril de 1871 o Congresso, com base nas referidas emendas que lhe
concediam poderes para executar as novas disposições constitucionais, aprovou um Civil
Right Act93, que estabeleceu sanções civis e penais para as pessoas que não respeitassem os
direitos concedidos aos escravos libertos. 94

3.1.1 A Doutrina “separados mas iguais”

Os primeiros casos submetidos à apreciação da Suprema Corte, com base na


Décima Quarta Emenda, referiam-se à discriminação racial. O posicionamento
inicialmente adotado pela Suprema Corte originou a criação de uma doutrina intitulada de
“separados mas iguais” (separate but equal), adotada durante os anos de 1896 a 1954.95

Essa doutrina permitia que a segregação racial fosse utilizada na prestação de


serviços ou como critério genérico de tratamento

[...] desde que os aludidos tratamentos ou serviços fossem ofertados, dentro de


um mesmo padrão, para todas as raças. Em outras palavras, o que não se
permitia é que a segregação servisse de pretexto para se excluir uma ou mais
raças de algum serviço ou direito assegurado às demais. 96

A doutrina “separados mas iguais” tornou-se amplamente conhecida quando a


Suprema Corte julgou o caso Plessy v. Ferguson.

O caso Plessy colocou em debate a constitucionalidade de uma lei do Estado de


Louisiana que determinava às empresas ferroviárias a obrigação de oferecer acomodações
“separadas mas iguais” para passageiros brancos e negros, sob pena de serem processadas
criminalmente.

93
De acordo com o Black’s Law Dictionary, Civil Right Acts são “leis federais promulgadas após a Guerra
Civil, e mais recentemente, em 1957 e 1964, que se destinaram a implementar e dar um vigor adicional aos
direitos individuais básicos garantidos pela Constituição. Esses atos proíbem a discriminação baseada em
raça, cor, idade ou religião”. Apud MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no
direito norte-americano. p. 71
94
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 72
95
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 72
96
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 74
44

Plessy97 afirmou ter sido preso em virtude de ter se recusado a mudar para a seção
de trem que era destinada para pessoas negras e, em sua defesa, argumentou que a lei
estadual violava a Décima Terceira e a Décima Quarta Emenda Constitucional.

Os argumentos apresentados por Plessy foram rejeitados tanto pelo Tribunal


Estadual como pela Suprema Corte, sendo que a última entendeu que ao referido caso não
poderia ser aplicada a Décima Terceira Emenda, em função de que ela apenas proibia a
reintrodução da escravidão. Em relação à Décima Quarta Emenda, a Suprema Corte
entendeu não ser aplicável ao referido caso, por entender que a separação de raças imposta
pela legislação estadual não insinuava a inferioridade de nenhuma uma delas. 98 Em suma,
a Suprema Corte entendeu que a doutrina “separados mas iguais” não violava a Décima
Quarta Emenda.

3.1.2 Os reflexos da segunda guerra mundial na sociedade americana

Durante a Segunda Guerra Mundial, diversos grupos sociais, em especial a


população negra, se reuniram e começaram a realizar manifestações públicas contra a
segregação racial e o racismo.99

Devido à pressão realizada por estes grupos o então Presidente Franklin D.


Roosevelt editou a Executive Order 100 nº 8.806, em 25 de junho de 1941, que impedia que

97
MENEZES destaca que Plessy “[...] embora aparentasse ser branco, era considerado negro pela legislação
estadual, em virtude de ter ascendência africana”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.75
98
De acordo com o voto de um dos ministros da Suprema Corte “leis que permitem, e até exigem...a
separação [das raças], em lugares onde houver possibilidade de elas entrarem em contato, não implicam
necessariamente a inferioridade de uma raça com relação à outra e têm sido geralmente, se não
universalmente, reconhecidas como na esfera da competência legislativa dos Estados, no exercício de seu
poder de polícia”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-
americano. p.75
99
De acordo com MENEZES, “antes mesmo de os Estados Unidos ingressarem na guerra, notava-se um
imenso desconforto, na medida em que o país condenava o anti-semitismo propugnado pelos nazistas, não
obstante tolerasse um forte racismo dentro de suas próprias fronteiras”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação
Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.77
100
“uma ordem ou regulamentação promulgada pelo Presidente ou alguma autoridade administrativa sob sua
orientação para o fim de interpretar, implementar ou dar efeito administrativo a uma norma da Constituição
ou de alguma lei ou tratado. Para ter efeito de lei, tais ordens devem ser publicadas no Federal Register (que
é o veículo oficial de divulgação dos atos do Poder Executivo Federal)”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação
Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.77
45

o governo federal, bem como as empresas que com ele mantinha relações contratuais,
utilizasse a discriminação racial ao contratar funcionários.101

A doutrina “separados mas iguais” só deixou de ser utilizada após o julgamento de


processos que insurgiam-se contra a segregação racial adotadas nas instituições de ensino.

Em 1954 a Suprema Corte, “[...] pela primeira vez desde Plessy v. Ferguson
(1896), permitiu que o assunto fosse totalmente revisto, e proferiu uma decisão que é
considerada um marco no direito constitucional norte-americano [...]”.102 Trata-se da
decisão prolatada no caso Brown v. Board of Education of Topeka.

No referido caso, estudantes negros haviam recorrido a Suprema Corte, com base
no princípio da igualdade, requerendo o direito de freqüentar certas instituições públicas de
ensino, sem observar a segregação estabelecida pelas leis locais.

O debate sobre os referidos casos dividiu, inicialmente, a opinião dos ministros da


Suprema Corte, presididos pelo ministro Fred M. Vinson, sobre qual posicionamento
adotar.

Em setembro de 1953, após o falecimento do ministro Fred M. Vinson, o ministro


Earl Warren assumiu a presidência do Tribunal, dando novos contornos ao caso. Logo na
primeira audiência realizada, o ministro Warren manifestou seu entendimento de que a
doutrina “separados mas iguais” sugeria que os indivíduos negros eram inferiores aos
brancos.103

Ao final a Suprema Corte entendeu, por unanimidade, que “[...] no campo da


educação a doutrina separados mas iguais não tem lugar. Instalações educacionais
separadas são intrinsecamente desiguais”. 104

A decisão aplicava-se apenas aos casos de segregação racial nas instituições de


ensino. Mais tarde, através de outros julgamentos, a Suprema Corte estendeu o mesmo

101
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 77
102
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 80
103
Na referida audiência o ministro argumentou: “Não vejo como no dia e na época de hoje podemos separar
um grupo do restante e dizer que eles não têm direito a exatamente o mesmo tratamento de todos os outros.
Fazer isso seria contrário à Décima Terceira, Décima Quarta e Décima Quinta Emendas. Elas visavam a
tornar os escravos iguais a todos os outros. Pessoalmente, não consigo ver de que forma podemos hoje
justificar a segregação unicamente com base na raça”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.82
104
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.85
46

entendimento para outras áreas, de modo a acabar com a doutrina de segregação racial
utilizada em parques, ônibus, restaurantes, dentre outras áreas. 105

Era o fim da doutrina “separados mas iguais”.

