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Biguaçu (SC)
2008
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE BIGUAÇU
CURSO DE DIREITO
Biguaçu (SC)
2008
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a
coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a Orientadora de toda e qualquer
responsabilidade acerca do mesmo.
Muito obrigada!
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela
cor de sua pele, por sua origem ou por sua
religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender e, se podem aprender a odiar,
podem ser ensinadas a amar”.
Nelson Mandela
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................................................10
ABSTRACT ............................................................................................................................11
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12
1. O PRINCÍPIO JURÍDICO DA IGUALDADE E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
DE 1988....................................................................................................................................14
1.1 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE.................................14
1.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A CONSTITUIÇÃO ...............................................16
1.3 IGUALDADE FORMAL E MATERIAL..........................................................................18
1.4 CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE ........................................21
2 RONALD DWORKIN E AÇÃO AFIRMATIVA.............................................................27
2.1 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE: O DIREITO A IGUAL TRATAMENTO E AO
TRATAMENTO COMO IGUAL - RONALD DWORKIN....................................................28
2.2 SENTIDO UTILITARISTA E SENTIDO IDEAL ............................................................29
2.3 OBJETIVOS E FUNDAMENTOS DOS PROGRAMAS DE AÇÃO AFIRMATIVA ....32
2.3.1 Caso Alan Bakke .............................................................................................................35
2.3.2 Caso Sweatt e DeFunis ....................................................................................................38
3 INTRODUÇÃO AO DEBATE BRASILEIRO SOBRE A POSSIBILIDADE DE
ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS..................................................................................................42
3.1 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE AS AÇÕES AFIRMATIVAS E A EXPERIÊNCIA
AMERICANA ..........................................................................................................................42
3.1.1 A Doutrina “separados mas iguais”.................................................................................43
3.1.2 Os reflexos da segunda guerra mundial na sociedade americana....................................44
3.1.3 Origem da ação afirmativa e primeiras políticas .............................................................46
3.2 CONCEITO DE AÇÃO AFIRMATIVA ...........................................................................48
3.2.1 Justiça Distributiva e Justiça Compensatória ..................................................................51
3.3 O DEBATE BRASILEIRO EM TORNO DO TEMA DA POSSIBILIDADE DE
ADOÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS ....................................................................................................53
3.3.1 A abolição da escravatura e seus reflexos para a população negra na sociedade brasileira
..................................................................................................................................................55
3.3.2 Situação atual em relação à diferença das condições sociais e econômicas entre a
população branca e a população negra .....................................................................................57
3.3.3 ARGUMENTOS SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DA AÇÃO AFIRMATIVA NAS
UNIVERSIDADES BRASILEIRAS .......................................................................................59
3.3.3.1 Violação ao princípio da igualdade .............................................................................59
9
3.3.3.2 Pobreza.........................................................................................................................61
3.3.3.3 Miscigenação................................................................................................................63
3.3.3.4 Mérito ...........................................................................................................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................67
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................71
RESUMO
Este trabalho monográfico aborda a possibilidade de adoção da política de ação afirmativa nas
universidades públicas brasileiras. A ação afirmativa é uma política social que visa a
concretização do princípio constitucional da igualdade. Para uma maior compreensão, o
presente trabalho apresenta a evolução do conceito de igualdade, que teve sua emergência
como princípio jurídico em documentos constitucionais promulgados logo após as revoluções
do final do século XVIII. Essa igualdade era uma igualdade meramente formal. No século
XX, onde, com o advento do Estado Social houve uma releitura do princípio da igualdade, o
conceito de igualdade meramente formal passou a ser questionado. Passa-se a compreender
que o princípio da igualdade possui uma outra dimensão além da igualdade formal, qual seja,
a de igualdade material que nada mais é do que um instrumento para a implementação de uma
igualdade efetiva. A ação afirmativa é uma política social que visa concretizar a igualdade
material, através da proteção e defesa de pessoas e/ou grupos desfavorecidos socialmente,
com o intuito de propiciar um estado de igualdade, no plano fático, que a igualdade formal,
sozinha, não conseguiria implementar. Da análise das teses de Ronald Dworkin, observa-se
que a ação afirmativa compreende o direito ao igual tratamento e ao tratamento como igual.
Os Estados Unidos da América foi o país pioneiro na adoção de ação afirmativa. Neste país
essa política foi instituída com vistas ao combate da marginalização social e econômica do
negro na sociedade americana. No Brasil o debate sobre a implementação de políticas de ação
afirmativa nas universidades públicas brasileiras tem ganhado cada vez mais espaço nos
últimos tempos. É grande a disparidade de condições econômicas e sociais, entre a população
negra e a população branca, reflexo do período escravocrata, tudo isto somado ao preconceito
racial. Por este motivo, para combater as desigualdades raciais são necessárias políticas de
ação afirmativa. A ação afirmativa visa alterar, em longo prazo, o quadro econômico em que
estão os negros. Dentre outros objetivos busca criar modelos de representações e uma
diversidade racial nos cursos das universidades, bem como romper com a reprodução das
desigualdades raciais.
This monographic essay approaches the possibility of adopting and affirmative action policy
within the Brazilian public universities. Affirmative action is a social policy which focuses
on concretizing the constitutional principle of equality. In order to better understand it, this
essay presents the evolution of the equality concept, which had its arousal as a juridical
principle in constitutional documents promulgated right after the revolutions in the end of the
18th century. This equality was merely formal. With the advent of the Social State in the 20th
century, there was a rereading of the equality principle where the concept of a merely formal
equality started to be questioned. It is then understood that the principle of equality possesses
a dimension other than that of formal equality, that is, material equality, which is nothing
more than a tool for the implementation of an effective equality. The affirmative action is a
social policy that aims at concretizing material equality, through the protection and defense of
people or groups that are socially less favored, with the objective of enabling a state of
equality in the phatic level, where formal equality alone would not be able to implement.
From the analysis of Ronald Dworkin's theses, we can observe that the affirmative action
englobes the right to equal treatment and treatment as equal. The United States of
America pioneered with the adoption of affirmative action. In that country, this policy was
established in order to fight social and economical marginalization of the black citizens in
American society. In Brazil, the debate on the implementation of affirmative action policies in
public universities has gained more and more space lately. The disparity of economical and
social conditions is large between the black and the white population, a reflex from the
slavery period, all that being added to racial prejudice. Thus, in order to fight racial inequality,
affirmative action policies are necessary. Affirmative action aims at altering, in the long run,
the black population's economical scenario. Among other objetives, it intends to create
representation models and a racial diversity in university courses as well as breaking the
reproduction of racial inequalities.
No Brasil o debate que tem ganhado cada vez mais espaço nos últimos tempos diz
respeito à implementação de políticas de ação afirmativa nas universidades públicas
brasileiras, mas precisamente sobre a adoção do sistema de cotas para negros, grupo
considerado excluído na sociedade.
A ação afirmativa consiste em uma política, pública ou privada, que tem como
objetivo aumentar o número de membros de grupos excluídos socialmente, em decorrência
de serem vítimas de discriminação, presente ou passada, de modo a proporcionar a eles a
mesma oportunidade, tratamento e respeito que gozam os demais indivíduos não
contemplados pela política.
Porém, o argumento mais utilizado é o de que a ação afirmativa não deve ser
adotada já que ela violaria o princípio da igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição
Federal, que garante que todos devem ser tratados igualmente pela lei.
Para cumprir o propósito acima, o trabalho foi divido em três capítulos que versam,
respectivamente, sobre o princípio da igualdade; as análises de Ronald Dworkin sobre as
ações afirmativas e, por fim, uma introdução ao debate sobre a possibilidade de
implementação das políticas de ação afirmativa nas universidades públicas brasileiras.
O tema apresenta grande relevância para o país e o direito brasileiro, uma vez que
incide em um dos mais graves problemas sociais, que se encontra enraizado na sociedade, a
qual finge não saber sua existência: a discriminação e a conseqüente exclusão do negro do
processo produtivo e da vida social digna. Não obstante, propicia a discussão sobre uma
temática ainda pouco debatida nas universidades brasileiras.
1. O PRINCÍPIO JURÍDICO DA IGUALDADE E A CONSTITUIÇÃO
BRASILEIRA DE 1988
1
GALUPO, Marcelo. Apud. SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In:
PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR,
2006. p. 65.
