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Artigo 4
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A relação entre ergonomia da atividade e o campo de intervenção denominado qualidade de vida no trabalho
(QVT) não é evidente e, no limite, ausente. Afinal, a ergonomia da atividade se interessa pela qualidade de vida
no trabalho? O objetivo deste artigo, de natureza teórica, consiste em repensar essa relação com base em dois
eixos: (a) dados empíricos que caracterizam os principais problemas contemporâneos das organizações e que
convidam as ciências do trabalho para soluções; e (b) os traços históricos e científicos da ergonomia da atividade
que a credenciam para a promoção do bem-estar no trabalho. O ponto de chegada de tais reflexões fornece
elementos de resposta à questão inicial, mostrando que tanto os problemas existentes no mundo do trabalho,
quanto a tradição científica da ergonomia da atividade convocam os ergonomistas para uma intervenção, de
espectro mais largo, no campo da qualidade de vida no trabalho. Isso implica para a disciplina, sem abandonar
seus pressupostos epistemológicos, em ampliar seu campo de análise e de contribuições, construindo uma
abordagem de QVT de viés preventivo e distinguindo-se da tradição assistencial das práticas de QVT.
Palavras-chave: ergonomia, Qualidade de vida no trabalho, QVT.
Is the activity ergonomics interested by the quality work life? Theoretical and empirical reflections
The relation between Activity Ergonomics and the field of intervention named quality of work life (QWL) is not
clear and, in the limit, absent. Thus, is the activity ergonomics interested by the quality of work life? The aim of
this theoretical-natured article is to rethink this relation based on two axes: (a) empirical data that characterize
the main contemporary problems in the organizations and that invite the work sciences to find solutions; and (b)
the history and scientific background of the activity ergonomics that enable this field to promote the well-being in
the work. The arrival place of such points gives answers elements to the first question, showing that the problems
present in the work life and also the scientific tradition of the activity ergonomic call the ergonomists for a wider
spectrum intervention in the field of the quality of work life. This implies for the subject, without abandoning its
epistemological presuppositions, in enlarging its field of analyses and contributions, building a QWL approach of
preventive bias and distinguishing itself from the assistential tradition of QWL practices.
Keywords: Ergonomics, Quality of work life, QWL.
Introdução
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A palavra “flexibilidade” entrou na língua inglesa no século quinze. Seu sentido derivou
originalmente da simples observação de que, embora a árvore se dobrasse ao vento, seus
galhos sempre voltavam à posição normal. “Flexibilidade” designa essa capacidade de
ceder e recuperar-se da árvore, o teste e restauração de sua forma. Em termos ideais, o
comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável às
circunstâncias variáveis, mas não quebrado por elas. A sociedade hoje busca meios de
destruir os males da rotina com a criação de instituições mais flexíveis. As práticas de
flexibilidade, porém, concentram-se mais nas forças que dobram as pessoas (p. 53).
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Essa crítica de Richard Sennett guarda fina sintonia com a crítica, de longa data, da
ergonomia da atividade sobre os sistemas produtivos que têm, entre seus pilares de gestão, o
pressuposto do trabalhador como variável de ajuste.
É com base nesse cenário que um conjunto de indicadores críticos tem sido produzido
e que coloca em primeiro plano a importância e o papel: (a) do resgate da qualidade de vida
no trabalho no âmbito das organizações; e (b) da intervenção dos profissionais que atuam no
campo das ciências do trabalho.
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eles também usuários e consumidores. Nesse caso, os indicadores críticos mais recorrentes
têm se manifestado sobre a forma de:
- Queixas e reclamações da qualidade de serviços e produtos, de cláusulas não cumpridas, dos
modos de tratamento recebidos em contextos de atendimento, da falta sequer de
acessibilidade aos serviços, em tese, oferecidos. Dois dados empíricos são eloqüentes de tais
indicadores críticos: a diversidade de reclamações de usuários e consumidores que aparecem
na mídia, estabelecendo rankings de empresas/instituições campeãs de reclamações e a criação
de órgãos de defesa dos consumidores que passaram a ter destaque bastante positivo na luta
por direitos nas relações de consumo (Alves Júnior, 2005; Freire, 2002; Gonçalves, 2002;
Hostensky, 2004);
- Insatisfação de usuários e consumidores quanto à qualidade dos serviços prestados pelo
setor público e dos produtos/serviços disponibilizados pelas empresas privadas que prejudica o
próprio acesso aos produtos e serviços para satisfazerem suas necessidades individuais e sociais
(Menezes, 2003).
Esse conjunto de indicadores globais desenha a criticidade dos problemas mais
recorrentes vivenciados em organizações públicas e privadas. No setor privado, ele coloca em
risco a tão desejada competitividade, o crescimento sustentável e a fidelização de
clientes/consumidores. No setor público, tais indicadores colocam em risco o exercício efetivo
da cidadania e, em conseqüência, fragilizam os valores sociais (como a descrença nos
dirigentes) e políticos nos regimes democráticos.
Em síntese, buscou-se até aqui esboçar a fundamentação empírica, mais global, que
dá sustentação à necessidade de intervenção no campo da qualidade de vida no trabalho. No
tópico a seguir são apresentados também fundamentos empíricos, mais específicos, com base
nos resultados de pesquisas e estudos em ergonomia da atividade e ciências afins que
convocam os profissionais para a urgência de intervenções no campo da qualidade de vida no
trabalho. Todavia, a ênfase é na análise dos traços característicos principais da ergonomia da
atividade, buscando fornecer os fundamentos teóricos que a habilitam para a tarefa da
promoção de QVT.