3.1.3 Origem da ação afirmativa e primeiras políticas

A ação afirmativa tem sua origem nos Estados Unidos.106 A primeira pessoa a
utilizar o termo foi o Presidente John F. Kennedy107, em 1961, por meio de um texto oficial
em que propôs medidas com vista a ampliar a igualdade de oportunidades no mercado de
trabalho.108

Esse texto tratava-se de uma Executive Order n° 10.925, editada, apenas dois meses
após Kennedy ter assumido a presidência109, com o objetivo de “[...] estabelecer uma
igualdade de oportunidades e erradicar a discriminação e o preconceito nas relações
mantidas entre o governo federal e os seus contratantes”.110 Além disso, a referida ordem
criou um órgão responsável para fiscalizar e coibir a discriminação que havia no mercado
de trabalho.

No ano de 1963 o vice-presidente Lyndon B. Johnson assumiu o cargo de


presidente dos Estados Unidos, em lugar do até então Presidente Kennedy, assassinado em

105
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.85
106
As ações afirmativas ganharam visibilidade após serem implementadas pelo governo dos Estados Unidos
da América, com a promulgação das Leis dos Direitos Civis (1964). A implantação dessa política ocorreu
após imensa pressão de grupos organizados da sociedade civil, em especial o Movimento Negro norte-
americano, que contava com lideranças como Martin Luther King. SILVA, Luiz Fernando Martins da. Ação
afirmativa e cotas para afro-descentes: algumas considerações sócio-jurídicas. In: SANTOS, Emerson dos;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.65
107
A partir do final da década de 50 surgiram vários movimentos sociais com vista a combater o racismo e o
preconceito arraigado nos Estados Unidos. As manifestações do Judiciário em casos concretos não davam
conta de diminuir o preconceito. De acordo com MENEZES, Kennedy percebeu a importância política do
tema. Embora sua família possuísse grande fortuna, John F. Kennedy “[...] não deixava de integrar um
segmento minoritário da sociedade norte-americana, ao menos como católico e descendentes de irlandeses”.
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 86
108
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 27
109
Kennedy assumiu a presidência dos Estados Unidos em janeiro de 1961.
110
Segundo a Executive Order “o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego
devido a raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratante adotará ação afirmativa para assegurar que os
candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu
credo, sua cor ou nacionalidade”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no
direito norte-americano. p. 88
47

22 de novembro daquele ano. Lyndon deu continuidade aos projetos que estavam em
tramitação e conseguiu com que projetos importantes, com o objetivo de erradicar a
discriminação racial, fossem aprovados no Congresso.111 Dentre tais projetos o de maior
destaque foi o Civil Right Act de 02 de julho de 1964, que determinava:

[...] a proibição de discriminação ou segregação em lugares ou alojamentos


públicos (Título II); a observância de medidas não discriminatórias na
distribuição de recursos em programas monitorados pelo governo federal
(Título VI); a proibição de qualquer discriminação no mercado de trabalho
calcada em raça, cor, sexo ou origem nacional, proibição essa que deveria ser
observada pelos grandes empregadores, assim compreendidos todos aqueles que
tivessem pelo menos quinze funcionários, incluindo-se as universidades,
públicas ou privadas (Título VII).112

O projeto Civil Right Act de 02 de julho de 1964 não promoveu grandes avanços
contra a discriminação, motivo que levou o Presidente Lyndon B. Johnson a “[...] adotar
medidas mais agressivas no combate a discriminação”.113

Em junho de 1965 o Presidente Lyndon B. Johnson proferiu um discurso onde dava


sinais de que deveriam ser adotadas outras medidas, além de proibir a discriminação. O
referido discurso foi proferido na Howard University, ocasião em que Lyndon enfatizou

Você não pega uma pessoa que durante anos esteve acorrentada, e a libera, e a
coloca na linha de partida de uma corrida e diz ‘Você está livre para competir
com todos os outros’, e ainda acredita, legitimamente, que você foi totalmente
justo. Assim, não é suficiente apenas abrir os portões da oportunidade, todos os
nossos cidadãos devem ter a capacidade de atravessar esses portões. 114

Pouco tempo depois, em 24 de setembro de 1965, foi editada a Executive Order n°


11.246 que estabelecia que a celebração de contratos com o governo federal ficaria
condicionada ao cumprimento, por parte das empresas, de medidas em prol de minorias
étnicas e raciais, com o objetivo de corrigir injustiças decorrentes de discriminações.115

A Executive Order n° 11.246 possui grande relevância histórica, uma vez que com
o seu advento as medidas utilizadas para combater a desigualdade e discriminação racial
“[...] com base em condutas positivas crescem em importância e passam a ser avaliadas sob

111
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 90
112
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.90
113
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.91
114
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 91
115
As medidas em favor de minorias étnicas e raciais que as empresas que contratavam com o Governo
Federal deveriam adotar eram as mais diversas, podiam ser realizadas no “[...] recrutamento, contratação,
transferência, níveis salariais, promoções, treinamento etc”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.91
48

a ótica de políticas governamentais, o que viria a sedimentar o conceito que se tornou


conhecido por ação afirmativa”.116

Em 1969 Richard Nixon assume a presidência dos Estados Unidos e solicita que
Arthur Fletcher, cidadão negro que ocupava o cargo de assistente do Secretário do
Trabalho, elabore um projeto para tornar o texto do Título VII do Civil Right Act de 1964
efetivo.117

No ano de 1971 o referido projeto passou a integrar o ordenamento jurídico e


estabelecia que

[...] os contratantes com o governo federal deveriam desenvolver, anualmente,


programas de ação afirmativa com a finalidade de identificar e corrigir
deficiências existentes em relação às mulheres e a grupos minoritários (v.g negros,
índios e hispânicos), o que se daria pelo cumprimento e pela observância de
determinadas metas numéricas (goals) na contratação de empregados, as quais
seriam fixadas de acordo com a participação dessas mesmas minorias no mercado
de trabalho. Referidas metas, contudo, não poderiam ser ‘quotas rígidas e
inflexíveis’, mas ‘alvos razoavelmente atingíveis, encetando-se todo o esforço de
boa-fé para fazer com que todos os aspectos do programa de ação afirmativa
funcionem’. 118

Nos anos que sucederam houve um grande aumento de textos legais para coibir a
discriminação e o preconceito, nas mais diversas áreas, em especial no âmbito das relações
de emprego.119

3.2 CONCEITO DE AÇÃO AFIRMATIVA

A ação afirmativa entende a igualdade de oportunidades como fundamento, de


modo que utiliza o tratamento diferenciado como forma de restituir a igualdade de

116
MENEZES destaca que “os reflexos decorrentes dessa nova postura estatal não ficaram restritos aos
Estados Unidos, podendo ser notados em convenções e tratados internacionais que foram celebrados no
mesmo período, como na mencionada ‘Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial’, que também é de 1965”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.92
117
Segundo MENEZES, o Presidente Nixon recomendou a Arthur Fletcher que o projeto deveria ser
elaborado e “[...] estruturado de forma a resistir aos inevitáveis questionamentos judiciais”. MENEZES,
Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.92
118
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.93
119
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.93
49

oportunidades de grupos discriminados e promover sua integração social.120 Não há


qualquer estipulação de um período máximo de tempo em que estas políticas devam ser
utilizadas. O certo é que sua utilização deve ter caráter temporário, até atingir o objetivo a
que se destina.121