2
De acordo com Habermas, a concepção de igualdade prevista nesta época, sob a ótica moderna,
representaria um critério de exclusão social. “Aquilo que seria, por exemplo, um direito para um ateniense,
seria um crime para o escravo. [...] Os direitos, na prática, dependiam do status comunitário de cada
indivíduo. Se fosse mais virtuoso (por sangue ou por conquista própria), possuiria mais direitos. Se menos,
possuiria também menos direitos”. Habermas Apud GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença:
Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. São Paulo: Mandamentos, 2002. p.48-
49.
3
“Apenas a guisa de registro, é na Revolução Francesa que se formaliza a idéia jurídica de igualdade, inserta
no artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Posteriormente, com o movimento
constitucionalista que grassou o mundo, o ideal de igualdade tomou lugar cativo nas constituições
modernas”. SILVA, Fernanda Duarte Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2003. p.33
4
Neste sentido ver GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:
SANTOS, Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as
desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.17.
15
Essa clássica concepção de igualdade tinha como objetivo abolir os privilégios que
gozavam àqueles que pertenciam a um determinado estamento social. Assim, passa-se a
compreender que a lei deve ser igual para todos.
Durante muito tempo o referido princípio foi concebido como garantia para a
efetivação da liberdade e, para alguns pensadores da escola liberal, sua inclusão do rol dos
direitos fundamentais, por si só, representava a garantia de que o princípio da igualdade
estava assegurado. 6
Porém, o que existia até o momento era uma igualdade puramente formal, uma vez
que, embora estivesse prevista em lei, apenas uma elite econômica continuava a ter
privilégios. 7
5
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.18.
6
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.18.
7
Sobre o significado da conquista da igualdade passar a ser prevista em lei, Daniel Sarmento tece o seguinte
comentário “Contudo, o avanço foi incompleto. Em primeiro lugar, porque, em profunda contradição com a
afirmação da igualdade, os direitos políticos eram assegurados apenas à burguesia detentora do poder
econômico, através do voto censitário, o que excluía a grande maioria da população da possibilidade de
participar da vida pública e de exercer alguma influência sobre a elaboração das normas a que estaria sujeita.
[...] Naquele cenário, não é de se admirar que a igualdade tenha se tornado um instrumento que beneficiava
apenas uma elite econômica. Tratava-se de uma igualdade apenas formal, que beneficiava apenas uma elite
econômica.” SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN,
Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 65.
8
De acordo com Sarmento, “ao poucos os Estados e as constituições vão reconhecendo novos direitos
voltados para a população mais pobre, que envolviam prestações positivas e demandavam uma atuação mais
ativa dos poderes públicos, voltada para a garantia de condições mínimas de vida para todos. [...] parte-se da
premissa de que a igualdade é um objetivo a ser perseguido através de ações e políticas públicas, e que,
portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveitos dos grupos desfavorecidos. SARMENTO, Daniel.
Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.).
Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 66.
16
[...] a Constituição Federal de 1988 tem, no seu preâmbulo, uma declaração que
apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a idéia de que não se
tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado
10
para que se chegue a tê-los.
9
DRAY, Guilherme. Apud BARBOSA GOMES, Joaquim. O debate constitucional sobre as ações
afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas
contra as desigualdades raciais. p.19.
10
ROCHA, Carmem Lúcia. Apud. SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial.
In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 66.
17
A Constituição Federal vigente estabelece, no caput de seu artigo 5.°, que “todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. O texto contido no referido
dispositivo consubstancia o conceito de igualdade formal.
Porém, este dispositivo não reflete a realidade social, ou seja, não constitui uma
realidade fática e, em virtude disto, esse texto não pode ser interpretado em seu sentido
literal, pois a igualdade jurídica é mera ficção, na medida em que não garante, por si só, a
igualdade entre as pessoas e causa a “ilusão” de que sua previsão é sinônimo de igualdade
real.
A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do artigo 5°, caput, não deve
ser assim tão estreita. O interprete há que aferi-lo com outras normas
constitucionais [...] e, especialmente, com as exigências da justiça social,
objetivo da ordem econômica e da ordem social. 12
11
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p.214.
12
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p.214.
18
13
De acordo com Paulo Bonavides, “Deixou a igualdade de ser a igualdade jurídica do liberalismo para se
converter na igualdade material da nova forma de Estado”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 341.
14
No que concerne à nova concepção de igualdade, Joaquim B. Gomes diz o seguinte: “Como se vê, em
lugar da concepção ‘estática’ da igualdade extraída das Revoluções Francesa e Americana, cuida-se nos dias
atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e
à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma
noção ‘dinâmica’, ‘militante’ de igualdade, na qual, necessariamente, são devidamente pesadas e avaliadas as
desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de
maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas
pela própria sociedade”. GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:
DOS SANTOS, Emerson; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as
desigualdades raciais. p. 19.
15
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 343.
19
Desta feita, a igualdade material “trata-se de um conceito que deve iluminar sempre
toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de
direitos”.17
16
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: DOS SANTOS,
Emerson; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais.
p. 21.
17
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 343.
20
18
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: DOS SANTOS,
Emerson; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais.
p. 41.
19
Carmem Lúcia Antunes da Rocha é professora de Direito Constitucional da PUC de Minas. BARBOSA
GOMES, Joaquim. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: DOS SANTOS, Emerson;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p. 41.
20
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 214.
21
ser tratados igualmente. Já a igualdade material é aquela em que cumpre ao Estado intervir,
e a promover, assim que verificar as desigualdades na sociedade, mecanismos com vista a
concretizar a igualdade no plano fático, ou seja, a igualdade real.
Isto posto, cumpre realizar uma indagação: existe alguma forma de realizar
tratamento diferenciado sem que haja afronta ao princípio da igualdade?
21
Com o objetivo de fundamentar este tópico, será utilizada a obra: MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 48p
22
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 11.
22
Sem embargo, [...] o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e
precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada
mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas
em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a
algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a
outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de
obrigações e direitos.23
É certo que a constituição veda discriminações, motivo pelo qual as pessoas não
podem ser discriminadas em função da raça, sexo e convicção religiosa.
23
Bandeira de Mello cita em sua obra os seguintes exemplos: “[...] cabe observar que às sociedades
comerciais quadram, por lei, prerrogativas e deveres diferentes dos que pertinem às sociedades civil; aos
maiores é dispensado tratamento inequiparável àquele outorgado aos menores; aos advogados se deferem
certos direitos e encargos distintos do que calham aos economistas ou aos médicos [...] As mulheres se
aposentam aos trinta anos, os homens aos trinta e cinco. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo
Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 12.
24
Bandeira de Mello Utiliza o seguinte exemplo: “Pode-se (...) supor que grassando em certa região uma
epidemia, a que se revelem resistentes os indivíduos de certa raça, a lei estabeleça que só poderão candidatar-
se a cargos de enfermeiro, naquela área, os indivíduos pertencentes à raça refratária à contratação da doença
que se queira debelar. É óbvio, do mesmo modo, que, ainda aqui as pessoas terão sido discriminadas em
razão da raça, sem, todavia, ocorrer por tal circunstância, qualquer hostilidade ao preceito igualitário que a
Lei Magna desejou prestigiar”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade. p. 15 - 16.
25
Brasil. Tribunal Regional Federal 4ª Região. Agravo de Instrumento n° 2008.04.00.003151-2/SC, 3ª
Turma, Relator Desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, 31 de janeiro de 2008. Disponível
em: http://www.trf4.gov.br>. Acesso em 12 fev. 2008.
26
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, “o artigo 5°, caput, ao exemplificar com as hipóteses
referidas, apenas pretendeu encarecê-las como insuscetíveis de gerarem, só por só, uma discriminação. Vale
23
Quanto ao termo discriminação, de acordo com César Sell, é importante fazer uma
ressalva:
O entendimento doutrinário dominante enfatiza que quando na Constituição são
utilizados os comandos vedantes de discriminação a partir do sexo, raça e cor,
se está tomando o termo discriminação no seu sentido usual, de domínio
popular. Discriminação neste sentido é sempre discriminação negativa. É nessa
acepção que há a vedação constitucional quanto às discriminações em sentido
técnico-jurídico estas podem ser feitas se favoráveis aos grupos marginalizados
e com vista a conceder-lhes uma relativa aproximação aos grupos dominantes.27
De acordo com Bandeira de Mello, para que uma lei atribua tratamentos diversos
sem violar o princípio da igualdade é mister que ela preencha alguns requisitos29, a saber:
1) A lei não pode voltar-se a apenas um indivíduo. Não pode haver individualização
prévia e definitiva do destinatário da lei, de modo que impossibilite que esta incida
futuramente sobre outros destinatários, sob pena de violar o princípio da igualdade. Em sua
obra Celso Antônio Bandeira de Melo utiliza o seguinte exemplo:
No caso da suposta lei, é clara a violação ao princípio da igualdade, haja vista que a
lei individualizou o indivíduo de tal forma que é impossível a sua reprodução.
dizer: recolheu na realidade social elementos que reputou serem possíveis fontes de desequiparações odiosas
e explicitou a impossibilidade de virem a ser destarte utilizados”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 18.