Para responder a segunda questão deste texto, o percurso analítico seguirá por
aspectos históricos, conceitos de ergonomia, objetos de estudo, alguns dos principais
resultados de estudos e pesquisas e elementos teóricos centrais.
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É interessante ver como há certa diferença entre a visão européia e a visão norte-
americana. Enquanto a primeira coloca em tudo o homem trabalhador em primeiro
lugar, a segunda apesar de dizer que “a ênfase é no ser humano” coloca como primeiro
objetivo a efetividade e a eficiência do trabalho e o aumento da produtividade. Somente
em segundo lugar vêm os “valores humanos” (p. 3).
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Estudo científico da relação entre o homem e seu ambiente de trabalho. Nesse sentido, o
termo ambiente não se refere apenas ao contorno ambiental, no qual o homem trabalha,
mas também a suas ferramentas, seus métodos de trabalho e à organização deste,
considerando-se este homem, tanto como indivíduo quanto como participante de um
grupo de trabalho (...). Na periferia da ergonomia (...) estão as relações do homem com
seus companheiros de trabalho, seus supervisores, gerente e com sua família (p. 13).
A ergonomia (ou o estudo dos fatores humanos) tem por objetivo a compreensão
fundamental das interações entre os seres humanos e os outros componentes de um
sistema. Ela busca agregar ao processo de concepção teorias, princípios, métodos e
informações pertinentes para a melhoria do bem-estar do humano e a eficácia global dos
sistemas.
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características psicofisiológicas dos usuários, o ambiente físico e social no qual está inserido e
as exigências sociotécnicas das tarefas.
c) As condições disponibilizadas para a execução das tarefas aumentam o risco de incidências
de distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT) quando: (a) não
proporcionam uma variabilidade postural moderada, em conformidade com as características
psicofisiológicas e antropométricas de cada trabalhador; (b) restringem ou impedem a
liberdade de escolha de postura apropriada para cada situação; (c) induzem, em
conseqüência, à solicitação intensiva de alguns segmentos corporais e respectivas
musculaturas.
d) O contexto de trabalho (com todos seus componentes: físicos, instrumentais, sociais,
normativos e, em especial, as tarefas prescritas) aumenta consideravelmente o custo humano
do trabalho e os riscos de acidentes, doenças, erros e retrabalho quando não incorpora
adequadamente e de modo integrado as características singulares de um grupo de
trabalhadores em termos de exigências:
- Físicas:
estrutura e funcionamento do corpo humano e seus limites em termos de
posturas, gestos, deslocamentos, desgaste energético, ciclos circadianos;
- Cognitivas:indissociabilidade entre conhecimento e ação, bem como, os limites
neurossensoriais de cada ser humano; e
- Afetivas:produção ininterrupta de significação psíquica e sentimentos de mal e bem-
estar provenientes da atividade trabalho.
Ao longo de sua história, a produção científica em ergonomia da atividade tem,
insistentemente, mostrado que a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real
constitui uma descontinuidade fundamental, fundadora de um conflito de duas lógicas: (a)
do modelo da realidade em geral e da (b) atividade em particular (Hubault, 1995, 2006).
Como distância a ser identificada e analisada, ela é uma fonte produtora de conhecimento
em ergonomia. Nesse sentido, estudos e pesquisas (Weill-Fassina, Rabardel & Dubois, 1993)
colocam em evidência o caráter de imprevisibilidade da atividade, pois ela requer a cada
instante a inteligência criadora dos trabalhadores.
A atividade não pode, portanto, ser interpretada automaticamente como sinônimo
de interesse ou de satisfação no trabalho, posto que os sentimentos de fadiga, monotonia e
insatisfação podem estar presentes num mesmo posto de trabalho. Em conseqüência, o foco
na análise da atividade em situações reais de trabalho evidenciou o papel estratégico do
conhecimento sob a forma de savoir-faire dos trabalhadores, que é construído no dia-a-dia de
trabalho para garantir os clássicos imperativos empresariais de produtividade, eficiência e
qualidade e, ao mesmo tempo, suas condições de saúde.
Assim, cabe destacar que o foco do olhar teórico-metodológico da ergonomia da
atividade está voltado para a singularidade do ato de trabalhar de cada ser humano em
contextos assemelhados ou diferentes. Tal singularidade tem múltiplas faces, uma delas –
talvez a mais relevante – diz respeito à linguagem conforme salienta Motta (1997):
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Conclusão
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atividade pode e deve contribuir com a melhoria da qualidade de vida no trabalho, mas com
base em outra perspectiva (Ferreira, 2006; Mendes & Ferreira, 2004). Uma perspectiva de
QVT que se apóie em uma abordagem de natureza preventiva, cooperativa com outras
ciências do trabalho e seus especialistas e, sobretudo, em uma concepção ontológica do
sentido do trabalho que resgaste o seu papel humanizador no âmbito das organizações.
Enfim, a tarefa posta é enriquecer o enfoque tradicional da ergonomia,
desenvolvendo uma ergonomia da atividade aplicada à qualidade de vida no trabalho. Isso
significa para a ergonomia da atividade avançar na sua história, ampliar seu campo de análise,
estender o seu campo de ação e, principalmente, propor mudanças que englobem a
organização como um todo. Evidentemente, essa perspectiva tem implicações de natureza
metodológica no que concerne à análise ergonômica do trabalho. Isso é um ponto
fundamental na agenda para a construção da abordagem: ergonomia da atividade Aplicada à
qualidade de vida no trabalho (EAAQVT). Certamente, tal enfoque não pretende ser uma
espécie de “panacéia” que resolva todos os problemas vivenciados pelos trabalhadores e
gestores, mas uma alternativa que, não obstante seus limites, possa contribuir para as
transformações humanizadoras dos contextos de trabalho.
Referências
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