Neste sentido

Segundo Huntley, ação afirmativa é um conceito que inclui diferentes tipos de


estratégias e práticas. Todas essas estratégias e práticas estão destinadas a
atender problemas históricos e atuais que se constatam nos Estados Unidos em
relação às mulheres, aos afro-americanos e a outros grupos que têm sido alvo
de discriminação e, consequentemente, aos quais se tem negado a oportunidade
de desenvolver plenamente o seu talento, de participar em todas as esferas da
sociedade americana. [...] Ação afirmativa é um conceito que, usualmente,
requer o que nós chamamos metas e cronogramas. Metas são um padrão
desejado pelo qual se mede o progresso e não se confunde com cotas. [...]
A política de ação afirmativa não exige, necessariamente, o estabelecimento de
um percentual de vagas a ser preenchido por um dado grupo da população.
Entre as estratégias previstas, incluem-se mecanismos que estimulem as
empresas a buscarem pessoas de outro gênero e de grupos étnicos e raciais
específicos, seja para compor seus quadros, seja para fins de promoção ou
qualificação profissional. Busca-se, também, a adequação do elenco de
profissionais às realidades verificadas na região de operação da empresa. Essas
medidas estimulam as unidades empresariais a demonstrar sua preocupação
com a diversidade humana de seus quadros. [...]
A ação afirmativa parte do reconhecimento de que a competência para exercer
funções de responsabilidade não é exclusiva de um determinado grupo étnico,
racial ou de gênero. Também considera que os fatores que impedem a ascensão
social de determinados grupos estão imbricados numa complexa rede de
motivações, explícita ou implicitamente, preconceituosas.122

120
Conforme já exposto, a política de ação afirmativa trata-se de um mecanismo de inclusão. Neste sentido,
importante ressaltar que no Brasil existem políticas de ação afirmativa destinadas a estabelecer igualdade de
oportunidades e a produzir a inclusão de mulheres e portadores de deficiência. Ou seja, elas não se destinam
apenas aos negros. Como exemplo de ação afirmativa destinada à questão de gênero pode-se citar a Lei n°
9.504/97 (estabelece que 30% dos candidatos de cada partido nas eleições proporcionais devem ser do sexo
feminino). No que concerne a políticas deste tipo voltadas para portadores de deficiência existe a Lei
n°8.213/91 (estabelece que as empresas privadas tenham em seu quadro de empregados determinado
percentual de pessoas portadoras de necessidades especiais. O referido percentual varia de acordo com o
número total de empregados da empresa). Sobre as políticas de ação afirmativa direcionadas para mulheres e
pessoas portadoras de necessidades especiais ver CRUZ, Álvaro Ricardo Souza. O direito à diferença:
ações afirmativas como mecanismos de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas
portadoras de deficiência. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 221p
121
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Fundação
de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 1999. p. 197
122
Sant’Anna e Paixão. Apud. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional
da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 54
50

De acordo com GOMES123

As ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas


públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário,
concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem
nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação
praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva
igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. [...]
Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidas por
entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional,
com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente
reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres
humanos têm direito. 124

Entre os objetivos da ação afirmativa pode-se citar, ainda: induzir transformações


de ordem cultural, pedagógica e psicológica aptas a subtrair do imaginário coletivo a idéia
de supremacia e subordinação de uma raça sobre a outra; propiciar uma maior
representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade
pública e privada.125

Há quem confunda a ação afirmativa com as cotas. Porém, é importante observar


que o sistema de cotas constitui, apenas, uma das modalidades de ação afirmativa. A
política de ação afirmativa visa ir além da fixação de um número de vagas para integrantes
de um grupo desfavorecido, ou seja, pretende ir além da modalidade sistema de cotas, na
medida em que busca alcançar os objetivos citados acima.

Além do sistema de cotas, como forma de implementação de ações afirmativa


podem ser utilizados o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os
incentivos fiscais (no setor privado).126 Ou seja, as políticas de ação afirmativa não se
restringem ao sistema de cotas.

123
Joaquim B. Barbosa GOMES, atualmente um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, é um dos
maiores defensores das políticas de ações afirmativas no Brasil.
124
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. p. 40
125
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson
dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p. 30
126
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson
dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.53
51

3.2.1 Justiça Distributiva e Justiça Compensatória

Existem alguns postulados filosóficos utilizados para fundamentar as políticas de


ação afirmativa. Porém dois deles se destacam, são eles: o postulado da Justiça
Compensatória e o postulado da Justiça Distributiva. 127

O postulado da justiça compensatória argumenta que o fundamento das ações


afirmativas reside na “[...] necessidade, para as sociedades que por longo tempo adotaram
políticas de subjugação de um ou vários grupos ou categorias de pessoas por outras, de
corrigir os efeitos perversos da discriminação passada”.128

Deste modo, ao adotarem as políticas de ação afirmativa em prol de certos grupos


sociais que foram historicamente marginalizados, essas sociedades estariam propiciando, a
estes grupos, uma reparação ou compensação pela injustiça cometida no passado.129

A tese da justiça compensatória justifica essa compensação ou reparação com base


no fato de que

o preconceito e a discriminação oficial ou social de que foram vítimas as


gerações passadas tendem inexoravelmente a se transmitir às gerações futuras,
constituindo-se em um insuportável e injusto ônus social, econômico e cultural
a ser carregado, no presente, por essas novas gerações. 130

Assim, de acordo com esta tese, os membros dos grupos que sofreram algum tipo
de injustiça passada são prejudicados em um aspecto de grande importância em suas vidas,
qual seja a falta dos meios indispensáveis à sua inserção, “[...] em pé de igualdade com os
beneficiários da injustiça perpetrada, na competição pela obtenção de empregos e posições
escassos do mercado de trabalho”. Isto significa que a discriminação, se compreendida
como uma privação de meios ou de instrumentos de competição resulta igualmente em

127
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p.61
128
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 62
129
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 62
130
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 62
52

privação de oportunidades e, esta, consequentemente diminui as perspectivas de bem estar


geral e de sucesso daqueles que dela são vítimas. 131

Para a tese da justiça compensatória a implementação de ações afirmativas é o


melhor modo de aumentar as chances daqueles que historicamente foram prejudicados
obterem os empregos, bem como alcançarem as posições de prestígio que naturalmente
obteriam caso não tivessem sido vítimas de discriminação.132

Assim, ao realizar a justiça compensatória repara-se a igualdade e transfere-se aos


grupos prejudicados certos ganhos indevidamente obtidos por aqueles que se beneficiaram
na iniqüidade histórica que se visa reparar.133

Já a tese de justiça distributiva134 leva em consideração a “[...] necessidade de se


promover a redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riqueza e outros
importantes bens e benefícios entre os membros da sociedade”. Essa distribuição teria a
função de diminuir as injustiças decorrentes da discriminação.135

Os que defendem essa teoria136 sustentam que “[...] não é justo que determinados
grupos sociais, tais como negros e mulheres, sejam fadados, ao longo de suas vidas, a