27
SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. uma
introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p.55.
28
Neste sentido ver as obras de Ronald Dworkin, Joaquim Barbosa Gomes, Celso Antônio Bandeira de
Mello, Daniel Sarmento, José Afonso da Silva, Paulo Bonavides, Marcelo Campos Gallupo.
29
Tais requisitos foram extraídos da obra “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, de Celso Antônio
Bandeira de Mello. Para um entendimento mais aprofundado sobre a matéria ver MELLO, Celso Antônio
Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
30
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 25.
24
2) O critério adotado como fator de discriminação deve residir nos fatos, situações
ou pessoas que estejam sendo desequiparadas. As pessoas e situações desequiparadas pela
regra de direito devem ser efetivamente distintas entre si,31 o fator adotado como
discriminação não pode ser justificado com base em diferenças que não estejam presentes
nas situações em análise. Só pode ser tomado como fator de discriminação aquilo que for
desigual. As diferenças de tratamento só podem ser justificadas diante de pessoas e/ou
situações diferentes, justamente porque pelo princípio da igualdade compreende-se que as
situações que se apresentam iguais devem ser tratadas de maneira igual e de forma desigual
as que se afiguram de modo desigual.
Deste modo, o tratamento jurídico diverso é legítimo, desde que se apresente uma
justificativa razoável e um fundamento lógico para ele, de modo que a discriminação deve
ser decorrente de uma análise lógica entre a discriminação e a diferença de regimes
outorgados. Assim, se não houver conexão lógica entre o fator adotado como
31
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 25-27.
32
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 38.
33
Exemplo extraído da obra MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade. p. 38.
34
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 21.
25
O que deve ser avaliado é se políticas discriminatórias, como esta, criam ou não
desigualdades no caso concreto, ou seja, se permitem maior ou menor inclusão. 36
Assim, a igualdade não deve ser definida pura e simplesmente como tratar os
indivíduos igualmente. Aliás, “É mais adequado definir a igualdade como tratar os
indivíduos como iguais, do que tratar os indivíduos igualmente”. 38
35
Cumpre fazer uma observação, de acordo com Celso Bandeira de Mello a correlação lógica nem sempre se
apresentará de maneira absoluta, ou seja, “[...] isenta de penetração de ingredientes próprios das concepções
da época, absorvidos na intelecção das coisas”. Assim, segundo o autor, em determinadas épocas, de acordo
com o período histórico, determinada diferenças são consideradas como justificativa para atribuir regimes
jurídicos diversos. E o autor utiliza como exemplo: “em determinado momento histórico parecerá
completamente lógico vedar às mulheres o acesso a certas funções públicas, e, em outras épocas, pelo
contrário, entender-se-á inexistir motivo racionalmente subsistente que convalide a vedação. MELLO, Celso
Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 38-39.
36
Importa trazer o seguinte exemplo apresentado por Gallupo: “Poder-se-ia perguntar se a alocação de verbas
para a construção de benfeitorias que garantam a acessibilidade de portadores de deficientes físicos não
produziria desigualdade, uma vez que estaria tratando esta parcela da sociedade, numericamente pequena, de
forma desigual”. E o autor conclui: “A resposta só poderia ser que não, pois esse procedimento não restringe
a inclusão de ninguém, mas amplia a inclusão dos deficientes físicos: uma política que exige a construção de
rampas de acesso a portadores de deficiência física em prédios públicos não está criando uma desigualdade,
mas reduzindo uma desigualdade. GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado
Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. p.214.
37
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir do
pensamento de Habermas. p.216.
38
GODÓI, Marciano. Apud. GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de
Direito a partir do pensamento de Habermas. p.213.
26
Neste sentido, cumpre iniciar uma abordagem sobre a tese de Ronald Dworkin, para
quem o princípio da igualdade comporta dois tipos de direito à igualdade: o direito a igual
tratamento e ao tratamento como igual.
2 RONALD DWORKIN E AÇÃO AFIRMATIVA
39
Ronald Dworkin é um filósofo contemporâneo de grande destaque no cenário americano, reconhecido por
abordar o tema das ações afirmativas em suas obras, como: “Levando os Direitos a Sério”, “Uma questão de
Princípio”, “A virtude Soberana” e “O império do direito”.
40
O conceito de ação afirmativa é apresentado no Capítulo 3.
41
Os primeiros programas de ação afirmativa na área da educação surgiram no início dos anos 60, após um
decreto em que o Presidente Kennedy determinou a implementação de medidas positivas com o intuito de
promover a inserção dos negros no “sistema educacional de qualidade”, que historicamente era destinado à
população branca. GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da
Igualdade: O Direito Como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. São Paulo:
Renovar, 2001. p.103
28
Ao discorrer em uma de suas obras sobre a ação afirmativa e sua implicação sobre
o princípio da igualdade, Ronald Dworkin afirma que a ação afirmativa não afronta o
princípio da igualdade, pois este compreende o direito a igual tratamento e ao tratamento
como igual.42
Neste caso, se a decisão sobre quais dos dois filhos deveria receber a última dose do
medicamento fosse tomada de acordo com a sorte (cara ou coroa) os dois receberiam
“igual tratamento”. Entretanto, esta hipótese não se figura como a mais correta, pois existe
uma situação de desigualdade entre os dois, motivo pelo qual se faz necessário que haja um
tratamento diferenciado, ou seja, um “tratamento como igual”, para que ocorra uma
igualdade efetiva.
42
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 349
43
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 350.
44
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 350
45
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 350.
29
Nestes casos, deve-se observar que a perda individual de alguns candidatos foi
compensada por um ganho maior, na medida em que foi beneficiada a “sociedade como
um todo”.
Ronald Dworkin explica que “qualquer instituição que recorra a essa idéia para
justificar uma política discriminatória vê-se diante de uma série de dificuldades teóricas e
práticas”. De acordo com ele, isto ocorre em virtude de existir dois sentidos para se afirmar
se uma sociedade está ou não melhor como um todo: sentido utilitarista e sentido ideal.
Afirmar que uma sociedade está melhor em um sentido utilitarista quer dizer que “o
nível médio ou coletivo do bem-estar comunitário aumentou, apesar de o bem-estar de
alguns indivíduos ter diminuído”.47 Em contrapartida, afirmar que uma sociedade está
melhor em um sentido ideal significa afirmar que ela é mais justa ou que, de alguma outra
forma, está mais próxima de uma sociedade ideal, independente do bem-estar médio ter ou
não aumentado.48
46
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 351.
47
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 358
48
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 358
30
O que significaria dizer que uma política torna uma sociedade melhor em um
sentido utilitarista?
O autor explica que “[...] uma política torna uma comunidade melhor, em sentido
utilitarista, se satisfaz o conjunto de preferências melhor do que o fariam as políticas
alternativas, ainda que ela não satisfaça as preferências de alguns”.50
A distinção entre os dois tipos de preferências possui suma importância, pelo fato
de que ao contar as preferências externas juntamente com as preferências pessoais o caráter
igualitário de um argumento utilitarista poderá ser corrompido. Isto porque,
Suponhamos que muitos cidadãos que não estão doentes defendam uma teoria
política racista e que prefiram, portanto, que um medicamento escasso seja
ministrado a um branco que dele precisa do que a um negro que precisa dele
ainda mais. Se o utilitarismo contar essas preferências políticas pelo que elas
parecem ser, provocará o seu próprio fracasso do ponto de vista das preferências
49
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 358
50
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 359
51
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 359
52
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 361
53
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 362
31
54
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 362
55
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 364
56
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 365
32
Homens e mulheres, meninos e meninas negros não [sejam] livres para escolher
por si mesmo em que papéis – ou como membros de quais grupos sociais –
outros irão caracterizá-los. Eles são negros, e nenhum outro atributo de
57
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 368
58
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 438
33
Os programas de ação afirmativa tomam por base dois juízos: o primeiro juízo,
segundo Dworkin, está relacionado à teoria social: entende que a sociedade continuará
impregnada de divisões raciais “[...] enquanto as carreiras mais lucrativas, gratificantes e
importantes continuarem a ser prerrogativa de membros da raça branca, ao passo que
outros se vêem sistematicamente excluídos de uma elite profissional e social”. O segundo
juízo, leva em conta um cálculo estratégico: “aumentar o número de negros atuando nas
várias profissões irá, a longo prazo, reduzir o sentimento de frustração, injustiça e
constrangimento racial na comunidade negra [...]”.60
59
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 438
60
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 438-439
61
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 439-440.
34
Aos que fundamentam que os programas de ação afirmativa não devem ser
implementados porque as classificações raciais foram, bem como podem continuar a ser,
utilizadas com “propósitos malignos”, Dworkin rebate dizendo que este é “[...] o conhecido
recurso à preguiçosa virtude da simplicidade. Supõe que se é difícil traçar uma linha ou
que, se traçada, ela seria difícil de administrar, é prudente não traçá-la”. 62
Em alguns casos esse argumento, ainda que simplista e preguiçoso, pode se mostrar
como o mais adequado. Entretanto, somente o será nos casos em que não se perde “[...]
nada de grande valor como conseqüência”. 63
Para Dworkin a incerteza que circunda os possíveis resultados das políticas de ação
afirmativa não é hábil para justificar uma decisão judicial que as torne ilegais. Contudo,
poderia se argumentar que ainda que fossem eficazes, no que concerne ao objetivo de
diminuir a importância da raça, as políticas de ação afirmativa são inconstitucionais.
Com o objetivo de esclarecer este, bem como outros argumentos contra as ações
afirmativas, dar-se-á início a explanação de alguns casos abordados por Ronald Dworkin
62
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450.
63
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450.
64
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450.
35
em suas obras “Levando os direitos a sério” e “Uma Questão de Princípio”, são eles: o
Caso Alan Bakke e a confrontação do Caso DeFunis x Sweatt.
Mas, será que Bakke possui um direito tão importante que, mesmo com objetivos
tão urgentes, a ação afirmativa deva ceder?
Dworkin responde à questão afirmando que, tendo em vista que a Constituição não
contém nenhum texto que expressamente proíba a ação afirmativa, se Bakke está certo é
porque deve possuir um importante direito moral. Mas qual seria esse direito?67
65
“Pano de fundo para uma grande quantidade de análises e ensaios jurídicos e filosóficos, Bakke talvez seja
a mais discutida, comentada e criticada decisão da Corte Suprema dos EUA nas últimas duas décadas. Por
dois motivos: em primeiro lugar, porque se trata da primeira oportunidade que a Corte teve de examinar em
profundidade a constitucionalidade de um plano de ação afirmativa. Em segundo, porque o caso veio a se
constituir em uma espécie de roteiro e guia para as ações governamentais e não governamentais levadas a
cabo nas décadas seguintes em matéria de direito de minorias”. GOMES, Joaquim Barbosa. Ação
Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: O Direito Como Instrumento de Transformação
Social. A Experiência dos EUA. p. 104
66
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 437
67
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 445
36
não grupo social e de que possui o direito, assim como qualquer cidadão negro, de não ter
uma oportunidade excluída em virtude de sua raça.
Para Dworkin todos estes argumentos não passam de “expressões capciosas”, haja
visto que não descrevem outro argumento senão o de que “ninguém deve sofrer com o
preconceito ou o desprezo do outro”. O autor passa então a rebater cada uma das três
expressões, formuladas por Bakke, as quais ele chama de “capciosas”.
Sobre a segunda expressão capciosa, Dworkin afirma que não tem fundamento o
argumento de Bakke de que seu direito está sendo violado em função de ser avaliado
enquanto membro de um grupo e não individualmente. Isto porque, qualquer processo de
admissão utiliza-se de generalizações sobre grupos.
68
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 446
69
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 446
37
violaram o direito de Bakke de ser avaliado individualmente, enquanto foi avaliado como
membro de um grupo?
O autor conclui então afirmando que se tais critérios não negam o direito de Bakke
de ser avaliado como indivíduo, os critérios raciais, em prova do exemplo acima, também
não negam este direito. 70
O terceiro argumento formulado por Bakke foi o de que ele possui o direito de não
ter sua vaga rejeitada por conta de sua raça. Sobre esta que é a terceira das expressões
capciosas Dworkin afirma que ela, como formulação de um direito constitucional, até soa
plausível, pois sugere o princípio de que
Dworkin salienta que este direito constitucional, de suma importância, foi violado
durante décadas, por políticas racistas. Historicamente, as exclusões formuladas com base
na raça tiveram como motivação o desprezo que determinadas sociedades sentiam por
determinados grupos.
Feitas tais considerações o autor conclui que a afirmação de Bakke de que foi
excluído ou teve sua oportunidade sacrificada por causa de sua raça é absurda, pois em seu
caso “a raça não se distingue pelo caráter especial de insulto público” 72, como ocorre com
os negros.
No passado fazia sentido dizer que um estudante negro ou judeu excluído estava
sendo sacrificado por causa de sua raça ou religião; isso significava que sua
exclusão, por si só, era tida como desejável, não porque contribuísse para algum
objetivo do qual ele e o resto da sociedade poderiam orgulhar-se. 73
70
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 447
71
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 448
72
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 448
73
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 449
38
preconceito, “mas por causa de um cálculo racional do uso socialmente mais benéfico de
recursos limitados para a educação médica”. 74
Em 1945, um negro chamado Sweatt teve seu ingresso recusado pela Faculdade de
Direito da Universidade do Texas, em virtude de uma lei estadual que estipulava que
apenas brancos poderiam freqüentar a Universidade. Sweatt conseguiu ingressar na
Universidade, porque a Suprema Corte entendeu que a lei estadual violava os direitos de
Sweatt, previstos na Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que
prescreve que nenhum Estado pode negar a uma pessoa igual proteção diante de suas leis.
Em 1971, um judeu chamado DeFunis75 teve recusada sua candidatura a uma vaga
pela Universidade de Washington, muito embora possuísse notas altas o suficiente para ser
admitido caso fosse membro de uma minoria. DeFunis requereu à Suprema Corte a
declaração de que o sistema de admissão realizado pela Universidade de
Washington violava os direitos que lhe garantia a Décima Quarta Emenda. DeFunis
também obteve êxito em seu pleito.
74
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. p. 450
75
O caso DeFunis foi o primeiro caso de ação afirmativa em matéria educacional a subir em grau de recurso
à Suprema Corte americana. GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da
Igualdade: O Direito Como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p.70
76
SELL, César Sandro. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 24
77
SELL, César Sandro. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 24
39
DeFunis utilizou também o argumento de que as distinções que tomam por conta a
raça são injustas, independente da contribuição positiva que possam propiciar a sociedade,
e que, por isso, ele possui o direito de que elas não sejam utilizadas; bem como no
argumento de que a universidade deveria levar em conta para a admissão de seus alunos
apenas o mérito de cada um.
DeFunis argumenta que ainda que a ação afirmativa possa contribuir positivamente
para a promoção de bem-estar geral ou para a diminuição da desigualdade social e
econômica ele tem o direito de que a raça não seja utilizada como critério de admissão.
Sustenta seus argumentos, em suma, com base na Décima Quarta Emenda.