131
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 63
132
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 63
133
Joaquim B. Barbosa Gomes alerta para o fato de que “embora a noção de justiça compensatória figure
como justificativa filosófica de um grande número de programas de ação afirmativa vigentes nos diversos
países que adotam esse tipo de política social, inclusive nos EUA, do ponto de vista estritamente jurídico,
porém, trata-se de uma concepção não isenta de falhas. Com efeito, em matéria de reparação de danos, o
raciocínio jurídico tradicional opera com categorias rígidas tais como ilicitude, dano e remédio
compensatório, estreitamente vinculados uns aos outros em relação de causa e efeito. Em regra, somente
quem sofre diretamente o dano tem legitimidade para postular a respectiva compensação. Por outro lado, essa
compensação só pode ser reivindicada de quem efetivamente praticou o ato ilícito que resultou no dano. Tais
incronguências, exacerbadas pelo dogmatismo, outrancier típico da práxis jurídica ortodoxa, findam por
enfraquecer a tese compensatória como argumento legitimador das ações afirmativas”. GOMES, Joaquim B.
Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de
Transformação Social. A Experiência dos EUA p. 63-65
134
Joaquim B. Barbosa Gomes, afirma que “[...] as ações afirmativas se justificam de maneira mais
convincente à luz dos princípios da justiça distributiva do que da justiça compensatória, embora não sejam
raras as hipóteses [...] de conjugação dessas duas noções”. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa
& Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. A
Experiência dos EUA. p. 66
135
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 67
136
Dentre eles Joaquim B. Barbosa Gomes e Ronald Dworkyn.
53

sempre ocuparem as posições inferiores ou subalternas na hierarquia social, por razões que
repousam unicamente na cor da sua pele ou no sexo”. 137

A tese da justiça distributiva entende que esses indivíduos ou grupos têm o direito
de obter certas vantagens, benefícios ou mesmo o acesso a determinadas posições, das
quais eles naturalmente teriam acesso se as condições sociais em que vivem fossem de
efetiva justiça, ou seja, “[...] caso seus direitos e pretensões não tivessem esbarrado no
obstáculo intransponível da discriminação”. 138

Entre os partidários da tese distributiva, há os que consideram que ela possui um


substrato utilitarista.139 Deste modo, a redistribuição de benefícios e ônus na sociedade tem
objetivo promover o bem-estar geral, uma vez que ao se reduzir a pobreza e as iniqüidades,
tendem igualmente a desaparecer o ressentimento, o rancor, a perda do auto-respeito
decorrente da desigualdade econômica.140

3.3 O DEBATE BRASILEIRO EM TORNO DO TEMA DA POSSIBILIDADE DE


ADOÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS

Com o surgimento da idéia de implantação do sistema de reserva de vagas para


negros nas Universidades Públicas Brasileiras, e, a partir do momento em que o Projeto de
Lei n.° 3.627/2004, que institui a reserva de vagas, se tornou de conhecimento público,
muito se discute sobre a legitimidade desta política.

137
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 66
138
Para o autor, “contestar essa presunção (de que mulheres e outras minorias raciais progrediriam não fosse
o racismo e o sexismo) equivaleria, em outras palavras, a sustentar que os grupos marginalizados seriam
dotados de uma inferioridade congênita”. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio
Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos
EUA. p. 68
139
Entre eles Ronald Dworkin. Por oportuno, cumpre registrar que ao formular suas reflexões a respeito do
primeiro caso de ação afirmativa em matéria educacional a subir em grau de recurso à Suprema Corte dos
Estados Unidos (Caso DeFunnis), Dworkin utiliza a visão utilitarista para tecer suas considerações. O caso
DeFunnis e algumas considerações sobre o utilitarismo foram abordados nos itens 2.2 e 2.3.2 do segundo
capítulo.
140
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 68
54

Os opositores da política de ação afirmativa são contra as cotas por acreditarem


que o mais adequado seria investir nas bases da educação, sob o argumento de que este
tipo de política não passa de um método para beneficiar os cidadãos negros que
disputariam vagas no ensino superior com vantagens em relação aos brancos.

De um lado, há o interesse da comunidade negra, praticamente excluída do ensino


superior brasileiro, já que aproximadamente metade da população brasileira é composta
por eles141, mas apenas 5% (cinco por cento)142, número ínfimo, cursa o ensino superior,
embora possuam o direito à inclusão social e a uma educação pública de qualidade.143

De outro lado, há parte da sociedade que tem grande resistência a este tipo de
política, devido, inclusive, ao motivo já exposto anteriormente, e que clamam pelo
princípio da igualdade previsto na Constituição Federal Brasileira, princípio que, por sua
vez, resguarda também o direito dos cidadãos negros a uma posição de igualdade em
relação aos brancos nos cursos de graduação públicos.

O tema possui relevância para o país e o direito brasileiro, haja vista que incide em
um dos mais graves problemas sociais, que se encontra enraizado na sociedade, a qual
finge não saber sua existência: a discriminação e a conseqüente exclusão do negro do
processo produtivo e da vida social digna. Além disso, discute uma temática do direito
constitucional comparado e de direito internacional ainda pouco debatida nas
universidades brasileiras.144

141
O termo negro utilizado no presente trabalho refere-se à soma das classificações pretos e pardos, conforme
classificação utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
142
Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. IPEA. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>.
Acesso em: 22 maio 2008.
143
De acordo com a Constituição Federal:
Art. 205 – A educação direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206 – o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais
VI – gestão democrática do ensino público na forma da lei.
144
De acordo com GOMES, “[...] se a ‘teoria’ das ações afirmativas é quase inteiramente desconhecida no
Brasil, a sua ‘prática’, no entanto, não é de todo estranha à nossa vida administrativa. Com efeito, o Brasil já
conheceu em passado não muito remoto uma modalidade (bem brasileira!) de ação afirmativa. É a que foi
materializada na chamada Lei do Boi (Lei 5.465/68), cujo art. 1° era assim redigido: ‘Os estabelecimentos de
ensino médio agrícola e as escolas superiores de agricultura e veterinária, mantidos pela União, reservarão,
anualmente, de preferência, cinqüenta por cento de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes,
proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural, e trinta por cento a agricultores
ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam
55

3.3.1 A abolição da escravatura e seus reflexos para a população negra na sociedade


brasileira

Os Estados Unidos da América foi o país pioneiro na adoção de políticas de ação


afirmativa. Neste país esta política foi instituída com vista ao combate da discriminação,
preconceito e a conseqüente marginalização social e econômica do negro na sociedade
americana.

No Brasil a situação da população negra não é diferente. A população negra vê-se à


margem da sociedade, privada de oportunidades e de uma vida social digna. Esse fato se
faz presente em vários indicadores sociais, que apontam a disparidade de condições sócio-
econômicas entre negros e brancos145, conseqüência da herança escravocrata de nosso país,
que é o que possui a mais longa história de escravidão das Américas.

No Brasil, o fim da escravidão se deu em 13 de maio de 1888, com o advento da


Lei Áurea. Porém, desde a escravidão seus defensores atribuíam aos negros um conjunto
de estereótipos negativos, fator que amparava sua visão hierárquica na sociedade. Deste
modo, o racismo146 nasce diretamente relacionado à escravidão. 147

Com a abolição da escravatura surgem algumas teses que sustentam a inferioridade


biológica dos negros. Essas teses, conhecidas como “racismo científico”148, propugnavam

estabelecimentos de ensino médio’. GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações
afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas
contra as desigualdades raciais. p.16
145
Daniel Sarmento chama a atenção para o nível de desigualdade existente entre a população negra e a
população branca no Brasil, devidamente caracterizado em um estudo publicado no ano 2000, que versa
sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos dois grupos. Segundo o autor, no ano de 1999 o
Brasil apareceu na 74ª posição no mundo em termos de IDH. Contudo, caso houvesse sido considerada
apenas a população branca o país alcançaria a 43ª posição mundial. Já se apenas a população negra fosse
analisada a posição alcançada seria a 108ª, o que demonstra a disparidade de condições sociais dos dois
grupos. SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia;
SOUZA, Douglas de (Coord.).Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 60.
146
Racismo: “Conjunto de idéias e valores. Trata-se de uma ideologia que preconiza a hierarquização dos
grupos humanos com base na etnicidade”. JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais
no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Brasília: IPEA, 2002. p. 67
147
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>. Acesso em: 22 maio 2008.
148
Segundo a pesquisa do IPEA, a tese do “racismo científico”, também desenvolvida na Europa, teve início
na década de 1870, e tornou-se amplamente aceita durante o período compreendido entre as décadas de 1880
e 1920.
56

o branqueamento da sociedade brasileira como forma de garantir e acelerar o processo de


desenvolvimento nacional.