Segundo Dworkin
A cláusula faz do conceito de igualdade um teste de legislação, mas não estipula
nenhuma concepção particular desse conceito. Os que redigiram a Cláusula
pretendiam atacar certas conseqüências da escravidão e do preconceito racial,
mas é improvável que pretendessem excluir todas as classificações raciais, ou
que esperassem que uma tal proibição resultasse do que escreveram. Tornaram
ilegais quaisquer políticas que violassem a igualdade, mas deixaram que outros
decidissem, de tempos em tempos, o que isso significava. 79
Mas se critérios de admissão que levam em conta classificações raciais são injustos,
DeFunis não tem o direito de exigir que apenas critérios intelectuais sejam utilizados como
critério de admissão, uma vez que estes também podem ser injustos. Isto porque, segundo
78
SELL, César Sandro. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 24
79
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.348
40
o autor, os critérios intelectuais são utilizados não porque DeFunis ou qualquer outra
pessoa tenha o direito de ser avaliado deste modo, bem como não com o propósito de
premiar os mais inteligentes, mas sim “[...] porque parecem servir a uma política social
útil”. 80
Deste modo, caso fossem eleitos outros objetivos como prioritários, com vista a
melhorar a sociedade como um todo, os critérios de admissão teriam que ser modificados,
talvez, até mesmo com a utilização de políticas de ação afirmativa. 81
80
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 347
81
SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 22
82
SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate no Brasil. p. 22
83
SINGER, Peter Apud SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao
debate no Brasil. p 23
41
Com base na distinção destes dois modos de se afirmar que uma sociedade está
melhor ou não em termos gerais Dworkin afirma ter encontrado as diferenças entre os o
Caso DeFunis (judeu que teve seu ingresso recusado na Universidade de Washington) e o
Caso Sweatt (negro teve seu ingresso recusado pela Faculdade de Direito da Universidade
do Texas).
84
Ver item 2.2 deste capítulo.
85
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
86
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
87
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
88
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p.368
3 INTRODUÇÃO AO DEBATE BRASILEIRO SOBRE A POSSIBILIDADE DE
ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS
Até a Guerra Civil não havia nos Estados Unidos leis que protegessem os
indivíduos das discriminações raciais, uma vez que o regime vigente legitimava a
escravidão. De acordo com a legislação em vigor, os escravos eram concebidos como
mercadorias. 90
Com o passar dos anos o número de escravos libertos aumentou. Embora tivessem
sido libertados, os indivíduos negros, ex-escravos, não contavam com os mesmos direitos
que eram assegurados aos seus antigos senhores. Ou seja, “a liberdade alcançada pelos
antigos escravos não assegurava uma posição igualitária com os cidadãos brancos”. 91
89
Para elaborar o item 3.1, bem como seus subitens, será utilizado como base a obra MENEZES, Paulo
Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.173p
90
Embora o ordenamento jurídico se referisse aos escravos como mercadorias, este entendimento não era
utilizado no que se refere à responsabilidade dos mesmos na esfera criminal, tendo em vista que nesses casos
eles “[...]quase sempre recebiam um tratamento mais rigoroso do aquele conferido aos indivíduos brancos”.
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 67
91
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano p. 68-
69
92
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 71
43
Em 20 de abril de 1871 o Congresso, com base nas referidas emendas que lhe
concediam poderes para executar as novas disposições constitucionais, aprovou um Civil
Right Act93, que estabeleceu sanções civis e penais para as pessoas que não respeitassem os
direitos concedidos aos escravos libertos. 94
93
De acordo com o Black’s Law Dictionary, Civil Right Acts são “leis federais promulgadas após a Guerra
Civil, e mais recentemente, em 1957 e 1964, que se destinaram a implementar e dar um vigor adicional aos
direitos individuais básicos garantidos pela Constituição. Esses atos proíbem a discriminação baseada em
raça, cor, idade ou religião”. Apud MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no
direito norte-americano. p. 71
94
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 72
95
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 72
96
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 74
44
Plessy97 afirmou ter sido preso em virtude de ter se recusado a mudar para a seção
de trem que era destinada para pessoas negras e, em sua defesa, argumentou que a lei
estadual violava a Décima Terceira e a Décima Quarta Emenda Constitucional.
97
MENEZES destaca que Plessy “[...] embora aparentasse ser branco, era considerado negro pela legislação
estadual, em virtude de ter ascendência africana”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.75
98
De acordo com o voto de um dos ministros da Suprema Corte “leis que permitem, e até exigem...a
separação [das raças], em lugares onde houver possibilidade de elas entrarem em contato, não implicam
necessariamente a inferioridade de uma raça com relação à outra e têm sido geralmente, se não
universalmente, reconhecidas como na esfera da competência legislativa dos Estados, no exercício de seu
poder de polícia”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-
americano. p.75
99
De acordo com MENEZES, “antes mesmo de os Estados Unidos ingressarem na guerra, notava-se um
imenso desconforto, na medida em que o país condenava o anti-semitismo propugnado pelos nazistas, não
obstante tolerasse um forte racismo dentro de suas próprias fronteiras”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação
Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.77
100
“uma ordem ou regulamentação promulgada pelo Presidente ou alguma autoridade administrativa sob sua
orientação para o fim de interpretar, implementar ou dar efeito administrativo a uma norma da Constituição
ou de alguma lei ou tratado. Para ter efeito de lei, tais ordens devem ser publicadas no Federal Register (que
é o veículo oficial de divulgação dos atos do Poder Executivo Federal)”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação
Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.77
45
o governo federal, bem como as empresas que com ele mantinha relações contratuais,
utilizasse a discriminação racial ao contratar funcionários.101
Em 1954 a Suprema Corte, “[...] pela primeira vez desde Plessy v. Ferguson
(1896), permitiu que o assunto fosse totalmente revisto, e proferiu uma decisão que é
considerada um marco no direito constitucional norte-americano [...]”.102 Trata-se da
decisão prolatada no caso Brown v. Board of Education of Topeka.
No referido caso, estudantes negros haviam recorrido a Suprema Corte, com base
no princípio da igualdade, requerendo o direito de freqüentar certas instituições públicas de
ensino, sem observar a segregação estabelecida pelas leis locais.
101
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 77
102
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 80
103
Na referida audiência o ministro argumentou: “Não vejo como no dia e na época de hoje podemos separar
um grupo do restante e dizer que eles não têm direito a exatamente o mesmo tratamento de todos os outros.
Fazer isso seria contrário à Décima Terceira, Décima Quarta e Décima Quinta Emendas. Elas visavam a
tornar os escravos iguais a todos os outros. Pessoalmente, não consigo ver de que forma podemos hoje
justificar a segregação unicamente com base na raça”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.82
104
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.85
46
entendimento para outras áreas, de modo a acabar com a doutrina de segregação racial
utilizada em parques, ônibus, restaurantes, dentre outras áreas. 105
A ação afirmativa tem sua origem nos Estados Unidos.106 A primeira pessoa a
utilizar o termo foi o Presidente John F. Kennedy107, em 1961, por meio de um texto oficial
em que propôs medidas com vista a ampliar a igualdade de oportunidades no mercado de
trabalho.108
Esse texto tratava-se de uma Executive Order n° 10.925, editada, apenas dois meses
após Kennedy ter assumido a presidência109, com o objetivo de “[...] estabelecer uma
igualdade de oportunidades e erradicar a discriminação e o preconceito nas relações
mantidas entre o governo federal e os seus contratantes”.110 Além disso, a referida ordem
criou um órgão responsável para fiscalizar e coibir a discriminação que havia no mercado
de trabalho.
105
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.85
106
As ações afirmativas ganharam visibilidade após serem implementadas pelo governo dos Estados Unidos
da América, com a promulgação das Leis dos Direitos Civis (1964). A implantação dessa política ocorreu
após imensa pressão de grupos organizados da sociedade civil, em especial o Movimento Negro norte-
americano, que contava com lideranças como Martin Luther King. SILVA, Luiz Fernando Martins da. Ação
afirmativa e cotas para afro-descentes: algumas considerações sócio-jurídicas. In: SANTOS, Emerson dos;
LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.65
107
A partir do final da década de 50 surgiram vários movimentos sociais com vista a combater o racismo e o
preconceito arraigado nos Estados Unidos. As manifestações do Judiciário em casos concretos não davam
conta de diminuir o preconceito. De acordo com MENEZES, Kennedy percebeu a importância política do
tema. Embora sua família possuísse grande fortuna, John F. Kennedy “[...] não deixava de integrar um
segmento minoritário da sociedade norte-americana, ao menos como católico e descendentes de irlandeses”.
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 86
108
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 27
109
Kennedy assumiu a presidência dos Estados Unidos em janeiro de 1961.
110
Segundo a Executive Order “o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego
devido a raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratante adotará ação afirmativa para assegurar que os
candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu
credo, sua cor ou nacionalidade”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no
direito norte-americano. p. 88
47
22 de novembro daquele ano. Lyndon deu continuidade aos projetos que estavam em
tramitação e conseguiu com que projetos importantes, com o objetivo de erradicar a
discriminação racial, fossem aprovados no Congresso.111 Dentre tais projetos o de maior
destaque foi o Civil Right Act de 02 de julho de 1964, que determinava:
O projeto Civil Right Act de 02 de julho de 1964 não promoveu grandes avanços
contra a discriminação, motivo que levou o Presidente Lyndon B. Johnson a “[...] adotar
medidas mais agressivas no combate a discriminação”.113
Você não pega uma pessoa que durante anos esteve acorrentada, e a libera, e a
coloca na linha de partida de uma corrida e diz ‘Você está livre para competir
com todos os outros’, e ainda acredita, legitimamente, que você foi totalmente
justo. Assim, não é suficiente apenas abrir os portões da oportunidade, todos os
nossos cidadãos devem ter a capacidade de atravessar esses portões. 114
A Executive Order n° 11.246 possui grande relevância histórica, uma vez que com
o seu advento as medidas utilizadas para combater a desigualdade e discriminação racial
“[...] com base em condutas positivas crescem em importância e passam a ser avaliadas sob
111
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 90
112
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.90
113
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.91
114
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p. 91
115
As medidas em favor de minorias étnicas e raciais que as empresas que contratavam com o Governo
Federal deveriam adotar eram as mais diversas, podiam ser realizadas no “[...] recrutamento, contratação,
transferência, níveis salariais, promoções, treinamento etc”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.91
48
Em 1969 Richard Nixon assume a presidência dos Estados Unidos e solicita que
Arthur Fletcher, cidadão negro que ocupava o cargo de assistente do Secretário do
Trabalho, elabore um projeto para tornar o texto do Título VII do Civil Right Act de 1964
efetivo.117
Nos anos que sucederam houve um grande aumento de textos legais para coibir a
discriminação e o preconceito, nas mais diversas áreas, em especial no âmbito das relações
de emprego.119
116
MENEZES destaca que “os reflexos decorrentes dessa nova postura estatal não ficaram restritos aos
Estados Unidos, podendo ser notados em convenções e tratados internacionais que foram celebrados no
mesmo período, como na mencionada ‘Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial’, que também é de 1965”. MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa
(Affirmative Action) no direito norte-americano. p.92
117
Segundo MENEZES, o Presidente Nixon recomendou a Arthur Fletcher que o projeto deveria ser
elaborado e “[...] estruturado de forma a resistir aos inevitáveis questionamentos judiciais”. MENEZES,
Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.92
118
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.93
119
MENEZES, Paulo Lucena de. Ação Afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano. p.93
49
Neste sentido
120
Conforme já exposto, a política de ação afirmativa trata-se de um mecanismo de inclusão. Neste sentido,
importante ressaltar que no Brasil existem políticas de ação afirmativa destinadas a estabelecer igualdade de
oportunidades e a produzir a inclusão de mulheres e portadores de deficiência. Ou seja, elas não se destinam
apenas aos negros. Como exemplo de ação afirmativa destinada à questão de gênero pode-se citar a Lei n°
9.504/97 (estabelece que 30% dos candidatos de cada partido nas eleições proporcionais devem ser do sexo
feminino). No que concerne a políticas deste tipo voltadas para portadores de deficiência existe a Lei
n°8.213/91 (estabelece que as empresas privadas tenham em seu quadro de empregados determinado
percentual de pessoas portadoras de necessidades especiais. O referido percentual varia de acordo com o
número total de empregados da empresa). Sobre as políticas de ação afirmativa direcionadas para mulheres e
pessoas portadoras de necessidades especiais ver CRUZ, Álvaro Ricardo Souza. O direito à diferença:
ações afirmativas como mecanismos de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas
portadoras de deficiência. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 221p
121
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Fundação
de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 1999. p. 197
122
Sant’Anna e Paixão. Apud. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional
da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 54
50
123
Joaquim B. Barbosa GOMES, atualmente um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, é um dos
maiores defensores das políticas de ações afirmativas no Brasil.
124
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. p. 40
125
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson
dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p. 30
126
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Emerson
dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. p.53
51
Assim, de acordo com esta tese, os membros dos grupos que sofreram algum tipo
de injustiça passada são prejudicados em um aspecto de grande importância em suas vidas,
qual seja a falta dos meios indispensáveis à sua inserção, “[...] em pé de igualdade com os
beneficiários da injustiça perpetrada, na competição pela obtenção de empregos e posições
escassos do mercado de trabalho”. Isto significa que a discriminação, se compreendida
como uma privação de meios ou de instrumentos de competição resulta igualmente em
127
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p.61
128
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 62
129
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 62
130
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 62
52
Os que defendem essa teoria136 sustentam que “[...] não é justo que determinados
grupos sociais, tais como negros e mulheres, sejam fadados, ao longo de suas vidas, a
131
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 63
132
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 63
133
Joaquim B. Barbosa Gomes alerta para o fato de que “embora a noção de justiça compensatória figure
como justificativa filosófica de um grande número de programas de ação afirmativa vigentes nos diversos
países que adotam esse tipo de política social, inclusive nos EUA, do ponto de vista estritamente jurídico,
porém, trata-se de uma concepção não isenta de falhas. Com efeito, em matéria de reparação de danos, o
raciocínio jurídico tradicional opera com categorias rígidas tais como ilicitude, dano e remédio
compensatório, estreitamente vinculados uns aos outros em relação de causa e efeito. Em regra, somente
quem sofre diretamente o dano tem legitimidade para postular a respectiva compensação. Por outro lado, essa
compensação só pode ser reivindicada de quem efetivamente praticou o ato ilícito que resultou no dano. Tais
incronguências, exacerbadas pelo dogmatismo, outrancier típico da práxis jurídica ortodoxa, findam por
enfraquecer a tese compensatória como argumento legitimador das ações afirmativas”. GOMES, Joaquim B.
Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de
Transformação Social. A Experiência dos EUA p. 63-65
134
Joaquim B. Barbosa Gomes, afirma que “[...] as ações afirmativas se justificam de maneira mais
convincente à luz dos princípios da justiça distributiva do que da justiça compensatória, embora não sejam
raras as hipóteses [...] de conjugação dessas duas noções”. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa
& Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. A
Experiência dos EUA. p. 66
135
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 67
136
Dentre eles Joaquim B. Barbosa Gomes e Ronald Dworkyn.
53
sempre ocuparem as posições inferiores ou subalternas na hierarquia social, por razões que
repousam unicamente na cor da sua pele ou no sexo”. 137
A tese da justiça distributiva entende que esses indivíduos ou grupos têm o direito
de obter certas vantagens, benefícios ou mesmo o acesso a determinadas posições, das
quais eles naturalmente teriam acesso se as condições sociais em que vivem fossem de
efetiva justiça, ou seja, “[...] caso seus direitos e pretensões não tivessem esbarrado no
obstáculo intransponível da discriminação”. 138
137
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 66
138
Para o autor, “contestar essa presunção (de que mulheres e outras minorias raciais progrediriam não fosse
o racismo e o sexismo) equivaleria, em outras palavras, a sustentar que os grupos marginalizados seriam
dotados de uma inferioridade congênita”. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio
Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos
EUA. p. 68
139
Entre eles Ronald Dworkin. Por oportuno, cumpre registrar que ao formular suas reflexões a respeito do
primeiro caso de ação afirmativa em matéria educacional a subir em grau de recurso à Suprema Corte dos
Estados Unidos (Caso DeFunnis), Dworkin utiliza a visão utilitarista para tecer suas considerações. O caso
DeFunnis e algumas considerações sobre o utilitarismo foram abordados nos itens 2.2 e 2.3.2 do segundo
capítulo.
140
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito
como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. p. 68
54
De outro lado, há parte da sociedade que tem grande resistência a este tipo de
política, devido, inclusive, ao motivo já exposto anteriormente, e que clamam pelo
princípio da igualdade previsto na Constituição Federal Brasileira, princípio que, por sua
vez, resguarda também o direito dos cidadãos negros a uma posição de igualdade em
relação aos brancos nos cursos de graduação públicos.