A tese do “racismo científico” potencializou o preconceito contra a participação dos


negros nos espaços públicos. Além disso, aumentou os mecanismos discriminatórios e
impôs a tese do branqueamento, calcada na “[...] crença na superioridade branca com a
busca do progressivo desaparecimento do negro, cuja presença era interpretada como um
mal para o país”.149

O referido período tem como característica a ausência de políticas públicas para a


população negra. Somado a este fator, ocorreu ainda a implementação de políticas públicas
que contribuíram para o aprofundamento da desigualdade social. Dentre estas políticas, a
de promoção da imigração merece destaque. Esta política, que tinha por base a ideologia
do branqueamento da sociedade brasileira, incentivava o ingresso de imigrantes europeus
para trabalhar no país. Como resultado, “[...] deslocou a população negra livre para as
colocações menos atraentes do mercado de trabalho”. 150

No período seguinte à abolição da escravatura o país viveu um processo de


aceleração do desenvolvimento econômico. Deu-se início a um processo de urbanização,
com o intuito de desenvolver setores como a indústria, a construção de ferrovias, comércio,
entre outros. 151

Esse processo propiciou o aumento das oportunidades de emprego. Porém, em


função do preconceito arraigado na população branca, que defendia a “[...] crença da
menor capacidade do trabalhador negro face ao branco”152, a população negra se viu
excluída destas oportunidades, que ficaram reservadas aos imigrantes europeus.

Assim, a desigualdade social apresentada através de pesquisas que demonstram


ainda hoje a enorme diferença de condições sociais e econômicas existente entre a

149
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
150
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
151
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
152
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
57

população negra e a população branca é [...] reflexo de oportunidades desiguais de


ascensão social após a abolição153, que foi acentuada pelas políticas públicas dirigidas à
promoção da imigração européia.154

3.3.2 Situação atual em relação à diferença das condições sociais e econômicas entre a
população branca e a população negra

O IPEA divulgou em 13 de maio de 2008 uma pesquisa, intitulada “Desigualdades


raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição”, em comemoração aos 120
anos de abolição da escravatura. Nela foi pesquisado o nível de escolaridade entre brancos
e negros com 25 anos e mais idade, que haviam concluído o ensino superior.155

Os dados da referida pesquisa dão conta de que, no ano de 2006, entre a população
branca, 18% (dezoito por cento) havia concluído o ensino superior, enquanto que, entre a
população negra, 5,0% (cinco por cento) possuía o mesmo nível de estudo.

153
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
154
A teoria do “racismo científico” deixou profundas marcas na sociedade brasileira e se faz presente no
pensamento das pessoas. Nesse sentido, GUIMARÃES afirma: “todos sabemos que o racismo científico é
ainda um cadáver recente (alguns duvidariam se é mesmo um cadáver). Apesar do esforço, patrocinado pela
UNESCO no pós-guerra, para desmistificar e denunciar o caráter pseudocientífico e ideológico das teorias e
categorias raciais, estas e a própria idéia de raça não desapareceram [...] da mente das pessoas”.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. p.194
155
Além de apresentar um comparativo entre a escolaridade de brancos e negros, em todos os níveis de
educação, a pesquisa realizada pelo IPEA apresenta dados atuais sobre a inserção da população negra e
branca no mercado de trabalho. A pesquisa concluiu que a taxa de desocupação aberta é maior entre a
população negra (9,3%) do que entre a população branca. Demonstrou ainda que os setores econômicos
com as piores condições de trabalho (no que concerne a remuneração, estabilidade etc) possui grande
participação da população negra, enquanto a população branca tem grande concentração nos setores com
maior remuneração, mais estabilidade, etc. Informa que população a negra encontra-se sub-representada nas
posições mais precárias de trabalho onde correspondem a: 55% dos trabalhadores não remunerados, 55,4%
dos assalariados sem carteira e 59,1% dos trabalhadores domésticos. Em contrapartida, a população branca
possui uma maior representação nas posições mais estruturadas, sendo que 57,2% são assalariados com
carteira assinada e 71,7% são empregadores. Além disso, como resultado a pesquisa comprova que em
média, os empregados negros recebem como salário a quantia mensal de R$ 578,24, enquanto que a
população branca recebe o valor de R$ 1.087,14 como salário, ou seja, os negros recebem valor que
corresponde a apenas 53,7% do recebido pelo brancos. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição.
58

Esta situação é agravada pelo fato de que no Brasil, de tanto conviver com a
desigualdade, o cidadão brasileiro a deixa de ver como injustiça, e vê como natural, ainda
que, inconscientemente, a idéia de que o negro ocupe posições subalternas na sociedade.156

É importante observar que a disparidade de condições sócio-econômicas entre


brancos e negros caminha junto com um outro problema, o do reconhecimento.157 O
problema do reconhecimento diz respeito ao modo como determinados grupos são
enxergados na sociedade, o que faz com que eles sejam considerados menos dignos de
respeito do que outros.158

A ação afirmativa é uma política social que visa modificar o quadro em que a
população negra se encontra inscrita, na medida em que objetiva propiciar que este grupo,
desfavorecido socialmente, tenha as mesmas condições de acesso, oportunidades de
desenvolvimento e respeito que os outros; ou seja, tenham direito ao igual tratamento e ao
tratamento como igual.159

A redução desta alarmante realidade é um dos objetivos a serem atingidos pela


política de ação afirmativa, implementadas nas universidades públicas através da
modalidade do sistema de cotas.

Após realizadas essas considerações, cumpre apresentar os argumentos contrários e


favoráveis à implementação da ação afirmativa, através da modalidade de cotas nas
universidades brasileiras.

156
SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA,
Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 61.
157
Nancy Fraser, em “Da Redistribuição ou Reconhecimento?”, propôs um modelo de distinção entre dois
tipos de injustiças: o problema de distribuição (de natureza socioeconômica, que decorre de uma partilha não
eqüitativa de recursos na sociedade) e o problema de reconhecimento (modo como determinados grupos são
enxergados no contexto social, o que pode implicar profundos abalos à auto-estima e ao bem-estar dos
integrantes desses grupos). A autora conclui que os negros sofrem das duas injustiças: são mais pobres e têm
acesso restrito à bens econômicos; e, por outro lado, são estigmatizados, tidos por muitos como integrantes
de uma raça inferior (menos inteligentes, mais propensos ao crime). (FRASER, Nancy. Apud SARMENTO,
Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de
(Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 61.
158
No que diz respeito a estigmatização sofrida por cidadãos negros, em sua obra “Uma questão de
princípio”, Ronald Dworkin faz a seguinte afirmação: “Homens e mulheres, meninos e meninas negros não
são livres para escolher por si mesmos em que papéis – ou como membros de quais grupos sociais – outros
irão caracterizá-los. Eles são negros, e nenhum outro atributo de personalidade, lealdade ou ambição irá
influenciar tanto o modo como os outros irão vê-los ou tratá-los, e que tipo e dimensão de vida estarão
abertos a eles”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. p. 438.
159
Para uma maior compreensão sobre a teoria de Dworkin, relativa ao direito à igual tratamento e ao
tratamento como igual, ver a obra DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 349.
59

3.3.3 ARGUMENTOS SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DA AÇÃO AFIRMATIVA NAS


UNIVERSIDADES BRASILEIRAS

No Brasil o debate que tem ganhado cada vez mais espaço nos últimos tempos diz
respeito sobre a implementação de política de ação afirmativa nas universidades públicas
brasileiras160, mas precisamente sobre a adoção do sistema de cotas.

Quando se discute sobre a implementação da política de ação afirmativa, através da


modalidade do sistema de cotas nas universidades públicas, os seus opositores,
comumente, apresentam quatro argumentos contra a sua adoção. São eles: violação ao
princípio da igualdade; mérito; pobreza e miscigenação.161

A seguir, será realizada uma abordagem sobre cada um destes argumentos,


apresentando os prós e contras.

3.3.3.1 Violação ao princípio da igualdade

Os opositores a adoção das políticas de ação afirmativas, argumentam que a mesma


fere o princípio da igualdade (que preconiza que todos devem ser tratados iguais), na
medida em que estabelece tratamento diferenciado para determinadas pessoas e/ou grupos.

Conforme abordado no primeiro capítulo deste trabalho, o princípio da igualdade


comporta duas dimensões: a dimensão formal, que veda a utilização de tratamento
diferenciado/desigual; e a dimensão material que por sua vez permite que, nos casos em
existam situações de desigualdade social, o Estado atribua tratamento diferenciado, de
modo a nivelar as situações desiguais. Ou seja, dimensão material do princípio da
igualdade busca efetivá-lo no plano fático; torná-lo operacional.

Para tanto, é necessário que a diferença de regimes outorgados esteja em


consonância com os objetivos e ditames constitucionais.

160
A primeira universidade brasileira a adotar o sistema de cotas em seu vestibular foi a Universidade de
Brasília (UnB), no vestibular para o ingresso na universidade no ano de 2004.
161
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 49
60

O sistema de cotas possui como um de seus objetivos efetivar a justiça social e, por
isso, guarda correlação lógica com os interesses e ditames constitucionais, haja vista que
ao efetivar a justiça social162, busca garantir uma igualdade efetiva, bem como promove os
objetivos previstos no preâmbulo da Constituição.

A disparidade de regimes outorgados possui como fundamento a discrepância de


condições sócio-econômicas existente entre brancos e negros, decorrentes de todo um
processo histórico, que contribui para que, ainda hoje, a população negra encontre-se à
margem da sociedade, fator comprovado através de vários indicadores sócio-econômicos.

Importante observar que as situações em que se encontram a população branca e a


negra no país são distintas, o que implica a necessidade de se dispensar um tratamento
diferenciado, sem que isso represente afronta ao princípio da igualdade.

Por oportuno, cumpre destacar a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª


Região, que em despacho, publicado em 31 de janeiro de 2008, deferiu efeito suspensivo a
agravo de instrumento interposto pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC163,
contra decisão que em Ação Civil Pública deferiu a liminar para suspender a classificação
pelo sistema de cotas na Universidade, através do concurso vestibular. Senão vejamos:

Ademais, com relação à alegação de violação ao princípio da isonomia, cabe


esclarecer que a igualdade somente pode ser cotejada entre pessoas que estejam
em situação equivalente, sendo levados em consideração os fatores ditados pela
realidade econômica e social, que influem na capacidade dos candidatos para
disputar vagas nas universidades públicas. Assim, não se há de reconhecer
quebra de igualdade no ato administrativo realizado pela parte apelada. O
interesse particular não pode prevalecer sobre a política pública; não se poderia
sacrificar a busca de um modelo de justiça social apenas para evitar prejuízo
particular. 164

No caso do sistema de cotas, ao se dispensar tratamento jurídico diferenciado a


estudantes negros o legislador nada mais fez do que apanhar ponto de diferença “a que

162
Justiça social é o princípio da justiça distributiva, pela qual a comunidade distribui, de maneira eqüitativa,
entre os seus membros, bens, recompensas, cargos e funções. GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri
Dicionário Técnico Jurídico. São Paulo: Rideel, 1995.
163
A Universidade Federal de Santa Catarina começou a adotar o sistema de cotas no vestibular 2008,
destinando 10% (dez por cento) de suas vagas para alunos negros, 20 % (vinte por cento) para egressos de
escola pública.
164
Neste caso, o Desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz segue a jurisprudência adotada pela
Corte, que é no sentido de reconhecer a legalidade do sistema de cotas. Brasil. Tribunal Regional Federal 4ª
Região. Agravo de Instrumento n° 2008.04.00.003151-2/SC, 3ª Turma, Relator Desembargador Carlos
Eduardo Thompson Flores Lenz, 31 de janeiro de 2008. Disponível em: http://www.trf4.gov.br>. Acesso em
12 fev. 2008.
61

atribuiu relevo para fins de discriminar situações, inculcando a cada qual efeitos jurídicos
correlatos e, de conseguinte, desuniformes entre si”, para colocá-las em situação de
igualdade. 165

Deste modo, o argumento de que a ação afirmativa viola o princípio da igualdade


não deve ser levado em consideração.

A propósito, no que concerne a crítica formulada contra a adoção de tratamento


diferenciado para estudantes negros como critério de admissão sob o argumento de que
este critério trará desvantagem aos demais concorrentes, Dworkin rebate afirmando que
critérios de admissão para a universidade sempre colocarão alguns candidatos em situação
de desvantagem em relação aos outros. Contudo, o fato de promover tais desvantagens não
é motivo autorizador de se proibir a institucionalização de tais políticas de admissão, como
o sistema de cotas, pois, é preciso observar o ganho que estas políticas representam para a
sociedade em termos gerais.

Assim, as desvantagens decorrentes da utilização de políticas de discriminação


compensatória, segundo Dworkin, podem ser justificadas nos casos em que o ganho da
sociedade ultrapasse a perda daqueles que “sofreram desvantagens”, bem como se inexistir
outra política que promova resultados com o mesmo ganho.166

Nestes casos, deve-se observar que a perda individual de alguns candidatos foi
compensada por um ganho maior, na medida em que foi beneficiada a sociedade como um
todo.167

3.3.3.2 Pobreza

Segundo este argumento, a questão a ser enfrentada, para diminuir ou até mesmo
romper, com a desigualdade social é a econômica, de modo que as políticas de ação

165
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 18
166
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 351
167
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 351
62

afirmativa deveriam ser voltadas aos pobres, sem levar em consideração aspectos
raciais.168

Tendo em vista que a educação superior se constitui em fator de fundamental


importância, a sua falta é um verdadeiro obstáculo para a ascensão social. Atualmente, um
número pequeno da população negra encontra-se incluída na educação superior. Além
disso, a desigualdade econômica em que a população negra encontra-se inscrita está
diretamente relacionada com a escravidão que deixou como herança a discriminação racial
de que sofreram e ainda sofrem. 169