O tema possui relevância para o país e o direito brasileiro, haja vista que incide em
um dos mais graves problemas sociais, que se encontra enraizado na sociedade, a qual
finge não saber sua existência: a discriminação e a conseqüente exclusão do negro do
processo produtivo e da vida social digna. Além disso, discute uma temática do direito
constitucional comparado e de direito internacional ainda pouco debatida nas
universidades brasileiras.144
141
O termo negro utilizado no presente trabalho refere-se à soma das classificações pretos e pardos, conforme
classificação utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
142
Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. IPEA. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>.
Acesso em: 22 maio 2008.
143
De acordo com a Constituição Federal:
Art. 205 – A educação direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206 – o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais
VI – gestão democrática do ensino público na forma da lei.
144
De acordo com GOMES, “[...] se a ‘teoria’ das ações afirmativas é quase inteiramente desconhecida no
Brasil, a sua ‘prática’, no entanto, não é de todo estranha à nossa vida administrativa. Com efeito, o Brasil já
conheceu em passado não muito remoto uma modalidade (bem brasileira!) de ação afirmativa. É a que foi
materializada na chamada Lei do Boi (Lei 5.465/68), cujo art. 1° era assim redigido: ‘Os estabelecimentos de
ensino médio agrícola e as escolas superiores de agricultura e veterinária, mantidos pela União, reservarão,
anualmente, de preferência, cinqüenta por cento de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes,
proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural, e trinta por cento a agricultores
ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam
55
estabelecimentos de ensino médio’. GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações
afirmativas. In: SANTOS, Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações Afirmativas: Políticas públicas
contra as desigualdades raciais. p.16
145
Daniel Sarmento chama a atenção para o nível de desigualdade existente entre a população negra e a
população branca no Brasil, devidamente caracterizado em um estudo publicado no ano 2000, que versa
sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos dois grupos. Segundo o autor, no ano de 1999 o
Brasil apareceu na 74ª posição no mundo em termos de IDH. Contudo, caso houvesse sido considerada
apenas a população branca o país alcançaria a 43ª posição mundial. Já se apenas a população negra fosse
analisada a posição alcançada seria a 108ª, o que demonstra a disparidade de condições sociais dos dois
grupos. SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia;
SOUZA, Douglas de (Coord.).Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 60.
146
Racismo: “Conjunto de idéias e valores. Trata-se de uma ideologia que preconiza a hierarquização dos
grupos humanos com base na etnicidade”. JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais
no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Brasília: IPEA, 2002. p. 67
147
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>. Acesso em: 22 maio 2008.
148
Segundo a pesquisa do IPEA, a tese do “racismo científico”, também desenvolvida na Europa, teve início
na década de 1870, e tornou-se amplamente aceita durante o período compreendido entre as décadas de 1880
e 1920.
56
149
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
150
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
151
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
152
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
57
3.3.2 Situação atual em relação à diferença das condições sociais e econômicas entre a
população branca e a população negra
Os dados da referida pesquisa dão conta de que, no ano de 2006, entre a população
branca, 18% (dezoito por cento) havia concluído o ensino superior, enquanto que, entre a
população negra, 5,0% (cinco por cento) possuía o mesmo nível de estudo.
153
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
154
A teoria do “racismo científico” deixou profundas marcas na sociedade brasileira e se faz presente no
pensamento das pessoas. Nesse sentido, GUIMARÃES afirma: “todos sabemos que o racismo científico é
ainda um cadáver recente (alguns duvidariam se é mesmo um cadáver). Apesar do esforço, patrocinado pela
UNESCO no pós-guerra, para desmistificar e denunciar o caráter pseudocientífico e ideológico das teorias e
categorias raciais, estas e a própria idéia de raça não desapareceram [...] da mente das pessoas”.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. p.194
155
Além de apresentar um comparativo entre a escolaridade de brancos e negros, em todos os níveis de
educação, a pesquisa realizada pelo IPEA apresenta dados atuais sobre a inserção da população negra e
branca no mercado de trabalho. A pesquisa concluiu que a taxa de desocupação aberta é maior entre a
população negra (9,3%) do que entre a população branca. Demonstrou ainda que os setores econômicos
com as piores condições de trabalho (no que concerne a remuneração, estabilidade etc) possui grande
participação da população negra, enquanto a população branca tem grande concentração nos setores com
maior remuneração, mais estabilidade, etc. Informa que população a negra encontra-se sub-representada nas
posições mais precárias de trabalho onde correspondem a: 55% dos trabalhadores não remunerados, 55,4%
dos assalariados sem carteira e 59,1% dos trabalhadores domésticos. Em contrapartida, a população branca
possui uma maior representação nas posições mais estruturadas, sendo que 57,2% são assalariados com
carteira assinada e 71,7% são empregadores. Além disso, como resultado a pesquisa comprova que em
média, os empregados negros recebem como salário a quantia mensal de R$ 578,24, enquanto que a
população branca recebe o valor de R$ 1.087,14 como salário, ou seja, os negros recebem valor que
corresponde a apenas 53,7% do recebido pelo brancos. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição.
58
Esta situação é agravada pelo fato de que no Brasil, de tanto conviver com a
desigualdade, o cidadão brasileiro a deixa de ver como injustiça, e vê como natural, ainda
que, inconscientemente, a idéia de que o negro ocupe posições subalternas na sociedade.156
A ação afirmativa é uma política social que visa modificar o quadro em que a
população negra se encontra inscrita, na medida em que objetiva propiciar que este grupo,
desfavorecido socialmente, tenha as mesmas condições de acesso, oportunidades de
desenvolvimento e respeito que os outros; ou seja, tenham direito ao igual tratamento e ao
tratamento como igual.159
156
SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA,
Douglas de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 61.
157
Nancy Fraser, em “Da Redistribuição ou Reconhecimento?”, propôs um modelo de distinção entre dois
tipos de injustiças: o problema de distribuição (de natureza socioeconômica, que decorre de uma partilha não
eqüitativa de recursos na sociedade) e o problema de reconhecimento (modo como determinados grupos são
enxergados no contexto social, o que pode implicar profundos abalos à auto-estima e ao bem-estar dos
integrantes desses grupos). A autora conclui que os negros sofrem das duas injustiças: são mais pobres e têm
acesso restrito à bens econômicos; e, por outro lado, são estigmatizados, tidos por muitos como integrantes
de uma raça inferior (menos inteligentes, mais propensos ao crime). (FRASER, Nancy. Apud SARMENTO,
Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de
(Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. p. 61.
158
No que diz respeito a estigmatização sofrida por cidadãos negros, em sua obra “Uma questão de
princípio”, Ronald Dworkin faz a seguinte afirmação: “Homens e mulheres, meninos e meninas negros não
são livres para escolher por si mesmos em que papéis – ou como membros de quais grupos sociais – outros
irão caracterizá-los. Eles são negros, e nenhum outro atributo de personalidade, lealdade ou ambição irá
influenciar tanto o modo como os outros irão vê-los ou tratá-los, e que tipo e dimensão de vida estarão
abertos a eles”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. p. 438.
159
Para uma maior compreensão sobre a teoria de Dworkin, relativa ao direito à igual tratamento e ao
tratamento como igual, ver a obra DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. p. 349.
59
No Brasil o debate que tem ganhado cada vez mais espaço nos últimos tempos diz
respeito sobre a implementação de política de ação afirmativa nas universidades públicas
brasileiras160, mas precisamente sobre a adoção do sistema de cotas.
160
A primeira universidade brasileira a adotar o sistema de cotas em seu vestibular foi a Universidade de
Brasília (UnB), no vestibular para o ingresso na universidade no ano de 2004.
161
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 49
60
O sistema de cotas possui como um de seus objetivos efetivar a justiça social e, por
isso, guarda correlação lógica com os interesses e ditames constitucionais, haja vista que
ao efetivar a justiça social162, busca garantir uma igualdade efetiva, bem como promove os
objetivos previstos no preâmbulo da Constituição.
162
Justiça social é o princípio da justiça distributiva, pela qual a comunidade distribui, de maneira eqüitativa,
entre os seus membros, bens, recompensas, cargos e funções. GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri
Dicionário Técnico Jurídico. São Paulo: Rideel, 1995.
163
A Universidade Federal de Santa Catarina começou a adotar o sistema de cotas no vestibular 2008,
destinando 10% (dez por cento) de suas vagas para alunos negros, 20 % (vinte por cento) para egressos de
escola pública.
164
Neste caso, o Desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz segue a jurisprudência adotada pela
Corte, que é no sentido de reconhecer a legalidade do sistema de cotas. Brasil. Tribunal Regional Federal 4ª
Região. Agravo de Instrumento n° 2008.04.00.003151-2/SC, 3ª Turma, Relator Desembargador Carlos
Eduardo Thompson Flores Lenz, 31 de janeiro de 2008. Disponível em: http://www.trf4.gov.br>. Acesso em
12 fev. 2008.
61
atribuiu relevo para fins de discriminar situações, inculcando a cada qual efeitos jurídicos
correlatos e, de conseguinte, desuniformes entre si”, para colocá-las em situação de
igualdade. 165
Nestes casos, deve-se observar que a perda individual de alguns candidatos foi
compensada por um ganho maior, na medida em que foi beneficiada a sociedade como um
todo.167
3.3.3.2 Pobreza
Segundo este argumento, a questão a ser enfrentada, para diminuir ou até mesmo
romper, com a desigualdade social é a econômica, de modo que as políticas de ação
165
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 18
166
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 351
167
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 351
62
afirmativa deveriam ser voltadas aos pobres, sem levar em consideração aspectos
raciais.168
Por este motivo, em sua última pesquisa o IPEA concluiu que “para combater as
desigualdades raciais são necessárias mais que políticas universais. São necessárias
políticas de ação afirmativa”.170 Isto porque a ação afirmativa visa atingir um objetivo
maior do que alterar, a longo prazo, o quadro econômico em que estão os negros. A ação
afirmativa possui como objetivo criar modelos de representações, criar uma diversidade
racial nos cursos das universidades. Romper com a reprodução das desigualdades
raciais.171
A ação afirmativa não pode ser entendida nem substituída por políticas de
enfrentamento à pobreza, tendo em vista suas características de ação de caráter temporário,
com o objetivo bastante específico de privilegiar o acesso dos indivíduos que estão
comprovadamente sub-representados. 172
168
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. Brasília: IPEA, 2002. p. 49
169
Neste sentido ver SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In:
PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas de (Coord.).Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. p.79 e
também JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da
intervenção governamental. p. 66
170
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas:
120 anos após a abolição.
171
“[...] quando a cor da universidade, pública ou privada, é tão mais branca que negra, a educação superior
passa a ser um elemento de reprodução das desigualdades raciais ao impedir a formação de uma elite negra,
ou melhor, ao impedir o acesso dos negros à elite do país”. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição.
172
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 53
63
3.3.3.3 Miscigenação
3.3.3.4 Mérito
173
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. p. 438-439
174
SELL afirma que atualmente a biologia, bem como as ciências sociais, tem deixado de utilizar este termo,
por verificar que “as diferenças genéticas, sanguíneas, ósseas e epidérmicas podem variar mais entre
indivíduos de um mesmo grupo do que entre indivíduos de diferentes ‘raças’”. Não obstante popularmente o
termo “raça” é utilizado.
175
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. p.76
176
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 56
64
não é justo que o mérito dos candidatos não seja levado em conta como critério de
admissão na universidade. Alegam que “[...] no mundo de alta competitividade, essa
capacidade pessoal [o mérito] revela-se fundamental”.177
Os defensores das políticas de ação afirmativa sustentam que esta é uma medida
necessária para propiciar um aumento na qualificação, bem como de oportunidades da
população negra. As ações afirmativas irão contribuir para que haja um processo de
inclusão da população negra em setores em que ela possui baixa representatividade, de
modo a promover a diversidade racial, a elevação da auto-estima e até mesmo a ascensão
econômica, uma vez que, como já dito, a universidade propicia acesso a melhores
empregos e salários. Além disso, argumentam que nada impede que o mérito conte como
critério de admissão juntamente com o critério racial. Isto poderia ser feito com a fixação
de um número mínimo de pontos a ser alcançado no vestibular.
177
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 49
178
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. p. 446.
65
Não há de se desconsiderar que a ação afirmativa tem seu preço. Porém, segundo
Dworkin, proibi-las seria um preço muito mais alto. A incerteza que circunda os possíveis
resultados sobre a adoção de políticas de ação afirmativa não é motivo justificador para
não implementá-las181, pois ao deixar de implementá-las
Como visto, este tipo de política se faz necessária para “reverter o quadro de
desigualdade, exclusão e injustiça a que foram e são submetidos os negros”.183
179
“A educação superior de elite é um recurso valioso e escasso, e, embora só esteja disponível para
pouquíssimos alunos, é paga por toda a comunidade, mesmo no caso das universidades ‘particulares’, que são
parcialmente financiadas por verbas públicas e cujos doadores ‘particulares’ se beneficiam das deduções
tributárias. As universidades e as faculdades têm, portanto, responsabilidades públicas: devem escolher metas
que beneficiem uma comunidade muito mais ampla do que seus próprios corpos docente e discente”.
DWORKIN, Ronlad. A virtude Soberana: A teoria e a prática da igualdade. p.570
180
DWORKIN, Ronald. A virtude Soberana: A teoria e a prática da igualdade. p.579
181
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 450
182
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. p. 450
183
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 53
184
JACCOUD, Luciana; Nathalie Beghin. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental. p. 56
66
A ação afirmativa tem sua origem nos Estados Unidos da América. A primeira
pessoa a utilizar o termo foi o Presidente John F. Kennedy, em 1961, por meio de um texto
oficial em que propôs medidas com vistas a ampliar a igualdade de oportunidades no
mercado de trabalho.
Esse fato se faz presente em vários indicadores sociais, que apontam a disparidade
de condições sócio-econômicas entre negros e brancos, conseqüência da herança
escravocrata de nosso país, que é o que possui a mais longa história de escravidão das
Américas.
população negra se encontra inscrita, na medida em que objetiva propiciar que este grupo,
desfavorecido socialmente, tenha as mesmas condições de acesso, oportunidades de
desenvolvimento e respeito que os outros; ou seja, tenham direito ao igual tratamento e ao
tratamento como igual.
Para Dworkin o fundamento das ações afirmativas consiste no fato de que ela visa
contribuir positivamente para a promoção do bem estar geral, em busca de uma sociedade
mais justa em termos gerais, de forma a garantir que seja respeitado o direito que toda
pessoa tem de não ser excluída de oportunidades em função de que “a raça a que pertence
é objeto de preconceito ou desprezo”.
Conforme demonstrado, a ação afirmativa não deve ser compreendida apenas como
um sistema de cotas, tendo em vista que este constitui, apenas, uma de suas modalidades.
Ou seja, as políticas de ação afirmativa não se restringem ao sistema de cotas. Isto porque,
a política de ação afirmativa visa ir além da fixação de um número de vagas para
integrantes de um grupo desfavorecido, na medida em que busca alcançar outros objetivos,
além de aumentar o número de estudantes negros nas universidades.
Dentre os demais objetivos que a ação afirmativa pretende alcançar, como exposto
no decorrer do trabalho, inclui: induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e
psicológica aptas a subtrair do imaginário coletivo a idéia de supremacia e subordinação de
uma raça sobre a outra; propiciar uma maior representatividade dos grupos minoritários
nos mais diversos domínios de atividade pública e privada.
69
O sistema de cotas possui como um de seus objetivos efetivar a justiça social e, por
isso, guarda correlação lógica com os interesses e ditames constitucionais, haja vista que
ao efetivar a justiça social, busca garantir uma igualdade efetiva, bem como promove os
objetivos previstos no preâmbulo da Constituição.
Por todos estes motivos, para combater as desigualdades raciais são necessárias
políticas de ação afirmativa. Elas visam um objetivo maior do que alterar, a longo prazo, o
70
quadro econômico em que estão os negros. A ação afirmativa possui como objetivo criar
modelos de representações e uma diversidade racial nos cursos das universidades, a fim de
romper com a reprodução das desigualdades raciais.
Assim é que, as ações afirmativas irão contribuir para que haja um processo de
inclusão da população negra em setores em que ela possui baixa representatividade, de
modo a promover a diversidade racial, a elevação da auto-estima e até mesmo a ascensão
econômica, uma vez que a universidade propicia acesso a melhores empregos e salários.
REFERÊNCIAS
_____. Levando os Direitos à Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. 568 p
_____. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. 593p
SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial: uma introdução ao debate
no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. 86p
SILVA, Fernanda Duarte Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2003. 143 p.
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26 ed. São Paulo:
Malheiros, 2006. 924p