Por este motivo, em sua última pesquisa o IPEA concluiu que “para combater as
desigualdades raciais são necessárias mais que políticas universais. São necessárias
políticas de ação afirmativa”.170 Isto porque a ação afirmativa visa atingir um objetivo
maior do que alterar, a longo prazo, o quadro econômico em que estão os negros. A ação
afirmativa possui como objetivo criar modelos de representações, criar uma diversidade
racial nos cursos das universidades. Romper com a reprodução das desigualdades
raciais.171

A ação afirmativa não pode ser entendida nem substituída por políticas de
enfrentamento à pobreza, tendo em vista suas características de ação de caráter temporário,
com o objetivo bastante específico de privilegiar o acesso dos indivíduos que estão
comprovadamente sub-representados. 172

Além disso, deve-se levar em conta que os programas de ação afirmativa


tomam por base dois juízos: o primeiro juízo, segundo Dworkin, está relacionado à teoria
social: entende que a sociedade continuará impregnada de divisões raciais “[...] enquanto

168
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. Brasília: IPEA, 2002. p. 49
169
Neste sentido ver SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In:
PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.).Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. p.79 e
também JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da
intervenção governamental. p. 66
170
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
171
“[...] quando a cor da universidade, pública ou privada, é tão mais branca que negra, a educação superior
passa a ser um elemento de reprodução das desigualdades raciais ao impedir a formação de uma elite negra,
ou melhor, ao impedir o acesso dos negros à elite do país”. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição.
172
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 53
63

as carreiras mais lucrativas, gratificantes e importantes continuarem a ser prerrogativa de


membros da raça branca, ao passo que outros se vêem sistematicamente excluídos de uma
elite profissional e social”. O segundo juízo, leva em conta um cálculo estratégico:
“aumentar o número de negros atuando nas várias profissões irá, a longo prazo, reduzir o
sentimento de frustração, injustiça e constrangimento racial na comunidade negra [...]”.173

3.3.3.3 Miscigenação

Toma por base o argumento de que o processo de miscigenação experimentado no


Brasil torna difícil definir quem é negro ou não é negro. Somado a este fator argumenta-se
que não seriam necessárias políticas de ação afirmativa voltadas ao combate da
discriminação racial, porque tal discriminação, em decorrência da miscigenação, não
ocorre no Brasil. É o chamado mito da democracia racial. Deste modo, o Brasil não estaria
174
dividido, nem faria distinção de “raças” , motivo pelo qual não poderia haver uma
política que realize este tipo de distinção.

Já os favoráveis a adoção das políticas de ação afirmativa, sustentam que, embora


tenha ocorrido no país a miscigenação, a discriminação existe, devidamente comprovada
através de indicadores econômicos e sociais, que demonstram, inclusive, que “[...]
efetivamente essa distinção é feita”.175 Desta feita, a ação afirmativa seria uma política
necessária para combater a desigualdade social e racial.176

3.3.3.4 Mérito

Enfim, juntamente com o argumento de que a ação afirmativa viola o princípio da


igualdade, o argumento muito utilizado pelos opositores deste tipo de política é o de que

173
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. p. 438-439
174
SELL afirma que atualmente a biologia, bem como as ciências sociais, tem deixado de utilizar este termo,
por verificar que “as diferenças genéticas, sanguíneas, ósseas e epidérmicas podem variar mais entre
indivíduos de um mesmo grupo do que entre indivíduos de diferentes ‘raças’”. Não obstante popularmente o
termo “raça” é utilizado.
175
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. p.76
176
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 56
64

não é justo que o mérito dos candidatos não seja levado em conta como critério de
admissão na universidade. Alegam que “[...] no mundo de alta competitividade, essa
capacidade pessoal [o mérito] revela-se fundamental”.177

Os defensores das políticas de ação afirmativa sustentam que esta é uma medida
necessária para propiciar um aumento na qualificação, bem como de oportunidades da
população negra. As ações afirmativas irão contribuir para que haja um processo de
inclusão da população negra em setores em que ela possui baixa representatividade, de
modo a promover a diversidade racial, a elevação da auto-estima e até mesmo a ascensão
econômica, uma vez que, como já dito, a universidade propicia acesso a melhores
empregos e salários. Além disso, argumentam que nada impede que o mérito conte como
critério de admissão juntamente com o critério racial. Isto poderia ser feito com a fixação
de um número mínimo de pontos a ser alcançado no vestibular.

No que concerne à questão do mérito intelectual como critério de admissão na


universidade, Dworkin afirma que não há motivo justificador para que se impeça que
outros critérios sejam admitidos como mérito, pois segundo ele não existe nenhuma
definição do que constitua realmente o “mérito”.

Não há nenhuma combinação de capacidades, méritos e traços que constituam o


‘mérito’ no sentido abstrato; se mãos ágeis contam como “mérito” no caso de
um possível cirurgião, é somente porque mãos ágeis irão capacitá-lo a atender
melhor o público. Se uma pele negra, infelizmente, capacita outro médico a
fazer melhor um outro trabalho médico, a pele negra, em prova do que digo,
também é um mérito. Para alguns, esse argumento pode parecer perigoso, mas
apenas porque confundem sua conclusão - que a pele negra pode ser uma
característica socialmente útil em dadas circunstâncias – com a idéia muito
diferente e desprezível de que uma raça pode ter inerentemente mais valor que
outra.178

Desta feita, é completamente cabível utilizar classificações raciais como mérito


para admissão nas universidades.

177
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 49
178
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. p. 446.
65

Para o autor, já que a “educação superior de elite é um recurso valioso e escasso


[...] as universidades e as faculdades têm [...] responsabilidades públicas: devem escolher
metas que beneficiem uma comunidade muito mais ampla [...]”. 179

Assim, as ações afirmativas são medidas necessárias para aumentar o número de


negros nas universidades, uma vez que “a discriminação racial do passado gerou uma
nação na qual os cargos de poder e prestígio sempre ficaram reservados a uma só raça”.180
O ensino superior contribui para a ascensão social e econômica, uma vez que através dele é
possível alcançar melhores empregos e melhores salários.

Não há de se desconsiderar que a ação afirmativa tem seu preço. Porém, segundo
Dworkin, proibi-las seria um preço muito mais alto. A incerteza que circunda os possíveis
resultados sobre a adoção de políticas de ação afirmativa não é motivo justificador para
não implementá-las181, pois ao deixar de implementá-las

[...] estaríamos renunciando a uma chance de combater certa injustiça presente


para obter proteção, da qual talvez não precisemos, contra abusos especulativos
que temos outros meios de evitar. E tais abusos não podem, de qualquer modo,
ser piores que a injustiça à qual nos estaríamos rendendo.182

Como visto, este tipo de política se faz necessária para “reverter o quadro de
desigualdade, exclusão e injustiça a que foram e são submetidos os negros”.183

A adoção do sistema de cotas nas universidades brasileiras visa inclusão da


população negra, bem como combater o preconceito racial e a discriminação racial,
historicamente construídos através de esteriótipos negativos consolidados.184

179
“A educação superior de elite é um recurso valioso e escasso, e, embora só esteja disponível para
pouquíssimos alunos, é paga por toda a comunidade, mesmo no caso das universidades ‘particulares’, que são
parcialmente financiadas por verbas públicas e cujos doadores ‘particulares’ se beneficiam das deduções
tributárias. As universidades e as faculdades têm, portanto, responsabilidades públicas: devem escolher metas
que beneficiem uma comunidade muito mais ampla do que seus próprios corpos docente e discente”.
DWORKIN, Ronlad. A virtude Soberana: A teoria e a prática da igualdade. p.570
180
DWORKIN, Ronald. A virtude Soberana: A teoria e a prática da igualdade. p.579
181
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 450
182
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. p. 450
183
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 53
184
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 56
66

Proibir a implementação de políticas como a ação afirmativa seria, deste modo, o


mesmo que perpetuar o quadro de alarmante desigualdade que se verifica nos dias atuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ação afirmativa tem sua origem nos Estados Unidos da América. A primeira
pessoa a utilizar o termo foi o Presidente John F. Kennedy, em 1961, por meio de um texto
oficial em que propôs medidas com vistas a ampliar a igualdade de oportunidades no
mercado de trabalho.

Os Estados Unidos da América foi o país pioneiro na adoção de políticas de ação


afirmativa. Neste país esta política foi instituída com vista ao combate da discriminação,
preconceito e a conseqüente marginalização social e econômica do negro na sociedade
americana.

Conforme demonstrado, no Brasil a situação da população negra não é diferente.


Embora não tenha sofrido uma segregação racial-legal, como a utilizada nos Estados
Unidos através da doutrina “separados mas iguais”, o Brasil vivencia uma segregação
racial nas relações sociais: a população negra vê-se à margem da sociedade, privada de
oportunidades e de uma vida social digna.

Esse fato se faz presente em vários indicadores sociais, que apontam a disparidade
de condições sócio-econômicas entre negros e brancos, conseqüência da herança
escravocrata de nosso país, que é o que possui a mais longa história de escravidão das
Américas.

O período que se seguiu à abolição da escravatura no Brasil propiciou, através de


teses como o “racismo científico”, um aumento do preconceito contra o negro, bem como o
aprofundamento das desigualdades sociais, de modo que a população negra se viu excluída
de diversas oportunidades, que ficaram reservadas aos imigrantes europeus.

Desta feita, a desigualdade social apresentada através de pesquisas que demonstram


ainda hoje a enorme diferença de condições sociais e econômicas existente entre a
população negra e a população branca seria reflexo da falta oportunidades, além do
preconceito e da discriminação, que contribuiu para impedir a ascensão social dos negros
após a abolição da escravidão, fator acentuado pelas políticas públicas dirigidas à
promoção da imigração européia.

A redução desta alarmante realidade é um dos objetivos a serem atingidos pela


política de ação afirmativa, que é uma política social que visa modificar o quadro em que a
68

população negra se encontra inscrita, na medida em que objetiva propiciar que este grupo,
desfavorecido socialmente, tenha as mesmas condições de acesso, oportunidades de
desenvolvimento e respeito que os outros; ou seja, tenham direito ao igual tratamento e ao
tratamento como igual.

Ronald Dworkin, ao discorrer em suas obras, principalmente em “Levando os


Direitos a Sério” e “Uma questão de Princípio”, sobre a ação afirmativa, sustenta que o
princípio da igualdade compreende o direito a igual tratamento, ou seja, à igual
distribuição de alguma oportunidade, recurso, etc., e o direito ao tratamento como igual,
qual seja, o direito de um indivíduo ser tratado com o mesmo respeito e consideração que
qualquer outro.

Para Dworkin o fundamento das ações afirmativas consiste no fato de que ela visa
contribuir positivamente para a promoção do bem estar geral, em busca de uma sociedade
mais justa em termos gerais, de forma a garantir que seja respeitado o direito que toda
pessoa tem de não ser excluída de oportunidades em função de que “a raça a que pertence
é objeto de preconceito ou desprezo”.

As políticas de ação afirmativa podem ser definidas como um conjunto de políticas,


públicas ou privadas, formuladas com o objetivo de combate à discriminação racial. Em
suma, visa a inclusão e a concretização da igualdade de direito, oportunidades e tratamento
de todos os indivíduos.

Conforme demonstrado, a ação afirmativa não deve ser compreendida apenas como
um sistema de cotas, tendo em vista que este constitui, apenas, uma de suas modalidades.
Ou seja, as políticas de ação afirmativa não se restringem ao sistema de cotas. Isto porque,
a política de ação afirmativa visa ir além da fixação de um número de vagas para
integrantes de um grupo desfavorecido, na medida em que busca alcançar outros objetivos,
além de aumentar o número de estudantes negros nas universidades.

Dentre os demais objetivos que a ação afirmativa pretende alcançar, como exposto
no decorrer do trabalho, inclui: induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e
psicológica aptas a subtrair do imaginário coletivo a idéia de supremacia e subordinação de
uma raça sobre a outra; propiciar uma maior representatividade dos grupos minoritários
nos mais diversos domínios de atividade pública e privada.
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Os opositores a adoção das políticas de ação afirmativas, argumentam que a mesma


fere o princípio da igualdade (que preconiza que todos devem ser tratados iguais), na
medida em que estabelece tratamento diferenciado para determinadas pessoas e/ou grupos.

Conforme abordado no primeiro capítulo deste trabalho, o princípio da igualdade


comporta duas dimensões: a dimensão formal, que veda a utilização de tratamento
diferenciado/desigual; e a dimensão material que por sua vez permite que, nos casos em
que haja situações de desigualdade social, o Estado atribua tratamento diferenciado, de
modo a nivelar as situações desiguais. Ou seja, a dimensão material do princípio da
igualdade, que busca efetivá-lo no plano fático; torná-lo operacional, permite que a lei
outorgue tratamento diferenciado para que as situações desiguais sejam tratadas de modo
diverso, de modo a colocá-las em posição de igualdade.

Para tanto, é necessário que a diferença de regimes outorgados esteja em


consonância com os objetivos e ditames constitucionais.

O sistema de cotas possui como um de seus objetivos efetivar a justiça social e, por
isso, guarda correlação lógica com os interesses e ditames constitucionais, haja vista que
ao efetivar a justiça social, busca garantir uma igualdade efetiva, bem como promove os
objetivos previstos no preâmbulo da Constituição.

A disparidade de regimes outorgados possui como fundamento a discrepância de


condições sócio-econômicas existente entre brancos e negros, decorrentes de todo um
processo histórico, que contribui para que, ainda hoje, a população negra encontre-se à
margem da sociedade, fator comprovado através de vários indicadores sócio-econômicos.

As situações em que se encontram a população branca e a negra no Brasil são


distintas, o que implica a necessidade de se dispensar um tratamento diferenciado, sem que
isso represente afronta ao princípio da igualdade.

Tendo em vista que a educação superior se constitui em fator de fundamental


importância, a sua falta é um verdadeiro obstáculo para a ascensão social. No Brasil
atualmente um número pequeno da população negra encontra-se incluída na educação
superior. Além disso, a desigualdade econômica em que a população negra encontra-se
inscrita está diretamente relacionada com a discriminação racial.

Por todos estes motivos, para combater as desigualdades raciais são necessárias
políticas de ação afirmativa. Elas visam um objetivo maior do que alterar, a longo prazo, o
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quadro econômico em que estão os negros. A ação afirmativa possui como objetivo criar
modelos de representações e uma diversidade racial nos cursos das universidades, a fim de
romper com a reprodução das desigualdades raciais.

Assim é que, as ações afirmativas irão contribuir para que haja um processo de
inclusão da população negra em setores em que ela possui baixa representatividade, de
modo a promover a diversidade racial, a elevação da auto-estima e até mesmo a ascensão
econômica, uma vez que a universidade propicia acesso a melhores empregos e salários.
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